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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 Produção Didático-Pedagógica Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7 Cadernos PDE VOLUME I I

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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE

2009

Produção Didático-Pedagógica

Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE

VOLU

ME I

I

UNIDADE TEMÁTICA NELCI TERESINHA PRETTO POSSAMAI

Material Didático: Unidade Temática/Caderno Pedagógico, apresentado como requisito de avaliação e participação no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, da Secretaria de Estado de Educação do Paraná, sob a orientação da Profª. Drª. Tânia Maria Rechia Schroeder.

“O conflito está sempre presente, o que obriga a trabalhar, a cada momento, com as turbulências do dia-a-dia [...]". Julio Groppa Aquino

SÃO MIGUEL DO IGUAÇU JULHO/ 2010

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO

Superintendência da Educação

Diretoria de Políticas e Programas Educacionais

Programa de Desenvolvimento Educacional

FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DA PRODUÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA – PROFESSOR PDE/2009 Título: Indisciplina escolar: desafios atuais Professora PDE: Nelci Teresinha Pretto Possamai

Escola de Atuação: Estadual Nestor Victor dos Santos Município – São Miguel do

Iguaçu.

NRE: Foz do Iguaçu

Professora Orientadora: Tânia Maria Rechia Schroeder

IES vinculada: Unioeste (Campus Cascavel)

Área de conhecimento: Pedagogia

Tipo de produção Didático-Pedagógico: Unidade Temática

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Indisciplina Escolar

O conceito de indisciplina é susceptível de múltiplas interpretações. E os

problemas oriundos da indisciplina representam um dos mais antigos e

persistentes desafios encontrados nas escolas, gerando constantemente muita

polêmica. Perguntamos: é possível acabar com a indisciplina escolar? As causas

são inúmeras e não há uma solução definitiva e única para todas as escolas. A

indisciplina escolar pode ser atribuída a fatores externos e/ou fatores que

envolvem a prática pedagógica, a conduta do professor ou ainda a própria escola

que na sua prática pode ser excludente.

A indisciplina pode trazer violência. É neste sentido que alguns autores

distinguem vários níveis de indisciplina, como perturbação, conflitos e vandalismo.

A perturbação pode afetar o funcionamento da escola ou o andamento das aulas.

O vandalismo contra a instituição, atinge na maioria das vezes, tudo aquilo que

ela significa. Já os conflitos afetam as relações interpessoais em seus diversos

níveis (aluno/aluno; aluno/professores; aluno/equipe pedagógica;

aluno/funcionários; professores/professores; professores/equipe pedagógica e

também são considerados um dos maiores entraves para que a escola cumpra

sua função de transmissora de conhecimentos e de desenvolver nos jovens

capacidades adaptativas às diferentes situações da vida. Tais relações podem se

tornar um óbice ao processo ensino-aprendizagem; a avaliação, dentre outros.

Por tratar-se de um assunto complexo, que merece reflexão, estudo,

diálogo e metodologias que acompanhem as mudanças do mundo, da escola e do

desenvolvimento das crianças e dos jovens, é essencial entendermos que para

seu enfrentamento, o principal instrumento é o trabalho coletivo.

Neste contexto, consideramos oportuno incentivar os professores a

refletirem, reverem seus conceitos em relação à violência e indisciplina escolar,

através desta Unidade Temática. A qual é composta por textos nas bases teóricas

da psicologia histórico-cultural e da sociologia compreensiva, com objetivo de

articular a teoria e a prática, contribuindo com a sistematização de metodologias

para: - Aprofundar o entendimento sobre o fenômeno da indisciplina escolar, as

diversas formas de conceituá-la, suas causas e a importância da realização de

um trabalho coletivo. - Subsidiar os professores e demais sujeitos envolvidos na

escola, na construção de alternativas teórico-metodológicas para o enfrentamento

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dos problemas relacionados à violência e indisciplina escolar, buscando

compreender como as relações interpessoais influenciam na forma de agir de

todos os indivíduos envolvidos no processo educativo.

Indisciplina numa análise psicológica

Aquino (1996, p. 45) afirma que é comum associar a questão da

indisciplina à carência psíquica do aluno. A educação, no sentido amplo, não é de

responsabilidade somente da escola, mas também da família. Escola e a família

são instituições responsáveis pela educação, pois, se completam e articulam-se.

A criança e/ou adolescente para reconhecer a autoridade externa (do

professor) deve possuir uma infra-estrutura (moral), anterior à escolarização. Tal

estrutura seria caracterizada pela permeabilidade de regras comuns, partilha de

responsabilidades, reciprocidade, solidariedade entre outras. Entretanto, algumas

funções adicionais vêm sendo delegadas para as escolas e extrapolam a

dimensão epistemológica. A escola raramente é representada como espaço de

(re)produção científica e cultural para seus alunos, mas sim como um espaço de

normatização atitudinal, onde a função da escola seria fundamentalmente

disciplinadora (AQUINO, 1996).

Do ponto de vista sócio-histórico a escola é centro de confluência dos

movimentos históricos e do ponto de vista psicológico sofre com as mudanças na

estrutura das famílias. E em ambos a indisciplina é um sintoma dos conflitos e

relações descontínuas entre o espaço escolar e demais instituições sociais. A

indisciplina não deve ser atribuída unicamente ao aluno, alegando-se problema

psicológico, nem creditado totalmente a estrutura escolar e suas circunstâncias

sócio-históricas e menos ainda atribuídas às ações do professor, tornando um

problema didático-pedagógico, mas sim como um fenômeno transversal

(professor/aluno/ escola), sendo a indisciplina um efeito do entre pedagógico

(AQUINO, 1996).

Para Aquino (1996) a saída está na relação professor-aluno, no vínculo

cotidiano e na maneira de como nos posicionamos perante o nosso outro.

Lembrando que separadas as especificidades das atribuições, ambos são

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parceiros de um mesmo jogo. Advoga ainda que é muito difícil encontrarmos

alunos sem a infra-estrutura moral, como pré-requisito (em qualquer medida) para

o trabalho pedagógico, o que pode acontecer é de nos faltarem ferramentas

conceituais para que possamos reconhecê-las.

Em função disso, acrescenta Aquino, que devíamos adotar uma nova

ordem pedagógica, onde o trabalho educacional não é somente a transmissão ou

mediação das informações acumuladas, mas de reinvenção do modo de

aquisição e o papel da escola, passa a ser de fermentar a experiência do aluno na

desconstrução e reconstrução do conhecimento. O objetivo da Educação é

(re)construção dos campos epistêmicos, do que reposição de informações

estáveis. Sendo necessário reinventar os conteúdos, as metodologias e as

relações. O trabalho do aluno passa a ser semelhante ao do professor, onde o

aluno é obrigado a fazer funcionar a engrenagem do pensamento lógico. Com

isso o barulho e a agitação passam a ser catalisadores do ato de conhecer e a

disciplina passa a significar movimento, força afirmativa, vontade de superar

obstáculos.

Afirma La Taille: (1996) “toda moral pede disciplina, mas toda disciplina não

é moral”. E que, certos atos de indisciplina podem ser morais, mas devemos ter o

cuidado de examinar as razões das normas impostas e dos comportamentos

esperados para condenar a indisciplina.

É importante ressaltar que para La Taille a indisciplina em sala de aula não

se deve principalmente por “falhas” psicopedagógicas, pois depende do lugar que

a escola ocupa hoje na sociedade, o lugar que o jovem ocupa e o lugar que a

moral ocupa. Que devemos reforçar no aluno, o sentimento de sua dignidade

como ser moral e que cabe a escola frisar a seus alunos e para a sociedade que

sua finalidade é a “preparação para o exercício da cidadania”. E para ser cidadão

necessita-se: conhecimentos sólidos, memória, respeito pelo espaço público,

normas de relações interpessoais e diálogo sincero entre olhares éticos. Para o

autor, é responsabilidade de toda a sociedade e suas instituições a formação de

cidadãos éticos, principalmente a família que desempenha uma função

importante, enquanto tem algum domínio sobre os filhos, até o final da

adolescência. Na escola a dimensão moral deve iniciar nos anos iniciais e

prolongar por toda sua trajetória escolar, uma vez que, moral, ética e cidadania

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não se adquirem espontaneamente, mas, se aprendem. Para o autor o respeito é

o valor moral básico, pois no outro tem uma dignidade que devo respeitar caso

contrário às relações ficam prejudicadas.

Afirma o psicólogo, que a escola deve preocupar-se na formação ética, no

relacionamento entre todos envolvidos no processo (alunos, professores e

funcionários) para superar a indisciplina e que a escola deve formar pessoas

capazes de resolverem conflitos coletivamente, baseados no respeito. E o

caminho é a formação ética, não como conteúdo didático, mas sim no convívio

diário dentro da escola. Conclui: “nossos alunos precisam de princípios, e não só

de regras”.

Indisciplina numa visão sociológica

Numa visão sociológica, Guimarães (apud: AQUINO, 1996, p. 78) diz que a

escola está objetivando homogeneizar as pessoas, pois há quem acredite que:

“quanto mais igual, mais fácil de dirigir”. Expõe ainda que a escola possui

mecanismos disciplinares que levam a disciplinarização dos alunos, funcionários

e professores. Tendo o poder de dominação e não tolerando as indiferenças.

Desta forma a indisciplina dos alunos seria uma forma de resistências às normas

impostas. Afirma ainda, que a escola não é apenas reprodutora de opressão, de

violência, de conflitos, mas, também produz sua própria violência e sua própria

indisciplina. E que toda disciplina imposta, quando ignora o modo de compartilhar

espaço, tempo e as relações afetuais (modo de vestir, comer entre outros) entre

os alunos, causa revolta que explode na indisciplina sem controle ou na “violência

banal”.

Com o objetivo de propiciar ferramentas teóricas ao professores, em uma

das oficinas e fazendo parte da unidade temática, os artigos escritos e

autorizados pela Profª. Dª. Áurea Maria Guimarães, (na integra) nos ajudarão a

entender e aprofundar nossos conhecimentos em relação ao fenômeno da

indisciplina escolar.

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Indisciplina e violência:

A ambiguidade dos conflitos na escola

Áurea Maria Guimarães*

_________________________________________________________________

Dois perigos mortais

ameaçam a humanidade:

a ordem e a desordem.

PAUL VALÉRY

Se verificarmos os sentidos que a língua portuguesa reserva para os conceitos de

indisciplina, disciplina e violência, encontraremos algumas definições, tais como:

“todo ato ou dito contrário à disciplina que leva à desordem, à desobediência , à

rebelião” constituir-se-ia em indisciplina. A disciplina enquanto “regime de ordem

imposta ou livremente consentida que convém ao funcionamento regular de uma

organização (militar, escolar, etc.)”,implicaria na observância a preceitos ou

normas estabelecidas. A violência, por sua vez, seria caracterizada por qualquer

“ato violento que, no sentido jurídico, provocaria, pelo uso da força, um

constrangimento físico ou moral”.

Será que em educação poderíamos debater sobre esses conceitos, usando

os mesmos sentidos? Será que a indisciplina e a violência são sempre

indesejáveis, ou teríamos de considerar a ambigüidade desses termos?

Essas questões me levam a buscar nas idéias de Maffesoli algumas

noções referentes à violência, à ordem, à desordem, à lógica do dever-ser

versus a do

___________________ *Socióloga, mestre pela PUCCAMP e doutora pela UNICAMP na área de Educação. Autora de Vigilância, punição e depredação escolar (Papirus, 1985) e A dinâmica da violência escolar: conflitos e ambigüidade (Autores Associados, 1996), atualmente é professora da Faculdade de Educação da UNICAMP. 1. MAFFESOLI, em A sombra de Dionísio (pp.21-26), faz uma distinção entre a moral ( que funciona com base na lógica do dever-ser,determinando os caminhos de um indivíduo,ou de uma

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querer viver, nas quais a ambigüidade aí presente, em vez de se mostrar como

defeito, possibilita pensar a vida social, levando-se em conta a multiplicidade das

situações.

Michel Maffesoli é professor de Sociologia na Sorbonne/Paris V. Sua obra

vai de encontro aos debates atuais sobre a vida cotidiana, a violência, a rua, os

pequenos desvios, a sabedoria popular, abordando a realidade social para além

dos limites dos âmbitos econômico e político. Suas obras mais conhecidas no

Brasil são: A violência totalitária, A conquista do presente, Dinâmica da violência,

O tempo das tribos, A sombra de Dionísio entre outras.

Espero que uma reflexão sobre a duplicidade sempre presente nas práticas

sociais, ajude os educadores a construir algumas alternativas pedagógicas,

considerando não apenas as regras do jogo institucional, mas também outras

regras que, de modo subterrâneo, perpassam o cotidiano escolar.

O olhar de uma pedagogia compreensiva

Para Maffesoli (1984, pp.66-67), esse final de século apresenta duas

tendências que marcam a forma de se compreender o nosso tempo. Uma

representa o lado iluminado que explica a existência dos homens a partir de um

conjunto de leis econômicas, políticas, educacionais; e a outra, denominada o

lado de sombra, acentua a importância das múltiplas e minúsculas situações do

cotidiano onde predominam a fragmentação e a pluralidade do corpo social.

Os dois enfoques têm a sua importância. Perante o peso do determinismo

social, é impossível negar a existência de uma realidade político-econômica cujas

leis podem explicar, por exemplo, a corrupção do poder, a extrema miséria em

que se encontram grandes grupos populacionais, a falência das instituições etc.

Porém, se quisermos compreender a experiência partilhada por pequenos

grupos, devemos fazer um deslocamento do global para o local, tentando

detectar, através de uma outra forma de análise, como a sociedade vive e se

________________________

sociedade, e explicando sua existência por um conjunto de leis) e a ética (cuja expressão é o querer-viver, que organiza as minúsculas atitudes cotidianas de pequenos grupos e remete à relativização dos diferentes valores que integram um grupo, uma comunidade, uma nação, um povo etc.).

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organiza também através dos reencontros, das experiências, das situações dentro

dos diferentes grupos aos quais pertence cada indivíduo. Estes grupos se

entrecruzam e constituem, ao mesmo tempo, uma massa indiferenciada,

polarizada, muito diversificada, condicionando múltiplas atitudes tidas, muitas

vezes, como irracionais, desordeiras, violentas.

Enquanto o termo social designa uma forma analítica de ver o mundo,

determinada pelas injunções econômicas e políticas, a socialidade, segundo

Maffesoli, é uma forma analógica de compreensão da realidade, rica de

possibilidades e que se exerce no insignificante, no banal, em tudo que escapa ao

enfoque macroscópico (Ibid., p.12).

O social tem como lógica a dever-ser, determinando os caminhos dos

indivíduos nos partidos, nas igrejas, nas escolas, nas associações, em todos os

grupos estáveis; a socialidade, ao contrario, é expressão do querer-viver, de uma

outra lógica que organiza as minúsculas atitudes cotidianas dos pequenos grupos

(Maffesoli, 1985, pp.21-26).

No âmbito do social, os indivíduos mantêm uma identidade precisa: o sexo,

a profissão, a religião, o partido político e uma autonomia atribuída à competência

individual, ou às determinações macroestruturais.

A socialidade, por sua vez, fundamenta-se nos diversos papéis que cada

pessoa representa não só, por exemplo, na sua atividade profissional, mas

também no seio das diversas tribos. Aqui, o pessoal não segue o princípio de

individuação (Maffesoli, 1988, pp.72-92), que tem por referência o indivíduo

particular, mas que se expressa no que Maffesoli denomina corpo coletivo,

sedimentado no pluralismo existencial cuja lógica tem como características a

vaguidade, a indecisão, o provisório, o fluido, abrindo uma outra compreensão da

cultura.

______________________

2. Michel MAFFESOLI, O tempo das tribos, pp.35-36. Segundo MAFFESOLI, assistimos hoje à emergência de um período em que predomina as atitudes grupais. Cada grupo conta suas histórias, cada um participa de uma série de tribos, constituindo o que o autor chama de neotribalismo, caracterizado pela fluidez, pelos ajustamentos, pela dispersão. No neotribalismo, as pessoas circulam, participam de uma rede, mas sem um projeto específico. Criam-se cadeias de amizade que possibilitam as relações através do jogo da proxemia: alguém me apresenta a alguém, e assim por diante. Há uma íntima ligação entre a proxemia e a solidariedade. A ajuda mútua surge por força das circunstâncias e sempre podem ser ressarcidas no dia em que tiver necessidade dela. Os grupos sociais dão forma aos seus territórios e às suas ideologias, e depois são constrangidos a se ajustarem, suscitando uma multiplicação indeterminada de tribos que seguem as mesmas regras de segregação e de tolerância, de atração e de repulsão.

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Se nas instituições prevalece a lógica do dever-ser, onde o domínio das

regras e das normas tenta uniformizar o comportamento das pessoas, não

podemos deixar de perceber também a existência de uma lógica do querer-viver,

abrindo espaços para um tipo de participação em que cada um, no seu jeito

individual de colaborar, sente-se representado coletivamente, sem perder a sua

especificidade. Toda instituição seria fecundada pela ambigüidade dessas duas

lógicas.

No caso da lógica do dever-ser, está presente a tentativa de equivalência

generalizada que indiferencia os contrários, os antagonismos e racionaliza as

coerções. O controle racionalizado da vida social, principalmente através do

mecanismo da burocratização, culminou numa vida completamente desapropriada

de sua conexão com o coletivo, pois o que predomina é a planificação, a

imposição das normas, a repressão e a assepsia da existência cotidiana. A vida

passa a ser controlada nos mínimos gestos e o indivíduo passa a ser manipulado

pelas instituições, pois cada um se torna um espectador passivo de seu próprio

destino. Para além do indivíduo, existe uma unidade abstrata que predomina

sobre ele e que se desenvolve em detrimento do coletivo.

Com o desaparecimento da coesão social, esvaziando a socialidade de sua

força, de sua potência, rompe-se a ressonância entre o micro e o macrocosmo e o

que assistimos é o surgimento de uma modalidade de violência chamado por

Maffesoli (1981, p.125) de violência dos poderes instituídos, ou seja, dos órgãos

burocráticos, dos Estados, do Serviço Público.

Quando a sociedade se limita cada vez mais ao que é da ordem do policial,

do fiscal, do militar, esquecendo-se dos microscópicos vínculos que permitem

captar a tessitura da trama social, essa ênfase acaba constituindo-se num eficaz

instrumento de dominação, expurgando o que não é evidente, concreto,

transparente, e ocasionando uma exacerbação da violência cotidiana. Porém,

quando a lógica do querer-viver se impõe, surgem tensões que se expressam no

interior dos grupos e entre eles. Essas forças impedem sempre o êxito completo

da dominação .

______________________

3. Michel MAFFESOLI, op. cit., p.72. O termo perverso é usado no sentido de pervia = caminho desviado.

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. Toda vez que os poderes instituídos neutralizam as diferenças, levando a

submissão, a adaptação e deixam de considerar as forças coletivas dos diferentes

grupos, há efeito de ruptura que podem ocorrer tanto frontalmente (as fúrias

urbanas, os arrombamentos), como através da violência banal, isto é, das

resistências passivas que aparentemente se integram ao instituído, mas que, na

realidade, se opõem a ele, subvertendo o poder silenciosamente (Maffesoli,

1987a, pp.98-99 e 114).

A banalidade é tudo aquilo que esta fora do alcance de todo o poder

exterior, mas que alicerça o prazer de estar junto. Submissões aparentes podem

representar resistências reais desde que se considere como atitudes que,

tomadas em conjunto, tendem a quebrar ou, pelo menos, desviar as imposições

da planificação social.

Para Mafessoli, existe uma astúcia popular revestida de duplicidade que se

enraíza e se desenvolve no cotidiano, estruturando uma existência dupla, cortada,

sem sentido, descontínua que recusa a subjugação total que permite a

sobrevivência social e individual (Ibid., p.69). Não há nem uma recusa absoluta,

nem uma adesão arrebatada, mas uma atitude subversiva que, para Maffesoli, é

expressão de saúde. Esta atitude astuciosa, de modo passivo, perverso, duplo,

move o social que resiste aos massacres dos valores oficiais, e os indivíduos,

aparentemente integrados a esses valores, preservam um tanto para si,

sobrevivendo às imposições das normas. Não se luta contra os valores

estabelecidos, mas se procura ganhar distância, formando uma dissidência

interior, através de uma arte de fachada, da ironia, do cômico.

Analisar a natureza da violência, explicitando sua dinâmica e reconhecendo

os elementos ambíguos que a compõem, não significa abstraí-la de um contexto

histórico e social, mas apontá-la como um fenômeno que coloca à mostra a

intensidade das experiências coletivas, permitindo a manifestação das pequenas

desordens da vida cotidiana.

A indisciplina aparece aqui sob todas as formas de conflitos que

incorporam uma capacidade de resistência dos pequenos grupos e expressam-se

quer sob uma aparente submissão, quer através dos excessos de todos os tipos:

depredação, pichações, zombarias, risos, ironia, tagarelice. Essas manifestações,

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que de certa forma delineiam a característica essencial do estar-junto, estariam

fundadas, segundo Maffesoli (1980, p. 364), no instinto de regra.

Os grupos funcionam protegidos por uma lei que preserva suas

particularidades específicas, assegurando sua integração. Em vez de uma ordem

gerida pela monopolização de uma realidade que remete a uma acumulação da

energia social, temos um ordenamento cuja dinâmica recusa a monopolização e

garante a circulação da energia social (Maffesoli, 1981, p. 107). Num caso, o

indivíduo está completamente dependente em relação a um controle central,

abstrato, anônimo, como ilustra o “Grande Irmão de 1984”; noutro, as

potencialidades de cada um são reconhecidas e integradas em um conjunto

(Maffesoli, 1982, p. 366).

Maffesoli (1986, pp. 337-339) refere-se a uma ordem (con)fusional que

garante os interesses comuns de um conjunto, mas guarda a autonomia de cada

um. Não se trata de uma ordem que impõe uma unidade fundada no igualitarismo,

na homogeneização dos comportamentos, mas de uma ordem incorporada que,

ao ser vivida, cria uma espécie de unidade, ou seja, uma união em pontilhado, um

ajustamento de elementos heterogêneos que não ocorre sem dilaceramentos e

conflitos ( Maffesoli, 1987, pp.144 e 176).

Escola: espaço de violência e indisciplina

Vamos refletir agora como escola, enquanto espaço de violência e

indisciplina, é percorrida por um movimento ambíguo: de um lado, pelas ações

que visam ao cumprimento das leis e das normas determinadas pelos órgãos

centrais, e, de outro, pela dinâmica dos seus grupos internos que estabelecem

interações, rupturas e permitem a troca de ideias, palavras e sentimentos numa

fusão provisória e conflitual.

A instituição escolar não pode ser vista apenas como reprodutora das

experiências de opressão, de violência, de conflitos, advindas do plano

macroestrutural. É importante argumentar que, apesar dos mecanismos de

reprodução social e cultural, as escolas também produzem sua própria violência e

sua própria indisciplina.

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Para podermos dar conta de algumas formas de violência e de indisciplina

que dinamizam a vida cotidiana da escola, é preciso apreender, na ambiguidade

desses fenômenos, seus modos específicos de manifestação.

Não é meu objetivo valorizar esteticamente a violência, nem defender uma

escola sem regras, mas apontar a existência de uma lógica interna aos fatos que

ofereça uma pista para encontrarmos alternativas pedagógicas de negociação

com os conflitos.

A escola, como qualquer outra instituição, está planificada para que as

pessoas sejam todas iguais. Há quem afirme: “quanto mais igual, mais fácil de

agir”. A Homogeneização é exercida através de mecanismos disciplinares, ou

seja, de atividades que esquadrinham o tempo, o espaço, o movimento, gestos e

atitudes dos alunos, dos professores, dos diretores, impondo aos seus corpos

uma atitude de submissão e docilidade.

Assim como a escola tem esse poder de dominação que não tolera as

diferenças, ela também é recortada por formas de resistência que não se implica

em aceitar a escola como um lugar que se expressa numa extrema tensão entre

forças antagônicas.

Como a pluralidade das ações aí presentes não se reduz à uniformidade, o

princípio da homogeneização não se coloca tranquilamente, pois ela repousa

numa inquietação frente ao querer-viver dos diferentes grupos. A disciplina

imposta, ao desconsiderar, por exemplo, as relações afetuais entre os alunos,

gera uma relação que explode na indisciplina incontrolável ou na violência banal.

Se ensinar é mais do que transmitir conteúdo, ou seja, é poder gerir

______________________

4. Áurea M. GUIMARÃES, Vigilância, punição e depredação escolar, p. 66. Neste trabalho, analiso como o poder penetra e se ramifica no conjunto da vida escolar, através dos controles, regulamentos, mecanismos da vigilância e da punição. 5. Na tese de doutorado intitulada A depredação escolar e a dinâmica da violência, defendida em 1990 na Faculdade de Educação da UNICAMP, analiso mais detalhadamente as várias modalidades de violência e a forma de sua dinâmica nas escolas pesquisadas. Ver também artigo publicado na Revista Ideias, nº 12, 1992, com o nome: “A escola e a ambiguidade da violência”. 6. Para Maffesoli, o termo afetual tem como base não a afetividade dos indivíduos, como na análise freudiana, mas o emocional que remete a uma ambiência global. Os modos de vestir, de comer, de viver expressam estilos de vida que se capilarizam no tecido social, formando o “em torno”, o cotidiano, ou essa dimensão geral da qual cada um de nós está impregnado, mas num aspecto englobante. De acordo com anotações de aulas do curso “A cultura pós-moderna” ministrado pelo professor Michel Maffesoli em Escola de Comunicação e Artes/USP, no período de 18 de outubro a 1º de novembro de 1989.

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relações com o saber, a aprendizagem implica uma tensão, uma violência para

aprender (Benavente, 1994, p. 152).

A classe é o lugar onde se tece uma complexa rede de relações. Mas na

medida em que o professor não consegue perceber essa teia ele concentra os

conflitos ou na sua pessoa, ou em alguns alunos, não os deslocando, portanto,

para o coletivo. Como não há reversibilidade de posições, forma-se uma rígida

divisão entre aquele que sabe e impõe e aquele que obedece e se revolta

(Colombier, 1989, p. 65). Dessa forma, cada um passa a ser movido por uma

ordem, por uma obrigação que é imposta e não incorporada.

O professor imagina que a garantia do seu lugar se dá pela manutenção da

ordem, mas a diversidade dos elementos que compõe a sala de aula impede a

tranquilidade da permanência neste lugar. Ao mesmo tempo que a ordem é

necessária, o professor desempenha um papel violento e ambíguo, pois se, de

um lado, ele tem a função de estabelecer os limites da realidade, das obrigações

e das normas, de outro, ele desencadeia novos dispositivos para que o aluno, ao

se diferenciar dele, tenha autonomia sobre o seu próprio aprendizado e sobre sua

própria vida.

O grande problema talvez esteja no fato de o professor se concentrar

apenas na sua posição normalizadora achando que, com isso, ele conseguirá

eliminar os conflitos. Mas, as efervescências da sala de aula marcada pela

diferença, pela instabilidade, pela precariedade, apontam para a inutilidade de um

controle totalitário, de uma planificação racional, pois os alunos buscam de modo

espontâneo e não planejado o querer-viver que, por ser irreprimível, impede a

instalação de qualquer tipo de autoritarismo. Quanto maior a repressão, maior a

violência dos alunos em tentar garantir as forças que assegurem sua vitalidade

enquanto grupo.

Quando o professor experimenta a ambiguidade do seu lugar, ele

consegue, juntamente com os alunos, administrar a violência intrínseca ao seu

papel. Isso não significa que a paz reinará na escola, mas que alunos e

professores, por força das circunstâncias, serão obrigados a se ajustar e a

formular regras comuns – os limites de fechamento e de tolerância. Portanto, nem

autoritarismo e nem abandono (Ibid., p. 90). O professor ocupa o seu lugar

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limitador, mas ele também abre brechas que permitirão ao aluno negociar e viver

com mais intensidade a misteriosa relação que une o lugar-escola e o nós-alunos.

Na sua ambiguidade, a indisciplina não expressa apenas ódio, raiva,

vingança, mas também uma forma de interromper as pretensões do controle

homogeneizador imposto pela escola. Tanto nas brigas (envolvendo alunos,

professores e diretores) como nas brincadeiras, existe uma duplicidade que, ao

garantir a expressão de forças heterogêneas, assegura a coesão dos alunos, pois

eles passam a partilhar de emoções que fundam o sentimento da vida coletiva.

A escola tende a reforçar ora a integração plena, ora a rejeição total e, com

isso, ela rompe o eixo das redes em que se apóiam a aproximação e a recusa

afetiva. Esse desequilíbrio desvincula a escola de seu enraizamento junto aos

alunos, represando sentimentos que frequentemente explodem sob as formas

mais indesejáveis.

O objetivo de eliminar a violência e a indisciplina, ou para colocá-las para

fora do espaço escolar, faz com que se perca a compreensão da ambiguidade

desses fenômenos que, entre a ordem e o ordenamento, restauram a unicidade

grupal e instalam uma tensão permanente. Quando essa tensão é vivida

coletivamente, ela assegura a coesão do grupo; quando impedida de se

expressar, transforma-se numa violência tão desenfreada que nenhum aparelho

repressor, por mais eficiente que seja, poderá conter.

Portanto, nem uma liberação geral, nem uma ordem absoluta tem eficácia

sobre o movimento dos diferentes grupos que compõem o território escolar, e que

obedece as leis próprias. O confronto da escola com essas leis obriga à

negociação, à adaptação. Quanto maior a sua capacidade em assumir e controlar

a violência, mais a escola dará ao conjunto uma mobilidade que permitirá driblar e

agir com tolerância perante os diferentes tipos de agitação.

Mas, quando a escola se enrijece, aplicando uma lei única para todos os

casos, o coletivo se desestrutura porque as discordâncias, deixando de ser objeto

de negociação, enfraquecem os vínculos da trama social e começam a ser

tratadas por especialistas. O diretor passa a depender, por exemplo, dos peritos

(policiais, bedéis, orientadores, psicólogos etc.) que se utilizam da força física,

moral e /ou psicológica para conter o movimento de violência. Contudo, a ação

desses peritos será pouco eficaz, porque quando a violência não é eliminada, ela

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assume outras modulações e rompe regularmente, trazendo à tona tudo o que foi

rejeitado.

Como diretores de escola, professores, educadores em geral irão negociar

com os conflitos? Não se trata de receitas formas que levem a essa negociação,

mesmo porque não existe plano algum que solucione o problema da violência e

da indisciplina de modo a eliminá-las por completo. O conflito está sempre

presente, o que obriga a trabalhar, a cada momento, com todas as turbulências

do dia-a-dia, localizando as formas submetem às imposições das normas de

dever-ser. Compreender esta situação através das quais elas se compõem em

relação aos limites e às coerções da instituição (Baudry, 1988, pp. 5-17).

Uma disciplina homogeneizadora que valha para escola toda, feita para um

conjunto de alunos equivalentes àqueles de um passado idealizado (“dos velhos

tempos”), esta destinada ao fracasso. Com o advento da escola de massas, há

outras regras em jogo que nada têm a ver com a experiência que vivemos no

passado. Existe um conjunto de histórias tão diversificadas que precisam ser

conhecidas para que os educadores descubram os mundos de onde os alunos

provêm.

É preciso construir práticas organizacionais que levem em conta as

características das crianças e jovem que hoje freqüentam as escolas. A

organização do ano escolar, dos programas, das aulas, a arquitetura dos prédios

e sua conservação não podem estar distantes do gosto e das necessidades dos

alunos, pois, quando a escola não tem significado para eles, a mesma energia

que leva ao envolvimento, ao interesse, pode transformar-se em apatia ou

explodir em indisciplina e violência.

Como encontramos um equilíbrio entre os interesses dos alunos e as

exigências da instituição? É preciso deixar de acreditar que paz signifique

ausência de todo conflito.

Empreendimentos que flexibilizem o tempo e o espaço do território escolar,

que não excluam a possibilidade de dissidência e nem o debate sobre estas

questões, podem dar início ao despontar de uma solidariedade interna que recuse

o coletivismo, isto é, a imposição unitária de comandos, e que engendre uma luta

pelo coletivo, ou seja, uma atividade conjunta que rompa com o isolamento das

pessoas e crie uma comunidade de trabalho.

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Essa comunidade faz nascer a proximidade afetual que possibilita a troca

recíproca, sem eliminar a autonomia das pessoas e as suas diferenças. Mas para

que exista esta solidariedade, é preciso correr o risco da separação, da

honestidade que atravessa todas as redes da trama social escolar e que faz

relembrar as bases do seu funcionamento. Os múltiplos confrontos e o viver

ambíguo (entre a harmonia e o conflito) integrado a uma ação coletiva, não

atomizada, são os fatores que concretizam a paixão do estar-junto, o gostar da

escola, ainda que apenas para encontrar os amigos.

Bibliografia

BAUDRY. P. (1988) Approche sociologique de la violence. Cahiers Internationaux

de Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, v. LXXXIV, pp.5-17.

BENAVENTE. A. (1989) O debate indisciplina na escola. Revista da Associação

de Sociologia e Antropologia da Educação. Porto: Edições Afrontamento, n.2, pp

141-170.

COLOMBIER, C. e outros. (1989) A violência na escola. São Paulo: Summus

Editorial.

GUIMARÃES, A. M. (1996) A dinâmica da violência escolar: conflito e

ambigüidade. Campinas: Autores Associados.

___________ (1992) A escola e a ambigüidade da violência. Série Idéias. São

Paulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, n. 12, pp. 51-66.

___________ (1990) A depredação escolar e a dinâmica da violência. Campinas:

Universidade Estadual de Campinas (Tese de Doutorado).

___________ (1985) Vigilância, punição e depredação escolar. Campinas:

Papirus.

MAFFESOLI, M (1988) O conhecimento comum: compêndio de sociologia

compreensiva. São Paulo: Brasiliense.

___________ (1987a) Dinâmica da violência. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais.

___________ (1987b) O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas

sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.

19

___________ (1986) A superação do indivíduo. Revista da Faculdade de

Educação. São Paulo: FEUSP, v. 12, n.1/2, pp.334-342.

___________ (1985) A sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da

orgia. Rio de Janeiro: Graal.

___________ (1984) A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco.

___________ (1982) La maffia: note sur la socialite de base. . Cahiers

Internationaux de Sociologie. Paris: Presses Universitaires de France, v. LXXIII,

pp. 363-368.

___________ (1981) A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Rio de

Janeiro: Zahar.

___________ (1980) Le rituel et la vie quotidienne comme fondements des

histoires de vie. Cahiers Internationaux de Sociologie. Paris: Presses

Universitaires de France, v. LXIX, pp.341-349.

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A PRESENÇA DE POLICIAIS DENTRO DAS UNIDADES DE ENSI NO GARANTE A SEGURANÇA DOS ALUNOS?

Áurea M. Guimarães

Coordenadora do Violar: Laboratório de Estudos sobre Violência, Imaginário e Educação, na área de pesquisa: Ensino, Avaliação e Formação de Professores.

Docente da Faculdade de Educação - Unicamp

Tenho acompanhado as discussões realizadas em seminários sobre Segurança Escolar, com a participação de educadores e segmentos da polícia encarregados da segurança dos alunos. Nesses eventos, observo que a maioria dos policiais se coloca de forma coerente em relação aos objetivos da corporação, ou seja, há uma clareza de que a instituição policial existe para manter a ordem social, tendo autorização da sociedade para garantir a segurança e usar da força, caso seja necessário. Ao serem chamados, pelos educadores, para ocuparem o interior das escolas, muitos deles dizem sentir-se “desconfortáveis”, pois foram treinados para reprimir delitos e não para administrar diferenças e conflitos. Mesmo um programa como o Proerd: Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência, tem causado polêmicas dentro da própria polícia militar. De modo geral, os soldados encarregados das atividades operacionais de policiamento ostensivo, bem como policiais das mais diversas patentes e inserção social discriminam os policiais proerdianos, pois ao permanecerem nas escolas “para ficar aí com as criancinhas”, estariam demonstrando falta de coragem e competência para “estarem numa viatura combatendo o crime”.

Vários programas elaborados pelas instituições policiais e com o intuito de se aproximar das escolas têm seus pontos positivos e estratégicos também, pois, na ausência de políticas públicas que zelem pelas instituições de ensino, os policiais encontram nesse campo uma possibilidade de resgatar sua imagem junto à população. Em Araraquara, por exemplo, a pesquisa de Antonio Alberto Brunetta 1 demonstra que, ao lado de famílias residentes em bairros da periferia, onde o contato da PM com a comunidade se realiza de modo violento e a receptividade dos pais em relação ao Proerd não é positiva; existem outros segmentos da população que aprovam o trabalho dos policiais dentro da escola e os vêem como pessoas capazes de trazer e manter a ordem no espaço escolar.

Gostaria de trazer alguns aspectos dessa situação para refletirmos sobre o papel do policial junto ao processo educativo, principalmente no que diz respeito à relação autoridade-obediência. Para a corporação militar, por exemplo, a autoridade deve ser aceita de forma incondicional. As decisões não são discutidas, e sim tomadas por um superior hierárquico. A desobediência é severamente punida. Obedece-se porque não se tem escolha.

Quando um aluno comete um ato indisciplinar, normalmente, o policial em sala de aula associa a indisciplina à infração, a um ato delituoso que deve ser punido com rigor.

Mas, o jovem, hoje, obedece, acata a punição? Relativizando-se os exageros da mídia, os alunos têm ignorado os adultos responsáveis por sua educação e isso apesar de todo o controle institucional e da tentativa em reprimir

1 Dissertação de Mestrado intitulada: “B.O. da Educação: a visão dos policiais militares sobre a autoridade e a educação”. Universidade Federal de São Carlos. 2003.

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os abusos. Alguns professores trazem a imagem de um “beco sem saída” e, acuados diante de alunos armados, drogados, revoltados, recorrem aos policiais para que eles reprimam alunos indisciplinados em sala de aula. Muitos chegam a solicitar, por exemplo, que o soldado proerdiano “dê um susto” em alunos de 3as e até de 2as séries. O que ressalta, como afirma Brunetta, o despreparo e o autoritarismo do professor. Os policiais, por sua vez, ocupam espaço no campo educacional, construindo junto aos alunos modelos tradicionais de autoridade incondicional. Alunos que inicialmente se opõem ao policial em sala de aula, são controlados pelo mesmo, sob o olhar frágil e aliviado da professora que perdeu a sua autoridade.

Em muitas escolas, cria-se um reconhecimento mútuo no qual o aluno conhece e é reconhecido pelo policial e o policial reconhece-se no aluno e é por ele reconhecido. Essa relação tem como base laços de amizade e afeto, provocando no policial um desejo de compreender as condições de carência e exclusão familiar/escolar vivenciadas pelos alunos. Estes, ao serem ouvidos e compreendidos pelo policial, oferecem a ele o reconhecimento que a corporação e a sociedade não lhe dão.

Que espaço, então, a escola estaria perdendo? Bastaria que houvesse esse reconhecimento mútuo para que as relações entre alunos e professores fossem recuperadas? Acredito que não.

Conforme nos adverte Marilena Chauí2, enquanto a noção de autoridade se restringir a formas autoritárias de comando, devemos nos submeter a um modelo que dita as normas do conhecer e do agir. Não se ensina a pensar e sim a reproduzir pensamentos. Portanto, ao invés de se tentar manter o binômio educação-obediência, as instituições educacionais deveriam lutar pela conquista da autoridade com autonomia. A autoridade deve garantir a liberdade dos alunos que se realiza ao lado de ações partilhadas. Para além dos desejos individuais, a escola deveria preparar os alunos para o mundo público, para exercer seus direitos e deveres, mantendo a sua autonomia e ao mesmo tempo contribuindo para os interesses coletivos.

Quem viu o filme “O Pianista” de Roman Polansky, sobre a vida do pianista polonês Wladislaw Szpilman e que sobreviveu à perseguição nazista durante a Segunda Guerra, entenderá a relação que a filósofa Hannah Arendt faz entre o demoníaco, o monstruoso e a irreflexão. Em “A Vida do Espírito”3, a autora comenta o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalem. Quando ele era inquerido sobre as atrocidades cometidas, sempre alegava ter sido um excelente funcionário e era simplesmente incapaz de pensar sobre decisões éticas. Sempre que era confrontado com situações para as quais não havia procedimentos de rotina parecia indefeso. Diz Arendt que não se trata de estupidez, mas de irreflexão, ou seja, “é mais provável que a perversidade seja provocada pela ausência de pensamento". Essa ausência pode ser comum em pessoas inteligentes, o que não significa que tenham “um coração perverso”.

Essa conquista do ato de pensar pode se dar através da educação. Porém, para que isso ocorra, a escola deve existir em um espaço democrático, de modo a garantir o exercício da profissão de educador cuja autonomia lhe foi roubada por meio dos consecutivos saques feitos à escola pública. De nada adianta realizar

2 “A não violência do brasileiro”. In: GALVÃO, W. N. e BENTO PRADO, J. R. (coords.). Almanaque 11: Educação ou Desconversa? São Paulo: Brasiliense, 1980. 3 A Vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará. Introdução: pp. 5 a 7.

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programas do tipo “amigos da escola”, ou simplesmente ocupar a escola nos fins de semana, sob a supervisão de bolsistas do ensino médio, se essas atividades não vierem acompanhadas da árdua tarefa de se conquistar uma escola pública, de qualidade, de período integral, ocupada por educadores reconhecidos em sua profissão, capazes de desenvolver mecanismos de participação em termos não do sentido que temos de “ordem”, via monopolização de um comando, e sim de “ordenamento”4, que recusa essa monopolização e garante a circulação das decisões e responsabilidades. Educadores capazes de conceber a escola como o lugar de produção coletiva de conhecimento e de saberes, capazes, portanto, de (re) criar o sentido de autoridade e de autonomia para o pensar. Investir nesse tipo de escola não é trabalho para burocratas nem para políticos preocupados com o melhor “ranking” das instituições educacionais que estão a serviço da lógica de mercado. Ou se investe e se acredita nos sonhos, ou se paga com o preço da “irreflexão”, e essa história nós já vivemos.

4 A noções de “ordem” e “ordenamento” são desenvolvidas por Michel MAFFESOLI em seu livro a Violência Totalitária, da Ed. Zahar, 1981, p. 107.

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Bibliografia

AQUINO, J. G. (Org.) A desordem na relação professor-aluno: Indisciplina, moralidade e conhecimento. In: AQUINO, J. G. (Org.) Indisciplina na escola : alternativas teóricas e práticas. 8ª edição. São Paulo: Summus Editorial, 1996, p.39-55. DE LA TAILLE, Y. A indisciplina e o sentimento de vergonha. In: AQUINO, J. G.

(Org.) Indisciplina na escola : alternativas teóricas e práticas. 8ª edição. São

Paulo: Summus Editorial, 1996, p.9-23.

GUIMARÃES, M. A. Indisciplina e violência: Ambiguidade dos conflitos na escola.

In: Indisciplina na escola : alternativas teóricas e práticas. 8ª edição. São Paulo:

Summus Editorial, 1996.