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Umarizal é uma terra herdada do processo de formação de comunidades negras rurais na Amazônia no período colonial (séc. XVIII), cuja dimensão étnica, cultural e de organização social de quilombos, também denominados de “terras de preto”, explica a construção deste território. Esse lugar de enraizamento pelas regras de fuga de um regime escravocrata evoluiu à sombra do crescimento das atividades de produção agrícola do Baixo Tocantins, no município de Baião/Pará. Com o objetivo de apresentar a experiência de luta pelo reconhecimento, demarcação e titulação do território desse núcleo rural, este artigo revela situações sintomáticas dos embates que culminam com os desdobramentos dos pressupostos de regularização fundiária de comunidades quilombolas.TRANSCRIPT
DA ESCRAVIDÃO À ORGANIZAÇÃO SOCIOPOLÍTICA: SITUAÇÕES
EMERGENTES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE UMARIZAL,
BAIÃO/PA
Rodrigo Augusto Alves de Figueiredo – UFPA. Mestrando.
E-mail: [email protected]
Mariana Menezes Vanzin – UFPA. Mestranda.
E-mail: [email protected]
RESUMO: Umarizal é uma terra herdada do processo de formação de comunidades
negras rurais na Amazônia no período colonial (séc. XVIII), cuja dimensão étnica,
cultural e de organização social de quilombos, também denominados de “terras de
preto”, explica a construção deste território. Esse lugar de enraizamento pelas regras de
fuga de um regime escravocrata evoluiu à sombra do crescimento das atividades de
produção agrícola do Baixo Tocantins, no município de Baião/Pará. Com o objetivo de
apresentar a experiência de luta pelo reconhecimento, demarcação e titulação do
território desse núcleo rural, este artigo revela situações sintomáticas dos embates que
culminam com os desdobramentos dos pressupostos de regularização fundiária de
comunidades quilombolas.
PALAVRAS-CHAVES: Território; Direito; Remanescentes de quilombos;
Introdução
No âmbito da região do Baixo Tocantins, no estado do Pará, encontra-se uma
população ribeirinha que no presente etnográfico de seus habitantes representa as
relações de poder e resistência da procedência histórica de quilombos na Amazônia. A
organização de comunidades negras rurais nessa região repercutiu na singularização da
história e identidade social do povoado de Umarizal, persistindo as formas de domínio e
de uso dos recursos naturais pelo usufruto comum. No que se refere à territorialidade
quilombola, este núcleo rural tem reivindicado junto ao Estado o direito constitucional
de demarcação e titulação das terras tradicionalmente ocupadas para operacionalizar a
regularização fundiária para fins de reconhecimento de seu território.
Especificamente, este apresenta-se como um processo demarcação e titulação
que remete às trajetórias específicas traçadas pelo sistema escravocrata com base na
ideia de reparação da dívida histórica na questão do negro no Brasil. Nessa concepção, o
direito de propriedade dos remanescentes de quilombos sobre as terras que
tradicionalmente ocupam foi reconhecido como direito constitucional no art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Carta de 1988. Este emana os
direitos fundamentais necessários para o empoderamento de espaços que asseguram a
existência da identidade material, afetiva e simbólica de comunidades negras.
Porém, mais que tudo, admitindo-se que tal norma política tenha contribuído
como fundamento de validade para o direito jurídico e étnico no processo de titulação
das terras de remanescentes de quilombos, deve-se levar em conta as circunstancias que
dificultam a efetivação dos direitos fundamentados na Constituição, dada a
complexidade de questões que pairam sobre a categoria “território”, uma vez que há a
emergência de novos fatos sociais.
É dentro deste contexto que este artigo tem como objetivo apresentar a
experiência de luta pelo reconhecimento do território quilombola de Umarizal,
procurando-se destacar as situações mais vulneráveis de conflitos e antagonismo no
qual se encontram imersas. Para isso, além da proposta metodológica bibliográfica,
adotou-se a pesquisa de campo, realizada em março de 2011, como fundamental para
apreender a construção histórica deste território, bem como, identificar as reivindicações
que determinam a ação do grupo em seu presente etnográfico, relativizando o uso da
memória oral. Nesse sentido, importa afirmar que são mínimos os estudos acerca desta
comunidade negra rural.
1. Remanescentes de quilombos: breve concepção histórica
Historicamente, a representação da identidade de comunidades de remanescentes
de quilombos perpassa pela lógica econômica do período colonial, quando houve o
incentivo à adoção da mão de obra negra como mercadoria pela Coroa Portuguesa.
Segundo Treccani (2006, p. 43), à época, inicialmente, duas provisões régias foram
promulgadas: “uma, datada de 18 de marco de 1662, concedia isenção de 50% dos
impostos para importação de negros de Angola; e a outra, de 1º. de abril de 1680, na
qual a Coroa comprometia-se a trazer às suas custas escravos para o Maranhão e Pará”.
A partir de então, paulatinamente, a ideia de tornar as colônias produtivas pela
exploração dos recursos da terra refletiu na inserção do braço de trabalho negro no
território brasileiro.
Os estudos de Moura (1993) e Almeida (2005) revelam que foi a partir da
absorção dos escravos negros pelos grandes proprietários de engenhos que houve a
construção da identidade escravocrata. É a partir da lógica do latifúndio monocultor que
se manifesta a existência social do negro, ainda que não os inserisse verdadeiramente
como sujeitos na sociedade. Neste contexto, cabe destacar que o braço escravo
importado destinava-se à realização de todos os trabalhos de exploração da colônia sob
as piores normas, onde castigos corporais – permitidos por lei e com a permissão da
Igreja – eram comuns aos infratores.
O regime da escravidão, de fato, calhou na emergência de uma existência social
negra atribuída pelas péssimas condições de vida. No caso específico, Acevedo e Castro
(1998) mencionam que a inserção do trabalho negro nas relações de afazeres com a terra
nas colônias representou a transgressão dos direitos fundamentais de alvedrio de uma
identidade étnica. Esta situação de marginalização provocou reações de indignação em
todo grupo negro, acarretando no estabelecimento de fugas isoladas e suicídios diversos.
No entanto, a reação mais frequentemente apresentada diz respeito à formação de
espaços de resistência à lógica que lhes era imposta, denominados de quilombos
(O’DWYER, 2002; ALMEIDA, 2005; SAQUET, 2007).
O ideal de liberdade foi uma das importantes motivações para a resistência negra
ao sistema escravocrata do século XIX. Apesar dos esforços constantes das autoridades
coloniais em combater a fuga dos escravos, tornou-se cada vez mais comum a
constituição de quilombos, fato que ocasionou um desequilíbrio no sistema e explica o
mundo social dos remanescentes de quilombos construído. Mais do que a luta pela
resistência à escravidão, os negros estavam à procura da inserção social, isto é, de
condições favoráveis à realização dessa existência.
Nessas áreas de refúgios, comunidades de índios, de mestiços e de negros
constituíram, à margem da sociedade colonial, nichos onde puderam
desenvolver uma existência social autônoma, por vezes de singular vitalidade
inventiva (MOREIRA NETO apud TRECCANI, 2006, p. 52).
Segundo Treccani (2006, p. 61), muitos quilombolas continuaram a manter
relações econômicas com sujeitos da sociedade colonial, não se isolando nem
fisicamente, nem economicamente desse meio, mas ganhado certa legitimidade aos
olhos de quem os cercava. Essa realidade, por um lado conflitante, por outro com certo
grau de equilíbrio, fez-se presente ao longo do século XIX, mesmo após a abolição
formal da escravatura em 1888.
Decorre que, na prática, vários mecanismos foram utilizados para manter a
segregação do negro da sociedade na condição de mão de obra escravista. Nesse
sentido, a ação de privatização da propriedade adotada pela abolição da escravidão
negra no Brasil tornou os negros livres, mas dependentes dos legítimos donos de terra.
De acordo com Moura (1993) e Treccani (2006), por meio do sistema das “Sesmarias1”,
a Coroa autorizou a repartição de terras em enormes latifúndios, destinando-as aos
grandes proprietários privilegiados pelos governantes e oriundos dos brancos
portugueses, objetivando a efetiva ocupação do território e a produção para o mercado
externo.
Reflexo desse sistema, tem-se as inúmeras expulsões de negros dos territórios
escolhidos por eles para viver foram desencadeadas, e os que permaneciam passaram a
pagar pelo uso do local com seu trabalho. A exploração e marginalização sofrida pelos
negros foram mantidas. Não obstante, essa imposição desencadeou indignações no
1 Primeira Lei que regulamentou a ordenação e distribuição de terras no Brasil, datada de 1375.
grupo e, dessa vez, a luta em busca da apropriação de um território permanente para
viver, o que representa a reivindicação atual dos remanescentes quilombolas.
Sob o ponto de vista social, essa questão não se trata apenas das referências ou
do resgate do passado de uma comunidade sempre ressuscitado, mas da compreensão
que ela tem de si mesma e de sua história e de como vê o seu futuro, de modo a
remontar a identidade do grupo (ALMEIDA, 2005). É nesta perspectiva e
contemporaneidade que o termo “Remanescentes de Quilombos” vem sendo utilizado
para determinar a aceitação de uma identidade étnica negra em defesa da reprodução de
seu modo de vida característico.
Acevedo e Castro (2004) revelam que os quilombolas remetem à existência de
um patrimônio cultural negro secular constituído por um conjunto de apropriações
simbólicas relacionadas ao direito étnico. Este não assentado somente no uso da terra e
na produção dela necessária para a sobrevivência, mas também na ligação entre a
herança e a ocupação singular do território. Nesta direção, Almeida (2004) atribui essa
relação à idéia de capital de relações políticas pautadas na identidade coletiva e na
defesa da autodefinição de grupos étnicos que passaram a buscar sua visibilidade na
sociedade, oferecer resistência política e ter mobilidade social.
Quando se trata de grupos étnicos, o acesso à terra é associado à
sobrevivência física e étnico-cultural, mas também às concepções de uso
coletivo e de terra comum como eixo da identidade desses grupos, pois eles
realizam apropriações simbólicas e desenvolvem saberes sobre o território,
enquanto espaço não só de trabalho, mas também social e simbólico
(ACEVEDO; CASTRO, 2004, p. 38).
Nestes termos, pode-se afirmar que a luta pela sobrevivência na garantia de
acesso aos recursos e a terra é apresentada pelos quilombolas como necessidade
histórica a ser reparada. Diante do cenário de marginalização sofrida pelos negros, a
partir da década de 1970, as comunidades quilombolas, inspiradas nos movimentos
sociais rurais que se estabeleciam à época, começaram um processo de resistência
sociopolítica para fazer valer a afirmação de seus direitos enquanto sujeitos. Castro
(1998, p. 8) salienta que “esses grupos experimentaram um movimento que pretende
recuperar a identidade outrora de seu grupo, via construção identitária através de
processos políticos de afirmação sobre o território”.
Por tudo isto, em fins do século XX, a proposta de reconhecimento político de
domínio sobre o território ocupado por remanescentes de quilombos foi aprovada por
meio do art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988, em vigor. Em seu
preâmbulo: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos”. Também, mais recentemente, incorporou-se no referido artigo o
decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003 que regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
por remanescentes de quilombos.
A promulgação do ADCT fez com que um novo padrão de relação política e de
modalidade de acesso a terra e aos recursos naturais se estabelecesse para garantir a
afirmação e continuidade das tradições das comunidades remanescentes de quilombos
ao seu território etno-sociocultural. Segundo Acevedo e Castro (1998, p. 9), a adoção
dessa política em favor do negro passou a ser “objeto de uma reinterpretação jurídica
quando empregado para legitimar reivindicações pelo território dos ancestrais”
(CASTRO; ACEVEDO, 1998, p. 9). Entretanto, em que pese o reconhecimento
registrado, muitas dificuldades continuam a pairar sobre as comunidades quilombolas
para que os direitos desse grupo sejam efetivados.
Deste modo, vê-se a emergência de novos esforços, discussões, conflitos e
tensões acerca da questão, envolvendo diferentes sujeitos, sejam eles governamentais ou
da sociedade civil. Então, nessa perspectiva, o que segue é uma experiência da
comunidade quilombola de Umarizal que luta pelo reconhecimento efetivo do domínio
do território tradicionalmente ocupado.
2. O Território Quilombola de Umarizal
Localizado no município de Baião, no entorno da Reserva Extrativista (RESEX)
Ipaú-Anilzinho – região do Baixo Tocantins –, estado do Pará, o Território Quilombola
(TQ) denominado “Umarizal” ou “Umarizal dos Pretos” faz jus ao seu nome, já que se
refere à grande quantidade de “pé de marizeiro” (planta nativa) encontrada na região.
Trata-se de uma terra herdada da organização social de quilombos formados ao longo
dos séculos XVIII e XIX no domínio da escravidão negra na Amazônia. De acordo com
o Projeto de lei nº. 001/93, Umarizal compreende um distrito do município de Baião,
cuja delimitação se dá: ao norte, município de Mocajuba; a leste, cidade de Baião; a
oeste, os limites do município de Baião com o município de Oeiras do Pará; ao sul com
os limites do igarapé Paritá.
A partir da sede de Baião, o acesso à Vila pode ser realizado por via fluvial pelo
rio Tocantins com traslado que tem duração média de uma hora de viagem. No percurso
é possível observar a existência de diversificada riqueza de fauna e de flora regionais.
Segundo estudos praxiológicos realizados por Acevedo-Marin e Castro (1999), o
povoado de Umarizal tem sua origem ligada ao processo de formação de comunidades
negras rurais na região do Vale do Tocantins a partir do século XVIII. Na obra “Negros
do Trombetas – Guardiões de Matas e Rios” (1998), as referidas autoras destacam que
a base demográfica da região teve dinamismo particular entre 1755 e 1778, com a
chegada de escravos africanos trazidos de Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Quênia,
Tanzânia e Moçambique, que foram inseridos pela Companhia de Comercio do Grão-
Pará e Maranhão. Assim, lentamente, o vale do Tocantins foi sendo povoado por grupos
negros somados à ocupação milenar de grupos indígenas de diversas etnias.
Precisamente, essa importação da mão de obra africana se deu em função da
diversificação da economia da Amazônia colonial no mundo produtivo, cuja direção
esteve definida para a empresa agrária, sobretudo: os engenhos de cana, plantios de
arroz e cacau, algodão etc. Na contramão deste sistema, conflitos e rebeldias contra o
predomínio da sociedade escravocrata ocasionaram fugas violentas e silenciosas de
negros que permitiram a formação de quilombos ao longo da extensa rede hidrográfica e
de ilhas do estuário amazônico. No vale do Tocantins, vários refúgios surgidos apontam
para a notoriedade do presente etnográfico negro dessa região.
A partir das informações obtidas nas entrevistas foi possível obter detalhes da
ocupação desse território. Na lembrança dos moradores, o processo de povoação inicial
se constituiu em meados do século XIX, quando famílias das comunidades negras de
Maracú e Putiri, refugiadas do município de Cametá, estabeleceram moradia na
localidade de Novo Destino. Posteriormente, estas famílias, deslocaram-se para a
localidade de Paxiubal, situada à margem de um igarapé na antiga rodovia Transcametá
(PA-156), onde passaram a povoá-la. Depois desse deslocamento, por volta de 1920,
iniciou-se uma onda de conflitos entre as famílias de Paxiubal e os índios que ocupavam
a região, principalmente os da etnia Asurinis-do-tocantins.
Os conflitos no território acirraram-se quando os índios reagiram à invasão
ocasionada pela construção da antiga estrada de ferro do Tocantins, em 1835, que
atravessou a terra dos Asurini e dos Parakanã. De acordo com Pinto (2010, p. 90), em
1928, após a morte de oito índios ocasionada por uma “batida organizada pelo
engenheiro Amyntas Lemos”, os ataques indígenas resultaram em várias mortes e
perdas materiais tanto à Paxiubal quanto às localidades vizinhas da região, a exemplo de
Joana Peres e Paritá, entre outras. Em decorrência do fato, muitas famílias primitivas de
Paxiubal, sentindo-se amedrontadas dos ataques violentos ocasionados pelos indígenas,
refugiaram-se em terras que hoje compreendem o território de Umarizal. De todo modo,
por se tratar de uma região ocupada primitivamente por etnias indígenas, os conflitos
continuaram.
As narrativas orais revelam que, devido aos ataques sofridos, muitos quilombos
chegaram a desaparecer. Os conflitos vieram a cessar, de fato, na ocasião em que um
integrante do povoado de Umarizal amasiou-se com uma índia Asurini e, assim, obteve
a confiança dos índios, como exprimiu um entrevistado:
“Ah, as flechas foram acabar lá pelos anos de 1940 quando um negro da vila,
chamado Valdemar, conhecido como Volta Seca, ter se apadrinhado com
uma índia da região dos Assurinis. Ele conseguiu com ela pôr fim aos
ataques, fazendo com que os conflitos acabassem”.
De acordo com laudo informal elaborado pela Secretaria de Educação de
Umarizal em 2010, intitulado “Relatório de Umarizal”, a comunidade compreende
aproximadamente 2.500 habitantes dentre crianças, adolescentes, jovens e adultos. Esse
total envolve as 320 residências familiares que se encontram distribuídas em 13 ruas, 02
avenidas e 05 travessas. Em geral, a infraestrutura da Vila abrange: sistema de energia
elétrica, sistema de água encanada, um posto de saúde, três unidades de educação de
Ensino Fundamental, uma igreja católica, uma igreja evangélica, uma Associação de
Mulheres, um mercadinho e um barracão de festas.
No aspecto cultural, há a manifestação do samba-de-cacete, cultura esta herdada
dos ancestrais africanos, como, também, a representatividade das festas dos santos
padroeiros, com destaque para o culto a Santo Agostinho (mês de julho) e o Círio da
Santíssima Trindade (mês de agosto), das cantigas de rodas e das lendas de
encantamento.
Em termos econômicos, no passado as matas de terra firme da região foram
exploradas predominantemente para o cultivo da espécie pimenta-do-reino nas décadas
de 1970 e 1980. Ocorre que à época, no ápice da produção, houve um declínio do preço
da especiaria no mercado nacional, o que refletiu na queda da plantação de pimentais.
Porém, hoje, com a revalorização do preço da pimenta no mercado nacional, alguns
plantadores têm buscado recuperar os velhos pimentais ou realizar novas plantações de
pimenta na região, mas ainda de maneira pouco significativa. Além disso, praticava-se o
extrativismo da castanha do Pará, malva, borracha e madeira (IBAMA, 2006).
Conforme depoimentos, os agricultores de Umarizal produzem para o seu
consumo, isto é, para o consumo familiar. A economia agrícola de subsistências se dá
por meio de práticas agrícolas para a exploração de produtos tanto alimentícios quanto
medicinais. A mandioca, o milho, o arroz e a castanha-do-pará são as espécies florestais
mais características do cultivo local, destacando-se ainda a produção de cacau e banana.
Quanto às espécies utilizadas como propriedades curativas, tem-se a unha de gato, a
erva doce, o alecrim, o cedro, o, jatobá, a hortelã e a ambé, dentre outras, geralmente
empregadas na fabricação de remédios, unguento e banhos2.
Nesses termos, importa sublinhar que, com menor frequência, tem-se a prática
do extrativismo animal pela pesca artesanal, que é facilitada pela fluência do rio
Tocantins; em raros casos, pratica-se a caça de sobrevivência. Além de produtores, os
agricultores atuam como vendedores diretos da produção excedente no mercado local
junto aos atravessadores. Parte da produção excedente também é comercializada nas
cidades de Baião, Cametá, Tucuruí e Belém.
Além disso, vale destacar que a economia de grande parte dos moradores da Vila
de Umarizal é complementada com a criação de animais domésticos nos quintais (perus,
patos, porcos, galinhas caipiras etc.) e com benefícios de programas do governo federal.
Exemplo nesse sentido tem-se o “Bolsa Família” e o “Programa Jovem Empreendedor”
(PROJOVEM).
2 Saberes tradicionais típicos de comunidades rurais da Amazônia.
3. QUESTÕES EMERGENTES EM UMARIZAL
Este artigo não tem a pretensão de abraçar todas as questões que pairam sobre a
comunidade de Umarizal, uma vez que estas não são mínimas tampouco hegemônicas.
Isso implica evidenciar que serão consideradas neste estudo as demandas mais urgentes
desveladas nas narrativas orais, destacando-se as situações vulneráveis de conflitos
socioambientais. Estas traduzem-se em um campo investigativo onde o estabelecimento
de impasses acerca dos procedimentos de delimitação de territórios quilombolas tem
emergido no horizonte da intensificação de conflitos agrários.
Na perspectiva deste direcionamento, importa ressaltar que os processos de
disputa pelo acesso ao território e aos recursos naturais em Umarizal têm sido tensos
nos últimos tempos entre diferentes sujeitos. Em tais situações, a população local
enfrenta sérios problemas para permanecer nas terras herdadas daqueles que viviam há
várias gerações nelas, mas que não possuíam seus títulos. O uso comum da terra e de
vínculos demarcados pelo pertencimento como um sistema de suporte da vida dessa
comunidade experimenta conflitos com outros sujeitos que estão ao seu redor.
A considerar-se este quadro, o que se percebe é que os conflitos em torno da
demanda territorial de Umarizal remetem ao contexto histórico da região na qual está
inserida. No Baixo Tocantins, especialmente na década de 1970, as dinâmicas sociais,
econômicas e territoriais influenciadas por políticas desenvolvimentistas de grandes
projetos na Amazônia ocasionaram uma nova dinâmica territorial e fronteiriça à região.
De acordo com Pinto (2002), com a abertura da rodovia Transcametá3, acirraram-se os
conflitos pela posse da terra em função da expansão de um desenvolvimento econômico
pautado na exploração madeireira, na pecuária extensiva e em monoculturas, o que
promoveu novas formas de ocupação e uso dos recursos naturais.
À época, a ação expropriatória empreendida por fazendeiros, advindos
principalmente do sul e sudeste do país, por interesses econômicos predatórios,
desencadeou a revolta de trabalhadores rurais que dependiam da terra para trabalhar e
sobreviver. Então, fortaleceu-se o movimento de organização dos trabalhadores rurais
do município de Baião iniciado na década de 1960 contra a implantação da Usina
Hidrelétrica de Tucuruí, que desarticulou as atividades produtivas do Baixo Tocantins,
3 PA-156 que foi recentemente federalizada como BR-422.
afetando consideravelmente o ciclo da atividade pesqueira, dentre outros impactos
socioambientais4.
Como resultante deste processo, Acevedo e Castro (1999) assinalam que a
população baionense buscou discutir e traçar novas formas de ocupação do território,
que com a assessoria da Igreja Católica, consolidaram-se nos Encontros Anuais de
Anilzinho (1980-1992). “Desses encontros à atualidade [...] somam-se fracassos,
desistências de muitos e vendas de várias pequenas posses familiares com migração das
famílias para áreas urbanas” (ACEVEDO; CASTRO, 1999, p. 92). Entretanto, mesmo
diante das dificuldades, muitas famílias resistiram e continuaram a lutar pela posse da
terra como uma expressão identitária e de pertencimento, reivindicando seus títulos
junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Mais recentemente, os primeiros processos de regularização fundiária da
comunidade, motivados por uma nova conjuntura política, têm sido tratados pelo
Instituto de Terras do Pará (ITERPA) – órgão estadual vinculado ao INCRA. Até então,
houve um diálogo do ITERPA com a comunidade para entender quais eram seus pleitos
e iniciar os serviços de levantamento do perímetro de Umarizal. Contudo, ocorre que a
proposta de medição das terras apresentada pelo ITERPA não é aceita pelos moradores,
uma vez que esta não contempla a história territorial e as dimensões culturais por eles
pleiteadas no processo de delimitação do território quilombola.
De fato, apenas as terras que são ocupadas hoje pela comunidade foram
consideradas nesse processo de demarcação, o que não inclui parte do território
tradicionalmente ocupado e perdido ao longo do tempo para fazendeiros e
empreendimentos privados que cercaram a região. Neste contexto, a tradição oral
aponta para a existência de um conflito aberto em torno da demanda territorial de
Umarizal. Na ocasião da pesquisa, entendemos que o processo histórico de ocupação
territorial e de formação étnica deste povoado tem sofrido opressões por parte de
sujeitos dominantes, promovendo territorialidades particulares.
Trata-se de um conflito deparado entre os quilombolas e as empresas Cikel
Brasil Verde S.A. (CIKEL) e White Martins Gases Industriais do Norte S.A. (WHITE
MARTINS), que mantém unidades de negócio nas proximidades da vila de Umarizal.
4 Ver PINTO (2002).
De um lado, os quilombolas reivindicam o reconhecimento de ocupação de
uma área com raízes históricas que ainda não foi legalizada pelo governo, e cujos
limites demandados pelo ITERPA, correspondente a 10.000 ha, vão de contra os
interesses da população no que diz respeito à reprodução de seu modo de vida. Do outro
lado, a cada ano a CIKEL avança sobre o território em questão sob o pretexto de
extração madeireira com responsabilidade social, além de declarar que não há
impedimentos para tal ação em função da não oficialização da demarcação territorial de
Umarizal pelo ITERPA. Do mesmo modo, a WHITE MARTINS tem avançado sobre
áreas comuns da comunidade que tem servido de base para as atividades industriais e
medicinais da empresa, afetando importantes ecossistemas de castanhais da região. Em
suma, estes conflitos se traduzem em perda das terras de morada e de trabalho comuns,
isto é, de pertencimento, do grupo étnico (FIGUEIREDO, 2011).
Nesta dinâmica, podemos constatar que, para o grupo de moradores de
Umarizal, esse cenário de apropriação do território por terceiros tem resultado em
interferências na sua organização social, colocando em perigo a permanência e
reprodução da estrutura familiar nas terras de herança do grupo. O agravamento desse
conflito se revela nos desdobramentos das limitações que pairam na relação de trabalho
com a terra no contexto desse núcleo rural, uma vez que este não dispõe mais de terras
suficientes para plantar. Em consequência, muitas famílias têm enfrentado dificuldades
para manter o cultivo das práticas agrícolas tradicionais, como, também, a
comercialização de sua produção, o que tem se refletido em graves problemas
financeiros. E, por este motivo, muitos jovens têm deixado a comunidade em busca de
melhores condições de vida na sede distrital de Baião.
Nesses termos, alternativas de produção por intermédio da implementação de
pequenos projetos comunitários vêm sendo levadas em consideração na tentativa de
dinamizar a economia local. Todavia, os resultados demonstram que estes não
conseguem deslanchar devido à fraca capacidade de gestão e envolvimento comunitário
no tocante ao desenvolvimento de atividades em geral. De acordo com relato dos
moradores, a falta de ações e relações humanas integradas se constitui em maus
exemplos ao citar as tentativas de desenvolvimento dos projetos da “Casa da Farinha” e
da “Casa do Açaí” que em tão pouco tempo fracassaram. Assim, foi possível observar
que a carência de assistencialismo governamental é fator contribuinte para o não
sucesso de projetos comunitários de Umarizal, pois estes dependem de um conjunto de
ações integradas para se desenvolverem.
Em suma, as dificuldades de controle e permanência no território
tradicionalmente ocupado se mostram como as questões de maior preocupação e
angústia para os moradores de Umarizal. Estes anseiam a demarcação e titulação de
suas terras com vistas à garantia da capacidade autônoma de desenvolvimento de uma
sociedade culturalmente moldada nos princípios valorativos e de aspirações de seus
ancestrais. Desapontados, mas não desencorajados, os quilombolas questionam uma
participação mais efetiva do Estado nesse processo, pois alegam serem dependentes do
resguardo público para o fortalecimento de seu território.
De fato, a população continua se sentindo marginalizada e ameaçada pela falta
da aplicação dos instrumentos legais que amparam seus direitos. Sobre essas situações,
observa-se que a instabilidade institucional do poder público no processo tem
comprometido a legitimidade étnica de Umarizal enquanto terra de remanescentes de
quilombo. É preciso e urgente dar andamento aos procedimentos de regularização e
titulação do território a partir da desapropriação de áreas particulares que nele existem
para garantir o fortalecimento da organização social do grupo envolvido.
Considerações Finais
Da escravidão à organização sociopolítica como resistência, a comunidade de
remanescentes de quilombos de Umarizal tem buscado garantir o reconhecimento da
historicidade do território ocupado, com vistas a assegurar a reprodução de vida do seu
grupo social. Em que pese os avanços legislativos, a realidade é que Umarizal é
reconhecida como terra de remanescentes de quilombo, mas ainda não possui a
demarcação e titulação de seu território, o que parece estar longe de se materializar. Em
termos do artigo 68 do ADCT, a certeza do direito da regularização fundiária a seu
favor ainda é tímido, não sendo per se suficiente para implementar os princípios
constitucionais que o regem, abrindo brechas de disputa pelo uso e pela ocupação de
territórios quilombolas.
No caso de Umarizal, está-se diante de um problema de difícil tratamento que
elenca as demandas dos remanescentes de quilombos, a ação pública do Estado e os
interesses privados. Especificamente, o empoderamento dos preceitos jurídicos
estabelecidos pela Constituição, na contramão da história, em prol das comunidades
quilombolas é a questão que se põe em jogo. À vista desse cenário, constata-se que a
justiça agrária em relação aos moradores de Umarizal deve partir de um conjunto
participativo de soluções entre os sujeitos envolvidos no processo, com a intermediação
efetiva do ITERPA e das autoridades judiciais do Estado.
Sobre essa questão, vale ressaltar que o efeito de tal uso jurídico não deve ser
encarado somente como a necessidade de reparar uma dívida histórica, mas entendido
pelo seu caráter étnico como forma de preservar as culturas e símbolos que regem sua
existência. Entendemos que concretizar as normas e os procedimentos de regularização
de territórios quilombolas, além de reconhecer os direitos sobre a terra, reforçando a
efetivação desta política, significa valorizar o conhecimento e os saberes tradicionais da
cultura étnica de comunidades negras. Portanto, sem dúvida, o reconhecimento efetivo
do território dos remanescentes de quilombos de Umarizal é um importante passo para a
superação das diversas situações de desigualdades, preocupações e angústias que incide
sobra essa população rural.
Referências
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