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1 Da sapata e do pisar o chão: reflexões sobre a constituição do Mestre nas Cambindas 1 Érika Catarina de Melo Alves Mestranda PPGA-UFPB Resumo O presente trabalho busca analisar as relações sociais estabelecidas por meio de uma dança secular chamada de Cambinda, praticada no interior da Paraíba. Ao mesmo tempo em que objetiva traçar um paralelo entre o conhecimento e a prática da dança com as outras técnicas desenvolvidas por esses atores sociais. Para tal, as atividades articuladas pela família Levino, detentora deste saber, serão apresentadas a partir de uma perspectiva processual que coloque em relevo a relação estabelecida entre aqueles sujeitos dançantes e não-dançantes e suas habilidades técnicas para dentro e para fora do cortejo. Neste sentido, o papel de Mestre Cambinda será apresentado como foco central na articulação de uma tradição de conhecimento que está intrinsecamente interligada a um arranjo de elementos que por sua vez agrupam e agregam conhecimentos e redes de sociabilidades que viabilizam trocas simbólicas e materiais naquele ambiente. Se por um lado o Mestre do cortejo articula certas práticas atribuídas a seu papel, por outro o seu reconhecimento como Mestre de obra têm lhe garantido prestígio naquele contexto em questão. Os processos de aprendizagem e de transmissão de certos moldes operativos em cada ofício sejam no cortejo das Cambindas ou na construção de uma casa seguem lógicas de usos conformadas no cotidiano dos objetos/sujeitos da ação. Palavras-chave: Antropologia da Técnica, Tradição de Conhecimento, Cambindas. Introdução A cidade está em festa/As Cambindas vão chegar/Toda alegre e satisfeita/Para se apresentar/As Cambindas aonde passa/Todos dizem presta atenção/Os caboclos Levinos/Todos eles têm ação. (Loa das Cambindas Novas de Taperoá-PB). When different recipients hold different keys, they will learn different things from the event, and a schema which represents the process as one of expressing and transmitting bits of knowledge is inadequate. (BARTH, 1987, p.78) 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Da sapata e do pisar o chão: reflexões sobre a constituição do Mestre nas

Cambindas1

Érika Catarina de Melo Alves

Mestranda PPGA-UFPB

Resumo

O presente trabalho busca analisar as relações sociais estabelecidas por meio de uma

dança secular chamada de Cambinda, praticada no interior da Paraíba. Ao mesmo

tempo em que objetiva traçar um paralelo entre o conhecimento e a prática da dança

com as outras técnicas desenvolvidas por esses atores sociais. Para tal, as atividades

articuladas pela família Levino, detentora deste saber, serão apresentadas a partir de

uma perspectiva processual que coloque em relevo a relação estabelecida entre aqueles

sujeitos – dançantes e não-dançantes – e suas habilidades técnicas para dentro e para

fora do cortejo. Neste sentido, o papel de Mestre Cambinda será apresentado como foco

central na articulação de uma tradição de conhecimento que está intrinsecamente

interligada a um arranjo de elementos que por sua vez agrupam e agregam

conhecimentos e redes de sociabilidades que viabilizam trocas simbólicas e materiais

naquele ambiente. Se por um lado o Mestre do cortejo articula certas práticas atribuídas

a seu papel, por outro o seu reconhecimento como Mestre de obra têm lhe garantido

prestígio naquele contexto em questão. Os processos de aprendizagem e de transmissão

de certos moldes operativos em cada ofício – sejam no cortejo das Cambindas ou na

construção de uma casa – seguem lógicas de usos conformadas no cotidiano dos

objetos/sujeitos da ação.

Palavras-chave: Antropologia da Técnica, Tradição de Conhecimento, Cambindas.

Introdução

A cidade está em festa/As Cambindas vão chegar/Toda alegre e

satisfeita/Para se apresentar/As Cambindas aonde passa/Todos dizem

presta atenção/Os caboclos Levinos/Todos eles têm ação. (Loa das

Cambindas Novas de Taperoá-PB).

When different recipients hold different keys, they will learn different

things from the event, and a schema which represents the process as

one of expressing and transmitting bits of knowledge is inadequate.

(BARTH, 1987, p.78)

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

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Neste artigo pretendem-se trabalhar com conceitos/categorias que envolvam as

diversas dimensões da detenção de uma dança secular chamada de Cambinda, articulada

por uma parentela negra, conhecida como “os Levinos”. Neste sentido, cabe anotar que

o termo nativo dado a manutenção deste saber considerado como uma “tradição” ganha

variados significados para os que vivem naquele universo. Aqui, esta será refletida a

partir de uma perspectiva processual, pois ao utilizar as condições da criatividade dos

que articulam este conhecimento, assim como os moldes e discursos que ali fazem

sentido, proponho refletir tal contexto em sintonia com algumas contribuições bastante

pertinentes no que se configura na antropologia do conhecimento e da técnica.

Ao pesquisar o cotidiano dos sujeitos e as distintas maneiras pelas quais estes

geram representações e subjetividades sobre o que entendem sobre a dança e a tradição,

percebi que para entender as Cambindas dentro destas relações sociais e suas

intersecções, nos distintos contextos e interesses em nomear e consagrar os diferentes

grupos sociais ali constituídos são, sobretudo constructos sociais que articulam redes de

conhecimento e reconhecimento social, apresentados e reapresentados nos espaços

revestidos pela organização familiar e representação política. O esforço aqui

empreendido na análise e reflexão sobre os modos de se ensinar, articular, propagar e

performatizar a dança Cambinda, deve ser compreendido através dos mecanismos dos

fluxos culturais2 daquele universo em questão.

Deste modo, operacionalizar os conceitos e as abordagens de uma antropologia do

conhecimento tem sido o caminho mais propositivo para entender e apreender as

relações e as interações dos atores da ação. No sentido de que falo de sujeitos que

vivem, avaliam, aprendem e ensinam um arranjo de conhecimentos que realizar-se

através de uma performance diante uma audiência (BRUNER, 1996). São espaços de

lutas e de criatividade, levando em conta que a Cambinda por vezes dança para

visitantes que em sua grande maioria pretendem vê uma encenação do passado no

presente. Porém, não estou falando sobre um tipo de contraparte da cultura, como um

simulacro do que já fora vivo, isto fica evidente quando os sujeitos pesquisados em seus

discursos distinguem-se de outros grupos da cidade como as companhias de dança

folclóricas, consideradas pelos Cambindas como expressões para-folclóricas, que não

2 Tais questões foram formuladas levando em consideração as fronteiras culturais em diversos grupos e

suas especificidades técnicas, mas também pode ser utilizada em outras circunstâncias analíticas

abordadas para além de uma visão unitária e homogênea como nos trabalhos de Theodore Schwartz

(1978), Ulf Hannerz (1992) e Fredririk Barth (2000c, 2000d).

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possuem uma tradição, mas imitam os seus passos e de outras expressões artísticas

populares. Esta noção de volta ao passado é resquício de uma concepção de que a

tradição é algo intrinsecamente interligado com a cultura popular, principalmente para o

olhar erudito, que a enxergava como algo a ser recuperado e salvo de uma eminente

extinção (REVEL, 1989).

Deste modo, se torna necessário que se explore a extensão e a natureza da

coerência lógica da cultura, e não apenas descrevê-la. A cultura não seria uma

unificação de símbolos e significados, pois as pessoas e os grupos agem e reagem de

acordo com sua concepção de mundo, os constituindo e os construindo também em

representações coletivas. O mundo social é dotado de ideias e concepções nem um

pouco estáticas, tais paradigmas e concepções sobre muitas categorias analíticas de uso

antropológico devem ser percebidos em movimentos.

A tradição de conhecimento pela família Levino transmitida, pelo Mestre mantida,

e pela dança propagada, apontam que as relações criativas desses conjuntos de situações

e contextos locais são ampliadas se levarmos em consideração que as redes de contatos

articulados por estes sujeitos denotam outras dimensões destas relações sociais. A

dimensão que aqui será apresentada será do papel do Mestre das Cambindas para além

do cortejo, mais precisamente na sua posição de Mestre na cidade de Taperoá3. Assim,

abrir-se um leque de reflexões que concatenadas com a bibliografia sobre uma

antropologia da técnica pode elucidar o quanto de complexo e diversificado é à

disposição dos sinais diacríticos naquela realidade. Toda essa disposição processual,

que envolve os fluxos culturais aponta para uma tradição de conhecimento, a partir da

observação dos eventos – festas, apresentações públicas, ensaios – interpretados pelos

sujeitos, desencadeando, sobretudo, em processos de transmissão de conhecimentos e de

legitimação daquela visão de mundo a que a tradição está associada.

Sobre O Caráter Distributivo Do Saber Fazer

3 O município hoje conhecido como Taperoá, encontra-se encravado na mesorregião da Borborema e

microrregião do Cariri Ocidental paraibano. Seus limites territoriais fazem fronteiras ao norte com os

municípios de Areia de Baraúnas (68 km), Salgadinho (30 km), e Assunção (23 km); ao leste com Santo

André (25 km) e Parari (36 km); ao sul com Parari (36 km), São José dos Cordeiros (24 km) e Livramento

(30 km); e ao oeste com Desterro (33 km) e Cacimbas (25 km). Distante da capital João Pessoa a 243 km,

com uma população estimada em 14.938 habitantes – segundo o IBGE (2010) – e com uma área

territorial total de 640 km², acima do nível do mar com 533 metros de altitude, Taperoá localiza-se no

perímetro da seca, sendo suscetível ao clima árido com longas estiagens de chuvas.

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A exploração das várias dimensões e efeitos da escala cultural nas sociedades

humanas tem sido tema de reflexão para muitos autores. Dentre estes destaco o

sociólogo francês Émile Durkheim (1979) e Theodore Schwartz (1978) como pontos de

partida para entendermos os jogos de escala presentes no campo de pesquisa em

questão. Se um aponta para a dimensão coercitiva dos elementos culturais da

coletividade sobre o indivíduo, o outro aponta para um tipo de modelo de uma cultura

distributiva muito mais complexa.

Ao elaborar abordagens sobre o que seria a solidariedade social dividindo-as em

solidariedade mecânica e orgânica, Durkheim (1979) anota que uma precede a outra. O

que quero anotar aqui é que diante desta perspectiva não se pode explicar a

diferenciação social a partir dos indivíduos, pois a consciência de individualidade não

pode existir antes da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho social. Sendo a

solidariedade mecânica considerada a menos complexa, adotada também como uma

característica inerente das sociedades ditas primitivas ou pré-capitalistas onde os

indivíduos se identificam através da família, da religião, da tradição, e dos costumes,

por outro lado a solidariedade orgânica expressa nas sociedades capitalistas caracteriza-

se pela divisão e diferenciação de seus indivíduos. Os indivíduos não se assemelham,

são diferentes e necessários, partes de um todo a partir de suas especificidades na

divisão do trabalho, sua corporação profissional. Assim, para Durkheim (op. cit.) os

fenômenos individuais devem ser explicados a partir da coletividade, e não a

coletividade pelos fenômenos individuais.

Em contraponto, ou mesmo numa construção de um diálogo com as asserções do

Durkheim, Theodoro Schwartz (1978) tece uma abordagem sobre os constructos sociais

e de como a cultura é distribuída. Este denota quão complexa são as diversificações e as

distinções entre os indivíduos de uma dada coletividade. A distribuição de um

determinado conhecimento está intrinsecamente relacionada com a vida social dos

atores, estabelecendo uma constante variação nos fluxos pelos quais estes elementos

culturais perpassam as coletividades humanas, impregnando-se nos indivíduos de

maneiras variadas. Assim, a suposição de uma homogeneidade que dar coesão aos

indivíduos seja em sociedades de pequenas ou grandes escalas é por Schwartz (1978)

elaborada e questionada. O autor acredita que mesmo em comunidades mais mínimas

revelaria uma distinção comparável de variação de personalidade e de cultura. São esses

conjuntos de situações que se acumulam nas experiências, nas personalidades e nas

biografias dos atores.

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É a partir de uma conceptualização distributiva da cultura que recupero as

situações empíricas do esforço etnográfico com os brincantes das Cambindas. Autores

como o Fredrik Barth (1987; 2000) e o Ulf Hannerz (1992) se tornaram caros nesta

abordagem e acrescentaram, por sua vez, mais reflexões no que até agora fora

apresentado na ótica de Theodore Schwartz (1978). Os dados etnográficos e as

asserções de tais autores serão apresentados em dois movimentos: (1) a discursão sobre

as concepções de fenômenos sociais e culturais em Barth e Hannerz, e de como as

modalidades de gerenciamento do conhecimento tradicional é observado por estes

autores; (2) uma análise da constituição do Mestre nas Cambindas, e as formas de

transmissão de conhecimento desta tradição para dentro e para fora da família Levino.

Para Hannerz (1992), a complexidade dos processos culturais, analisados em

dinâmicas de sociedades de small-scale (pequena escala) deve ser contextualizada a

partir da organização social do conhecimento compartilhados por padrões. Esse arranjo

é analisado em quatro molduras geradoras de articulações de culturas: Form of life,

State, Market e Movements. As duas primeiras molduras, form of life e state conservam

e reproduzem o que foi recebido, enquanto que o market e os movements transformam e

contestam o processo cultural na contemporaneidade. Em tudo isso há maneiras de

pensar, trabalhar e experiências de modos de vida, pois são moldes atravessados pelas

instituições políticas e seus conflitos, e onde há disputas há jogos.

No entanto, o problema é personificar estes moldes na observação desses

processos. Para tanto, deve-se ter atenção aos significados e interesses que permeiam

esses conjuntos de situações, pois as experiências se acumulam e as biografias se

intercruzam, e são sobre elas especialmente que este artigo vai se debruçar mais adiante.

As dimensões de escala apreendidas em tendências de assimetria e simetria de

distribuição de cultura, apresentados por Hannerz (1992) aponta que as fronteiras de

conhecimento são compartidas para outros grupos em tipos de relações de detenção do

saber. No caso das relações assimétricas, o conhecimento que cada pessoa tem é

diferenciado, mas há uma baseline que serve como abertura para o contato. Já nos

relacionamentos simétricos a diferença de conhecimento entre os indivíduos se

apresenta em menor grau. Para o autor os tipos de relacionamentos em uma sociedade

de pequena escala são necessariamente simétricos ao longo de cada uma dessas

dimensões, ou que as relações nas sociedades complexas, dotadas de culturas mais

complexas, são todos assimétricos. A diferenciação destas detenções do saber

apresentadas pelo autor denotam posições de prestígios e trocas de materiais e

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elementos culturais, e construções de especialidades na retórica do próprio

conhecimento.

The division of knowledge as discussed earlier provides examples of

how baseline asymmetries are built into complex cultures. Again,

when the division of knowledge creates specialists, it also creates

laymen. (Most people are, of course, both; specialists usually in one

field, laymen in all others.) The cultural constitution of these

categories implies that the boundaries between their areas of cultural

competence, and thus the forms of complementarity between them,

are defined, more or less clearly, by convention or negotiation. Often

enough, the social organization of meaning in these contacts is itself

worked into routines. (HANNERZ, 1992, p. 57).

O fluxo não é livre para Hannerz, há processos de filtragem – acesso ao

segredo/sigilo que é retido por alguns, repassado para poucos e comunicado para muitos

– geralmente não verbalizados. Estas distribuições de atributos significativos, que por

sua vez se baseiam em princípios atributivos oriundos de unidades sociais apontam que

“Ethnicity thus channels social organization by having group members signal a general

kind of availability to one another and distance to outsiders, through their appearance

and conduct” (HANNERZ, 1992, p. 111). Em síntese, o autor elabora uma crítica aos

conceitos sobre a conceptualização de cultura. É uma tentativa de entendimento sobre a

cultura em determinados processos flexíveis em contraponto às barreiras culturais,

ilustrado com a imagem de um indivíduo frente aos mecanismos de modernização e

mundialização da cultura.

Em a “Análise da Cultura nas Sociedades Complexas”, Barth (2000a) descreve

um individuo diante de uma diversidade desconexa. Um cenário incoerente que deve ser

confrontado com as perspectivas e paradigmas da Antropologia, pois como profissionais

“somos treinados a suprimir os sinais de incoerência e de multiculturalismo

encontrados, tomando-os como aspectos não essenciais decorrentes da modernização,

apesar de sabermos que não há cultura que não seja um conglomerado resultante de

acréscimos diversificados” (op. cit. p.109). Se a realidade social é construída por meio

da cultura, se torna necessário apreender e compreender de onde surgem os padrões

culturais através do esforço empírico. Deste modo, os padrões culturais são resultados

de processos específicos e não se encontram em formas generalizadas. O grau de

padronização na esfera da cultura e sua respectiva diversidade vão para além das

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abordagens funcionais e estruturalistas. Tendo em vista, que as expressões simbólicas

nestas abordagens não conseguem mapear os contextos de pequenas escalas.

Portanto, a organização social e as relações cotidianas produzem diferenças entre

os grupos. Os eventos e os atos dos sujeitos são constantemente interpretados, nos

processos de transmissão de conhecimento e de sua contestação. Ao descrever a religião

bali-hinduísmo Barth (2000a) destaca como uma tradição “simbólica-expressiva”, é

descrita como uma filosofia que se manifesta através de mitologias índicas, rituais,

lendas, cultos, ensinamentos e preceitos morais apresentados muitas vezes em teatros de

sombra, nas músicas, na arte, na arquitetura e na dança. Esta religião aponta uma

cosmologia que possui um mundo repleto de seres e forças místicas, como deuses,

espíritos, e os ancestrais mortos, que por sua vez participam da vida de seus

descendentes ativamente. Nas relações entre os deuses e os homens, as almas se

fundem, transitam entre mundos nascendo e renascendo sucessivas vezes. A filosofia

expressada pelo bali-hinduísmo da negação dos bens materiais é contraposta aos

interesses que seus adeptos têm de adquirir objetos e bens alimentícios e vestuários

entre outros, para a manutenção de suas unidades familiares. Tal análise desta religião

enxergada a partir de seu aspecto simbólico e expressivo não explicaria as relações e os

diferentes papéis que os sujeitos articulam naquele contexto. As tradições do bali-

hinduísmo são marcadas por diferenciações de posições sociais, expressado na

diversidade das autoridades que existem naquela tradição de conhecimento, e os

conflitos internos entre tais indivíduos, conotam posições que muitas vezes se opõem na

interpretação ou mesmo na ação litúrgica e na organização social e sacerdotal ali

constituída.

Este leque de posições monta um arranjo de papéis sociais dotados de

diferenciados prestígios, habilidade e competências. Nem todas as autoridades ou

indivíduos da sociedade possuem tais atributos. Ao propor uma reconceptualização da

cultura, Barth (2000a) aponta que a produção da cultura é dinâmica, e que cada ator

possui uma “constelação particular de experiências” e que os atos e as relações entre as

pessoas “talvez não estejam em suas formas, mas sim em suas distribuições e padrões

de não-compartilhamento” (op. cit. p. 128). Os atores estão posicionados em seu mundo

social e na construção de visões de mundo a partir de suas tradições de conhecimento.

Ao criar retóricas cotidianas e representações diante deste quadro de referência, as

transações de saberes servem de base analítica da própria moldagem da cultura em

determinados contextos, e é sobre estes aspectos que seguirei os argumentos a seguir.

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Transmissão E Performance Nas Cambindas Novas De Taperoá-PB

Ao analisar duas tradições de conhecimento, uma no norte de Bali e outra no

interior da Nova Guiné, Barth (2000a, 2000b) demonstra através dos dados de campo as

transações e moldagens das transmissões de saberes por meio da figura do guru (Bali) e

do iniciador (Nova Guiné). Tal comparação servirá de base na abordagem que pretendo

realizar ao contrastar o Mestre das Cambindas com as perspectivas das práticas locais e

as relações entre os que aprendem a dançar por meio de seus ensinamentos. Para tanto, a

figura do guru e do iniciador nas etnografias de Barth (1987; 2000b) são aqui muito

importantes e cabe aqui decorrê-las.

O guru Ali Akbar é descrito como um mestre mulçumano, que tem dentre seus

atos religiosos os estudos e as viagens. Todo seu conhecimento só tem reconhecimento

e mérito quando este ensina a alguém. Suas atividades são uma espécie de estoque

cultural, a cada passo que seus ensinamentos e modos de educação são frequentemente

obtidos em outros centros religiosos, fazendo com que sua atuação se estenda

largamente pela região. Há por parte deste, uma ativa reprodução, detenção e

propagação de suas atividades culturais, organizadas sistematicamente na manutenção

do seu status de educador.

Na Nova Guiné tradicional, o iniciador opera através da manutenção do segredo.

Por meio da manipulação de objetos concretos ele constrói uma tradição de

conhecimento bastante complexa. O autor descreve esta performance no cotidiano e na

articulação que este realiza com os símbolos sagrados, em atividades que envolvem

cultos, crenças, rituais místicos da fertilidade com bênçãos dos ancestrais. Os

conhecimentos do iniciador não são ensinados, são empregados e articulados quando

este ritualiza performances públicas na iniciação dos noviços.

São papéis sociais construídos culturalmente a partir de conjuntos de

premissas e conceitos coexistentes. O guru alcança sua realização

como tal ao reproduzir o conhecimento, enquanto o iniciador, ao

protegê-lo. As injunções dos seus respectivos papéis implicam

demandas completamente distintas quanto à forma de lidar com o

conhecimento. O guru deve oferecê-lo continuamente: deve explicar,

instruir, saber e exemplificar; com isso, contribui para incutir nas

mentes de seus pupilos e de seu público elementos de uma tradição

bastante prolífica. Já o iniciador guarda tesouros secretos até o dia de

clímax em que deve criar uma performance, um drama que ocasiona a

transformação dos noviços. (BARTH, 2000b, p. 145-146).

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A diferença e a semelhança estão na maneira pela qual estes dois atores

administram seus estoques culturais na interação social. O conhecimento se torna um

valor que é articulado, no caso do guro na obtenção de mais informações, por outro lado

o sacerdote do culto dos mistérios da Nova Guiné o conhecimento está na preservação

das verdades essenciais da iniciação.

Em Cosmologies in the Making: a generative approach to cultural variation in

inner New Guinea (1987), Fredrik Barth analisa as variedades das expressões

cosmológicas de uma determinada população. Os processos de reprodução naquela

tradição de conhecimento são elementos explicativos do conteúdo e do padrão de

distribuição da cultura. Pois, o iniciador é um agente articulador de processos criativos

na sua performance. Conquanto, em numa tradição que se preserva segredos, as

cognições e as emoções de cada rito são componentes significativos na reflexão da

constituição do universo local, dos grupos, os status e as relações ali presentes. Para

Barth (1987), os Baktaman e os outros ritos Ok são formas e modos de lutas com o

entendimento com o cosmo, e não se restringe apenas a meras representações da

sociedade, mas devem ser analisados por meio das tradições de conhecimento sobre o

qual estes se sustentam. Há uma gama de papéis e premissas na enunciação destes. Os

atos do iniciador tem efeitos cumulativos de performance, baseados na transmissão das

tradições. Mesmo quando este se resguarda em longos períodos, preparando e

guardando seus conhecimentos na preparação dos iniciados, a apresentação pública é o

momento crucial na demonstração de seus saberes, que por sua vez são percebidos pelo

público no seu desempenho performático.

Estamos falando de tipos de transação de conhecimento onde a “primeira seria

caracterizada por uma transação de conhecimentos de cima para baixo, entre mestres e

discípulos, com os saberes sendo verbalizados e eventualmente escritos, e os conteúdos

ricos em massa e podendo ser divulgados com facilidade”, enquanto que a segunda seria

articulada “para cima, com os deuses, e para baixo, com os neófitos, manifestando-se

apenas por performances, baseadas em danças e uso de imagens e objetos com forte

poder simbólico” (MURA;BARBOSA, 2011, p.24). Não muito longe desta perspectiva,

realizo um paralelo com a performance das Cambindas. Pois, é no manejo dos corpos e

na desenvoltura que os dançantes realizam perante o público e nos ensaios internos que

o cortejo é formado, ensinado e difundido. Mas, todo esse cenário só é montado a partir

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dos conhecimentos transmitidos pelo Mestre Cambinda. Para tanto, cabe aqui

compreender o contexto no qual os interlocutores da pesquisa estão envolvidos e as

posições destes atores em seus lugares de enunciação e evocação de uma origem em

comum.

Segundo a família Levino, a Cambinda chegou a Taperoá no final do século XIX,

por meio de um andarilho descendente de escravos por nome de João Melquíades. Este

conheceu um outro negro, o conhecido João Levino e lhe ensinou esta dança que

provinha da terra de seus ancestrais na África. Desde então, os descendente de João

Levino, guardam o que eles chamam de “tradição”, sobre a recomendação de quem lhe

ensinou a dança, que esta não podia ser “passada” para outra família, devia permanecer

com os Levinos. Na sua quarta geração, tendo como Mestre o bisneto de João Levino,

Ednaldo Levino, conhecido localmente como Nêgo Nal, o cortejo vem por ele sendo

articulado.

As Cambindas da família Levino é formada por Rei, Rainha, Vassalos, Dama do

passo, Dama da Boneca, Dona Leopoldina, duas Porta-Estandarte, Mestre,

Contramestre e Cambindas. Segundo Nal, o saber da dança, ou a tradição da dança, é

passada de geração em geração, desde seu bisavô. Mas, não é todo membro da família

que pode gerir o cortejo. Pois, é dado esse papel a todo homem primogênito. Não à toa

que seu pai e seu avô eram filhos primogênitos, assim como ele.

Figura 1: Cortejo das Cambindas Novas de Taperoá-PB

Contudo, ser mestre das Cambindas não se dar apenas neste fato, mas este é

gerado na medida em que apreender as músicas (loas), os passos (coreografias), e a

história da dança. Esta última aprende-se desde cedo, com o pai falando na sala de casa

como “eles” receberam a “tradição”. As loas são ensinadas mais adiante, quando a

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criança é capaz de repetir as estrofes e os refrãos. A dança pode ser ensaiada, levando o

garoto ao final do cordão e vendo o desenvolvimento de sua performance. E este só

segura o maracá quando é considerado apto para a apresentação pública. O Mestre antes

de ser Mestre é Cambinda. Daí segue na posição de baliza e depois de contramestre

auxiliando neste contexto o seu progenitor até que este “não possa mais levar” o cortejo.

A condição de nascimento é a todo instante contestada, pois para se tornar mestre diante

dos membros da própria família, o que herdou a posição deve provar ser habilidoso na

maneira pela qual envolve todos os dançantes e os ensina a dançar.

Quando iniciei o meu trabalho de campo com as Cambindas, o grupo e

consequentemente aquela família vivenciava o luto causado pelo falecimento do Mestre

Pedro Delmiro4, pai de Nal. Motivo pelo qual, o cortejo se ausentou de algumas

festividades na cidade por um período. Atentei que por diversas vezes mencionei Nal

como mestre, alguns membros da família me corrigiram dizendo que ele ainda estaria se

tornando Mestre. Considero que mesmo a morte de seu pai e sua recolocação naquele

determinado papel, é constantemente avaliada seguindo o critério de que é preciso saber

ensinar a dança a alguém. Foi nos momentos dos ensaios que pude observar como era

ensinado aos novos dançarinos os arranjos daquela performance. E não só se transmite

este saber a parentes, também se ensina aos amigos, vizinhos, e afilhados. Tendo em

vista que as interações entre os que praticam a Cambinda em Taperoá, é envolvida pelas

relações de afinidades, de parentesco, e políticos.

Ao contrastar ao que fora percebido no trabalho de campo, anoto que os

status/posições inseridos dentro das relações do grupo quando o Mestre passa e repassa

o que sabe, a menção de Barth (2000a) sobre como o Guru Ali Akbar ensina a alguém.

Tal contexto de análise pode servir de paralelo entre esses dois papéis que articulam

conjuntos de conhecimentos em uma determinada localidade. No entanto, é na

apresentação pública e performática que o reconhecimento do grupo é amplamente

propagado. Contudo, a posição de Mestre do cortejo das Cambindas Novas não está no

meio caminho entre o guru e o iniciador das experiências etnográficas de Barth (1987,

2000) no sudeste asiático e na melanésia. Como polos distintos e contrastivos de

propagação e difusão de certos tipos de conhecimento carregados de códigos

informativos, a posição que o papel de Mestre Cambinda oferece nesta análise é de que

é na performance, e menos no conteúdo que este é reconhecido e legitimado.

4 Pedro Levino ficou conhecido como Pedro Delmiro, pois Delmiro era nome do seu pai.

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A observação participante realizada no momento dos ensaios do grupo para as

apresentações públicas têm oferecido elementos para embasar este tipo de asserção. A

dança é moldada pelo Mestre, é composta de um mote de organização dividida em

quatro cordões5, direcionados para ao contramestre

6, este têm a competência de marcar

os passos com o apito, e auxiliar o Mestre em toda a apresentação e principalmente na

preparação para exibição pública.

Croqui 1: Cortejo das Cambindas Novas

Nas Cambindas o próprio cordão é geracionalmente organizado. Nas

apresentações e nos ensaios, notei que a posição de baliza – que é o Cambinda que guia

os passos do cordão – é pelos mais velhos dançarinos ocupados. Os mais jovens, ou

mesmo os que estão iniciando no cortejo, seguem no final do cordão.

5 Dois encarnados e dois azuis.

6 Atualmente ocupado pelo filho de Ednaldo Levino.

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Durante os ensaios os dançarinos são observados por não-dançarinos, não há

reclusão por parte destes, embora há relatos que o grupo já tenha escondido seus passos

em anos atrás da expiação da plateia. O que há nesses momentos são contestações que

consagram a apresentação do grupo para além daquele espaço, assim como há na

performance do iniciador (BARTH 1987; 2000b). Porém, não há uma constituição de

uma atmosfera de segredo ou sigilo, na apresentação das Cambindas Novas, mas há sim

uma espécie de ideia de eficácia performática do saber dançar e do saber ensinar.

Deste modo, a performance tem um caráter dinâmico que se estende daqueles que

dançam, mas é também por meio deste que se é sabido o quanto o Mestre é capaz e

habilidoso de ensinar o que lhe foi herdado. Neste sentido, a análise processual sobre a

transmissão de uma dança, através de seus laços de afinidades, de parentesco e políticos

circunscrevem certos aspectos que as visões totalizantes sobre folguedos populares não

conseguem descrever sem demonstrar certo tipo de fragilidade sobre as conjunturas

pelas quais os indivíduos estão envolvidos. Sendo a dança Cambinda praticada em

Taperoá e articulada por uma família há muitos anos, cabe anotar que tais elementos são

intersticiais nos moldes e maneiras de se fazer e gerar contrastes e aproximações entre

os grupos familiares ali presentes e os jogos de poder e prestígio por eles articulados.

Práticas E Lógicas De Uso Dos Recursos Materiais

A literatura sobre os fenômenos técnicos tende se sustentar na capacidade humana

de produzir materiais e modos de interação com o ambiente a sua volta. Por vezes este

tipo de abordagem centra-se no processo produtivo e muito menos nas maneiras e

lógicas de uso agregados aos conjuntos de conhecimentos. O ato de produção é

analisado a partir de sua solidificação em objetos e utensílios, considerados apenas

como resultados das construções proporcionadas pela ação humana sobre a matéria.

Demonstrando assim, a intervenção do Homem sobre a Natureza7, moldando-a e a

aperfeiçoando-a, lhe dando sentido e ordem. Parte destas concepções advém das

tentativas do pensamento cientifico em demarcar diferenças na relação entre o homem e

a matéria, entre a Cultura e a Natureza. Esta situação relacional que coloca em polos

distintos e em contraste o mundo social/humano com o mundo natural/animal acentua

uma dicotomia que pouco tem a contribuir na análise dos processos produtivos

7 Para este debate os trabalhos de Ingold (1995) sobre o pensamento ocidental em separar em polos de

oposição o Homem e a Natureza, pode elucidar parte das questões relativas ao universo da pesquisa.

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aglomerados em saberes expressos no universo do Mestre das Cambindas em Taperoá-

PB.

O conjunto de noções descritas pelo antropólogo francês André Leroi-Gourhan

(1984, 1987) considerado como um clássico nos estudos sobre os fenômenos técnicos e

da tecnologia com destaque para as categorias analíticas como tendência técnica e fato

técnico, tem me auxiliado no esforço de pesquisa com os praticantes das Cambindas. O

autor compreende tendência como todas as extensões e dimensões possíveis e

previsíveis do aperfeiçoamento das técnicas de um determinado grupo a partir de seu

contato e troca com outros grupos. A relação entre as tendências com o meio, – fato

técnico – resultado da “experiência em um determinado lugar, caracterizado por certa

materialidade, unida à capacidade de invenção e/ou à obtenção de empréstimos de

princípios técnicos, levaria justamente a se poder realizar mudanças no próprio nível

técnico, bem como configurar um perfil técnico específico” (MURA, p.100). As

circunstâncias pelas quais tais saberes e informações são recebidas/captadas no

ambiente técnico fariam com que os conjuntos técnicos fossem pelos grupos articulados

e agrupados com reflexo nas ações sobre a matéria.

Assim, não se pode deixar de lado certos processos produtivos conectados aos

contextos culturais. E quando coloco aqui, a análise sobre o contexto é para anotar as

dimensões históricas numa visão processual. Cabe também dialogar com o espaço físico

pelo qual os dados etnográficos estão situados.

O processo de colonização do espaço geográfico a qual a cidade de Taperoá está

localizada data do final do século XVII e início do século XVIII, sendo fruto de umas

das duas estratégias de ocupação e dominação territorial do Estado da Paraíba

(CAVALCANTE NETO, 2013). A ocupação daquele espaço territorial inicialmente se

deu por meio de um investimento e estratégia econômica no mercado de couro bovino e

no abastecimento daquela carne para a população que ali recebia sesmarias ou/e se

deslocavam para outras localidades a fim de estabelecer relações comercias. Em fins do

século XIX e boa parte do século seguinte, as lavouras de algodão ganharam o destaque

e o foco da economia local e regional. O algodão rendeu a cidade de Taperoá sua

emancipação política em 1886 e lhe garantiu intervenções urbanas como nas

construções dos armazéns e moendas naquela localidade. O desenvolvimento do núcleo

urbano trouxe, ou mesmo foi rota de passagem para alguns indivíduos que acabaram

transacionando alguns tipos de conhecimentos específicos. A história contada e

recontada pela família Levino sobre um andarilho, por vezes lembrado como um negro

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funileiro descendente de escravos que esteve em Taperoá para a construção de uma obra

na cidade e que acabou “passando”/“ensinado” ao um colega de trabalho também negro,

uma dança que corteja seus ascendentes pode apontar um cenário muito complexo

centrado nas competências individuais.

O que quero mostrar aqui é que o domínio de certos conhecimentos se entrelaça

no universo Cambinda, com ênfase na figura do Mestre. Entendendo, que os elementos

culturais em fluxo, são permeados por valores e ideias, que são ordenados e organizados

por pessoas que são dotadas de saberes específicos. Estes atores movimentam-se

partilhando seus conteúdos culturais através de habilidades e meios que permitem

moldar esquemas de ordenamento das tradições de conhecimentos que possuem

(BARTH, 1987; 2000a; 2000b).

Figura 2: Fotografia à esquerda Mestre Pedro Levino (Pedro Delmiro). À direita Mestre Ednaldo Levino

(Nal)

A formação do Mestre não pode ser algo do tipo que só diz respeito somente a seu

aprendizado, mas também as próprias relações sociais que sua família estabeleceu ao

longo dos anos. Como as alianças políticas e de afinidades para dentro e para fora da

cidade de Taperoá. Outro fator importante de observação é que o próprio ofício de

pedreiro é uma habilidade técnica ensinada internamente naquela organização

doméstica. E que muitos dos seus membros transitaram e ainda transitam em grandes

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centros urbanos do país como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro apreendendo e

aperfeiçoando tais técnicas.

Exemplo claro deste tipo de transação de conhecimento é do antigo Mestre Pedro

Delmiro. Este foi um dentre tantos candangos na construção do Distrito Federal na

década de 1950. De lá, ele trouxe uma série de aprendizados e estratégias de moldar o

cimento nas fachadas das casas mais “ilustres” da cidade. As viagens de Ednaldo

Levino para a cidade do Rio de Janeiro, por sua vez lhe garantiu uma habilidade de

realizar “sapatas”, base pela qual as casas se sustentam, com maior profundidade e

solidez para suportar uma “laje”.

Foto 3: Na fotografia da esquerda é a “sapata” de uma casa em construção no loteamento privado Novo

Horizonte na cidade de Taperoá. É possível notar que tal sapata tem suporte de ferro para “bater laje” e

formar um primeiro piso.

Seja em atividades como Mestre das Cambindas seja como Mestre-de-obras, Nal é

percebido e também reconhece indivíduos que possuem e transmitem tradições de

conhecimentos. Ou seja, o status de mestre também é confeccionado a partir do mútuo

reconhecimento entre esses sujeitos.

The distribution of the items of knowledge and ideas on the

interacting parties in a population is a major feature of the

organization of that body of knowledge and ideas; it is not only a

matter of social structure but simultaneously a matter of cultural

struc­ture. It is self-evident that a particular pattern of social

organization will pro­duce and reproduce a particular pattern of

distribution of knowledge and skills. Equally, a certain distribution of

these cultural elements between persons motivates their interactions

and exchanges, and thus animates a particular social organization and

infuses it with its constitutive qualities. Again and again in social

science, it has proved useful to distinguish these two aspects of

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system, so as to rejoin them in a dynamic model. (BARTH, 1987, p.

77).

A distribuição de conhecimento está intrinsecamente atrelada à vida social e seus

distintos arranjos, constituindo variação constante nos fluxos. São esses conjuntos de

situações que se acumulam nas experiências e biografias dos atores (HANNERZ, 1992).

Fica evidente que nem todos possuem o mesmo prestígio, e/ou competência para

sintetizar muitas vezes performaticamente uma expressão simbólica e profissional.

Ce sont en effet les rapports sociaux qui determinent très largement la

transmission des savoir-faire, et donc leur repartition entre les classes

d'individus. Ils font l'objet de procès d'appropriation social, et

inversement d'expropriation. Ces procès se manifestent sous des

formes diverses: luttes et conflits parfois violents, systèmes de

représentations et valeurs, règles institutionneles... On se trouve de ce

fait au coeur du problème de la division du travail et de son historie.

(CHAMOUX, p.73).

A tentativa aqui é justamente pontuar estes distintos mecanismos e níveis de saber

distribuídos pelo saber dançar Cambinda e de como tais habilidades estão concatenadas

com as atribuições e técnicas produtivas dos ofícios de pedreiros. Tais circunstâncias

estão em certa medida relacionadas à rede de sociabilidades a qual a família Levino

possui. As estratégias familiares com relação à gestão econômica, onde alguns

indivíduos se deslocam para trabalhar em regiões metropolitanas do país, lideram a

dança, fazem acordos chamados de “empeleitadas” para fazer uma “sapata”, “rebocar”

e/ou “bater laje” denotam a conformação de determinadas competências nas habilidades

técnicas.

A interação Mestre e aprendiz, não apenas se procede apenas na esfera da dança

Cambinda. Como Mestre-de-obra8, Nal ensina, avalia e legitima os “ajudantes de

pedreiros”. Em tudo isso, há um movimento de flexionar os instrumentos a sua volta, se

na Cambinda segurar o maracá e marcar o passo é constantemente por ele friccionado,

no campo de obras o manejo do martelo e bater o cimento passam por sua supervisão.

Pois, a transação de conhecimento está relacionada ao manejo e utilização dos recursos

matérias utilizada na construção das casas.

8 Por vezes, o termo utilizado é “encarregado” da obra, tal noção deriva do universo das firmas de

construção civil nas regiões do Sudeste do país onde os interlocutores da pesquisa realizaram atividades.

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A divisão das tarefas, deriva das competências dos sujeitos em filtrar tais saberes.

Os atores sociais estão posicionados, por meio de suas interações sociais. Seus atos são

interpretados a partir das experiências dos eventos conferidos e aferidos pelos sujeitos

da ação. As modalidades de organizar o conhecimento, dinamizar, transmitir, e valorizar

o conhecimento Cambinda pode ser comparado ao desempenho do iniciador do interior

da Nova Guiné. A organização do fluxo cultural é partilhada numa rede de significados,

pois as pessoas geram sentidos a partir de seus pontos de localização nestes conjuntos

de situações (BARTH, 1987, 2000c, 2000d).

Considerações Finais

Ao percorrer noções e categorias analíticas concatenadas aos dados e a

experiência etnográfica com o universo dos praticantes das Cambindas, foi possível

compreender as relações sociais ali apresentadas e a constante presença de uma história

contada e recontada por aqueles sujeitos. Uma dança pode ser apresentada e vivida

como uma dentre muitas situações possíveis revestidas pelas interações sociais

(MITCHELL, 2010). O que tem denotado um quadro complexo das transações de

saberes e distribuição dos elementos culturais organizados por uma família.

Não há, portanto uma uniformidade de pensamento, mas uma diversidade de

visões de mundo dirigidas aos contextos que envolvem tais sujeitos. Contudo,

dependendo das características dos conhecimentos ali expressos, quem possui tal

legitimidade de enunciar, evocar e agir de acordo com a tradição de conhecimento,

consequentemente é dotado de competência em transitar em diversos espaços e

relacionar variadas escalas de interação e modos de ser e fazer parte de redes de

afinidades e habilidades técnicas. Mais uma vez a noção de que os atores estão

posicionados, é uma referência na própria construção do objeto da pesquisa, mas,

sobretudo de como tais posições são notadas, constituídas, contestadas e por que não,

transformadas, visibilizadas, ou mesmo despercebidas. São elementos contrastivos,

distribuídos e acionados quando necessários.

Bibliografia

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