da soledad catellana a saudade portuguesa

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Da Soledad Catellana a Saudade Portuguesa-

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  • DA SOLEDAD CASTELHANA SAUDADE PORTUGUESA

    Prof. Silveira Bueno Universidade de S. Paulo

    Em 1593, Don Juan de Silva y Meneses, com o orgulho prprio dos vencedores, negava aos portugueses a mais bela joia do seu vocabulrio a Saudade que em tudo achava, absolutamente, igual soledad castelhana: "Yo soy tan gro-sero que ninguna (diferencia) hallo (entre saudade y sole-dad) afuera de las letras con que se escriben, como entre la "enveja" y la "invidia". Ha nesta pequena e errada afirma-o do fidalgo espanhol um longo e muito interessante pro-blema de psicologia popular. Levam-nos s suas raizes os pri-meiros sculos do cristianismo, quando os padres aceleravam a transformao da expresso clssica de Roma pela adoo procuradamente preferida do latim popular. J na pena te-mvel e pugnacissima de Tertuliano, o clssico solitudinem fo-ra substituido pelo plebeu solitatem. Em seu livro Adversos Valentinianos empregara solitatem no significado de segrega-o, para expressar aquele estado em que se encontra algum sozinho, separado das multides.

    Na peninsula ibrica, a mesma palavra latina de Tertu-liano evolui normalmente em soledad com o mesmo signifi-cado de solitude, de ermo, de lugar vazio de rumores. Quan-do a sonora lingua galego-portugusa era o idioma do amor e da galantaria, fez de soledad suidade, conservando-lhe, a prin-cpio, o mesmo significado objetivo que j se encontrava em solitatem, em soledade significado que ainda vamos achar no Cancioneiro de Baena e at em um dos sonetos de Cames. Neste sonha o poeta com a amada morta e a v numa solido:

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    quanto mais corre para falar-lhe, tanto mais dele se afasta a querida ausente:

    "Quando de minhas mgoas a comprida Maginao os olhos me adormece, Em sonhos aquela alma me aparece Que para mim foi sonho nesta vida.

    L numa soidade, onde estendida A vista por o campo desfalece, Corro aps ela; e ela ento parece Que mais de mim se alonga, compelida.

    "Brado: "No fujas, sombra benina! Ela, os olhos em mim co' um brando pejo, Como quem diz que j no pode ser,

    Torna a fugir-me. Torno a bradar: Dina... E, antes que diga mene, acordo, e vejo Que nem um breve engano posso ter.

    (Lirica-son 118-Edi. Maria Rodrigues)

    Se at aqui houve, realmente, identidade semntica en-tre soledad e soidade, pouco a pouco se vai operando a diferen-ciao de significado que terminou por interpor entre ambos os vocbulos intransponvel abismo. Quando a alma perpe-tuamente enamorada dos portugueses comea a aperfeioar-se no trato urbano das cortes, nas viagens de ultramar, afi-nando os seus sentimentos pelas gentilezas de bem trovar, em todas as composies lricas, j principia a tocar-se a soi-dade desse halo inexplicvel de subjetivismo e a primitiva significao de soledad j se nimba dessa tristeza consolada de quem sente um bem perdido, mas, se compraz em assim sentir. E' Nunes Eannes Cerzeo quem sente soidades das ter-ras que vai deixar:

    "Pero das terras averei soidade Por quanto ben vi eu en elas j . . .

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    aparecendo aqui o tom subjetivo, espiritual por assim dizer: sente soidade das terras no porque fossem elas desertas ou abandonadas, mas sim pela felicidade que a gozou e vai per-der. . . por quanto ben vi eu en elas j! Dom Dinis, o mais al-to valor de inspirao trovadoresca, simboliza na mulher a soidade, como bom portugus perpetuamente apaixonado

    "Que soydade de mia senhor ey!" E j na pena de Pero Larouco a confisso muito moderna de que no morrer de saudades da amada se no puder v-la mais:

    "De vos, senhor, quer'eu dizer verdade: e nom j sobr'amor que vos ey, senhor, bem en a tropidade de quantas outras en o mundo sey, assy direy como de puridade nom vos vence oje senom filha d'un rey, nem vos amo, nem me perderey hu vos nom vir por vs de soydade".

    (Vatic. 214)

    Muito mais interessante que todos estes j citados, tipo do poe-ta brasileiro esse trovador medieval Johan Zorro que, imi-tando as apreenses da formosinha, f-la sentir soydades de um fato que ainda nem sequer acontecera:

    "Mete el-rey barcas no rio forte; quem amigo h, que Deus lh'o amostre; a la vay madre, e oje ey suydade!

    (Vatic. 758)

    Bem sabia a namorada moa portugusa que, quando elrei preparava as suas naus para as expedies, l se iam os jo-vens e talvez nunca mais voltassem. O seu amado ainda no fora nem sequer convocado, mas o corao presago j sentia a separao, a desolao deste adeus. J estamos bem longe daquele simples ermo, daquele simples lugar despovoado de gente, vazio de rumores de que falava a soledad castelhana e,

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    nos primeiros tempos, a soidade portugusa. O elemento sub-jetivo, a dor intima do corao que sofre por se ver szinho, j encheu completamente o vocbulo, arrancando-o da terra para faz-lo pairar nessa atmosfera que mais do cu, aque-la regio onde vivem os nossos sentimentos, onde flutuam as nossas mais queridas recordaes.

    Neste final da idade-mdia quando os descobrimentos pre-paravam os esplendores do Renascimento, esplendores que se compunham das amarguras dos que para sempre mergulha-vam no Mar-Oceano, Gil Vicente e S de Miranda, simboli-zando a unio que literariamente j havia entre o portugus e o castelhano e que dentro de alguns anos seria unio pol-tica entre Castela e Portugal, tomaram a palavra soledad e, momentaneamente, lhe emprestaram a alma da saudade por-tugusa. Em "Dom Duardos", quando os amantes se separam, aparece a recordao do bem perdido na soledad que no aban-dona o corao do heri:

    "Venios acostar, seora, Soledad tengo de ti, O tierras donde naci!

    Pues acurdesete, Amor, Que recuerde, mi seora, Que se acuerde Que no duerme mi dolor, Ni soledad sola un hora Se me pierde."

    O bardo do Neiva e outros colaboradores do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende assim empregaram soledad com a alma emprestada da saudade portugusa nesse periodo de unio literria, predecessora da unio politica e governamen-tal. Quando, porm, se voltou a formar a conscincia nacional e desde a lingua at o principe tudo devia ser positivamente portugus e no castelhano, at na forma fontica da velha soidade ou suidade se positivou esta diferenciao, surgindo em todo o seu esplendor o mais belo vocbulo do nosso idi-

  • - 119 Ol -m a a saudade! J agora no h mais aquela semelhana que entre soledad e soidade havia e muito menos entre o que aos nossos sentidos nos dizia soledad e o que significa sauda-de. Cavou-se entre ambos um intransponivel abismo. A sole-dad castelhana, to frequentemente substituida por solitud e soledumbre permaneceu objetiva, apegada terra, enquanto a saudade portugusa se alou s regies impalpaveis dos sen-timentos que no se explicam, vivamos embora no tumulto das grandes capitais onde o bulcio humano no nos impede de sentirmos saudade de um rosto amado, de uma poca des-feita, de uma perdida alegria e at, paradoxalmente, de uma dor longamente suportada quando se teve em mira um pouco de felicidade.

    Para Dom Francisco Manuel de Mello a saudade to es-piritual que basta para provar a nossa imortalidade: "he (a saudade) legitimo argumento da immortalidade de nosso es-pritu por aquella muda illao que sempre nos est fazendo interiormente de que, fora de ns ha outra cousa melhor que ns mesmos com que nos desejamos unir." Em portugus, quando queremos indicar um lugar solitrio, silencioso, empre-gamos a palavra soledade; nunca, para tais casos, usamos o vocbulo saudade- Esta, se aparece em topnimos, encerra sem-pre uma relao sentimental com algum fato triste: em Cam-pinas (S. Paulo) a avenida, que leva ao cemitrio, chamase "Avenida da Saudade". Em nossos jardins, reservamos a cor roxa para com ela revestir a melanclica flor da saudade. En-quanto comunissimo dar-se, em espanhol, o nome de So-ledad a pessoas: Maria de la Soledad, Juana de la Soledad, em portugus a ningum conhecemos que se chame Maria da Saudade, Joana da Saudade. Conhecemos, sim, uma aluna que se chamava Saudade de tal, mas este prenome lhe veio em memria daquela que, dando-lhe a vida, morreu instantes depois.

    Como poderia afirmar Don Juan de Silva y Meneses, em 1593, que nenhuma diferena encontrava entre a soledad cas-telhana e a saudade portugusa? O subjetivismo desta, que j era muito grande em terras de Portugal, tornou-se ainda maior

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    no Brasil crescendo a sua complexidade de sentimentos por-que ns, brasileiros, temos saudades no s dos bens que j se passaram, no s dos bens que ainda esto por passar, mas chegamos ao cmulo de sentir saudades at das saudades que j tivemos segundo aqueles versos de Castro Neri:

    "Feliz de ti que, junto dos bens terrenos, to s na terra viste carrascais e na taa do amor to s venenos,

    porque, experiente agora, quando cais, tens da esperana uma esperana menos e da saudade uma saudade mais!"