dado villa-lobos - memórias de um legionário

Upload: jonh-milton

Post on 14-Feb-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    1/120

    para Fernanda, Nicolau e Miranda

    copyright (c) by

    Eduardo Dutra Villa-Lobos, Felipe Abranches Demier e Romulo Costa Mattos , 2015

    direitos desta edio reservados

    MAUAD Editora Ltda.

    Rua Joaquim Silva, 98, 5 andar

    Lapa | Rio de Janeiro, RJ | CEP 20241-110

    tel. (21) 3479-7422 | fax (21) 3479-7400

    www.mauad.com.br

    capa e projeto grfico Fernanda Villa-Lobos

    fotos arquivo pessoal

    foto da quarta capa Maira Cassel

    editorao Raphael Botelho de Moura

    transcrio das entrevistas Maria Cristina Martins

    preparao de originais Leandro Salgueirinho

    reviso de lngua portuguesa Jos Augusto Carvalho coordenao editorial Maria Cristina D. Portela

    produo do e-book Schaffer Editorial

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    V759d

    Villa-Lobos, Dado, 1965-

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    2/120

    Dado Villa-Lobos: memrias de um legionrio / Dado Villa-Lobos, Felipe Abranches Demier, Romulo Costa Mattos . - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mauad X, 2015.256 p. ; 23 cm.

    ISBN 978.85.7478.685-8

    1. Villa-Lobos, Dado , 1965-. 2. Cantores - Brasil - Biografia. 3. Legio Urbana (Co njunto musical). 4. Rock - Brasil - Histria. 5. Msica e histria- B rasil.

    I. Demier, Felipe Abranches . II. Mattos, Romulo Costa . III. Ttulo.

    14-15807

    CDD: 927.845

    CDU: 929:821.134.3(81)

    sumrio

    apresentao Este o livro de nossos dias introduo Se fosse s sentir saudade I Lembranas e histrias II Ser que vamos conseguir vencer? III Mas agora chegou nossa vez IV Nas favelas, coberturas, quase todos os lugares V As antenas de TV tocam msica urbana VI Um retrato do pas VII E o resto imperfeito

    VIII O mundo anda to complicado IX Quando a esperana est dispersa X Os nossos dias sero para sempre

    meus agradecimentos, mais do que especiais, a Renato, Bonf, Hermano, Herbert, Bi, Joo, Z, Maurcio V., Fernanda, Jorge D., Mayrton e Rafa aos que me ajudaram a seguir em frente Fausto, Laufer, Nenung, Paula T., Toni P., Srgio, Victor, Tambellini, Z Henrique e Mini pelo incentivo de me fazer reviver e repassar esta histria adiante Felipe, Romulo e Elio

    apresentao

    ESTE O LIVRO DE NOSSOS DIAS

    Sempre me interessei por Histria e suas vrias narrativas acerca das transformaes humanas no tempo e no espao, porm jamais havia imaginado contar minhaprpria histria de vida - que se encontra, em grande parte, ligada da msica brasileira do perodo recente. No entanto, de um tempo para c, decidi narr-la, e essa deciso se deu no lugar onde se mais brasileiro: dentro das quatro linhas, no campo de futebol

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    3/120

    da pelada que eu jogo, s teras-feiras tarde, na rua ao lado do meu estdio. L encontrei Felipe Demier, jogador habilidoso, canhoto e polmico. Em uma jogadatruncada, dividimos uma bola que saiu pela linha lateral, e eu reivindiquei o arremesso a meu favor. Para a minha surpresa, Felipe imediatamente aceitou: "Dois, Que pas este, As quatro estaes... claro que a bola sua, no tenho como negar!", diss ele, declarando-se um grande admirador da minha banda. Voltamos a nos encontrar s teras, e, entre conversas sobre o Vasco, seu clube de corao, ele sugeriu que eu escrevesse minhas memrias. Por coincidncia,eu havia acabado de ler Life, a autobiografia do Keith Richards. Respondi-lhe que no teria tempo nem disposio para relembrar e redigir minha histria de quase50 anos de vida. "No sou escritor", disse-lhe eu. Historiador, militante trotskista e interessado na minha trajetria na Legio, Felipe insistiu na ideia. Sugeriuque fizssemos o livro a seis mos: eu, ele e o seu amigo Romulo Mattos, o Rominho,tambm historiador, professor da PUC-Rio, amante e profundo estudioso do rockmundial e da msica brasileira. Depois de um tempo, concordei, levando em conta ocomplicado momento pelo qual esto passando aqueles que verdadeiramente participaramda histria da Legio Urbana. Estabelecer a verdade sobre aquela parte das nossas vidas, sobre aqueles intensos dias, fundamental para mostrar quem fomos, o quesomos e, assim, nos ajudar a saber o que seremos. Passamos os meses finais de 2012 e o ano de 2013 registrando meus depoimentos, minhas lembranas e histrias em um gravador digital, ao longo de inmerassesses na casa do Felipe. Foram noites s vezes exaustivas e tambm divertidas, verda

    deiras sesses teraputicas de quase regresso, onde o passado nem to distantevem avassalador como antdoto ao efeito anestsico do tempo. Transcritas horas e horas de conversas, foram surgindo os captulos, revisados e reescritos por nstrs, e que contaram, ainda, com uma cuidadosa pesquisa histrica do Rominho nas fontes de imprensa e no acervo da banda, organizado pela Fernanda, minha mulher.Foi assim que surgiu esta histria que se apresenta adiante, a minha Histria. Dado Villa-Lobos, maro de 2015

    introduo

    SE FOSSE S SENTIR SAUDADE

    Onze de outubro de 1996, 2h15 da madrugada. Toca o telefone na minha cabeceira. Do outro lado da linha, o doutor Saul me dava a notcia que, infelizmente,eu j esperava: o Renato estava morto. Atordoado, desliguei o telefone, acordei Fernanda e liguei pro Rafael, empresrio da banda e grande amigo. Eu e ele chegamoss 5h na casa do Renato, na Rua Nascimento Silva, em Ipanema. L estava Seu Renato,quieto e resignado, talvez aliviado com o fim do sofrimento do filho. Abraamo-nos,e ele narrou rapidamente os ltimos momentos daquele drama. Logo apareceu um tio do Renato que, sereno e disposto a conversar, nos sugeriu tomar o caf da manhfora de casa. Na Chaika, tradicional confeitaria do bairro, a conversa com o tio do R

    enato, acompanhada por um po na chapa e um caf, ajudou a confortar a mim e ao Rafael.Ouvimos atentamente os seus relatos sobre a infncia do nosso amigo, na Ilha do Governador. Recordaes da Rua Mara, do Jardim Guanabara, do colgio Olavo Bilac,e da tia Edilamar e da tia Esperana. Lembro-me especialmente de uma histria que ele nos contou, que mostrava o quanto Renato, aos 10 anos, j se interessava pelouniverso do pop/rock. Certo dia, Renato lhe pedira insistentemente o primeiro disco do Elton John, de 1970. Sem conhecimento bsico do gnero, e incorrendo em umaconfuso fontica, seu tio voltou da loja com um LP do Tom Jones, mais famoso na poca, porm totalmente distante dos interesses musicais do sobrinho - que reagiu

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    4/120

    com um sonoro "nooooo!", e ficou inegavelmente frustrado com o mal-entendido. Essas lembranas leves e curiosas nos distraram naquele momento. De volta ao apartamento, encontramos Seu Renato ao telefone, j cercado por alguns familiares recm-chegados. Mari Stockler, diretora e amiga, me ligouquerendo notcias, e eu respondi secamente que o Renato tinha morrido. Aquela breve distrao do caf da manh deu lugar preocupao quanto s tarefas que tnhamospela frente: a insuportvel burocracia em torno da cremao e do contato com a imprensa, que j se aglomerava em frente ao prdio. O telefone no parava de tocarna minha casa, e a Fernanda despistava os jornalistas dizendo que no sabia de nada, e que eu tinha sado para jogar futebol. Publicamos uma nota de falecimento:"Renato Russo faleceu 1h15, do dia 11 de outubro de 1996, em decorrncia de problemas infecciosos pulmonares. Seu corpo ser cremado conforme o seu desejo, assimcomo, tambm a seu pedido, no haver cerimnia de velrio. A Legio Urbana, consternada, agradece desde j todas as manifestaes de carinho. Dado Villa-Lobos,Marcelo Bonf e Rafael Borges." Os amigos mais prximos foram chegando - Bonf, Ana Paula, Maurcio Branco, Lus Fernando Borges e Cntia, entre outros -, e, aospoucos, fomo-nos juntando na biblioteca do Renato. Ali ficamos consultando os seus livros e manuscritos, e tambm ouvindo alguns discos da sua vasta coleo. Umde ns encontrou uma pedra de maconha prensada na gaveta da escrivaninha, que devia estar l havia muito tempo, e fizemos bom uso dela. Por volta do meio-dia, comearam a aparecer os parentes do Renato vindosde Braslia e, inclusive, sua me, Dona Carminha. Com a chegada da funerria, seguimos para o crematrio do Caju, no final da tarde. No engarrafamento, pude notar que de

    ntro de alguns carros as pessoas manuseavam e escutavam o recm-lanado A tempestade.Assediado pela imprensa, o doutor Saul no parava de falar ao telefone dentro do nosso carro, o que foi me irritando profundamente. "Chega! Desliga essa porra!",esbravejei a certa altura. Chegando ao Caju, deparei com uma multido de fs. Uns choravam copiosamente, outros cantavam nossas msicas. Muitos faziam as duas coisas ao mesmo tempo.Alguns traziam flores e violes, e o clima era de forte comoo. L encontrei muitos amigos prximos, inclusive o Dinho, que chegara de So Paulo. Depois da cerimnia,eu e Fernanda fomos para nossa casa, acompanhados do Hermano Vianna e do prprio Dinho, entre outros. L assistimos ao Jornal Nacional, praticamente todo dedicadoao Renato. Anos depois, ouvi dizer que, antes de o programa ir ao ar, Lilian Witte Fibe perguntou ao William Bonner se a morte do Renato mereceria mesmo todo aq

    ueledestaque. Respondendo de forma afirmativa, Bonner ameaou cantar a letra inteira de "Faroeste caboclo", explicitando, de um modo inesperado, a importncia do Renato e da Legio para a cultura popular brasileira. Uma vez terminada aquela edio do Jornal Nacional, histrica para o rock brasileiro, eu, Fernanda, nossos filhos e alguns amigos pegamos a estrada, rumoa minha casa em Mangaratiba. Inconsolado, no parei de chorar durante o caminho. Terminava assim aquele que foi talvez o dia mais triste da minha vida. O Renatohavia partido, e a banda de rock mais popular do Pas automaticamente se desfazia. Como eu cheguei at a Legio Urbana, a sua histria e alguns de seus curiososcasos so o que pretendo narrar nas pginas seguintes.

    1965 com Tavo, minha me (Lucy) e Bebel, em Bruxelas, Blgica 1968 com meu pai, Jayme, em Skiathos, Grcia

    I

    LEMBRANAS E HISTRIAS

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    5/120

    O ano de 1965 foi especial para o rock. Com "Like a rolling stone", Bob Dylan contribuiu para a sofisticao potica desse estilo e desafiou as regras domercado ao gravar uma msica com seis minutos de durao. J os Rolling Stones entrarampara a linha de frente do rock com "Satisfaction", cano que aborda a alienaoconsumista e o tdio decorrente de uma carreira pontuada por excurses internacionais e plateias histricas. Tambm em 1965, os Beatles ajudaram a definir o contedovisionrio de tal ritmo com o disco Rubber soul. A popularidade inigualvel da banda foi confirmada no dia 15 de agosto, em um show realizado no Shea Stadium, deNova York, para 55.600 pessoas. O pblico recorde dessa noite consolidou o rock como uma marca fundamental da juventude. Orgulhosamente, posso dizer que vim ao mundo nesse ano em que o rock atingiu a maturidade artstica e, mais especificamente, no ms em que "Like a rollingstone" foi gravada e "Satisfaction" foi lanada. Nasci a 29 de junho de 1965, na cidade de Bruxelas, Blgica. O meu gosto pela msica, assim como pela cultura emgeral, deve-se muito aos meus pais, Jayme Villa-Lobos e Lucy Dutra. Formado em Direito, meu pai, aos vinte e poucos anos, completou o curso para diplomata do InstitutoRio Branco. Criado na Rua do Santana, no centro do Rio de Janeiro, ele sempre foi decidido, focado e, sobretudo, um amante das artes. Levou a srio os seus estudosde piano clssico com professores particulares, na dcada de 1950, antes de deixar o Pas por exigncia da carreira diplomtica. Nascida em Juiz de Fora (MG), minha me aprimorou os seus dotes artsticosna Escola de Belas Artes da ento Universidade do Rio de Janeiro (atual Universida

    deFederal do Rio de Janeiro, UFRJ). Ela participou de uma exposio coletiva ainda bem jovem, em 1955, no Salo Nacional de Belas Artes. A sua primeira exposio individual ocorreu em 1969, na Galeria Moretti, em Montevidu, Uruguai. Tambm cedo se casou com o meu pai e dessa unio nasceram, ainda no Brasil, os meus irmos Luiz Octvioe Isabel. Em 1963, o casal partiu com os filhos pequenos para Bruxelas, o primeiro posto diplomtico do meu pai. Ainda que eu no tenha recordaes do meu primeiroano de vida na capital belga, os relatos familiares so de que, todas as noites, o meu pai tocava no seu piano Steinway (sonho de consumo de todo pianista) um repertriode clssicos que inclua Chopin, Bach e Beethoven - prtica essa que ele mantm at hoje.Os meus pais contam ainda que a casa da famlia hospedou por um longo perodo

    dois jovens pianistas que se tornariam internacionalmente conhecidos: o brasileiro Nelson Freire e a argentina Martha Argerich, cuja pequena filha Lyda Chen (hojeviolinista) chegou a morar conosco. Ela completava o quarteto de crianas daquelaespcie de repblica sul-americana em Bruxelas. Por volta de 1966, o meu pai foi transferido para Belgrado, na antiga Iugoslvia do Marechal Tito, e o meu av materno, Luiz Dutra, juntou-se a ns. Tenholembranas esparsas dessa poca, como a presena do meu av, a temperatura baixa, a neve que caa e a cerejeira do jardim de minha casa. Quando eu ainda estava com3 anos de idade, meu pai foi transferido para Montevidu. A minha memria afetiva dessa cidade significativa. Nela aprendi a andar de bicicleta, o que fao athoje por questes de lazer e sade. Aos 4 anos de idade, conheci o Bi Ribeiro, futuro baixista d'Os Paralamas do Sucesso, que devia ter seus 8 anos. O seu pai, Jorg

    eCarlos Ribeiro, tambm era diplomata. Nossas famlias eram muito amigas, e as crianas brincavam juntas. Vivemos conjuntamente o clima de tenso decorrente do sequestro dos cnsules americano e brasileiro (Dan Mitrione e Aloysio Dias Gomide, respectivamente)pelos Tupamaros. Esses guerrilheiros lutavam contra o regime poltico uruguaio, ento apoiado pelo governo do Brasil, ditatorial, e dos Estados Unidos, que promovia golpes militares na Amrica Latina cinicamente em nome da democracia. Logo aps o incidente, abordado no filme de Costa Gavras intitulado Estado de stio (1972),

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    6/120

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    7/120

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    8/120

    monsieur, essas coisas. Tivera apenas uma semana para estudar o idioma antes damudana. Fui parar em um colgio pblico de excelncia, o Liceu Janson de Sailly,no bairro onde eu morava, o 16me, e no pagava um centavo por isso. Havia estudadoali o homem que casado com a minha me h 30 anos, o embaixador Affonso Celsode Ouro Preto, que o pai do Dinho, do Capital Inicial. Tambm estudara naquela escola um sujeito muito ligado famlia, o Wladimir Murtinho, outra grande figurahumana, marido da Tuni, da famlia lvares Penteado, uma das mais tradicionais de SoPaulo. Pensei: "Ok, boas referncias." Na escola pblica francesa no h privilgios;se repetir, roda! H sempre outro para entrar no seu lugar. Ento, havia aquele lance: "Putz, no posso ser reprovado." Mas isso s veio a acontecer no meu ltimoano na Frana, o que no fez a menor diferena, pois eu j estava de malas prontas parao Brasil. O meu primeiro trimestre na Frana foi dificlimo. Eu tinha sado de Braslia,uma cidade nova, em construo, e chegado a Paris, a maior referncia dacultura ocidental. Outro problema dizia respeito a uma espcie de sndrome de filhode diplomata, que faz amizades em um pas e depois de quatro anos obrigadoa abandon-las. Tem de recomear, sabendo que tudo vai acabar novamente. Na escola,as coisas no foram mais fceis. O ensino era integral, e a primeira aula queeu tive foi de Francs. A professora, Madame Trottereau, pediu aos alunos uma redao. Eu me virei para ela e consegui dizer que no dominava o idioma. Ela entofalou: "Escreva o que voc quiser, do jeito que voc quiser." O que eu escrevi ali?Uma tentativa de descrio de Braslia, em uma mistura improvvel de portuguse francs... Eu adorava estudar Histria, que era valorizada nas escolas e na sociedad

    e francesa em geral, e tambm estudava Latim, que acompanhava o curso de Francs.Com o tempo, fui perdendo a gramtica portuguesa, que era cada vez mais englobadapela francesa. Eu interagia com os meus colegas de escola por meio da prtica dofutebol e do jeu de paume. Neste esporte, um participante joga uma bola de tnis contra a parede com a palma da mo, para o outro jogador rebater. H na parede umrodap e o desenho de um quadrado, o que torna o jogo mais complexo. Morava em um bairro da alta burguesia, mas ali tambm viviam pessoas commenos grana, principalmente imigrantes portugueses e espanhis, que trabalhavamcomo porteiros em Paris, e seus filhos. Aproveitei bastante a capital francesa,mas sempre com saudades do Brasil; pensava muito no que tinha vivido em Brasliaentre 1971 e 1975. Apesar da histrica rivalidade entre a Frana e a Inglaterra, emtorno da hegemonia cultural da Europa, nas festas infantis tocava-se bastantemsica cantada em ingls. Para ser mais exato, rock'n'roll americano dos anos 1950:

    Chuck Berry ("Johnny be good"), Bill Halley & His Comets ("Rock around the clock"),Jerry Lee Lewis ("Great balls of fire"), etc. Achava aquilo meio estranho, mas acabei aprendendo a danar esse tipo de msica para me aproximar das meninas. Essa no foi a minha principal descoberta musical em Paris. Um dia, tocou a campainha da minha casa um rapaz do colgio, que namorava a minha irm Isabel,ento com seus 13 anos. Era um tpico gal francs, com um cigarro no canto da boca, noestilo do personagem de Jean-Paul Belmondo em O acossado, de Godard; fois eu abrir a porta e ele jogou fumaa no meu rosto. Menos mal que ele estivesse com o disco Transformer (1972), do Lou Reed, debaixo do brao. Esse vinil ficoul em casa e teve a mesma importncia do LP dos Secos & Molhados na minha formao musical. "Walk on the wild side", a ltima msica do lado A do lbum, impregnouo nosso ambiente residencial, de tanto que eu a ouvi. Eu pedi ao meu pai que tra

    duzisse a letra daquela cano, que falava sobre os travestis e o submundo nova-iorquino,e ento ele comeou: "Holly veio de Miami, Flrida/ Atravessou os EUA pegando carona/Depilou as sobrancelhas no caminho/ Raspou as pernas e ento ele virou ela..."A histria desse traveco alucinado, em uma cano to cool, era algo bem diferente daquelas msicas que se tocavam nas festinhas infantis de Paris. Ouvi bastante "Walk on the wild side" no vero de 1976, quando fomos passear pela Pennsula Ibrica. Conhecemos o Algarve, em Portugal, e voltamos de carropela Espanha. Foi curioso ver, na estrada, uma placa indicativa de que a cidadede Villa-Lobos, na provncia de Zamora, ficava a 6km de distncia. Os primeiros Vill

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    9/120

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    10/120

    o qual me achava o rei da calada e da rua. Para coroar a minha fase delinquente, furtei um relgio de bolso em ouro, numa festa privada. Mais tarde, j em Braslia, ofereci esse relgio ao meu irmoem troca de uma guitarra que estava em seu poder, e o acordo foi fechado. Loro Jones, futuro guitarrista do Capital, chamava esse instrumento de "guitarra boi", devido ao seu som grave. O potencimetro do tone estava quebrado e ento no saa som agudo dessa guitarra, cuja aquisio est relacionada a um furto - mais rock'n'roll,impossvel... Mas claro que a minha trajetria no mundo do crime no foi muito longe.E paguei tudo em vida: no Brasil, j roubaram o meu carro, instrumentos musicaise vrios outros pertences. Portanto est tudo devidamente quitado, inclusive os furtos nas lojas de roupa parisienses e nos vestirios do colgio, antes que eu meesquea. Exatamente naquela fase de delinquncia, em 1978, o Dinho, que eu havia conhecido em Braslia, estava em Genebra, e acabei indo para l passar frias. Elej era cabeludo e me perguntou o que eu estava ouvindo. Eu no escutava nada em especial, acompanhava o que rolava nas rdios e no soube responder direito. Citeisem muita convico uns artistas de disco music. O Dinho ficou surpreso por eu no conhecer o Led Zeppelin ("O qu?!!! No conhece?!!!") e me apresentou o quartodisco da banda, o mais conhecido. Ele colocou "Black dog", a primeira faixa do vinil, e eu fiquei realmente impressionado. Esse foi outro lbum que fez diferenana minha formao musical. No livro Renato Russo: o filho da revoluo, do Carlos Marcelo (Agir, 2012), h uma histria curiosa, da qual eu realmente no me lembrava.O Dinho diz que, em Braslia, eu era alvo dos colegas por ser tmido, baixinho e usa

    r culos fundo de garrafa. Uma vez, ele viu uns garotos tirarem onda comigo ateu chorar, sem nada ter feito para me ajudar. Por esse motivo, eu questionei o seu comportamento, mostrando estar magoado. O Dinho ento se encheu de culpa e, nasua viso, esse incidente quase atrapalhou a nossa amizade. No foi nada. Na segunda metade da dcada de 1970, Paris me parecia uma cidade bastante politizada. Muitos exilados polticos viviam l, e boa parte deles era sul-americana.Havia grandes passeatas de rua, comandadas pelo comunista George Marchais e pelo socialista Franois Mitterrand, que pouco depois se tornaria presidente. Em 1978, lecionou l no Liceu Janson de Sailly uma professora substituta de Francs ruiva, sardenta e de olhos verdes - linda e cheia de charme -, que certamente marcou todos

    os caras, j marmanjos, da turma 4me 2. Lembro que ficamos maravilhados quando elapassou por ns pelo corredor da sala, com casaco de pele, cala justa de veludoverde e bota para fora: "C'est quoi a?" ("O que isso?") - falamos. Fui seu alunode Francs e tambm de Latim, e nunca estudei tanto essas matrias na minha vida.Eu j havia me apaixonado por uma professora em Braslia, como disse, mas dessa vezera diferente, mesmo porque agora eu tinha 13 anos - ou seja, era um adolescente,cheio de hormnios. Disputei s pra ficar mais perto dela e ganhei a eleio de representante dos alunos (nas reunies trimestrais de mestres e alunos). Um dia, em uma aula, ela virou-se para mim repentinamente e disse: "Esse colega aqui de vocs vem do Brasil, onde existe uma ditadura pr-imperialista,patrocinada pelos Estados Unidos, etc." Eu imediatamente pensei: "O que essa mulher est falando? O meu pas maravilhoso! tricampeo mundial de futebol, construiu

    a rodovia Transamaznica, tem a Floresta Amaznica..." Recordei todas aquelas imagens de exaltao do Brasil grande, tpicas da propaganda da ditadura militar. Ea minha professora citando a tortura, a censura, o privilgio dos interesses econmicos das empresas americanas, em detrimento das necessidades dos trabalhadoresbrasileiros... Foi um choque. A coincidncia que, justamente no contexto em que aquela professora hiperpolitizada, militante do Partido Comunista Francs, me apresentavaa viso da Amrica Latina como quintal dos Estados Unidos, o Renato Russo estava escrevendo "Que pas este" ("Terceiro Mundo se for/ Piada no exterior"). Apesarde ter entrado em contato com uma verso no oficial da Histria do Brasil, a notcia de

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    11/120

    que voltaria para esse pas foi tima. Paris incrvel, uma cidade lindae incomparvel, mas a verdade que os parisienses podem ser insuportveis, e eu estava l havia quatro anos, morrendo de saudades do Brasil. Voltei em 1979, anoda posse do ltimo presidente da ditadura militar, Joo Baptista Figueiredo, e do regresso dos anistiados polticos ao Pas. Eu estava novamente em Braslia, mascom as questes de sempre: encontrar um novo colgio, fazer amizades, etc. Eu no sabia que esse meu retorno seria definitivo, e que a teia de relaes construdadessa vez na capital federal me colocaria na linha de frente da renovao cultural pela qual o Brasil passou na transio para a democracia. Fomos morar no bloco B, apartamento 206, da superquadra 213 Sul. Ela apresentava o mesmo perfil da 104 Sul, o meu primeiro endereo em Braslia: um lugarconvencional, ainda em construo, habitado por famlias de diplomatas, funcionrios graduados do Banco do Brasil e de outras carreiras bem-remuneradas do funcionalismo pblico federal. Essas quadras eram os guetos dessa classe mdia alta empregada no funcionalismo pblico federal. A cidade era extremamente organizada e, portanto,diferente daquilo a que me acostumara em Paris. Eu ia encontrando os meus parese fazendo amizades com jovens que haviam chegado dos mais diferentes pases, comoEstados Unidos, Sua e China. Quase todos eram filhos de diplomatas e estavam, como eu, mais uma vez recomeando uma etapa da vida. Eu estava com meus 14 anos e dessa vez me matricularam em um colgio particular, o Marista, que me parecia bom. Cheguei a Braslia no meio do ano e, natraduo do meu currculo escolar francs, a diretoria omitiu que eu tinha acabado de ser reprovado. Nos meus ltimos momentos em Paris, eu tinha chutado o balde

    e aprontado, e a escola ficara em segundo plano. Por conta dessa omisso curricular, pude ser inscrito no segundo ano do cientfico. Mas fiquei preocupado por nunca ter visto Qumica e Fsica, essas matrias que geralmente complicam a nossa vida na escola. Na verdade, fui colocado de ouvinte no primeiro ano, mas admitido previamenteno segundo. O Marista era catlico, mas as obrigaes relacionadas ao ensino religioso tinham ficado para trs, no primeiro grau; portanto eu no precisaria frequentaraula de Religio (ainda bem). Aos poucos, fui-me readaptando cidade e conhecendo pessoas que chamavam a minha ateno. A Cris Brenner, futura vocalista da Blitx 64, era uma figuraada minha turma. Eu passei a frequentar festas e a descobrir drogas como maconha, lol, cogumelo e, principalmente, lcool. Durante o dia, eu ia ao Clube das Naes,

    fundado por um pequeno grupo de diplomatas brasileiros e estrangeiros. Ali havia piscina, lago e rolava futebol aos sbados e domingos, jogado pelos filhos dos diplomatas.Assim, a rede de amizades foi sendo refeita, e as coisas comearam a acontecer. Por volta de 1981, em uma tarde quente, a turma estava no maior bode embaixo dos pilotis do prdio, sem nada para fazer. De repente, passaram quatro carascom visual punk: cabelos desgrenhados, cala e camiseta rasgadas, patches, etc. Sem falar com a gente, eles foram at a parede do bloco onde eu morava e picharamas letras "AE". A gente olhou e pensou: "Cara, o que isso? Quem so eles? Chegaram aqui e picharam a parede, no 'nosso' territrio!" Depois disso, os intrusosforam embora, na maior cara de pau. Eu estava sentado com o Dinho, o Pedro Ribeiro (irmo do Bi) e outros ami

    gos, e aquilo realmente ficou na nossa cabea. Uma semana depois, o Dinho apareceu e falou: "Cara, descobri o que significa aquela pichao. uma banda chamada Aborto Eltrico, que est tocando ali no Food's", uma lanchonete que ficava a maisou menos 1km de casa. A gente estava na 213 e o Food's ficava na 111, em frenteao Eixo Sul, ento bastava cortar as quadras em diagonal para se chegar l. Eraum final de tarde e l estavam os caras. Tinham levado uma bateria, dois amplificadores Giannini (um Duovox e um Bag 7), e a voz saa precariamente de um deles.Esse equipamento era ligado em uma nica tomada cedida pelo gerente e no havia mesa de som, nem nada. E ali estava o Aborto, que naquela poca era formado pelo

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    12/120

    Renato, com uma guitarra Giannini preta modelo Les Paul, e pelos irmos F e Flvio Lemos, na bateria e no contrabaixo, respectivamente. A banda no contava maiscom o Andr Petrorius, guitarrista que havia sugerido o nome Aborto Eltrico, inspirado em uma histria em que, em uma das invases Universidade de Braslia (UnB),a polcia teria utilizado cassetetes eltricos contra mulheres grvidas. Petrorius tinha voltado havia pouco tempo para a frica do Sul, a sua terra natal, com opropsito de servir no Exrcito. Quanto ao show em si, aquilo foi... Magntico! Era eltrico, barulhento e intenso. A energia que saa dali era muito forte e sedutora.E o Renato j cantava com o seu jeito peculiar msicas como "Que pas este", "Ftima" e"Gerao Coca-Cola". Desde esse dia, eu passei a seguir os caras. Aonde eles iam, eu ia atrs, e comeamos a trocar uma ideia aqui, outra ali. Braslia um lugar pequeno, elogo aquele ncleo - formado, sobretudo, pela rapaziada que vinha da Colina - comeou a crescer. A Colina um conjunto de blocos residenciais que fica dentro daUnB. Logo, havia muitos professores l. Esse era o caso, por exemplo, do pai do F e do Flvio (que formariam o Capital, em 1982). Por volta de 1976-77, a famliaLemos tinha voltado de uma estada em Londres. E o F e o Flvio chegaram com vrias novidades na cabea: Sex Pistols, The Stranglers, The Clash e aquele lema punk"Do it yourself" (Faa voc mesmo). O lance era aprender trs acordes, formar uma banda e incentivar a galera a fazer o mesmo. Assim, comeou a aparecer um pessoalque curtia aquele tipo de msica, e algumas bandas foram surgindo em torno do Aborto: a j mencionada Blitx 64, o segundo grupo punk de Braslia; a Plebe Rude, queganhou a admirao da turma logo aps a sua criao, em 1981; os Metralhas (que tambm atendiam por SLU e Quinta Coluna), a terceira banda punk da cidade, com o

    Marcelo Bonf, futuro baterista da Legio Urbana; e o Dado e o Reino Animal, a minha primeira banda - que, alm de ser instrumental, contava com um tecladista (duasnovidades na poca). O Aborto centralizava essa energia no s porque era pioneiro, mas tambm porque era sensacional. "Que pas este" era uma letra que, at mais ou menosa quinta apresentao, voc no entendia absolutamente nada, at comear a perceber o que ele estava falando. A turma foi crescendo e comeou a formar um amlgamapor meio do aumento progressivo das adeses. Logo comearam as apresentaes em botecoscomo o Cafofo (no Setor Comercial da 408 Norte, perto da Colina) e o S Cana(no segundo Centro Comercial do Lago Sul, que chamvamos de Gilbertinho, em referncia ao primeiro, o Gilberto Salomo); em lanchonetes como o mencionado Food's;e em colgios, como o Objetivo e o prprio Marista, onde eu estudava. Neste ltimo, lembro ter visto um show da Blitx 64, em que Cris urrava ao microfone. Ela destrui

    u!O curioso que a banda estava ali abrindo o show da Baby Consuelo. Mais tarde, surgiram at teatros que abriam as suas portas para bandas de rock, como o RollaPedra, na cidade-satlite de Taguatinga. Com o surgimento desse circuito roqueiro na cidade, a necessidade de encontrar uma tribo e fazer parte dela se tornou urgente. Era uma forma de me sentirpreenchido existencialmente, ter uma perspectiva e seguir adiante. Existia muita amizade e fraternidade entre aquelas pessoas, que estavam a fim de tocar, de trocarideia e se divertir. Uns tiravam fotos, outros faziam silkscreen com o nome dasbandas e ainda havia aqueles que produziam bottons de Durepoxi. O Geraldo Ribeiro

    (Gerusa), baixista da Blitx 64, chegava a ponto de construir os seus prprios instrumentos, especialmente baixo e guitarra, porque no tinha onde compr-los. Por essa poca, houve diversas apresentaes. Ns viajvamos juntos e acampvamos em certos lugares, como o terreno do pai do Bi, atrs do Braslia CountryClub (no setor Manses Parkway), e o Salto do Toror, uma cachoeira a cerca de trinta minutos da cidade. Tratava-se de um terreno isolado, e, para l chegar, saamosdo asfalto, entrvamos em uma estrada de terra, depois parvamos o carro e seguamos andando por uma trilha. Dali a pouco avistvamos uma clareira e um rio incrvel,que levava a umas cachoeiras. O legal que eram umas trinta pessoas viajando juntas! O Paulo Marchetti, no livro O dirio da turma 1976-1986: a histria do rock

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    13/120

    de Braslia (Conrad, 2001), lembra que os acampamentos foram acabando medida que a turma foi crescendo. Segundo ele, os ltimos acampamentos aconteceram em 1982. Eu confesso que no me lembrava bem quando foi que ns paramos de acampar.Mas o que tinha de mais interessante acontecia no Plano Piloto. Os ensaios doAborto ocorriam na nova casa do F, que havia se mudado da Colina para o Lago Norte, em 1980, e a gente ia para l de nibus ou de bicicleta, percorrendo distnciasde 20km. Outra curiosidade que, por essa poca, os filmes chegavam a Braslia antesde entrarem no circuito comercial, pois eles tinham que passar pela censura.Assim, o Ministrio das Comunicaes fazia projeo para os censores. O lance que a mulher do ministro das Relaes Exteriores resolveu projetar os filmes porconta prpria e todo mundo passou a ir l, no sbado noite. Era bastante divertido, porque o ambiente do Itamaraty era fechado, e aquelas pessoas eram normalmenteformais. E, de repente, chegava aquele bando que parecia ser formado por delinquentes... Ningum nos barrava: assistamos aos filmes e amos embora, sem criar tumulto.Braslia tinha muitas salas de projeo, e frequentvamos os festivais no Goethe, na Cultura Inglesa, na Embaixada da Frana... Era a semana Herzog aqui, o FestivalRenoir ali, e isso ajudava bastante a preencher o vazio, a frieza e o tdio (com um T bem grande) que sempre estiveram entranhados em Braslia. ramos todos filhos de diplomatas (pejorativamente chamados de "itamaratecas"), de professores universitrios, de militares de alta patente e de economistasdo Banco do Brasil (sendo esse o caso do Renato e Bonf). Estvamos sempre em contato um com o outro, mas no creio que houvesse um sentimento de estar realizando

    um movimento. No havia uma cartilha, um estatuto, o que fosse. Existia, sim, a vontade de fazer algo que mudasse de verdade as nossas vidas e isso necessariamentese relacionava com a msica. Queramos, sobretudo, tocar rock e nos apresentar ao vivo. Havia um festival de msica em Braslia que se chamava Concerto Cabeas. Quem o organizava era um famoso produtor cultural da cidade, o Neio Lcio. O eventoacontecia todo domingo, no Parque da Cidade, um espao ao ar livre, com uma concha acstica incrvel, e as pessoas lotavam aquele lugar. Mas ele nunca nos deixoutocar no Cabeas, onde se apresentava uma rapaziada mais hippie, ou mais pop, talvez. As bandas que l tocavam tinham nomes como Mel da Terra, Sol Maior, Hortel,e os seus vocalistas cantavam em falsete... E isso era tudo o que ns no ramos. Eu no me sentia um punk, mas aquilo que eu via no palco era exatamente o que eu

    no queria ser. Ironicamente, quando esse projeto voltou, em 2010, com o prprio Neio Lcio na organizao, foi includa em um painel de fundo a imagem do Renato,como um dos principais representantes da arte e da cultura de Braslia. No incio dos anos 1980, eu tambm gostava muito de disco music, especialmente do Chic e do seu guitarrista, Nile Rodgers. Mas, em Braslia, era impossvelouvir rdio: no tocava nada de interessante. As poucas revistas de msica que chegavam do exterior - a New Musical Express e a Melody Maker, vendidas em uma bancada 103 Sul - eram compartilhadas pela turma, que as traduzia e tentava acompanhar o que estava acontecendo na cena londrina e europeia, em geral. Embora a maioriade ns j tivesse morado fora do Pas, no tnhamos a real conscincia do que se passava nos Estados Unidos e na Europa - ou mesmo em outras cidades do Brasil. Estvamosem uma bolha. O que rolava de som em So Paulo? Eu no sabia. At 1982, para ns s existi

    a a galera de Braslia. Sei que as verses em torno dessa questo so contraditrias. No mesmo sentidodo que afirmei anteriormente, o Marchetti transcreve um depoimento do F,segundo o qual, no fim de 1981, o Pretorius assistiu a um show da Plebe, no setor de clubes Norte, e a criticou por ela ainda estar estagnada naquele estilo punk.Ele falou que fora do Pas j estava rolando o ps-punk com o PIL, Gang of Four, B-52's, Pretenders, e todo o movimento New Wave. Essa crtica atingiu vrias bandasde Braslia, claro. Diferentemente, o Arthur Dapieve, no livro Renato Russo: o Trovador Solitrio (Ediouro, 2006), afirma que, com a morte do Sid Vicious, baixista

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    14/120

    dos Sex Pistols, em 2 de fevereiro de 1979, a turma da Colina "virou a casaca" e passou a ouvir ps-punk. rica Ribeiro Magi tambm sugere a existncia de uma comunicaofacilitada entre os brasilienses e o exterior em seu estudo Rock and roll o nosso trabalho: a Legio Urbana do underground ao mainstream (Alameda, 2013). A socilogadiz que as escolhas esttico-musicais do pessoal de Braslia tinham como principal marca o seu "desenraizamento social". Isso porque a sociabilidade que marcavaesses jovens, que haviam vivido em outras cidades do Pas e do exterior, passava pelo conhecimento da lngua inglesa e pelo que acontecia fora do Brasil em termosmusicais. Eu diria que, se, por um lado, havia, sim, essa preocupao com o que estava rolando no exterior, por outro, a informao disponvel sobre o cenrio musicalda Inglaterra e dos EUA ainda era restrita para ns. Havia muitas festas em Braslia, que eram uma forma de compensar a faltade opes de lazer. Elas eram fundamentais nos fins de semana e eram as nicaspossibilidades para se danar, por exemplo. Esses encontros se davam geralmente ao som de fitas cassete. Cada um montava as suas, e o repertrio era formado pormsica punk e, com o tempo, tambm ps-punk. Muito Joy Division, New Order, o j citadoGang of Four, The Psychedelic Furs, os primeiros lbuns do The Cure e muitolcool e bagulho. Em 1982, os meus pais se separaram e, em 1983, a minha me e o pai do Dinho saram de Braslia, casados. Foi quando moramos eu, o meu irmo, oPedro e o Dinho, em um apartamento alugado no bloco K da mesma 213 Sul. Na verdade, tratava-se de uma repblica. Um dia, o Wellington, amigo nosso da UnB, tocoul em casa e falou: "Voc sabia que tem um p de beladona na portaria do seu prdio?" Odilogo que se seguiu foi mais ou menos assim: - "Beladona? Que isso?"

    - "Ah, uma florzinha assim..." - "Mas o qu?" - "Cara, experimenta a." O Pedro, o Dinho e o meu irmo desceram, pegaram as flores e fizeram um ch. Eu no tomeiporque odeio ch e tenho o maior respeito pela fora dos psicotrpicos naturais, mas eles enlouqueceram muito. Naquele apartamento, comearam a rolar drogas pesadas. Basicamente cocana. O Pedro deu um depoimento para o Marchetti segundo o qual a nossa residnciaera uma espcie de point, e que qualquer pessoa que quisesse cheirar ia para l. Lembrou tambm que o Renato virou vrias noites conosco. quele mesmo autor, a Renata,ento minha namorada, falou que presenciou "coisas impressionantes" em tal ambiente, e o Dinho garantiu que nunca viu tanta cocana como nessa poca. Mas no haviaum clima decadente, e as drogas nunca chegaram a atrapalhar as nossas vidas. Era assim: - "Vamos nos divertir hoje?" - "T bom!" A semana corria bem, os ensaiosaconteciam, e, enfim, a rotina seguia.

    Ningum correu risco de morte ali. No comeo de 1982, o grande lance em Braslia era o seguinte: ir para o Rio assim que chegassem as frias. Principalmenteporque nessa cidade morava o Bi, que se dividia entre a casa da me, o apartamento dele na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropdica, regio metropolitana do estado, e o stio da famlia em Mendes, no sul fluminense. Ento chegvamos ao Rio, encontrvamos o Bi na Rural, e de l amos para aquele stio- um lugar lindo, onde andvamos a cavalo e ficvamos reunidos, acampados. Eu tambm frequentava os ensaios do que viriam a ser Os Paralamas. Quase todo fim de semana,o Bi e o Herbert passavam a tarde tocando na casa da av do Bi - homenageada na msica "Vov Ondina gente fina", do disco Cinema mudo, de 1983 -, na Rua SouzaLima, em Copacabana. Eles tocavam clssicos de Jimi Hendrix, Santana, Led Zeppelin

    , Deep Purple, etc. Eu chegava l e passava a tarde inteira ouvindo aqueles doisdentro de um quarto. O Herbert, especialmente, j era um exmio guitarrista. O universo que vivamos em Braslia estava ligado aos shows e aos ensaios das bandas, principalmente,aos do Aborto. Um belo dia, quando eu voltava de umas dessas frias no Rio, encontrei o Dinho, o Bonf e o Loro Jones juntos, e ento pensamos: "P, vamos montaruma banda?" Finalmente eu ia tocar em um grupo de rock! O Pedro Thompson Flores, tambm filho de embaixador, era um cara que morava em um casaro beira do LagoSul e tinha um Fender Rhodes. E teclado era um negcio que eu nunca tinha visto. Era muito difcil um tecladista que tivesse o seu instrumento. Ainda no estvamos

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    15/120

    propriamente na era do Casiotone, um teclado pequeno e barato da marca Casio, lanado no incio dos anos 1980, que simulava com pouca preciso os sons de outrosinstrumentos. Para a minha alegria, logo comeamos a ensaiar. O Pedro Thompson noseu imponente Fender Rhodes, o Dinho no baixo, o Loro e eu nas guitarras, e o Bonf. Foi nessa poca, alis, que eu conheci o baterista com quem eu tocaria pormuito tempo. Quando eu assisti ao Aborto pela primeira vez, o Bonf j estavaali, vendo o show. Lembro que, tambm l no Food's, ele tocou no show dos Metralhas, com uma bateria Pinguim azul. E o Bonf era meio diferente, tinha um cabelototalmente ruivo, era magrinho, parecia um pouco o Salsicha do Scooby-Doo, mas era um cara bonito. O mencionado livro do Carlos Marcelo reproduz uma lista elaboradapelo Renato, ento vocalista do Aborto, com os nomes dos rapazes da turma, separados em duas categorias: a dos garotos bonitos ("Cute boys") e a dos outros ("Theother boys"). O Bonf foi includo na primeira, ao lado de outros trs garotos (e eu,na segunda, na companhia de quase trinta!). Aquela lanchonete foi o lugar ondepraticamente tudo comeou: l eu conheci o Renato, o Negrete (Renato Rocha), o Geraldo, o Loro, enfim, quase todo mundo. Eu ainda tinha aquela "guitarra-boi", que eu gostava de chamar de Dadocaster, em referncia Fender Stratocaster. Uns dias antes de a minha banda ser fundada,o Herbert tinha passado por Braslia e me dito o seguinte: ", vou te dar essa correia aqui (uma daquelas coloridinhas, com um bordadinho meio hippie), mas, quandovoc tiver a sua banda, vai ter que colocar o nome dela de 'Dado e o Reino Animal'

    , certo?" "Beleza", disse eu. Quando finalmente montamos o grupo, eu virei paraos caras e falei: "Olha, o seguinte, vamos ter que nos chamar Dado e o Reino Animal..." E o bacana que o pessoal concordou. O Loro, talvez por ter esquecidoessa histria, disse ao Marchetti que a banda teria esse nome porque eu era muitonovo e no sabia tocar uma nota sequer - e que eu ficava afinando o meu instrumentoenquanto os outros ensaiavam. Essa banda durou apenas uma apresentao. Fizemos quatro msicas instrumentais, pois nenhum de ns cantava ou sabia escrever letra. Era uma banda realmenteps-punk, pois era meio danante e tinha uns teminhas de teclado. Gravvamos os ensaios em fita cassete e colocvamos nossas msicas para tocar nas festas, porqueo nosso repertrio tinha uma vibe bacana para pista de dana. D para ouvir trechos do nosso som no site do F Clube Oficial Dado Villa-Lobos. O Dapieve disse em

    seu livro que o The Damned era o nosso paralelo na Inglaterra, mas o punk gtico dessa banda no era bem o que fazamos. Os ensaios eram geralmente naquela mansodo Pedro Thompson, onde havia uma piscina em que caamos entre um ensaio e outro.Fumvamos muita maconha e l ainda havia um narguil, que enchamos com lol. Quandoo efeito batia, os ensaios eram logo interrompidos... J li tanto o Dinho dizer que se lembra de um ensaio no quarto do Bonf, quanto o Loro afirmar que os encontroseram na casa do Dinho. Eu me recordo mais dos ensaios na residncia do Pedro Thompson, apesar de toda aquela fumaceira. Embora ensaissemos bastante e as nossas fitas at tocassem nas festas, no nos apresentvamos em pblico. At que rolou uma oportunidade em um festivalque a UnB fazia todo ano, o Expoarte, no Centro Olmpico - Faculdade de Educao Fsica. Em 1982, o evento estava em sua stima edio e ns nos inscrevemos para

    tocar. Foi o nico show do Dado e o Reino Animal, e a Plebe e o Aborto tambm tocaram naquela noite. O Marchetti reproduz um depoimento do Dinho, segundo o quala apresentao foi horrvel, principalmente porque ele tocou com o baixo todo desafinado, alm de no ter aguentado o peso do instrumento, acostumado que estavaa tocar sentado. Na verdade, o Dinho achou que foi uma baguna generalizada. Dizem que nessa apresentao eu estava com a guitarra desligada, o que bem possvel.Eu geralmente fazia uns barulhinhos aqui e ali, mas, em meio quela zoeira, no faria a menor diferena... Eu achei que o show foi timo, mas, logo na sequncia,o Pedro Thompson viajou, e eu pensei: "Bom, acabou, n?" Enfim, a banda tinha cumprido a sua funo.

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    16/120

    Eu comecei a aprender a tocar sozinho, como a maioria dos garotos de Braslia. Ao violo, tocava "Smoke on the water", at chegar a "Stairway to heaven".Ou seja, um caminho que muitos seguiram. O meu repertrio no era nada punk, mas euseguia aquele lema "Do it yourself". Eu ficava muito tempo na casa do Dinho,porque ele e o irmo, Ico Ouro Preto, tinham uma boa discoteca de rock. Havia bastante disco de hard rock (vrios do Kiss), mas, em termos de peso, no chegava nemao Iron Maiden. O estilo predominante ficava entre o Led Zeppelin e o Rush, que, alis, tinha um lance progressivo que eu achava meio chato. Foi nessa poca quepassei a me ligar em muita coisa que eu poderia vir a fazer na guitarra. Ficavaviajando nos timbres, nas levadas... Um dia, no quarto do Ico, apareceu o It's alive, disco dos Ramones, de1979. Eu ouvia aquele "one, two, three, four" e, em seguida, vinha uma msica veloz,com guitarras distorcidas e trs power chords. A identificao foi imediata. Eu fiquei fascinado pelo ritmo da bateria, a pulsao e a energia das faixas do lbum.Era o som que o Aborto fazia. Nesse disco h "Do you wanna dance", msica de Bobby Freeman, que se tornou famosa na verso do Cliff Richard & The Shadows (que eudanava nas festinhas de Paris). Eu ouvi a interpretao punk dessa cano e falei: "Olhaque incrvel, isso que eu quero tocar!" Ento, naquele quarto mesmo,comeamos a tocar Ramones. O Ico tinha uma guitarra Strato, que estava ali, de bobeira. Passamos a perceber que a guitarra era realmente um instrumento diferentedo violo; tinha outro som, uma vibe especial. Tudo isso que eu vivi desde que voltei a Braslia aconteceu muito rpido epraticamente ao mesmo tempo. Ouvir Ramones e assistir ao show do Aborto no Food'

    sforam dois grandes momentos que me formataram. Lembro muito bem que o Renato estava l tocando, e a sua palheta caiu no cho, perto de mim: eu a peguei e entregueia ele, que a colocou direto na boca. Foi o nosso primeiro contato. O Renato eraa figura central daquela cena emergente, um cara mais velho, que j estudava no CentroUniversitrio de Braslia (Ceub), enquanto eu ainda estava no segundo grau. A partir do momento em que a gente se conheceu, ele esteve sempre presente. A turma seencontrava para ir Feira dos Estados ou beber nos bares. E ele tinha uma personalidade magntica, que seduzia com a fora das palavras, mas tambm por dar valorquilo que estava acontecendo na rea cultural. Assim, as pessoas foram se reunindocom o propsito de agitar culturalmente a cidade. Ele, sim, talvez tivesse muitomais uma viso daquilo como um movimento do que eu ou qualquer outra pessoa envolv

    ida. Renato foi o cara, o motor, a fora motriz, a centelha. Era um cara que sedestacava desde a poca do Aborto e, no comeo da Legio, j era considerado um dolo porparte da turma, como bem afirmou o Marchetti. Felizmente para mim, agora eu estava prximo aos caras que haviam pichado o meu prdio, como eu disse anteriormente: o Renato, o Loro e o Geraldo (achoque o F tambm estava entre eles). Aquilo tinha sido uma viso do outro mundo, principalmente porque o Geraldo era uma figura inusitada para aquela turma com aqual eu andava, formada por filhos de diplomatas: alto, magro, com olhos azuis,mas virados para lados opostos (era estrbico ao contrrio), e cabelo sarar louro.O irmo dele, o Loro, era bem parecido, s que mais atarracado. E o Renato tambm no se encaixava no padro de beleza estabelecido... Para completar, todos estavamde uniforme punk. Aquela cena tinha me causado uma impresso muito forte, talvez assustadora. E eles se tornaram meus parceiros.

    O Renato falava bastante sobre cinema e literatura. Ele estava sempre falando e gesticulando, como se estivesse dando aula para algum: explicava teorias e procurava interlocutores para discutir Freud, Jung, Engels, Marx, o que fosse. Quando me aproximei do Renato, eu estava com 16 anos e ele com 20. Eu no era exatamenteum interlocutor durante aquelas discusses homricas que ele protagonizava, em mesas de bar e nos acampamentos. Eu era muito mais um ouvinte, um observador. Maso Renato era um amigo. Havia as situaes mais comuns, em que conversvamos sobre qualquer coisa - a cidade, o colgio, o que estvamos pensando, estudando, etc.

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    17/120

    Como bons amigos, falvamos sobre tudo e tambm sobre nada em especial. O Renato era um cara interessado em artes, e eu tinha l minhas predilees artsticas, possivelmente influenciado pelos anos vividos na Frana. Um poucomais para a frente, nos primeiros tempos da Legio, houve um caso que eu acho queilustra um pouco essa empatia que se deu, de imediato, entre mim e o Renato. Issoaconteceu quando ns fomos fazer a prova da Ordem dos Msicos do Brasil (OMB). At hoje, para atuar como msico, -se obrigado a fazer essa prova e a se sindicalizar,o que no me parece ter muito sentido. A questo que a banda seria atrao de um projeto patrocinado pelo Governo do Distrito Federal, portanto precisvamos tera licena da entidade. Havia a opo de tirar a carteira de msico estagirio (amarela) ou a de msico profissional (azul). Com qualquer uma das duas se podia tocarsem problemas em eventos pblicos. E o curioso que o Renato procurava nos orientar: "Agora a gente vai fazer essa prova da OMB, e ela mais ou menos assim: tem que saber certas informaes,alm de um pouquinho de msica. V a quem escreveu o Hino Nacional, porque essa pergunta sempre cai..." Eu estava com um livro que reunia as obras completas doBaudelaire, em francs, em capa dura e papel-bblia. Quando o Renato chegou e viu aquilo na minha mo, perguntou imediatamente: "O que voc est lendo?" Eu disse:"Baudelaire, cara." Ele me olhou e emendou: "Ahhh, no possvel, meu Deus, mas comoisso?" O Renato ficou empolgado e orgulhoso com o fato de o guitarrista dabanda dele ler Baudelaire no original (eu estava tentando no desaprender o francs). A nossa passagem pela OMB de Braslia foi mesmo interessante. Quando cheg

    ou a hora da prova, havia uma partitura que precisvamos analisar. Era o Preldion. 1 de Bach e a primeira pergunta era: "Qual o tom dessa pea?" A resposta era d maior, mas eu pensei: "Ferrou, no tenho a menor ideia." E acabou que eu erreiquase tudo da parte terica. Mas tambm havia a prova prtica. O Bonf na bateria, o Renato no baixo e eu na guitarra. Acho que o Renato tinha um amigo ali na OMBe esse cara nos perguntou: "O que vocs vo tocar?" Ns respondemos, com certo orgulho: "Bom, vamos tocar um rock." Ento tocamos "Gerao Coca-Cola", depois "Oreggae" e por a foi. O Renato saiu de l com a carteira de msico profissional, mas eu e o Bonf fomos reprovados e ficamos com a carteira de estagirio; o nossobatera tambm foi muito mal na prova terica. Nada que afetasse os rumos da Legio... Depois do Dado e o Reino Animal,eu tinha decidido fazer o vestibular. Em 1982, passei em Sociologia na UnB e, no

    ano seguinte, comearia a frequentar as aulas. Como eu gostava de Histria e Antropologia, me encantava a possibilidade de entender mais profundamente a dinmicados grupos sociais. Alm disso, o meu pai tinha virado cnsul em Marselha, e eu estava pensando em ir para l estudar, em um futuro prximo. Eu sabia de uma universidadeem Aix-en-Provence, que era perto de onde o meu pai estava. S que a essa altura a Legio j estava na ativa. O Renato tinha sado do Aborto por uma srie de motivos. Acho que isso est bem documentado, mas valea pena lembrar. Ele deixara a banda uma vez, aps ter sido atingido no rosto por uma baqueta atirada pelo F, em um show na cidade-satlite do Cruzeiro. O bateristase enfurecera porque o vocalista, embriagado, esquecera a letra de "Veraneio vascana" (que seria gravada no disco de estreia do Capital, de 1986). Na verdade, oRenato j havia se atrasado para o evento, pois estava isolado, rezando em memria d

    e John Lennon. O Carlos Marcelo afirma que essa apresentao ocorreu "exatamentedez dias aps a morte de John Lennon", logo, em 18 de dezembro de 1980. J o Dapieve escreve que o mesmo show aconteceu "em 8 de dezembro de 1981, primeiro aniversrioda morte de John Lennon". Apesar de haver discordncias quanto data daquele conflito entre o F e o Renato, sabe-se que o primeiro pediu desculpas ao segundo,que aceitou voltar ao grupo. Mas esse episdio no foi capaz de pr fim competio que osdois travavam pela liderana do Aborto. Outra desavena mais sria ocorreu em um ensaio no fim de 1981, quando o Renato apresentou uma composio nova, chamada "Qumica", que seria includa no

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    18/120

    Que pas este 1978/1987. Segundo o Carlos Marcelo, o F disse que a msica era uma "merda", que o Renato estava perdendo o seu jeito de escrever e que o discursodireto que ele usava era coisa do passado. Mas o Renato tambm reclamava que o F estava mais preocupado em vender camisetas do que em ensaiar. Para aumentar a crise,o Petrorius, em rpida passagem por Braslia, assistiu a um show do Aborto e sentenciou que o grupo estava sem rumo. Finalmente, quando o Flvio e o F voltaramde uma viagem de dois meses na praia, o Renato comunicou-lhes que estava saindodefinitivamente da banda. No seu entender, os irmos Lemos se comportavam como amadores.O F escreveu no livro Levadas e quebradas (Pedra na Mo, 2012) que tal notcia foi bastante difcil para ele: "O mundo desapareceu sob os meus ps." Isso aconteceu no vero de 1982. O F ainda tentou continuar o Aborto com o Flvio e o Ico, que havia entrado na banda em meados de 1981, para tocar guitarra - e assim livrar o Renato da obrigao de ser tambm instrumentista. O grupo ainda conseguiu se apresentar no Centro Olmpico da UnB, na mesma ocasio em que o Dadoe o Reino Animal tocou em pblico pela primeira e ltima vez, como eu disse. Nesse dia, o Ico desapareceu e o Renato, que estava l na plateia, assumiu a guitarrae o vocal, a pedido do F (que vinha tocando bateria e cantando ao mesmo tempo). O show foi sensacional, com o pblico cantando as msicas mais conhecidas, como"Que pas este", "Tdio" e "Veraneio vascana". Mas o Aborto no continuou. Na primeirametade de 1982, o Renato se apresentava como Trovador Solitrio. Nesseperodo bastante criativo de sua carreira, ele parecia o Bob Dylan de 1963. S preci

    sava de uma craviola Giannini de 12 cordas e um microfone para mostrar as suasnovas composies, que jamais teriam espao em uma banda punk. O Renato geralmente pedia para tocar antes das apresentaes dos grupos estabelecidos na cena roqueira da cidade, que crescia a cada dia: "P, deixa euabrir, eu vou cantar as minhas msicas no violo..." E assim ele executava vrias canesque anos mais tarde ficariam famosas. "Eduardo e Mnica" foi gravada noDois, com uma letra um pouco diferente; "Faroeste caboclo" e "Eu sei" (que nessa poca se chamava "Entre 18 e 21") foram includas no Que pas este 1978/1987;e "Mariane", "Marcianos invadem a terra" e "Dado viciado" (que se refere ao seuprimo Z Eduardo) foram registradas no nosso ltimo disco de estdio, Uma outra estao.Eu o vi abrir show de bandas como a Plebe, na base da camaradagem. Eu o achava incrvel: alm de apresentar um repertrio original, diferente de tudo o que se faziaem Braslia, a sua atitude de subir sozinho ao palco era bastante corajosa. Porm ti

    nha gente que no gostava. O Renato chegou a ser vaiado nesses tempos, e teveque conviver com o comportamento irnico de parte do pblico - que jogava moedas nopalco, como se ele fosse um mendigo, e pedia sucessos de dolos da velha guarda,como Cauby Peixoto e Nelson Gonalves. Apesar dessa experincia solo e acstica, acho que o sonho do Renato sempre foi ter um grupo de rock, desde criana. Ele escreveu muitas pginas em inglssobre bandas imaginrias, como a 42nd Street Band, na qual assumia a persona de um baixista ingls chamado Eric Russell, que integrava um grupo de blues com os guitarristasMick Taylor (ex-Rolling Stones) e Jeff Beck. Ele descrevia detalhadamente a trajetria de Russell, "transcrevia" as suas entrevistas e se referia recepo de suaobra pelos crticos, que comentavam cada msica fictcia. A sua criatividade era impressionante. Sempre foi.

    Em meados de 1982, o Renato desistiu de ser o Trovador Solitrio. Foi emuma festa no Lago Sul que ele cruzou com o Bonf e o chamou para fazer uma banda.A sua inteno era que os dois constitussem o cerne do grupo (um no baixo e o outro na bateria), sem guitarrista fixo. Cada msico seria convidado, de acordo comas suas caractersticas, a contribuir em uma determinada cano. Em seu caderno de anotaes (reproduzido pelo Carlos Marcelo), o Renato considera que esse ncleoda Legio - com ele e o Bonf - foi formado em julho. A inteno por trs do tal rodzio deinstrumentistas era ter um som mais diversificado, mas essa propostano foi adiante. O conjunto comeou com o Paran, guitarrista mais tcnico do que a mdiada turma, com uma pegada hard rock, e o Paulo Paulista, que tocava um teclado

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    19/120

    Casiotone. Os quatro se reuniram para um ensaio em agosto e, no primeiro release da Legio (documento que faz parte do acervo da Fernanda), o Renato aponta essems como o da formao de fato da banda. Na poca, o cenrio musical de Braslia era mais ou menos este: a Plebe era a principal banda; o Capital j existia (elefoi fundado logo aps o fim do Aborto), embora o Dinho s tenha entrado para o grupo em julho de 1983; e o XXX (mais tarde, Escola de Escndalo) estava comeandoa tocar, e o seu potencial era to grande quanto o das outras bandas que gravariam disco - o Bernardo Mueller era considerado um dos melhores letristas da turma.No Rio, Os Paralamas estavam prestes a fazer as suas primeiras apresentaes, com oJoo Barone na bateria. O rock brasileiro tinha comeado a mostrar a sua fora, a sua viabilidade comercial, e esse tipo de notcia chegava a Braslia. Lembro que a revista Vejapassou a abordar as bandas nacionais, e isso me deixou entusiasmado. Quando comecei a escrever este livro, eu me recordava vagamente de ter visto fotos da Blitz e do Joo Penca e Seus Miquinhos Amestrados em tal publicao. A consulta ao acervo online da Veja confirma que, em fevereiro de 1982, o Joo Penca foi tema de umareportagem que ressaltava o fato de o grupo ter atrado setecentas pessoas para uma festa chamada Rock, Meu Bem, no Rio. Em junho, um texto de duas pginas afirmava que uma "nova gerao" do rock tinha invadido as rdios na trilha aberta por Rita Lee, tratada como a maior estrela do gnero. Havia nessa reportagem uma foto daBlitz, mas tambm do Rdio Txi, do Lulu Santos, do Ricardo Graa Mello e do Baro Vermelho. Finalmente, em dezembro, ao realizar um balano de 1982, a publicao

    considerou a Blitz um dos destaques do "ano do bom astral" na msica brasileira. "Voc no soube me amar" foi um sucesso estrondoso e todo mundo repetia a frase"Ok, voc venceu". O compacto com essa msica vendeu 1 milho de cpias e eu, claro, comprei o disco As aventuras da Blitz, que inclua outros hits, como "Maisuma de amor (Geme Geme)". Esse vinil chegou ao mercado com as duas ltimas msicas do lado B propositadamente arranhadas, porque haviam sido vetadas pela censura.E isso no impediu que cerca de 500 mil exemplares dele fossem vendidos. A Blitz tinha um sotaque fortemente carioca e o Rio tinha estabelecidoem 1982 um circuito roqueiro da maior importncia, com o Circo Voador e a Rdio Fluminense.Aquela casa de espetculos abria espao para shows de bandas amadoras que esta emissora veiculava em sua programao, aps selecionar as fitas demo enviadas de todoo Pas. Como se convencionou dizer, 1982 foi o vero do rock. A sensao de que a turma

    de Braslia vivia em uma bolha comeava a sumir. O sentimento era o de queessa era a hora, e de que o bonde no podia passar sem que a galera do rock de Braslia estivesse dentro dele. interessante como o Herbert tinha uma percepodiferente acerca desse processo. Ele disse para o Marchetti que chegava a ter inveja das bandas da capital da Repblica porque elas dispunham de mais espaos paratocar! Ele querendo ir a Braslia, e a gente querendo ir ao Rio. A respeito dos grupos do Distrito Federal, havia uma caracterstica que deve ser ressaltada: nenhum deles tocava cover. Essa uma questo interessante. A primeira vez que a Legio tocou msicas inteiras de outros artistas foi em 1988, quando fez um show com muitoscovers, na comemorao de trs anos da revista Bizz. Em 1982, o rock brasileiro conquistava fatias mais considerveis do mercado fonogrfico. No dia 5 setembro, a Legio participou do Festival Rock no Parque,

    na cidade de Patos de Minas, ao lado da Plebe. O evento foi patrocinado pela TVTringulo (da Rede Globo). Tratava-se do primeiro show do grupo, mas os cartazesanunciavam a presena do Aborto no evento. O local era bem inusitado para shows de bandas influenciadas pelo punk: um parque agropecurio, com estbulo e tudo, oqual, alis, a turma usou por conta prpria como camarim. O Marchetti cita um depoimento do Philippe Seabra, da Plebe, segundo o qual, na apresentao da Legio,o Paran no parava de solar, o que no tinha nada a ver com a esttica punk. O Renato teve que dar um chega pra l no guitarrista, enquanto o pessoal da Plebe riano backstage. Esse festival ficou marcado no apenas por ter sido o palco da estreia of

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    20/120

    icial da Legio, mas tambm pela atitude abusiva da polcia, que deteve os gruposde Braslia para averiguaes. Ela certamente no gostou muito do visual punk da turma,assim como das provocaes dos integrantes da Plebe - que, alm de teremimitado patos em aluso ao nome da cidade, perguntaram plateia se a sigla PM significaria Patos de Minas. Porm o que mais deve ter irritado os policiais foramos versos que o Renato cantou em "Msica urbana 2", mais tarde includa no disco Dois: "Os PMs armados e as tropas de choque vomitam msica urbana." Em 5 de setembrode 2012, o Estado de S.Paulo publicou uma matria intitulada "Primeiro show da Legio Urbana completa 30 anos". A reportagem era praticamente uma homenagem banda,e o incidente com os policiais no chegou a ser mencionado. A formao original da Legio, que tocou em Patos de Minas, no duraria muito tempo. O Bonf via o Paulista pejorativamente como um sub-Brian Eno (ex-RoxyMusic), e o Paran tambm questionava a sua contribuio. Ento a banda j tocou sem tecladista no seu segundo show, em outubro, num festival ao ar-livre no Estdiodo Cave, no Guar, em Braslia, com a presena de outros grupos da cidade. No ms seguinte, a Legio participou do VI Concerto da rea de Lazer do Lago Norte (naCiclovia). Ainda em novembro, apresentou-se na Associao dos Servidores Civis do Brasil (ASCB), em um evento protagonizado por ningum menos que a Blitz. O curiosofoi que a Legio entrou no palco depois da atrao principal. Aps essa apresentao, o Paran decidiu sair da banda, entre outros motivos, porque os seus colegasno queriam mais tocar "O cachorro", composio que agradava especialmente ao guitarrista. Embora ele tenha sado por conta prpria, o Bonf e o Renato geralmenteno engoliam a sua pretenso musical. Em seguida, ele foi estudar msica no Conservatrio de Tatu (SP), pois o seu lance na poca era ser violonista clssico. Mas

    essa ainda no seria a minha vez de entrar para a Legio; em dezembro, o Bonf e o Renato chamaram o Ico para tocar guitarra - informao encontrada no j citadocaderno de anotaes do vocalista. Ele ficou pouco tempo no grupo, pois tinha pnico de palco, e depois partiu para Madri, onde morava uma av sua. O curto perodoem que o Ico ficou na banda foi suficiente para ele participar da criao de "O grande inverno na Rssia" e "Ainda cedo" (sucesso do primeiro disco da Legio). Mais uma vez, a Legio ficou sem guitarrista. Dessa vez, o grupo tinha no horizonte um festival com a presena dos principais nomes do rock de Braslia,no teatro da Associao Brasileira de Odontologia (ABO), na 616 Sul. De acordo com o cartaz de divulgao - outro documento do acervo da Fernanda -, em dois finsde semana consecutivos (duas sextas, dois sbados e dois domingos) se apresentariam, alm da Legio, a Plebe, o XXX e o Capital (ainda com a Helosa no vocal). Quandoentrei para a banda, em maro de 1983, faltava apenas um ms para esse evento, intit

    ulado Temporada de Rock Brasiliense. Ele foi o primeiro organizado pela turma,e contou com o patrocnio da Ellus Jeans. A Legio tocaria nos dias 23, 24 e 29 de abril. Era um teatro pequeno, mas com uma estrutura boa, capaz de comportar umasduzentas pessoas. E a ideia era demarcar o territrio por meio de um grande acontecimento: "Olha, aqui estamos ns, e essas so as bandas de rock deste lugar." Defato, o festival foi um marco, e a partir dele os shows dos grupos de Braslia passaram a ser mais organizados e profissionais. Eu sabia que o momento era especial para quem tocava e curtia rock. Por essa razo, ao ser chamado para fazer parte da Legio, abandonei o plano de morarna Frana com o meu pai. O Pedro, que morava comigo, disse para mim que o Renato e o Bonf estavam precisando de um guitarrista e que estavam pensando em me chamar, caso eu fizesse um som tipo Talking Heads. O primeiro disco dessa banda era um d

    os preferidos da turma: toda sexta-feira, a gente ia para uma quebrada na UnB, faziauma fogueira, e colocava o Talking Heads: 77 no toca-fitas do carro. Ento eu fiquei entusiasmado com aquela notcia. Foi tambm em uma festa que o Bonf se viroupara mim e falou: "Cara, vamos fazer um som? Voc est a fim? Tem um festival daquia um ms!" E em seguida veio o Renato: "Vamos fazer, vamos nessa!" Enfim, euestava com 17 para 18 anos e pensei: "Vai ser maravilhoso." Aquele era um convite de respeito e por isso eu o recebi muito bem. Mais tarde, o Dinho revelou queficouarrasado por no ter sido chamado pelo Renato, porque se considerava um dos princi

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    21/120

    pais interlocutores dele. Seja como for, as coisas estavam realmente acontecendo para mim. Eu tinha passado no vestibular e agora iria levar um som com o Bonf e o Renato, que era um sujeito incrvel, com um imenso prestgio entre ns. Com isso,a Legio constitua o trio que se manteria unido at o fim da banda.

    1967 com Tavo e Bebel em Belgrado, antiga Iugoslvia

    1969 logo aps a cirurgia no olho em Montevidu, Uruguai

    II

    SER QUE VAMOS CONSEGUIR VENCER?

    O Renato e o Bonf chegaram concluso de que o nome Legio Urbana seria perfeito para a banda porque sintetizaria o momento vivido por ns em Braslia.Aquela coisa de andar sempre em turma, de morar na cidade... Na hora de explicar publicamente o porqu de a dupla ter optado por aquele nome, o Renato viajava. Diziaque Legio Urbana teria a ver com o filme Brigade mondaine (A brigada mundana), do Jacques Scandelari, de 1978, e com as Brigadas Vermelhas, uma organizao guerrilheira

    italiana dos anos 1970. Ele citava tambm a Legio Romana e assim acabava dando um jeito de incluir a Bblia nessa histria. Os soldados de Roma eram figuras comunsno cotidiano da "Terra Santa", e metforas acerca dos militares so encontradas no Novo Testamento. Embora as explicaes pudessem ser confusas, o nome me pareciasimplesmente algo que eu tinha que abraar para acreditar - e foi o que eu fiz. No ms que antecedeu aquele festival na ABO, o Hermano foi visitar Braslia. Ele escrevia em uma revista cultural chamada Mixtura Moderna - o que ele continuafazendo at hoje - e estava atrs de um objeto de estudo para desenvolver um trabalho de campo antropolgico. Ele queria saber o que era aquela cena alternativae amadora do rock de Braslia. Claro que, por conta das relaes pessoais, ele tinha um feedback do que estava acontecendo por l. O Hermano havia morado em Brasliacom o Herbert Vianna (seu irmo) e, quando decidiu fazer a reportagem, Os Paralama

    s do Sucesso estavam despontando. No dia em que o Hermano chegou a Braslia, agalera das bandas combinou de encontr-lo em uma festa na embaixada de um pas rabe,no Lago Sul. Em depoimento ao Paulo Marchetti, publicado n'O Dirio da Turma1976-1986: a histria do rock de Braslia, o Hermano disse que ouviu mil avisos de que o Renato era difcil de lidar. Tendo chegado tarde da noite quele evento,o vocalista da Legio contou ao visitante que no saa mais de casa, e que s tinha idoat l para conhec-lo. Mais tarde, o Hermano afirmaria que foi engraadoser recebido como o "salvador da ptria", como aquele que divulgaria ao Pas o cenrio rock da capital federal. No dia seguinte, foi organizado na casa do F, local de ensaios do Capital Inicial - e, portanto, onde havia uma estrutura mnima de instrumentos e amplificadores-, um showzinho particular para o Hermano com as bandas amigas (Plebe Rude, XXX,

    Legio e o prprio Capital). Eu tinha sido convidado para entrar na Legio em umaquinta e o evento ocorreu em um sbado. Cada grupo tocou uma msica, e a nossa foi "Ainda cedo" - a mais bem-estruturada do nosso repertrio at ento, emboraainda no tivesse nome -, com trs acordes. Eu me lembro perfeitamente de o Renato me ter passado essa composio, dizendo: "Voc vai fazer uns barulhinhos tipoAndy Gill, Gang of Four, sacou?" Falei: "Beleza." Eu no precisei tocar nem um acorde sequer naquela apresentao que seria a minha primeira com a Legio - depois,reelaboramos "Ainda cedo" e me tornei coautor dela. Finalmente, no terceiro diada visita do Hermano, ele pintou no ensaio da Legio e entrevistou o Renato durante

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    22/120

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    23/120

    teuma conquista e realmente nos incentivou. A matria fez muitas pessoas perceberemque havia em Braslia um movimento de bandas correspondente quilo que acontecianas principais cidades do Pas. No Rio, Os Paralamas e o Baro j conseguiam encher uma casa como o Circo Voador. A Blitz, ento, j tocava em ginsios. Tambm em junho de 1983, Os Paralamas lanaram o compacto "Vital e sua moto"/ "Patrulha noturna", pela EMI-Odeon. Lembro que eu ouvia com frequncia a primeiramsica nas rdios, em lojas de discos do Conic - alcunha do Setor de Diverses Sul, um centro comercial de Braslia - e tambm em redes especializadas, como a Gabriela,no Rio. A gente ento falou: "Cara, a bomba estourou muito prximo, est aqui do lado. Por que no?" Ainda em 1983, Os Paralamas gravaram "Qumica" no seu primeiroLP, Cinema mudo, que conta ainda com outra composio do Renato, em parceria com o Herbert e o Barone, chamada "O que eu no disse". No livro Os Paralamas do Sucesso: vamo bat lata (Editora 34, 2003), o Jamari Frana conta uma histria curiosa sobre o lbum de estreia dessa banda, envolvendo outro legionrio. O Bonf foi chamadopara assobiar na faixa "Vov Ondina gente fina", mas o assobio dele falhou na hora da gravao, e a msica chegou ao pblico sem a sua participao. Dizem quefoi uma cena engraadssima... Outra conquista naquele ano foi termos conseguido alcanar a Rdio Fluminense FM, onde o Maurcio Valladares tinha um programa chamado Rock Alive. Essaemissora era uma fora aliada do rock brasileiro, uma caixa de ressonncia no Rio que, por sua vez, era (e talvez ainda seja) o principal polo cultural do Pas.

    Tendo como alvo justamente a Fluminense, comeamos a gravar as nossas msicas. Fizemos uma demo com o pessoal do Artmanha, em um estdio que ficava em um prediozinhopertencente quelas autarquias tpicas de Braslia. Registramos uma verso de "Ainda cedo" marcadamente ps-punk, com o Renato tocando um teclado Casiotone doestdio, e mandamos para o Maurcio. Ele colocou a gravao no ar e acho que essa foi aprimeira vez que a Legio tocou no rdio. Nossa msica j atingia o Rio, mas ainda no tnhamos muito pblico em Braslia. OPas estava lentamente se redemocratizando, os milicos estavam entregandoos pontos, e havia uma sensao de liberdade maior. Porm, at mesmo no ambiente universitrio, menos careta do que muitos outros, essa coisa do punk rock, ou dorock de uma maneira geral, ainda era um pouco discriminada. Para parte dos estudantes mais engajados, fazamos "msica imperialista". Lembro que um pessoal do Partido

    Comunista do Brasil (PCdoB), seguidor da linha albanesa na poca, nos acusava disso. Na viso dessa turma, ainda que cantssemos em portugus, o nosso jeito de tocarera "americano", "importado" e outras besteiras do gnero. Mas, claro, esse era apenas um lado da moeda: o pessoal do Diretrio Central dos Estudantes (DCE), tambmmilitante, promovia festivais de msica (como o Expoarte) e nos chamava para tocar. A questo que, mesmo nesses eventos universitrios, ns acabvamos tocandopara pouca gente. A minha experincia na universidade, alis, foi muito rpida. No meu primeiro e nico ano na UnB, em 1983, eu fiquei decepcionado. Na primeira aula, dePortugus, o professor levantou a questo: "O que o verbo?" Eu pensei: "No, no acredito que essa merda que vou ter que estudar..." Por isso, eu acabei assistindoa pouqussimas aulas. Mas durante todo esse primeiro ano eu ainda me mantive matriculado. Achava a universidade bonita e cheguei a fazer uns amigos, principalment

    eentre os maconheiros do campus... Depois de termos aparecido em uma revista que circulava na regio Sudeste e emplacado uma fita demo em uma rdio carioca, ns recebemos um convite paratocar no Circo Voador, em um projeto chamado Rock Voador Brasil. O show foi marcado para o dia 23 de julho e ensaiamos intensamente no curto perodo que havia atl. A casa estava fervendo naquela noite, principalmente porque a atrao principal era o Lobo e os Ronaldos. Eu realmente me amarrava no seu primeiro disco, oCena de cinema (1982); inclusive, quando o saiu o Murmur (1983), do R.E.M., do qual tambm gosto bastante, eu o achei meio parecido com o LP do Lobo. Na poca dessa

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    24/120

    apresentao, a banda dele tinha a Alice Pink Pank nos vocais de apoio e nos teclados. Eu me amarrava na Alice desde quando ela tocava com a Gang 90 e as Absurdettes.Mas eu fiquei incomodado com o fato de que, volta e meia, o Lobo gritava para a plateia: "rock n' roll!" Aquele grito primal me incomodava muito e eu pensava: "Porque o cara est gritando isso???" Era como se ele, o Lobo, estivesse tentando sustentar e afirmar um rtulo clich. Embora o campo do rock ainda no estivesse consolidado,aquilo me soava chato e desnecessrio. Mais tarde, ele pararia com esse negcio e atbatizaria um disco com o nome de O rock errou (1986). Naquele show do Circo Voador, em que o Capital tambm tocou, ns ramos simplesmente mais uma banda de Braslia. Ningum nos conhecia, mas a reao da plateiafoi boa. Acho que, nessa poca, os ouvidos e o esprito das pessoas estavam muito abertos e receptivos para o que surgisse de interessante. Era um momento de ruptura- tanto na poltica, quanto na cultura -, e as coisas pareciam tomar um rumo novo. No dia da apresentao, o Jornal do Brasil publicou um texto do Jamari intitulado:"O rock de Braslia desce o planalto". A matria abordava a turma da Colina, a histria do punk em Braslia, as principais bandas da cidade, mas tambm o desafiovivido pela Legio naquele momento, segundo o Renato: "(...) a busca de uma linguagem e estilo que aproximem o experimental do pop sem cair no pasteurizado ou emsolues fceis." Na verdade, essa proposta continuou nos orientando ao longo de nossa trajetria. O nosso vocalista j sabia muito bem o que dizer imprensa, e

    deu o seu recado: estava na hora de os grandes centros conhecerem o que se fazia no resto do Pas. O Renato tocou com o baixo do Bi, um Fender Precision preto. Alis, h 15 anos esse instrumento est no meu estdio, ou seja, o Bi me empresta esse baixoh muito tempo. Sempre que eu o encontro, digo: ", teu baixo est l..." Para completar, eu toquei com uma Gibson SG, tambm preta, emprestada pelo Herbert. A genteainda no tinha instrumentos de qualidade para se apresentar nos palcos importantes do Pas. S depois desse show que eu viria a ter minha primeira guitarra deverdade (j que a "guitarra-boi" no pode ser includa nessa categoria): uma Ibanez Roadstar 2, bem caracterstica dos anos 1980, comprada quando eu estava de passagempela capital francesa, antes de visitar o meu pai em Marselha e assistir ao casamento da minha irm Isabel. "Putz, que maravilha, consegui um instrumento" - eu me

    lembro ainda hoje do meu entusiasmo. Nosso prximo compromisso foi em setembro de 1983, no II Festival Livre de Msica Popular (Flimpo) da UnB, quando apresentamos "A dana", que no chegoua ser classificada. Em outubro, o Renato - que conhecia toda a galera da imprensa local e tinha talento para produtor - descolou um show bem bacana na Escola Parque,no dia 10, onde fizemos uma gravao overall. Esse evento teve apoio do governo do Distrito Federal, da Fundao Cultural e da Secretaria de Educao e Sade. Jnos dias 20 e 21, tocaramos no Napalm, um buraco meio punk no centro de So Paulo,que foi um dos palcos mais importantes do rock naquela cidade (apesar de terexistido por apenas cinco meses). O Joo Gordo era o barman de l: ele tinha 19 anos, e era magrinho, se comparado com o que hoje. Seria a nossa primeira vez em So Paulo, e foi nessa ocasio que eu me apro

    ximei do pessoal das bandas de l. O fato que ouvamos muito mais o rock paulistae o achvamos mais visceral, mais pulsante, com aquele 4/4 acelerado tpico do punk. Em fevereiro de 1983, eu havia ido com o Pedro Ribeiro e o Dinho ao WesternClub, no Rio, ver o Lixomania, uma banda punk de So Paulo. Eu tinha estado em So Paulo tambm, circulando com a nossa demo e o release que o Renato tinha escrito- e acabei vendo um show do Ira! (embora o seu nome ainda no inclusse o ponto de exclamao). O Andr Villar, primo do F e do Flvio, tambm fez esse trabalhode divulgao do rock de Braslia em Sampa, tendo estado justamente no Napalm para entregar Fernanda, ento programadora da casa (e que se tornaria minha mulher),uma fita com msicas da Legio, Plebe e Capital.

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    25/120

    Se o interesse pelos grupos de So Paulo vinha de antes, foi no Napalm que comeamos a interagir de fato com essa galera. Existe uma filmagem do momentoem que o Nasi, vocalista do Ira!, me apresentou Fernanda no Napalm. Ela costumadizer que, logo na primeira audio daquela demo, foi possvel perceber que a Legioera a banda a ser convidada para se apresentar na casa. O engraado que o Renato fez o maior jogo duro na hora de negociar com a Fernanda. Queria saber quantoa banda receberia e fingiu no estar muito interessado naquela oportunidade - enfim, comportou-se como se a Legio fosse uma grande banda. Porm, no demorou muito,eles descobriram ter muitas afinidades musicais e passaram a ficar horas ao telefone conversando sobre o assunto (era o Renato quem costumava ligar). O que os aproximou foi a admirao pelos Young Marble Giants, que lanaram apenas um disco, o Colossal youth (1980). Outra banda de que eles gostavam erao Gang of Four. O gosto musical, acho que para todos ns naquela poca, era muito relevante na hora de fazer amizades. Por essas e outras, ela manteve o convitepara a gente tocar no Napalm, mesmo com as dificuldades impostas pelo Renato. Oproblema era que o convite foi para dois shows, em dois dias consecutivos, e a datado segundo batia com a de uma apresentao que faramos novamente no Circo Voador, que era a vitrine desse rock emergente. O Renato pensou em resolver a questoda coincidncia de datas da seguinte maneira: faramos a primeira noite em So Paulo e, ainda de madrugada, fugiramos para o Rio, sem falar nada com ningum. Masacabamos ficando em Sampa para o show do dia 21, entre outros motivos, porque olance no Circo Voador no valia muito a pena - o convite feito pela Maria Ju erapara que participssemos de um evento com diversos artistas naquele dia. Com a mai

    or naturalidade, o Renato chegou a revelar sua inteno original Fernanda; conformedisse o nosso vocalista, a ideia da fuga no se concretizou porque seria sacanagem com ela. No dia da nossa estreia no Napalm, chegamos mais cedo para passar o som, e eu fui tomar uma Coca-Cola no bar em frente. Eu estava com uma cala do Exrcito e uma camisa social azul meio rasgada, com a inscrio "Capital Inicial", porque a turma de Braslia costumava vestir camisas com o nome das bandas da cidade. Quandoentrei no bar, o ambiente estava tomado por punks, que imediatamente se virarame me encararam. Quando eu vi o primeiro cara, um nego, eu o reconheci: era o Clemente,dos Inocentes. Falei para ele: "Cara, a minha banda vai tocar ali no Napalm, tem uns ingressos aqui, se quiser pinta l." Era a primeira vez que eu falava com ele

    ,que foi muito receptivo. De volta ao Napalm, quando passvamos o som, comeou a rolar uma reunio, nanossa frente, com os representantes das bandas que costumavam tocar l - Mercenrias,Voluntrios da Ptria, Ira!, Azul 29, etc. Eram umas oito pessoas discutindo com o dono do local, o Ricardo Lobo, que filmava em VHS todos os grupos que se apresentavamnaquele palco. E eles estavam l pleiteando justamente que fossem pagos para serem filmados. A Sandra, baixista das Mercenrias, falou: "O cara est nos filmandoe no nos paga nada por isso; estamos falando para ele que no tocamos mais aqui senos filmarem!" Ns, da Legio, perguntamos: "Vamos tocar aqui hoje. Ento, seno pagar, no pode filmar. isso?" Algum respondeu: " isso mesmo. o que a gente est de

    idindo aqui, agora!" Naquele momento, resolvemos tomar parte da nossacategoria. Na hora em que subimos no palco para tocar, l estava o Ricardo, com otrip dele, pronto para filmar. Ns trs nos olhamos, sem saber exatamente o quefazer, e o Bonf falou: "Deixa comigo!" Ele saiu da bateria, cutucou o Ricardo e falou: "No filma. Se filmar, a gente no toca!" O cara recolheu tudo e fizemoso show - por causa disso, todo mundo que passou pelo Napalm tem uma filmagem, menos a Legio... A verdade que o pblico da casa foi hostil conosco. Enquanto tocvamos, havia em frente ao palco uns punks virados de costas; e a plateia, no geral, formada

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    26/120

    por umas trinta pessoas (ou nem isso), parecia no estar gostando. Houve at mesmo um cara que logo comeou a gritar, com aquele sotaque paulistano carregado: "Maisforte, filho de general, mais forte!" Que situao... No satisfeitos, ainda roubaramo meu casaco! Mas fomos at o fim e fizemos todo o show. O melhor dessa noite,sem dvida, foi ter conhecido a Fernanda. Na madrugada, eu fui para a casa dela enos apaixonamos. Totalmente encantado por ela, eu retornava sempre que podia aSo Paulo para v-la. Em dezembro de 1983, estivemos novamente na cidade, dessa vezno Rose Bom Bom (onde a Fernanda era programadora), na Rua Oscar Freire, um dasmais chiques dos Jardins. Nessa poca, ns ganhvamos um cach mnimo, prximo do que hoje seriam uns trezentos reais, para dividir por ns trs - logo, s viajvamosde nibus. No fim do ano fomos surpreendidos com a ligao do Jorge Davidson, diretorartstico da EMI-Odeon. O Herbert tinha dado a ele uma fita cassete com umasmsicas do Renato. O Jorge ligou para o nosso vocalista e disse: "Venham fazer uma demo aqui na EMI." Ns seramos a primeira banda de Braslia a pisar em uma gravadora do Sudeste. O Renato estava eufrico e foi ele mesmo quem chamou a Fernanda para ser a nossa empresria. Em dezembro, todos ns fomos para o Rio. Foi um vero cheiode expectativas. A EMI pagou a nossa passagem de avio e tambm a nossa hospedagem no HotelAstoria, na Repblica do Peru, em Copacabana. Ficamos os trs em um mesmo quarto.A turma d'Os Paralamas fez a intermediao com a gravadora, que queria uma demo, com duas ou trs msicas da Legio. A EMI designou o Marcelo Sussekind - guitarristado Herva Doce e produtor do primeiro disco d'Os Paralamas - para nos produzir e

    gostamos dessa notcia. Vnhamos de um estdio minsculo de Braslia, com uma mesade quatro canais e, de repente, camos ali naquele paraso. Estvamos agora nos estdios de uma gravadora com muita histria, com dimenso nacional e internacional.Alm dessa estrutura enorme, a EMI era a gravadora dos Beatles: eu (f deles desde criana) e o Renato (um beatlemanaco febril) ficamos especialmente empolgados.Mas o Bonf tambm estava superanimado, mesmo sem curtir o quarteto de Liverpool. Entramos os trs nos estdios da EMI como se estivssemos entrando na Disneylndia.Eu tinha 18 anos e tocava punk rock. O meu nico pedal de guitarra era um MXR Distortion +, porm agora eu tinha acesso a toda uma aparelhagem de primeira. O amplificadorde guitarra era um Fender Twin, e eu utilizei a guitarra que havia comprado na Frana, a Ibanez Roadstar 2. Permanecemos uma semana no estdio. Recebamos dinheiro para a alimentao e amo

    s de nibus para o estdio. A EMI ficava na Mena Barreto, 151, em Botafogo.L comamos sanduches e s vezes pedamos pizza no Bella Blu ou na Cantina Calabresa. Ficamos l no estdio 2 fazendo o que sabamos fazer. Um dia, o Hermano apareceupor l com o Lulu Santos, um dos grandes guitarristas brasileiros, de quem eu j era f. E parece que o Lulu, ouvindo aquela zoeira no estdio, disse ao Hermano:"O rock morreu aqui." Sabe-se l o que ele quis dizer com isso. O Herbert foi outro que pintou no estdio, e at levou um som conosco. Gravamos "Gerao Coca-Cola", "Ainda cedo" e, possivelmente, mais outra. Oproblema que estvamos recebendo uma resposta negativa da diretoria da gravadora,sem mais detalhes. A verso de "Gerao Coca-Cola" que foi enviada aos executivos da EMI voltou com um monossilbico "no". O Sussekind falava: "No isso o queeles querem." "Mas o que eles querem?", retrucvamos. "No sei, mas no isso", respondia o nosso produtor. Lembro que uma vez chegamos noite ao quarto, esbravejando:

    "O que esses caras querem? Ns somos um trio criado no punk rock, so esses trs acordes aqui, a nossa msica assim, e isso que sabemos e gostamos de fazer.Como arranjar isso de outra forma?" Ento o Renato falou: "Vamos fazer uma verso de 'Gerao' tipo 'All cats are grey', do The Cure. " uma ideia, vamos tentar!"Era para tirar um pouco da agressividade do arranjo, em favor de uma sonoridademais cool. E o que tnhamos de referncia em termos de msica mais calma e climticaera aquela trilogia do The Cure: Seventeen Seconds (1980), Faith (1981) e Pornography (1982). Modificamos o arranjo de "Gerao Coca-Cola", mas novamente no rolou. Pensando bem, ela deve ter ficado um lixo. O Sussekind percebeu que estava perdendo

  • 7/23/2019 Dado Villa-Lobos - Memrias de Um Legionrio

    27/120

    tempo e falou ao Jorge: "Olha, esses caras a no vo fazer o que voc est querendo, e eu vou embora." E foi mesmo. Mas o Jorge acreditava muito na Legio e, imediatamente,arrumou outro produtor, o Rick Ferreira, um cara superastral, que havia produzido o Raul Seixas e tambm tocava guitarra com ele. O Rick tem uma pegada bem countryrock e tambm especialista em lap steel guitar. Mas acabou rolando um conflito degeraes entre ele e a banda, ou certo desencontro de referncias musicais. Nslamentvamos o fato de que o Rick no conhecesse nem o U2, enquanto ele achava que no tocvamos bem o suficiente. Passvamos horas gravando no estdio, chegandos 15h e saindo s 3h. Gravvamos uma demo e depois amos dormir no hotel. A certa altura, fomos chamados para uma conversa com o Jorge, que falou: "O que eu quero de vocs isso aqui." Ento ele pegou um disco do Bob Seger ebotou para tocar. Era aquele estilo country rock, e isso explicava a escolha doRick para nos produzir. O problema que nenhuma das nossas msicas cabia naqueleformato. Ouvimos aquilo, olhamos um para o outro e pensamos: "Fodeu." Eu, alis, nunca tinha ouvido falar no Seger. Por fim, o Rick tambm desistiu de ns. Maistarde, ficaramos sabendo que essa falta de sintonia entre ns e a direo da gravadorafoi um grande mal-entendido. O Herbert tinha levado para o Jorge a fita cassetedo Trovador Solitrio, em que o Renato mostra o seu repertrio ("Faroeste caboclo","Eduardo e Mnica", etc.) no esquema voz e violo. Isso ajuda a entender o porqude os diretores da EMI terem exigido um trabalho na linha do country rock. Elestinham aquela demo do Renato como referncia, e por isso se assustaram com as msicas

    mais eltricas, pulsantes e sujas que lhes oferecemos. Com as sucessivas recusas dos executivos da gravadora, ficamos sem alternativa e decidimos voltar a Braslia. E foi justamente nesse momento de incerteza que surgiu uma figura que nos acompanharia por muitos anos, o Mayrton Bahia, gerente de cast da gravadora (ou gerente de produo, como se dizia na poca). Ele um cara de Niteri, com uma formao mais tcnica, porm com muita sensibilidade musical.Tinha produzido muita gente boa, como Elis Regina, Djavan e Ivan Lins;ou seja, todo um pessoal que havia passado pela EMI na segunda metade dos anos 1970 e incio dos 1980. O Mayrton tinha bastante prestgio e, no por acaso, haviasido escalado para produzir o terceiro disco da Blitz (a ser lanado em 1985), que era campe de vendas do rock brasileiro. i