das crianças, do teatro, do não compreender- hans thies lehmann

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 Hans-Thies Lehmann, Das Crianças, do Teatro, do Não-compreender. R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011. Disponível em http://www.seer.ufrgs.br/presenca 268 ISSN 2237-2660 Das Crianças, do Teatro, do Não-Compreender Hans-Thies Lehmann Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main - Alemanha  RESUMO    Das Crianças, do Teatro, do Não-Compreender 1     Este texto conjuga reflexões teórico-teatrais que vão desde Aristóteles até o teatro pós-dramático, passando por Brecht e Schiller. Trata-se aqui de preocupações pedagógicas acerca do sentido e dos rumos que pode e deve tomar o teatro infantojuvenil atual. Discute-se o teatro infantojuvenil a partir das transformações que a obra teatral sofreu em sua estética e em seu próprio conceito ao longo do século XX. Propõe-se o abandono da pretensa função didática que havia sido atribuída tradicionalmente ao teatro infantojuvenil. Palavras-chave : Anagnorisis. Educação. Pedagogia. Teatro. Teatro Infantojuvenil. ABSTRACT    On Children, on Theatre, on Non- Understanding    This text combines theoretical-theatrical reflections ranging from Aristotle to post-dramatic theatre, including Brecht and Schiller. It deals with the pedagogical concerns about the meaning and paths that current youth and children’s theatre could and should take. It also discusses this kind of theatre, from the standpoint of the transformations  that theatrical works undertook in their aesthetics and in their very concept over the twentieth century. We propose to abandon the alleged educational function that has traditionally been attributed to children and youth theatre. Keywords : Anagnorisis. Education. Pedagogy. Theatre. Children and Youth Theatre.

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Das Crianças, Do Teatro, Do Não Compreender- Hans Thies Lehmann

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  • Hans-Thies Lehmann, Das Crianas, do Teatro, do No-compreender.

    R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011.

    Disponvel em http://www.seer.ufrgs.br/presenca 268

    ISSN 2237-2660

    Das Crianas, do Teatro,

    do No-Compreender

    Hans-Thies Lehmann Johann Wolfgang Goethe-Universitt Frankfurt am Main - Alemanha

    RESUMO Das Crianas, do Teatro, do No-Compreender1 Este texto conjuga reflexes terico-teatrais que vo desde

    Aristteles at o teatro ps-dramtico, passando por Brecht e

    Schiller. Trata-se aqui de preocupaes pedaggicas acerca do

    sentido e dos rumos que pode e deve tomar o teatro infantojuvenil

    atual. Discute-se o teatro infantojuvenil a partir das transformaes

    que a obra teatral sofreu em sua esttica e em seu prprio conceito

    ao longo do sculo XX. Prope-se o abandono da pretensa funo

    didtica que havia sido atribuda tradicionalmente ao teatro

    infantojuvenil.

    Palavras-chave: Anagnorisis. Educao. Pedagogia. Teatro. Teatro

    Infantojuvenil.

    ABSTRACT On Children, on Theatre, on Non-Understanding This text combines theoretical-theatrical reflections ranging from Aristotle to post-dramatic theatre,

    including Brecht and Schiller. It deals with the pedagogical

    concerns about the meaning and paths that current youth and

    childrens theatre could and should take. It also discusses this kind of theatre, from the standpoint of the transformations that theatrical

    works undertook in their aesthetics and in their very concept over

    the twentieth century. We propose to abandon the alleged

    educational function that has traditionally been attributed to

    children and youth theatre.

    Keywords: Anagnorisis. Education. Pedagogy. Theatre. Children

    and Youth Theatre.

  • Hans-Thies Lehmann, Das Crianas, do Teatro, do No-compreender.

    R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011.

    Disponvel em http://www.seer.ufrgs.br/presenca 269

    RSUM Des Enfants, du Thtre, de la Non-Comprhension Ce texte prsente une rflexion thorico-thtrale allant dAristote jusquau thtre post-dramatique, en passant par Brecht et Schiller. Il traite des questions pdagogiques

    qui sarticulent autour du sens et des directions que peut et doit prendre actuellement le thtre jeune public. Celui-ci est abord

    partir des transformations subies par luvre thtrale, la fois dans son esthtique et dans son concept mme, tout au long du

    XXme

    sicle. Lauteur propose ainsi dabandonner la prtendue fonction didactique traditionnellement attribue au thtre jeune

    public.

    Mots-cls: Anagnorse. ducation. Pdagogie. Thtre. Thtre

    Jeune Public.

    1

    As correspondncias entre a Esttica e a Pedagogia

    se configuram de maneira nova, pois, j h algum tempo,

    vises da Pedagogia e tendncias da Arte do Teatro tm

    apresentado pontos de contato absolutamente evidentes.

    No resta dvida: trata-se de um fenmeno

    especificamente alemo, entre outros aspectos. clssica,

    entre ns, a especial proximidade do teatro com o

    aprendizado, a instruo, a Pedagogia a educao no sentido mais amplo da palavra. A poca clssica do

    teatro, de Lessing a Kleist, fervilha de interferncias entre

    a educao, a arte e o teatro. Desde a educao do gnero

    humano de Lessing, passando pela educao esttica de

    Schiller at a obsesso pedaggica de Kleist. Desde cedo,

    nos pases de lngua alem, o teatro constituiu-se muito

    mais sob o signo da burguesia letrada, do teatro escolar

    jesutico e protestante e da educao dos prncipes do que

    como uma forma de entretenimento da aristocracia

    orientado para a forma e a elegncia. Essa aristocracia

    no se desenvolveu na Alemanha como em outros pases,

    pelas razes histricas conhecidas.

    Eu gostaria, por isso, de colocar as conexes mais

    recentes entre Esttica e Pedagogia em uma moldura mais

    ampla. No se trata, neste caso, daquela mudana de

    perspectiva na concepo do teatro infantil, que trouxe

    consigo um deslocamento de nfase, afastando-se da

    concepo hegemnica de um Teatro para as Crianas

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    R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011.

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    para um Teatro com as Crianas, ou mesmo chegando at

    um Teatro das Crianas, a que Karola Wenzel (2006) se

    refere, por exemplo. Se o teatro for pensado seriamente

    como arena do outro, ento esses desenvolvimentos da

    Pedagogia Teatral vo ao encontro, evidentemente,

    daqueles da Teoria Teatral e oferecem a chance, partindo

    do lado da Pedagogia Teatral, de aprofundar linhas de

    pensamentos. Por sua vez, partindo do ponto de vista da

    teoria e da prxis de um teatro ps-dramtico, e

    semelhante performance, seus novos desenvolvimentos

    podem ser fecundados por conceitos pedaggicos

    transformados.

    Salta aos olhos o fato de que ocorre um

    deslocamento no teatro, o qual relativiza fortemente a

    categoria tradicional da obra teatral, embora no a

    substitua (acrescente-se que, independentemente de sua

    temporalidade e perecibilidade, a obra teatral tambm

    pode ser entrevista na obra de encenao teatral). Essa

    relativizao se d sob o ponto de vista do processo, da

    performance, da situao e da comunicao. A obra, o

    texto, o drama, j no so mais os soberanos absolutos, e

    sim, doravante, participantes numa tessitura teatral

    tomada de um modo muito mais amplo, levando em

    considerao a totalidade dos eventos teatrais e no

    apenas o exibido.

    Se, por um lado, a categoria obra esteve

    intimamente vinculada a pretenses estticas, com a

    dimenso do processo entra em cena tudo aquilo que no

    mensurvel de acordo com as categorias da perfeio

    formal, esttica ou artstica. Pensemos nas encenaes do

    coletivo Rimini Protokoll. Elas so, com certeza,

    esteticamente muito bem feitas. Tais qualidades cnicas,

    entretanto, no so aquilo que realmente constitui a

    atrao especial que elas vm exercendo h anos.

    Qualquer um percebe que, nesse teatro, a arte do arranjo,

    da representao, da dramaturgia est subordinada a

    outros aspectos: o encontro com certas pessoas reais (os

    especialistas do cotidiano), o tomar conhecimento de

    aspectos estranhos da vida cotidiana. Esse teatro extrai

    seu valor, obviamente, de alguma outra coisa, que no da

    escalao da forma, o que havia sido considerado

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    tradicionalmente como sendo o critrio do esttico. A

    forma incinera o contedo era o que vigorava ento. No o caso nesse teatro.

    A ateno concentrada sobre o carter processual

    do teatro e da situao do encontro vital no momento da

    encenao pblica sempre foi mais pronunciada, por

    razes bvias, entre os pedagogos e todos aqueles que

    lidam com o teatro infantil e juvenil. Entretanto,

    necessrio acrescentar que, nos anos 1970, uma fase sob

    vrios aspectos bastante produtiva, tambm surgiu a

    tendncia de fugir ao alvo chamado arte, reconhecido

    como problemtico no teatro infantil. Precipitadamente

    tentou-se fugir para um terreno novo e supostamente mais

    seguro e, em vez daquela, passou-se a entronizar a

    poltica. Essa tendncia j foi superada, na minha opinio.

    com satisfao que o constato, e no porque gostaria de

    ver a poltica fora do teatro, da Pedagogia e do teatro

    infantil e juvenil, mas exatamente pelo motivo contrrio:

    por que muita coisa depende de se tomar o ponto de vista

    adequado sobre a poltica nesse campo. Walter Benjamin

    j havia formulado essa questo de modo radical, ao dizer

    que a poltica s alcana a criana sob a forma de frases

    vazias. Uma Pedagogia consciente de sua

    responsabilidade poltico-social no pode, portanto, e

    exatamente por esse motivo, comprometer-se com um

    agir pedaggico ou artstico que encare a arte e a

    educao como um simples instrumento para a assim

    chamada tomada de conscincia poltica ou para a

    conduo a comportamentos socialmente desejveis.

    Justamente esses no podem ser ensinados de modo

    algum, e principalmente no atravs de peas de teatro, e

    sim demonstrados pelo exemplo. E cada passo adicional

    na direo das boas intenes polticas acaba

    desencaminhando. Tambm aqui o inferno est cheio de

    boas intenes. S existe um princpio para a

    representao teatral: aceitar os riscos. Viver sem a

    certeza de saber se a representao e a

    autorrepresentao, conduziro, no final, para o bem ou

    para o mal (Dreysse; Malzacher, 2007).

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    Em vez disso, o interesse primordial deve recair

    sobre a representao teatral em si, em suas qualidades

    formadoras e enriquecedoras, em seu valor como

    atividade comunitria, como um espao em que, de modo

    complexo, elementos essenciais da experincia infantil do

    mundo e tambm da realidade dos adultos encontrem sua

    expresso. Assim reaparece, logicamente, a preocupao

    com a perfeio esttica da obra teatral diante das amplas

    possibilidades pedaggicas que o jogo do trabalho teatral

    como tal descortina. Podemos lanar mo de Benjamin

    outra vez: a representao da obra em si , para ele,

    somente a pausa da criao da atividade teatral. Seu

    ncleo no se constitui de nada aprendido ou apreensvel,

    e sim do intercmbio de gestos, de influncias recprocas,

    da ao-e-reao ldicas, do mostrar(-se) das rivalidades

    e simpatias, da inervao corprea das ideias. As teses de

    Kristin Westphal, apoiadas em Merleau-Ponty, situam-se

    muito prximas a essas reflexes. Segundo ela,

    [...] a criana no pensa a partir de um corpo fsico, e sim de

    um corpo fenomnico. Um corpo, portanto, como se fosse

    transmitido numa experincia ntima, o corpo como sistema

    de instrumentos que permitem contato com o mundo

    exterior. [] Espaos do reconhecimento ocorrem na exposio aos processos de socializao, natureza e

    cultura (Westphal, 2009, p. 171-184).

    Trata-se do deixar surgir das fantasias e dos ideais,

    mesmo que eles sejam to ilegtimos ou indesejveis do

    ponto de vista moral-pedaggico. O fascnio que o teatro

    exerce no apenas esttico. Ele tem a ver com situao,

    acontecimento, revelao e, se essa grandiosa palavra nos

    for permitida com o humano. Em vez de discutir uma hierarquia entre a arte e a

    pedagogia, trata-se de juntar a constelao das novas

    ideias acerca da Pedagogia e do teatro infantil com

    consideraes fundamentais da Teoria Teatral. Descobrir-

    se-ia, ento, que o conhecido conflito entre a Pedagogia e

    a arte reforado, alm do mais, por um conceito de

    teatro esttica e teoricamente restritivo, o qual, se

    examinado de perto, aplica-se, quando muito, apenas a

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    uma minscula frao da vida teatral das diversas culturas

    e naes. Estou falando de um modelo de teatro

    dramtico dominado pelo literrio, a ser imitado tambm

    por crianas e adolescentes, que na realidade vigorou

    somente durante dois sculos no teatro europeu. To logo,

    porm, o teatro torne a conceber seu prprio contexto

    natural, a saber, o contexto da festa, do convvio social,

    do jogo de mltiplas formas de um lado, e, de outro, da

    apresentao por meio da representao e da colocao

    em cena de acontecimentos essenciais sob a forma do

    ritual e da performance, desaparece o problema do teatro

    puramente esttico-artstico de cunho dramtico.

    3

    Gostaria, a seguir, de esboar alguns aspectos desse

    problema. Entre o teatro e a instruo, o teatro e o saber,

    o teatro e a compreenso existiu, desde a Antiguidade,

    uma estreita conexo. A partir de uma concepo mais

    restrita dessa constelao formou-se o conceito de teatro,

    de inspirao fundamentalmente aristotlica, que muitos,

    ainda hoje, pressupem espontaneamente ao falar de

    teatro. Eles acreditam que o cumprimento de certas

    exigncias ou a correspondncia a certos conceitos como

    coerncia intelectual, consistncia, convergncia entre

    forma e contedo, ideia e assim por diante, seja natural e

    bvio, como se jazessem desde sempre no conceito do

    Esttico. Na realidade, entretanto, essas exigncias so

    bastante especiais, pois o teatro pode ser construdo, feito

    e pensado de uma maneira completamente diferente.

    Assim, a prtica artstica pode, hoje em dia, partir das

    intuies dos atores de momento em momento, de tal

    modo que a coerncia intelectual, o sentido, portanto, no

    aparea, ou surja apenas por acaso como efeito da prxis.

    Um coregrafo como William Forsythe s vezes afirma,

    surpreendido, depois de algumas apresentaes: Agora

    sei o que essa encenao significa. Coerncia e saber

    deixaram de ser categorias essenciais do valor de uma

    prtica esttica.

    Como se d, exatamente, a relao entre teatro e

    saber sob o ponto de vista aristotlico? A Potica

    apresenta-nos logo de sada vrios conceitos que

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    estabelecem o belo do teatro como um parafenmeno do

    lgico. O prazer que o belo provoca, afirma Aristteles,

    advm, no fim das contas, de um aprendizado. A isso se

    denomina mathesis. Com o que j estaria descartada de

    antemo a hiptese de que o belo pudesse ser um encanto

    autnomo, que no ocorresse mais ou menos por analogia

    direta com o lgico, e fosse uma seja l de que tipo dimenso prpria e autnoma da experincia. No, o belo

    vive e extrai sua seiva do lgico, diz Aristteles. Ele

    mesmo j havia tentado investigar o fundamento do

    prazer que sentimos na gravura da vida que vemos no

    teatro. Sua resposta: trata-se do prazer de poder

    identificar uma coisa como o duplo de outra. Eis a,

    novamente, um processo lgico, que apoia o prazer no

    belo.

    Aristteles introduz a categoria da anagnorisis, o

    re-conhecimento. Ao contrrio da catarse, que j foi

    discutida ad nauseam, essa outra categoria da Potica de

    Aristteles foi estranhamente negligenciada. No que diz

    respeito ao mito, isto , trama da tragdia, o qual

    provm da Systasis Pragmaton (a conjuno dos enredos

    que o autor dispe), ele distingue trs elementos:

    peripcia; pathos, o sofrimento extremo; e, a anagnorisis,

    o reconhecimento. A peripcia, escreve Aristteles,

    [...] a reviravolta (metbole), a transformao daquilo que

    deve ser alcanado em seu contrrio. A anagnorisis

    (reconhecimento) , como o termo j sugere, uma

    reviravolta, uma passagem da ignorncia para o

    conhecimento, tendo por consequncia o surgimento da

    amizade ou da inimizade, conforme os envolvidos estejam

    destinados infelicidade ou ao infortnio (Aristteles,

    1982, p. 35).

    As anagnorisis so classificadas em diversos tipos:

    por exemplo, conforme objetos ou pessoas sejam

    reconhecidos, conforme a anagnorisis leve ou no o

    enredo a um final feliz e assim por diante. O

    reconhecimento de uma pessoa o que realmente

    interessa a Aristteles. Tal reconhecimento gera, escreve

    ele, um alto grau de eleos e phobos (lamentao e

    estremecimento diante do horror, medo e compaixo) o

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    que constitui para ele, como se sabe, o objetivo da

    tragdia. O ideal uma anagnorisis que coincida com a

    peripcia como no dipo Rei, seu modelo prototpico tantas vezes citado.

    A anagnorisis um reconhecimento. Esse

    reconhecimento, por outro lado, no gera apenas um novo

    conhecimento, e sim, simultaneamente, uma comoo no

    espectador. Entretanto, dois coraes, no mnimo,

    habitam o peito do autor da Potica. Um deles almeja,

    como foi sugerido, a logificao. A tragdia (e o prprio

    Belo, de mais a mais) pensada como um evento

    paralgico, sua construo concebida como um

    processo de tipo lgico, o tema da compreenso trazido

    para o centro do foco, ns devemos aprender no teatro.

    At mesmo o prazer do ser humano na prpria mmesis,

    na imitao, explicado com o verbo syllogizesthai ou seja, um processo altamente lgico-terico: [...] as pessoas se alegram, por isso, com a contemplao das

    imagens, porque a elas aprendem e procuram deduzir o

    que seja cada uma delas [...] (Aristteles, 1982, p. 11). Encaixa-se aqui tambm algo mais que a curiosa tese da

    Potica, segundo a qual o teatro seria mais adequado para

    os que tm preguia de pensar, porque a grande massa

    das pessoas no se diverte aprendendo (Aristteles,

    1982). De acordo com essa lgica, os filsofos no

    precisam do teatro ou de imagens. A tragdia como se

    fosse um xarope do apercebimento ao qual foi

    acrescentado sabor de morango para faz-lo palatvel s

    massas. O pensador, ao contrrio, no necessita desse

    aditivo. E do teatro, ento, menos ainda: a catarse tem

    lugar, segundo Aristteles, j na simples leitura da

    tragdia o que muitos dos que lanam mo da categoria da catarse costumam esquecer alegremente, como se

    algum soubesse exatamente o que que se entende por

    esse conceito. O logos do texto suficiente para a catarse

    e, no mximo a voz, quase incorprea, acrescenta-se a

    isso. O prprio teatro concreto, na sua visibilidade,

    considerado por Aristteles como um ingrediente mais ou

    menos simples e, na verdade, suprfluo. A essa extrema

    logificao, a qual prenhe de consequncias, submete-se

    tambm, primeira vista, a concepo da anagnorisis,

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    uma vez que ela uma compreenso do heri. Com isso,

    tambm o heri trgico, pelo menos em certos casos, se

    aproxima do espectador, o qual deve chegar, igualmente,

    a uma mathesis um aprendizado daquilo que no se sabia ou que no estava claro. Para Aristteles, a

    compreenso mathesis o efeito fundamental que a tragdia deve buscar exercer sobre o espectador. Mas eis

    a o segundo corao, o exato e no menos admirvel

    sentido do logocentrista Aristteles para o efeito

    emocional da tragdia. A catarse j , em si mesma, um

    processo altamente emocional, um remdio forte por

    assim dizer: lamentao violenta, frmito assustado e sua

    purificao. A tragdia age como um frmaco, um

    veneno, que desencadeia um violento sentimento febril, o

    qual, entretanto, correspondendo ao duplo sentido do

    termo grego, torna-se assim um remdio. desnecessrio

    sublinhar que essa apenas uma dimenso da catarse e

    no esgota todo o alcance desse complexo conceito. A

    servio da descrio do efeito dessa comoo, lanamos

    mo tambm do conceito da anagnorisis. Se num

    primeiro momento ela parece relacionar-se somente

    dramaturgia e almejar um processo cognitivo, de todo o

    modo, qualquer um de ns pode confirmar, partindo de

    suas prprias lembranas do teatro, daquilo que

    Aristteles formulou com preciso: o fato de que os

    momentos de (re-)conhecimento esto entre os mais

    poderosamente emocionais do evento teatral e num grau de intensidade infinitamente maior do que durante a

    leitura. Pois aqui o vivenciar espao-temporal do teatro

    tem um papel preponderante na minha posio de

    testemunha, que me conecta ao heri na adoo

    identificadora de sua compreenso (Lehmann, 2004).

    Sim, s tu, Orestes! Deus! Eu mesmo, dipo, fui

    quem matou o rei! Anagnorisis significa: uma reviravolta

    repentina, um giro que funciona como uma mudana

    radical na iluminao. De uma nica tacada realizada

    uma identificao e a situao dramtica como um todo

    se revela de modo novo. Aquilo que havia sido registrado

    inconscientemente, sem concatenao, revela-se como

    concatenao, como a at ento encoberta e ora revelada

    lgica dos acontecimentos. S dessa maneira ela se revela

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    como forma, como cena. como se, ao elaborar essa

    categoria, Aristteles, o inimigo do teatro, estivesse

    falando, indiretamente, a partir de uma experincia com o

    teatro. Ou essa experincia, a partir dele. Aquilo que

    significa dor para o heri, e que desperta minha

    compaixo, torna-se para mim, como espectador, uma

    forma de apercebimento do todo que, bem verdade,

    provoca lgrimas, mas tambm o desejo pelo

    apercebimento, compaixo com o heri, terror, phobos

    por seu destino, tudo isso unido e superposto de modo

    complexo. A dualidade do desejo e da compreenso

    permanece preservada. No tm razo, portanto, os

    intrpretes que pretendem colocar a Potica ou de um

    lado ou do outro. A experincia do teatro no reduzida

    por seu primeiro poetlogo a um conhecimento, a uma

    compreenso, a um logos, muito embora ele tenha

    almejado uma concepo paralgica da construo

    esttica. Anagnorisis no significa um conhecimento

    adquirido de uma vez por todas, a palavra aplica-se muito

    antes ao prprio instante de iluminao carregada de

    emoo que se d como se fosse um relmpago (a

    comparao com o relmpago remete aqui ao Pseudo-

    Longino, que em Peri Hypsous compara a dimenso

    performativa da retrica (no sentido positivamente

    moderno da palavra) a um raio. A arte do orador, mais do

    que convencer o ouvinte, domina-o, atingindo-o como um

    raio, ou seja, faz alguma coisa com ele. O performativo j

    constitui o ncleo da antiga retrica).

    Gostaria, agora, de arriscar a tese de que a

    experincia da anagnorisis o verdadeiro momento

    teatral, o corao da experincia teatral atravs do

    espectador, no mesmo sentido em que Aristteles

    considera o mito como sendo a alma da tragdia. A

    anagnorisis pode ser entendida como o nome certeiro de

    um motivo que governa, de modo subjacente, todos os

    aspectos da experincia do espectador, de uma peculiar

    soldadura da compreenso com a emoo numa

    experincia que exibe, estruturalmente, o carter da

    subitaneidade (Karlheinz Bohrer). Mas isso, somente sob

    uma condio: a de que apliquemos uma interpolao e

    percebamos, no texto de Aristteles, uma constatao que

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    R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011.

    Disponvel em http://www.seer.ufrgs.br/presenca 278

    ele no assume explicitamente, mas que se pode extrair

    adequadamente da Potica, e que talvez devamos extrair.

    Retornemos ao modelo do dipo, situao da

    compreenso. Hurra! Os fatos vm tona! Mas o que

    aconteceu realmente, afinal? Sim, dipo compreende. Ele

    percebe, compreende agora, aquilo que no poderia ter

    compreendido antes at porque ele no queria compreend-lo antes. Porm, aquilo que ele ora

    compreende, no est, no fundo, apenas na concatenao

    dos acontecimentos, mas tambm est situado,

    simultaneamente, para alm da inteligibilidade dessa

    concatenao. Ele compreende, sobretudo, isto: que no

    compreendera. E os espectadores compreendem, junto

    com ele, que sempre se tem os signos diante dos olhos,

    mas que no possvel decodific-los. Por conta da ironia

    trgica, os espectadores sempre sabem mais do contexto

    que o heri. Assim eles compreendem, paralelamente,

    que a incompreenso no denota um caos absurdo, mas

    simplesmente uma outra lgica, necessariamente ilegvel

    do ponto de vista dos seres humanos e seu tempo. O

    momento da anagnorisis significa, portanto: compreender

    o no-compreender. Significa tomar conscincia, como

    num choque, de que aquilo que os deuses, o destino, o

    acaso, inflingem no est no escuro, mas iluminado pela

    claridade do dia, est a, diante dos olhos, muito embora

    ilegvel. Como o orculo, que sempre esteve a e que

    revelar posteriormente seu verdadeiro significado

    mortfero. Assim como se pode dizer que o amanh

    sempre esteve a, suas condies e germes j existem

    como potencialidades, as quais ns s podemos

    decodificar retrospectivamente. A anagnorisis , no

    sentido desse enclausuramento da compreenso que leva

    no-compreenso, subitaneidade (para utilizar um

    conceito moderno), um apercebimento que rompe a

    compreenso. Alm disso, poder-se-ia lanar a tese de

    que na Potica a compaixo (eleos) aplica-se somente ao

    ser humano, enquanto que o medo (phobos) que nos

    assalta em presena da anagnorisis, refere-se quilo que

    est oculto.

    Na Potica, trata-se da dramaturgia, do contedo

    da tragdia e Aristteles, no entanto, est pensando a

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    partir do efeito. E, assim, pode-se concluir que na

    verdade o espectador quem, como coexecutor da ao, na

    identificao com as dramatis personae, vive o momento

    da anagnorisis como pice e ncleo de sua experincia na

    tragdia: a iluminao do personagem no palco sua

    iluminao. A Potica torna-se, assim, legvel atravs de

    uma teoria da experincia que est implcita. Como tal,

    porm e isto constituiria o segundo passo ela tambm tem seu valor para alm de seu lcus histrico. A

    experincia chocante da compreenso da no-

    compreenso a provao pela qual o espectador passa, e

    no apenas no teatro da antiguidade.

    Haveria que descrever, a esta altura, o campo

    completo da tradio do teatro dramtico de modo a

    responder questo: se a anagnorisis, o choque entre o

    compreender e o no-compreender, retorna, como isso se

    d e quais so as variaes? Em vez disso, pretendo dar

    um salto de volta ao presente. No mnimo a partir da

    viso radical de Artaud de um teatro neocatrtico, no qual

    a experincia de certa crueldade provoca uma ruptura das

    certezas do logos e da doxa, todo o teatro que pretenda

    ser simples teatro da compreenso parecer banal. em

    performances e em variadas formas de ao, em prticas

    de encenao radicais e em formas do teatro ps-

    dramtico que vamos buscar, hoje em dia, aquilo que

    poderamos considerar como anagnorisis, a favor e contra

    Aristteles. Simultaneamente surge a pergunta acerca de

    como se pode determinar concretamente o esttico do

    performativo que seja capaz de acender a centelha do

    evento verdadeiramente performativo a partir da estrutura

    virtual dos acontecimentos do teatro. De acordo com

    Bernhard Waldenfels, numa discusso que teve lugar em

    Frankfurt:

    Poder-se-ia imaginar um acontecimento performativo que

    tenha lugar sem que nada acontea. Um discurso no

    parlamento, por exemplo. Tudo pode acontecer de acordo

    com o planejado, algum toma a palavra em seu turno, sua

    fala limita-se ao tempo estipulado (etc.). Ainda assim, tem-

    se a impresso de que absolutamente nada aconteceu. Ser

    que no faz parte da performatividade a referncia a alguma

    coisa, que uma coisa relevante seja trazida baila?

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    Waldenfels faz referncia a reflexes anlogas de

    Foucault, para ento perguntar:

    [...] ser que tambm no pertenceria teoria da

    performatividade a pergunta acerca daquilo que d peso

    performance e tambm ao teatro? O que faz com que a

    encenao de uma pea de teatro seja mais do que uma

    questo de tcnica de apresentao? [] Performance uma palavra bonita, ns fazemos teatro o tempo todo, mas

    tambm existem o teatro ruim e as comdias baratas.

    Pensar o teatro da anagnorisis de modo diferente e,

    sobretudo, escapar sujeio a uma categoria

    dramatrgica no pode significar simplesmente reintegr-

    lo numa classificao inespecfica como performativo ou

    performance. Aquilo que Waldenfels menciona alude,

    certamente, a um contedo que no arbitrrio. Uma vez

    que sabemos, a partir da Teoria Esttica, de que no se

    trata do contedo significativo em si mesmo, e que uma

    pintura pode ser magnfica mesmo que represente como no caso de Van Gogh uma simples cadeira ou um trigal, necessrio buscar aquilo que torna o performativo real

    no no contedo, mas em outro lugar. S sobra uma

    resposta para a pergunta acerca do que faz com que uma

    encenao seja mais do que uma mera questo de tcnica

    de apresentao: a profundidade e a qualidade da

    comunicao entre os atores e os espectadores que faz

    com que o drama suceda. Sob esta condio, a apreenso

    instantnea de algo que escapa ao entendimento pode

    ocorrer tanto numa performance como numa instalao,

    ou em processos teatrais de todos os tipos. E isso pode

    ocorrer sem o contexto narrativo de um enredo dramtico;

    ou esse mesmo contexto narrativo pode ser colocado em

    segundo ou terceiro plano. E aquilo que tentamos realizar

    pode chamar-se comunicao, festa, comunidade

    passageira ou outra coisa qualquer: no se trata, de modo

    algum, da transmisso de um conhecimento, e sim de um

    jogo de subitaneidades e apercebimentos, que no prximo

    segundo podem ser anulados e que assim constituem o

    teatro como uma realidade contnua.

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    4

    Enquanto, porm, o teatro contemporneo se

    distancia cada vez mais da linha dramtica atravs de

    processos de fragmentao, desconstruo e montagem,

    muito embora esteja em busca de novas formas de

    narrao, muitos seguem presos ideia de que o enredo

    explicativo ou esclarecedor seja necessrio, onde quer

    que se trate ou parea tratar-se de Pedagogia, ou seja,

    justamente no teatro infantil. Por isso no deixa de ser

    interessante perguntar pela conexo entre a superao do

    paradigma dramtico e a superao de uma concepo de

    teatro infantil como a apresentao doutrinria e

    educativa de uma pea de teatro.

    Poderia ser o caso de que ambos estivessem

    intimamente conectados? Por que razo nos emocionam

    obras como That Night Follows Day de Tim Etchell com

    dezesseis crianas flamengas de 8 a 14 anos um trabalho que est na tradio do Grupo Victoria, que j

    fez excelente teatro com crianas? Um trabalho no qual

    as crianas no so instadas a desempenhar papis mais

    ou menos bem acabados, mas no qual toda a nfase recaa

    no em sua presena como crianas, e sim como pessoas

    jovens com uma presena convincente, capaz de comover

    o pblico adulto, e assim realizar um tipo de comunicao

    que s possvel no teatro? Finalmente uma obra que se

    inserta perfeitamente na linha dos trabalhos do Forced

    Entertainment2, sempre e quando esse atua seguindo o

    princpio da frontalidade, ou seja, ao invs do domnio de

    uma realidade fictcia do palco, trata-se de exibir gestos,

    processos dinmicos e objetos a um pblico. Um trabalho

    como esse de Tim Etchell nos empolga, porque se trata de

    uma performance convincente, na qual as crianas no

    agem como atores, mas podem ser elas mesmas e, ainda assim, durante semanas de ensaios intensivos elas

    chegaram a aprender, por intermdio da preciso, da

    concentrao, do foco e da ateno, a agirem

    corretamente como performers e a comunicar. Uma coisa

    de relevncia entra em cena para diz-lo com Waldenfels: a relao dos adultos com as crianas e a

    percepo dessa relao. E a comunicao teatral

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    acontece porque esse contedo fornece, ao mesmo tempo,

    a estrutura formal bsica da apresentao. Assim tem

    lugar um reconhecimento, um apercebimento muitas

    vezes divertido ou mesmo chocante em uma relao que,

    na verdade, impossvel. possvel caracteriz-la, para

    alm do cmico e da jovialidade, como sendo quase

    trgica. Visto que as crianas no palco, cujos

    interlocutores somos apenas ns, na assistncia, falam de

    ns e para ns sobre uma realidade cotidiana que, de

    repente, torna-se impossvel, e verdadeiramente

    insustentvel. Reconhecemos chocados, tristes, cheios de

    compaixo, que potencialidades existem nessa

    comunicao entre adultos e crianas, e quo pouco ela

    realizada, apesar e talvez mesmo por causa da boa

    vontade. Ns experienciamos, compreendemos um no-

    compreender a anagnorisis. Eu entendo aquilo que no pode ser, como e por que no pode ser; eu no encontro

    uma sada e tambm no encontro razo para elevar uma

    queixa. Porquanto se trata de fraquezas, mesmo de amor e

    de cuidado, de empatia e do desejo de proteger e, no entanto, vivenciamos tudo isto como sendo

    profundamente problemtico, algo que mascara e vela o

    outro (a criana) como pessoa. Estou abalado na certeza

    que tinha de que compreendia, apesar de todas as

    dificuldades, a complexa relao criana-adulto. Uma

    resposta no existe, porm. O teatro, portanto, nada me

    ensinou.

    Trata-se, ento, de um fracasso? De modo algum.

    O no-ensinar , para dar um exemplo, o ncleo do

    conhecido Modelo de Ao da Pea Didtica que Brecht

    projetou no fim dos anos 1920, conectando-se a novas

    teorias pedaggicas e ao Movimento Musical Escolar3 em

    uma tentativa de desenvolver uma prtica teatral

    comunista. Com isso ele desenvolveu uma Esttica e

    Teoria Teatrais que so as mais radicais que se pode

    conceber sob a forma do teatro infantojuvenil. O efeito de aprendizagem, se encarado objetivamente, tambm era

    do tipo que colocava em primeiro plano o no-

    conhecimento e a necessidade de discutir todas as

    opinies e aes. Assim como Tim Etchells, Brecht no

    tratava de buscar temas adequados para a infncia em seu

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    trabalho de teatro com crianas e adolescentes. Ao

    contrrio, Aquele que diz Sim, Aquele que diz No, por

    exemplo, lida com temas que poderamos tranquilamente

    classificar como trgicos. E eles foram a discusso, a

    oposio, o engajamento do espectador e, obviamente, dos atores, antes de tudo. Trata-se, aqui, de um sacrifcio

    por uma causa justa, do sofrimento extremo, da

    disposio de ajudar e da submisso a uma necessidade

    percebida. Reconhecemos exatamente o fato de que no

    existe conhecimento, mas apenas situaes nas quais o

    conhecimento adquirido de situaes anteriores em nada

    ajuda e precisa ser reinventado, literalmente, a cada vez.

    5

    Hoje em dia estamos lidando com novos caminhos

    do teatro e da performance que incluem tanto uma

    abertura radical dos significados como a desconstruo

    consciente da gerao de significados. Trata-se de um

    teatro menos guiado pela inteno de servir uma obra ao

    pblico, e que pretende, antes, estimular um

    enfrentamento renovado e crtico com as obras e tambm

    entrar numa discusso com a tomada de posio da

    prpria encenao em relao obra. Com isso desiste-se,

    frequentemente, da perfeio esttica ao passo que o

    momento de contato com o pblico, de uma reflexo e

    disposio conjuntas para o questionamento das prprias

    posies torna-se de primeira grandeza. No contexto do

    teatro de hoje, por conseguinte, a anagnorisis no foi

    mais encontrada como um momento da dramaturgia,

    como em Aristteles, para tornar-se uma ruptura

    incessantemente recorrente da compreenso. Em outro

    artigo (Lehmann, 2003), tratei de explicar o modo pelo

    qual compreendo o texto de Benjamin sobre o teatro

    infantil proletrio no qual a dimenso proletria parece-me exatamente a menos relevante e no pretendo repeti-lo aqui. Prefiro chamar a ateno para outro aspecto do

    teatro para alm do ensino, da intermediao e at do

    Esclarecimento: h um caminho que conduz, partindo de

    Brecht, de volta s cartas de Schiller sobre a educao

    esttica, e no um mero acaso que seja um autor de

    esquerda como Jacques Rancire quem retome,

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    R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011.

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    enfaticamente, a tese de Schiller sobre o valor autnomo

    do jogo esttico.

    Como bem sabido, Schiller ops-se

    veementemente transformao do teatro num espao de

    doutrinao e Esclarecimento. Ele tinha em mira tanto o

    didatismo moral como o religioso que haviam dominado

    o teatro dos sculos XVII e XVIII. Schiller desenvolveu a

    tese de que unicamente no jogo livre como tal, e isso

    essencialmente o jogo esttico, o qual s tem lugar como

    um fim em si mesmo, no qual o ser humano opera em sua

    completude, como totalidade. A beleza torna-se aqui,

    certamente de modo indireto, uma questo poltica, pois o

    ser humano esteticamente educado nesse sentido ldico

    tambm se comportar do modo mais social e mais

    acertado possvel.

    Notas

    1 Este texto foi publicado no original em alemo em: LEHMANN, Hans-Thies. Kinder,

    Theater, Nichtverstehen. In: VAEN, Florian (Org.). Korrespondenzen. Theater -

    sthetik - Pdagogik. Berlim: Schibri-Verlag, 2010. P. 19-29. Agradecemos aos autores

    pela autorizao de traduo e publicao. 2 N.T.: Forced Entertainment um prestigioso grupo teatral e performtico ingls,

    formado por seis atores e dirigido por Tim Etchell. 3 N.T.: no original em alemo Schulmusikbewegung: movimento que existiu no fim dos

    anos 1920 e princpio dos anos 1930 na Alemanha, quando boa parte dos ginsios

    desenvolveram e mantiveram orquestras e coros escolares de alta qualidade.

    Referncias

    ARISTTELES. Poetik. Griechisch/Deutsch. Traduo e edio de Manfred

    Fuhrmann. Stuttgart: Reclam, 1982.

    DREYSSE, Miriam; MALZACHER, Florian (Org.). Rimini Protokoll. Experten des

    Alltags. Berlim: Alexander, 2007.

    LEHMANN, Hans-Thies. Eine Unterbrochene Darstellung. Zu Walter Benjamins Idee

    des Kindertheaters. In: WEILER, Christel; LEHMANN, Hans-Thies (Org.). Szenarien

    von Theater und Wissenschaft. Berlim: Theater der Zeit, 2003. P. 181-203.

    LEHMANN, Hans-Thies. Prdramatische und Postdramatische Theater-Stimmen. Zur

    Erfahrung der Stimme in der Live-Performance. In: KOLESCH, Doris; SCHRDEL,

    Jenny (Org.). Kunst-Stimmen. Berlim: Theater der Zeit, 2004. P. 40-66.

    WENZEL, Karola. Arena des Anderen. Zur Philosophie des Kindertheaters.

    Milow/Berlim: Schibri, 2006.

  • Hans-Thies Lehmann, Das Crianas, do Teatro, do No-compreender.

    R.bras.est.pres., Porto Alegre, v.1, n.2, p. 268-285, jul./dez., 2011.

    Disponvel em http://www.seer.ufrgs.br/presenca 285

    WESTPHAL, Kristin. Zur Aktualitt der Knste im Morgen. In: WESTPHAL, Kristin;

    LIEBERT, Wolf-Andreas (Org.). Gegenwrtigkeit und Fremdheit. Wissenschaft und

    Knste im Dialog ber Bildung. Weinheim/Munique: Juventa, 2009. P. 171-184.

    Hans-Thies Lehmann lecionou nas Universidades de Amsterdam (Holanda), Virginia

    (EUA), Sorbonne (Frana), Escola de Belas Artes de Berlim e outras. Desde 1988

    professor titular de Cincias Teatrais na Universidade de Frankfurt, onde liderou a

    implementao dos cursos de Teatro, Filme e Cincias da Comunicao e de

    Dramaturgia. Suas publicaes englobam um amplo espectro que inclui literatura

    dramtica, questes filosfico-estticas, teatro contemporneo e cinema. Foi

    responsvel pela introduo do termo teatro ps-dramtico.

    E-mail: [email protected]

    Traduzido do original em alemo por Elaine Padilha Guimares

    Recebido em julho de 2011

    Aprovado em outubro de 2011