de peito aberto - ppgav–eba–ufrj · ográficas distintas para escrever sobre o trabalho de um...
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29dossiê | apresentação
de peito aberto
Organização Cezar Bartholomeu eNatália Quinderé
Qual o papel do jovem crítico de arte? Quais suas vinculações com a produção,
o circuito, a academia? Que práticas, ideias e ideologias constroem e legitimam
seus discursos?
o dossiê desta edição tem como ponto de parti-
da tais inquietações, revisitadas pela equipe edi-
torial ao longo de dois meses de avaliações dos
textos de jovens críticos que aceitaram participar
de nossa chamada. dos 54 avaliados, convidamos
21 críticos de idades, formações e localizações ge-
ográficas distintas para escrever sobre o trabalho
de um artista ou coletivo que ele acompanhasse.
Esse desafio foi respondido por 19 críticos. Além
da qualidade de seus textos, era de interesse ex-
trapolar o eixo rio-são paulo, forjando um espaço
difuso da crítica recente de arte brasileira.
Curiosamente, apesar de nenhum artista escolhido ter sido analisado por mais de um crítico – o que revela
a complexidade do cenário artístico atual –, inúmeras referências teóricas, temas e leituras encontram-se
sobrepostos nesse conjunto. Do ponto de vista teórico, os postulados referentes a uma falência do projeto
moderno atravessam implícita ou explicitamente todos os textos. Dissertam os autores sobre a crise da his-
tória, sobre o significado da representação nas práticas artísticas e sua relação com o real, e a importância
da dissolução do conceito de obra de arte enquanto crítica ao sistema capitalista. No âmbito dessa aber-
tura de sentido, percebemos ainda a importância dada a dois temas que perpassam vários textos: corpo e
cidade. Corpo e cidade, como campos de problemas da arte contemporânea indicam, ao mesmo tempo,
uma relação com a arte mundial, e a persistência de questões relacionadas à tradição da arte brasileira.
1 Coletivo Cadeira branca, projeto apartamento, são paulo, 2006 2 Guy Veloso, Iemanjá, Auto do Círio, espetáculo teatral ao ar livre, evento não oficial do Círio de Nazaré, Belém, PA, 2013; foto digital3 Filipe acácio, Stranger You; fotografia 10 x 15cm4 Gabriel Gimmler Netto Estudo de Amplitude 5, 2009, grafite sobre papel vegetal, 80 x 100cmFoto Carolina Veiga5 ana Fraga, Escombros II, performance. Foto tatiele souza6 adriano Costa, Morena#bronze#G I A N T, 2013, concreto, bronze e tênis, 73,5 x 79 x 42cm. Cortesia Mendes Wood dM, são paulo
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After a careful selection conducted by the editorial team, which took more than two months of discussion, 19 young art critics were chosen to write about a work of an artist or a contemporary collective. this compilation of texts represents, in a certain way, our effort to understand what is the role of the young art critics today, how they are related with production, art circuit and Academy and, finally, what practices, ideas and ideologies support their analyses.| contemporary art Brazilian critic art criticism
31dossiê | diego Moreira Matos
sobre uM Futuro que nunCa CheGa
Diego Moreira Matos
Acerca de um contexto
Dentro do complexo universo da produção contemporânea brasileira, especialmente de seus últimos 15
anos, viu-se nascer nos vários contextos urbanos – mesmo distantes fisicamente do eixo Rio-São Paulo
− uma geração de artistas polissêmica tanto em termos de linguagem como em termos dos temas abor-
dados. Até aqui, nenhuma novidade. São, entretanto, sujeitos profundamente implicados nas mudanças
viscerais ocorridas nas cidades brasileiras desde os anos 80, mudanças que promoveram ambiguamente
em seus espaços conflituosos a reiteração de um projeto moderno inacabado, contraposto aos valores de
mercado supranacionais maquiados por novos valores culturais que a ação publicitária fomenta.
E tal relação conflituosa se demonstra de forma exacerbada em centros regionais, como, por exemplo, Por-
to alegre (rs), Fortaleza (Ce) e recife (pe). Guardando suas devidas proporções, essas cidades manifestam
em seus espaços construídos e “experienciados” realidades próximas quanto a seus espaços de conflito.
Em Porto Alegre, por exemplo, nota-se a presença de um grupo de artistas em seus 30 e poucos anos
contaminados por essa dinâmica macroestrutural. Se no início dos anos 2000 verifica-se o exercício crítico
coletivo de intervenções urbanas de natureza experimental e com grande interesse em retomar a lógica
produtiva das experiências de uma neovanguarda brasileira, que floresceu ao longo dos anos 60 e 70, a
instrumentalização desses artistas nessa estrutura conceitual permitiu o florescimento posterior de postu-
ras mais específicas e pessoais. No caso particular do contexto em questão, alguns artistas gaúchos nos
chamam a atenção. São eles: Cristiano Lenhardt (Itaara, 1975), Letícia Ramos (Santo Antonio da Patrulha,
1976), Michel Zózimo (Santa Maria, 1977) e Luiz Roque (Cachoeira do Sul, 1979).1 O trabalho deste último
será o fio condutor da análise.
Cada um deles, em menor ou maior grau, estabelece processos sedutores de invenção, que são alimen-
tados primeiramente por ambiguidade do espaço construído, e traz para seus contextos os paradoxos
ficcionais do universo científico. Todos eles constroem também paisagens insólitas através de mídias
distintas, usufruindo do repertório imagético de impressos, da televisão, do cinema e das ficções literá-
rias. Desse modo, em um emaranhado de referências ainda pré-universo da internet, esses artistas nos
oferecem um campo visual que investe em um futuro que ainda não chegou e que no brasil talvez nunca
venha a chegar. num movimento de iminência sempre em primeiro plano talvez resida o caráter sedutor
de seus trabalhos.
Luiz Roque, The Triumph, 2011, vídeo 3’; projeção realizada na exposição “Da próxima vez eu fazia tudo diferente” (Copan, 2012); na ocasião, foi criado um contexto solene de projeção, dando ao filme caráter quase oficial de apresentação da Coreia como potência; o trabalho foi resultado da residência do artista no país Foto Marcelo da Costa
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Um possível fio condutor pela obra de
Luiz Roque
A produção artística de Luiz Roque traz dois as-
pectos gerais interpostos que nos são muito ca-
ros: a composição cinematográfica e o apuro de
seus recursos materiais, bem como da invenção
de futuros que nos desorientam em relação a
tempo e espaço, promovendo desconstruções pa-
radigmáticas da história da arte e geopolíticas das
noções mais comuns de território, pertencimento
e poder econômico. O artista questiona também a
validação das arquiteturas personificadas em pai-
sagens das mais singulares, como, por exemplo, o
universo coreano ou a paisagem paulistana quase
fantástica e absurda, presentes em dois trabalhos
que aqui compõem o ponto estrutural da investi-
gação. The Triumph (2011), uma narrativa fílmica
de três minutos, e ITOUFO (2010), um retrato fil-
mado, resenham ao espectador de forma aguda
o que a arquitetura desses lugares – Coreia e são
Paulo – manifesta em termos de ambiguidade e
descompasso com outras realidades, especial-
mente do velho mundo.
Nesse sentido, apesar da distância geográfica
abissal, esses dois trabalhos retratam paisagens in-
sólitas, reverberando ao exterior de seus territórios
suas condições geopolíticas no mundo e, em suas
realidades internas, a permanente construção de
uma tradição moderna que nunca finda. Ademais,
sugerem também questões de cunho identitário e
comportamental em seus contextos urbanos.
Como é recorrente nas exposições do artista, os
trabalhos se condicionam ao espaço expositivo e
dele se apropriam, oferecendo reorientações de
significados dos conteúdos ali presentes. Assim,
traça-se, na composição entre o Triunfo (projeta-
do em parede) e o ITOUFO (apresentado em tV),
Luiz Roque, ITOUFO, 2012, superoito transferido para vídeo, loop Fotomontagem do artista
33dossiê | diego Moreira Matos
a narrativa de futuro, exercício crítico permanente
do artista. são na verdade exercícios de proposi-
ção de futuros possíveis, mas que hoje, em termos
reais e construtivos (simbólica e materialmente) se
mostram inviáveis. Além das condições técnicas
ou geopolíticas, existe uma lógica que é colocada
no nível do absurdo, na mesma medida em que
são escancaradas as mais incríveis incongruências
de um espaço quase ficcional, como as paisagens
encontradas em são paulo, cidade em que o artis-
ta atualmente reside.
É como se ele promovesse uma personificação
da arquitetura em analogia às questões con-
temporâneas do comportamento humano. A
produção do artista, especialmente nesse mo-
mento, parece buscar no dado ambíguo desses
objetos arquitetônicos elementos de valoração
muito distantes da usabilidade promovida pela
prática moderna. descortina-se, por exemplo,
aquilo que o arquiteto e teórico suíço bernard
tschumi2 identifica como a ideia de uma “desne-
cessidade arquitetônica”: “em vez de um obscuro
‘suplemento artístico’ ou uma justificativa cultu-
ral para manipulações financeiras, a arquitetura
lembra o exemplo dos fogos de artifício”. Trata-se
da produção de um prazer, indiferente aos ciclos
produtivos pelos quais a arquitetura se insere
no capital, dado que comparece de forma pre-
cisa no trabalho fotográfico The Golden Tower
(2012), peça produzida no mesmo período em
que realizava o filme The Triumph na Coreia.
Tal percepção de caráter metafórico conflui assim
para a construção de sentimentos de dor e prazer,
uma relação de estranhamento quase alieníge-
na, ou aquilo que a ficção científica narra como
“contatos imediatos de terceiro grau”.3 em vez de
falarmos apenas de um dado excêntrico da arqui-
tetura, portanto, é a capacidade de, em situação
Luiz Roque, Geometria Descritiva, 2012, vídeo, loop Frame de vídeo (tela)
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adversa e em contato físico e sensorial com o ob-
jeto edificado, perceber ali elementos que analo-
gamente nos remetem à ordem dos conflitos in-
terpessoais nos espaços urbanos.
The Triumph retrata a unificação das Coreias. Colo-
ca essa nova nação como potência esportiva, fato
ritualizado por uma coreografia de ginastas. O fil-
me é disposto de forma a constituir um pequeno
auditório de celebração de uma nova realidade
geopolítica de mãos dadas com um crescimento
econômico típico de Terceiro Mundo; uma eterna
busca da zona fronteiriça do extremamente novo.
as ginastas que aparecem no vídeo incorporam a
coreografia à ocupação do pavilhão arquitetôni-
co projetado pelo artista e arquiteto Vito acconci,
coincidentemente um dos ícones do modernismo
mais tardio. se de um lado temos a representação
de poder por meio de uma situação quase aliení-
gena ou quase “ficção científica”, do outro nos de-
paramos com as arquiteturas quase ficcionais de
Luiz Roque apropriadas do contexto de São Paulo.
portanto, em ITOUFO a presença de um monóli-
to arquitetônico de feições pós-modernas, cujas
cores berrantes o personificam enquanto figura
alienígena, corrompe a paisagem apaziguadora
do verde e do azul da natureza. ao mesmo tempo
interfere pela contaminação da cor refletida em
toda a vizinhança. Destacando-se em cota bem su-
perior ao caótico mundo urbano ao rés-do-chão,
o edifício enquadrado plasticamente pelo artista
cria uma suspensão de tempo desconfortável. a
mesma suspensão que é dada na tentativa de se
falar do avanço e do brilhantismo da América La-
tina que cresce economicamente, estabelecendo
ríspidas intervenções materiais na paisagem urba-
na. São Paulo, filha de uma euforia moderna na
primeira metade do século XX, parece viver agora
de um acúmulo de iniciativas desorientadas de
demonstração de riqueza e progresso, mas que
não avista ainda a condição de imagem de primei-
ro mundo, organizado e redentor.
Luiz Roque, The Golden Tower (Torre Dourada), 2012; ampliação fotográfica a partir de filme positivo superoito Foto do artista
35dossiê | diego Moreira Matos
Por uma perspectiva em aberto
em Geometria descritiva (2012), um vídeo em loop,
Luiz Roque parece querer enunciar formalmente a
constatação de uma ruptura, ou melhor, de um tal
momento de suspensão e abertura para o futuro.
defronte a uma paisagem idílica, quase irreal, um
vidro retangular é interceptado por uma esfera es-
cura e opaca. ao alcançar a peça em vidro e pro-
vocar seu estilhaçamento, o filme entra em loop
e suspende a ideia de quebra, retornando ao mo-
vimento anterior de aproximação da esfera. esse
movimento cíclico, exacerbado pela trilha sonora
impregnante, parece anunciar sedutoramente um
porvir, a iminência do desconhecido e a ambigui-
dade entre a dor e o prazer − situação análoga à
vivenciada pela cultura contemporânea no Brasil.
historicamente, encontra-se indiretamente em
sua obra filiação à produção audiovisual brasileira
que floresceu no final dos anos 60. Tal condição é
evidenciada ao se debruçar sobre a exposição ex-
perimental expoprojeção, realizada em são paulo
em 1973.4 Nela figuravam artistas como Antonio
Dias (1944) e Cildo Meireles (1948), cujas paisa-
gens sonoras se conectam à natureza espacial da
obra de Luiz Roque. Mencionem-se os vinis Mebs/
Caráxia (1970/1971), de Meireles, e Record: the
space between (1971), de Dias.
Enquanto esses artistas problematizavam concei-
tualmente os avanços da ciência contemporânea,
Luiz Roque se apropria desse conhecimento já no
campo da ficção. Como alerta Hannah Arendt5
em seu ensaio a conquista do espaço e a estatura
humana, de 1963, a inegável revolução científi-
ca moderna colocou o sujeito e a possibilidade
de compreensão humana do leigo em segundo
plano. a arte, especialmente na segunda meta-
de do século 20, tentou reaproximar esse sujeito,
deixando-o implicado, à medida que relativizava
as certezas científicas.
talvez seja esse o ponto de convergência que co-
necta essas duas gerações de artistas. a escolha
de um universo estético que se alimenta de so-
fisticadas referências à ficção científica torna-se
instrumento potente na construção de narrativas
que questionam nossas relações espaçotemporais,
em eternos descompassos entre o real e o desejo.
NOtAs
1 segundo Zózimo, esses artistas “habitam, assim, as finas camadas de uma consciência fora do plano”, o que nutre suas práticas discursivas encontradas de forma parcial e inventiva na publicação organizada pelo mesmo artista, intitulada Assim que for editado, lhe envio (Zózimo, Michel. Assim que for editado, lhe envio. Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 2013: 11).
2 Tschumi, Bernard. O prazer da arquitetura. In: Nes-bitt, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetu-ra, antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006: 578.
3 Título do filme de ficção científica dirigido por Ste-ven Spielberg e lançado em 1977, justamente quan-do esse gênero literário e cinematográfico tornava-se consumo de massa em escala global.
4 Com o título Expoprojeção (1973-2013), essa ex-posição foi parcialmente remontada e atualizada sob curadoria da própria aracy amaral e do pesquisador Roberto Moreira S. Cruz, no Sesc-Pinheiros em São Paulo (Amaral, Aracy; Cruz, Roberto Moreira S. Expo-projeção 1973-2013. São Paulo: Sesc, 2013).
5 arendt, hannah. Entre o passado e o futuro. são Paulo: Perspectiva, 2011: 330.
Diego Moreira Matos é pesquisador e curador.
Formado em arquitetura e urbanismo pela Uni-
versidade Federal do Ceará (1998-2004), mestre
(2006-2009) pela FAU/USP, onde atualmente cur-
sa seu doutorado (2010-2014).
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FRAGMENTOS DA PALAvRA COMO LUGAR: das escrituras, desleituras e leitorias de Jorge Menna barreto
Galciani Neves
Jorge Menna barreto situa a palavra no espaço – físico, afetivo, intersticial – que a ele se mescla em
múltiplos modos de ser, percebidos como o espaço da obra, o espaço do outro, o espaço do mover-se.
Convivendo com esses espaços, que logo se fazem lugares, e com seus agentes, a palavra amplia-se no
dentro-fora de uma razão imprecisa, sem realizar qualquer equivalência, mas constituindo margens das
quais se pode largar, partir, inventar: alusividade sem fim por todos a tudo. É conjugando atitudes da pa-
lavra e extravasando suas tarefas que o artista constitui tensões entre ideia, materialidade e espacialidade
que ressoam avessos, justaposições, alargamentos.
Preâmbulo: breve ambientação ao fazer
em uma trajetória que se alastra por ações artísticas, pesquisas acadêmicas, projetos educativos e
experimentações críticas e curatoriais, Jorge Menna Barreto participou da Bienal de Havana (2000); do
Rumos Itaú Cultural (2002); da Bienal do Mercosul (2001 e 2009); do Panorama da Arte Brasileira (2011)
e expôs individualmente no torreão em porto alegre (2000), no Centro Cultural são paulo (2004), no paço
das Artes (2007) e em outras instituições e galerias. Foi membro do grupo de críticos de arte do Centro
Cultural São Paulo. Coordenou o educativo do Paço das Artes. Realizou curadorias, como Sobrepostas,
permeáveis e intercambiáveis (2009), de vitor Cesar. E desde 2001 passou a atuar como professor. São
práticas visuais e discursivas no campo da arte em intenso fluxo criativo de procedimentos de um artista-
etc, como propõe Ricardo Basbaum:1 seus pensamentos e ações “questionam a natureza e a função de artista”,
enquanto se inscreve com maleabilidade por entre brechas no circuito, em que, traçando conexões (empáticas),
engaja-se conferindo complexidade aos fazeres. Mais que combinação de perspectivas para encarar distintos
projetos, revela uma espécie de imbricação de competências que se instaura nas dinâmicas entre arte e vida,
provocando e também contaminando-se com as audiências, com o espaço, com as faturas em questão.
nesse sentido, parece ser improvável (e inconsistente) apontar um eixo único e alinhavante ou mesmo
um conjunto de ações autocontidas que abarque a diversidade de seus trabalhos. Assim, pretende-se
abordar um recorte do percurso de Jorge Menna barreto a partir de um olhar que vasculha contiguidades,
desdobramentos que insistem por entre noções de espaço e que partilham intencionalidades que
esboçam a palavra como meio, como substância, como lócus em si e no outro. O artista flexiona a
palavra, enquanto provável unidade mínima da comunicação, em inquieta e permanente abertura às
expectativas de seus leitores e desacordos com seus significados prévios. Essa abordagem crítica opta por
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Jorge Menna barreto, Concreto (protótipo), 2012
adentrar as potências da palavra em seu momento/
onde – sugestão temporária e em diálogo com a
produção de Jorge, a fim de perscrutar os afetos
e os deslimites entre visualidade e palavra, entre
práxis artística e visual, entre arte e escritura,
visto que a mobilização desses conteúdos não
ousa estancar-se em oposições que regularmente
ficcionam tais exercícios. Adianta-se que a
escritura ou o exercício da palavra do artista não
é conteúdo que se articula por sua materialidade
impressa, textual ou destinada unicamente à
leitura, mas como uma experiência no espaço
e entre-espaços, e, sim, também como silêncio,
como indeterminação, como ilegibilidade.
Dos verbetes e suas temáticas
os títulos a seguir recorrem a palavras inventa-
das por Jorge Menna barreto que constituem a
obra Desleituras. Essas palavras híbridas trazem
um tanto de sua tarefa original: dispositivos de
mediação a obras expostas no 32o panorama da
arte brasileira (2011) com o intuito de potenciali-
zar discursos. atuam aqui com um pequeno des-
locamento: como uma espécie de borda crítica ao
trabalho do artista e como possibilidade para se
desenhar uma leitura que se apropria de princí-
pios dos quais ele próprio se valeu em processos
de criação de suas obras. Os títulos aqui visua-
lizados são constituídos como descreve theodor
Adorno:2 uma espécie de território pouco definido
e mais caracterizado por sua permeabilidade, que
pensamentos vêm habitar para dali se dissolver
novamente nas dinâmicas perceptivas de quem os
acessa. e os textos que os acompanham são como
pequenos verbetes de um glossário propenso a
atualizações e variações que se organiza insufla-
do pela densidade do trabalho do artista. Apon-
tam para uma dupla busca: a de estabelecer-se
como paisagem crítica e a de expandir em tarefa
tradutória as experiências de alguns trabalhos do
artista. Além disso, traça vínculos ou, antes, “fios
soltos” entre seus trabalhos, aproximando-os e
conferindo atritos para além de uma trajetória
cronológica, linear ou classificatória.
espenso
Exigem-se do pensamento: uma planaridade
aos limites da razão, uma atenção aos contro-
les do aqui-agora e aos cálculos para conter-se e
adequar-se como coisa, um espaço inteligível de
atuação. em Massa, Jorge inspira essas tensões
e delas extrai uma espécie de perplexidade ativa
que interroga e responde à iminência das invisua-
lidades que agem por entre os espaços, às linhas
de força que delineiam tangentes e desencontros,
aos escapes, separações, vibrações e fricções en-
tre aqueles que ocupam e constituem o espaço.
Massa é uma ação acumulativa de diálogos com
o público e com o espaço. E teve início na Bie-
nal de havana (2000). da tentativa de captar a
densidade dos espaços, o artista soma desde lá
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os pesos individuais do público das exposições
em que o trabalho é apresentado. Jorge carim-
ba cada resultado em uma sacola de papel que
pode ser levada pelos participantes. e assim os
pesos vão-se somando de cidade em cidade: Ha-
vana, belo horizonte, são paulo e Fortaleza. esse
procedimento de religar, reunir e fazer reencon-
trarem-se os fatos e os atores que convivem nos
espaços para além da unidade geometricamente
compartimentada sustenta um caráter de acaso
e de identidade oscilante, migratória e inquieta
das divisões que cotidianamente se tecem entre
espaço, matéria, gesto e gente. O artista sutura
esses rasgos, enquanto cada um dos participan-
tes leva um tanto desse espaço. trata-se de um
processo de construção da obra em diálogo com
o espaço de exibição.
escrítica/desleitura
É uma operação de dissecção para novamente
recompor em outro. E o tema é, por assim dizer, a
imersão para tentar fazer-se presente nas incertezas
empíricas quando se pode atravessar algo e deste
algo partir para outros empreendimentos. nesse
verbete, fazem-se necessários outros dois, seus
agentes de ação – o Caro feitor e o tradutor-
autor-artista – , para quem vale o esclarecimento
de Octavio Paz: “o artista é o tradutor universal”.
Concreto é outra existência de That which joins
and that which divides is one and the same, de
Ian Hamilton Finlay. A transcriação de Jorge é
Aquilo que une e aquilo que separa é uma mesma
coisa só.3 Repare no final não correspondente.
Cada palavra em inglês ocorre em placas de
vidro montadas em tijolos de bronze em que
Jorge Menna barreto, Massa; Instalação apresentada na Séptima Bienal de la Habana, Centro de Arte Contemporáneo Wilfredo Lam, Cuba, 2000; na exposição coletiva Arte: Sistemas e Redes, dentro do Programa Rumos Itaú Cultural Artes visuais 2001/2003(são paulo, belo horizonte e Fortaleza)
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estão grafadas as palavras em português. não
há também equivalência espacial entre inglês e
português. as duas frases ocorrem esfaceladas,
reinventadas e subvertidas e não se restrigem à
ordem original. Jorge as reespacializa em outra
operação tradutória que recorre aos Cavaletes de
vidro (1968), de Lina Bo Bardi. Para o artista, “é um
estilhaçamento de uma frase em palavras”, suas
unidades, em uma não linearidade de sentidos.
assim, torna-se outro a partir de “uma forma
atenta de ler”, como sugere Julio plaza,4 pois o
tradutor-autor-artista, aqui em questão, engaja-
se em um consumo de informações “produtiva” e
criativamente. e tal como o ator faz-se em outros,
ainda que sendo ele mesmo, o tradutor-autor-
artista cria um duplo do texto, um outro. não há
paradoxo: é metacriação, prática lúdica e lúcida,
crítico-criativa, “como diálogo de signos, como
um outro nas diferenças (…) como trânsito de
sentidos, como transcriação de formas”.5
multiplicidão
qualidade ou efeito de transcrever-se, de repetir-
-se com ausências e adições. Assim, não se é o
mesmo, mas um outro que de si carrega um pou-
co, não tudo. Um movimento ambíguo, incons-
tante, um tanto incoerente de fazer-se, tal como
a capacidade de captar o vazio, materializar o ide-
al, construir o acaso. daquilo que poderia surgir
como doação, gratificação a um leitor imaginário,
mas lhe sugere incongruências, complexidades,
Jorge Menna barreto, Concreto (protótipo), 2012
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inexatidões. Com Belongingness (2003), pode-se
pensar como verdade o que intuía Mallarmé – que
tudo existe a fim de ser livro um dia, ainda que
não traga em si nada de livro.6 Jorge registrou
palavras em placas de rua, camisetas, outdoors,
letreiros de lojas e em tudo que nos cega a infor-
mação. Daí, subtraiu letras que fazem parte da
palavra belongingness que pode ser compreendi-
da como uma necessidade humana de pertenci-
mento. trata-se de um processamento da palavra
às avessas. Jorge desnaturaliza as palavras, deixa
lacunas em suas estruturas, buracos incontorná-
veis para propor um sentido não óbvio, não dado
e talvez não alcançável de pertencimento. parece
mesmo um ensaio sobre as impropriedades da
palavra em seu contexto, que, por vezes, se asse-
melha com o que leva a crer que é, satisfazendo o
leitor, em um jogo de metáforas, metonímias, pis-
tas, com um instante de apaziguamento em que
espécies de teoremas demonstram-se na matéria.
Contrariamente, leva à superação da dependên-
cia ou equivalência da palavra enquanto legenda,
formato explicativo ou interpretativo daquilo que
se vê. A palavra se abre para além de seu esque-
ma inicial, como “opacidade”, esclarece o artista,
e propõe um exercício crítico de “leiturabilidade”
que se encontra nitidamente potencializado pela
afetividade – capacidade de afetar-se e afetar.
Postscriptum
em uma tentativa de implicar-se com as vontades
e espessuras dos contextos de ação e criação de
Jorge Menna Barreto, é mesmo possível questionar,
assim como Barthes:7 “quem fala? quem escreve?
Falta-nos ainda uma sociologia da palavra.” e
Jorge Menna barreto, Belongingness, 2003Subtração das letras que formam a palavra “belongingness” de fotos tiradas em 2003 na cidade de Atlanta, EUA; expostas na artspot Gallery na mesma cidade
41dossiê | Galciani neves
dessa inquietude que atravessa algumas das
experiências poéticas do artista, pode-se pensar:
a palavra para Jorge não é bem um instrumento,
nem veículo, mas quem sabe uma espécie de
presentificação no mundo que não é apenas o
seu pretexto: ali e aqui, onde a palavra ocorre e
se altera na frase do outro, onde as percepções
acontecem e ressoam no espaço, é onde
habitam suas obras em arritmias e porosidades
com o público. O que o artista dá a quem lê
não é um sentido, mas uma infidelidade ou uma
“infixibilidade”, um propósito de continuidade,
de leitoria – leitura e autoria.
NOtAs
1 Basbaum, Ricardo. Manual do artista-etc. rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013: 67.
2 adorno, theodor W. Notas de Literatura I. são pau-lo: Duas Cidades/Editora 34, 2003.
3 barreto, Jorge Menna. Exercícios de Leitoria. tese de doutorado defendida na usp. 2012.
4 plaza, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
5 Plaza, op. cit.: 209.
6 http://jorgemennabarreto.blogspot.com.br/ . Últi-mo acesso: 24/01/2014.
7 barthes, roland. Crítica e verdade. São Paulo: Edi-tora Perspectiva, 1982: 31.
Galciani Neves é curadora e professora. Possui
mestrado e doutorado em comunicação e semió-
tica pela puC-sp.
Jorge Menna barreto, Belongingness, 2003Subtração das letras que formam a palavra “belongingness” de fotos tiradas em 2003 na cidade de Atlanta, EUA; expostas na artspot Gallery na mesma cidade
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esCoMbros de todos nós
Dilson Midlej
de um texto crítico, ensaístico ou qualquer que seja sua natureza, espera-se clareza e informação. e,
se enfocar arte, essa exigência aumenta substancialmente, sobretudo porque em geral nele se busca o
entendimento dos sentidos de muitas criações artísticas. E de artistas contemporâneos? o que esperar?
seguramente clareza não seria a resposta correta, ainda que isso logo nos venha à mente. a resposta a
essa questão, ou melhor, uma resposta das muitas possíveis, foi dada por ana Fraga, artista nascida e re-
sidente na ensolarada São Félix, no Recôncavo da Bahia, em individual apresentada na Galeria Cañizares,
em Salvador, de primeiro a 15 de novembro de 2013, intitulada Escombros.
performer de trajetória coerente e sólida, ana Fraga destacou-se com várias premiações em certames
competitivos estaduais, sempre apresentando obras que aliavam a performance às tradições culturais de
sua região de nascença e a sua condição e sensibilidade femininas.
O título Escombros escolhido pela artista não poderia ser mais adequado, pois o conjunto de obras fala
da degradação sensível do ser, das tensões entre sua existência e inadequações aos papéis sociais infli-
gidos pela sociedade e pelos poderes constituídos, cujas manifestações são investidas de legalidade no
papel, mas nocivas na prática e na ética, tais como a conveniente manipulação política de uma alegada
“alegria baiana”, ou de um selo de “baianidade”, do qual a pasteurização e generalização do carnaval
como imposição de comportamentos seria a mola mestra. assim, a alusão à maior festa popular da
capital baiana serviria como pretexto para encobrir as mazelas de décadas de ausência dos poderes
públicos e manipulação de dados estatísticos dos índices de violência que tão mal soam às propagandas
eleitoreiras e às estratégias de atração de turistas, e que, enfim, comprometeriam a confiante “econo-
mia estável”. poderia esse desencantado cenário político-existencial ser apresentado na forma de arte
e, ainda assim, despertar interesse ou mesmo fazer algum sentido? ana Fraga responde, e a resposta
− comentada e constituída visual e conceitualmente em suas obras −, é tão desconcertante quanto os
recorrentes escândalos políticos nacionais.
na performance Escombros, apresentada pela artista, registrada em vídeo e exibindo os resquícios da
ação no ambiente da galeria, a realidade foi antropofágica e literalmente engolida, e a síntese desse bolo
alimentar era... confetes. sim, confetes. a artista “engole” confetes e os regurgita em incômoda cena
cujo vômito refluxa junto a nossa indignidade. Os confetes são confeccionados com páginas do diário da
artista, ali mesmo, no espaço da galeria, diante do público. A intimidade dos registros e comentários co-
tidianos do diário, convenhamos, a principio só interessariam à própria artista, da mesma maneira como
em geral não nos interessamos pelas outras pessoas, uma vez que nosso individualismo nos basta. Pior
ainda se o diário contemplar poesia. Mas eis que, pela formulação artística, estranhamente essa nova
dossiê | dilson Midlej 43
ana Fraga, Escombros, performanceFoto eduardo oliveira
natureza nos atrai, exige nossa atenção e passa
a nos interessar, pois se evidencia uma situação
óbvia que até então ignorávamos: o diário não
seria apenas dela. seria de todos nós. por conse-
guinte, a ação contínua do engolir e do vomitar e
o engasgo de confetes também é de todos nós,
homens ou mulheres, brancos, índios ou pretos,
baianos ou cariocas, ostentando ou não abadás.
Assim, aprendemos (e a arte é incomodamente
uma professora exemplar) que a artista não trata
de questões pessoais e sim de anseios existen-
ciais comuns ao ser humano, de questionamen-
tos a imposições de condutas sociais, de tristezas
inconfessas e cicatrizes profundas que não apa-
recem na mídia e que os pobres brancos, índios
ou pretos (com ou sem abadás) se apressam em
deixar trancafiados em seus guarda-roupas ad-
quiridos a prazo quando vão brincar o carnaval.
O hedonismo do carnaval em Ana Fraga é inter-
pretado pelo viés do mal-estar, do corpo que faz pular para fora um multicor vômito de minúsculos confetes feitos a partir das folhas de seu diário, reestruturado em nova e fragmentada existência que dá voz, ou melhor, dá visibilidade às angús-tias existenciais. Uma poética do desassossego em que não se vê o rumo da bala, mas se sabe a quem ela se destina e onde certeiramente atinge.
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A natureza das angústias dos outros já sabemos e,
como se exercita diariamente, não nos interessa,
pois, reiteramos, prezamos nosso individualismo
e a ele somos evangelicamente fiéis: o individua-
lismo é fiel.
nessa mostra que teve a curadoria da experiente
artista e professora sônia rangel, ana Fraga ali-
nhavou o universo temático de suas performances
e acomodou seus (e nossos) escombros a partir de
três núcleos: o diário, a linha e a tesoura.
Advém das tradições culturais de sua região de
nascença e de sua condição feminina não apenas
a escolha dos materiais − cuja síntese, por meio
de ações performáticas, ressignificam os sentidos
dos usos de diário, da linha e da tesoura em bor-
dados e costuras −, como evidencia o contraste
dessa memória afetiva com os escombros coti-
dianos e contemporâneos. Assim, a sensibilidade
migra dos registros de diários íntimos e se tra-
veste de forçada “alegria” aludida pelos confetes
engolidos e regurgitados, subvertendo o sentido
do uso festivo daquele material e que constituiu
tanto a performance Escombros mencionada,
quanto a obra Escombros série I. esta última con-
centra confetes hermeticamente lacrados em cai-
xas de vidro de variadas dimensões e dispostas no
chão, enquanto na parede três martelos pendura-
dos indicam a ação e o esforço necessários para se
experimentar a alegria aludida pelos confetes ao
custo do uso da força pelo golpear do martelo e
do risco do corte pelos cacos dos vidros fragmen-
tados. uma explosão de suposta alegria se anun-
cia ao custo de um risco real de esforço e dor.
Já a linha vai gerar ações registradas em fotogra-
fias que compõem as obras Escombros nós itine-
rante e que consistem na confecção de mais de
dois milhões de nós feitos manualmente pela artis-
ta de janeiro de 2012 a fevereiro de 2014, ora com
a artista e seu rolo de turbante a bordo de uma
canoa à deriva, a qual desliza indecisa pelas águas
do Paraguaçu − rio que banha a cidade natal da
artista − ao sabor da correnteza, ora sentada no
ana Fraga, Escombros nós itinerante, performanceFoto Marcio santana e darlan dhouro
dossiê | dilson Midlej 45
minadouro d’água da nascente daquele rio, na re-
gião de barra da estiva. os nós dessas ações são
finalmente depositados na sala da galeria, espécie
de escultura/registro da tradição e do sofrimento
cotidiano “amarrados” e ensimesmados que, tal
como os confetes, têm seu significado subverti-
do uma vez que o bordado gerado resulta em
um monte de nós sem utilidade prática, mas im-
pregnado pela via artística de peso existencial e
de sentidos.
E por fim, a tesoura, instrumento do cortar tecidos
e do costurar, é utilizada pela artista para “extrair”
flores de uma camada de tecido estampado que
cuidadosamente reveste seu colo na performance
Escombros II. a ação se dá mediante interrupção
parcial de um corredor de pedestres da ponte d.
pedro ii, centenária estrutura de ferro que se esten-
de sobre o rio Paraguaçu unindo São Félix à cidade
histórica de Cachoeira. a intimidade às avessas do
ato da costura da artista sentada em um pequeno
banco em espaço público é contaminada pelo fre-
quente passar da população que, curiosa, ou igno-
ra a ambiência intimista da ação ou responde de
alguma maneira, como ilustra o fato de algumas
pessoas apanharem as “flores” caídas no chão. Os
buracos abertos no tecido anunciam a operação
cirúrgica e esvaziam a padronagem decorativa,
adicionando eloquentes e incômodos espaços va-
zios, destacados ainda mais pelo contraste com o
negro da roupa da artista e o significativo rolar ao
chão das “flores”. Espécie de colheita cirúrgica
de espaços vazios, a ação discorre sobre inver-
sões de valores, escombros da perda de poesia
e de sentidos. Enfim, ao mesmo tempo silenciosa e
alarmadamente, as flores perdem seus significados.
O público sanfelista ou cachoeirano não é total-
mente alheio às manifestações performáticas,
uma vez que a cada dois anos acontece a bienal
do Recôncavo em São Félix e performances são
regular e publicamente apresentadas desde sua
ana Fraga, Escombros nós itinerante, performance Foto otaviano Filho
46 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
primeira edição. isso naturalmente não garante
o entendimento das propostas artísticas. todavia,
arrisco afirmar que a familiaridade do sanfelista
em relação aos objetos cotidianos utilizados por
Ana Fraga e seus consequentes usos subvertidos
pode favorecer um viés de possibilidades de lei-
turas e mesmo a participação, involuntária (assis-
tindo à ação ou esgueirando-se para passar pelo
corredor de pedestres da ponte obstruída pela
artista) ou participativa (colhendo “flores” recor-
tadas no chão); ao mesmo tempo em que cria
conformidades, extensões e desdobramentos do
trabalho performático, também indica a vitalida-
de dessa forma de expressão e reforça que é com
a participação do outro que se completa e atinge
sua significação plena, sem necessariamente pas-
sar por uma formulação racional de juízo de valor.
A significação é construída sensivelmente por to-
dos, artista estimulador e público receptor (partí-
cipe involuntário ou cooptado), em fragmentos,
paulatinamente, a cada nó, a cada flor extirpada
ana Fraga, Escombros II, performance Foto tatiele souza
e caída, a cada punhado de confetes engolido, a
cada respiração, e o decorrer do tempo de reali-
zação das ações, em conjunto com a participação
do público, propõe uma troca de experiências em
que a clareza da proposta ou seu significado não
são necessariamente percebidos de maneira fácil
ou assumem maior relevância. Assim, no que toca
à clareza aludida no início deste texto, você, lei-
tor, pode agora se perguntar: mas de que mesmo
trata este texto que leio? E antes que impropérios
firam o ar, apresso-me em responder: este texto
trata de ana Fraga, uma artista que felizmente
está atenta aos escombros de todos nós.
Dilson Midlej é professor-assistente de história
da arte do Centro de Artes, Humanidades e Le-
tras da uFrb, em Cachoeira, ba e doutorando
do ppGaV-eba uFba. É pesquisador associado da
Anpap, mestre em artes visuais (2008), especializa-
do em crítica de arte (1984) e graduado em artes
plásticas (1982), os três títulos fornecidos pela UFBA.
47dossiê | Fernanda Pequeno
poeira, pipoCa, poeira, pipa, poeira
Fernanda Pequeno
A poeira que se deposita sobre objetos e em ambientes diz respeito não apenas ao cotidiano prosaico.
Ela também lembra as coisas esquecidas, os resíduos que indicam a ação do tempo ou a falta de im-
portância de determinadas posses, que ficam um período sem uso ou no mesmo lugar. Pode, ainda, ser
simbolicamente associada à ruína cuja “sujeira” é gerada por catástrofes naturais, reformas ou simples-
mente pela passagem de dias, anos ou séculos.
a poeira forma-se por micropartículas de terra ou areia que, levadas pelo ar, se depositam nas superfí-
cies. Essas partículas desprendem-se também das paredes que se dilatam pela ação do sol ou do calor, do
cigarro queimado, dos carros, das indústrias, ou seja, é impossível viver sem gerar resíduos. Se, porém,
em pouca quantidade, a poeira é quase imperceptível, acumulada sugere repulsa, porque se confunde
com resquícios maiores que geram o lixo.
Em sua busca de assepsia, o homem foi cada vez mais excluindo as camadas de tempo que se adensam.
Não apenas porque elas causam doenças, mas também porque ao pó foi-se associando uma ideia nega-
tiva de falta de cuidado. se, em sua maioria, os homens querem afastar a “sujeira” que causa alergia ou
denota melancolia e outros males, o que propõe bete esteves, ao criar máquinas que captam e acumu-
lam a poeira da casa, do ateliê ou do espaço expositivo?
a artista se interessa pela inutilidade positiva que a relação entre arte e engenharia proporciona.
produz “quimeras maquínicas”1 que nada mais são do que traquitanas inventivas, esculturas-máqui-
nas, cujo funcionamento só é utilitário poeticamente.
bete esteves vem desenvolvendo a pesquisa com poeira desde que passou a dividir um ateliê localizado
no interior de uma fábrica têxtil, no Rio Comprido, Zona Norte do Rio de Janeiro. Pelo viaduto e pelo
túnel que cortam o bairro passam diariamente carros e ônibus em grandes quantidades, o que faz com
que os objetos do ateliê fiquem cobertos por camadas espessas de pó. A artista resolveu tirar partido
desse ambiente “insalubre”, passando a criar esculturas que adensam os resíduos depositados.
Dust printer, como sugere o título, funciona como uma impressora de poeira. um carrinho de acrílico se
movimenta no chão, sendo acionado por um circuito eletrônico e um sensor de movimento. nele estão
depositadas uma folha de papel e uma máscara de acrílico em formato estelar, que lembra um ralo. Após
o período de captação, na folha imprime-se a imagem de uma estrela que, ao se acumular com outras
impressões, gera constelações pueris.
48 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
bete esteves, Puerile, 2012, 100 x 20 x 20mm Objeto escultórico composto de caixa de acrílico, cooler e papel
Puerile registra e grafa as partículas dispersas pelo
ambiente. As esculturas (uma vertical e uma ho-
rizontal) são individualmente formadas por uma
caixa de acrílico dotada de ventoinha, que impri-
me sobre folhas de papel a poeira captada no es-
paço circundante. aqui não se formam imagens,
mas acúmulos de partículas que se adensam com
o passar do tempo.
Há também uma instalação com livros, na qual a
poeira age como uma película que reveste a parte
superior das publicações. O verso “fica um pou-
co”, do poema “resíduo”, de Carlos drummond
de Andrade, é impresso através de uma másca-
ra posicionada sobre os livros, que são antigos e
escolhidos pelos títulos que se relacionam com a
solidão e as coisas esquecidas.
essa parte da produção artística de bete esteves
dialoga com séries de trabalhos de Sean Miller, vik
Muniz e Xu Bing. Em obras fotográficas ou insta-
lativas, esses artistas acionam a poeira para criar
trabalhos de arte contemporânea que a utilizam
como material e ponto de partida conceitual.
A poética de Bete Esteves também se relaciona
com a filosofia de Georges Bataille. Em um peque-
no texto de 1929, publicado no dicionário Crítico
da revista Documents, o autor não forneceu uma
definição clássica de poeira, descrevendo-a da se-
guinte maneira:
Os contadores de histórias ainda não
perceberam que a Bela Adormecida teria
despertado sob espessa camada de poeira,
nem têm previstas teias da aranha sinistra
que teriam sido dilaceradas no primeiro
movimento de seus cabelos vermelhos.
Enquanto isso, as folhas sombrias de poeira
invadem constantemente moradas terrenas e
uniformemente as contaminam: como se fosse
uma questão de preparar sótãos e salas antigas
para a ocupação imanente das obsessões,
fantasmas, espectros que o odor decadente da
antiga poeira nutre e intoxica.
Quando as jovens meninas rechonchudas, ‘da-
mas de todo trabalho’, armam-se todas as ma-
nhãs com um grande espanador ou mesmo um
aspirador de pó, elas não estão, talvez, com-
pletamente cientes de que estão contribuindo,
cada qual com seu bocado, tanto quanto o
mais positivista dos cientistas para dissipar os
49dossiê | Fernanda Pequeno
fantasmas prejudiciais que a limpeza e a lógi-
ca abominam. Um dia ou outro, é verdade,
a poeira, supondo que ela persista, prova-
velmente começará a ganhar vantagem sobre
empregadas domésticas, invadindo as ruínas
imensas das construções abandonadas, estaleiros
desertos; e, naquela época distante, nada restará
para afastar terrores noturnos, por falta de que
nós nos tornamos tão grandes guarda-livros...2
a origem humana e sua relação com o pó (“do
pó viestes e ao pó voltarás”) parecem, entretanto,
não assustar bataille ou mesmo lhe provocar para-
lisia ou uma postura melancólica diante da transi-
toriedade da vida. É desse modo que a produção
de bete esteves se aproxima do pensamento do
autor. Ambos tratam desse lado não purista, utili-
tário ou limpo do ser humano.
Se, em sua filosofia, o francês valorizou a inutilida-
de da arte, em sua pesquisa bete esteves vem-se
debruçando sobre o escangalhar da máquina e
sobre o viés menos pragmático do ser humano,
sua porção lúdica.
usualmente, o homem adulto deposita no es-
quecimento as coisas “sem importância” da in-
fância. É dessa maneira que Bete Esteves vem re-
cuperando o muito grande e o muito pequeno,
brincando com escalas de tamanho, de valor e
de complexidade.
para criar máquinas desfuncionais, a artista faz
uso de projetos detalhados, que exigem pesqui-
sa, o domínio técnico e a utilização de mão de
obra especializada, acionando diferentes campos
de saber. Recupera, então, através de suas enge-
nhocas, a inventividade e a capacidade infantil
de maravilhar-se.
E também não podemos deixar de indicar a iro-
nia que a artista opera. pois se tradicionalmente à
poeira se associa o velho, o superado (“a arte em-
poeirada”), bete esteves, ao contrário, propõe o
uso de máquinas contemporâneas que adensam
essas partículas, em um movimento de captação
do que é invisível.
É dessa forma que sua operação artística é dupla,
pois desfuncionaliza essas máquinas (afinal, quão
utilitária é uma escultura que imprime poeira?) e
torna positivo seu uso. redesperta no homem, as-
sim, suas capacidades de sorrir e de jogar que, se-
gundo Bataille, possibilitaram que a arte nascesse.
ao propor essa espaço-temporalidade não
pragmática do jogo, da brincadeira e da arte,
bete esteves criou uma pipoqueira formada por
uma bicicleta invertida e um dispositivo sonoro.
Como se fora a concretização de um sonho de
bete esteves, Claras em Neve I, 2013still de vídeo
50 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
criança, ao girar o pedal, ouve-se o barulho dos
milhos estourando e é como se sentíssemos o
cheiro da pipoca.
as leituras não param por aí, em função da rela-
ção que estabelecemos com Marcel Duchamp e
de a bicicleta mais importante da história da arte
não deixar de estar presente. tal fato amplia a
ideia de jogo acionada por bete esteves, utilizan-
do-o também como estratégia e linguagem.
A artista também criou frágeis pontes de pali-
tos cuja complexa engenharia e demorada cons-
trução tem única e exclusivamente a função de
transpor poças d’água formadas durante ou
após a chuva. bete esteves traz para o dia a dia,
assim, a engenhosidade de uma obra nada tri-
vial, mas fantasiosa.
na instalação Leve, três vídeos de animação foca-
lizam o desaparecimento e o reaparecimento de
pipas presas em fios de eletricidade. Projetados
em dispositivos eletrônicos dentro de monóculos,
duas temporalidades se impõem: a arcaica desses
objetos fadados ao desaparecimento e a atualida-
de dos tablets que exibem os vídeos.
brincando com a situação prosaica de pipas que
se prendem em condutores elétricos, a artista as
retira do esquecimento. evidencia, assim, o imper-
ceptível dessas cafifas, para as quais normalmente
não antentamos ou não damos importância.
na mesma direção, os vídeos Claras em neve I e
II transformam luminárias públicas em hastes de
batedeira e as nuvens do céu nas claras em neve
do título. novamente jogando com o poder ima-
ginativo do espectador, a artista deflagra outros
olhares para o cotidiano.
despertando outros sentidos, como olfato e
paladar, bete esteves aguça no espectador a
capacidade inventiva que as crianças e o artista
possuem. Acionando a fantasia e a fabulação,
que costumam ser pouco valorizadas no homem
adulto, com suas traquitanas a artista se reencan-
ta e reencanta o mundo a seu redor.
É assim que as engrenagens de bete esteves pro-
porcionam um olhar mais sensível para o cotidia-
no. suas máquinas, assim como os humanos, es-
cangalham, enferrujam, quebram. E é justamente
aí que reside sua poesia. de seus dispositivos
emanam sons, odores e sabores, ficando deles um
pouco em nós e de nós um pouco neles.
Ainda bem que de tudo fica um pouco. É a partir
desses resíduos que constituem a vida que bete
Esteves produz os seus trabalhos. No lugar da lo-
ção, para abafar o insuportável perfume de mofo,
bete esteves, Leve, 2013 Animação de três minutos em looping, tablet de 7 polegadas e monóculo de acrílico com tripé sobre rodízio
51dossiê | Fernanda Pequeno
riamos, toquemos, espirremos e sintamos os chei-
ros da poeira, da pipoca, da poeira, da pipa, da
poeira e continuemos brincando com o trava-lín-
guas. Antes de recomeçar, porém, é preciso parar
e perguntar: você já olhou para o céu hoje?
NOtAs
1 A artista define sua produção escultórica como quimera maquínica, numa confluência de monta-gens e desmontagens de arranjos desfuncionais da arte com a engenharia reversa, a biologia e a ele-trônica. unindo sonho, fantasia e ciência, as máqui-nas quiméricas de Bete Esteves não são mecânicas. Poderiam figurar no inventário de Jorge Luis Borges d’O Livro dos seres imaginários, já que fundem ho-mem, objetos, animais e ferramentas. Nas palavras da artista: “imprevisíveis e temperamentais, [elas] re-jeitam a produção normalizada e apresentam aspec-tos conturbados. Muitas destas quimeras invocam, além do desarranjo, a circularidade, o mito de Sísifo, a mágica, o truque, o riso e o divertimento”.
2 “Poussière”. In: Georges Bataille. Oeuvres com-plètes I. Paris: Galimard, 1970: 195.
Fernanda Pequeno atua como crítica de arte e
curadora independente. autora de Lygia Pape e Hélio
Oiticica: conversações e fricções poéticas (apicuri,
2013), tem publicado textos críticos em folders,
catálogos de exposição e revistas. É coordenadora
de artes Visuais do instituto de aplicação Fernando
rodrigues da silveira da universidade do estado
do Rio de Janeiro (CAp/Uerj), onde atua como
professora-assistente de artes visuais e de história
da arte. doutora pelo programa de pós-graduação
em Artes visuais (EBA / UFRJ), realizou o estágio
de doutorado PDEE (bolsa sanduíche Faperj) no
Chelsea College of Art & Design, Londres, em
2012. Co-orienta no rio de Janeiro o Observatório:
produção e reflexão em arte contemporânea, grupo
de discussão teórico-prática, com foco na produção
recente da arte contemporânea.
bete esteves, Sem Título, 2013 Livros de formatos variados, máscara vinílica e poeira
52 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
outros teMpos soMbrios
Ana Luisa Lima
Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente;
nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era
em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no
momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi
recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo
sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes
oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas,
explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações.
Hannah Arendt, em Homens em tempos sombrios
A cada dia se demonstra mais claro que o marxismo ortodoxo falhou em prever o fim do capitalismo e que,
quando vislumbrou uma comunidade global socialista, não soube reconhecer a potência da individualida-
de nessa construção. nada há de tardio nesse sistema do capital que parece tomar novo fôlego depois de
cada crise. Em sua forma atual, com sinais fracos das antigas ideologias, nos tornamos simplificados como
elementos de dois conjuntos: com dinheiro e sem dinheiro, e isso sem garantia alguma de permanência
em um e outro. Trata-se de esmagamento sem precedentes do sujeito/subjetividade que tem-nos levado a
perder todo e qualquer parâmetro de pertencimento. Quase já não há conjunções simbólicas que nos con-
tornem, primeiro, como coletividade; segundo, como indivíduos. Massa informe, homogeneizada, ainda
que seja através dos discursos de singularidade, somos parte da grande engrenagem de manutenção do
sistema no qual cada desejo mais íntimo é transformado em commodities – vide o facebook.
Os sinais de fracasso que fizeram celebrar a morte do autor, o fim da história e das utopias têm-nos
feito caminhar para o auge de uma era que passei a chamar de Finus lato sensu, porque o fim de todos
os parâmetros nos parece ser uma finalidade em si mesmo, e esse sem finalidade nos coloca numa
perspectiva de looping, de um ‘sem fim’. Eram os sintomas de fim de uma situação que possibilitava a
demarcação de tempo como também a possibilidade de amanhecerem novas tomadas de posição. Ao
contrário disso, esse modo contemporâneo de percepção, de ser e estar no mundo, parece mesmo se
afirmar como existência condensada de espaço-tempo numa aceleração exacerbada, criando tempora-
lidade sem esquinas.
O campo da arte é espelho dessa condição. Ninguém está imune, nenhum de seus agentes (independentes
ou institucionais), está fora de viver sob a recorrente necessidade de adaptação e de manejos retóricos ao
sabor caprichoso do mercado. Há muito se colocaram em marcha ações que sutilmente tornaram privadas
53dossiê | AnA LuisA L imA
Luísa Nóbrega, esse é meu corpo. esse é meu sangue. dípticoframe de vídeo, 2013
as experiências coletivas. Em nome da profissiona-
lização do campo, já não há, em grande escala,
qualquer proposição artística em que o coletivo ve-
nha antes do privado. sintomas disso, são cada vez
mais legitimadas as feiras de arte e as exposições
espetaculares em que o consumo toma o lugar da
fruição. O consumo não é outra coisa senão a volta
de uma percepção meramente retiniana da obra.
Como haver produção de diálogos, criação de sub-
jetividades, sem essa possibilidade da experiência
estética pelo corpo? Não é a possibilidade dialó-
gica, criadora e criativa que há nas experiências
estéticas que faz a arte ser eventualmente imaginá-
rio coletivo? respondidas essas perguntas, talvez,
possamos dar-nos conta desse perigoso processo
que tem feito a arte perder seu valor simbólico para
ganhar cada vez mais apenas valor de mercado.
política e sujeito são temas constantes na arte
contemporânea. Tais verbetes, contudo, são invo-
cados nos eventos1 de artes, menos para ser discu-
tidos, questionados, ampliados, e mais para servir
de justificativa enquanto “qualidade filosófica” de
tais eventos. É preciso uma nova subjetividade que
acenda a discussão da necessidade de (re)pensar
os valores da obra de arte enquanto construção
de um imaginário simbólico coletivo. Um modo de
assegurar a preponderância da experiência estética
em si mesma, no lugar de (re)naturalizar a aura
do caráter objetual da obra. O conceito de nova
subjetividade (que cito na Tatuí 72) ainda é algo
em construção cuja base se encontra no legado
da Nova Objetividade, que segundo Oiticica se es-
trutura a partir das seguintes ideias:
1. vontade construtiva geral;
2. tendência para o objeto ao ser negado e
superado o quadro de cavalete;
3. participação do espectador (corporal, táctil,
visual, semântica, etc.);
4. abordagem e tomada de posição em rela-
ção a problemas políticos, sociais e éticos;
5. tendência para proposições coletivas e
consequente abolição dos “ismos” caracte-
rísticos da primeira metade do século na arte
de hoje (tendência esta que pode ser englo-
bada no conceito de “arte-pós-moderna” de
Mário Pedrosa);
6. ressurgimento e novas formulações do con-
ceito de antiarte.
Penso que, embora Oiticica tenha conseguido es-
clarecer bem os termos daquela produção artísti-
ca como “um estado típico de arte brasileira”, ain-
da assim, hoje, quando pensam aquele momento,
o fazem cada vez mais sob termos formalistas e
menos políticos. acredito que manifestações ar-
tísticas atuais estão profundamente entranhadas
do legado deixado pela Nova Objetividade, ainda
que o ponto de partida não seja mais um desejo
de objetividade, mas de subjetividade.
54
A esse respeito, proponho um olhar sobre a atual
arte contemporânea brasileira. Ao meu ver, não
existe ruptura entre aquele momento histórico e
o atual. apenas os modos de criação parecem to-
mar agora sentidos inversos aos daqueles, ainda
que permaneçam, no fim, numa mesma direção.
Ora, na Nova Objetividade era o substrato social,
coletivo, que acionava a criação, e a forma encon-
trava singularidade em cada artista. hoje, pensan-
do na maioria dos trabalhos que se veem, tanto
quanto nos discursos dos artistas, o substrato que
impulsiona a criação é assunto individual, particu-
lar, subjetivo, mas encontra na forma um modo
de se tornar assunto que diz respeito ao coletivo.
Luísa Nóbrega é pouco conhecida no Brasil, mas
tem passagens pela Ucrânia, Lituânia, Rússia, Es-
panha, entre outros sítios; há pouco mais de seis
anos a artista e escritora paulistana tem mergu-
lhado numa escritura de narrativas que posicio-
nam ‘o sujeito’ num lugar de vulnerabilidade.
Foi a partir de assuntos, dúvidas, limitações que
a moviam e que via em si mesma que deu iní-
cio a uma série de investigações que se abrem
em duas frentes: uma da ordem da percepção,
a outra, das construções ideológicas. a formação
da artista é em filosofia, teatro e dança, e seus
trabalhos encontram no corpo – não só em sua
prefiguração encarnada-matérica, mas também
em sua condição de ser canal de percepção e co-
municação daquilo que não se vê e que podemos
chamar de imaterial – seu início, meio e fim com-
positivos. Nóbrega tem desenvolvido trabalhos em
áudio e audiovisual, mas é na ação performativa
que sua escrita se desenrola em inúmeros capítu-
los. o corpo da artista em cena, de maneira nun-
ca óbvia, metaforiza situações das (des)venturas
humanas. essa metaforização em si mesma traz
à tona um corpo político. Politizar o corpo não é
apenas colocá-lo em exposição, mas fazê-lo capaz
de conscientizar-se do todo, sobretudo daqueles
discursos por trás dos discursos próprios da trivia-
lidade. as narrativas que propõe fazem, às vezes
de maneira positiva, às vezes de modo negativo,
o corpo consciente (de si e do todo) e o põem em
movimento crítico-reflexivo. Estão sempre em jogo
as situações-limite da fala e do silêncio, do cansa-
ço e do apaziguamento, do excesso e da sutileza.
Parte de seus trabalhos estão voltados para as
investigações de vocalização, emissão de som,
comunicação que se dá para além da fala. Em
degredo, ou porque nunca aprendi a falar, de
2011, ela extrapola sua condição de portadora
de limitação auditiva e passa a usar tampões em
Luísa Nóbrega, degredo, ou porque não aprendi a falar, registro de performance, 2011
55dossiê | AnA LuisA L imA
vez de seus aparelhos auditivos; durante seis dias
fica sem falar, vivendo normalmente em comuni-
dade, e no sétimo dia se isola, num pedaço de
floresta, à imposição de ininterrupta verborragia
de 24 horas, sem dormir. ao alterar um disposi-
tivo tão simples, de comunicação através da fala,
a artista consegue rearticular entre aqueles com
quem convivia outra forma de comunicação que
punha em xeque essa fala que é muleta de uma
afetividade emudecida pelo excesso. Ao estabele-
cer uma economia da linguagem, ela traz à tona
a consciência de um corpo afetivo e afetável às
mais singelas e sutis maneira de estar junto. se
por um lado esse trabalho faz saber a afetividade
atrofiada das pessoas diante de alguém limitado
em um modo de percepção (auditivo), por outro
também protagoniza a história de muitos que
dentro de uma coletividade civil são postos à mar-
gem de muitas narrativas cotidianas em função
dessa limitação.
Numa série de trabalhos desenvolvidos em 2013
– pesquisa impulsionada pelo desejo particular de
investigar os modos de vocalização e gestualidade
–, Nóbrega com ética e delicadeza põe em visi-
bilidade virtudes e contradições de comunidades
evangélicas da denominação “Deus é amor” com
as quais conviveu em Fortaleza-CE e Bagé-RS. Em
dois períodos de residência, a artista procurou vi-
ver com toda a inteireza os ritos e liturgias que
lhe eram ensinados durante sua presença assídua
nos cultos. sem dúvidas, tal engajamento levou-a
a questionamentos daquele modo de vida. Mas
é sem moralismos e respostas assertivas que seus
trabalham dão voz às questões filosóficas trazidas
pelo atrito entre um doutrinamento dogmático e
a realidade cotidiana, como nos vídeos o vermelho
não existe e esse é meu corpo. Esse é meu sangue.
Mas é num conjunto de trabalhos iniciado em
2012 que sua escritura demonstra outras dobras
de complexidade. entre a realidade e o fantástico,
na série de vídeos intitulada ventríloquo, a procu-
ra da ‘voz’ ganha tantos tons, que não se pode
afirmar apenas uma narrativa possível. A partir
de uma mesma imagem podemos nos conduzir
Luísa Nóbrega, ventríloquo. estudo número um, frame de vídeo, 2012
56 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
a enredos diversos: de delicadeza, de letargia, de
fantasmagoria, de condição vulnerável, de afeti-
vidade, etc. Tal é a sofisticação da linguagem que
coube em composições tão simples. São traba-
lhos como esses que nos põem em estados ine-
vitáveis de imaginação criativa. pôr o corpo em
fruição a uma experiência estética dessa natureza
reclama necessária subjetividade. Uma relação
que, em um só tempo, é ativa e afetável. É nesses
estados de afetação que os contornos de confi-
gurações simbólicas, ainda que transparentes e
transmutáveis, nos delineiam: primeiro como in-
divíduo, depois como coletividade. em outras pa-
lavras, o artista é um produtor simbólico criador
de um vocabulário estético que pode ser também
político − se for possível uma construção dialética
que flexione as desinências de acordo com os ra-
dicais produzidos pelos artistas. Fica a pergunta: é
possível a construção de configurações simbólicas
coletivas com as experiências estéticas cada vez
mais privatizadas?
NOtAs
1 Nessa ideia de evento cabem os mais diversos tipos
de exposições: em instituições, galerias comerciais,
bienais, feiras de arte; tanto quanto festivais de per-
formance, audiovisual, etc.
2 O texto referido se chama “Nova subjetividade: o
esboço de uma possibilidade”, publicado na Tatuí
7, em setembro de 2009, que trazia o tema “Algu-
mas organizações e outras arrumações sociais da
arte de agora”.
Ana Luisa Lima é crítica de arte e pesquisadora do
tema literatura e artes visuais – imagem e narrati-
va. Foi cocuradora do projeto poemas aos homens
do nosso tempo – hilda hilst em diálogo, progra-
ma Rede Nacional Funarte 9a edição. editora da
revista Tatuí (pe) desde 2006, atualmente faz parte
do grupo de crítica do Centro Cultural são paulo.
+ www.analuisalima.wordpress.com
Luísa Nóbrega, ventríloquo. estudo número três, frame de vídeo, 2012
dossiê | Lara VasconceLos 57
breVíssiMo ensaio sobre o risCo
Lara Vasconcelos
Pra onde vão os trens, meu pai? Para Mahal Tami, Cam rí, espaços no
mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir
e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti.
Hilda Hilst
E há também o arriscado jogo de abrir as palavras. Espiar sua origem escondida, umbigo etimológico.
Daí descobrir que perigo e experiência dividem o mesmo radical. E que também estão ligadas, de algum
modo, a palavras que nos contam sobre travessias, percursos, passagens, limites.1
A noção de experiência, tão recorrente nos discursos de artistas e críticos de arte, parece nos dizer, sobre-
tudo e de modo até simples, do que em nós se inscreve, do que nos acontece em detrimento do que sim-
plesmente acontece. É sobre uma certa permanência disso que “nos acontece”, sobre a forma como esses
acontecimentos nos reordenam, nos defasam de nós mesmos, que tal noção parece contar. o sujeito da
experiência como um território de passagem, como “uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta
de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos”.2
E a suspeita aqui é de que algumas coisas só nos acontecem porque nos movemos e nos implicamos, por-
que nos deitamos ao perigo do (des)encontro, saímos de um lugar para outro de nós, atravessando as linhas
invisíveis do tempo. É justo o risco, o perigo da implicação, de colocar o próprio corpo e seus afetos em jogo,
que me move a pensar o trabalho do jovem artista cearense Filipe Acácio.
O arriscar-se, na obra de Filipe, vem às vezes como um perigo que ameaça a integridade física, o corpo
do artista em jogo, como em Nada machuca, em que ele se lança repetidas vezes sobre um colchão
posto no chão, sendo que, a cada novo salto, afasta-se mais para pular, até que o corpo não encontra
o colchão, mas o chão.
Outras vezes o risco vem como algo abstrato, o não saber que outro de si pode surgir quando no encon-
tro com o “estranho-você”. ou ainda o risco como recurso formal, gesto. o lápis que risca a superfície,
o gesso que risca o chão.
Neste texto, me dedicarei a pensar, de forma breve, sobre dois trabalhos de Filipe Acácio, artista cujo
percurso venho acompanhando há cerca de dois anos. o que me guia na escrita destas duas notas
é o desejo de entender em que medida essas obras nos contam da simultaneidade da invenção de
si e do mundo.
58 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
Filipe acácio, Estria, performance, CCbnb, exposição Caminhando, Fortaleza (CE), abril de 2013Foto rodrigo patrocínio
Nota 1 – stranger You
as imagens, por mais especulares que às vezes
possam parecer, não são meros espelhos do real.
não. barthes talvez estivesse um tanto equivo-
cado quanto a sua ideia de imagem como “isso
foi”.3 E enquanto ele dormia, como na fábula dos
brinquedos que criam vida à noite, elas saíam
para dançar e seguir em suas sobrevivências.
Do embate criativo entre nós e as imagens, nin-
guém sai ileso. trata-se de experimentar em si um
deslocamento do ponto de vista: deslocar a pró-
pria posição do sujeito, a fim de oferecer meios
para deslocar a definição do objeto. É o que pa-
rece nos apontar Stranger You, obra exposta em
2012 na mostra coletiva Casa Aberta.4
Movido por desejos que, pelo menos inicialmente,
não pareciam contar exatamente da vontade de
fazer arte, Filipe ingressou na rede social Manrou-
lette, sistema de video chats destinado exclusiva-
mente para encontro de homens. o dispositivo
do site permite que cada usuário mantenha com
outro uma conversa em vídeo por vez. os pares
são formados de modo aleatório. O usuário é
quem decide até quando permanecer na conversa
ou passar rapidamente para outra sala de vídeo.
basta um clique.
Como a maioria dos usuários do Manroulette, Fi-
lipe mantinha relações sexuais virtuais com outros
rapazes da rede. depois de certo tempo, passou
a “fotografar” – através do botão Print Screen do
computador – as diversas situações que experi-
mentava naquele espaço. parte dessas imagens
foi enquadrada em porta-retratos com molduras
diversas e instalada em um corredor da galeria
Dança no Andar de Cima, criando a impressão de
que se estava diante de uma daquelas tradicionais
paredes de retrato de família, não fosse o conteú-
do das fotografias.
A maioria das imagens que o artista coletava exibia
recortes de corpos masculinos nus, cujos pênis ge-
ralmente ocupavam o centro das imagens. Captu-
rava também frames de quartos e cadeiras vazios
dossiê | Lara VasconceLos 59
ou de grandes borrões de pixels. Foram principal-
mente essas imagens que começaram a inquietar
o artista quanto ao que estava realmente fazendo
ali, naquele espaço virtual. pois se para Filipe as ca-
deiras vazias com frequência contavam sobre uma
situação pós-coito (já que apareciam quando os
homens do outro lado da tela se ausentavam para
limpar-se) também pareciam abrir clareiras no re-
gime de imagem estabelecido naquele lugar.
Stranger You não nos conta sobre um procedi-
mento artístico que se propõe a representar, nar-
rar ou recordar o que se vive. É uma obra que
acontece junto ao que se vive e porque se vive, de
modo que se torna impossível definir as fronteiras
entre os fluxos da vida e os da arte. As imagens
que a compõem nos confrontam com uma ideia
de humano que parece questionar aquela moder-
na, de sujeitos constituídos, que têm na premissa
de existir como tais a condição sine qua non da ex-
periência e do conhecimento do mundo. o artista
não preexiste ao que se passa consigo. seu siste-
ma cognitivo não é um palco de representações
de um mundo preexistente, mas “configura um
mundo ao mesmo tempo em que se autoproduz,
sempre num movimento de coengendramento”.5
É pensar que o que está em jogo não é a mera
apresentação de uma obra, mas a presentificação
de outro mundo. Um mundo que devém na pró-
pria experiência que a obra funda. e daí pensar
que o próprio gesto de criação está defasando o
criador de si mesmo, continuamente. E é nesse
processo de defasagem que as próprias obras en-
contram seus devires, seus movimentos internos
de diferenciação, de outramento. e nós seguimos
com elas, brincando de se estranhar.
Nota 2 – Estria
sobre uma placa branca de gesso o lápis grafi-
te desliza em um barulho desconfortável. Linhas
paralelas verticais ensaiam a perfeição que fica
mais longe a cada movimento do pulso. o ar-
tista repete o mesmo gesto de traçar até que já
não haja superfície. E então levanta, caminha até
algum ponto entre as outras obras e as pessoas
presentes, e deixa a placa escorregar das mãos e
encontrar o piso num estrondo insuportavelmen-
te incômodo. o artista então vira as costas e volta
para a mesa de trabalho. Recomeça.
No chão, os blocos brancos se espalham em
centenas de pedaços irregulares. as linhas, an-
tes paralelas, agora formam geografias impro-
váveis e transitórias, já que a cada passo dado
os cacos sob os pés se partem em outros meno-
res, mudam de lugar. os garçons que servem o
coquetel da abertura da exposição tentam en-
contrar os caminhos que ainda estão livres, para
não tropeçar no entulho. se os corpos presentes
se distraem brevemente, em poucos minutos se
sobressaltam outra vez com o golpe da placa
contra o chão.
É esse o modo que Filipe acácio encontra para
nos implicar. A cada passo dado sobre o gesso,
somos subitamente indiciados naquela cartogra-
fia branca que se forma na sala de exposições.
Os sapatos sujos de pó, o corpo em sobressalto a
cada placa que cai.
a primeira realização da performance Estria acon-
teceu na exposição Caminhando,6 quando o gru-
po de curadores convidou Filipe a pensar uma
proposição que viesse compor com as questões
propostas pela mostra, que se ocuparia do pro-
blema do corpo na arte contemporânea a partir
de obras que compunham o acervo do Centro
Cultural banco do nordeste.
o contexto dessa exposição, no entanto, não era
habitual. Ela seria talvez a última a ser realizada
no prédio então ocupado pelo CCBNB, que teve
60 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
de mudar de sede depois que a Justiça Federal,
que dividia o edifício com o Centro Cultural, com-
prou os quatro andares usados pelo Centro e
pediu a desocupação do espaço. Estria aparece,
assim, em um tempo de incertezas. um dos es-
paços culturais mais importantes da cidade ficaria
sem sede, e ainda enfrentávamos o fantasma da
possibilidade de ele simplesmente deixar de existir,
medo corroborado por outros eventos que envol-
viam (e continuam envolvendo) o banco do nor-
deste em grandes polêmicas.
A situação que se cria na ocasião da abertura da
exposição, quando o barulho das placas que se
espatifavam pelo chão se confundia com o ba-
rulho da reforma do terceiro andar, que já tinha
sido entregue à Justiça Federal, parece contar so-
bre uma provocação sutil gerada pelo incômodo
que a performance causava naquela circunstância
festiva. É como se, a cada placa que jogava no
chão, Filipe nos perguntasse: “E nós, de que for-
ma nos implicamos com o que está acontecendo
aqui, neste espaço, nesta cidade?”
o que a semana que se seguiu à realização da
performance revelou foi ainda mais inquietante.
aos poucos a administração do Centro Cultural
foi abrindo um caminho no chão coberto de ges-
so para que as pessoas chegassem até a sala de
teatro sem se queixar do percurso. depois, todos
os cacos foram juntados em um grande monte,
deixando a maior parte da sala ‘limpa’ para que o
público pudesse ver as outras obras sem maiores
incômodos. Por fim, a exposição foi fechada antes
do previsto, devido à poeira que a obra soltava.
Estria é um pouco mais do que um risco superficial
numa superfície branca. É um sulco, rasgo em um
espaço liso, de consenso. ao implicar nossos cor-
pos, ao nos implicar politicamente, essa obra nos
possibilita ver a breve luz de um comum possível.
Filipe acácio, Nada machuca, performance, alpendre Casa das Artes, Fortaleza (CE), exposição Adesgraçadalebre Pina
bausch, agosto de 2012Foto aline belfort
dossiê | Lara VasconceLos 61
NOtAs
1 “a palavra experiência vem do latim experiri, pro-var (experimentar).A experiência é em primeiro lu-gar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. a raiz indo-europeia é per, com a qual se relaciona an-tes de tudo a ideia de travessia, e secundariamente a ideia de prova. (...) o sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessan-do um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião.”(Bondía, Jorge Larrosa. Notas sobre a expe-riência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n.19, jan.-abr. 2002.)
2 Bondía, op. cit.: 24.
3 ideia defendida pelo autor no livro A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
4 Mostra realizada em janeiro de 2012 no espaço dança no andar de Cima. Fortaleza, Ce.
5 Kastrup, virginia. Enatuar. In: Fonseca, Tania Mara Galli; Nascimento, Maria Livia do; Maraschin, Cleci. Pes-quisar na diferença. Porto Alegre: Sulina, 2012: 85.
6 exposição resultante dos encontros do Grupo de es-tudos Processos de Curadoria do CCBNB − Fortaleza.
Lara Vasconcelos é mestranda no Programa de
pós-Graduação em Comunicação da universidade
Federal do Ceará. tem-se dedicado à investigação
nas áreas de crítica e de curadoria em artes visuais
e cinema. Hoje compõe o Laboratório de Artes vi-
suais do porto iracema das artes com a pesquisa
piratas do desvio.
Filipe acácio, Estria, performance, CCbnb, exposição Caminhando, Fortaleza (CE), abril de 2013Foto Juliane peixoto
62 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
desenho e risCo – A poética de Gabriel Gimmler Netto
João Cícero
Desenhar como quem luta contra o desenho − eis a premissa poética do trabalho artístico de Gabriel
Gimmler Netto. O artista gaúcho é designer desde muito jovem. E sua produção plástica propõe uma ne-
gatividade com o campo do design. tal negação não deve ser entendida como simplória. a paixão criativa
do artista plástico não é menor do que a do designer. Há muitas concepções para esse campo nos dias de
hoje, e o negativo produzido por netto nasce da luta contra uma concepção hegemônica de que o design
e o desenho são instrumentos projetuais portadores de grandes ideias.
pode-se dizer que a concepção tradicional de design está ancorada num sentido intelectual do desenho
presente no gótico, e, mais propriamente, no Renascimento. Essa concepção afirma a potência intelec-
tiva do desenho de conhecer o mundo. Desenhar é conhecer. E, consequentemente, conhecer é saber. E
saber é ter o poder de inventar novas ideias e formas − espaços ‘utópicos’ (“imagens”).1 Logo, o dese-
nho analisa. depois, constrói novos espaços a partir de projetos.
Tal função cognitiva do desenho é invertida na obra de Gabriel Netto. Em parte, desenhar é des-conhe-
cer. É, fundamentalmente, experimentar o rastro do mundo, isto é, buscar os índices não gestálticos,
cruzando, assim, o sentido da visão ao tátil. ver é tocar. Mas tocar é também ver.
Há, desse modo, no trabalho do artista, uma pedagogia. Essa é formulada a cada processo, porque a
experiência tátil e óptica de desenhar deve experimentar a resistência dos materiais: tecido, madeira, pa-
pel, tronco de árvores secas, entre outros. e o artista experimenta o desenho como risco em superfícies
precárias e densas, captando a resistência dessa materialidade residual do mundo – o que esse descarta
ou está prestes a descartar.
Essa pedagogia subverte a relação cognitiva do desenho porque se origina de uma crítica ao axioma
mimético modelo-cópia, no qual o desenho no Ocidente ficou aprisionado. Não se trata de subsumir
formas perfeitas de um modelo e projetar numa superfície plana. nem de captar realisticamente os tra-
ços sensíveis de um corpo/objeto. Mas de intensificar a própria experiência sensível do traço, alcançando
uma energética do desenhar e não uma mecânica da cópia.
Há, de fato, uma tradição pedagógica de ‘desaprender’ nas artes visuais (desenho, pintura e escultura),
praticada por uma série de artistas modernos (como Pablo Picasso, Henri Matisse, Jackson Pollock, Willem
De Kooning etc.). Desaprender é buscar a singularidade da arte contrariando o mundo dos fazeres reifica-
dos. Nesse sentido, a matriz pedagógica do trabalho de Gabriel Netto é moderna. Contudo, ela se constrói
imersa numa ética da arte contemporânea: a de abarcar a promiscuidade do mundo em sua diferença
temporal e espacial.
63dossiê | João CíCero
Gabriel Gimmler Netto, Desenho Instalado 6, 2012grafite sobre tecido, dimensões variadasmontagem EAv Parque Lage, Rio de Janeiro, Foto Carolina Veiga
A definição de desenho para Gabriel Netto passa
a ser, portanto, existencial e não essencial. dese-
nhar não é representar símbolos universais, e sim
imprimir gestos numa superfície. daí o fato de os
processos serem criados a partir de uma relação
performática com os materiais.
Desde 2003, Gabriel Netto vem construindo
uma pesquisa de três séries que se retroalimen-
tam. Cabe, pois, comentar cada uma delas a fim
de que se compreenda o trabalho poético do
artista. de imediato, a relação seriada nos leva
a atentar para o investimento de netto de acen-
tuar o aspecto inacabado do trabalho. Cada série
se edifica a partir de um movimento diante do
desenho, ou seja, a construção de uma proposi-
ção performática.
A série intitulada Estudo de Amplitude tem como
premissa expandir o traço do grafite na superfí-
cie do papel vegetal. Gabriel Netto diz que são
desenhos de grandes dimensões gerados pela
repetição gestual de esticar e dobrar os braços.
Entretanto se observa o quanto essa gestualidade
do desenhista não está desligada de uma orga-
nização óptica. evidentemente, não se vê um es-
paço tridimensional ilusório. e sim a presença de
uma sensibilidade tátil e óptica que se atravessam
mutuamente.
tal atravessamento ocorre exatamente por conta
desse processo negativo perante a técnica. A pro-
posta (pedagógica), portanto, é a de experimen-
tar apenas a repetição gestual do braço sobre a
superfície de papel vegetal. Contudo, há no corpo
do artista uma memória óptica do espaço. e essa
memória é vista na superfície das telas: a presen-
ça de centros espaciais como eixos de irradiações
do grafite, expondo sua frequência energética – a
vibração atlética dos gestos de Gabriel Netto em
linhas de chegada e de partida.
Estudo de Amplitude # 1 é feito a partir de riscos
de grafite no papel vegetal. Tais traços se indefi-
nem entre o centrípeto e o centrífugo. ora eles
nos mostram a presença de uma profundidade
que indica o centro do desenho. ora nos adver-
tem acerca da planaridade do fora da própria
tela. isso porque o papel vegetal repleto do ne-
gror do grafite armazena essa oscilante ordem
óptica gerada pelo caos dos gestos. revelando,
assim, o quanto de visão há no braço do dese-
nhista (e o inverso também vale) – apesar de ele
estar submetido a intensa gestualidade.
em Estudo de Amplitude # 2 a convergência centrí-
peta ganha força. nota-se na montagem das seis te-
las o cerne das direções do grafite. Mas esse núcleo
de alinhamento de energia, marcado pelo grafitado
negro, ganha uma flutuação no espaço, produzi-
da pelas bordas brancas das telas, que sugerem
a relação figura-fundo. Há o jogo entre o branco
64
transparente do papel e o preto vibrante do grafite
que estabelece a necessidade de um olhar pictóri-
co à tela. Mas a presença visual dessa insistência
do gesto performático de fundir linhas sobre linhas
alude à presença de uma forma quase geométrica
suscitada pelo vértice desses riscados, insinuando a
presença de um objeto concreto no espaço. Nem
mancha pictórica. Nem forma geométrica. Mas o
jogo indiciático da incompletude de ambos.
Estudo de amplitude # 3 e Estudo de Amplitude
# 6 apresentam a pesquisa de movimentos opos-
tos entre si. O terceiro estudo registra a pregnân-
cia de linhas retas que marcam a superfície dos
dois papéis vegetais pelo amassado do gesto de
riscar de Gabriel Netto, enquanto o quarto estu-
do expõe a coordenação apolínea de movimentos
circulares em duas superfícies que se complemen-
tam na montagem dos quadros. retas e círculos
amplos exibem o sentido da direção corpórea do
movimento do desenhista-performer em vai e
vem. do mesmo modo, os dois estudos se unem
com as outras duas séries de Gabriel Netto: De-
senho Instalado e Coreográficos. A vontade de
estudar a amplitude do desenho provocou a cons-
trução de ambientes, instalações. E a dança dos
gestos alude a uma coreografia. Por isso, as séries
formam um circuito criativo de pesquisa artística.
Cada uma delas apenas radicaliza um aspecto da
investigação de netto.
Desenho Instalado é a série que estabelece relação
direta entre o desenho e o ambiente da sala de ex-
posição. Nessa série, o desenho acaba por trans-
formar-se no próprio conceito plástico, porque
ele não é mais entendido como apenas o produto
do grafite. Tal conceito de desenho inclui em si
mesmo as superfícies diversas nas quais os riscos
marcam sua presença, visto que elas propõem
formas a contemplar no espaço. desenha-se
com ripas de madeira, tecidos ondulantes e
com papéis que preenchem a extensão espacial.
Nota-se aí a ética contemporânea do trabalho de
Gabriel Netto, uma vez que não há a determina-
ção de gêneros (escultura, pintura e desenho). ri-
pas são desenhos porque elas cortam o espaço,
demarcam cantos e eixos. assim sendo, o próprio
espaço vazio da galeria passa a ser redesenhado
pela série, do mesmo modo como as ripas trazem
a impressão do desenho do artista.
Em Coreográficos, Gabriel Netto entra em con-
tato com uma das matrizes importantes de seu
trabalho: a dança. O jazz aleatório das tintas de
Jackson Pollock criando ambientes e não quadros,
como disse Allan Kaprow, inspira, certamente, a
mudez ampla do grafite coreográfico de Netto.
se desenhar e pintar era no passado a expressão
de uma relação estática do artista com o mundo,
hoje a experiência corporal que se opõe a isso é a
do bailarino. Há uma óptica/ética do movimento
do bailarino que se contrasta com a do pintor e
a do desenhista tradicional. O trabalho de Gabriel
Netto almeja tocar nessa problemática do dese-
nho sem o maniqueísmo com que certos setores
da arte contemporânea acabaram por produzir
um fascismo contra o desenho.
Gabriel Gimmler Netto, Estudo de Amplitude 2, 2004, grafite sobre papel vegetal, 600 x 200cm (dimensão total)
Foto Carolina Veiga
65dossiê | João CíCero
e a luta contra o sentido de desenho tradicio-
nal solicita do artista uma amplitude do próprio
conceito do gesto de desenhar, unindo em sua
poética a performance e a instalação como pro-
cedimentos do próprio desenho. se o desenho e
o design (vistos por um ângulo tradicional) estão
acorrentados a uma lógica metafísica do projeto,
vale pensá-los em relação com o aqui agora vivo
da performance e o corte espacial da instalação
não para que se criem ideias a partir deles, e sim
para que eles se reflitam conceitualmente.
a pesquisa de netto se relaciona com o coletivo de
artistas de seu ateliê Subterrânea em Porto Alegre,
RS (Gabriel Netto, Guilherme Dable, James Zortéa,
Lilian Maus, Túlio Pinto). Tais artistas produziram
uma exposição chamada Instâncias do Desenho
com a curadoria de Felipe scovino. nela havia o
intuito de se pensar o desenho na contemporanei-
dade. E cada um dos membros do coletivo trouxe
uma resposta e uma tensão entre o desenho e ou-
tras sensibilidades plásticas. A relação da cor e da
mancha pictórica se vê com bastante intensidade
no trabalho de Lilian Maus. Já o desequilíbrio pro-
posital e criativo entre formas geométricas e man-
chas é apresentado pelos quadros de Guilherme
Dable. Nas obras de Zortéa nota-se uma espécie
de hiper-realismo decorativo de figuras em tensão
com o fundo planar do quadro. há no artista um
diálogo satírico com a cultura Kitsch. Já o traba-
lho de túlio pinto pensa o desenho pela disposi-
ção dos objetos no espaço. Objetos que sugerem
a dramaticidade da queda ou que intensificam
uma descontinuidade sensível da percepção. a di-
ferença poética do grupo solicita mais do que um
comentário ligeiro, e sim um olhar analítico sobre
as obras, que, infelizmente, não será possível cons-
truir aqui. É, pois, relevante o fato de que a pesqui-
sa de netto se dá em diálogo com esses artistas.
Diálogo, como se observa, repleto de dissensão.
Gabriel Gimmler Netto, Estudo de Amplitude 1, 2013, grafite sobre papel vegetal, 200 x 100cm Gabriel Gimmler Netto, Coreográfico 1, 2010, grafite sobre papel,150 x 100cmGabriel Gimmler Netto, Coreográfico 2, 2010, grafite sobre papel,100 x 40cmGabriel Gimmler Netto, Coreográfico 3, 2010, grafite sobre papel, 200 x 80cmColeção particularFotos Carolina Veiga
66 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
esse contraste entre os artistas nos põe em con-
tato com um aspecto da delicada e, ao mesmo
tempo, áspera obra de Gabriel Netto. Essa delica-
deza se vê pela constância das linhas que, mesmo
quando grossas, como na série Estudo de Ampli-
tude, ou inconstantes e nervosas, como em Co-
reográficos, mostram uma polidez do gesto do
performer – sua vontade de se manter distante
do mundo espetacular dos insights do campo do
design. Mas é a aspereza do risco que produz a
crítica ao virtuosismo do desenho, almejando
uma ‘pré-história’ do desenho. Mesmo que essa
‘pré-história’ reflita a busca de um traço impossí-
vel e desaprendido, em que o desenhista nega seu
próprio desenho pela emergência do risco.
NOtA
1 Refiro-me à concepção que delimita o campo do design pela função de criador de imagens de produtos.
João Cícero é crítico e teórico de arte e teatro, dra-
maturgo e escritor. Formado em teoria do teatro
pela unirio, é mestre em artes cênicas pela unirio
e doutorando em história social da cultura pela
PUC-Rio. Desde 2007, leciona estética e histó-
ria da arte no bacharelado de Artes visuais do
senai-Cetiqt.
Gabriel Gimmler Netto, Desenho Instalado 2, grafite sobre papel vegetal e decalques em fita adesiva, dimensões variadasmontagem paço imperial, rio de Janeiro, 2010Foto Carolina Veiga
67dossiê | osvaldo Carvalho
VoCê está Vendo o que eu estou Vendo?A homenagem à cor de Julio Leite
Osvaldo Carvalho
Quando aprendemos que “a cor não tem existência material, é apenas sensação produzida por certas
organizações nervosas sob a ação da luz – mais precisamente, é a sensação provocada pela ação da luz
sobre o órgão da visão”,1 podemos inferir que as coisas, tal e qual as vemos, dependem, antes, de nossa
vivência. Logo, nenhuma pessoa vê o mundo de modo igual ao de outra. E, por conseguinte, talvez nin-
guém reconheça o mundo como ele realmente é, e só o perceba do seu ponto de vista ou quando muito
somado às experiências alheias. Porém, longe de ser demérito, esse fato poderia servir de suporte para o
entendimento das particularidades e das diversidades humanas, uma vez que objetivamente precisamos
que alguém dê suporte àquilo que nosso cérebro está refinando conceitualmente. Por isso, não raro,
perguntamos ao outro: você está vendo o que eu estou vendo?
•Conheci o trabalho de Julio Leite numa exposição coletiva em que participávamos pela Funarte de Brasília
no programa de exposições Atos visuais, em 2006. De imediato veio à mente aquela brincadeira de testar o
cérebro pedindo a alguém que fale a cor que vê na palavra escrita, por exemplo, escreve-se azul em verme-
lho, amarelo em roxo, laranja em verde, etc. A tensão que esse teste cria decorre do conflito que há entre
os hemisférios do cérebro, em que o direito puxa pela cor e o esquerdo busca a palavra, cada qual tentando
fazer prevalecer sua razão. A série que ele apresentava, intitulada Croma, era um desenvolvimento bem
encaminhado desde 2000 e que tinha surgido de uma experimentação pictórica utilizando letras e palavras
no intuito de compor um sistema de imagens em suportes variados, da gravura ao vídeo passando pela
fotografia, instalação, pintura, etc. No caso em questão eram duas instalações de parede compostas cada
uma de um painel em grande formato. Em um painel lia-se HOMENAGEM AO AZUL e, no outro, HOMENA-
GEM AO vERMELHO. O primeiro era uma pintura bicolor com fundo verde e letras garrafais em vermelho;
o segundo com fundo amarelo e letras garrafais em azul. o vigor de sua execução nos cartazes, feitos à
mão livre, era patente; nada ali indicava haver uma prévia organização material ou espacial, senão pela au-
sência objetiva do homenageado. Em sua arquitetura metalinguística, Julio Leite propunha ao observador
uma plena convicção de admiração a uma determinada cor, mas, subvertendo os alicerces desse cerimonial
ao deixar de lado sua presença, tornava-a uma memória que deveria ser resgatada individualmente pelos
presentes. Nesse momento tínhamos a antecipação de uma pequena tragédia coletiva, posto que se cada
indivíduo fizesse aflorar seu matiz de azul ou vermelho (num espectro exponencial) a obra ganharia contor-
nos que extrapolariam sua mera existência física.
68 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
Julio Leite, Sem título, série CROMA, 2006, Funarte, brasília Foto Marina Camargo
•paradigmático das intenções de Magritte o qua-
dro A traição das imagens (Ceci n´est pas une
pipe) ilustra bem o colapso das correspondências
habituais entre o objeto, sua imagem e sua defini-
ção verbal, lançando as bases das pesquisas futu-
ras no âmbito da arte conceitual em que Kosuth,
em um processo metalinguístico na série Arte
Como ideia, encerra a obra no seu próprio círculo:
não diz mais do que o que já está implícito no
que ela é, ou seja, uma demonstração da cate-
goria lógica da arte. “A obra não tem qualquer
pretensão de narrar o mundo, mas – de acordo com as premissas filosóficas de que provém – con-firma sua presença no próprio gesto que a cria”2. encontramo-nos, por conseguinte, perante um ato desprovido de ambições subjetivas, liberto de qualquer presumível ligação com a realidade ex-terior, e cujos enunciados acabam, precisamente
por isso, sendo totalmente verificáveis. A obra de
Kosuth coloca-se assim na esteira das pesquisas
semiológicas de Magritte, centradas no problema
do confronto entre sistemas diferentes de repre-
sentação e, portanto, de “nomeação” da realidade.
“Kosuth radicaliza o método de Magritte, torna-o
mais frio até converter em mera análise laboratorial
da linguagem e do seu funcionamento”.3
O ponto principal, entretanto, vem a ser a liberda-
de que se conquista a partir desse momento em
que a escrita ganha novo alento remontando, por
exemplo, sua importância à escrita egípcia como
símbolo de um padrão estético cujo valor se liga
ao transcendental.
•Em sua poética visual Julio Leite não se afasta das
prerrogativas que o antecedem historicamente
nem tampouco ignora a imprescindível necessi-
dade de se arriscar conjugando de maneira aus-
tera, mas não simplista, permanência e experi-
mentação. Croma é um significativo desafio em
que ele, com desenvoltura, transita entre polos
longínquos sob o pragmatismo que muitas vezes
escapa ao artista contemporâneo. Passando por
todas as teorias e sistemas de cor desde as for-
muladas por Leonardo da vinci, Isaac Newton,
Goethe até as mais recentes como as de Wilhelm
Ostwald, Albert Munsell e Alvy Ray Smith, para
citar alguns, fica evidente a compreensão que
possui de que cor não é um fenômeno físico,
mas fisiológico, consequentemente, de caráter
subjetivo e pessoal. Ao render homenagem ao
vermelho, por exemplo, sem que fisicamente o
incorpore à obra, propõe que sejamos cúmplices
daquele entendimento e sejamos capazes de con-
viver com as diferentes acepções de cor. Mais do
que radicalizar, seu feito amplia possibilidades,
traz a oportunidade de refletir sobre o que consi-
deramos cor no lugar daquilo que passivamente
aceitamos ser cor. sua homenagem estende-se
como um convite à tolerância.
69dossiê | osvaldo Carvalho
Dissecando as potências inerentes das cores até
os veios do olhar e indispondo suas regras bási-
cas por intermédio de uma práxis antipedagógica,
mais próxima da filosofia marxista que do existen-
cialismo sartriano, o artista intenta transformar o
modo como vemos o mundo, como nos relacio-
namos com o incômodo, sem nenhum didatismo
à vista, apenas o referencial escrito que funciona
consoante um pavio relativo4 a instar o observador
para que reflita, especialmente sobre suas próprias
ilusões. ao ler As palavras e as coisas, de Michel
Foucault, de imediato me chamou a atenção esta
frase na capa do livro: “Livre da relação, a repre-
sentação pode se dar como pura apresentação.”5
Distanciada de seu contexto ela é impactante e
expande nossos horizontes e poderia, com efeito,
servir ao arcabouço mental para as pesquisas de-
senvolvidas por todo artista tão bem apropriada
que é em si. Todavia, logo no início da leitura do
livro a frase inspiradora se revela dessemelhante,
alterada por que razões? “E livre, enfim, dessa re-
lação que a acorrentava, a representação pode se
dar como pura representação.”6 Esse é o trecho
final do estudo que o filósofo faz sobre a pintura
Las Meninas, de Velásquez, em seu capítulo i. a
disparidade, a princípio, não me pareceu passível
de qualquer ponderação uma vez que deslocava
abruptamente uma linha de raciocínio minuciosa
e criteriosamente exposta e estaria sugerindo um
amplo enfoque de aplicação relativamente frágil
diante da magnitude empenhada pelo autor. por
outro lado, ipso facto, como ignorar as tantas fra-
ses soltas que encontramos todos os dias espa-
lhadas pelas ruas derivadas ou oriundas de fontes
improváveis – bíblias, internet, para-choque de
caminhão, banheiro público – e que simplesmen-
te acabam estampadas, em destaque, nos mais
diversos suportes? Eis a cultura massificada que
Julio Leite não deixou escapar em sua fatura cien-
te dos imperativos publicitários e dos mecanismos
metalinguísticos culminando com a tentativa de
fazer o observador ter um determinado compor-
tamento tanto quanto eu fui levado a simpatizar
com aquele livro pela frase (de efeito) que vinha
estampada em sua capa junto ao retrato do au-
tor. esse consenso informal gerado pelas mídias
está nas fundações da pesquisa do artista sendo
análogo ao mote de questionamentos de nossas
certezas, cuja dinâmica intrínseca é essencialmen-
te engajada em transpor as barreiras do que foi
convencionado em demanda do que é inaudito,
de sorte que podemos auferir dos trabalhos de Ju-
lio Leite aquilo que Merleau-Ponty assertivamente
captou em Baudelaire: “a obra consumada não é,
portanto, aquela que existe em si como uma coi-
sa, mas aquela que atinge seu espectador, convi-
da-o a recomeçar o gesto que a criou”.7 o convite
que nos faz é incontornável, e sentimos ainda por
certo período ecoar em nossas cabeças o chama-
mento pela cor que se estende para além de nos-
sa passagem pela obra, e ficamos a completá-la
mentalmente em devaneio, o que exorta a outro
Julio Leite, Sem título, série CROMA, 2012, intervenção nas ruas de natal
Foto Julio Leite
70 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
tema caro nos dias atuais ao artista contemporâ-
neo − o vazio de sua produção, tema esmiuçado
em diferentes áreas como na literatura, por Alber-
to Moravia, na filosofia por Gilles Lipovetsky, e na
crítica de arte, por Avelina Lésper; e que a fatura
do artista empenha-se por refinar seus meios na
mesma ordem que persiste na fundação de um
paradigma quase que obsessivo – o incessante
propósito de homenagear a cor.
São esses canais adjacentes abertos ao escrutínio
público que definirão um dia em que medida es-
teve o artista diante da banalização ou da singula-
ridade artística. Julio Leite está ciente da comple-
xa relação que há no legado com que trabalha e
manipula suas próprias inquietações; não lhe foge
a circunstância da estrutura burocrática em que
está imersa a arte, contudo também está cônscio
de que é preciso tempo, o sagrado remédio de
todos nós, para que se possa afirmar que isto ou
aquilo é arte.
NOtAs
1 pedrosa, israel. Da cor à cor inexistente. rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial ltda, 2003: 17.
2 Segundo Kosuth toda obra, na sua qualidade ino-vadora individual, não é mais do que uma (nova) manifestação do conceito de arte. por conseguin-te, a obra de arte é uma tautologia posto que uma apresentação das intenções do artista: ele afirma que essa obra particular é arte, o que implica, sendo as-sim, que é uma definição da arte.
3 sproccati, sandro (org.). Guia de história da arte. Lisboa, 1997: 244.
4 se pensarmos a linguagem de acordo com os cri-térios de Wittgenstein, sendo sua função descrever a realidade porque em rigor nada pode ser dado fora da linguagem, também teremos que considerar seu outro lado, que é justamente o limite da linguagem quando nada mais se pode falar.
5 Foucault, Michel. As palavras e as coisas. são pau-lo: Martins Fontes, 2007: capa.
6 Foucault, op. cit.: 21.
7 Merleau-ponty, Maurice. O olho e o espírito. são Paulo: Cosac & Naify, 2004: 81
Osvaldo Carvalho é artista visual e mestre em
poéticas visuais pela ECA-USP, atua como curador
independente e desde 2011 curador da Galeria
de Arte Meninos de Luz nas comunidades do
pavão-pavãozinho e Cantagalo, no rio de Janeiro.
Julio Leite, Sem título, série CROMA, 2008, Sesi-SP, Mogi das Cruzes Foto autor desconhecido
dossiê | Heldilene Guerreiro reale 71
GUY vELOSO: um fotógrafo peregrino entre roteiros de fé
Heldilene Guerreiro Reale
o envolvimento de Guy Veloso1 com o universo das artes visuais não se deu em um único momento;
desde sua infância a proximidade com referências artísticas por meio da própria família estimulou esse
encontro. as vivências experimentadas naquele período foram norteando esse caminho. a memória de
ter visitado uma exposição do fotógrafo Luiz Braga, na Galeria Ângelus, na época localizada no Teatro
da Paz em Belém do Pará, faz parte do acervo de suas lembranças.
Aos 18 anos, quando iniciava o curso de direito, sentiu que faltava algo que viesse de encontro ao for-
malismo acadêmico do curso que havia escolhido. Foi então que começou o percurso de enlace com a
fotografia, iniciando essa busca em um curso com o paulistano Fernando Del Pretti. A fotografia come-
ça assim a se manifestar em sua vida não só como espelhamento da obra de fotógrafos como Flávya
Mutran, Paulo Amorim, Paula Sampaio, Paulo Santos, Miguel Chikaoka, Luiz Braga, entre outros, mas
através do contato pessoal e trocas de experiências com esses fotógrafos.
A partir desse momento, passa a compreender que a fotografia era um meio que lhe possibilitava expres-
sar-se através da visualidade, já que, desde cedo, a reflexão e o contato com as artes visuais o instigavam.
Nesse contexto, Silva dialoga com as artes visuais caracterizando-a como um dispositivo de reflexões em
que “moldes, identitários sempre foram e continuam sendo produzidos. se o homem atua em sua cons-
tante interpretação do mundo, esse processo de leitura é guiado por uma gramática das formas que é,
em grande parte, gerada pelas artes”.2
para o autor, a arte gera um processo de constante interpretação do mundo, revelando identidades de
sujeitos, culturas e lugares. A partir do momento em que Guy veloso percebeu que podia trazer sua
identificação com a religiosidade para o universo fotográfico dá início a seu processo de peregrinações.
O caminho das memórias de suas peregrinações inicia-se em 1993, aos 23 anos quando conclui o curso
de direito. Guy veloso parte rumo à Espanha com o desejo de caminhar até Santiago de Compostela. Em
seu percurso peregrino a câmera fotográfica começa a ser sua companheira inseparável, que estabiliza o
olhar do fotógrafo documentando a imagem que o vê e que por ele é vista nos povoados que percorre.
No Brasil começa a desenvolver fotografias no cenário da arte contemporânea paraense a partir de uma
rede de interesses com o tema da religiosidade e da cultura popular. temas que estimulam o fotógrafo
ao armazenando de uma rede de informações e de informantes no país.
De acordo com essas informações o artista traça um roteiro anual, que contenha as especificações de
procissões, festas e eventos que fazem parte da cultura religiosa e popular do brasil, realizando longa
72 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
Guy Veloso, Promesseiro. trasladação, procissão que antecede o Círio de Nazaré, Belém, PA, 2010; slide
pesquisa na internet, em livros, com historiado-
res e folcloristas. segundo Guy, por questões de
tempo e de financiamento, não consegue seguir
totalmente esse roteiro. ainda assim, tem feito
ao longo de sua trajetória roteiros contínuos nas
principais romarias, como o Círio de Nazaré, em
Belém, PA (documentado desde 1991), a Romaria
de Finados, em Juazeiro do norte, Ce (documen-
tada desde 1998), e o Projeto Penitentes, reali-
zado durante o período quaresmal, ininterrupta-
mente desde 2002 nas cinco regiões do país (até
agora, 141 grupos em dez estados).
Além desses percursos, há oito anos o historiador
e fotógrafo Michel pinho levou Guy Veloso a co-
nhecer os rituais de matriz africana. desde 2010,
Guy vem documentando as cerimônias com mais
frequência. Em 2012, recebeu convite do XXX
salão arte pará, curado por paulo herkenhoff e
armando queiroz, para expor parte desse mate-
rial na igreja Jesuíta de santo alexandre,3 exibin-
do fotos de rituais de candomblé e umbanda em
um espaço de herança católica, algo nunca antes
ocorrido, tornando evidente no campo material
característica sempre presente no trabalho de Guy
veloso: negociação e diálogo inter-religioso.
em especial no projeto penitentes e os cultos
de matriz afrodescendente, Guy Veloso realiza
cuidadosa negociação prévia, pois só consegue
fotografar sentindo-se aceito pela comunidade.
Em seus trabalhos autorais utiliza apenas lentes
35mm, pois pretende chegar bem perto das pes-
soas envolvidas, conhecendo de maneira íntima
o fato por trás da lente. para que isso ocorra, cria
um canal de negociação com os sujeitos envolvi-
dos, estabelecendo assim nesse percurso a estéti-
ca relacional. presente na esfera das relações hu-
manas, a estética relacional, pode ser entendida a
partir do processo de criação artística:
a forma só assume sua consistência (e adquire
uma existência real) quando coloca em jogo
interações humanas; a forma de uma obra de
arte nasce de uma negociação com o inteligível
que nos coube. Através dela o artista inicia um
diálogo. A essência da prática artística residiria,
assim, na invenção de relações entre sujeitos.
Cada obra de arte particular seria a proposta
de habitar um mundo em comum, enquanto
o trabalho de cada artista comporia um feixe
de relações com o mundo, que geraria outras
relações, e assim por diante, até o infinito.4
Muitas vezes durante as pesquisas no sertão nor-
destino, o fotógrafo viajava pela manhã ao local
da cerimônia noturna dos penitentes, a enco-
mendação das almas, restando-lhe, durante a
tarde, algum tempo ocioso, o que gera a ideia
de comprar uma filmadora e começar a gravar de-
poimentos dos líderes dessas confrarias. isso es-
treitou ainda mais os vínculos com essas pessoas
e com o assunto, totalizando mais de 100 horas
de arquivos. dessa forma, o artista lança mão da
dossiê | Heldilene Guerreiro reale 73
história oral para a obtenção do acervo da memó-
ria desses sujeitos que fazem parte desses roteiros
peregrinados pelo fotógrafo.
Nos registros filmados por Guy, a história é con-
tada num contexto de vivências individuais e co-
letivas, que nos possibilitam o acesso a falas de
sujeitos que vivenciam diretamente o contexto
religioso e popular registrado. a questão da me-
mória é apresentada por meio da história oral do
sujeito que faz parte da cena; assim,
A essencialidade do indivíduo é salientada pelo
fato da história oral dizer respeito a versões do
passado, ou seja, a memória. Ainda que esta
seja sempre moldada de diversas formas pelo
meio social, em última análise o ato e a arte de
lembrar jamais deixam de ser profundamente
pessoais. A memória pode existir em
elaborações socialmente estruturadas,
mas apenas os seres humanos são capazes
de guardar lembranças. A memória é um
processo individual, que ocorre em um meio
social dinâmico, valendo-se de instrumentos
socialmente criados e compartilhados. Em vista
disso as recordações podem ser semelhantes,
contraditórias ou sobrepostas.5
O universo dos registros de Guy gera possibilida-
des de estudos de memórias sociais em seu cam-
po artístico, e “o estudo da memória social é um
dos meios fundamentais de abordar os problemas
do tempo e da história, relativamente ao qual a
memória está ora em retraimento, ora em trans-
bordamento”.6 assim a memória “cresce na his-
tória, que por sua vez a alimenta, procura salvar
o passado, para servir ao presente e ao futuro”.7
as imagens capturadas nessa atmosfera religiosa
e popular, segundo o artista, repercutem a memó-
ria de um acervo de registros que levará “à pos-
teridade informações sobre algo que tende a se
modificar com os anos. Falo em especial de várias
tradições religiosas que estão por vias de terminar.
quero resguardar esta memória”.8
segundo sarlo,
A relação entre memória e esquecimento
pode-se objetivar num discurso, mas, para
que a relação exista, deve também existir o
documento capaz de dar à memória pelo
menos a mesma força do esquecimento:
o documento que se imponha como pilar
da memória e que a memória tende,
inevitavelmente a rejeitar.9
Além dos arquivos em fotos e filmagens, o fotó-
grafo também armazena arquivos de documen-
tos relacionados a seu tema penitentes, que inclui
registros fonográficos, blocos de anotações, uma
biblioteca específica e uma coleção formada por
aproximadamente 250 objetos originais entre
mantos, matracas,10 disciplinas,11 amuletos, car-
tas, colares, ex-votos, imagens de santos etc., que
pertenceram a irmandades de penitentes de diver-
sas regiões do país − a maioria presenteada pelos
decuriões, nome dado aos chefes das ordens na
Região Nordeste, geralmente em retribuição às
fotografias que Guy veloso sempre faz questão
de enviar aos retratados. Todo o material é datado
e contextualizado. Há mesmo objetos de grupos
já extintos.
o processo de criação segundo salles parte de um
percurso contínuo em permanente mobilidade e
transformação, que reflete o olhar do artista para
todos os elementos que possam gerar seu inte-
resse em criar sua imagem. assim, ao olhar para
a fotografia de Guy veloso, além das conexões
religiosas que as expressões e lugares capturados
manifestam, o indivíduo contempla, também, “o
resultado de intermináveis transações com a sub-
jetividade dos outros”.12
74 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
Pode-se identificar nas fotografias de Guy veloso
a imagem documental produtora de um inventá-
rio que destaca a sensibilidade, o gesto, a suavida-
de dos tecidos, a intensidade das cores, a vibração
da luz, a inquietação do movimento, transforma
as manifestações religiosas e populares, em bra-
sis que entoam emoções a cada passo do ano,
no enquadramento documentado na beleza e no
respeito do encontro do peregrino e suas pere-
grinações, na busca das marcas que só a fé pode
deixar, independente do credo e da religião em
que ela se insere; são 35mm de uma lente que se
aproxima do olhar e do ato, ao encontro da per-
manência da memória de gestos da fé.
REFERÊNCIAs
DIEHL, Astor Antônio. Memória e Identidade:
perspectivas para a história. In: Cultura historio-
gráfica: memória, identidade e representação.
Bauru, SP: Edusc, 2002, p. 111-136.
SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: uma
nova introdução. Fundamentos dos estudos ge-
néticos sobre o processo de criação artística. 2.
ed. São Paulo: Educ, 2000.
NOtAs
1 Em seu currículo destaca-se a participação na XXIX Bienal Internacional de São Paulo/2010. Curadoria da Fotografia Contemporânea Brasileira na 29a bienal europalia Arts Festival, Bruxelas, Bélgica, 2011/12. Compõe os acervos Essex Collection of Art from La-tin America, Colchester, Inglaterra; Coleção Nacional de Fotografia, Centro Português de Fotografia, Porto, Portugal; Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ; Mu-seu da Fotografia de Curitiba, PR; banco de dados itaú Cultural – Projeto Rumos; Museu de Arte de Belém; Museu de Arte do Rio; Coleção Joaquim Paiva/Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; MaM-sp e Pirelli/Masp. em 2005 fez parte do livro Fotografia no Brasil, um olhar das origens ao contemporâneo, de angela Magalhães e Nadja Peregrino. Em 2007 expôs indivi-dualmente em solms, alemanha. em 2011 participou
Guy Veloso, Dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, da série Penitentes; Confraria de Encomendação das Almas, grupo de dona Jesulene Ribeiro, Juazeiro, BA, 2013; foto digital
da mostra Geração 00 – a nova fotografia brasileira, com curadoria de Eder Chiodetto. Em 2012 é cata-logado no livro dos 150 anos da fotografia no país, Um olhar sobre o Brasil: a fotografia na construção da imagem da nação, de Boris Kossoy e Lilia Schwarcz. Em 2012 a convite do XXX Salão Arte Pará expôs indi-vidualmente na igreja de santo alexandre. disponível em: http://www.fotografiadocumental.com.br/
2 silva, Márcio seligmann. Estética e política, memó-ria e esquecimento: novos desafios na era do mal de arquivo. 9 ed. São Paulo: Cultura Crítica 2010: 8.
3 Localizada no Museu de Artes Sacras em Belém do pará.
4 bourriaud, nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009: 30-31.
5 portelli, alessandro. tentando aprender um pou-quinho. Algumas reflexões sobre ética e história oral. Projeto História, 15. São Paulo: Educ, 1997: 16.
6 Le Goff, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003: 422.
7 Le Goff, op. cit.: 471.
8 Guy veloso em entrevista virtual realizada em 7 jan. 2014.
9 sarlo, beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp, 2005: 41.
10 instrumento percussivo de madeira e grilhões de ferro.
11 Chicotes de cordão de couro e extremidades de ferro usadas para cerimônias de autoflagelação.
12 Bourriaud, op. cit.: 30
Heldilene Guerreiro Reale é pesquisadora e professora do Curso de artes Visuais e tecnologia da imagem da universidade da amazônia. Mestre em Comunicação, Linguagem e Cultura (Unama), graduada no Curso de artes Visuais e tecnologia da imagem (unama) e no Curso de turismo da
universidade Federal do pará.
Guy Veloso, Ritual de umbanda, Belém, PA, 2013; foto digital
76 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
DEBORAH ENGEL – alegorias, maneiras de ver, por uma teoria da imagem
Fabiana de Moraes
Ver não é apenas simples gesto orgânico, mas complexa operação, em
que está em jogo a capacidade de cada um de se separar, de se pensar
separado daquilo que vê, de saber que é visto por outro olhar
Marie-José Mondzain
Os trabalhos resultantes da investigação de Deborah Engel remetem justamente a aspectos da re-
flexão de Marie-José Mondzain acerca da imagem e de seu estatuto na atualidade. Para a filósofa
francesa, a imagem é lugar de encontro, “em que o olhar deve encontrar hospitalidade para o
pensamento e não repouso para o olhar”.1 de fato, diante das imagens propostas por engel, antes
do exercício do pensamento, somos tomados, rapidamente, pelo estado de entre dois – aquele mo-
mento em que o sentido ainda não acontece e em que a sensação se instala e interroga, provoca
e conjuga estranhamento, incômodo e desejo –, estado bastante característico na recepção de tra-
balhos contemporâneos, que reviram, vasculham, desconstroem e transformam referências visuais,
estéticas, culturais, sociais.
o percurso da artista, que inclui formação em história da arte e em psicologia, traça-se em meio à
poética: nesta, são recorrentes operações que interrogam a formação do olhar (pela história), assim
como o olhar como objeto e função intimamente relacionada ao desejo (como indica a psicanálise).
A alegoria, elemento que serve de princípio estético para muitas propostas artísticas atuais, também
estrutura a “escrita” de Engel. Andre Rouillé2 destaca a função da alegoria, mecanismo que consiste em
duplicar um texto (ou uma imagem) com outras, em ler essas imagens por meio de outras. uma ale-
goria adiciona e substitui um significado por outro. Essa definição do conceito de alegoria é uma das
peças-chave da poética de Engel, que adiciona e substitui imagens em um jogo infinito de multiplicação
de sentidos e modos de ver.
Aqui, a fotografia é objeto, é material e, de certo modo, libera-se do referente. Ao distanciar-se da
função de “documento”, se aproxima da ambiguidade, própria ao recurso alegórico. O referente,
entretanto, não desaparece no trabalho de Engel: ele serve de contexto, ou mesmo de fundo, para
operações particulares.
77dossiê | Fabiana de Moraes
Maneiras de ver: “eu me vejo te ver” como constatação da pós-modernidade
Deborah Engel indaga e propõe maneiras de ver – a arte, a fotografia, o mundo, a subjetividade contemporânea. Aqui, o suporte fotográfico serve de base, mas também é matéria plástica: quando retirado de uma reportagem de revista (Paisagens Possíveis, 2010); ao servir de complemento de um título (Um belo dia, Quando de repente, Felizes para Sempre, 2012); quando recortado e sobreposto, de modo a construir superfícies/relevos, perspectivas vertiginosas por repetição (Loco in Loco, 2013); sob a forma de adesivo distribuído a pessoas que o inserem em contextos, criando uma segunda fotografia (Olho no olho, livro de artista, 2010). em relação a este último trabalho, a artista informava a cada um sobre o procedimento a ser seguido por aquele que recebia o adesivo-olho: “Cole o adesivo em local onde você vá com frequência. assim, meu olho passa a olhar seus olhos”.
É interessante o paralelo que se pode traçar entre
a preocupação de engel, durante o projeto de
Olho no olho e a célebre frase “eu me vejo me
ver”, do poema La Jeune Parque, de Paul valéry.3
a tomada de consciência (essencialmente moder-
nista) de valéry é aqui revista e reformulada (in-
voluntariamente) por engel, em uma tomada de
consciência pós-moderna: “Seu olhar sobre meu
olhar poderá ser visto por novos olhares”. Ou seja:
eu me vejo te ver, eu te vejo me fixar, me inse-
rir em uma paisagem pertencente a seu mundo,
a sua história. eu me vejo circular, seguindo um
fluxo afetivo e geográfico de pessoas que estão
pelo mundo. No final do percurso do olho-adesi-
vo (que tudo vê e por todos é visto), um mesmo
suporte, um livro de artista, acolhe os pontos do
deslocamento dessa mesma imagem – pontos de
desdobramento dessa mesma imagem, que afinal
não mais é mesma, mas alteridade.
Deborah Engel, Loco in loco, 2013, jato de tinta sobre papel algodão, 73 x 110cm
78 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
não estaria a artista se referindo, aqui, às condições
de existência de toda imagem; considerando as
relações da imagem com os registros do dizível
e do visível, com os conceitos de semelhança e
alteridade? Afinal, como se opera a revolução
do olhar? e como essa mudança paradigmática
faz-se sentir na produção e, sobretudo, na
recepção artísticas? ainda nas palavras de Marie-
José Mondzain, “aquele que olha e se constrói,
constrói sua palavra a partir de seu olhar”; “o
sujeito que vê é um sujeito falante” – a imagem
é construída a partir de uma exigência do olhar e
dessa relação surge a palavra.4
engel aponta para a extrema fragilidade dessa
operação estruturante que é a imagem. Tão
logo surge, desaparece. Tão logo é composta,
se desdobra em sentidos, em discursos, cessa
de ser imagem, cala-se enquanto imagem. todo
movimento de construção da imagem e, por
conseguinte, da palavra, encontra-se no regis-
tro do passageiro, do transitório – um regime
aberto e em constante renovação, atualização.
Essa dinâmica espelha muito bem um mundo
de fluxos, de aceleração, de velocidade, da cir-
culação de informação.
Deborah Engel, Paisagens Possíveis – hazda, 2010, jato de tinta de pigmento mineral sobre papel fotográfico, 45 x 60cm
79dossiê | Fabiana de Moraes
Janela na janela
No final de 2013, a artista passou os três me-
ses do outono francês em residência artística na
Cité Internationale de Arts, em Paris. No café
Saint Régis, na Île Saint Louis – lugar eleito por
ela (“ambiente parisiense”) para passar as ma-
nhãs, entre jornais e textos de filosofia –, En-
gel parece ter encontrado a atmosfera propícia
para uma nova experiência com e a partir da
fotografia. Com efeito, as paisagens de outono
tornaram-se contexto para a série Sobre Pai-
sagens, que reúne muitos dos elementos que
fazem da investigação dessa artista uma verda-
deira teoria da imagem.
Sobre a floresta e Sobre cabana (ambas da série
Sobre Paisagens), Engel posiciona uma moldura
no interior da “janela”, do enquadramento. essa
interrupção (ou irrupção) – a janela no interior da
janela – interfere igualmente na leitura da ima-
gem, operando um segundo recorte no interior
daquilo que já se supunha recorte (do real). a
artista coloca em questão a pertinência do en-
quadramento e o próprio ato fotográfico. Além
disso, a moldura sugere/evoca o espaço pictórico
– aquele lugar sacralizado durante séculos de his-
tória e de uma relação de servidão das artes. tudo
é pintura, uma vez que tudo é representação?
o que existe dentro do cadre5 é pintura; o que da
moldura transborda é excesso. O que foge à deli-
mitação é legítimo? Qual é o lugar do excesso na
arte? Aqui, o que sobra é tão importante quan-
to aquilo que a moldura delimita. O que sobra é
aquela primeira imagem, uma primeira pele, uma
base. E a sensação de que a imagem “sobra” só
persiste porque nossos olhos (ainda hoje!) pare-
cem estar condenados e condicionados a enxer-
gar pintura (ou, simplesmente, sagrado, legítimo)
no interior de toda e qualquer moldura.
a palavra sobre, presente no título da série, pode
referir-se a um referente: “sobre a cabana”. Mas
também indicar uma operação de sobreposição.
A moldura, por exemplo, destaca a cabana (ou a
floresta), duplicando-a, retirando-a de seu fundo
e da relação com a imagem referente. existiria aí,
no interior da imagem, uma segunda imagem,
possível graças a uma dupla operação de enqua-
dramento – pela câmera e pelo posicionamento
da moldura. A cabana, quando apreendida pela
moldura, é o outro da cabana.
Como em Olho no olho e em Paisagens possíveis,
o corpo da artista entra em cena, fragmentado.
em Sobre Paisagens, o corpo que ocupa parte da
imagem – antebraço ou mão que segura a mol-
dura –, nos coloca diante de um impasse. quais os
limites da imagem? onde posicionar o recorte que
determina a composição, que destaca, que dupli-
ca? ao mesmo tempo, a mão que segura a moldu-
ra afirma que dentro (da foto) nada é permanente,
que o recorte é aleatório, momentâneo, indicando
um percurso possível do olhar. Recorte é uma se-
gunda janela – uma janela dentro da outra.
o conjunto de imagens propostas por engel
compõe escritas – resultantes de um movimento
incessante da artista, no trabalho de apreensão,
captura e composição, mas também de descons-
trução, deformação, subversão das visibilidades.
Trata-se aqui de uma pesquisa sobre a imagem,
mas também de um movimento que antecipa e
desconstrói aquilo que poderia ter sido. o “que
poderia ter sido”, opõe-se ao ça a été descrito por
roland barthes, em A câmera clara.6 se a foto-
grafia, algum dia, foi certificado da presença do
referente (ça a été), hoje ela pode dele se liberar:
de fato, a imagem da cabana, aquela primeira
imagem, que se origina no enquadramento da
câmera, “poderia ter sido” uma primeira e única
solução, uma única imagem. Mas, ao sofrer a in-
80 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
tervenção da artista, que lhe impõe a moldura,
aquela primeira solução já não é. Mas se insinua,
permanece possível. a artista desconstrói a possi-
bilidade de uma única solução e nos deixa diante
dos dois caminhos possíveis. o referente ainda
está ali e a fotografia de paisagem poderia ter,
de fato, permanecido como única solução. entre-
tanto, o referente, hoje, é mera “imagem”. E, en-
quanto imagem, pode ser fundo, pode duplicar-se.
Enquanto imagem, aquele referente (cabana na
paisagem ou caminho na floresta) pode ser desta-
cado pelo gesto da artista.
Deborah Engel joga com os possíveis da imagem
e com os possíveis de uma estética da fotografia.
provocadora e instigante, a artista coloca à prova
nossa maneira de observar, nosso posicionamento
diante do fotográfico, enquanto campo de explo-
ração para a arte contemporânea.
NOtAs
1 Conferência de Marie-José Mondzain no Rencon-tres d’Arles, em julho de 2013, na França. Disponível
em: http://www.dailymotion.com/video/x131nm3_conference-de-marie-jose-mondzain-les-rencontres d-arles-2013_creation.
2 Rouille, André. La photographie – entre document et art contemporain. Paris: Gallimard, 2005.
3 O poema foi escrito por Paul valéry em 1917.
4 Conferência citada, jul. 2013.
5 Moldura, em francês.
6 barthes, roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 2000.
Fabiana de Moraes é curadora independente
e professora de arte brasileira e mercado de
arte na École des métiers de la culture (Groupe
EAC), em Paris; doutora em comunicação e cul-
tura (ECO/UFRJ), mestre em estética e ciências
da arte (Université Paris I Panthéon-Sorbonne);
curadora associada ao projeto ArtMaZone – Pla-
taforma para as artes visuais (www.artmazone.
org). vive e trabalha em Paris e no Rio.
Deborah Engel, Sobre a Floresta, 2013, jato de tinta sobre papel algodão, 110 x 74cm
Deborah Engel, Sobre Cabana (série Sobre Paisagens), 2013, jato de tinta sobre papel algodão, 73 x 110cm
81dossiê | Renan aRaUJo
ADRIANO COSTA: Farrapos
Renan Araujo
“A escultura deve nascer do chão, como uma planta.”
Franz Weissmann
Planos tortos, cores desbotadas, materiais descartados e objetos provenientes de contextos geográficos
distintos são organizados de maneira a provocar um embate entre elementos formais carregados de sig-
nificados e situações marginais. Não deve chegar a dez anos de produção o recente corpo de trabalho
de Adriano Costa (1975-), artista brasileiro baseado na cidade de São Paulo, cujos interesses perpassam a
pintura, a escultura e outras técnicas que se fundem em colagens e apropriações.
O artista costuma dizer que seus trabalhos são pré-esculturas; eles existem em momento anterior ao
instante de tornar-se alguma coisa. um dado importante para entender o raciocínio e organização dos
projetos é esse momento de transição do trabalho − há o instante em que os objetos passam de utilitá-
rios a estetizados, podendo esse instante ter a possibilidade de retorno e tornar-se novamente um objeto
com funções específicas dentro de uma casa ou em algum contexto outro. Ora é um objeto do mundo
e ora torna-se parte de uma obra.
Depois que a obra é exibida, é possível que partes desse mesmo trabalho se desloquem para integrar
outro projeto em uma segunda montagem. Partes pululam de um lado a outro, há uma fluidez que não
deixa estático o objeto em sua condição de trabalho finalizado, havendo a possibilidade de tornar-se
outra coisa no instante da convocação do artista. Na série Tapetes, os objetos são rearranjados por jun-
ções ou apenas exibidos sem interferências externas, subindo pelas paredes e pregados com fita-crepe,
quase recebem a classificação de tridimensionais, por pouco não criam um corpo a ocupar o espaço
cúbico. Espacialmente distribuídos, seguem harmonia orquestrada pelo artista, e o que era para ser uma
estrutura dissonante logo se põe em elegância, a seu modo, com seus elementos forma-cor espalhados
pelo ambiente. Fica evidente o caráter doméstico dos materiais elegidos: ganhados, roubados, achados,
comprados. um caminho de mesa de crochê, uma toalha de rosto do Corinthians e outras criando a
forma de uma cobra, flanelas sobrepostas, cobertores dobrados, carpetes em tom terroso, tapetes de
lojas de R$ 1,99, panos de chão e pedaços de outros tecidos e camisetas são alguns exemplos dos ma-
teriais. Alguns dos tapetes apropriados são trançados com restos de tecidos e posteriormente recebem
uma serigrafia com a figura de animais; tais tapetes são facilmente encontrados em lojas populares a
preços acessíveis, sendo muito comprados justamente por seu baixo valor e uso diversificado. Algumas
formas que aparecem nas composições habitam um leque de símbolos históricos reconhecíveis, como
82 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
cruz e suástica; outros pedem ao espectador um
repertório específico de interesse para ser identi-
ficados, por exemplo, o símbolo usado por uma
banda punk. Todos esses símbolos são impregna-
dos de caráter místico e ideológico. Os tecidos/pa-
nos carregam caráter emocional em suas escolhas
– ao se apropriar de uma toalha de rosto usada
por algum amigo, é também capturada a memó-
ria existente no objeto e transposta ao trabalho;
há uma carga de sentimento em cada pedaço
que constitui Tapetes. Aqui é possível identificar
a noção de coleção, que está diretamente ligada
ao caráter emocional: a métrica ao apresentar os
trabalhos, o aparecimento repetido de um tipo de
objeto, a disposição espacial e as relações afetivas
presentes nas escolhas, tudo está ligado ao ato
de colecionar. Costa coleciona coisas cuja guar-
da normalmente é do interesse de poucos. valora
objetos destituídos de valor.
há uma escolha kitsch de determinados materiais
que se contrapõem a outros, de caráter nobre e
tradicionais na história da arte, como o bronze,
que na produção de adriano pode aparecer em
diversas formas: cana-de-açúcar, embalagens ou
bacias; em Community, por exemplo, toda a ele-
gância do material é perdida pela adição de urina
seca a uma bacia de bronze; e com isso há um
retorno forçado do objeto ao mundo. Sua posi-
ção torna-se inferior, anulando a nobreza do ma-
terial e assim o aproximando dos outros usados
por Adriano. Tentativa equivalente de atribuir aura
de importância a objetos sem “classe” é observa-
da quando o artista pinta de dourado os objetos,
como em Straight from the house of trophy −
Ouro Velho; uma variada quantidade de tapetes
e plásticos é alçada enganosamente a uma classe
superior apenas pela nova cor-brilho que recebem.
dourados, agora se impõem no espaço.
seguindo os materiais dotados de tradição histó-
rica, há na produção do artista o aparecimento de
colagens e objetos que trazem o gênero natureza-
morta, tradicionalmente considerado o mais baixo
dentro da pintura acadêmica. adriano se vale des-
se escopo. Nesses trabalhos, além dos materiais
já presentes nas composições anteriores, temos o
surgimento de elementos orgânicos: frutas e legu-
mes que, em seu breve tempo de vida, reagem de
forma diferente aos demais materiais presentes em
outros rearranjos. Aqui é possível aproximar-se das
vanitas não apenas de forma representativa, mas
com os próprios elementos efêmeros característi-
cos do estilo. as frutas e legumes não aparecem
apenas como objetos representativos, mas como
parte da ocupação espacial. o gênero natureza-
morta ganha uma mudança em sua abordagem
e uma valoração na pintura moderna com os tra-
balhos de Cézanne e Morandi. Este último é en-
contrável como referencial nas peças de adriano,
tanto em Greve, em que a disposição dos obje-
tos (embalagens feitas de bronze, pátina e urina)
adriano Costa, Flamingo, 2012, técnica mista, 75 x 24 x 24cmCortesia Mendes Wood dM, são paulo
alude às pinturas de Giorgio Morandi, quanto em
To Morandi with Love, em que essa alusão está
explícita no título. há certa proximidade entre os
dois artistas, principalmente na escolha de obje-
tos domésticos e sem grande importância. Mário
Pedrosa escreve nos anos 40 sobre Morandi: “Ele
aparece antes como o junco pensante de pascal
a curvar-se ante o mistério das coisas humildes e
sem grandeza”.1 os elementos prosaicos detêm
influência sobre o interesse de Adriano.
A base de uma escultura tradicionalmente é usa-
da para elevar o objeto a seu posto; para Adriano
a base é usada de outra forma; não há separação
entre obra e base − ora a base é a própria escultura,
ora é integrada ao objeto. Podemos pensar em pro-
cedimento semelhante, sem dúvida em outro con-
texto e época, realizado por Lygia Clark ao retirar a
moldura das obras tornando-as, como colocado por
Ferreira Gullar,2 parte integrante do mundo:
Os quadros de Lygia Clark não têm
moldura de qualquer espécie, não estão
separados do espaço, não são objetos
fechados dentro do espaço: estão abertos
para o espaço que neles penetra e neles
se dá incessante e recente: tempo.
ou pintando as molduras para torná-las parte do
trabalho, como observa o mesmo autor:
A moldura é precisamente um meio-termo,
uma zona neutra que nasce com a obra, onde
todo conflito entre o espaço virtual e o espaço
real, entre o trabalho ‘gratuito’ e o mundo
prático-burguês se apaga. O quadro − essa
superfície plana coberta de cores organizadas
de certo modo e protegida por uma moldura
− é pois, em sua aparente simplicidade, uma
soma de compromissos a que o artista não
pode fugir e que lhe condiciona a atividade
criadora. Quando Lygia Clark tenta, em
1954, ‘incluir’ a moldura no quadro, ela
começa a inverter toda essa ordem de valores
e compromissos, e reclama para o artista,
implicitamente uma nova situação no mundo.3
igual procedimento acontece com a ação de adria-
no de integrar a base à obra ou descartar seu uso
como mediadora entre obra e espaço munda-
no. Temos como exemplo os trabalhos Flamingo,
morena#bronze#G I A N T , o trabalho mole, Tête
de Femme, Red Marble – Monumento e Cidades
Cinza/Belos Museus, que são como monumentos
ou projetos de monumentos a personagens dados
como obsoletos: meia, pé-de-cabra, machadinha,
queijos em bronze, tênis etc., mas que aqui repre-
sentam importantes símbolos e heróis escultóricos.
Totêmicos. Um dos trabalhos é construído por um
pedaço de arame farpado pintado de vermelho; tal
objeto é estruturado para que sua base fique em
cima de um pano e seu corpo em diagonal com a
parede; uma imagem banal, um monumento ao
próprio objeto em questão.
É possível verificar que os trabalhos carregam hu-
mor, principalmente em seus títulos e também na
adriano Costa, Greve, 2012, bronze, pátina e urina, 30 x 18 x 16cmCortesia Mendes Wood dM, são paulo
84 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
forma de apresentar seus materiais para o espec-
tador – um emaranhado de cuecas causa certo
riso e estranhamento e, de primeira instância, re-
presenta uma estratégia para se posicionar frente
ao sistema asséptico dos espaços da arte contem-
porânea: museus ou galerias. Seus materiais, mais
uma vez, advém de fora, das ruas. Sabemos que
lá fora é que mora a realidade, e a arte apenas
representa algo ou no máximo mimetiza o real.
adriano traz para o espaço da arte os elementos
externos e aborda com isso situações históricas,
em maior escala quando é visível a citação de ele-
mentos da história da arte – para se aproximar
ou negar – e em menor escala com a captura da
memória existente nos objetos apropriados. Tam-
bém questiona o valor das coisas que existem em
campos distintos de atuação: o espaço da arte e o
espaço doméstico.
As composições reorganizadas do artista recebem
certa importância depois de exibidas. Adriano ao
mesmo tempo que prescinde do espaço de exi-
bição, quase ironizando a sacralização da arte –
usando materiais descartados ou sem acabamento
– volta-se para o espaço expositivo a fim de legiti-
mar os trabalhos, então objetos dotados de plas-
ticidade e com lugar próprio como arte. É nesse
momento de transição que os trabalhos passam
a ter potência e, mesmo confortáveis e domes-
ticados dentro do cubo branco, não são puros e
inocentes.
NOtAs
1 arantes, otília b. Fiori (org.). Modernidade: cá e lá: textos escolhidos IV/ Mário Pedrosa. São Paulo: editora da universidade de são paulo, 2000.
2 Gullar, Ferreira. Uma experiência radical. In: Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.
3 Idem, ibidem.
Renan Araujo é curador independente e graduan-
do em comunicação social, publicidade e propa-
ganda pela Universidade de Ribeirão Preto.
adriano Costa, Tapetes Panos de chão, 2008-2013, 600 x 600cmCortesia Mendes Wood dM, são paulo
85dossiê | Marisa Mokarzel
EXPEDIÇÃO ELZA LIMA: imagens e lendas de um real construído
Marisa Mokarzel
Há mais de 25 anos Elza Lima1 percorre os rios da amazônia e sai em pequenas expedições fotografando
paisagens, pessoas, o ambiente que se apresenta – um ambiente em mutação. Transforma em imagem
o que vê, sem compromisso com o real; são imagens construídas a partir da realidade, elaboradas por
um olhar que inventa. Sua fotografia “fabrica o mundo, ela o faz acontecer”. Para André Rouillé “a
fotografia cria o real!”, assertiva que desestabiliza modelos definidores do ato fotográfico como ato
que documenta a realidade. trata-se de procedimento que o autor denomina antirrepresentativo, uma
vez que “tenta não sacrificar as imagens em função dos referentes, e de reconhecer a capacidade das
fotografias de inventar mundos”.2 A Amazônia criada por Elza Lima, em parte, vem-se constituindo com
uma “rota d’água”3 pela qual navega.
As viagens realizadas são muitas vezes fruto de projetos, de bolsas de pesquisa com que é contemplada.
Em 1996 viajou pelo rio Trombetas com a finalidade de fotografar os quilombolas. Três anos depois, ao
receber a bolsa vitae de Artes/Fotografia partiu em expedição rumo ao rio Cuminá, tendo como objetivo
refazer, 100 anos depois, a viagem daquela que foi a primeira mulher a fotografar a Amazônia: Otille
Coudreau. Elza Lima é formada em história, mas desde a década de 1980 optou pela fotografia. O
apego aos documentos não existe, a fidelidade dos fatos não é algo que a preocupe, mas é perceptível
sua atração por narrativas, seu fascínio pelas histórias contadas, inventadas ou reais. em muitos de seus
trabalhos também se nota a recorrência de figuras femininas fortes e determinadas. Daí seu interesse
pelos relatos sobre as viagens empreendidas por Otille Coudreau.
Em 2003, Elza Lima é contemplada com uma bolsa de pesquisa do Instituto de Artes do Pará (IAP),
para realizar o projeto viagem às amazonas, cuja proposta é viajar pelo rio Nhamundá, por onde
teria passado Francisco orellana que dali teria avistado as amazonas. a intenção era fotografar as
mulheres que ali habitam e exercem, na luta cotidiana, a função de arrimo de família. Como o projeto
era amplo, desdobra-o e, em 2010, elabora O Lago da Lua ou Yaci Uaruá − as amazonas do rio mar;
pela segunda vez recebe o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia e parte em um barco, iniciando
a viagem por Santarém.
nessa segunda parte do projeto, ao retornar à região das amazonas, mergulha novamente na força do
mito, nas narrativas advindas das habitantes do Nhamundá, mas dessa vez uma surpresa: depara-se com
paisagem muito diferente da que costumava encontrar em suas viagens: em vez dos rios abundantes,
defronta-se com a seca. Formara-se no lugar do rio um agreste de fendas no qual se presenciava a
86 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
aspereza do solo pedregoso, desprovido de vege-
tação. as mulheres guerreiras limpavam os cintu-
rões para entrar em nova guerra. o inimigo era
desconhecido nessas terras até então sempre mo-
lhadas por rios e chuvas. estavam prestes a perder
o el dorado.
as lendárias riquezas foram vetadas às novas ama-
zonas. Gregas ou amazônicas? de onde vieram as
primeiras mulheres guerreiras, que com seus cava-
los e flechas enfrentaram nativos e estrangeiros?
ao retroceder no tempo, pode-se deparar com o
escrivão espanhol Frey Gaspar de Carvajal, que,
em 1542, relatou a viagem empreendida sob o
comando de Francisco de Orellana, desbravador
que veio para as terras do norte com intuito de
comandar a busca de riquezas não encontradas.
Daí o mirabolante relato para justificar a frustrada
missão e convencer o rei de espanha de que os in-
vestimentos valeram à pena. a partir desse episó-
dio duas culturas distintas passam a compartilhar
a mesma história, que adquire inúmeras variantes.
Junito de souza brandão, pesquisador da mitolo-
gia grega, revela que as amazonas teriam nascido
na Trácia, e a autoridade que lhe é atribuída talvez
esteja representada pelo cinturão de hipólita, a
rainha das amazonas. de acordo com brandão, o
cinturão, que fica “atado em torno dos rins, por
ocasião do nascimento, religa o um ao todo, ao
mesmo tempo que liga o indivíduo”.4 sua sim-
bologia é ambivalente e resume-se a dois verbos,
ligar e religar. traduz a força e o poder de seu por-
tador. Elza Lima, em seus projetos, utiliza como
referência as amazonas originárias da Grécia, mas
se detém na narrativa do desbravador que no sé-
culo 16 aportou no nhamundá. Vale-se da hipo-
tética pergunta: “se Orellana descobrisse nos dias
de hoje o rio mar que tipo de amazonas ele en-
contraria?”.5 À fotógrafa o que interessa é o en-
trecruzar de ficção e realidade, é o cotidiano que
perpassa essas novas guerreiras que, sozinhas,
sustentam a família, seguem as trilhas das águas.
A intenção é materializar o sonho não do El Dora-
do, mas da expedição fotográfica permeada pelo
real e ficcional. As imagens são conseguidas por
trancelim proveniente de narrativas orais e escri-
tas que se transformam em nova narrativa, cons-
truída, dessa vez, com fotografias resultantes de
precisa e sensível percepção de quem conhece a
amazônia, seus mitos e suas duras verdades. ao
se definir como fotógrafa que sonha e ao afirmar
“quero apreender a amazônia não como história,
mas como invenção”, Elza Lima nos coloca diante
de imagens inventadas, do sonho que se tece com
os fios entrelaçados entre as amazonas quinhen-
tistas e as do século 21.
A série de imagens das novas amazonas pode re-
velar um ser feminino que se conjuga à natureza
Elza Lima, Perfil da mulher e do pássaro em paisagem amazônica, foto da série O Lago da Lua ou Yaci Uaruá, 2010
87dossiê | Marisa Mokarzel
e deixa o corpo submergir na água, para que o
perfil da mulher se afine ao do pássaro e cada pla-
no contenha a estética representativa do possível
voo, anunciado na paisagem. Da mesma série, a
imagem da mulher cavalgando se sobrepõe não à
água, mas à terra áspera, coberta de fendas, por
onde um dia passou o rio. Guerreiras e integra-
das à cena amazônica, partem, chegam com os
movimentos do úmido corpo exposto ao vento.
Segundo Rouillé,6
A imagem fotográfica não é um corte nem
uma captura nem o registro direto, automático
e analógico de um real preexistente. Ao
contrário, ela é a produção de um novo real
(fotográfico), no decorrer de um processo
conjunto de registro e de transformação, de
alguma coisa do real dado; mas de modo
algum assimilável ao real.
O novo real fotográfico, trazido por Elza Lima, re-
gistra o cotidiano das amazonas transformado por
seu modo de ver e sentir a realidade. Mais do que
reproduzir, a fotógrafa produziu, criou imagens.
Do preexistente constituiu seu universo imagético.
no navegar constante foi tramando caminhos que
tiveram as guerreiras como protagonistas. assim,
fechou-se o ciclo das amazonas, ao completar 10
anos. o fechamento ocorreu com o projeto À de-
riva, com o qual recebeu a bolsa de pesquisa con-
cedida pelo IAP, em 2013. O término das etapas
foi aparentemente sombrio uma vez que a figura
humana se ausentou, e as protagonistas surgiram
nos vestígios deixados na terra e nos rios. devido à
ação do fogo e à água que se foi, o craquelê ficou
exposto sem poder ser restaurado.
navegante dos grandes rios, íntima da paisa-
gem de uma região em que o verde predomina e
abundantes águas fluem, como a fotógrafa pôde
conviver com a ausência de vida que transformou
o cenário amazônico em árida terra, distante das
cenas descritas pelos viajantes, por aquele que
habita o lugar e, nele, dele sobrevive? Elza Lima
expressa o que os olhos veem, mas no que custam
a acreditar. Contadora e ouvinte de histórias que
se tecem no convívio ribeirinho, no registro ima-
gético, sempre em construção, Lima passa a não
ouvir o canto dos pássaros e começa a escutar o
silêncio da água parada, o ruído da queimada a
estalar no solo, no contato da casca da árvore que
se transforma em carvão.
Testemunhar o desequilíbrio ambiental afetou
radicalmente a percepção de quem estava habi-
tuada a percorrer os rios. A fotografia que passa
a ser expressa ganha caráter denunciatório sem
esquecer os elementos constitutivos da lingua-
gem fotográfica. Tecida com a água e o fogo, a
imagem atravessa os elementos que compõem a
natureza e devolve-nos a escolha de construir ou
destruir o que agora se apresenta. no lugar do
perfil da mulher e do pássaro, afinados com a pai-
sagem, surgem as cabeças de javali carbonizadas,
expostas como máscaras de uma vida que finda.
Elza Lima, Cabeças de javali, foto da série À Deriva, 2013
88 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
a materialidade do universo está diante dos olhos
ao alcance das mãos. “imagens são mediações
entre o homem e o mundo.”7
Elza Lima é aquela que absorve a região amazô-
nica, assim como poderia absorver outra região,
outro continente; o importante é que interpreta
o mundo e vai além do simples registro, não se
restringindo a uma região geográfica. São viagens
e mais viagens, quilômetros de andanças, trilhas
de terras férteis, de terras secas. Tempo e espaço
navegados, na obsessão de reter e transformar o
que vê. Fotógrafa, historiadora, cidadã do mundo,
exerce múltiplos papéis, percebe o outro em sua
diversidade identitária. Com a máquina em punho
Lima conjuga e alia-se a diferentes paisagens, reti-
ra da ação repentina e aparentemente impensada
as imagens autorais. Captações infindáveis que
atravessam o olho intermediado pela lente, pelo
enquadramento e pela luz, na tradução de uma
estética pessoal, proveniente da ponte construída
entre imaginário e realidade.
NOtAs
1 Fotógrafa paraense, bolsista residente do Kunst-museum des Kantons Thurgau, Suíça (1995), con-templada com o prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (1996 e 2010); a bolsa vitae de Artes/Fotografia (1999); a bolsa pesquisa Criação e Exper-imentação artística do instituto de artes do pará – IAP (2003 e 2013).
2 As citações desse parágrafo são de Rouillé, An-dré. A fotografia: entre documento e arte con-temporânea. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009: 72.
3 Nome atribuído por Elza Lima ao projeto sobre os quilombolas que ganhou o Prêmio Funarte Marc Fer-rez em 1996.
4 brandão, Junito de souza. Mitologia grega, v. iii. Petrópolis: vozes, 1987: 107.
5 Essa pergunta é de Elza Lima e consta do projeto com o qual foi contemplada com o XI Prêmio Funar-te Marc Ferrez de Fotografia, em 2010.
6 Rouillé, op.cit.: 77. Para formular seu pensamento, o autor recorreu a Bruno Latour, La clef de Berlim et autres leçons d’un amateur de sciences. Paris: La Dècouverte, 1993.
7 Flusser, vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Re-lume Dumará, 2002: 9.
Marisa Mokarzel é doutora em sociologia pelo
programa de pós-graduação em sociologia da
UFC; mestre em história da arte pelo Programa
de pós-graduação em artes Visuais da escola de
belas artes da uFrJ, professora do mestrado em
comunicação, linguagens e cultura e dos cur-
sos de artes visuais e moda da universidade da
amazônia – unama.
Elza Lima, A amazona do século 21, cavalgando sobre o rio que secou, foto da série O Lago da Lua ou Yaci Uaruá, 2010
89dossiê | Manoel Fr iques
istMos
Manoel Friques
A batalha da arte é com a construção de sistemas
Robert Nisbet1
Os últimos trabalhos de Ícaro Lira apresentam, salvaguardadas diferenças e especificidades pontuais, um roteiro comum. Em geral, o artista cearense participa de residências e/ou traça percursos em locais rurais e periféricos ao circuito artístico, durante os quais coleta imagens e objetos de diferentes naturezas, dispostos, por fim, no espaço expositivo. Desterro (Galeria Ibeu, 2013), Náufrago (Atelier Subterrânea, 2013), Istmo (Galeria A Gentil Carioca, 2013), Romaria | Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem (Galeria Sesc-Crato, CE, 2012) exemplificam tal estratégia, sendo essas exposições – posto que tais trabalhos furtam-se a ser denominados obras de arte – o ponto de partida desta reflexão.
Não que aventuras e viagens sejam a novidade trazida por Lira para o ambiente da arte. Recordem-se os artistas-cronistas viajantes que desembarcaram na América Latina no século 19, como Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas; mais recentemente, os itinerários de artistas-etnógrafos ou, ainda, antropologia-filos (para utilizar o estranho neologismo de Thierry Dufrêne2) que buscam o conhecimento do fato humano em suas relações com as outras espécies, com a natureza e com o ambiente urbano, interessando-lhes as diferenças e semelhanças culturais. Aquilo que chama atenção no gesto de Lira não é a viagem nem mesmo o relato; é, antes de tudo, a maneira como o artista enfrenta a crise da história e a emergência da antropologia sem cair na tentação de criar sistemas etnográficos que substituam o enquadramento historiográfico.
tome-se, por exemplo, Istmo, constituído por objetos variados: uma rede de pesca; uma caixa de charu-tos cubanos – Flor de Tabacos, de Partagas (Havana); uma sacola de plástico azul com um punhado de folhas secas, ostras e conchas do mar; o negativo de uma mulher de braços abertos em primeiro plano, seus olhos cortados, ausentes do enquadramento. em segundo plano, talvez um homem, não se pode ver nitidamente; quatro fotografias: um cachorro morto em uma estrada de terra; um osso, sobre uma folha branca, pousado em uma mesa; Lira criança de gravata borboleta e conjunto azul, de pé em um sofá estampado vermelho: bocas abertas, mão babada, dentes crescendo; uma mulher na paisagem agreste, nela quase se camuflando. Um cartão-postal (caçadores terrestres que habitavam o pampa chileno terra del Fuego, o chamado Fim do Mundo), um saco de soja, anzóis e pregos completam o conjunto de objetos.
Se tal descrição parece conduzir mais a uma desordem do que a um esclarecimento do trabalho, talvez seja por não haver um sistema unívoco – tal qual um quebra-cabeça – que os reúna. O que se deve notar é
90
a diferença radical entre os objetos e sua justapo-sição que esconde, na realidade, abismos e saltos. nesse sentido, o espaço expositivo, incluindo aí as paredes, atua de modo a ilhar as coisas, em uma espécie de nivelamento operado por isolamento (isso não acontecia, por exemplo, na assembla-gem que o artista apresentou no Parque Lage em 2012 – ali, havia uma densidade de objetos que, nos trabalhos posteriores, se rarefez). O espaço, com isso, não funda uma unidade visual, mas um campo de vetores semânticos assistemáticos. Nele, os elementos naturais e registros urbanos, em geral diminutos e fragmentados, são coleta-dos segundo um mesmo impulso que descarta a diferença entre o objeto etnográfico e o objeto artístico, entre natureza e cultura. Se os objetos que ícaro leva ao espaço expositivo são, em sua maioria, usados, antigos e descartados, o tem-po os atravessa conferindo-lhes visível desgaste. Nada é novo; tudo possui sua história invisível e se impõe como enigma semiológico. isolada tempo-ralmente, cada coisa abriga-se espacialmente em relação às demais. e aqui devemos nos perguntar
qual a natureza da relação entre os elementos que Lira elege para o espaço expositivo. Como se asso-ciam essas unidades, essas ilhas sígnicas?
O artista diz que as fotografias, as caixas e os de-
mais fragmentos selvagens se associam por mon-
tagem. e, desse modo, estaríamos em terreno ci-
nematográfico. A desconfiança, porém, é de que
seja também uma composição. Na realidade, há
uma tensão entre montagem – enquanto encadea-
mento temporal – e composição – entendida como
inter-relação espacial. tal intensidade surge justa-
mente na decisão de ícaro de tornar visível espa-
cialmente o isolamento temporal a que os objetos
estão submetidos, isto é, seu caráter obsoleto, o
desgaste operado pelo tempo. Cada coisa exposta
então apresenta uma condição temporal própria, e
a montagem-composição que o artista realiza no
espaço expositivo lhe impede a unificação. Ocor-
re, com isso, uma multiplicação das possibilidades
narrativas, surgidas das combinações entre os di-
versos elementos. Institui-se a impossibilidade de
se delinear lógica sistemática que circunscreva uma
interpretação unidirecional do mundo (lembre-se
sempre de que os conflitos possuem variadas ver-
sões – em contraposição às histórias oficiais).
Mais acima, afirmou-se que a potência da obra
de Ícaro reside em seu embate com a crise da his-
tória, sem que ele se renda aos sistemas etnográ-
ficos. Esclareçamos. Não é novidade o processo
curioso que caracteriza a arte contemporânea
a partir da década de 1960, distinto por duplo
movimento inversamente proporcional: à medida
que a história da arte – enquanto disciplina orga-
nizada em torno de uma narrativa mestra – enfra-
quece devido a sua incapacidade de adequar-se
ao experimentalismo artístico, suas áreas irmãs,
em especial a antropologia e a sociologia, emer-
gem como práticas a ser exploradas intensamente
por criadores e teóricos. o fato de que o discurso
Ícaro Lira, Istmo, galeria a Gentil Carioca, rio de Janeiro, rJ, jan. 2013
91dossiê | Manoel Fr iques
do fim da história funcione ele mesmo como uma
narrativa hegemônica da arte contemporânea tor-
na tal processo ainda mais ambivalente.
se a crise do enquadramento (tanto dentro quan-
to fora da obra de arte) é imperativo imposto
pela prática artística, não deixa de soar também
contraditório o fato de muitos criadores, diante
desse fato, formularem suas poéticas tendo por
base sistemas ainda totalizantes. Nos ambientes
das bienais, em que essas práticas parecem multi-
plicar-se tanto formal quanto tematicamente em
retorno ao desejo enciclopédico, a incongruência
salta aos olhos, seja na 30a bienal de são paulo
(2012), em que artistas como o holandês hans
Eijkelboom ou o alemão Hans-Peter Feldman utili-
zam práticas antropológicas (fotografias que evi-
denciam padrões de comportamento em muitas
cidades do mundo e coleções de roupas de mu-
lher ou a exposição de todos os objetos que se
encontram em bolsas femininas, respectivamente)
em obras marcadas pela nostalgia de um ordena-
mento totalizador e redutor; ou na 55a bienal de
veneza (2013), na qual a norte-americana Sarah
sze propõe uma instalação em que refaz o univer-
so a partir de um conjunto numeroso de objetos
organizados no espaço expositivo. tais práticas,
em especial as duas primeiras, parecem apresen-
tar um narcisismo etnográfico que Hal Foster3 em
importante ensaio soube indicar.
Sob outra perspectiva, o trabalho de Ícaro Lira,
assim como os dos brasileiros Fernanda Gomes,
Luciana Paiva e Rodrigo Braga, parece enfrentar a
crise da história, sem, no entanto, sublinhar o ím-
peto sistematizador por meio da prática etnográfi-
ca. Se Lira viaja por muitos municípios, não deseja
documentar as comunidades pelas quais passa
em um suposto trabalho de campo pautado pela
distância entre sujeito-analista e objeto analisado.
ao deslocar-se por cidades que estão fora do eixo
artístico, Ícaro propõe um embate com a narrati-
va histórica oficial, colocando-se ao lado, ou além
dela, como o etnógrafo desconfiado das intepre-
tações historiográficas evolucionistas do mundo.
Sob esse prisma, a deriva do artista assemelha-se
à incapacidade do antropólogo de sentir-se em
casa, de abrigar-se em algum terreno, até mesmo
sua casa. Tal impossibilidade marca não apenas a
figura aqui mencionada, mas, de fato, impõe-se
como impulso espiritual transversal a muitos pen-
sadores e artistas, e que susan sontag4 denomina
intelectual homelessness. esse impulso resulta de
uma sensibilidade moderna nauseada pelas ace-
leradas transformações tecnológicas derivadas de
um demônio chamado história.
Com a publicação de Tristes trópicos em 1955, Lévi-
strauss inventava o antropólogo como ocupação
total, aquela que envolve um compromisso
Ícaro Lira, Istmo, galeria a Gentil Carioca, rio de Janeiro, rJ, jan. 2013
92 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
espiritual semelhante ao do artista e do
aventureiro. uma compreensão dessa invenção
passa necessariamente pelo fato de, até as
vésperas da guerra, a etnologia francesa ser realizada
por antropólogos de gabinete, que organizavam
considerável massa de dados à disposição, a fim de
resolver um problema ou explicar uma instituição.
Enquanto Marcel Mauss integra este grupo, Lévi-
strauss, por sua vez, atualiza a função por meio da
centralidade concedida ao trabalho etnográfico, sob
o prisma estrutural. se o artista pode ser considerado
etnógrafo, é porque este último, em sua reinvenção
operada por Lévi-Strauss, assemelha-se àquele em
seus mergulho e entrega ao trabalho de campo.
Ambas as figuras convergem em sua condição
humana de exilados; condição que independe do
local em que se encontram e que permeia o trabalho
de Ícaro Lira, explicitada em seus títulos.
Há uma atmosfera característica em seus traba-
lhos, nítida por meio dos nomes que os batizam;
eles anunciam, sem maiores floreios, a condição
errante do imaginário do artista. instiga o fato de
Ícaro pouco acumular os elementos; ele não é um
colecionador. Os objetos expostos na galeria podem
desaparecer na mesma velocidade em que nessa
situação foram colocados. Não há obra pronta, fe-
chada, apenas um salvamento temporário do ob-
jeto de seu pleno esquecimento; tudo é transitório
e se abre para as ações do tempo. Se estamos cer-
tos, ocorre então uma identificação entre artista e
objeto: ambos estão expatriados e se movem, nô-
Ícaro Lira, Desterro, Galeria IBEU, Rio de Janeiro, RJ, abr. 2013
93dossiê | Manoel Fr iques
mades, por estradas, portos, aeroportos e espaços
expositivos. A condição do criador é a mesma da
criatura. Abandonados de seus contextos natais,
artista e objetos estabelecem frágeis relações entre
si – istmos – que os obrigam a navegar pelo mar
(ou deserto) cultural a fim não de achar um abrigo,
mas de confirmar a sina do caminhar.
NOtAs
1 Nisbet, R. A. A sociologia como forma de arte. Plu-ral, São Paulo, 7, primeiro sem. 2000: 111-130.
2 dufrêne, thierry. art contemporain et antropolo-gie. Anais do XXXII Colóquio CBHA (Comitê brasileiro de história da arte). direções e sentidos da história da arte. Campinas, 2012.
3 Foster, hal. The return of real: the avant-garde at the end of the century. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, October, 1996.
4 sontag, susan. Against interpretation and other essays. New York: Picador/Farrar, Straus and Giroux, 2001.
Manoel Friques é teórico do teatro (Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro − UniRio) e
engenheiro de produção (uFrJ). doutorando no
Programa de História Social da PUC-Rio, é mestre
em artes cênicas pela UniRio, em que é professor
de engenharia de produção com ênfase em pro-
dução cultural.
Ícaro Lira, Istmo, galeria a Gentil Carioca, rio de Janeiro, rJ, jan. 2013
94 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
REORGANIZANDO A IMAGEM DA CIDADE
André Leal
As grandes metrópoles apresentam-se a seus habitantes como entidades quase autônomas que crescem
orgânica e espontaneamente. Mesmo as obras que interferem em nossos deslocamentos diários parecem
fazer parte desse crescimento espontâneo, quando na verdade são fruto de projetos elaborados pelo po-
der público e executados segundo diversos interesses que escapam aos cidadãos. Edward Dimendberg,
em seu texto The will to motorization: cinema, highways, and modernity, aponta como se estabeleceu
no imaginário popular – e no espaço – a ideologia do automóvel individual como vetor de liberdade e
como forma de o cidadão comum tomar posse da velocidade crescente dos tempos modernos. Ele busca
assim desconstruir a “suposta vocação utilitarista [das autoestradas que] é imaginada como produto de
engenheiros de tráfego e planejadores de transportes desinteressados”.1
O rodoviarismo que marca uma cidade como São Paulo com certeza não é algo ‘natural’, mas resultado de
demandas impostas pelo capital sobre seu espaço. Sua construção é fruto de um não projeto norteador
dessa forma de cidade que se reproduz pelo mundo e o transforma cada vez mais em uma grande rede
urbana. As avenidas paulistanas não são resultado de projetos previamente definidos, mas sim respostas
– sempre ‘urgentes’ – à proliferação de automóveis despejados pela indústria e aos imperativos de
circulação desimpedida que eles exigem.
Durante o século 20 diversos artistas tomaram as cidades, ou mesmo a experiência urbana, como ma-
téria de suas obras. Podemos, inclusive, inferir que os principais movimentos vanguardistas são fruto da
condição urbana que se impôs na sociedade industrial. As apresentações dadaístas, por exemplo, são
emblemáticas da tentativa de emular a condição fragmentária das cidades modernas em um contexto
artístico, assim como os readymades de Marcel duchamp não poderiam ter surgido senão nas lojas de
ferragens de uma cidade já moderna. No começo do século 21 a cidade capitalista é mais fragmentária
do que nunca, e suas contradições, especialmente em países ‘periféricos’ como o Brasil, se apresentam
aos transeuntes a cada esquina.
Para uma geração de artistas nascidos nas últimas décadas do século 20 a cidade se apresenta como um
campo para experimentações das mais variadas. uma paisagem tomada por edifícios e viadutos pixados
ou grafitados, estruturas abandonadas antes de serem concluídas e terrenos baldios em meio à cidade
consolidada está aberta para diversas abordagens artísticas e sociais, que assim são capazes de apontar
para tais contradições e de ressignificá-la, indicando maneiras mais imediatas de relação. São muitos os
artistas que atuam sobre esse cenário, mas tratarei aqui de um grupo de quatro jovens, cujas trajetórias
se confundem com a minha própria, e para tanto irei realizar uma breve digressão autobiográfica.
95dossiê | André LeAL
o recuo temporal que proponho nos leva a julho
de 2006, quando um estudante de artes plásti-
cas convidou um grupo de amigos para levar
para a estrutura de um edifício em construção
abandonado um sofá, um colchão, uma mesa e
uma televisão quebrada – todos encontrados em
caçambas da cidade. Montamos assim, na beira
do abismo do prédio inacabado, um singelo si-
mulacro de apartamento familiar que aos poucos
foi ganhando mais móveis encontrados pelas ruas
de São Paulo. O grupo cresceu e acabou envol-
vendo outros colegas estudantes universitários de
diferentes disciplinas.2 nos reuníamos frequente-
mente naquele ‘apartamento’ que logo se tornou
um espaço de convívio e repouso para todos. em
poucos meses, porém, as obras no edifício foram
retomadas, e a experiência, para a qual já haviam
sido elaborados ambiciosos planos, foi subita-
mente interrompida.
esse convívio nos marcou de tal forma que conti-
nuamos nos encontrando regularmente e chega-
mos a estabelecer um coletivo artístico que durou
poucos meses e realizou poucas ações, pois as
rotinas individuais acabaram apresentando outras
exigências. apenas quando tive de redigir meu
trabalho final de graduação voltei a pensar nessa
produção artística, dessa vez a partir de um olhar
crítico e teórico. Foi assim que decidi reunir o gru-
po de jovens artistas paulistanos que acompanho
desde então e para os quais já propus provoca-
ções teóricas e projetos curatoriais.
Daniel Nogueira de Lima, Pique a.k.a. Carango Sá,
Jan nehring e raphael Franco apresentam ao pú-
blico olhares sobre a cidade que interrompem a
lógica à qual estamos acostumados no cotidiano.
de diferentes maneiras eles dialogam com esse
espaço, seja intervindo diretamente nele, seja
emulando em ambientes expositivos a experiên-
cia da vida na metrópole, e assim reconfiguram
a representação que temos do abstrato termo
‘cidade’. A fragmentação urbana atual e os flu-
xos do capital que produzem seu espaço – como
pulsões incontroláveis que nos atravessam – fa-
zem com que seja mais necessário do que nunca
dimensionar o espaço urbano e a lógica que rege
sua produção. É a reflexão sobre ele que os artis-
tas levam para as artes visuais, sempre dirigindo
nosso olhar para pontos obscurecidos da realida-
de que nos circunda.
As estratégias empregadas por esses artistas são
bastante diversas, mas algumas características co-
muns podem ser destacadas. A primeira delas é a
#cx3e20 – arte e cidade depois das barricadas de junho, instalação coletiva, vista parcial; Passagem Literária da Consolação, São Paulo, 2013Foto André Leal
96 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
forma como encaram a própria representação da
cidade. Poucas vezes as cidades contemporâneas
apresentam uma imagem una de si, algo que em
São Paulo é amplificado pela falta de referências
geográficas marcantes. Ao mesmo tempo, porém,
os meios de comunicação e os governos buscam a
todo custo elaborar uma imagem para ser vendi-
da de algum modo.3 intervir nessa representação,
portanto, serve para abalar e aprofundar a frag-
mentação urbana, dela destacando as contradi-
ções sociais subjacentes à imagem do espetáculo.
uma das maneiras de desconstruir essa imagem
ocorre nas intervenções urbanas feitas por Pique
a.k.a. Carango Sá. O artista se apropria de blocos
de concreto utilizados pela prefeitura para lacrar
imóveis irregulares e os transforma em locais
de convívio para os transeuntes, ressignificando
imediatamente aquele espaço no qual intervém.
do mesmo modo, raphael Franco se apropria
de caçambas nas ruas da cidade e realiza tarefas
domésticas nelas, devolvendo ao público uma
imagem perturbadora da intimidade e do modo
de produção da cidade capitalista.
Os dois artistas também usam mapas em alguns
trabalhos, mas de maneira bastante diferente.
pique produz colagens com mapas de diferentes
cidades e sobre eles introduz outros elementos
desestabilizadores tais como notas de dinheiro an-
tigo, frascos vazios e desenhos. ele produz, assim,
mapas que são de fato para se perder, revertendo
o exercício de gentileza urbana que realizava nos
blocos de concreto em favor de uma reconstrução,
no público, da ideia da representação espacial. Já o
trabalho com mapas de Raphael se dá de maneira
direta no espaço, por meio da repetição exaustiva
de um trajeto de bicicleta na cidade que é registra-
do diretamente em um mapa com um aplicativo
para celulares. Raphael parece querer absorver a
cidade de todas as maneiras possíveis, e quem
sabe, fazer um mapa em escala 1:1, que apenas
serviria para demonstrar a própria impossibilidade
de uma representação cartográfica precisa.
Daniel Nogueira de Lima, LE – Estudo de escada, 2013, zinco, cabo de aço, lâmpada fluorescente, aprox. 8m2
Foto edouard Fraipont
97dossiê | André LeAL
daniel nogueira, por sua vez, leva ao espaço ex-
positivo emulações de urbanidade que constrói
com canos de cobre e lâmpadas fluorescentes.
apresenta assim reinterpretações da imagem
da cidade – e da ligação corporal que tem com
ela – por meio de pinturas, desenhos e maque-
tes fantásticas. Por fim, Jan Nehring leva para a
galeria os próprios despojos de uma cidade em
contínua transformação. ele coleta pelas ruas
seus dejetos e os organiza em esculturas de va-
riadas dimensões no espaço expositivo, ‘literal-
mente’ reordenando o espaço urbano no qual
vivemos. Assim, o artista demonstra ao público
que a cidade está em constante transformação
e que ela nada tem de natural.
Desses elementos brevemente indicados até aqui,
teve origem a exposição #cx3e20 – arte e cidade
depois das barricadas de junho, realizada pelos
quatro artistas e o curador que ora escreve, na
Passagem Literária da Consolação, em São Paulo,
ao longo do mês de setembro de 2013. Ao pensar
na ocupação de uma vitrina com quase 30 metros
de comprimento buscamos aproximar a produ-
ção de cada um dos envolvidos em uma insta-
lação que fizesse sentido naquele emblemático
espaço de circulação em pleno coração da metró-
pole paulista, na esquina da avenida paulista com
a rua da Consolação. a emulação de uma imagem
de cidade já estava sendo definida, e caixas de pa-
pelão e páginas de jornais já eram consideradas
para ocupar tal espaço. durante o processo de
desenvolvimento da instalação, porém, eclodiram
as ‘jornadas de junho’, que tiveram como um dos
principais palcos aquela encruzilhada paulistana.
Foi em cima da passagem que a pM de são paulo
reprimiu brutalmente os manifestantes no dia 13
de junho, gerando uma repercussão nacional que
deu voz às insatisfações de uma classe média em
busca de visibilidade social mais do que apenas
econômica e que reivindicava mais do que somen-
te a redução do preço da passagem de ônibus.
Não era possível ignorar tal simbologia, já que as
Jan nehring, Gratidão, 2011, instalação, técnica mista, dimensões variadas Foto do artista
98 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
‘jornadas de junho’ – e seus refluxos e permanên-
cias – podem ser consideradas um dos maiores
movimentos pelo direito à cidade que o brasil já
viu, pois, no fundo, o que estava em pauta era
o acesso da população aos benefícios oferecidos
pela cidade. Outro elemento que também surgiu
no rastro das manifestações foi a distância entre
o discurso de uma velha mídia empoleirada em
suas redações e um jornalismo-ativista realizado
em tempo real nas ruas, sem edição nem cortes
pré-programados.
Aí já estavam os dados que buscamos traduzir na
instalação apresentada na passagem, reunindo
fragmentos das produções de cada um, diluídas
em um todo cuja autoria foi de fato coletiva.
Manchetes de jornais colidem com mapas de
São Paulo recortados e ‘pixados’, uma topografia
fantástica emerge na vitrina e aponta para
a fragilidade das manchetes ampliadas, que
pouco significam frente à realidade das ruas.
não há mais discurso único que podemos extrair
desses elementos, bem como não há discurso
único nas ruas – somos todos plurais e as vozes
das ruas são múltiplas. Organizá-las é a tarefa
que cabe para um futuro próximo se alguma
política efetiva quiser ser erigida a partir dos
escombros de nossa democracia representativa.
no entanto, a implosão de tais discursos faz
parte do presente, apontando para um futuro
menos amarrado. E essa tarefa cabe também
aos artistas, principalmente em um momento
no qual os rumos são difíceis de ser apontados.
Colidir os discursos e as representações no seio do
ambiente urbano é uma das possíveis maneiras de
ressignificarmos as experiências fragmentárias da
vida citadina no alvorecer do século 21, e a arte
está especialmente preparada para isso.
NOtAs
1 Dimendberg, Edward. The will to motorization:
cinema, highways, and modernity. October, n.73,
verão 1995: 93. No texto o autor discorre sobre a
construção do imaginário rodoviarista promovida
pelo cinema na primeira metade do século 20.
2 Quando a experiência se consolidava éramos dois
estudantes de artes plásticas, dois de geografia, um
de arquitetura (que já tinha uma incipiente produção
artística) e um de rádio e televisão.
3 Bom exemplo disso é a ponte estaiada sobre o rio
Pinheiros, na Zona Sul de São Paulo, construída pela
prefeitura e que serve de fundo para os jornais locais
da Rede Globo
André Leal é arquiteto e urbanista formado pela
Fauusp e mestrando em Linguagens visuais no PP-
GAv/EBA. É curador independente e apresentou
trabalhos sobre artes plásticas e arquitetura em
congressos internacionais e revistas especializadas.
raphael Franco, Experimento n. 01, biella, itália, sistema de absorção da paisagem, 2011, vídeo digital, 3 min
99dossiê | Tal iTha Bueno MoTTer
JANELAS: da passagem do tempo ao cotidiano compartilhado1
talitha Bueno Motter
Através de muitas janelas
Janela, derivada do latim Januella, o diminutivo de Janua, de porta de entrada, é ,assim, uma pequena
porta. E por esse formato reduzido, habitualmente, não está designada a travessia do corpo do homem,
mas a de seu olhar, como coloca a artista Letícia Lampert,2 “pois é da natureza da janela deixar que
olhem através dela, é para isto que ela existe”.3 A janela é ainda recorte, enquadramento de uma vista,
portanto é formadora de paisagens. Porque, assim como em uma pintura ilusionista (que também janela
é), o que se vê não são as coisas isoladamente, “mas o elo entre elas, ou seja, uma paisagem”.4
e o que acontece quando a janela estiver fechada? e se a ela for composta por vidro canelado? nesse
caso, a translucidez do vidro é perdida a ponto de não se poder mais definir bem o que está do outro
lado ou de quem está de fora não poder ver com clareza o que existe no interior. e aqui, entre o opaco
e o translúcido, percebe-se outro ponto importante: a janela possui duas faces, a que olha para dentro e
a que olha para fora. Contam que do porteiro do céu, Jano, a pequena porta herdou essa característica.
Mesmo quando não se consegue tangenciar com precisão as formas do exterior, entretanto, pode-se
perceber a formação de paisagens, aquelas pintadas pelo tempo. É o que mostra a série Escala de Cor do
Tempo, na qual a artista, diante da janela de seu banheiro, registrou fotograficamente, durante o perío-
do de um ano, as cores dos dias. O enquadramento fixo da janela, que se tornou também o da câmera
fotográfica, testemunhava o transcurso do tempo pelas variações de tonalidades, nunca iguais, vindas de
fora. novamente, há a relação com o deus romano, que, com suas duas faces, presenciava o passado e
o futuro. em escala a face da frente é sempre um novo começo, um novo dia, um novo céu, mas a que
se volta para trás fixa os instantes de cor a partir do registro atento da artista.
O conjunto de 144 fotografias obtidas, 12 para cada mês do ano, materializa-se em três trabalhos,
sendo dois livros de artista, os quais apresentam as fotografias com a indicação da hora em que foram
captadas, e uma instalação com a totalidade das imagens, Escala de Cor do Tempo − Para o Ano que
Passou, permitindo montagens variadas.
Em seus trabalhos Letícia Lampert parte da fotografia como um “meio eficiente”,5 o qual lhe possibi-
lita trazer de forma mais direta a visualidade das coisas. Além disso, como se pode perceber na série
comentada, a fotografia permite inúmeras composições, alterações e inserções posteriores à captação
da imagem. De acordo com a artista, “um dos maiores desafios de um projeto em fotografia é definir
100 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
como será sua apresentação. A fotografia, como
meio, deixa a forma física do trabalho latente”.6
É o que define François Soulages7 a partir da no-
ção de fotograficidade – que articula o irreversí-
vel, inerente à impossibilidade de se retornar ao
instante do ato fotográfico, e o inacabável, que
remete às possibilidades infinitas, e aqui sempre
reversíveis, de manipulação do registro obtido.
Se Escala é nitidamente demonstrativa da ordem
do inacabável, também o é do irreversível. Pois a
artista, ao fotografar sempre da mesma posição,
repetindo as condições iniciais de enquadramento,
deixa que o tempo se revele a partir de suas cores,
demonstrando que a primeira foto nunca poderia
ser repetida.
Da janela particular, íntima, de Letícia Lampert,
parte-se para as muitas que enchem de olhos a
cidade contemporânea. Em (des)construções,
esse elemento arquitetônico assume outros signi-
ficados. São composições criadas a partir da co-
lagem digital de fragmentos de casas e edifícios,
que não desejam omitir as justaposições das fo-
tos. as janelas e mesmo varandas, elementos que,
repetidos no eixo vertical, indicam quantos níveis
uma determinada construção possui, tornam-se,
então, unidade de medida, além de possibilitar a
compreensão de que esses (im)prováveis corpos
arquitetônicos são possuidores de interioridade.
Habitá-los também parece possível, pois, algumas
vezes, seus moradores se revelam através dessas
áreas de transição entre o público e o privado.
tais construções referem-se conceitualmente ao
modo fragmentado da cidade contemporânea,
“cidade esta que não pode ser mais representa-
da como algo visível e ordenado, mas fragmen-
tado como uma montagem social”, conforme
Gladys neves da silva.8 É no agregar de partes
díspares, no compor descompondo que a cida-
de parece estar sendo permanentemente remo-
delada, fazendo com que as vistas das janelas
sejam constantemente transformadas.
Cecília Meireles na crônica a Casa revela o amor en-
tre ela e uma casa fechada de esquina. de suas al-
tas varandas ficava observando: “E sobre ela pensei
algumas vezes, deslizando como pequena mosca
pelas suas vidraças insondáveis, aventurando-me
como esbeltos gatos pelos ângulos do seu telha-
do, farejando o desenho secular e pueril de suas
cornijas”.9 A autora conta sobre o seu amor pelas
casas e, nesse interesse em apreender arquiteturas,
remete à atitude de Letícia Lampert em percorrer
ruas da cidade, retirando um pequeno pedaço de
casas e edifícios que não são os seus, para depois
os recompor poeticamente, como em (des)cons-
truções ou no projeto Conhecidos de Vista.
Letícia Lampert, des(construções) #1, 2007, fotografia colagem digital, 98 x 92cm
101dossiê | Tal iTha Bueno MoTTer
Conhecidos de Vista
O último trabalho a ser discutido é a instalação
audiovisual Conhecidos de Vista, que traz as re-
lações que ocorrem “entre muros de cimento”,10
possibilitadas pelas varandas e janelas dos edifí-
cios. em trajetórias errantes por ruas estreitas de
porto alegre, a artista visitou cerca de 40 aparta-
mentos para fotografar o interior de um cômodo
e através da janela o fragmento da fachada do
edifício em frente. Nessa circunstância de proxi-
midade imposta pela construção de prédios com
pouquíssima distância entre si, com fachadas que
quase se encostam, abrir a janela é praticamente
estar dentro da casa do outro.
na instalação, que utiliza parte das imagens cap-
tadas no projeto homônimo, mostram-se sequen-
cialmente, e de forma simultânea, imagens dos
interiores e da paisagem de cada janela, acom-
panhadas de um relato sobre os moradores que
residem no prédio em frente ao apartamento fo-
tografado. A fotografia do cômodo traz, a partir
de seus objetos, do modo de dispô-los, das cores
da parede, a forma de habitar daquele morador.
E é a sua voz que relata, permitindo que se visite
também o interior do edifício logo em frente, que
se reflita sobre as relações possíveis nos interstí-
cios da cidade. Quem conta é alguém autorizado
a falar, o vizinho de frente, que já observa há mais
tempo, por querer ou sem querer. no entanto,
“quando a nossa vista é uma outra janela, passa-
mos a ser, consequentemente e de forma simultâ-
nea, a vista de alguém”.11
e o que está oculto tem o poder de aguçar a curio-
sidade; quer-se olhá-lo para entender. Na verdade,
Áudio: “Eu abro a janela de manhã e eu fico olhando se o vizinho já abriu a veneziana dele, se está iluminado, se ele já abriu as janelas ou só a porta da sacada... Isto me traz um conforto porque eu tenho uma relação com ele assim, só de ver, eu não sei nem quem é... É alguém que mora naquele edifício... por que eu moro sozinha então eu tenho uma relação com ele assim, de olhar pela janela... Ele nem sabe que eu existo, eu imagino... Mas eu me relaciono com ele, a distância, de olhar... de namorar a janela dele e a sacada...”
Letícia Lampert, Conhecidos de Vista, 2013, instalação audiovisual, 14min, fragmento
102 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
parece que um pouco de cada um está escondido
atrás das fachadas dos edifícios pelos quais cruza-
mos, apressados, no dia a dia. Mas, nesse corre-
-corre, nem sempre os transeuntes percebem o que
existe por trás das muradas, como Cecília Meireles
expressou, quando a Casa por ela enamorada tirou
suas telhas e se mostrou internamente: “Lá embai-
xo, os transeuntes se moviam absolutamente ce-
gos, com esses passos tontos que os homens têm,
vistos de longe”,12 e nada perceberam.
Vistas finais
Os trabalhos de Letícia Lampert aqui apresenta-
dos trazem múltiplos sentidos ao elemento arqui-
tetônico janela. Além do mais, com essa proprie-
dade de enquadrar uma determinada região do
entorno, a janela guarda algum parentesco com a
fotografia, já que “é uma dupla exposição, é um
duplo enquadramento”.13 Portanto, a fotografia
surge como um meio coerente para se observa-
rem questões sobre janela. Em Escala, é a partir
dela que tudo acontece, é ela que filtra a luz ex-
terior, é ela que embaralha a paisagem externa,
tornando-a apenas cor. em (des)construções,
torna-se elemento de medida e demonstra a habi-
tabilidade das estruturas. Por último, a instalação
audiovisual Conhecidos de Vista recupera o valor
de observatório da janela do primeiro trabalho,
elemento que dá a ver o cotidiano alheio, mas
que também revela o interior de quem a possui.
enaltece, ainda, as relações possíveis entre janelas.
NOtAs
1 todas as imagens aqui apresentadas foram gentil-mente cedidas pela artista Letícia Lampert.
2 Letícia Lampert é formada em design − programa-ção visual pela Ulbra, e em artes visuais – fotografia pela UFRGS. Concluiu mestrado em Poéticas visuais
no PPGAv da UFRGS em 2013. No mesmo ano foi vencedora do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre verger na categoria Trabalhos de Inovação e Expe-rimentação e do iii prêmio itamaraty de arte Con-temporânea.
3 Lampert, Letícia. Conhecidos de Vista: A cidade re-velada através de olhares, janelas e fotografias. porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013: 13.
4 Cauquelin, Anne. A questão da pintura. In: ______. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007: 85.
5 Lampert, Letícia. Entrevista por videoconferência. 8 jan. 2014. entrevista concedida a talitha bueno Motter.
6 Lampert, 2013, op. cit.: 99.
7 Soulages, François. O objeto fotográfico: a fotografi-cidade. In: ______. Estética da fotografia: perda e per-manência. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
8 silva, Gladys neves da. Collages arquitetônicas. Ar-quitextos, São Paulo, ano 9, n.102.07, nov. 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/re-vistas/read/arquitextos/09.102/98>. Acesso em: 12 jan. 2014.
9 Meireles, Cecília. A Casa. Letras e Arte: suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, ano 2, n.46, 29 jun. 1947: 1 e 6. Disponível em: < http://hemerotecadigi-tal.bn.br/>. Acesso em: 12 jan. 2014.: p.1.
10 Meireles, op. cit.: p.1.
11 Lampert, 2013, op. cit.:.11.
12 Meireles, op. cit.: 1.
13 Lampert, 2014, op. cit.
talitha Bueno Motter é mestranda na linha de
história e Crítica de arte pelo ppGaV da uFrJ e
é editora da revista digital Arte ConTexto. des-
de 2011 dedica-se à crítica de arte, com textos
voltados, principalmente, para a produção de
jovens artistas.
103dossiê | Vânia LeaL Machado
ILHA DO COMBU: entre o rio e a cidade a arte acontece
Vânia Leal Machado
O ambiente de contradições cotidianas na Amazônia forma uma rede de pesquisa para os artistas locais, que atravessam no olhar a superação das fronteiras legais. Na urbana Belém amazônica, convivem se-dimentações identitárias como índios, ribeirinhos, quilombolas, caboclos e outros grupos sociais. Essas diferenças formam, na dinâmica cotidiana, a convivência com o rio e, ao mesmo tempo, convergem, contraditoriamente, para um ambiente complexo, em que o cotidiano simples se contrapõe, drastica-mente, ao cotidiano acelerado construído no Centro da cidade.
Esses ambientes demandam relação com desenvolvimento, sustentabilidade, ciclo da madeira, fatores geopolíticos e outras bases de conflito que inscrevem a produção na Amazônia aliada ao valor simbólico do povo florestânico.
Nessa confluência está a ilha do Combu, conformada entre os inúmeros espaços insulares do município de Belém, e, conforme o barco vai navegando, o silêncio nas águas do rio anuncia essa distância e uma nova dimensão se apresenta: o barulho da cidade vai ficando para trás.
O caboclo ribeirinho da ilha do Combu, de lá, observa a “cidade grande” e nos convoca nas teias das relações da modernidade com os recursos naturais, com o rio, restaurantes, energia elétrica, turistas e um fluxo dinâmico de barcos que circulam pelas águas a forjar novas relações com a natureza.
o entorno aparente da ilha, a mata e o rio à frente, com os trapiches de madeira em que aportam os barcos que chegam, configuram relações que se estabelecem com e nas comunidades do Combu.
É nesse contexto que o arte pará,1 por meio da proposta do curador paulo herkenhoff,2 reuniu quatro artistas que se deslocam em fluxo que permite a expansão das relações estabelecidas em uma dinâmica cultural formada por vários pontos de contato no mundo.
assim, paula sampaio, alexandre sequeira, Jorane Castro e thiago Castanho reuniram na quadra do Adrisom a comunidade da ilha do Combu e do entorno, mais os convidados de Belém, para a exposição Tem Arte Pará no Combu. O objetivo foi celebrar a arte no outro lado do rio.
Ao entrarmos na embarcação, a fotógrafa Paula Sampaio nos convidou ao “Embarque”, projeto criado pelo pensamento de seguir variados percursos, pelos quais acompanhamos a artista nos espaços exposi-tivos do arte pará e nas muitas rotas de sua criação.
Agora, seria segui-la num pôpôpô, que é o nome dado aos pequenos barcos que, por aqui, navegam em alusão onomatopaica ao ruído que fazem seus motores.
104 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
a artista seguia hasteando ao vento a Fotoinstala-ção-Árvore para ser libertada mais adiante. E, de longe, podíamos observá-la numa imersão sim-biótica com o vasto rio; que trazia o barulho da embarcação, seguida de trilha sonora produzida por Paula e tocando no barco em que estávamos.
O início ocorreu com a batida de um sino, segui-da pelas músicas que compassavam com o barco grande e o pô-pô-pô que seguia na nossa frente. algumas vezes, desviava-se para os lados, mas a rota se cumpria e nos prendia num tempo que nos desnorteava para dentro e para fora; orques-trando o grafo da artista, ali sozinha, a esmo, nas ondas da maré.
Imaginei os embarques por outras rotas da Ama-zônia, fosse por moto, caminhão, barcos e outros meios de transporte. Afinal, ela atravessou a rodo-via transamazônica, ao longo de 20 anos, com a câmera fotográfica.
a imagem impressa de um tronco de árvore que ela fotografou no “Lago do Esquecimento” traz a edição de um vídeo para a primeira etapa do pro-jeto de documentação fotográfica sobre o lago de Tucuruí, no Pará, o segundo maior lago artifi-cial do brasil, onde a artista se deparou com um cemitério de árvores e um refúgio para as pessoas
que não foram indenizadas e moram no topo das
ilhas em torno de tucuruí. essas questões colo-
cam-nos diante de um desafio no Arte Pará.
o que fazemos diante de tanta incongruência na
amazônia? esse lago precisou morrer para gerar
energia? Fato é que, morrendo com ele, estão-se
esvaindo vidas e tudo o que foi perdido para sua
formação: áreas indígenas, cidades e inúmeras es-
pécies de animais e vegetais.
A artista nos diz: “Há 30 anos, e nada mudou.
Mas temos que nos rebelar de algum jeito para
provocar as discussões, nem que seja por meio de
umas fotinhas.”
naquele cair da tarde paula nos fez sair das ex-
pectativas habituais e nos colocou em situação
de vertigem, como um convite necessário para a
reflexão. Quando o barco ancorou na ilha, ela já
tinha libertado o “tronco amarrado às margens
do lago, no cemitério das árvores”, impresso nas
bandeiras. Agora, o tronco está livre naquele rio.
Na arte é possível libertar os seres.
na ilha, fomos direto para a quadra do adrisom
para ver a exposição fotográfica de Alexandre Se-
queira, com a série Meu Mundo Teu, com a qual
o artista promoveu o conhecimento de dois ado-
lescentes por cartas e fotografias − Tayana Wan-
zeler, moradora do bairro do Guamá, na cidade
de Belém, e Jefferson Oliveira, morador da ilha do
Combu, descrevem a própria vida em detalhes,
por meio da troca de cartas e imagens realizadas
através da experimentação de registros fotográfi-
cos com câmeras artesanais de um e dois orifícios;
além de câmeras convencionais com dupla expo-
sição, resultando em testes fotográficos diversos,
com imagens sobrepostas dos dois mundos: o do
bairro do Guamá e o da ilha do Combu e da propo-
sição de alexandre, que coloca tayana e Jefferson
como coautores das imagens reveladas.
paula sampaio, Fotoinstalação-árvore, 2012, baía de Guajará
105dossiê | Vânia LeaL Machado
as imagens propostas e conduzidas por sequeira
resultam na construção de narrativas entrelaça-
das dos dois jovens, por meio da interatividade
e das relações afetivas que se estabelecem com
seus lugares, através dos elementos simbólicos
que animam esse convívio da percepção, que
transmitem a dimensão do acontecido.
quando estávamos montando a exposição na
quadra, as senhoras aldelina, raimunda, Maria
de Fátima e patrícia acompanhavam atentamen-
te as imagens e se reconheciam na fusão delas,
desprovidas de qualquer conceito da arte.
a senhora raimunda comentou, comovida, que
reconhecia a cozinha da casa antiga, que ela ha-
via demolido. “o professor alexandre trouxe nos-
sa casa de volta.” Aquele momento confirmava o
objetivo do trabalho de Alexandre, na sua forma
final, que é a de uma história para contar conver-
tendo-se em possibilidades poéticas.
a noite caía na ilha, e era grande o movimento
dos barcos que chegavam das comunidades pró-
ximas. era a hora do cinema, e a cineasta Jorane
Castro faria o lançamento oficial do filme Ribei-
rinhos do asfalto. O curta percorreu mais de 30
festivais nacionais e internacionais. Exibir o filme
para a comunidade na qual ele foi inspirado foi
um momento singular.
Gravado em locais tradicionais de Belém, como
Ananindeua, Marituba, ilha do Combu e o mer-
cado ver-o-Peso, o filme revela a presença dos
personagens pela interação e familiaridade do
contexto da ilha. Jorane capta essa essência na
Amazônia, ao trazer para a reflexão a vida das
pessoas e as relações com os outros.
O cinema na ilha, a céu aberto, criou um espaço
de realização do filme, pois, é pensado como o lu-
gar do encontro de “observadores” e “observados”
que se ligam, se juntam, e a troca é estabelecida,
e sobre ela recai o foco da paisagem interna dos
personagens.
Ao final da sessão de cinema, a celebração foi por
conta dos chefs thiago e Felipe Castanho, da co-
zinha paraense, que figuram nas cenas nacional
e internacional, legitimando nossa gastronomia.
Juntamente com as cozinheiras da ilha, criaram
um cardápio com os ingredientes amazônicos.
Para Thiago a experiência na ilha confirma um
retorno ao lugar de onde vem a motivação pra-
zerosa de seu trabalho. Seus pais começaram a
história com a criação do restaurante remanso do
peixe, que guarda o maneirismo da relação inti-
mista com a natureza vivenciada em seus lugares
de origem, no interior do estado.
Thiago diz que cresceu observando essas nuan-
ças no restaurante da família, na cidade de be-
lém. Sua memória afetiva naturalmente constrói
o conceito de seu trabalho. Com a comunidade
do Combu expande a pesquisa sobre a farinha,
o chocolate, e, principalmente, faz do ir e vir da
cidade para a ilha inspiração para os pratos que
nos tocam pelos sentidos.
assim, artistas convidados, professores, patro-
cinadores do arte pará, moradores da ilha e
arredores, equipe da Fundação romulo Maio-
rana degustaram mingau de banana-da-terra
paula sampaio, Fotoinstalação-árvore, 2012, baía de Guajará
106 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
com leite de coco, vatapá com cuscuz de farinha
d’água e, para sobremesa, bolo de macaxeira
com calda de maracujá e mousse de chocolate
do Combu. A ação na ilha do Combu provocou
uma verdadeira interação de todos ali presentes.
o evento suscitou uma percepção de deslo-
camento, desafiou a rotina dos sentidos, nos
alimentou de toda a sorte de coisas e, depois,
nos libertou para exercitar a imaginação, alar-
gando as fronteiras da criação de maneira livre
e intuitiva.
a arte aconteceu entre o rio e a cidade. o curador
paulo herkenhoff, ao dirigir essa ação, alinhou os
olhares dos quatro artistas e, convictamente, nos
fez sentir à vontade para contar nossa história
com a mesma paixão do idealizador. Fomos fe-
lizes em nossa travessia, com o desejo comum
de, por meio da arte, fazer da ilha do Combu um
lugar de encanto e confronto, um lugar que nos
coloca para pensar.
NOtAs
1 Projeto de arte contemporânea, o Arte Pará foi
criado em 1982 pela Fundação Romulo Maiorana;
acontece, portanto, há 33 anos consecutivamente.
Passou por várias modificações e adotou um sistema
regido pelo curador-geral.
2 Paulo Herkenhoff é crítico e curador, cujo olhar se
volta de maneira singular e cuidado especial para a
Região Norte. Há quase três décadas, quando esteve
à frente do instituto nacional de artes plásticas da
Fundação nacional de arte (Funarte) suscitou um de-
bate a partir da visualidade amazônica. De lá para cá,
a arte contemporânea conquistou espaço e, por in-
termédio de fluxos de artistas, críticos, articuladores
político-culturais e programações, passou a adquirir
visibilidade e maior potência. Herkenhoff está à fren-
te do Arte Pará há mais de uma década.
Vânia Leal Machado vive e trabalha em Belém.
Mestre em comunicação, linguagem e cultura, é
curadora educacional do projeto arte pará e res-
ponsável pela organização do catálogo do salão e
do encarte especial arte pará no jornal O Liberal.
atua na área de curadoria e pesquisa em artes,
tendo participado de comissões de seleção e pre-
miação, organizações de salões como o 9o salão
de Arte Contemporânea Sesc-Amapá. Foi curadora
de mapeamento da região norte no projeto ru-
mos itaú Cultural de artes Visuais, edição 2011.
alexandre sequeira, Girau e hot dog, 2007 thiago Castanho, Sabores do Combu, 2012, Belém, PA
107dossiê | André ArçAri
UM REMIX DE PAISAGENS OU POR ENTRE paisaGens e situações
André Arçari
Uma parcela da vasta produção contemporânea se utiliza do eixo paisagem-horizonte para a realização de
seus trabalhos, seja como meio ou fim. Alguns artistas brasileiros formulam sua produção na relação com
o ambiente, e muitos dos trabalhos criados chegam até nós por meio da visualidade contida na imagem.
na investigação intitulada Estudo da Paisagem (2010), de Sofia Borges, o conteúdo pode ser visto através
de uma suposta nitidez. Uma falsa busca de representação na imagem, portanto, uma simulação da
paisagem. A existência dessa simulação questiona se a realidade identificável é palpável ou composta por
imagens falsas, criadas com o intuito de desfigurar o mundo que lhes serviu de base. Nesse contexto, o
signo se tornaria mais importante do que o fato.
Na lógica interna e hermética do trabalho de Sofia Borges, qual a conexão com a matéria-prima, a re-
presentação ou a captação? Essa dúvida torna-se mutável ao longo da assimilação da série. Isso porque
as paisagens não são fotografadas de modo direto,1 mas sim através de um filtro que acaba gerando
um simulacro, ou seja, uma cópia imperfeita, a qual traz indícios da realidade. Baudrillard afirma que o
mundo atual2 é construído sobre uma representação de representações. Sobre esse jogo, ele argumenta:
“Enquanto que a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a
simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro.”3
Isso ocorre porque Borges posiciona a câmera não no real, mas realiza os registros dentro do Museu
americano de história natural, em nova York.4 As imagens são recortes fotográficos dos dioramas do
museu, que ela relata terem sido feitas em um só dia, como turista que capta seus interesses nos espaços
de exposição. ela reposiciona o lugar paisagem das imagens que antes tinham a função primeira de re-
presentar algo no espaço. O estudo apresenta a paisagem através da fotografia e ao mesmo tempo exibe
uma metarepresentação. Sofia fala do ato fotográfico, da relação entre produção e recepção da imagem
como índice de fotografia, como bem analisou Dubois em seu ensaio O ato fotográfico.5 suas preocupa-
ções em questões como, por exemplo, cor, luz e sombra (para citar algumas delas) direciona o discurso
de sua pesquisa para um grau pictórico. De algum modo, é possível se perguntar: poderiam ser pinturas?
ignez Capovilla em sua (primeira) exposição individual, intitulada por novos horizontes,6 segue outro eixo
sobre paisagem, mas, assim como Borges, esse não é o único assunto, pois, inseridas no campo da arte,
as preocupações dessas artistas perpassam uma vasta história e uma extensa gama de problematizações.
de certa forma, Capovilla atua de modo inverso ao que borges propunha em seu estudo como turista
dentro de um museu. Como artista viajante, Capovilla busca o primitivo, e seu corpo vai ao encontro de
108 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
uma paisagem real. ela se locomove de corpo e
mente até paisagens desejadas para sua pesquisa
e busca ver, com seus próprios olhos, o mundo
como ele é, a fim de analisá-lo e transfigurá-lo
para o campo da arte.
na pintura, o status da paisagem torna-a um
tema. Num olhar rasteiro para a série de Capo-
villa, me pergunto: de que modo essas paisagens
existem no mundo real? Respondo-me através do
tempo e dos diálogos travados com a artista. o
ser humano não está presente nas imagens, mas
é notável como pode ser percebido mediante in-
dícios contidos em momentos e espaços determi-
nantes. É verdade que se trata de uma presença
de ausência da figura humana.
a seleção de horizontes captados durante uma
viagem à bolívia exprime uma peregrinação em
que o deleite estético do corpo jogado no espa-
ço real torna-se o lugar ideal. associado a esse
fato, o lugar sagrado que ela buscou é uma jus-
taposição de seu eu interno e o mundo exterior.
Sua busca visa à imensidão da vida. Além disso,
para tal jornada ela parece mesmo questionar
o mito da pureza, como fez, de modo distinto
e utilizando outros artifícios e materiais, Hélio
oiticica, em Tropicália7 (discussão apropriada
para outro texto que não este, que escrevo para
você, caro leitor).
A falta de corpos na pesquisa de Capovilla é pre-
enchida por outros interesses. O trabalho expressa
sua missão solitária de encontro com as estruturas
terrestres. desse modo, o mundo dessas imagens
parece pertencer a um não tempo, um espaço
meditativo a ser sentido e vivido, mais do que ra-
cionalizado. A filosofia oriental é oportuna para
uma assimilação mais ampla do vazio de prédios e
multidões urbanas desses horizontes. Algo como
o Zazen (Apenas sentar), definido como a base
da prática zen-budista, na qual o praticante deve
libertar pensamentos, e/ou ainda o Wu Wei (Não
ação. Wu = não, nunca, sem, nada, vazio; Wei =
fazer, agir), um princípio prático central da filoso-
fia taoísta, poderia ser absorvido ao tempo e ao
espaço visual e conceitual das imagens.
os horizontes são captados e armazenados numa
câmera digital e não se bastam sem tal aparelho
tecnológico de base. É uma formulação oposta à
de Borges em termos, pois ambas são turistas (fo-
rasteiras nessas cidades distintas) e portam apara-
to semelhante, a câmera. Por isso tais naturezas
não se bastam sozinhas, elas pertencem à foto-
grafia, bem como a ideia do vazio representado
Sofia Borges, Estudo da Paisagem, 2010, jato de tinta sobre papel algodão, 40x 60cm (esquerda) 100 x 66cm (direita), ed. 5. imagem cortesia da galeria artur Fidalgo
109dossiê | André ArçAri
por Capovilla. É uma aventura sobre um núcleo
que já se encontra construído em nossa memó-
ria, social e culturalmente. por exemplo, o cinema
ambienta cenas e tem a capacidade de construir
imagens em movimento, como a do vazio, através
da câmera filmadora, e por isso desde muito cedo
teve suas especificidades, sua grafia. Sua base,
nos primórdios, foi a fotografia, o frame. para de-
leuze o “cinema não apresenta só imagens, ele as
cerca com um mundo”.8 por esses e outros fato-
res, o vazio em si no trabalho de Capovilla é en-
cenado, bem como o movimento no cinema fora
uma ilusão da justaposição de imagens estáticas
gravadas na película.
Enquanto uma delas trabalha no urbano, no am-
biente interno de uma paisagem projetada pelo
homem com portas, paredes e afins, ou seja, o
museu (espaço arquitetado), a outra realiza um
furgere urben momentâneo para um local silen-
cioso e “infinito” a fim de encontrar-se com a
imensidão da natureza, expressando característi-
cas de uma geografia em que a terra aparenta se
bastar. Todavia, há que lembrar, o mundo captado
por ambas é uma ilusão, uma simulação.
Por Novos Horizontes é composto por sete
dípticos, em escala de 47x100cm (o trabalho é a
junção de duas imagens que sofrem um processo
da manipulação digital a fim de ser impressas jun-
tas) e um díptico impresso separadamente,9 que
mede 100x300cm (instalado no espaço com pou-
cos centímetros de afastamento).
As imagens possuem a largura de panorâmicas,
mas não trazem consigo o continuum tempo-espa-
ço de um só horizonte. todos os pares são capta-
ções distintas interligadas por uma linha. o traça-
do é nitidamente forjado, o que se dá, contudo,
porque ritmo, composição e problemas de ordem
cromática, presente nas imagens, são distintos.
Há a presentificação de momentos díspares entre
si. As situações dessemelhantes acabam por divi-
sar um risco vertical centralizado, o qual chama
de imediato o olhar. as cenas duplas são com-
postas através da manipulação digital, e por isso
mesmo um abismo se instaura. Em Horizonte 04,
elementos naturais distintos, água/terra, tentam
dialogar, e a composição é interligada por uma
região montanhosa. os caminhos, vistos no pri-
meiro plano, percorrem lados opostos, as bordas,
e parecem infinitos. Já Horizonte 03 carrega a
primazia do silêncio puro/translúcido, em razão
de seu lado esquerdo apresentar cristais de sal do
Salar de Uyuni e seu lado direito exibir a transpa-
ignez Capovilla, Horizonte 08, díptico, 2013, fotografia sobre papel, 100 x 300cm
110 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
rente água do lago. em escala maior, Horizonte 08
é um composto terrulento/rochoso. No lado direito
há uma composição de texturas e cores terrosas e
uma região geográfica vista ao fundo desperta a
associação com os pináculos de uma catedral gó-
tica, reforçando assim uma verticalização espacial.
A esquerda, o céu branco e límpido se opõe ao lixo
por entre as pedras na parte inferior, o que pontua:
é um lugar turístico. Por fim, o cenário afirma que
o ser humano deixa mesmo rastros por onde passa.
Aliás, nós humanos é que projetamos as diferen-
ças no/do mundo, reestruturando as percepções a
partir do que absorvemos. Nossas compreensões
são mesmo múltiplas em inúmeros sentidos, bem
como nossas distinções físicas e intelectuais.
a paisagem incorpora o tempo em sua essência,
adere as transformações humanas, bem como as
naturais. se altera pelas catástrofes, sendo sujeito
protagonista. Torna-se objeto de estudo do hu-
mano pela geografia, problematizando questões
como as transformações topográficas em confor-
midade com o tempo.
o tempo, por sua vez, é efêmero, se faz e refaz
no aqui e no agora. É ininterrupto porque não
há possibilidade de ser pausado como um filme,
sendo, assim, paisagem de difícil apreensão por
ser incerto. Vive constantes reformulações, sendo
posto/sobreposto/justaposto a todo momento.
NOtAs
1 Nesse sentido argumento o fato de Sofia Borges registrar uma representação, um indício de uma pai-sagem real existente no planeta terra. ela não regis-tra uma paisagem real em si.
2 Refiro-me à atualidade que o teórico/filósofo analisa em seu livro publicado em 1991. Baudrillard, Jean. Si-mulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Agua, 1991.
3 Baudrillard, op. cit.: 13.
4 Informação obtida no texto de Clarissa Diniz, escri-to na ocasião da mostra estudo da paisagem (study of Landscape) realizada na Galeria arthur Fidalgo, em 2011. (diniz, Clarissa. Paisagem em falso. dispo-nível em <http://sofiaborges.carbonmade.com/pro-jects/3199427#1>. Acesso em 21 jan. 2014.)
5 Dubois publica esse e outros ensaios em livro inves-tigando a compreensão do processo que engloba a fotografia. Dubois, Philippe. O ato fotográfico e ou-tros ensaios. Tradução Maria Appenzeller. Campinas: Papirus, 1993. (Série Ofício de Arte e Forma)
6 Mostra individual da artista que ocorre no espaço Cultural Memorial da paz na cidade de Vitória, es (Brasil), de 10 de dezembro de 2013 até 10 de março de 2014.
7 Exposta na mostra Nova Objetividade Brasileira, reali-zada no Museu de arte Moderna do rio de Janeiro, em abril de 1967, a obra pode ser descrita como um am-biente labiríntico composto de dois Penetráveis, PN2 (1966), Pureza É um Mito, e PN3 (1966-1967), Ima-gético, associados a plantas, areia, araras, poemas-ob-jetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão.
8 Deleuze pontua também que devido a esse fato o cinema procurou circuitos cada vez maiores, que unissem uma imagem atual a imagens-lembrança, imagens-sonho, imagens-mundo. deleuze, Gilles. A imagem-tempo. Tradução: Eloisa de Araujo Ribeiro; revisão filosófica Renato Janine Ribeiro. São Paulo: brasiliense, 2005 (Cinema2).
9 A solução de dividir tais imagens viabilizou o trans-porte. Caso fossem impressas juntas a largura limita-ria sua locomoção.
André Arçari é artista-pesquisador, teórico e críti-
co independente. Graduando finalista do curso de
artes Visuais pela ufes, atua na instituição como
pesquisador-CNPq nos grupos Poéticas Transdisci-
plinares nas Artes visuais e Laboratório de Pesqui-
sa em teorias da arte e processos em artes.
111dossiê | Renata Gesomino
NO LIMIAR DE UM TROMPE-L’OEIL PóS-MODERNO:o confronto sociopolítico entre a pintura erudita e a arte urbana
Renata Gesomino
há um momento importante de transição ou passagem de nosso modernismo para o pós-modernismo
nas artes visuais, em que a visualidade dos meios plásticos, sobretudo, os meios da pintura começaram
a ser amplamente questionadas. Tais questionamentos podem ser exemplificados pelas experimentações
mais conceituais de Hélio Oiticica e Lygia Clark, por exemplo. Importa abordar alguns princípios teóricos
como os elaborados na Teoria do não objeto,1 de Ferreira Gullar. O crítico e poeta anunciou as modifi-
cações no campo pictórico por meio da “morte da pintura”, mais precisamente, da moldura enquanto
convenção ou de sua canonização nas amarras do cavalete. apelava-se para a mente e para os sentidos
na tentativa de apreensão das relações entre o observador e o “(não) objeto”, constituído em função do
espaço, em função do mundo.
A pintura e a escultura, sobretudo, tinham alguns de seus aspectos aplicados em obras que mais pa-
reciam híbridos de várias linguagens. É assim que Oiticica, por exemplo, chega às formulações de seus
Penetráveis, na busca de uma “simbologia geral do corpo”.
partindo-se de algumas considerações relacionadas à plasticidade e à perspectiva encontrada em estru-
turas geométricas − tais como as estruturas dos mencionados Penetráveis, de Oiticica, que remontam
a algumas obras dos artistas neoconcretos de maneira mais ampla −, percebe-se a projeção abrupta
das formas nas telas rumo à ocupação do espaço circundante. Nesse sentido, é possível tecer também
algumas considerações críticas entre as obras dos jovens artistas Rafael vicente e Mario Bands. O viés
principal da presente análise de obras, entretanto, concentra-se menos em questões estéticas e formais
do que nas questões atreladas ao desenvolvimento conceitual de uma identidade territorial.
Tanto Rafael vicente quanto Mario Bands possuem históricos bem distintos de inserção no meio de
arte estabelecido2 e percepção ou “visão de mundo” que pode ter influenciado a escolha de repertório
material3 singular quase oposto entre eles. Todavia, pode-se afirmar que ambos os artistas utilizam al-
guns princípios técnicos específicos do campo pictórico com o objetivo de transgredir uma perspectiva
passiva, projetando formas que se destacam principalmente através do uso de uma paleta intensa e
histriônica. esse jogo cromático provoca um salto para fora das estruturas que funcionam como suporte.
Apesar das semelhanças estéticas e formais encontradas em suas obras, destacam-se as diferenças em
relação às experiências adquiridas em função da vivência afetiva no entorno, gerando certo conflito na
apreensão das “identidades culturais pós-modernas”.4
112 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
Rafael vicente é formado pela Escola de Belas Ar-
tes e trabalha com linguagem pictórica levando a
experiência perspéctica a seu limite, encontrando
a inspiração plástica na observação de elementos
brutos da construção civil. Desenvolveu, a partir
de um arcabouço técnico, artístico e teórico, uma
espécie de pintura a óleo abstrata, que exibe a
problemática da própria pós-modernidade ao cru-
zar os tempos pretéritos. É dessa maneira que po-
demos identificar em suas pinturas a presença de
um trompe-l’oeil5 rebuscado e deslocado de tem-
po e espaço. entre os múltiplos pontos de fuga
flutuam estruturas arquitetônicas que lembram a
dureza dos materiais costumeiros da área.
sua inserção no campo artístico se dá tangen-
ciando as poéticas visuais próprias do universo
pictórico. dessa maneira, como pintor, seu tra-
balho é reconhecido e legitimado, integrando-se
às galerias, coleções particulares, centros cultu-
rais e museus, entre outros. Vicente adentra o
que o sociólogo francês pierre bourdieu chama-
ria de campo da produção erudita,6 podendo ter
sua obra comparada aos movimentos abstratos
geométricos das vanguardas do século 20, muito
embora o atualize com paleta artificialmente ilu-
minada que remete à entropia visual das cidades
pós-modernas.
por outro lado, nas questões que tangem ao
confronto sociopolítico entre esse mesmo campo
da produção erudita e o campo da arte popular,
aqui compreendido como “arte urbana”, insere-se
a obra de Mario Bands, por vias tortuosas. Bands
é conhecido como artista urbano e também
pode ser classificado, não sem custos para o
reconhecimento do valor simbólico e estético de
seu trabalho, como “grafiteiro”. Atua, sobretudo,
desenvolvendo pinturas híbridas, uma vez que são
apresentadas em superfícies não convencionais,
ganhando características escultóricas. Suas obras
são feitas, em geral, com os materiais de “rua”,
como a tinta spray, pVa, restos de sucata recolhida
e apropriada, além de algumas inserções com
fotografia e ilustrações digitais impressas.
É um artista urbano, um “flâneur das duas
margens”,7 e sua arte emerge da observação
Rafael vicente, série Contaespaços, 2014, grafite, óleo e resinas sobre linho, 100 x 289cm
113dossiê | Renata Gesomino
NOtAs
1 Segundo Ferreira Gullar, a primeira definição de
não objeto, encontrada na teoria homônima, seria
a seguinte: “É preciso primeiro saber o que entendo
aqui por objeto. Entendo aqui por objeto a coisa ma-
terial tal como se dá a nós, naturalmente, ligada às
de espaços que registram luta de classes, atrito
sociopolítico e cultural.
É assim que Bands, filho também das periferias do
Rio de Janeiro, tem seu olhar sensibilizado pelos
escombros sociais de áreas problemáticas nos su-
búrbios e favelas cariocas, onde desenvolveu seu
trabalho mais famoso. Criando um site-specific
no Complexo do alemão, Mario bands, ocupou,
com tinta spray e formas geométricas saltitantes,
toda a extensão de uma escadaria ou o que dela
sobrou, transformando o signo do abandono do
Estado em obra de arte efêmera.
na compreensão de uma lógica de mercado e
de funcionamento do circuito de arte, é possível
afirmar que a inserção de Bands tornou-se mais
restrita, num certo sentido, do que a de rafael Vi-
cente, embora, por um aspecto formal, a obra de
ambos goze de qualidade estética e visual seme-
lhante. nas lutas, jogos e disputas por legitimação
e pelo capital simbólico, as escolhas de Bands de
abordar a problemática sociopolítica das perife-
rias, com o agravante de partir de uma linguagem
artística ainda marginalizada como o graffiti, o
converteriam supostamente na “tendência heré-
tica”, ou seja, naquele artista que visa entrar no
campo da produção erudita, ainda que, preser-
vando as referências de um aparato simbólico
urbano e popular. Uma das estratégias utilizadas
pelo artista para transformar a efemeridade de
suas ações em work in progress mais palatável
para ocupar os espaços institucionais é conver-
tê-las em registro audiovisual e fotográfico.
Assim, desenvolvendo estratégias diversas tanto Bands quanto vicente dão uma contribuição com base na dicotomia entre identidade e alteridade na construção ulterior de uma visualidade da pin-tura pós-moderna brasileira; afinal, é dessa diver-sidade que vivemos.
Mario bands, Símbolo do Descaso, 2013, site specific, intervenção urbana no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, RJ 180x 120cm
114 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
designações e usos cotidianos: a borracha, o lápis, a
pera, o sapato, etc. Nessa condição o objeto se esgo-
ta na referência de uso e de sentido. por contradição,
podemos estabelecer uma primeira definição do não
objeto: o não objeto não se esgota nas referências de
uso e sentido porque não se insere na condição de útil
e da designação verbal. (Gullar, Ferreira. teoria do não
objeto. Suplemento Dominical do Jornal do Brasil como
contribuição à II Exposição Neoconcreta realizada de
21-11 a 20-12-1960, no Rio de Janeiro.)
2 expressão comumente utilizada por autores da
sociologia no esforço de apreender os fenômenos
sociais do campo artístico. É recorrente em autores
como howard becker, por exemplo. (becker, howard.
Mundos artísticos e tipos sociais. In: Arte e socieda-
de: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro:
Zahar. 1977.)
3 a expressão faz referência a alguns aspectos con-ceituais extraídos da semiótica moderna e da teoria da informação a partir da leitura dos textos semió-tica abstrata, Estados estéticos e Teoria geral do re-pertório, in bense, Max. Pequena estética. São Paulo: Perspectiva. 1998.
4 o antropólogo jamaicano stuart hall tem como uma de suas principais contribuições para os estu-dos pós-coloniais o desenvolvimento do conceito de “identidades culturais na pós-modernidade”, que ele assim descreve: “O sujeito assume identida-des diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coeren-te. dentro de nós há identidades contraditórias, em-purrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.
(...) A identidade plenamente unificada, completa, se-gura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à me-dida que os sistemas de unificação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identi-dades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (Hall,
stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 1998:13.)
5 Técnica artística pautada no uso na perspectiva ilu-sória por mais de um ponto de fuga, amplamente utilizada e descrita no tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum (em dois volumes, 1693–1700) pu-blicado pelo padre jesuíta Andrea Pozzo, no século 17. O trompe-l’oeil foi uma das principais caracterís-ticas da pintura religiosa barroca do período.
6 O sociólogo Pierre Bourdieu assim esclarece a defi-nição da lógica de funcionamento do campo da pro-dução erudita: o campo da produção propriamen-te dito deriva sua estrutura específica da oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo da produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumen-tos de apropriação desses bens) objetivamente des-tinados (ao menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais (Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas, São Paulo: Pers-pectiva, 2005:105.)
7 a expressão faz referência à homônima compilação de contos do poeta Guillaume apollinaire, em que o termo flâneur é desenvolvido a partir das elaboração de contos que relatam as andanças e observações dessa espécie de andarilho boêmio das metrópoles, enaltecendo sua relação poética com as ruas.
Renata Gesomino é doutoranda na linha de pes-quisa de história e Crítica da arte pelo ppGaV- uFrJ. Mestre em história e Crítica da arte pelo pp-GaV-uFrJ. tem experiência na área de artes visuais com ênfase em pintura. atualmente produz textos e resenhas críticas exercendo a atividade como crí-tica de arte e curadora independente especializada em arte e política.
115dossiê | Luísa Kiefer
espaço, teMpo e seus desdobraMentos na OBRA DE RAFAEL PAGATINI
Luísa Kiefer
...a nossa experiência diária parece mostrar que nos constituímos como
seres que se deslocam pela vida, com a única certeza da incerteza do
caminho, carregando em nossos corpos e memórias as marcas do tempo
e de tantos outros deslocamentos.
Pagatini1
Rafael Pagatini é artista, professor e pesquisador. Pensa e escreve sobre o seu fazer e sobre os meios e
suportes que utiliza com o cuidado que prepara as imagens para imprimir suas gravuras. podemos ler,
com igual poesia e fluência, um quadro ou um texto seu. Reflexão e produção andam juntas, se cons-
troem a partir do seu olhar e pensar nas séries Brumas (2009-2012), Passagem (2012) e Conversas com
a paisagem (2013).
Independentemente do suporte escolhido, xilogravura, retícula de furos sobre tela de linho, ou a cons-
trução de uma narrativa em forma de livro, a produção de Pagatini tem o mesmo ponto de partida: o
registro fotográfico de uma paisagem. Esse registro marca não uma escolha aleatória, mas um espaço
que encerra, no instante fotográfico, um período de tempo. Em quase todas as suas séries essa escolha
está ligada também a suas memórias e afetos, àquilo que carrega consigo em seu imaginário. A foto-
grafia, para ele, “carrega em seu interior a relação entre a perda e a permanência como seu principal
paradigma”.2 ou, ainda, “acompanhando as transformações e rupturas presentes no pensamento artís-
tico, a fotografia apresenta-se como meio largamente utilizado pelas possiblidades de aglutinar vastas
significações e reflexões na poética do artista”.3
A imagem capturada – carregada de significados inerentes – é, então, tratada no computador. Uma retí-
cula é aplicada sobre ela, como forma de aproximar o olho do resultado final desejado. O próximo passo
se desdobra nos diversos suportes ou diversas formas de marcar, de gravar uma imagem utilizados pelo
artista. a transposição do computador para o suporte dá forma às gravuras, que muitas vezes tocam o
espectador, em um primeiro momento, por sua manualidade.
Quando nos aproximamos de uma de suas obras, vemos primeiramente esse esforço manual: os entalhes
da madeira (série Brumas) ou os furos da tela (série Passagem). A retícula criada por Pagatini nos per-
mite formar uma imagem nítida à medida que nos afastamos da obra, desvelando-a. vemos o instante
116 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
registrado pelo artista e podemos ser transporta-
dos para essa paisagem, que nos coloca diante da
reflexão sobre o tempo e o espaço. Nesse contex-
to, é importante compreender como a poética do
artista mistura-se à voz que narra e escreve; à voz
que observa e registra através da gravura; e, mais
especialmente, à voz de quem lê ou contempla
uma de suas obras e com a do próprio autor.
tempo e espaço
Formado em artes visuais pela universidade do
rio Grande do sul, em porto alegre, com mestra-
do em Poéticas visuais pela mesma universidade,
Pagatini atualmente é professor da Faculdade de
artes da universidade Federal do espírito santo.
É natural de Caxias do sul, cidade localizada na
serra Gaúcha. Cresceu muito próximo ao ofício do
pai, que era marceneiro. a familiaridade com o
material lhe rendeu a trajetória pela xilogravura,
que logo se expandiu para as outras formas de
gravar imagens.
Pagatini mudou-se para Porto Alegre a fim de cur-
sar a faculdade. desse momento em diante passou
a se deslocar com frequência entre as duas cidades.
Logo outros deslocamentos também passaram a
fazer parte de sua rotina. “esses deslocamentos,
para mim, sempre me colocaram em contato com
o pensamento de como estas paisagens denotam
uma memória, a partir do que acontece nesses
espaços”.4 Ao andar entre cidades e perceber as
paisagens que se transformam, o artista cria sua
própria memória e seu próprio imaginário. suas
impressões ficam marcadas sobre uma paisagem
que se transforma com o passar do tempo, da
mesma forma que nos transformamos, como se-
res humanos, com o passar desse mesmo tempo.
Estamos imersos no tempo, em algo que foge
à nossa compreensão, e com a certeza de que
nascemos e nos direcionamos para algo que
transcende a barreira da nossa reflexão. Ali nos
encontramos com a origem e com o regresso
ao nada, ao vazio, à ideia de que passamos
pelo mundo e vamos paulatinamente nos
transformando.5
Através da sua produção, Pagatini compartilha com o espectador seu trajeto interno, narra sua reflexão, nos presenteando com suas observações sobre o transcorrer do tempo, sobre a formação do imaginário e sobre o tempo interno do silêncio e do sentir.
Minha produção plástica se estrutura a partir de estampas xilográficas que possuem, em seus procedimentos e processos, um amálgama de relações que sugerem temporalidade e movimento. Mas de que forma isso se materializa no trabalho? Como uma imagem estática pode indicar a percepção de um deslocamento? Refletir sobre o tempo, mais do que apontar formas de ordenarmos o processo de criação, promove a própria constituição do trabalho.6
De acordo com o artista, é através de imagens que incitam processos de transformação que ele busca criar relações com a percepção do tempo. o espa-ço aparece como o lugar em que ele transcorre, em que podemos perceber sua passagem. O tem-po, apesar de intangível, está sempre presente. nossa existência se dá em um período dentro de um tempo que não temos como medir. a única forma de mensurá-lo é submetendo-o a uma deli-mitação, a um espaço, como o artista faz ao cap-turar em um instante fotográfico uma paisagem: “o tempo como movimento físico dos corpos e o tempo através da ideia de “instante” imaginativo, onde ocorre uma suspensão do movimento”.7
Então, como perceber esse tempo, como marcar,
117dossiê | Luísa Kiefer
como registrar, como passar e assimilar as mudan-
ças que ocorrem interna e externamente? onde
ficam estes registros e que forma eles têm? Como
o tempo ocupa esse espaço de deslocamento? a
transformação da paisagem, para Pagatini, é uma
das demonstrações da passagem do tempo. bem
como é também a marca da ação do homem,
do desenvolvimento, da mudança trazida pelas
transformações sociais. esses questionamentos
aparecem em sua obra não de forma clara ou ex-
plícita, mas de forma poética, traduzidos em ima-
gens, impressões das percepções do artista, que
ao mesmo tempo em que olha para si, olha para
fora. procura o eu a partir do outro.
Deslocamento e silêncio
Na série Passagem, realizada em 2012, a janela
do ônibus marca o lugar de onde o artista captura
o momento. nos insere no cenário em que está a
imagem que marca o deslocamento, trazendo à
tona nossas próprias lembranças. Já em Brumas,
série composta por xilogravuras de diferentes
paisagens de Caxias do sul, pagatini utiliza ma-
deira de demolição de casas que eram parte do
cenário de seus deslocamentos.
Deslocar-se significa ir de um ponto a outro. Percor-
rer pequenas ou grandes distâncias. Mover-se. Car-
regamo-nos de um lugar para outro. registramos
na memória as diferentes vistas, as diferentes luzes,
os diferentes momentos em que estivemos com
aquela paisagem, que assim como nós, também
sofre a ação do tempo e recebe a ação do homem.
Pode-se observar uma casa que desapareceu,
dando lugar a uma nova construção, um campo
em que nasceram árvores, uma plantação que
está em época de colheita ou que já foi colhida,
uma estrada com seus diferentes contornos. as
cores das estações mudam a paisagem, e com ela
mudam as nossas percepções. deslocar-se pelo
espaço nada mais é – e não precisa ser – do que
um profundo exercício de observação do tempo e
desse espaço dentro do tempo.
O olhar do artista traduz a memória e a reflexão
interna diante do observado. A imagem impressa
marca um tempo específico. Registra, imprime,
transpõe um momento preciso do registro da me-
mória sobre aquele deslocamento, gravado para
sempre no instante da fotografia.
O ato de observar costuma ser silencioso. O silên-
cio é o estado em que, paradoxalmente, nos per-
mitimos, ou nos entregamos, ao barulho interno:
Observar e descobrir oferece a possibilidade
da solidão oportuna, de identificar o silêncio
Rafael Pagatini, detalhe da série Passagem, 2012
118 Arte & Ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 27 | dezembro 2013
primordial escondido entre os escombros do
cotidiano e de sentir alívio ao perceber o quanto
somos insignificantes perante o todo deste
mundo, e de como, durante o mesmo tempo,
ainda resta o tudo dessa insignificância.8
em Conversas com a paisagem, projeto realiza-
do no âmbito da Bolsa de Estímulo à Produção
artística da Funarte, pagatini se propôs a cruzar
o brasil nas mais diferentes direções, sempre de
ônibus. Um exercício de observar e ouvir, os ou-
tros e a si mesmo, em relação ao que encontraria
pelo caminho.
o projeto deu origem a um livro homônimo, com-
posto por fotografias e textos reflexivos sobre o
percurso. os registros feitos por pagatini são silen-
ciosos. Carregam um momento de contemplação
que apenas o silêncio permite.
nos textos que fazem parte do livro, pagatini
compartilha com o leitor ou espectador justa-
mente esse silêncio interno. e o faz com ge-
nerosidade e sinceridade raras. Como transpor
o pensamento mais íntimo? A reflexão mais
pessoal a respeito de um lugar, do passar do
tempo, de uma história, da transformação da
paisagem? Como traduzir em palavras essa voz
interna que apenas aparece quando estamos
em silêncio? e aparece apenas de nós para nós
mesmos? Logo na primeira página, o artista
capta o leitor com uma escrita do pensamento.
uma história que começa a ser narrada e que
podemos lê-la em voz baixa, como se fosse a
voz de nossa própria consciência, de nosso pró-
prio pensamento falando:
Da janela redescubro momentos esquecidos,
mas que por alguns instantes emergem de
algum local incerto e são revividos com toda
a intensidade. Ao mesmo tempo, pequenos
traumas ressurgem, sinto a doce e amarga ad-
miração que me sobrevém quando relembro
dos tempos da adolescência e de como estou
envelhecendo. Através da janela, observo lem-
branças e escuto todas as vozes surdas que
povoam meus pensamentos.9
rafael pagatini, Neblina, 2010, xilogravura, 200 x 70cm, ed. 6
119dossiê | Luísa Kiefer
A obra de Pagatini nos leva a mergulhar no uni-
verso particular da intimidade do pensamento do
artista. No entanto, aos poucos, descobre-se que
a sensação de intimidade é causada por encon-
trar em suas reflexões esse espaço do outro. Um
outro, que sou eu, que também se desloca, que
também percebe, que também grava, que tam-
bém cresce e envelhece.
NOtAs
1 pagatini, rafael. Marcas e transposições da memó-ria: reflexões sobre procedimentos utilizando a gra-vura. dissertação (Mestrado) universidade Federal do rio Grande do sul.porto alegre, 2012.
2 Pagatini, Rafael. A fotografia como alegoria do ou-tro. Revista-Valise, porto alegre, ano 1, v.1, n.2, dez. 2011: 135.
3 Idem, ibidem: 140.
4 pagatini, rafael. Conversas com a paisagem. Vitó-ria: Edufes, 2013.
5 Pagatini, 2012, op. cit.: 38.
6 Pagatini, 2012, op. cit.: 32-33.
7 Pagatini, 2012, op. cit.: 37.
8 Pagatini, 2013, op. cit.
9 Pagatini, 2013, op. cit.
Luísa Kiefer é mestre em história, teoria e crítica
de arte pela universidade Federal do rio Grande do
Sul. Dedica-se a pesquisar sobre a figura do jovem
artista no sistema das artes. Formada em jornalis-
mo pela PUCRS, colaborou, entre 2008 e 2013,
com revistas e sites de cultura e artes, como Aplau-
so, Dasartes, Urbe e PEK. Em 2013, foi assistente de
curadoria da 9a bienal do Mercosul, porto alegre.
rafael pagatini, Conversas com a paisagem, 2013, percurso entre Gandu e vitória