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DE SEVERINOS A NANETTO PIPETTA: LITERATURA, MIGRAÇÃO E POBREZA NO BRASIL – BAGNO, Silvana.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 30-47
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DE SEVERINOS A NANETTO PIPETTA: LITERATURA,
MIGRAÇÃO E POBREZA NO BRASIL BAGNO, Silvana
Estudante de doutorado do Programa de Pós-graduação em Memória Social (UNIRIO)
E-mail: [email protected]
RESUMO
Este artigo aborda o tema da migração e da pobreza, a partir do percurso de Severino, personagem
de Morte e Vida Severina (NETO, 1986) e de Nanetto Pipetta (BERNARDI, 1988). Através da
análise destas obras da literatura brasileira, buscou-se conhecer o migrante nordestino e sua
história, compreender o processo de migração do meio rural para as cidades, o imigrante italiano e
o significado do emigrar, especialmente no que diz respeito à pobreza e desigualdade social. As
obras são o fio condutor das reflexões apresentadas, a luz da trama vivida pelos personagens
centrais. O tema da migração foi apresentado a partir das noções de enraizamento e
desenraizamento, e a pobreza foi trabalhada em sua articulação com as noções de desigualdade e
exclusão social. Concluiu-se que é preciso políticas públicas voltadas para a construção da
cidadania e consolidação do capital humano e social e que respeitem as diferenças culturais.
Palavras-chave: literatura; pobreza; migração.
ABSTRACT
This article presents the issue of migration and poverty, considering Severino´s trajectory, the
personage of Morte e Vida Severina (NETO, 1986) and Nanetto Pipetta´s (BERNARDI, 1988).
Through the analyses of these Brazilian literature work, it was studied the history of the northeast
Brazilian migrant, his migration process from rural area to the cities, the Italian immigrant and the
meaning of emigration, specially its connection to poverty and inequality. The works were the
guideline to the reflections that were done, being the personage’s flow of experience, a central
issue. Migration was studied by the concepts of rooting and unrooting, and poverty was worked
through the concepts of inequality and social exclusion. The conclusion is that it depends on
public politics related to citizenship and the consolidation of human and social capital, in regard
to the respect of cultural differences.
Keywords: literature; poverty; migration.
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Introdução
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
Sabe-se que, de um modo geral, a migração, nacional e internacional, é motivada
por fatores sócio-econômicos. A carência de recursos, de trabalho, de alimento e de
condições de vida propicia a motivação para buscar, em outras terras, aquilo que a terra
natal não supre.
No presente trabalho, interessa-nos conhecer, sob o viés da literatura, a pessoa do
migrante nordestino, assim como os anseios do imigrante italiano, que veio para o Sul do
Brasil no início do século XX. Apreendê-los em sua história, sua riqueza de experiências,
suas lutas, com derrotas e vitórias; compreender a garra, a força e coragem daqueles que
realizaram essa travessia, que reiniciaram sua vida em busca de melhores condições de
vida e perceber o significado que o migrante atribui à sua escolha e expectativa,
especialmente no que diz respeito à miséria e desigualdade social.
Tendo em vista que a literatura retrata a vida e as transformações da sociedade,
fomos buscar na literatura brasileira, tanto o retirante nordestino, quanto o imigrante
italiano, em seus sentimentos, história, motivações e descobertas. Ao retratar o percurso
de Severino, personagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1986),
buscamos refletir sobre o fenômeno migratório e a pobreza. Do mesmo modo, o jovem
Nanetto Pipetta, criado por Aquiles Bernardi (1924), revela a trajetória do imigrante
italiano que veio colonizar as terras do Sul do Brasil.
1. A Pessoa do retirante: Severino e a história de sua vida
— O meu nome é Severino,
(...) Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
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fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
(...) o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
(...) Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Severino é a personificação do retirante brasileiro, nordestino, o oprimido
socialmente, cuja vida é determinada pelas desigualdades econômicas e sociais. Suas
tentativas de se diferenciar, de firmar sua identidade, resultam infrutíferas ao se perceber
um entre tantos iguais. Seu nome, assim como o de seus pais, como se pode observar no
poema, é genérico. Severino, nome próprio, torna-se comum, e é também adjetivo. O
personagem, na tentativa de se apresentar, fica enredado na condição do anônimo e
miserável retirante. A voz de Severino é a voz dos retirantes, dos muitos Severinos que, a
despeito de sua ligação com a terra natal, se vê forçada a deixá-la devido às precárias
condições que encurtam a vida e abreviam a morte, buscando fugir da miséria e sonhar
com uma melhor expectativa de vida.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Severino nos apresenta a dura realidade do sertão brasileiro, em que as secas
impelem o nordestino a migrar para não morrer de fome e de sede. O título da obra
“Morte e Vida Severina” destaca a inversão da ordem natural entre “vida” e “morte”, em
que a prevalência da morte sobre a vida traduz a extrema miséria e falta de recursos
mínimos e essenciais de sobrevivência e de oportunidades. Tal velhice antes dos trinta
revela a existência de outros tantos Severinos, cujas vidas são abreviadas ou retiradas por
uma existência em que a carência de quase tudo impõe restrições definitivas à pessoa. A
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morte de que nos fala Severino é a expressão de outras tantas mortes e de vidas sem
perspectivas ou alternativas, roubadas pela fome crônica, fraqueza e doença, pela miséria,
no nordeste brasileiro. A emigração de Severino é uma fuga atemorizada da morte, ao
mesmo tempo, em que é plena na esperança de viver mais e melhor.
A penúria e a devastação da seca do Nordeste são retratadas por Severino, que,
sem uma política pública que enfrente o problema da seca, se vê diante de uma condição
de morte em vida, de uma consciência da mais absoluta exclusão social, ou seja, da falta
de toda a sorte de suprimentos para viver e sobreviver.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
Ao falar dos Severinos, o personagem revela as condições de saúde e de existência
de sua gente - anêmica, sem vitalidade e tida como sem importância no mundo dos
excluídos.
Costa e Carneiro (2004) apresentam uma definição que situa três dimensões da
vulnerabilidade social que nos ajuda a pensar a situação dos Severinos. As
vulnerabilidades sociais devem ser vistas como processos e transições, mais do que como
situações específicas e estanques; como algo que afeta mais grupos e comunidades, do
que indivíduos; como algo que está relacionado a diferentes dimensões de vulnerabilidade
e de privação, e não, como um aspecto isolado. O nosso personagem traduz uma condição
de grande vulnerabilidade social que atinge sua gente, de muitas formas, em múltiplas
privações, ou seja, a Seca que avança e que vai extinguindo a tudo e a todos. Para fugir
dessa condição, de tamanha vulnerabilidade, Severino abraça então os desafios de um
migrante e, como tantos nordestinos, se lança seguindo as margens do Rio Capibaribe em
busca de cenários mais promissores.
2. O imigrante italiano Nanetto Pipetta: vida e travessia
A América, que será esta América? Pensava Nanetto com seus botões.
Que ela seja uma grande “cocanha”? [...]
A América, penso eu, deve ser um jardim de delícias, que Deus fez [...]
A América, dizia o avô, é para as crianças como uma grande praça cheia
de doces e basta plantar uma moeda, para que nasça uma bela árvore e
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todos podem trepar a elas e apanhar quanto dinheiro quiserem até
encherem os bolsos. Nessa praça a gente brinca, corre, salta, vozeia; e
quando está com sede, toma água doce, licor de anis, bom vinho,
cerveja, gasosa e que mais ainda? Também bíter e mel, e refrescos, e
quentão e por fim ainda muitas coisas boas... (Bernardi, 1988, p. 48)
O personagem Nanetto Pipetta, criado pelo frade capuchinho Aquiles Bernardi,
cujas aventuras foram publicadas no formato de folhetim no jornal dominical gaúcho
Stafetta Riograndense (atual Correio Riograndense), entre 23 de janeiro de 1924 e 18
de fevereiro de 1925, era um jovem veneziano com treze anos de idade, que se
aventurou a emigrar sozinho para o Brasil, a fim de encontrar a cocanha1.
Garoto levado, ele cresceu ouvindo seu pai dizer que o mandaria para a América
para que criasse juízo. De seu avô, ouvia maravilhas sobre a América. Assim, em seu
imaginário, a América era um lugar de muitas delícias, onde havia tudo de mais
apetitoso e em grande quantidade e fartura.
Em sua narrativa, Bernardi traça a trajetória do imigrante italiano para as terras
do sul do Brasil, em seus vários aspectos – da decisão de emigrar à vida no novo país.
Nanetto Pipetta revela uma infância junto à família italiana com seus costumes e
crenças, sua fé religiosa, e denuncia a carência alimentar do povo italiano, na ocasião
do início da emigração italiana, em 1875. E Nanetto expõe – através de sua busca pela
Cocanha - o desejo daqueles que se lançaram na aventura emigratória, de encontrarem
melhores condições de vida.
Cocanha é o nome de um país imaginário descrito por um poema francês do
século XIII, e que seria depois traduzido e adaptado em várias línguas, além de versões
iconográficas. A narrativa envolvendo a Cocanha surge na Idade Média Européia,
reunindo elementos oriundos da tradição oral, folclórica. Franco Junior (1998) aponta
que, embora o primeiro registro escrito tenha ocorrido no século XIII, sua narrativa oral já
existia, provavelmente, desde o século XII, fruto da composição de material mítico,
enraizado na cultura e no imaginário ocidental, há muito tempo.
Acredita-se, pois, que o fabliau da Cocanha foi fruto de uma criação coletiva, sob
forma oral, em que cada um acrescia fragmentos, provavelmente pertencentes aos séculos
X a XIV, aos elementos do poema que conhecia, numa troca em que o ouvinte torna-se
co-autor da obra, reunindo-se assim, vários textos do mesmo gênero, numa reescrita e
1Cocanha: doc., em fr., no sXIII, como nome de um país imaginário onde tudo é abundância, (1553) pays de
Cocaigne 'país de Cocagne'. In: Dicionário virtual Houaiss da Língua Portuguesa.
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criação contínua, em que, os trechos do fabliau eram lidos em voz alta e cada poeta
reforçava o que os outros haviam dito, fazendo as suas próprias adaptações, seleções e
traduções, razão pela qual, de acordo com Franco Junior (1998), se encontram variantes
de uma mesma narrativa, que ocorre ao longo de gerações.
Nanetto constrói uma imagem da América, baseado nos elementos que ouvira seu
avô dizer e em elementos fantasiosos que ele vai mesclando aos do seu habitat: ele
concebe a América como o país da Cocanha e sua tarefa, neste jardim das delícias, era a
de endireitar rosquilhas (sic) (idéia oriunda da fala do seu avô).
A fim de familiarizar o leitor com a história de vida de Nanetto Pipetta, segue-se
um breve resumo de sua epopéia, desde o seu nascimento até sua morte.
Nanetto Pipetta nasceu na lua minguante, no dia 22 de julho, em Veneza. Este fato
é destacado, por se acreditar ser este o motivo dele ser azarado, levado, desajeitado e
resistente a aprender as orações que sua mãe tentava, em vão, lhe ensinar. Seu pai volta e
meia dava-lhe um corretivo com o chicote e, de vez em quando dizia que o mandaria para
a América, “onde a lua nunca míngua” – e quem sabe assim, Nanetto criasse “um pouco
de juízo”. (Bernardi, 1988, p. 47)
O garoto passa a sonhar com a América, imaginando-a como uma grande
“cocanha”, como vimos na passagem acima.
Aos 13 anos, “sua única preocupação era brincar e fazer malandragens” (passim,
p. 49). A situação em casa se complicou quando sua mãe tornou-se surda, pois Nanetto a
desrespeitava continuamente. Seu avô “ralhava muito com ele”, mas também a ele
Nanetto desobedecia... O pai, operário, quando parava em casa e se dava conta do que
acontecia, usava o chicote...
Nanetto resolve ir até a estação de trens de Veneza, ver de perto o meio de ir até a
América. Feitas as perguntas que julgou necessárias, voltou para casa. Mais uma briga
familiar se desenrola. Seu pai manda-o embora – senha para a sua partida. Nanetto se
despede acenando com a mão, e parte.
O jovem consegue esconder-se em um vagão do trem e assim, chega ao porto de
Gênova, acreditando já ter chegado à América. Após informar-se a respeito dos
procedimentos para ir para a América, ele descobre que é necessário o passaporte... e leva
um “passa-fora” do homem que lhe deu a informação.
Em seguida, começa a chorar de fome e faz então, promessas para Nossa Senhora
a fim de obter um pouco de comida. Uma família de emigrantes que vai embarcar no
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navio aportado, o vê chorando e depois de alguma conversa, o convidam para embarcar
com eles. Nanetto aproveita-se da confusão causada pela multidão no embarque e
esgueirando-se, consegue passar entre as pernas do funcionário que controla os
passaportes e... embarca, escondendo-se entre as bagagens. O viajante clandestino é
descoberto e mantido preso até o final da viagem.
Após 30 dias de travessia marítima, o garoto avista o horizonte. É o momento em
que se dá conta de que chegara à América. Nanetto consegue escapulir pela janela e vai
nadando até a praia.
Assim se dá a travessia da Nanetto Pipetta: um continuum de fugas. Em terra
firme, novas aventuras: o jovem imigrante conhece uma série de pessoas, abriga-se nas
casas de algumas pessoas, consegue alimento, pouso, trabalho, mas continua fugindo de
um lugar a outro e assim sucessivamente. Em sua trajetória, depara-se com vários
elementos que lhe causam surpresa: animais, frutos e frutas, a selva, pessoas com
costumes e pertencentes a outras raças, etc.
Lá pelos seus 18 a 20 anos (a idade não é precisa), Nanetto parece ter criado
algum juízo: está prestes a conseguir sua própria colônia e a se casar, quando morre
afogado no Rio das Antas...
Aquiles Bernardi o apresenta como o camponês típico da época: pobre e
maltrapilho. Na cena abaixo, podemos ver o retrato do emigrante italiano que Bernardi,
na opinião de Zílio, registra com realismo contundente:
[...] em Veneza, junto à estação da via férrea, chegava um rapazote mal
trajado, sem casaco, com a camisa rasgada nos cotovelos, as calças
remendadas e super-remendadas com retalhos de panos de diversas
cores, calçando um par de sapatos usados, um de cor branca e outro de
cor preta, esbranquiçado com farinha de trigo para emparelhar com o de
cor branca. Era ele o nosso Pipetta, já pronto para ir à América ...
(Bernardi, 1988, p. 50)
Há, certamente, uma intenção do autor de provocar o riso diante de tal figura que,
a despeito de sua situação de penúria, apresenta-se da melhor forma que pode, com certa
astúcia até, tentando disfarçar o irremediável. Imaginemos agora, o camponês nascido no
Vêneto naqueles tempos, final do século XIX. Como seriam suas indumentárias? Será que
eles possuíam pares de sapatos?
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3. O processo de migração
A migração é o movimento e realocação de pessoas de uma região para outra,
motivada principalmente por fatores econômicos e sociais, como a possibilidade de se
buscar maiores salários nas regiões urbano-industriais, fato que tem incentivado a
migração do campo para a cidade, desde a emergência da revolução industrial (Brito
2000). A migração é atravessada por uma relação custo-benefício, considerando o balanço
dos ganhos esperados na região de origem e de destino. Do ponto de vista do indivíduo,
há uma busca de ascensão social e melhoria de condições de vida, apesar da perda
psíquica resultante do afastamento dos familiares e amigos, configurando-se num
investimento em capital humano. De um prisma macro-social, na abordagem histórico-
estrutural, a migração é uma decorrência da desigualdade econômica entre as regiões,
sendo as áreas mais prósperas, pólos de atração de fluxos migratórios. Ou seja, as
desigualdades entre as regiões, com diferentes ofertas e demandas do mercado de
trabalho, são os principais fatores motivadores da migração (MASSEY, 1999).
Vainer & Britto (2001) situam três grandes períodos da migração no Brasil: (a)
1888 a 1930, fase de constituição do mercado de trabalho livre, caracterizado pela
migração internacional; (b) 1930 a 1980, fase marcada pelo processo de industrialização e
pela ocupação da fronteira agrícola, propiciando a migração interna para as cidades, num
processo explosivo de urbanização; (c) 1980 em diante, fase marcada pela queda do
crescimento econômico, saturação da capacidade de absorção do mercado de trabalho,
havendo a marginalização e exclusão do mundo do trabalho, marcada por uma circulação
interna de migrantes e retomada da migração internacional.
Segundo Brito (2000), as décadas de 1940/60 foram marcadas por migrações
interestaduais, em virtude de desequilíbrios regionais e sociais, como conseqüência do
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Os fluxos migratórios vinham, sobretudo, de
Minas Gerais e Nordeste em direção aos estados com maior crescimento urbano-
industrial, como São Paulo e Rio de Janeiro, além das regiões da fronteira agrícola, como
o Paraná e a região Centro-Oeste. De 1960/80, os investimentos públicos e a política
econômica agravaram ainda mais as desigualdades regionais e reforçaram a tendência
migratória rural-urbana, que também foram facilitadas pelos transportes públicos e
telecomunicações. A partir de 1980 houve o enfraquecimento dos fluxos migratórios do
Nordeste e de Minas em virtude da redução do crescimento econômico e, além disso,
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houve a desconcentração espacial de atividades industriais ocorridas nos pólos de atração.
A ilusão migratória resultou na alocação dos migrantes no mercado informal de trabalho.
Grande parte desses migrantes encontrou nas favelas cariocas e nas periferias paulistanas,
um habitat.
3.1 A travessia Severina em busca de uma vida melhor
A travessia de Severino, nosso personagem central, é motivada pela busca de uma
maior expectativa de vida e, as migrações em massa ocorridas nos períodos de seca do
Nordeste, deixam pra traz o rastro de morte, embora nos grandes centros urbanos não
encontrem condições de subsistência que venham lhes propiciar o que buscavam. A maior
parte dos migrantes encontra desemprego, miséria, violência e passa a engrossar o
contingente populacional que vive em precárias condições, sem direito à água encanada,
luz elétrica e saneamento básico, sem acesso à saúde, educação, habitação digna e vive à
margem dos avanços tecnológicos.
(...) Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
Desenraizado, Severino é a própria imagem do risco de não sobreviver, do risco de
não conseguir encontrar um lugar fértil para semear um novo amanhã e, por isso, tudo o
que vê a cada passagem é a sombra da morte lhe espreitando e lhe ameaçando com
persistência, já que as novas condições de subsistência não se apresentam. Até o Rio
Capibaribe, em certa altura de sua jornada, parece “morrer”, deixando-o sem referencial
por onde prosseguir: “Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho
mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a
descida?”, interrogou Severino. O rio era o fio condutor que o acompanhou da terra natal
até uma parte de sua travessia e, quando Severino viu o rio secar, vivenciou, nesse
instante, uma perda fundamental: a perda de suas referências, do elo com seu lugar de
origem, da imagem da vida e da abundância que ele procurava. Ele então, se sentiu
perdido e temeroso, completamente só e desenraizado, sem saber por onde seguir, se iria
sobreviver ou chegar ao seu destino. Mesmo assim, ele prosseguiu e, em sobressalto, viu
sua primeira imagem ao longo da jornada - o enterro de um Severino, lavrador, que
morreu de morte matada, numa emboscada, pelas roças que possuía. Na casa a que
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chegara, mais adiante, uma cantoria se fazia ouvir, o ritual para outro defunto, outro
finado Severino, que sofreu “coisas de não”, fome, sede e privação. Esses destinos são
mortes esperadas nessa vida severina. A vida severina tem o sabor de uma morte em vida,
e dá a sensação de que não há motivos para se viver. Entretanto, o retirante não perdeu
ainda as esperanças e decidiu interromper sua viagem, pelo menos até o Capibaribe estar
cheio. Como o rio, interrompeu a travessia, para vencer a fadiga e prosseguir em seu
intento.
Decidiu, então, procurar “um trabalho de que se viva”, uma vez que viver é
trabalhar, pois sem trabalho a vida severina aproxima-se mais rapidamente da morte.
Assim, Severino perguntou à mulher que encontrou no caminho, se haveria algum
trabalho que ele pudesse realizar. Nesse diálogo, ele, respondendo às perguntas da
mulher, discorreu toda sua experiência profissional: - trabalhador incansável, de sol a sol,
conhecedor de todos os tipos de roçado e também de como cuidar do gado e da moenda -,
atividades que ela vai desaconselhando naquela região.
O migrante, além de viver os riscos da jornada e deixar para traz suas raízes,
carrega consigo aprendizados, habilidades e competências desenvolvidas no local de
origem – o meio rural, as quais não encontram acolhimento e aplicabilidade nos centros
urbanos; isto o deixa sem perspectivas de conseguir trabalho ou remuneração adequada
para superar as desigualdades sociais e romper com o ciclo da pobreza. Severino, não
conseguiu trabalho temporário, nem tampouco viu perspectivas nos trabalhos
industrializados, ao substituir o trabalho humano pela máquina e, ainda, sentiu o desalento
daqueles que se dedicam a terra e morrem sem o seu pedaço de chão. Por tudo isso,
apressou o seu passo rumo ao Recife.
Segundo Ecléa Bosi (1992 p. 16), “o enraizamento é talvez a necessidade mais
importante e mais desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir”. A
autora afirma que seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termos de
desenraizamento, e que o foco não deve recair sobre o que se perdeu, pois as raízes já
foram arrancadas, partidas; ao contrário, deve-se “procurar o que pode renascer.” O
migrante, segundo ela, deixa para trás a terra natal e suas paisagens, seu roçado, sua
geografia, seus animais, sua casa, sua rede social, e seu modo de se vestir, festejar, falar,
cultuar a Deus, viver. A autora explicita que o desenraizamento vivido pelo migrante é a
mais perigosa doença que atinge a cultura. A fala de Severino traz como herança os
efeitos das vulnerabilidades, impressas no biótipo corporal e no sangue, deixando para
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traz um cenário fortemente marcado pelo desenraizamento de uma terra que não mais
acolhe vidas e raízes.
3.2 A travessia de Nanetto Pipetta em busca da cocanha
Se, como vimos, Severino peregrina em busca de sobrevivência, a travessia de
Nanetto Pipetta para a América teve como mote, num primeiro momento, o sonho de
encontrar no novo mundo, maravilhas inenarráveis. O jovem deixa seu lar, sua família,
suas raízes para trás, partindo em busca da realização do desejo e da esperança de que o
mundo novo lhe acolha e lhe proporcione o prazer da fartura, da abundância, diante da
escassez de alimentos e proventos que mantinha grande parte da população européia em
condições de miserabilidade e de uma fome milenar....
A narrativa expõe a alusão feita ao Brasil enquanto o país da Cocanha, o que
provavelmente povoava o imaginário dos italianos em geral, graças a uma extensiva
propaganda que objetivava aliciar imigrantes para as terras brasileiras.
Através do jovem aventureiro que desperta de seu sonho para a realidade da vida,
Bernardi procurava desmistificar a imagem da América, veiculada na Itália como o País
da Cocanha, revelando a realidade encontrada pelos imigrantes italianos, muito distante
do sonho da fortuna e felicidade com que sonharam antes de atravessar o Atlântico.
4. Pobreza e desigualdade social
4.1 A morte como anfitriã da vida severina
(...) E esse povo lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando,
cemitérios esperando.
- Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vem é seguindo seu próprio enterro.
Quando Severino vem ao Recife buscando “morrer de velhice”, ele, como tantos
retirantes, vem em busca de uma melhor qualidade de vida, acreditando que poderia ter
algumas de suas necessidades básicas atendidas e a expectativa de vida ampliada. A
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pobreza, como a história de Severino demonstra, não se restringe a dimensão econômica
apenas. Ela é um fenômeno múltiplo cujos efeitos estão além dos recursos materiais e são
acompanhados por diferentes desigualdades que se sobrepõem e se reforçam mutuamente.
A sina do retirante severino é marcada pela pobreza, sob a forma de “múltiplas privações”
(COSTA & CARNEIRO, 2004), especialmente por uma pobreza extrema e persistente.
Essa sina reproduz a saga de muitos retirantes anônimos, que até hoje chegam às cidades,
resignados, com baixa auto-estima e baixas expectativas quanto às possibilidades futuras.
No entanto, apesar de todas essas vulnerabilidades, Severino, rompeu com esse “destino”
e fez a travessia em busca de uma vida melhor. Mas, para o seu lamento, sua travessia,
como a de tantos retirantes, parecia fadada ao insucesso, pela falta de alternativas e
oportunidades que mantém os altos índices de desigualdades e de excluídos sociais em
nosso país.
As desigualdades de renda, a má distribuição de recursos sociais (educação, saúde,
habitação, crédito) e a precária divisão de oportunidades (acesso à profissionalização,
trabalho e renda) são os principais fatores responsáveis pela profunda desigualdade social
em nosso país. Segundo Barros et al (2001), o Brasil não é um país pobre, é um país de
muitos pobres. O abismo entre ricos e pobres é o principal responsável pela perpetuação
da pobreza e da exclusão social.
O que salta aos olhos na história de Severino, de um modo absolutamente
eloqüente, é a falta de políticas públicas para redução da pobreza e desigualdade.
Severino deixa o sertão e encontra um centro urbano despreparado para recebê-lo, ficando
a mercê de quase as mesmas mazelas que agora se reapresentam num novo contexto
histórico-social. Como será possível receber Severino, acolhendo suas capacidades e a de
seu grupo de origem? Como lidar com as dimensões “não materiais” e simbólicas de sua
travessia, favorecendo a nova construção de si, o seu enraizamento em novo local e a
construção de uma rede de relações? Será preciso uma política de combate à exclusão
social voltada aos migrantes, que esteja orientada à construção da cidadania e que tenha
como diretriz a consolidação do capital humano e social desses grupos vulneráveis,
respeitando sua cultura e suas tradições (COSTA & CARNEIRO, 2004).
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
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ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
Segundo Oliveira (2003), os nordestinos que deixaram o sertão em busca de uma
vida melhor na cidade, ao agregar novas experiências e valores a sua tradição, criaram
novas formas de construir sua identidade cultural. Na história de Severino, embora ele só
encontre a morte com várias faces em seu percurso, a sua perspectiva é otimista. A
vontade de encontrar melhores condições de vida só termina ao ouvir a conversa dos
coveiros em Recife, que abordam a desigualdade social representada pelas distintas alas
dos cemitérios - avenidas dos ricos (usineiros, políticos e banqueiros), com toda a pompa
e protocolo; o bairro dos funcionários (contratados e mensalistas); dos operários e dos
indigentes (retirantes e pobres vários). A morte carrega as características do morto,
enquanto vivia, e seu lugar depende de sua inserção social, que se reflete num cemitério
hierarquizado e espelha a sociedade. Uma vez tendo concluído que seu sonho não passava
de uma ilusão, Severino pensou em se matar. No entanto, o auto de Natal encenado e o
nascimento do filho de Seu José, o mestre Carpina - uma criança magra, pálida, franzina,
um “menino guenzo”, mais uma vida severina -, traz uma lição de fé na vida e um veio de
esperança a essa gente severina. Ao visitar o bebê recém-nascido, os vizinhos ofertam
presentes e sintetizam a pobreza de suas vidas: “Minha pobreza tal é que coisa alguma
posso ofertar: somente o leite que tenho para o meu filho amamentar. Aqui todos são
irmãos, de leite, de lama, de ar”.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida (...)
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
O ponto alto do sofrimento de Severino está em sua consciência de que sua vida
não mudaria tanto ao chegar a Recife. Ele imaginava que continuaria trabalhando muito,
com ferramentas e instrumentos semelhantes aos que usava em sua terra natal. Ele
acreditava que seu trabalho lhe traria mais água, comida, roupas para o corpo magro,
abrigo para o repouso e então percebe que era o seu próprio enterro que estava seguindo.
A falta de acesso ao mundo do trabalho e o lugar de excluído que lhe era reservado selou
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seu destino, ou seja, só lhe restava a morte ou a morte em vida severina. A morte não era
a sua companheira de viagem, como pensava Severino, e sim sua anfitriã.
4.2 O amargo despertar do sonho de “fazer a América”
- E os teus, estavam satisfeitos com a tua saída?
Ao que ele responde:
- Creio que sim, porque a comida era escassa e eu lhes papava tudo!
- E agora que é que irás fazer?
- Sei lá eu! Quero trabalhar, fazer fortuna e, depois, voltar até à casa de
minha mãe e trazê-la comigo para a América, para que possa ela
também comer batatas-doce com leite. (Bernardi, 1988, p. 76)
Entre 1880 a 1920, 1,4 milhões de italianos emigraram para o Brasil,
impulsionados por uma legião de aliciadores que lhes prometiam todas as facilidades para
se “fazer a América”. De um lado a Itália, que enfrentara guerras, a peste, fome e
desemprego, encontrava na emigração maciça, uma solução; de outro, o Brasil
necessitava de mão-de-obra livre como alternativa para a extinção da mão-de-obra
escrava nas fazendas.
(...) Havia quem chorava, quem ria, quem gritava, quem “fofocava”,
quem enfim, cantava (...)
Nanetto também tinha a sua paixão. Veio-lhe à mente, sua mãe, seu pai,
o avô!...
Estava quase, quase por gritar, quando um apito assustador, dando o
sinal de partida.
Uma agitação o fez esquecer-se de tudo.
Partida!.... Partida!... , gritava um marinheiro.
Agora, toda aquela gente se move
Todos se chamam, todos se beijam, todos se cumprimentam!...
Adeus papai, adeus mamãe.... irmãos, adeus... fiquem bem.... até a vista!
...pela eternidade ou daqui a um par de anos...
E Nanetto!? ... Nanetto não cumprimenta ninguém!...
Ao saírem de seus vilarejos, ainda em solo italiano, foram enganados e roubados
por aproveitadores. Se a travessia, em condições de higiene e alimentação precárias,
tornou-se um fantasma de peste e de morte, as dificuldades que enfrentaram ao chegarem
ao sul do Brasil transformaram-se num pesadelo do qual não conseguiam acordar. (DE
BONI, 1984). Ao desembarcarem, descobriram ter chegado a um lugar outro, que não a
terra prometida.
(...) finalmente um marinheiro gritou: Rio Grande! (...)
Um monte de barcos com rapazes, homens a também garotas que
portavam cestas de frutas se aproximam do navio para vender artigos
aos passageiros.
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O rapaz olhava toda esta graça de Deus e não podia pegá-los e ninguém
lhe oferecia...
O sol se escondia atrás da mata.
No navio, haviam anunciado o jantar.
Todos estavam alegres e contentes. Só Nanetto estava pensativo.
Fugindo da pobreza de sua terra natal, sujeitaram-se às maiores privações, em
busca de um modo digno de ganhar a vida, em condições dignificantes de trabalho.
Encontraram empregos aviltantes, em condições equiparadas a dos escravos, com os
salários mais baixos do mercado e foram estigmatizados e segregados socialmente.
Descobrindo que as facilidades prometidas transformaram-se em dívidas impossíveis de
serem quitadas, muitos buscaram refúgio na loucura ou no suicídio.
- Ah! Meu querido Santo Antonio! Eis-me aqui perdido na América,
num matagal sem fim, por onde nunca ninguém passou antes de mim.
[...] Fazei, por favor, que o tigre não me devore! E que não morra de
medo! (Bernardi, 1988, pp. 86-88)
5. A Vida narrada: literatura, migração e pobreza
A saga de Nanetto Pipetta traduz a vivência da comunidade italiana instalada no
sul do Brasil, no início de sua colonização, confirmando a declaração de autores como
Chalhoub & Pereira (1988) e Facina (2004), de que podemos estudar as sociedades
através da literatura, uma vez que a obra literária é fruto de seu tempo, historicamente
situada.
Aquiles Bernardi e João Cabral de Melo Neto, como todo escritor, produto de sua
época e de sua sociedade, estão sujeitos aos condicionamentos impostos pelo
pertencimento a uma classe, a uma origem étnica, um gênero e a um processo histórico de
que faz parte. Nanetto Pipetta e Severino, como tantas outras criações literárias, são
produtos históricos e expressam realidades históricas, produzidos numa sociedade
específica, por um indivíduo inscrito nela por meio de múltiplos pertencimentos.
Bernardi, descendente de imigrantes, nasceu na Região de Colonização Italiana; sua
narrativa era, pois, fruto de sua experiência, num momento histórico específico. João
Cabral, nascido em Recife, em 1920, passou a infância em engenhos de açúcar. Conhecia
de perto, as agruras do sertanejo que migrava para a capital, fugindo da fome e da sede.
Primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre e amigo de Carlos Drummond de Andrade,
participou, desde jovem, de rodas literárias. Ao conceber seu personagem e tecer sua
trama, o autor expressava as visões de mundo coletivas daquele grupo social, em
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consonância com a afirmativa de Facina (2004) de que aquilo que se transforma em
literatura, foi construído coletivamente.
Tanto os valores, quanto as técnicas de comunicação de que a sociedade dispõe,
influem na obra, sobretudo quanto à forma, determinando suas possibilidades de atuação
no meio, aclara Candido (2000).
Assim, pois, “Nanetto Pipetta” era dedicado a um público específico de imigrantes
analfabetos e Bernardi dava voz ao personagem e ao narrador da ficção, na mistura de
dialetos falados pelos emigrados, com todos os seus trejeitos e expressões típicas,
publicado no jornal, de modo que fosse facilmente acessível aos colonos e de forma
coloquial, facilitando sua reprodução oral para os que não pudessem adquirir o periódico,
ou não soubessem ler. E “Morte e Vida Severina” toca fundo a alma do leitor, ao exprimir
a fome, a sede, a esperança, a desilusão e o sofrimento da população do sertão nordestino.
As obras de Bernardi e Melo Neto, por sua popularidade e a repercussão
alcançada, atestam a afirmação de Candido (2000, p. 22) de que a literatura, como um
produto social, exprime as condições de cada civilização em que ocorre, pois há forças
sociais condicionantes que guiam o artista, determinando a ocasião de a obra ser
produzida, julgando a necessidade de ela ser ou não produzida, bem como, se esta vai ou
não se tornar um bem coletivo. Em sua concepção, autor, obra e público estão
indissoluvelmente ligados.
Através de Nanetto, o emigrado, identificando-se com o personagem, foi revendo
sua trajetória, narrando suas experiências aos descendentes, trocando com os vizinhos e
amigos e, assim, foi ressignificando sua história e passando a valorizar sua escolha pela
aventura de emigrar para o Brasil.
Fiel às experiências do imigrante, Nanetto Pipetta reproduzia o modo de falar, de
pensar e de fazer do italiano, os gestos dos imigrantes, suas manifestações culturais e
religiosas, suas relações familiares e vinculação ao trabalho, seus objetivos, esperanças e
desilusões diante da realidade encontrada no Brasil. Bernardi levou os elementos desta
realidade à ficção.
As experiências de Nanetto retratavam, com muita similitude, aquelas vivenciadas
pelos colonos, revelando os temores, a curiosidade e a estranheza que os imigrantes
sentiam frente à imensidão das matas brasileiras, seus animais e seus frutos; diante dos
índios, dos negros, enfim, de seu povo e seus costumes.
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O personagem foi, a cada aventura, descortinando para o seu leitor, a realidade da
vida na América, muito distante do sonho da fortuna fácil e felicidade incondicional que
lhes fora vendida para que fizessem a travessia do Atlântico, muitas vezes, em definitivo,
sem condições de retorno.
Aquiles Bernardi, como vimos, por meio da criação literária, e valendo-se da
construção de memórias coletivas dos hábitos e costumes dos e/imigrantes italianos
instalados no Rio Grande do Sul, retratou as identidades étnica e cultural destes, num
determinado momento histórico, com grande adesão do público leitor que, por sua vez,
transformava-se em contador de estórias a uma platéia atenta e muitas vezes emocionada.
E, acredita-se que a ficção tenha fornecido, ao retratar a realidade, um espelho ao
imigrante, colaborando com a estruturação de sua identidade e com o fortalecimento do
seu pertencimento, ao estimular o estreitamento de laços sociais proporcionado pela
transmissão oral da narrativa e os depoimentos que ela suscitava entre os colonos.
Através da literatura, pôde-se lançar luz sobre a subjetividade do imigrante
italiano e seus descendentes, depreendendo-se inclusive dos fragmentos de memória
publicadas por imigrantes, aspectos de seu imaginário, no tocante ao que era concebido,
na ocasião, como “viver mais e melhor”, encontrar a fortuna e “viver no país da
Cocanha”.
Pela voz de Severino, resta ainda a esperança de que outros tantos Severinos
cresçam saudáveis, sintam-se pertencentes, incluídos, representados, inclusive nas
políticas públicas.
A literatura possibilita que se lance luz sobre diversas questões sociais; a ficção
escrita por Bernardi contempla questões identitárias dos imigrantes italianos, sobretudo as
relativas às identidades étnica, cultural e nacional, que precisam ser reconstruídas. Há que
emergir um novo eu, transformado, e se fazer uma reinvenção e (re)afirmação de si, bem
como, uma reconstrução de suas referências.
Dramas pessoais, desafios e dificuldades enfrentados pelo homem comum, em sua
lida diária pela sobrevivência são atestados na narrativa de Bernardi, a qual revela a
gradual adaptação desses imigrantes a uma cultura completamente estranha, bem como,
as conquistas e realizações por eles alcançadas, em estreito paralelismo com a realidade
vivida pelos imigrantes.
Destacamos a relação entre literatura e história, considerando-se que Aquiles
Bernardi trouxe elementos da realidade vivenciada pelos colonos para a sua narrativa e
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que João Cabral de Melo Neto retratou de forma contundente e poética, as penúrias
vividas pelo migrante nordestino.
Assim, pois, este artigo situa a literatura como testemunho histórico, de acordo
com Chalhoub & Pereira (1988), produto social que exprime as condições da civilização
em que ocorre (Cândido, Antonio, 2000), atravessada pelas questões sociais de sua época
(Ewald, 2007), resultado de elementos que foram construídos coletivamente, e que
expressa visões de mundo coletivas de determinados grupos sociais (Facina, 2004), reflete
a moral de uma determinada época, segundo a qual, pode-se discernir a maneira de se
compreender a subjetividade humana e o que é valorizado numa dada sociedade (Lopez
Quintáz, 2009).
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