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Dedico este livro à meus

leitores. É por vocês que eu

respiro.

Tenho de lutar, porque eu sei

que no fim valerá a pena, que a

dor que eu sinto aos poucos irá

embora. Tudo ficará bem ~ Pale

- Within Temptation

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Capítulo 1 – A Candidata

Rich e eu nos olhamos de soslaio, mas nenhum de nós exprime a estranheza da situação

envolvendo a mulher à frente. Não há como não conhecer Silvia Heatcliff. Ela é a líder do

“movimento anti Brokeraven”, pelo simples fato de ela ser algo como a candidata a próxima

presidente de Aeris, pelo menos de acordo com a própria. O atual presidente nada faz com relação

a ela, e isso é claro, pois é de conhecimento público que ele gosta de ver seus inimigos políticos

se afogando na própria batalha inelutável. Mas estes fatos juntos, porém, não explicam o fato de

ela estar aqui, e de ter saído de dentro do carro que Richter roubou, tampouco.

Me faz, porém, lembrar de toda a minha jornada, desde o princípio...

Eu era uma garota como qualquer outra há quase um ano atrás. Tinha amigos, família, e

uma vida que eu podia chamar de minha – ou, pelo menos, era assim que eu pensava. Um certo

dia, ao ir à inauguração de um novo Shopping Center de minha cidade natal, Canem, um bizarro

incidente teve início. Os portões de entrada e saída se trancaram automaticamente depois de uma

explosão, e meu melhor amigo, Victor, e eu, além de outras centenas de pessoas, ficamos presos

dentro de um jogo que incluía máquinas de matança e robôs assassinos, que ceifou as vidas de

todos aqueles ali dentro que não foram capazes de se manter em pé. Em meio a isso, conheci Gael

Mitchel, que se tornou meu parceiro ali dentro, e logo depois meu amigo. Seguido desse

acontecimento veio a morte de Victor pelas mãos de outra vítima – que então se tornara um jogador

–, e logo após isso ocorreu a completa destruição da atual arena, da qual somente Gael e eu saímos

vivos, por pura sorte.

Doravante isso nos tornamos fugitivos, e nos embrenhamos pelas entranhas da cidade onde

ocorreu o jogo para sobreviver, sendo constantemente ameaçados de extinção por agentes enviados

pelo presidente Abraham Brokeraven, o monstro que idealizou aquela matança dentro do Shopping

Mall. Sem perspectiva de sobreviver, em certo ponto, quando estávamos prestes a desistir, fomos

encontrados e resgatados por Richter Yurievna, Siobhan Ramse e Marvee Frost, que estavam

dispostos a nos ajudar a nos manter vivos, independentemente de suas próprias vidas e segurança.

Pouco tempo depois, porém, nós cinco fomos pegos em uma armadilha, e depois de um

assalto, do qual pensei ter sido a única sobrevivente, passei um bom tempo perdida no meio de

uma floresta tropical, onde conheci Arati Heneliaka, o jovem cacique da tribo que me manteve

cativa, e que me ajudou a escapar do local. Durante aquele tempo, Arati e eu estávamos decididos

a destruir Abraham Brokeraven sozinhos, custasse a nós o que custasse, mas fomos impedidos de

continuar há apenas horas, pois fomos encontrados pelas quatro pessoas que eu julguei estarem

mortas – Gael, Marvee, Rich e Siobhan.

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Agora, em frente à esta mulher, que se auto proclama candidata a presidenta, imagino se

tudo o que passei na verdade não foi um prelúdio para isso, para meu destino: talvez seja eu a

garota destinada a destruir o tirano. Sei que pensar assim me faz parecer muito pretensiosa, e que

essa linha de raciocínio é uma bobagem, mas nada leva minha mente a um caminho diferente.

Excetuando isto: o que essa mulher sabe sobre nós que nós não imaginamos?

Rich estende a mão para ela, na minha frente, e a aperta sem vontade. Ela sorri presunçosa

para ele, como se já esperasse por isso. Ele não sorri. Solta a mão da dele, e estende outra vez, para

mim. Eu respiro fundo antes de apertá-la. Por um momento imagino que sentirei textura coriácea,

como a de uma cobra, porém sinto uma pele macia em seu lugar. Não deveria esperar menos.

Seu sorriso alarga. Seu ar presunçoso também. Sinto uma pontada de raiva por sua atitude,

mas espero para ver o que ela vai fazer.

- Estou encantada em te conhecer, senhorita Freya. Não somente ouvi falar como também

vi tudo sobre você. Ah!, e o senhor também, senhor Yurievna. Como vai seu pai?

Droga!, ela é com certeza uma mulher muito bem informada. Rich a encara com o que só

consigo interpretar como nojo. Ela, porém, não se abala. Quando nenhum de nós responde, ela

continua, como se tudo houvesse sido previamente ensaiado – o chamado charme político.

- Sei que os dois devem estar surpresos em me ver, mas gostaria de pedir que não se

preocupem. Tudo vai se estabelecer e se ajeitar da maneira que deveria ser desde o começo muito

em breve.

Que começo? Do que ela está falando? Do começo do jogo? De quando eu fugi para poder

sobreviver? Eu não pergunto, mas também não quero que ela possua as respostas. Se estou surpresa

em vê-la? Não. Estou aterrorizada. E o que ela quer dizer com “tudo vai se estabelecer”? Até onde

eu sei, minha morte e a de Gael não vão tornar mais fácil ou difícil sua ascensão ao poder. Certo?

Não tenho mais tanta certeza.

- Não estou surpreso – informa Rich. Se está sendo dissimulado ou não, não posso dizer.

Convence a mim, pelo menos. – Sabia que você viria, cedo ou tarde. Aliás, sei até mesmo o que

você quer.

- Isso é bom, senhor Yurievna. É muito bom, aliás. Isso poupa muita conversa. – Sua voz

soa tão ridiculamente gentil que eu sinto enjoo.

- Mas eu não entendi! – digo, desafiando-a. Ela me olha como se subitamente houvesse

percebido que estou aqui. – Quem é você? E o que quer conosco?!

Ela dá uma risadinha seca antes de dizer qualquer coisa. Uma risada sem graça, finalmente

quebrando sua máscara deferente. Abaixa a cabeça, e posso vê-la umedecer os lábios com a boca

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escancarada, como uma cobra provando o ar. Irascível, penso imediatamente. Não muito será

necessário para enfurece-la. Por isso, melhor tomar cuidado.

- Eu, como você já sabe...

- Pula a pose de enciclopédia ambulante, Heatcliff. Ela sabe quem você se autoproclama

ser. Só quer saber o que você quer dela.

Silvia Heatcliff pigarreia antes de sorrir novamente para mim, renovando sua pose

autoconfiante. Subitamente, dois homens saem de dentro do carro, ambos vestidos de preto e

usando óculos escuros que tornam seus rostos irreconhecíveis. Ambos são obviamente seus

guarda-costas. Sem se virar, ela sabe que os dois saíram. A percepção do que acabou de acontecer

vem a seguir: ela armou uma emboscada para nós.

Richter automaticamente entra em posição de combate, flexionando os joelhos e colocando

os punhos na frente do rosto. Eu tenho um sobressalto, mas mesmo assim tento me colocar da

melhor forma possível para enfrentar inimigos duas vezes maiores que eu.

Mas eles não avançam. Não imediatamente. Ao focar novamente o rosto de Silvia, percebo

que ela parece quase divertida com a situação. Seus lábios seguram um sorriso debochado. Claro.

Presunçosa e prepotente como demonstra ser, claramente esperava que nós dois nos preparássemos

para contra-atacar quando estes homens saíssem do carro. E sinto raiva de mim ao perceber que

realmente nos deixamos cair. Se houvéssemos a atacado antes... ou ao menos se houvéssemos nos

preparado para esse tipo de situação.

- Isso não vai ser necessário, crianças – informa ela, a diversão em sua voz pronunciada. –

Mesmo que – continua –, se tentarem me machucar, estes dois cavalheiros vão se certificar de que

seja a última coisa que desejam fazer.

Eu a encaro com ferocidade. Ela não é ninguém, droga! Não é nada além de uma mulher

influente por ser carismática. Aliás, como é que ela conseguiu guarda-costas?! Ela não parece saber

disso. Apenas continua lá, parada sorrindo, agindo como se todo o mundo devesse fazer o que ela

quer, apenas porque ela quer.

- Como eu ia dizendo, em breve as coisas vão se estabelecer da maneira como deviam ter

sido desde o começo, senhorita Freya. Desde quando Abraham Brokeraven desmerecidamente –

ela cospe a palavra – foi levado ao poder. Mas, para isso, preciso de sua ajuda. Sua, e do senhor

Yurievna aqui, visto que eu não tenho como fazer o que pretendo sozinha. E vocês parecem as

armas perfeitas. – Ao dizer a última palavra, seus olhos brilham de uma forma maliciosa.

- E o que você pretende fazer que precisa tanto de minha ajuda? – questiono.

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Ela mais uma vez dá um de seus sorrisos gentis e completamente falsos, fazendo com que

o cabelo em minha nuca arrepie. Antes que ela fale, porém, as peças se encaixam, e eu descubro

por que sou necessária em seu plano antes mesmo que ela o explique.

- Preciso de você para derrubar Abraham Brokeraven.

Fico sem palavras por um momento. Por um momento realmente longo. Já deveria saber que era

isso o que ela queria – destronar o presidente para que ela possa ascender –, mas ouvir estas

palavras ditas em voz alta as tornam muito mais fortes e violentas do quem em pensamento. É

exatamente isso o que quero, que Abraham Brokeraven, o atual presidente, morra, por causa de

tudo aquilo que ele fez a tantas pessoas. Ouvir essa ideia vindo de outra pessoa que não Rich ou

eu faz um calafrio correr por minha espinha, contudo.

Quer dizer, eu sei que essa mulher é ignóbil de tão interesseira, mas não sabia que estava

disposta a matar para conseguir o que quer. A menos que eu esteja errada, a única razão para ela

querer a morte de Brokeraven é para que assim possa assumir o poder. Mas como ela pretende

fazer isso?

Richter se adianta, e fala com ela antes que eu tenha tempo de abrir a boca.

- E como você pretende fazer isso? – pergunta.

Seu sorriso desaparece. Seu rosto assume um ar sério, quase raivoso.

- Brokeraven tem sido um péssimo presidente, de fato – inicia ela com uma premissa. –

Péssimo para a população, péssimo para a economia, enfim, péssimo para o país como um todo.

Suas leis e sua maneira de governar tem levado a vida das pessoas sobre quem governa ao lixo,

com o perdão da palavra. O dólar está um absurdo sobre o kallias, a moeda local, o que torna o

custo de vida inviável. Pensem comigo! Sete dólares o kallias?! Isso é ridículo, risível da forma

mais crua possível. E isso não se aplica apenas

à economia, como também às leis em vigor. Onde já se viu coibir o casamento de pessoas do

mesmo sexo, ou então tornar legal a cobrança de taxas em cima do lucro líquido de empresas e

estabelecimentos de pequeno porte? – Ela solta uma lufada, dissimuladamente exacerbada. – Ora

vejam só, estou divagando... – Ela não consegue. Não consegue ficar sem usar seu carisma político.

– Eu sei o que Abraham fez a vocês em especial, e sei que sua cabeça está para prêmio, querida, e

que ele não vai parar até que você esteja empalhada encima de sua lareira. Não fique tão assustada,

senhorita Freya.

“Eu tenho contatos dentro do Congresso, sabem? E posso dizer uma coisa: o

descontentamento é muito maior e generalizado do que vocês pensam, crianças. – Estou

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começando a ficar farta dela me tratando como se fôssemos colegas. – Porém, isso não significa

que as pessoas irão iniciar uma rebelião. De forma alguma. O poder que Brokeraven possui é

grande o suficiente para impedir que as pessoas façam qualquer coisa e saiam ilesas. Ele ainda tem

grandes aliados dentro da política e da segurança nacional, pessoas que recebem dinheiro dele para

lhe dar proteção. Ou seja...”

- Nem adianta tentar – conclui Rich. – Não ia ajudar em nada que a população se rebelasse.

Ele ia refrear qualquer ataque em massa. – Ele olha para mim enquanto explica. – Aposto que

repeliria qualquer ataque do qual tivesse conhecimento.

- E é aí que vocês dois entram – diz Silvia. – O sr. Yurievna aqui também está sendo

perseguido pelo governo, mas se ele, digamos, revelar um paradeiro de vocês dois para o

presidente, o qual é claro será falso e em um ambiente controlado onde estaremos cem por cento

seguros, poderá ser visto como um “salvador da pátria”, por assim dizer, e será perdoado. – Ela

parece alta quando diz isso, quase como se estivesse acima de acreditar. Como se não acreditasse?

Acho que está mais para alguém que acredita demais nisso. – Meus homens infiltrados na Câmara

levarão Kaya até o presidente em segurança, e lá concluiremos a missão.

- Mas claro que Siobhan e todos os outros estarão seguros em outro lugar, não é? – inquere,

desta vez olhando para ela.

- Claro que sim – responde ela, levantando uma única sobrancelha, então voltando a olhar

para mim. – Seguros até que seja necessária sua intervenção, senhorita Freya. Então, nem mesmo

toda a minha influência política – ela sorri arrogante – poderá te salvar.

- O que quer dizer?! – exige saber Rich, elevando o tom de voz e estufando o peito.

- Quero dizer – responde, sem ao menos se mover, completamente inabalável – que, quando

meu plano estiver no ápice, Kaya estará, digamos, correndo um perigo terrível e muito

possivelmente mortal. A possibilidade de você sair viva é ínfima – informa, como se não estivesse

dizendo nada mais que “Você pode acabar se dando mal na prova se não estudar”. – Mas pense

pelo lado positivo: se tudo der certo, nós nunca mais vamos ter de nos preocupar novamente com

o governo opressor de Brokeraven.

Claro que eu percebi que o nós a quem ela se refere é ela mesma.

- E se der algo der errado? – pergunta Richter, cerrando os olhos para ela de maneira

desconfiada.

- Então Kaya provavelmente vai morrer – informa como se fosse algo causal, tal como “A

grama vai estar alta por falta de cuidados”. – E então, quando começamos? – deseja ela saber,

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sorrindo entusiasmada novamente para nós. Eu entendo agora como ela conseguiu angariar votos

de confiança.

- Como você sabe que vamos concordar com você? – pergunta Richter, novamente se

irritando. Também estou cansada da atitude sabida de Silvia, mas, antes de mais nada, estou

excitada com a ideia de poder finalmente combater Abraham. Mesmo que Richter não queira me

acompanhar, eu irei corroborar com o plano de Silvia, mesmo que Richter considere isso

mancomunação.

- Eu sei que vão. – Se vira para mim. – Não vão?

Eu engulo minha saliva, e tento fazer isso o mais discretamente possível. Vou concordar,

não vou? É isso o que eu mais desejo, não é? Vingança e justiça. Um motivo apologético que

convirja com o crime que quero cometer. Eu tenho coragem de enfrentar o que virá pela frente?

Acho que sim. Coragem de morrer pela causa? Com certeza. Coragem para abandonar todos

aqueles que eu amo mais uma vez? Não sei. Mas sei, porém, que não quero ficar novamente de

braços cruzados, somente sobrevivendo. Aquela Kaya lá atrás já não existe mais. Não existe mais

a menina que daria tudo para continuar viva, mesmo que por uma promessa à alguém amado. Eu

sou agora uma granada, pronta para explodir, desde que eu tenha certeza de que vou destruir meu

alvo no ato. E essa é minha chance de conseguir explodir em Abraham.

- Vou.

Richter automaticamente começa a fazer objeções, mas eu o interrompo apenas levantando

a mão direita.

- Uma semana, Rich. É apenas disso que eu preciso. – Viro-me para Silvia Heatcliff. Ela

sorri novamente, olhando dentro de meus olhos. – Uma semana, e então eu começo a te ajudar.

- Nós faremos isso – inclui Richter, me surpreendendo. Ele olha para mim, e eu sorrio para

ele. Ele devolve o sorriso, mas apenas por poucos segundos. Ele obviamente não quer depender

de Silvia para sobreviver. Bem, ele terá de aceitar isso cedo ou tarde.

- Ótimo – diz Silvia com um sorriso grande e grato, completamente irreal. – Então, até

semana que vem.

Ela e seus guarda-costas que mais parecem árvores a seguem por entre nós, até o limite da

mata, onde começa a rua, e um carro preto menor que o de Richter aparece, como se estivesse lá o

tempo todo. Um dos dois seguranças abre a porta para ela, e ela entra graciosamente no carro. Os

outros dois entram logo depois, na parte de trás, e eu não sei como os dois cabem nesse espaço tão

pequeno. Quando o carro começa a se mover lentamente, a janela dela abaixa.

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- A propósito – diz ela, quando passa perto o suficiente de nós dois –, é bom avisar à

Siobhan Ramse sobre o que vocês dois planejam fazer. Aposto que ela não vai ficar exatamente

feliz.

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Capítulo 2 – Revelação eletrizante

Nós observamos enquanto o carro fica pequeno e desaparece na estrada, e eu não sei se fico feliz

ou furiosa. Estou furiosa, mas ao mesmo tempo aliviada e realizada. Finalmente esse pesadelo está

aparentando ter um fim, mesmo que eu não saiba o que esperar desse final. Não posso, porém,

deixar de me perguntar o que ela quis dizer com “Siobhan não vai gostar”. Por que Siobhan não

gostaria do fim de tudo isso? Ela está gostando de fugir e lutar tanto por sua vida, por acaso?

Imagino que não.

Quando ela finalmente desapareceu no horizonte, Richter e eu conseguimos enfim recobrar

o movimento. Sem dizer uma palavra, nos colocando em posição de ataque e lentamente nos

aproximamos do carro preto roubado, preparando-nos para que haja mais alguém dentro.

Não há ninguém. Nem bilhete, nem arma, nem bomba, nada que nos ameaçasse ou

confirme sua presença nesse lugar. Claro, no fundo eu não esperava por isso. Se ela nos quer como

aliados, o que é óbvio, não tentaria nos atacar de forma alguma. Claro, nem me passou pela cabeça

mais cedo que ela poderia estar trabalhando para Brokeraven. Mas, acredito, ao mesmo tempo, que

ela não seria burra o suficiente para cumprir ordens de alguém que considera um inimigo.

Isso me leva a dar crédito a ela. Talvez seja imerecido, mas não poderei ter certeza tão

cedo. Se isso tudo é apenas uma armadilha para nos pegar, bem, basta dizer que a única pessoa

que vai sair perdendo no final é ela. Nós todos estaremos mortos, e ela terá perdido a única

oportunidade que um dia possuiu de conquistar seu prestimoso trono. Isso me faz dar crédito a ela.

Não acredito que Silvia é burra. Não quero acreditar. Não posso acreditar.

Rich pega as chaves do carro no quebra-sol. Se sabia que elas estavam ali o tempo todo,

não posso dizer. Então nos dirigimos ao porta-malas, sem trocar uma palavra. De dentro dele, Rich

tira uma grande mala, simples, sem nada que a identifique como de alguém. Ele entrega para mim.

Eu a aceito, mas fico surpresa. Jamais pensei que Rich fosse frio o suficiente para me dar o fardo

maior. Ele tira de dentro outra mala, menor, mas de aparência mais resistente e um pouco militar.

Antes de prosseguir, ele coloca a mala no chão e puxa o zíper o suficiente para pescar

alguma coisa dentro. Um momento depois, ele entrega para mim uma pistola. Eu a pego com

apenas uma mão, e sinto seu peso mortífero. Seguro-a nas pontas dos dedos, como se fosse um

inseto nocivo. Olho para ele, com uma interrogação no rosto.

- A partir de agora, é importante sempre andar prevenidos. – Ele continua a fuçar a maleta

um pouco mais e puxa outra pistola, para depois enfiá-la na calça, um coldre improvisado. – Se

estivéssemos preparados, nada disso teria acontecido.

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- Quer dizer que teríamos matado ela? – questiono, ainda segurando a arma pelas pontas

dos dedos. Richter se levanta e, ainda segurando com firmeza a mala, pega o objeto mortal de

minha mão, e me ensina como segurá-la de um modo seguro. Enquanto ele manuseia meus dedos

e a pistola, eu continuo: - E teríamos perdido talvez a única oportunidade de destruir Brokeraven

que temos?!

- Estou falando de tudo desde o começo, Ky. Desde quando ele trancou vocês dentro

daquele Shopping Center. Se a polícia estivesse preparada para algo do gênero, poderíamos ter

salvado vidas. Se estivéssemos preparados para o início de uma tirania, nada disso estaria

acontecendo. Mas nos acomodamos e deixados rolar, talvez por medo, possivelmente por

pensarmos que algo assim jamais aconteceria. – Ele faz uma pausa em que segura minha mão com

firmeza. Meu dedo está longe do gatilho, mas eu empunho a arma com firmeza. Ainda tenho medo

das consequências de puxar o gatilho. – Agora pare de fazer objeções. Sabe que eu não faria nada

para te machucar. – Ele sorri para mim.

Eu sorrio de volta.

Passar estas malas por cima da cerca é um problema, principalmente quando uma delas é

incrivelmente pesada e perigosa. Rich sobe, espera que eu passe a primeira mala para ele – a maior

e mais leve –, então espera que eu suba e espera com ela em cima da cerca, depois me exorta a

entrega-la a ele com cuidado. O mesmo processo se dá com a segundo, e quando terminamos,

caminhamos juntos até a entrada do bunker.

A escuridão no corredor ainda parece opressora, mas conseguimos sobrepuja-la. Rich dá

aquela série de batidas na porta antes que Siobhan apareça e abra para nós. Ela não parece mais

estupefata – como estava quando eu convenci Rich a ir buscar a bagagem com ele, pouco tempo

atrás –, e sim preocupada.

Automaticamente me lembro das palavras de Silvia. “É bom avisar à Siobhan Ramse sobre

o que vocês dois planejam fazer. Aposto que ela não vai ficar exatamente feliz”. Olhando para

Siobhan, não vejo motivo pelo qual não gostaria que nosso plano desse certo. Tenho certeza de

que ela ficará preocupada com o plano todo, mas, se for razoável, compreenderá e nos ajudará.

Pela maneira como reagiu à nossa volta, parece querer mais que tudo que esse pesadelo tenha um

fim. Então, o que poderia estar errado?

- Onde vocês estavam? Pensei que houvessem morrido! – diz Siobhan em um único fôlego.

- Precisamos conversar – informa Rich, sem fazer rodeios.

Ele começa a caminhar na frente, sem esperar por mim ou por ela, e, depois de um único

olhar nos olhos da outra, seguimo-lo. Depois de virar aquele monte de coordenadas – esquerda,

direita, direita, etc. –, ele para subitamente, e encara Siobhan como se ela fosse culpada de algo.

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- Quando ia me contar? – questiona, irritado. Eu fico confusa. Olho para Siobhan, que ainda

não respondeu. Ela não parece confusa, contudo. Sua expressão revela algo como culpa. Mas por

que Siobhan seria culpada?

- Como você...? – indaga, mas não consegue concluir. Richter continua encarando-a com

severidade. - Eu... Eu ia contar – responde, desviando o olhar de Rich, como se estivesse

envergonhada. Espere! Ela está de fato envergonhada. Seu rosto fica vermelho, e eu posso sentir

sua hesitação.

- Quando? Quando Ky e Gael estivessem mortos?! Porque é isso o que parece!

Eu vejo... Só pode ser mentira... Lágrimas! Lágrimas escorrem pelo rosto de Siobhan, e

meu coração imediatamente se parte. Siobhan é a mulher mais forte que eu já conheci. Mais forte

que lágrimas! Mais forte que eu, que já quase se derreteu em lágrimas.

- Eu queria contar, Rich, mas sabia que você ia ficar furioso comigo, porque eu devia ter

contado quando nos conhecemos. Eu queria contar, mas não sabia o quanto isso ia mudar o rumo

das coisas. Se você me deixasse... – Ela soa muito vulnerável. E pela primeira vez em muito tempo,

talvez a primeira vez desde que eu a conheci, vejo o lado frágil de Siobhan, o lado que precisa de

Richter com ela. O lado que ama Richter.

- Eu não teria te deixado, Siobhan. Estou com você agora, e teria ficado com você da mesma

forma. Mas essa desculpa não justifica sua falta de honestidade. Você colocou a todos nós em

perigo. Colocou Ky em perigo! – Ele está sendo inflexível. – Quer dizer, então, que se Silvia

Heatcliff não estivesse lá fora nos esperando, jamais saberíamos disso?

Uma peça, como em um quebra-cabeças, entra em foco. O que Siobhan tem a ver com

Silvia Heatcliff?

- Não me diga que... – fala Rich, e parece aterrorizado com a ideia. – Você que a contatou?!

– Eu mesma fico horrorizada com isso. Não, não pode ser! Não poderia! Por que ela faria isso, nos

arriscaria, arriscaria colocar tudo a perder? Além disso, como ela teria contato com Silvia? A

menos... Não, a ideia é ridícula para considerá-la. – Como pode ter sido tão inconsequente?! – grita

ele. Está dizendo sandices, quero dizer a ele. Nada disso faz sentido.

- Eu não contei a ela! – Ela parece um pouco mais feroz agora, como se houvesse

justificativa clara para isso tudo e Richter a estivesse ignorando propositalmente. – Não sou idiota.

Só não... Não sabia como te contar... Como te contar de uma maneira que você não me odiasse...

- Eu não te odeio, Siobhan. – Um pouco da fúria abrandou, mas ele ainda parece duro

demais para ser gentil. – Só não entendo... – Ele faz uma pausa. – Conte logo a ela, Siobhan. Não

serei eu aquele que vai destruir mais um pedaço de seu mundo.

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Meu coração aperta.

- Ky, você lembra... – começa ela, virando-se então para mim. - Lembra quando disse, há

tanto tempo, que eu conheci a lendária neta do presidente? – pergunta, ainda em meio a lágrimas.

Não.

Não!

- Lembra que eu disse que havia conhecido ela? E que ela... Se foi...?

- Não, Siobhan, não... – tento eu dizer, mas ela não permite. Balança a cabeça em

aquiescência. Não há como acreditar nisso. Ela não pode ser. As peças se encaixaram cedo demais.

Ou talvez tarde demais. Provavelmente eu fui surda demais para entender o que ela havia dito.

Mas ela não nega. Pelo contrário. Não está mentindo. A verdade está ali, clara e cristalina. E é uma

verdade que eu não gostaria de conhecer.

- Eu sou ela. Eu sou a neta de Abraham Brokeraven, Siobhan Ramse Brokeraven.

Meu mundo, uma outra vez – para variar –, se esfacela. Por fora, estou chocada. Não há

como isso ser verdade. Ela só pode estar brincando comigo. Está na hora de ela secar as lágrimas

falsas e dizer que tudo não passa de uma brincadeira de mau gosto. Mas nada disso vem. O choque,

então, é grande demais para que eu consiga me recuperar com rapidez.

Era isso que ela havia querido dizer lá atrás. Ela, por um momento, quase me revelou seu

passado que tentou esquecer – ou esconder. Por isso eu notei que ela parece apagada, como se as

roupas simples que agora usa não fossem suas, ou melhor, não fossem seu estilo. Pois Siobhan

Ramse, a antiga Siobhan, possuía um estilo suntuoso e único, digno da neta do presidente, aquela

garota que vivia para os escândalos. Siobhan abandonou aquela vida para ser uma nova pessoa,

para fazer enfermagem e deixar de viver sob a asa de Abraham Brokeraven.

É conhecido que o filho de Brokeraven está morto. E que a suposta neta do presidente desapareceu

dos holofotes. E que ninguém mais ouviu falar dela. Pois ela morreu. E quando aquela mulher

morreu, esta Siobhan nasceu, mais forte e independente.

Mas isso não é, de longe, suficiente. Não podem ser a mesma pessoa. É incabível! Mas eu não

acordo do sonho – ou pesadelo – que sinceramente espero estar vivendo. Ela continua lá, ruiva e

real, e continua sendo a neta do homem que destruiu minha vida.

- Meu pai costumava ter uma vida dispendiosa – diz ela, continuando com sua história, sua voz

lentamente deixando de ser afetada pelas lágrimas. – E eu aprendi com ele. Compras o tempo todo,

faculdade de moda, festas todos os dias, amigos, namoros, carros, bebida, dinheiro... – Ela diz tudo

isso muito rápido, numa velocidade quase vertiginosa, fazendo minha mente girar. As palavras só

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chegam à compreensão por eu não estar entorpecida. – Eu não tinha objetivo na vida além de

continuar com tudo aquilo que eu amava... Continuei com isso mesmo quando meu pai morreu. E,

de um momento para o outro, eu acordei. Acordei de tudo aquilo. – Ela soa mais urgente, mas ao

mesmo tempo mais distante. Está nos contando tudo, mas não está aqui. – Já não queria mais ser

Siobhan Brokeraven, queria ser alguém de verdade, vivendo de verdade. Vivendo por mim mesma,

vivendo justamente. – Ela finalmente sai do transe, e olha para nós. Seu rosto está marcado pelas

lágrimas. – Meu avô me ama. Sempre deu o que eu quis. E ficou muito desapontado quando eu

abandonei tudo. Mas nem só por isso me abandonou. Disse que, no momento em que eu quisesse

voltar, era só telefonar.

- Por que você não me contou tudo isso antes? – pergunta Rich, abrindo ligeiramente os braços

para abraçá-la. Ela, porém, estende a mão para ele, que para no meio do movimento.

- Tem mais – diz ela. Ele cerra a mandíbula. – Eu venho contatando Silvia há algum tempo. Marvee

sabe disso. Eu a conheci enquanto ainda vivia com Abraham. Ela queria ele fora do poder, para

então poder assumir. E, por mais triste que seja para mim, eu sei que será melhor para o país se ele

estiver fora. Por isso, quando surgiu a primeira oportunidade, eu entrei em contato com ela pelo

telefone impossível de rastrear de Marvee... – Ela dá uma risadinha quando fala isso. – Ela estava

no seu rastro, Kaya. Procurou você incessantemente. Foi ela quem me deu as coordenadas de onde

te encontrar. De alguma forma, sabia onde você apareceria. – Eu sei como... O disco em formato

de CD que encontrei uma vez enquanto ainda perdida na floresta-natal de Arati volta à minha

mente com a explicação que eu buscava. – Foi por isso que eu sugeri que fôssemos por ali, Rich.

Porque eu sabia que ela estaria lá.

Um momento de silêncio tem início. Ninguém sabe o que dizer. Tudo isso é muito grave e pesado

para processar com facilidade. Eu, pelo menos, não consigo. Deveria estar com raiva dela? Ou

agradecida? Não sei. Estou confusa demais para sentir alguma coisa sólida.

Rich finalmente abraça Siobhan. Ela não chora mais. Eles se abraçam durante algum tempo. Quem

queima sou eu. Mesmo não sabendo como processar isso tudo, ainda estou decidida. Decidida a

dar um fim a tudo isso. Não me importa quem mais eu irei machucar quando matar Brokeraven.

Eles não se importam com o que eu sentirei quando escondem segredos de mim. E é o que Richter

diz em seguida que me faz ver isso.

- Sei que é difícil para você. – Sua voz está sendo abafada pelo cabelo dela – eles está com o rosto

enterrado em seu pescoço. Meus lábios se franzem imediatamente. Difícil para ela?! Está sendo

difícil para mim, mas ele parece ter esquecido isso.

- É bom ficar avisada então, já que está sendo assim tão difícil – digo, finalmente depois de tanto

tempo de silêncio. Uma fúria estranha queima em mim. Algo que eu não entendo. Siobhan e

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Richter olham para mim, e eu olho diretamente nos olhos de Siobhan. – Nós pretendemos matar

seu avô.

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Capítulo 3 - Confusão

Eu volto para o quarto antes que os dois tenham tempo de pensar em me impedir. Deixei a mala

enorme de Richter lá atrás, com eles. Uma semana. Tudo o que eu tenho antes de muito

provavelmente morrer é uma semana, e essa situação toda está sendo difícil para Siobhan, de

acordo com Richter! Droga, o que será que ele está pensando? Quem fará o maior sacrifício aqui?!

Eu passo direto por Gael, Marvee e Arati, e os três me chamam de maneiras diferentes, mas todos

perguntam “O que aconteceu?” exatamente da mesma maneira. Eu os ignoro e vou direto ao

quarto. Não há porta nele, então não há como batê-la, mas eu acredito que me jogar na cama e

grunhir contra o travesseiro conte como.

Me encolho em uma bola, como no dia em que fui encontrada. Um por um, meus

“pretendentes” vem atrás de mim, sentando-se por um tempo ao meu lado na cama, esfregando

meu ombro e perguntando-me se quero conversar. Não respondo qualquer um deles, até que todos

desistem e voltam à sala de estar. Momentos depois, escuto um bater de portas, e a voz de Richter

e Siobhan me atingem como tapas, fazem meu peito vibrar. Depois de poucos momentos, a porta

se abre e fecha novamente, e nesse meio tempo ouço um tropel. Os dois primeiros foram contar

aos outros três quem é Siobhan. Pelo menos me deixaram sozinha, o que é bom.

Estou cansada. Muito cansada. Não só fisicamente. Esse dia tem sido um fiasco completo,

sem contar a parte em que eu reencontrei minha família – minha nova família –, é claro. Não posso

dizer que o encontro com Silvia tenha sido bom, pois algo de muito ruim veio depois.

A verdade é que estou muito assustada. Completamente horrorizada. Eu sou forte o

suficiente para dar fim ao que Abraham começou, disso tenho certeza, mas mesmo isso não é

sinônimo de falta total de medo. Afinal, ainda sou humana. Ainda estou viva. E estou apavorada

com tudo isso. Quando, na floresta, deduzi que minha vida fosse acabar, estava pronta para encarar

isso de frente. Quando soube que havia um prazo para isso, e que este é bem curto, não encarei da

mesma forma. Estou pronta, claro, mas não sei se agora. Não sei se estou preparada para deixar

tudo pelo que lutei, não mais. Quando seu coração está endurecido e ferido pelas condições atuais,

encarar a morte de frente e com coragem é fácil. Mas quando a tempestade passa e tudo o que

sobre é um céu limpo, como era no início, ter tanta convicção é um desafio. Afinal, o reencontro

com essas pessoas que eu tanto amo significou isso – o fim da tempestade, a limpeza do céu escuro.

Nem sei mais o que quero. Gosto de estar viva. Sou uma guerreira, sim, mas guerreiros

também são humanos, droga! Guerreiros não são suicidas; eles lutam por aquilo o que acreditam

e para permanecer vivos. E, seja eu honesta, não quero ter de encarar isso tudo em tão pouco tempo.

Quero poder amar Arati mais um pouco. Quero que ele também me ame mais um pouco. Mas não

tão pouco... E, por mais horrível que isso possa parecer, também quero que Gael me ame. E assim

também Marvee. Pois eu os amo, os três, e não sei qual deles amo mais. E talvez nunca saiba.

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Enfim, afinal, estou confusa. E assustada. Quero dar um fim nisso, mas não quero ver meu

fim.

E nem consigo chorar, mesmo com tudo isso em minha mente.

Espero que eles voltem logo, mas eles não voltam tão cedo. Então continuo esperando. Me

contorço na cama, tentando ficar confortável, mas é realmente difícil, pois minha mente perturbada

não permite. Não ouço nada além do zumbido da geladeira e o gotejar suave da torneira do

banheiro. Tomada por uma súbita sujeira – talvez mental –, levanto-me para ir ao banheiro. E é

então que me lembro que estava carregando uma pistola. E ela está depositada em cima da cama

onde eu estava.

Pego a arma entre as mãos. Olho para ela, detalho-a mentalmente. Então a seguro e aponto

para a parede em minha frente. Não tenho muita certeza do porquê de eu fazer isso. Acho que é

simbólico ou sei lá. Imagino Brokeraven em minha frente. Imagino-o amarrado, incapacitado, ou

apenas parado. Tento puxar o gatilho. Eu o seguro o pino, mas não puxo. Não consigo. Não consigo

matar alguém, mesmo que essa pessoa deseje avidamente minha morte. Essa pessoa simplesmente

não sou eu – aquela que atira em um ser humano. E pressinto que não conseguirei matar no futuro.

Solto o objeto em cima da cama uma outro vez, e vou ao banheiro. Lavo as mãos

freneticamente, tentando tirar de mim os resquícios da arma. Graxa, penso. É apenas graxa.

Ou pólvora.

Para ocupar minha mente, volto à cozinha e coloco água em uma panela. Nunca fui ótima

cozinheira, mas dou para o gasto. Além disso, pensei que Siobhan houvesse feito algo para os

garotos comerem, e que Marvee houvesse ajudado, mas estava errada. Aparentemente, todos eles

se preocuparam mais em se lavar antes de comer. Procuro entre as prateleiras no gabinete ao lado

e encontro farinha de trigo, amido de milho e ovos, e começo a preparar massa. É bom ter algo em

que me concentrar por um tempo. Misturo tudo, acrescento óleo e sal, e logo está pronto, minhas

mãos sujas e mente ocupada.

Começo a esticar a massa do macarrão quando Siobhan entra, sem fazer som algum. Acho

que eu não deveria ficar surpresa, mas fico. É impossível não encará-la de uma forma diferente

agora, uma vez que sei dessas coisas inexprimíveis. Ela me vê trabalhando e apenas um segundo

depois começa a ajudar, pegando na geladeira tomates, cebola, alho e mais uma pá de ingredientes

para fazer molho. Descubro que este lugar foi muito bem estocado, para que não faltasse qualquer

coisa para os futuros estudantes refugiados.

Pensando nisso agora, percebo que alguém mais talvez já pensasse em assumir o poder

antes de Silvia Heatcliff. Kriger Rurik Yurievna, pai de Richter e reitor da Universidade Yurievna,

construiu este lugar antes mesmo que Brokeraven houvesse pensado em armar aquele jogo mortal.

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Por algum motivo, ele construiu um enorme bunker, com capacidade para confortavelmente

hospedar toda uma universidade em seu auge de capacidade, a vários metros do nível da rua, como

uma medida preventiva antibombas, muito provavelmente. Isso me faz chegar a essa conclusão:

ele sabia que seus estudantes precisariam de proteção no caso de uma guerra civil – quem sabe

militares versus civis.

Se ele – Rurik – já estava planejando iniciar discórdia antes de tudo ter início, quem dirá

outros “candidatos”.

Pensar em tudo isso me faz ficar tonta. Paro por um momento o que estou fazendo, e deixo

a cabeça pender no pescoço. O cansaço físico me domina. Não apenas Silvia quer o poder, como

pensei. E, obviamente, não somente ela está disposta a fazer tudo para consegui-lo.

Será que esse pesadelo não terá um fim? Pois, mesmo que eu continue viva quando derrubar

Brokeraven – o que é pouco provável –, não haverá, porém a possibilidade de que o novo

presidente seja ainda pior?

Por um momento, raciocino no que acabei de pensar. Sei por que vou morrer quando matar

Brokeraven. Quase sei como isso vai acontecer. Se de algo tenho certeza, é de que os subordinados

e aliados do presidente estarão presente no momento em que eu for “capturada”. Ele vai querer

que todos vejam minha derrota, por fim (isso se ele não quiser tudo televisionado). Quando Richter

me “delatar”, ele – Brokeraven – vai me capturar e me exibir como prêmio. Quando eu o matar –

nem sei como planejo fazer isso... –, eles – seu aliados políticos – me executarão. Não permitirão

que eu permaneça viva, pois a fonte de proteção e dinheiro deles terá cessado.

E todas essas questões me deixam tonta, outra vez.

- Tudo bem? – pergunta Siobhan, quando me vê esticar o pescoço. Uma pontada de raiva

por ela volta, mas eu reprimo-a para o fundo de minha mente. Isso tudo deve sim estar sendo tão

duro para ela quanto para mim – mesmo que seja eu quem está indo para o abatedouro. Siobhan

não está brincando aqui conosco. Sua vida também está em risco, e eu tenho de me lembrar disso.

- Estou sim – respondo, da maneira mais gentil que consigo. Não sei se sou bem sucedida.

Depois de um momento de silêncio, pergunto: - Onde estão Rich e os outros?

Ela demora o mesmo tempo que eu levei para perguntar para responder.

- Não sei. Rich os chamou e me pediu para voltar. Não faço ideia do que podem estar

aprontando.

Mesmo Arati?, desejo perguntar, mas me refreio. Ao invés, pergunto outra coisa, a qual sei

que a surpreende.

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- Você me culpa?

Ela para de mexer o molho, que resmunga e borbulha na panela, e olha para mim,

apoplética. Sei que compreendeu a pergunta implícita. Você me culpa por tudo o que está

acontecendo? Solta a colher de madeira e se vira para mim com o corpo todo, me obrigando a

manter os olhos nela.

- Te culpar? Claro que te culpo, Kaya. Te culpo por você não ser culpada pelo que está

acontecendo. Te culpo por desejar sobreviver. Aliás, te culpo por eu ter sido obrigada a contar ao

Richter que eu na verdade sou neta do presidente que está tentando nos matar. Afinal, nosso

relacionamento estava indo às mil maravilhas depois de eu tê-lo resgatado de um carro prestes a

explodir. Então, para poupar a mim e a ele também, você devia logo dar um jeito nessa merda toda,

porque ficar culpando a si mesma não vai trazer nossas vidas maravilhosas de volta.

Ela se vira de volta para a panela e meche com tanta força que espirra molho por todos os

lados. Seu rosto está vermelho e respiração rasa.

Por um momento, só consigo ficar sem reação. Por um momento, acredito em tudo o que

ela diz. E o fato de ela não se virar e pedir desculpas só reforça a sensação. Eu volto a fazer meu

trabalho, ainda sem uma resposta. Nem sei o que estou fazendo, só sei que não quero acreditar

nisso. Não posso acreditar em tudo o que ela disse. Porque as palavras de Siobhan foram todas

verdade, ficarei ainda pior que antes. Sou fraca e agora culpada.

- Agora já pode dizer o quanto me odeia, Kaya – diz ela, sem tirar os olhos da panela.

Então é essa a questão.

Eu dou uma risada resfolegada.

- Então é por isso? Por você achar que eu te odeio? – questiono. – Eu não te odeio, Siobhan,

por mais que pareça que é isso o que quer. Seria como odiar Rich: você só me ajudou, mesmo não

sendo essa sua obrigação. E agradeço por isso. Mas isso não quer dizer que eu não me sinta

culpada. Me desculpe por isso. E por perguntar – acrescento, corrosivamente.

Ela bufa, indignada, mas não diz mais nada depois. Continuamos fazendo aquilo que

começamos por tempo o suficiente para eu cortar a massa em finas tiras e cobri-los com farinha

antes que ela fale novamente.

- E quando você pretende dizer ‘sim’ a um deles? – questiona, não tão brandamente quanto

acho que ela espera.

- Não vai haver tempo para isso. E você sabe.

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Ela para de colocar o molho em um pote grande de vidro, me pega pelos ombros e me vira,

de modo que fico de frente para ela. Um monte de farinha voa.

- Você tem em suas mãos três garotos que parecem te amar muito, mesmo que eu mal

conheça aquele índio esquisito. Se você não tomar logo uma atitude, eu vou tomar.

- Como tomou ao contar voluntariamente quem você é ao Richter?

Isso a enfurece. Enfurece a mim também. Não sou sua inimiga, mas serei se ela me ameaçar

novamente.

- Além disso, o que vai fazer? Dizer a cada um deles que eu não estou afim? Todos os três

já tiveram uma boa prova de que eu não sou assim tão simples. E eu mesma já disse a cada um

deles que os amo. O que você vai fazer contra isso? – Escolho dizer algo que vai a deixar ainda

mais possessa. Vai a deixar colérica. – Vai me matar?

Ele imediatamente me solta e se volta outra direção, enfiando as unhas nas palmas das

mãos. Eu, pelo contrário, estou mortalmente calma.

- O que está havendo aqui? – É a voz de Richter. Não me viro – nem preciso. Ele vem até

nós. Eu ainda estou na posição estranha que Siobhan me deixou, e ela está se machucando para se

impedir de me dar uns tapas.

Mas eu não espero pela resposta dela. Pego o pano de prato mais próximo, limpo

rapidamente onde enxergo farinha e saio da cozinha.

- Pergunte a ela – digo, sem paciência. Vejo Arati à minha frente junto com os outros dois

garotos – aqueles que acabei de dizer que amo – no corredor, parecendo extremante confuso – para

variar. Pego sua mão e saio com ele, antes que ele ou qualquer um tenha tempo ou chance de

protestar.

Não olho para trás, nem reparo nos olhares amargurados que Gael e Marvee lançam para

mim.

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Capítulo 4 – Primeiro dia antes do fim

Saio do labirinto que é o bunker antes de pensar no que estou fazendo. Subimos a ladeira íngreme

e escura até a saída, que descubro estar destrancada, mesmo que eu esperasse o contrário. Vou com

Arati o mais longe que posso, até uma área coberta por grama baixa e pontuada por árvores

esporádicas. Ele simplesmente me segue sem fazer perguntas, mas sei que sua mente está

trabalhando rápido justamente por isso. Ele sabe que quero distância de tudo neste momento.

Vamos até uma árvore ao fundo. Está de madrugada, então não vejo muito bem onde estou

indo até que encosto a mão na madeira. Despenco na terra macia, e ele me segue, fica sentado ao

meu lado.

Sem pensar, também para variar, eu o beijo. Beijo-o com força, me empurro para cima

dele, e ele cai na grama, onde eu o beijo com mais intensidade. Sinto o cheiro da grama, seu cheiro

amadeirado e meu cheiro de suor. Estou terrivelmente exausta, realmente muito cansada, e não

estou raciocinando direito. Sem dúvida é por isso que eu briguei com Siobhan. Eu só sei que quero

beijá-lo, senti-lo. E é o que faço. Mas com Arati as coisas sempre são assim. Sem pensar.

Instintivas.

Não sei se amo Arati. Não sei mais. Ele é lindo, realmente lindo, e tem um coração ótimo,

puro. Mas não passa disso. Poderia eu, então, aprender a amá-lo? Não sei mais. Só sei que estou

cansada e quero dormir, mas também não quero parar. Também não sei se é justo tentar aprender

a amar Arati. Naquela outra noite, na floresta, enquanto nos beijávamos pela primeira vez, achei

que houvesse me perdido novamente. Agora já não tenho mais certeza. Eu gosto bastante dele,

mas será que é mais profundo que isso?

Eu paro de beijá-lo, e fico olhando para ele no escuro. Não consigo ver seus olhos

castanhos. Mas sei que eles estão lá, olhando para mim com desejo e compreensão – mesmo que

ele não esteja compreendendo uma pancada de coisas.

Eu deixo minha cabeça cair em seu peito. Ouço o reboar de seu coração batendo. Ele ainda

não disse nenhuma palavra. Me abraça e enfia os dedos em meus cabelos, acariciando-me

suavemente. É a primeira vez que temos esse tipo de intimidade, então não sei exatamente como

reagir. Pesco sua mão e envolvo-a com a minha. Beijo seus dedos. Desta vez ele beija meus lábios

timidamente. Isso é fofo. E é uma sensação boa. Eu amo Arati, eu percebo. Eu poderia ficar aqui

para sempre, congelar este momento.

Adormeço desta forma. Abraçando-o. A noite está fria, mas aquele tempo na floresta me

ensinou a suportar o frio e umidade incomodas. Ou pelo menos um pouco. Quando começo a

tremer, ele muda de posição, ficando quase por cima de mim, para me proteger. Eu sei que ele

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quase não o sente. Seu calor é bom. Seria incrível poder acordar com este calor durante o resto de

minha vida. Eu poderia acordar com este calor para sempre, poderia dormir para sempre com este

calor. Eu beijo sua pele suavemente antes de adormecer.

Amanhece rapidamente, e ninguém vem nos procurar. Sei que teremos de entrar antes que

algum aluno nos veja, então mansamente acordo Arati, que dorme levemente, e ambos retornamos

ao bunker. Ele não reclama. O sorriso que ele dá para mim é reconfortante, e eu me sinto

imediatamente melhor com ele.

O frio aqui dentro é menos intenso que do lado de fora. Toco a campainha e ouço três

toques suaves do outro lado. Bato duas vezes rapidamente, depois mais duas vezes, devagar. Então

a porta se abre. É Marvee quem está do outro lado.

- Bom dia – digo, fingindo um sorriso. Estou de mãos dadas com Arati. Ele sorri de volta

para mim, mas não responde.

Em pouco tempo, estamos de volta ao nosso quadrado de moradia F6. Ele abre a porta e

entra, sem esperar por nós dois, e eu fecho a porta quando estamos todos dentro. Ainda estou

mentalmente exausta para me sentir mal por Marvee.

Um cobertor está disposto no sofá. Marvee deve ter dormido aqui esperando nosso retorno.

Se fez isso espontaneamente ou por pedido não sei dizer. Ele pega o cobertor de cima do sofá e se

dirige ao quarto. As luzes estão todas apagadas, e se eu não houvesse vindo do lado de fora, não

diria que está amanhecendo. Eu olho para Arati, e seu rosto parece mais leve do que há tantas

horas.

No quarto, todos os outros três estão em suas camas. Siobhan está encolhida, sobraçando

suas pernas, mais vulnerável do que eu jamais vi. Rich está espalhado, confortável. Seu peito sobe

e desce profundamente, e ele está claramente relaxado. Imagino se ele não aprendeu, enquanto

morava com o pai, a se sentir em casa mesmo em lugares desconfortáveis. E Gael... É o mesmo

Gael do começo de tudo isso. Lindo em seu sono, perfeitamente sereno. Marvee pega uma das

cinco camas, e é então que percebo que só há cinco delas. Uma a menos do que o necessário.

A raiva que senti hoje mais cedo volta, uma pontada quente e dolorosa. Sei que é infundada,

mas ainda está lá. Então faço o que eles esperam que eu faço.

Conduzo e deito-me com Arati, com ele abraçando minha cintura, e me permito submergir

em um sono profundo.

Ao acordar pela segunda vez neste dia, encontro-me sozinha. Já não estou tão cansada, mas

meus músculos trapézios doem, o que só pode significar que eu tive sonhos inquietos durante a

noite. Ouço um bulício ameno na cozinha, colheres batendo e pés se arrastando. Os outros cinco

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já estão de pé, suas camas feitas – sem contar a onde estou –, e provavelmente tomando o café-da-

manhã. Não quero me levantar, mas me levanto mesmo assim. Estico os braços, o que causa uma

onda de dor onde meus músculos estão tensos. Faço massagem neles enquanto me dirijo ao

banheiro.

Sei que todos olham para mim quando passo porque os barulhos param. Não me importo

com isso, porém. Entro e tomo um banho longo, para tirar o grosso de sujeira do corpo. Havia me

esquecido o quão bom é um banho quente de chuveiro. Me esfrego o máximo que posso, até minha

pele começar a ficar avermelhada e ardida. Uma parte da tensão se dissipa, também.

Quando termino, estou limpa e com o cabelo escovado e molhado. Percebo que não peguei

roupas, então me enrolo em uma toalha e, sem me importam nem um pouco com o fato de haver

quatro homens aqui, saio. Eles não estão aqui, contudo. Somente Siobhan, no quarto,

pacientemente arrumando minha cama. Eu olho para ela por um longo momento, estranhando sua

calma. Se ela está disfarçando a raiva, faz isso muito bem.

Avisto a mala de roupas em um canto no quarto, então vou até ela. Ela se vira para mim

quando me ouve, mas não diz nada. Volto ao banheiro e coloco as roupas limpas. Também havia

me esquecido como é bom usar roupas realmente limpas.

E o que acontece a seguir me surpreende. Quando volto para a sala, vejo em cima da mesa

uma tigela de cereais com frutas e leita, além de um enorme sanduiche e chá fumegante. Siobhan

está lavando a louça. Eu me dirijo a ela.

- O que está acontecendo, Siobhan? – pergunto, mantendo meu tom baixo. Não quero

iniciar outra discussão. – Por que nós brigamos?

- Eu também sinceramente não sei, Ky – responde, no mesmo tom. – Acho que posso culpar

sua exaustão. – Ela sorri para mim, e eu, mesmo não retribuindo, sinto a tensão entre nós

diminuindo. – Não sou sua inimiga. Não quero ser. Pelo contrário. Principalmente agora que temos

que nos unir para vencer. E, com relação a ontem, o que eu disse... – ela para de lavar e seca as

mãos em um pano de prato. – Eu não estava falando sério. Não estragaria seu lance com os garotos.

Eu sei que você os ama, e eu quero que você seja feliz. Mas uma coisa é verdade, Ky: você tem de

escolher um deles. Mesmo que, de acordo com você – ela revira os olhos –, você não vá sobreviver,

os três ainda esperam ganhar seu coração. E não é certo ficar magoando os três. Sei que é difícil.

– Ela enfatiza a última palavra, sublinhando minha ironia no dia de ontem.

- Sobre isso, gostaria pedir desculpas. Sei que também está sendo difícil para você. É só

que... Eu não sei o que fazer, Siobhan. Em sentido algum. A pressão disso tudo é tão grande. E

não tenho como decidir, pois eu não sei qual deles eu amo mais.

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- Então passe um pouco de tempo com cada um deles. Conheça melhor cada um deles.

Apaixone-se um pouco mais por cada um deles. E então, decida.

- Não sei se consigo... – digo.

- Mas também não pode ficar nesse pé para sempre. – Empilha o último prato sobre os

outros.

Desajeitadamente, ela se aproxima e me abraça. Eu não tenho irmãos, então não sei como

é ser abraçada por outra garota de maneira fraternal. Na escola, mantinha uma distância segura das

garotas, pois nunca aprendi a ser íntima de outra garota, como um ciclo vicioso. E agora, ao ser

abraçada por ela, fico ligeiramente desconfortável. Mesmo assim, há algo bom nisso. Mesmo com

esse desconforto pinicando meu cérebro, sinto algo bom nele. Compreensão, acho. Imagino que

ela também não tenha feito muito isso – ser abraçada ou abraçar outras garotas –, ou pelo menos

não estava planejando me abraçar. Mas sei que ela queria isso. E, no fim, eu também. E gosto

disso. Eu gosto de Siobhan, assim como de Richter. Não quero ser inimiga dela. E não apenas pela

necessidade.

- Você merece ser feliz, Kaya. Não se esqueça disso.

E você também merece, Siobhan. Por isso eu preciso dar um fim naquele homem.

Depois de comer, saio de dentro do quarto e vou procurar Richter, Marvee, Gael e Arati. De acordo

com Siobhan, eles estão em F14, o que é consideravelmente longe daqui, e me questiono sobre o

que eles estão fazendo em um quarto tão longe do nosso e por tanto tempo. Siobhan não me deixou

ajudá-la com as tarefas domésticas, então sai assim que acabei de comer, sentindo-me mais leve,

e um pouco mais amiga de Siobhan.

Passo rapidamente pelos F7, F8 e 9, e quando estou quase em 10, escuto um estampido

assustador. Um tiro. Eu fico paralisada, meu coração acelerado, minha mente travada, ribombando

o som. Outro tiro é necessário para que eu comece a correr. Ao chegar em F14, nem espero para

saber o que está acontecendo. Pulo porta a dentro, apavorada com a ideia de que aterrorizada com

a ideia de que alguém tenha sido atingido, de que algum deles esteja em perigo.

Deixo alguns detalhes escaparem. Dois dos quatro esperam em na parede no fundo quando

entro, enquanto outros dois – Arati e Rich – estão mais a frente, um revolver nas mãos de Arati,

que agora inconscientemente o aponta para mim. Eu me jogo dentro da cena, esperando ver

opressores, mas tudo o que encontro são os garotos treinando tiro.

Richter pacientemente estava ensinando Arati como segurar a arma da forma certa, e ambos

arregalam os olhos quando me meto na frente dela. Meu rosto fica imediatamente vermelho,

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queimando. Eu saio da frente da linha de tiro – a parede atrás de mim foi alvejada pelos atiradores

em treinamento –, e fico olhando para a cena. Marvee e Gael estão em posição de defesa, com as

pernas separadas e prontos para me tirar daqui se necessário. Arati enrubesce um pouco mais, o

que é incrível com sua pele vermelha, e Richter não consegue continuar com o movimento que

estava fazendo – erguendo um pouco a mão de Arati e empurrando seus cotovelos para baixo.

- Des-des... – tento dizer, mas não consigo. Estou completamente encabulada. E algo que

eu não espero de forma alguma tem início: um ataque de risada.

Começa com Arati, que parece ter entendido muito bem o que está havendo. Logo Gael

também está rindo, e em seguida Richter e Marvee. Meu rosto fica ainda mais quente e parece

haver borboletas em meu estômago. Arati se curva de tanto rir, e eu, sem querer, começo a rir

também. A cena toda é muito ridícula, de tão paranoica que estou. Não há como eles entrarem

aqui, e mesmo se entrarem, eu teria sido atacada antes de chegar aqui. Tudo isso – meus medos

vindo à tona – causaram estresse em mim, mas ele é aliviado com essas risadas.

- Está preocupada demais, Ky – diz Arati, novamente me surpreendendo. Ele nunca havia

me chamado de Ky. Parece estar falando muito melhor nosso idioma que nunca, e está em

companhia de minha nova família há apenas um dia. – Precisa relaxar um pouco.

Todos continuam rindo por um bom tempo. Vejo o rosto de Marvee ficar avermelhado, e

por um momento fico preocupada com isso, o que me causa apenas outro acesso de risos. Estou

realmente muito preocupada, com tudo: com a possibilidade de morrer ao matar Brokeraven, com

a possiblidade de o plano dar todo errado e Gael acabar em perigo, com o perigo que estamos

correndo imediatamente, com minha imprudência, com a chance de eu e Siobhan brigarmos

novamente, com minha indecisão com relação aos garotos, enfim, com tudo, todas essas coisas

fundas em minha mente, mas presentes o suficiente para me fazer ter sonhos ruins.

Eu me permito rir, então.

A sessão de treinamento a seguir é inverossimilmente divertida. Por diversas vezes a arma

que Arati segura escapa de suas mãos com o recuo do tiro. As balas com que os garotos treinam

são de festim, por isso apenas fazem um barulho incrível e tem recuo, mas não acertam a parede

de verdade. Como Rich as conseguiu não faço ideia; bem, eles tiveram um mês todo para encontrar

seu caminho, enquanto eu estava na floresta, então não deve ter sido assim tão difícil. Arati demora

um bom tempo para aprender a manusear o revólver, e nesse meio tempo Gael, Marvee e eu

conversamos e, graças aos céus, não falamos momento algum sobre o que passamos durantes estes

últimos meses. Falamos sobre nosso passado, sobre as coisas que gostamos de fazer.

Gael ama esportes em que tem de usar os braços e pernas em conjunto, como alpinismo,

de acordo com ele. Era o melhor de sua turma em corrida de longas distâncias. Qualquer coisa que

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o levasse ao extremo de sua capacidade era bem vida, contanto que não fosse um esporte praticado

por todos. Ele amava correr. Isso explica suas habilidades até aqui. O único ponto ruim na conversa

foi quando ele disse como acabou no Shopping Mall naquele dia. Ele morava do outro lado da

cidade, em Canem, e naquele dia, ele e sua avó – a quem era muito apegado – haviam decidido

que fariam algo diferente, como uma visita ao Shopping Center em inauguração. É incrível que eu

tenha passado tanto tempo com Gael sem jamais me questionar esse tipo de coisa. E descobrir isso,

porém, me mostrou outra perspectiva de Gael: aquela que se importa com aqueles que ama, e que

é forte para continuar lutando mesmo depois que eles se foram. Uma parte que eu já conhecia, mas

havia esquecido.

Depois disso, começamos a falar sobre Marvee. O óbvio eu já sabia: ele era estagiário do

governo na área de tecnologia da informação, e por isso descobriu várias coisas horríveis sobre o

sistema, tais como o planejado jogo que ocorreria dentro do Shopping. Isso, porém, também

ajudou, como na hora de rastrear Gael e eu. Mas o que eu não conhecia era seu outro lado: o lado

romântico de Marvee, o lado que gosta de ir ao parque e tocar violão, que tem medo de magoar

alguém, que às vezes não dorme mesmo nos dias de hoje, preocupado com Fox Mulder – é, como

daquela série de TV –, seu coelho de estimação. Um lado que é lindo e inesperado.

E quando chega a vez deles de treinar com Richter, eu fico abraçada com Arati, sentindo

seu calor delicioso. Ele se recusou com veemência a vestir uma camiseta – imagino que por não

estar acostumado com tecido cobrindo seus ombros –, mas pelo menos vestiu uma bermuda de

Gael, que fica ligeiramente pequena nele. É estranho, quase indecente, estar apaixonada por três

garotos, mesmo que imediatamente eu esteja mais ligada a apenas um deles. Não me sinto uma

perdida pelo simples fato de nunca ter dormido – com o perdão da palavra – com um deles. O que

acontecerá com os outros dois quando houver escolhido aquele com quem quero ficar? E se eu

escolher errado? Acho que é impossível que isso aconteça. Se os três me amam como aparentam

amar, jamais poderia escolher errado.

Acrescento isso à crescente lista de preocupações que tenho.

Enfim, quando Rich termina o tutorial básico de como segurar a arma e como recarregá-la

com segurança, nós nos preparamos para voltar ao quarto. Eu estranho ele não ter me chamado

para treinar, mas não questiono. As armas são recarregas então com balas normais, e cada um dos

garotos recebe um coldre e um par de revistas cheias, as quais são obrigados a vestir e jurar que

não vão tirar.

O resto do dia é normal, ou o mais normal que possa ser nestes dias. Almoçamos minha

massa finalmente pronta, que por acaso está ainda pior do que eu pensei que conseguiria errar,

contamos histórias de terror que apenas fazem rir, dividimos as tarefas domésticas e fazemos o

possível para não nos lembrarmos da situação em que nos encontramos, e dos dias tensos que

virão. Antes que a noite chegue – de acordo com o relógio na parede, no qual eu não confio –,

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Marvee e Gael vão até outro quarto para buscar mais uma cama. Assim, quando chega a hora de

dormir, eu tenho minha própria cama, mas arrasto-a até a próxima de Arati, de modo que durmo

com sua mão sobre a minha por sobre o vão entre as camas.

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Capítulo 5 – Garoto ao chão

Na manhã seguinte, mesmo prestando intensa atenção aos olhos castanhos de Arati e desejando tê-

lo impossivelmente perto, percebo que Marvee está ainda mais pálido que dois dias atrás, quando

nos reencontramos depois do mês afastados.

E tudo acontece rápido demais a partir disso.

Eu saio do quarto, depois de Arati e eu arrumarmos nossas camas. Estou de mãos dadas

com ele, e percebo Marvee estranhamente parado, apoiado na mesa de uma forma peculiar, usando

apenas um braço como apoio, encarando o piso de forma preocupante. Os outros três – Rich,

Siobhan e Gael – riem e preparam suas respectivas refeições, ainda no clima da conversa de ontem,

alheios a ele, pois pensam que ele está bem. Eu demoro um momento longo demais para perceber

as gotas de suor que pontuam sua testa.

Mal tenho tempo de correr para ele antes de ele cair.

Solto a mão de Arati e corro até ele, mas sua cabeça atinge o chão com um baque surdo.

Eu iço seu tronco para meu colo, mesmo sabendo que fazer isso não é seguro para ele. Mesmo

podendo haver consequências mais graves, não consigo me impedir de protegê-lo, envolvê-lo com

meus braços. Seu rosto está lívido, suor poreja em sua pele toda, não só sua testa.

- Marvee, Marvee, olha para mim – peço, mas seus olhos estão desfocados. Ele está

fervendo em febre, além de estar sentindo dor, pois escuto um leve gemido.

Siobhan automaticamente então entra em ação. Eu constantemente me esqueço que ela é

enfermeira. Verifica sua temperatura sem a ajuda de termômetro, e sua expressão não deixa dúvida

sobre sua perturbação. Ela aperta então alguns pontos no corpo dele, como embaixo de suas axilas

e abaixo das orelhas, e faz algumas perguntas a ele, mesmo sem esperar resposta. Ele colabora

como pode, gemendo alto ou não gemendo como resposta. Ele, como eu imaginava, sente por todo

o corpo.

- Infecção bacteriana, tenho certeza, mas não tenho como saber exatamente qual tipo, já

que ele não está em condições de dizer algo racional, por causa da febre, ou... – Ela se perde em

pensamentos, e parece dizer isso mais para si mesma que para mim. – Rich! – chama, e ele já está

trabalhando. Arati observa a condição de Marvee horrorizado, sem conseguir se mover, enquanto

Richter e Gael levam água e cobertores extras para dentro do quarto.

Um momento depois, Richter volta, e começa a levantar Marvee, sofregamente. Arati

finalmente parece sair do estado de torpor, e trata de ajudá-lo a levar Marvee para cima de sua

cama. Embolam-no em cobertores e apoiam sua cabeça em dois travesseiros.

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Siobhan vai ao banheiro e fica lá um bom tempo, no qual eu escuto um batucar de vidros e

frascos – ela provavelmente está procurando remédios –, então vai para o quarto, e fala

rapidamente com Richter, e tenta fazer isso baixo. Um silêncio imediato se instala quando ela fala,

como se todos soubéssemos o que ela irá dizer. De certa forma sabemos.

- Ele precisa de antibióticos fortes, coisas que não há por aqui. – Ela olha para nós quatro,

e sabemos o que ela dirá. – Se não fizermos uma incursão para buscar medicamentos, ele não vai...

– Não completa o pensamento.

- Não pode ser que... – Não consigo completar meu próprio pensamento. Não pode ser que

a bactéria seja assim tão perigosa, que possa arriscar sua vida. Não pode ser que ele não vá

conseguir se recuperar sozinho.

- Eu já vi isso antes, Kaya. É melioidose. É uma infecção causada por uma bactéria que

nem eu mesma consigo pronunciar. Essa reação se chama Sepse. É uma infecção geral grave do

organismo, causada pela ação de germes patogênicos. Como ele pegou isso ou quando são questão

que eu não sei responder, mas sei que é isso. – Eu abro a boca, mas ela me interrompe. – Como eu

tenho certeza? A frequência cardíaca dele está acima de 90/min. A febre acima de 39 graus. A

respiração dele está rasa e rápida. São os sinais mais comuns. Se estivesse acordado, estaria falando

um monte de besteiras e...

Neste momento, Marvee solta um monte de palavras ininteligíveis.

- Sem antibióticos agressivos, ele vai... – Outra vez, ela se interrompe. Imagino o quão

difícil para ela está sendo ver Marvee, que pareceu seu único amigo real este tempo todo, nesta

situação. E percebo que estou me compadecendo dela. Sinto compaixão por ela. No fim, talvez

nós duas não estejamos em situações tão diferentes.

- Ele não vai – diz Rich, obstinado. Seu rosto é severo, mas decidido. Não está disposto, de

forma alguma, a perder alguém. – Arati, você e eu somos os rostos menos procurados na cidade.

Nós podemos...

- É muito arriscado sair do campus! – interrompe Gael, arregalando os olhos verdes. – Não

diria Arati, mas você com certeza vai ser pego no momento em que botar o pé para dentro de uma

cidade.

- Não há como ajudar Marvee ficando aqui no bunker, não foi abastecido com esse tipo de

medicamento. – Rich está com os lábios de Richter estão crispados. – Ele vai morrer sem os

medicamentos.

- E quanto à enfermaria da universidade? – questiono, já em pé, enquanto ignoro a pontada

de dor em meu peito quando ouço as palavras. – Deve haver uma enfermaria aqui, certo?

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- Deve sim, mas é impossível que haja esse tipo de medicação nela – pondera Siobhan. –

Se um aluno fica muito ferido ou doente, o corpo docente o encaminha direto para um hospital e

cobre todo o tratamento. Por aqui deve haver somente o básico para os primeiros socorros, se

muito.

- Se não fizermos nada ele vai morrer! – vocifero eu, tremendo de raiva e medo.

- E se fizermos, nós vamos morrer – diz Gael, seus olhos transmitindo a intensidade de seus

sentimentos. – Eu não estou preparado para te perder de novo, Ky.

Todos ficam em silêncio. Estou particularmente aturdida. Lágrimas ameaçam escorrer. Não

acredito nisso. Pensei que Gael e Marvee estivessem se tornando amigos agora. E tudo o que ele

demonstra é seu egoísmo diante da iminente morte de seu amigo.

- Não há tempo para ficarmos discutindo agora – diz Arati. Meu coração para diante sua

súbita coragem. Eu sei por que ele está fazendo isso. Sei perfeitamente. Ele me ama. Eu amo

Marvee. Ele quer me ver feliz. E eu o amo por isso.

- Exatamente – diz Siobhan. – Arati, nossa melhor chance será se você e eu formos. Seu

rosto não é absolutamente procurado, e eu não serei capturada.

- Como não? – pergunta Rich, seu cenho franzido. Está concentrado em suas palavras.

- Eu sou neta do presidente. Eu seria a última pessoa que ele quer morta. Pareça ou não. E

essa é a falha com o plano de Silvia. Aquele homem não tem misericórdia de ninguém. Você não

vai se tornar um herói. Ele vai te matar assim que obtiver a informação, tanto para te descartar

quanto para eliminar um traidor.

“Por isso eu sou aquela que tem de trair vocês. Eu sou aquela que vai lhes delatar para o

presidente”, diz ela, olhando de Gael para mim e de volta. “Eu vou ser o gatilho”.

Uma outra vez, nós todos ficamos em silêncio, mas este não dura muito. Siobhan fala com

Arati.

- Você e eu vamos buscar os medicamentos. Você me dá cobertura. – Ela começa a

caminhar para a saída, e Arati vai atrás dela. Rich está com os braços cruzados, obviamente

divagando em outros assuntos. Gael me olha fixamente, seus lábios estão comprimidos, seu rosto

circunspecto. – Vamos tentar evitar chamar atenção, e na hora em que estivermos próximos a uma

farmácia, eu... – Sua voz vai morrendo à medida que ela sai do quarto. Eu corro até onde está

Marvee, mas não antes de ver Richter sair correndo do quarto atrás dela.

Não me atrevo a olhar para Gael novamente.

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Meia-hora se passa e Rich não volta. O pano na testa de Marvee começa a secar, então eu

o umedeço e recoloco em sua testa. É quase como se eu pudesse ver o vapor da água evaporando

em sua testa. Ele está fervendo. Arrumo o cobertor em cima dele, enquanto espero que Richter

volte. De tempos em tempos dou alguns goles de água a ele, com muito cuidado para que ele não

engasgue.

Escuto barulhos, e imagino que Gael esteja se movimentando pela casa, mas não tenho

como ter certeza, pois não me viro para vê-lo. Estou focada em Marvee, de costas para a entrada

do quarto.

Depois de quarenta e cinco minutos, mais ou menos, desde que Siobhan e Arati saíram, eu

ouço a voz de Richter. Levanto-me em um salto e vou até ele, mas sua expressão está impassível,

o que me desencoraja a perguntar. Seus olhos transmitem sua seriedade.

- Nós meio que bolamos um plano para sua busca. Assim eles não se meterão em encrencas

com facilidade. Mesmo que Siobhan seja dura na queda. É sempre bom ter um plano ‘b’.

- Arati também é duro na queda. Sei que eles vão se sair bem – digo. – Que vão voltar

vivos.

- O problema, Ky – ele diz meu apelido com ácido na língua –, é que a viagem daqui até a

farmácia mais próxima pode levar horas, isso se eles não ficarem presos em algum lugar por conta

de guardas os perseguindo. Eles vão roubar. Não vai ser simples.

- Você diz isso tudo como se fosse culpa dela Marvee estar doente – rebate Gael, franzindo

o cenho.

- Eu não deveria estar preocupado? – ironiza Richter, sorrindo sarcasticamente.

- Isso não é desculpa para agir como um idiota – responde Gael. Eu engulo em seco. A

atmosfera está tão tensa aqui que é quase palpável. – Vamos, Ky – diz Gael, para em seguida pegar

minha mão e me levar para fora. – Vamos dar um tempo sozinho a ele.

A última imagem que vejo de Rich é seu olhar preocupado.

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Capítulo 6 – Golpe político

- Você queria conversar comigo, não é? – pergunto, quando estamos em F1. O próximo corredor

é o E, começando com o número 15. Os corredores aqui são formados em um tipo de ziguezague,

não exatamente um labirinto como eu deduzi. Há aberturas em certos pontos, atalhos para chegar

mais rápido às letras seguintes, o que explica aquele monte de viradas e curva que fazemos ao

entrar. Em E10, paramos.

Ele para. Me empurra contra uma parede e me beija. Descubro que não gosto desse tipo de

surpresa. Mesmo sendo uma boa surpresa. Os beijos são lentos, apaixonados, confirmam seu amor

por mim. Eu o beijo de volta, obviamente, e abraço sua cintura. Ele acaricia minha bochecha com

os dedos, lentamente. Essa calma toda não dura muito, porém. Seus beijos ficam urgentes,

emergentes, cada vez mais irresistíveis. Logo ele está me amassando contra seu corpo. Eu passo

os dedos por cima de sua camiseta, em seu peito, no local onde há a cicatriz que ele conseguiu

enquanto fugíamos do Shopping Mall. Ele é o mesmo Gael por quem me apaixonei naqueles dias,

mesmo que depois de tanto mudado. Seu coração bate pelos mesmos motivos, mesmo que sua

diretriz tenha mudado. Estes são os lábios pelos quais me apaixonei quando beijei pela primeira

vez, os mesmos olhos verdes que conheci em meio ao massacre e terror, que me deram esperança

e segurança. Ele ainda me ama, como disse que amava.

Eu o quero. Quero demais. Se só houvesse esse momento por toda a eternidade, eu o

escolheria. Não haveria vingança e justiça a serem cumpridas, não haveria Marvee e Arati para me

lembrar. Haveria somente nós e o agora se eu pudesse congelar o tempo. Um pigarro incomodado

disfarçado de educado interrompe-o, contudo.

Eu olho para o lugar de onde veio a voz. Se há algo que eu aprendi durante esse tempo todo

é que estar preparada para qualquer coisa é uma necessidade, não apenas uma habilidade. Desgrudo

de Gael e fico de frente para a pessoa, pronta para atacar, se necessário. Parada em posição de

ataque em frente a Kriger Rurik Yurievna, pai de Richter.

Há apenas dias descobri coisas que, imagino, não deveria saber sobre Rurik. Ele traia a

esposa, mãe de Rich, com uma mulher de nome Marysa, o que fez com que a esposa adoecesse.

Os problemas cardíacos que ela tinha em nada ajudaram. Ela faleceu tempos depois. E Richter

jamais perdoou o pai pelo que ele fez. Nem deveria, acredito. Antes eu sentia orgulho de Rurik,

por sua posição na universidade, por sua elegância e tudo o mais. Hoje, porém, sei o tipo de homem

que é, que está disposto a passar por cima do próprio filho para conseguir o que quer. Hoje em dia,

porém, ele parece estar querendo se redimir com o filho. Ou talvez apenas tenha permitido que nos

escondamos aqui em seu bunker pelo segredo que Rich guardou de sua mãe a pedido de seu pai.

Um favor por um favor.

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- Lamento ter de interromper, mas estou procurando por Richter Alvin Yurievna – diz ele.

Sua voz comedida me enoja. – Conhecem? – questiona. Tenho vontade de socar seu nariz.

- Claro que sim – respondo, sem disfarçar o veneno em meu tom. – Nem todos nos

esquecemos com facilidade da família.

Ele dá uma risada seca, sem graça.

- Claro. Onde ele está? – A impaciência é eloquente. Não está para brincadeiras.

- Você não vai até ele – informa Gael, sério. – Acha que somos tolos de deixar você saber

em qual ala nós moramos?

- Estão dizendo que não posso conversar com meu próprio filho? – interpela, furioso. Ele

parece querer avançar para cima de nós, mas somos dois. Ele não é burro.

- Ah você pode. Só não em nossa casa – diz Gael. Ele se vira para mim. – Vá buscá-lo, Ky

– pede.

Eu balanço a cabeça e saio imediatamente. Faço um caminho diferente enquanto volto, para

o caso de Rurik estar, de alguma forma, me seguindo. Não temo que Rurik machuque Gael. Ele –

Gael – evoluiu muito desde aquele garoto assustado no Shopping Center. Antes, se atacado, ele

teria aceitado a morte de frente. Hoje, ele lutará contra ela.

Quando chego ao nosso apartamento, Rich ainda parece meio aturdido. Ele olha para o

nada, sentado no sofá. Claramente preocupado. Não gosto de vê-lo assim. Mesmo assim, não tenho

tempo para consolá-lo. E isso me corta o coração. Richter pode ter sido mal-educado há pouco,

mas não é uma má pessoa e não merece estar sofrendo.

- Rich – chamo. Só então ele sai do transe.

Demoro mais para chegar a Rurik e Gael do que é necessário. Quero despistar aquele

homem. As únicas palavras que disse a Rich para que ele viesse atrás de mim foram “Seu pai...”.

Não precisei dizer mais nada. Ele veio atrás de mim sem hesitar. Deve haver algo errado. No meio

do caminho, no entanto, ele parou, e me entregou sua arma. “Em qualquer caso”, disse ele. Então,

eu empunho a pistola enquanto caminhamos de volta.

- Richter – diz Rurik, abrindo os braços para meu amigo quando nos aproximamos. Sem

pensar, aponto a arma para ele, exatamente da maneira como Rich ensinou. Ele levanta as mãos,

rendido. – Calma. Ele é meu filho. Eu não o machucaria.

- Não tenha tanta certeza – rebate Richter, sua expressão séria. – O que você quer, Rurik?

– O cansaço e o desgosto transparecem em sua voz.

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- Estava a caminho daqui e por acaso vi dois dos seus amiguinhos saltando a fronteira do

campus. Como criminosos. Você não está tramando alguma coisa, está, filho?

- Como você entrou aqui? – inquire Richter, subitamente. Agora que percebi isso, também.

A ficha acabou de cair. Como ele entrou aqui? Esse lugar só se abre por dentro! A menos...

- Não é uma fortaleza impenetrável, Richter. Você deveria saber disso – diz Rurik. Estamos

todos boquiabertos, perplexos. Ele suspira, exasperado, e prossegue. – O ladrilho de cima, na

parede esquerda, é falso. Há um painel que destrava a porta, se você souber a senha – revela. Então

continua a falar, como se o que disse não fosse nada demais. – Eu não permitiria a possibilidade

de meus prodígios ficarem presos por uma falha no mecanismo, não é? – Ele sorri de sua

sagacidade e faz uma pequena pausa. – Continuando: vi seus amiguinhos saindo de mansinho

enquanto vinha para cá ver como as coisas estavam. Se estiver tramando alguma, é melhor se

render enquanto ainda há tempo.

- Nunca! – vocifera Richter. Seus punhos estão cerrados, seu rosto feroz. Eu vejo neste

momento o homem que foi levado ao limite por aquele que devia tê-lo protegido, que ama uma

garota com toda a sua força e fará de tudo para que ela fique em segurança, que sente raiva do pai

e saudades da mãe com uma intensidade inefável. O homem que considero meu irmão, e a quem

amo também. – Não vou me render para você, jamais. Você pode atirar em mim agora mesmo,

com um míssil, e eu continuarei travando uma guerra contra você e todos que querem fazer mal a

pessoas boas. Eu te fiz um favor no passado, merda, e você está devolvendo. Agora suma da minha

vida, e não volte até que minha mãe viva de novo!

Rurik dá uma risada longa, para depois balançar a cabeça, mais desacreditando Rich do

que denegando sua ordem.

- Só quero saber quando vocês vãos embora do meu bunker – retorque, ressaltando a

palavra ‘meu’.

- Se tudo der certo, em alguns dias. Se o que eu estou planejando der errado – Rich enfatiza

a parte do ‘planejando’ –, não vamos embora. Nunca. Você destruiu a vida da minha mãe, e

destruiu minha vida. Está na hora de pagar o preço.

- Você disse ‘meus prodígios’ sobre os alunos dessa faculdade – começa Gael. – Você não

está planejando algum tipo de golpe político, está?

Rurik olha com extrema seriedade para Gael, e demora um momento para responder.

Mesmo que ele minta, sua hesitação responde a pergunta. Ele poderia fazer um discurso agora, e

até mesmo poderia matar seus alunos para provar, mas não me convenceria do contrário. Rurik

está, de alguma forma, selecionando e treinando alunos para realizar algum tipo de golpe militar.

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Talvez treinando-os para invadir o sistema governamental. Um país com apenas cem anos

provavelmente não possui um sistema de segurança e controle muito eficiente. E ele sabe disso.

- Mesmo que eu estivesse, e, devo ressaltar, não estou, por que eu contaria a vocês?

A maneira como ele responde isso é estranha. Não é como se ele estivesse apenas

desdenhando de nós, nos subestimando como desmerecedores de seus segredos.

- Quem sabe? – sugere Gael.

Desta vez, antes que Richter tenha tempo para exprimir o que ambos pensamos ao mesmo

tempo, eu falo:

- Você sabe! – sussurro, espantada. Ele olha para mim, e o claro reconhecimento atravessa

seu rosto. Não há como mentir agora. – Sabe o que estamos planejando. Sabe o que Silvia planejou

para nós. Você é amigo de Silvia. Foi assim que ela soube que nós estávamos aqui. Você contou a

ela. – Ele está circunspecto, seu rosto e expressão corporal sisudos. Não há como negar. – E se ela

tivesse contado a Brokeraven?! E se ela tivesse nos delatado?! Você ficaria bem sabendo que fez

isso com o próprio filho?! – vocifero.

- Não seja ingênua, Ky – diz Gael. – Ela estava seguindo você. Saberia que você acabou

aqui cedo ou tarde. Tudo o que ele fez foi adiantar isso.

- Foi para o bem da nação. Não importa quantas vidas terão de ser desperdiçadas até que

cada peça entre nos eixos. Tudo isso é necessário para o futuro de uma nova Aeris. País este que

será governado por homens que realmente querem o bem de seu povo.

- Tudo isso regado a matança descontrolada e seus mais secretos desejos saciados? –

questiono. – Qual o preço da evolução de uma nação? Violência? Injustiça? Vidas inocentes não

valem nada?

- Tudo o que está dizendo é bobagem, e no futuro você verá com bastante clareza. Quando

eu for vice-presidente...

- Então essa é questão! – diz Rich. – Você quer ser vice de Silvia! É o que você sempre

quis, não é, Rurik? Fazer parte da alta-roda política, poder ter tudo o que sempre quis! Não se

esqueça, Rurik, que está república é regida diretamente pelo presidente, que é o único a quem serão

atendidos todos os pedidos e a quem nada afeta. O cargo de vice-presidente nem mesmo existe!

- Não se esqueça, Rich, que o presidente pode fazer tudo. Até mesmo criar um cargo que

não existe na constituição original. Você mesmo viu isso acontecer, não viu? Quando Brokeraven

ascendeu?

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- O que isso quer dizer? – questiono. Não faz sentido. Eu sabia que o presidente é a única

pessoa dentro de Aeris que está acima das leis, porém não sei o que ele quer dizer com “quando

Brokeraven ascendeu”? Até onde eu sei, como sabia tantos meses atrás, ele deixou de lado os

escrúpulos e o caráter para ascender, mas imaginei que isso significasse que ele destronou o antigo

presidente. Como ele fez isso, porém?

- Você sabe como uma pessoa é “eleita” neste país, senhorita Freya? – pergunta. Por algum

motivo, meu coração acelera. Eu balanço a cabeça. Ele sorri.

“Já parou para pensar por que o atual presidente sempre está tão rodeado por guarda-costas,

mesmo na segurança de sua casa? Ou talvez se perguntar por que o tempo de mandato dos

presidentes dura tanto tempo sem uma eleição que o eleja novamente? ou ainda como foi que

Abraham Brokeraven conseguiu alcançar o poder? A resposta é clara, senhorita Freya, e a senhorita

foi apenas burra de não enxergar antes.

“Para que um presidente saia do poder, para que outro seja eleito, é necessário que o atual

presidente seja morto. Foi assim que Abraham conseguiu se tornar presidente. Ele assassinou o

antigo presidente. Ele abandonou seus escrúpulos por todos os benefícios que o cargo trás.”

“É isso que você terá de fazer, Kaya. Matar o atual presidente, para que então possa adquirir

seu poder. E é assim que nós assumiremos o poder.”

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Capítulo 7 – Palavras que ferem

Muito depois de Rurik ir embora, ainda estamos notavelmente embasbacados com as informações

que nos foram reveladas. É por aquele motivo que Silvia precisa de mim. Brokeraven saberia

imediatamente que ela tentará matá-lo à simples menção dela. Contudo, se for eu a pessoa a fazer

isso, disfarçada de menina derrotada, ele baixará a guarda. Eu serei a próxima presidenta, se

sobreviver. Por um momento, me permito ter esperança.

Voltamos para o apartamento F6, onde encontro Marvee gemendo. Voo até ele,

imediatamente mergulhando o pano – agora seco – novamente em água fria e colocando-o de volta

em sua testa, em seguida ajudando-o a beber um bocado de água. Em meio aos beijos de Gael e a

discussão com Rurik, acabamos por nos esquecer que Marvee está doente e precisa de nossa

atenção.

Gael e Rich vão, respectivamente, para a cozinha e para a sala de estar. Também

respectivamente, começam a preparar o jantar e organizar roupas deixadas de lado e livros

largados. Com Siobhan longe daqui e eu transtornada demais para fazer isso, os dois tomam

iniciativa. Somente ouço sons porfiados no cômodo à frente.

Em certo ponto, depois de molhar o pano em sua testa mais algumas vezes, beijo-a

suavemente. Sinto o calor de sua pele em meus lábios, assim como as gotas de suor porejando sem

parar. Constantemente ele balbucia coisas sem sentido, então simplesmente ignoro boa parte do

que ele fala, enquanto me concentro em minha situação atual.

Se Rurik estiver correto, eu serei a próxima presidenta assim que Brokeraven estiver morto

– isto é, presumindo que ele aquele quem vai me dar o tiro final, e com alguma sorte ele esteja

próximo o suficiente para que eu contra-ataque. Há diversos problemas com esse plano, múltiplas

possibilidades de ele dar errado, incontáveis variáveis que podem atrapalhar ou ajudar.

Considerando esses fatores, assomados à minha incapacidade de atirar em alguém, chego à

conclusão de que as chances não estão favoráveis para mim. Como eu havia dito, a probabilidade

de que eu morra tentando é enorme. Isso deveria me assustar, como fez há dois dias, mas hoje

apenas me deixa inquieta. Eu ainda encararia a morte de frente, mas não com tanta destreza desta

vez. Eu agora sei que meus amigos, minha nova família, está viva, que estão todos bem – no limite

do possível. Isso torna minha tarefa um sacrifício maior que antes. Será que eu ainda serei capaz

de morrer pelo bem deles? Sou assim tão egoísta?

E o que virá a seguir? Digamos que eu consiga – por intervenção divina – matar Brokeraven

e me torne presidenta. Se o que Rurik disse é verdade, a única maneira de Silvia se tornar presidente

é me matando diretamente. Isso dobra as chances de eu morrer. Talvez triplique. Mesmo sendo a

nova líder do país, não terei ao meu lado peças importantes do comando, tais como o apoio público,

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militar e até mesmo político. Pior ainda: há a possibilidade de Silvia ser um ditadora ainda pior

que Brokeraven. Deve haver algo que eu possa fazer para impedir que isso aconteça, mas nenhuma

ideia me ocorre de imediato.

Eu começo a ficar enjoada, e levanto-me para ir tomar um ar – do lado de fora do bunker

–, quando ouço a voz de Marvee. Eu me viro imediatamente para ele, esperando vê-lo de olhos

abertos, milagrosamente melhorando, mas o que ouço faz meu coração se partir:

- Ky... – murmura. Obviamente não tem força para dizer várias coisas que de uma vez. –

Não me ama... – continua. Meu queixo cai imediatamente. Meu peito afunda. – Só me... enrola...

Não consigo conter as lágrimas. Elas vem, e eu as deixo vir. Sem querer chorar na frente

dele, nem na frente de Gael e Richter, eu corro para fora. Escancaro a porta, sem me importar com

o chamado aflito de Rich.

Cegamente eu corro pelos corredores, enquanto uma pequena parte do meu cérebro me

guia pelo caminho até a saída. É uma parte pequena, pois todas as outras foram inundadas pela dor

e amargura. Ele me odeia. Acha que eu estou enrolando-o. Ele pode estar doente, mas alguma parte

de sua mente pensa isso, e num arroubo de consciência ela liberou a informação. É isso o que estou

fazendo com estes três garotos. Estou enrolando cada um deles, protelando e brincando com seus

corações. Se Arati não percebeu isso ainda, é por ser ingênuo com relação ao mundo fora da tribo.

Mas não demorará muito para se dar conta de que eu não o escolho por completo em momento

algum.

Aquilo destroçou meu coração pelo fato de ser verdade. E são estas verdades que me fazem

soluçar. Abro a porta ainda ás cegas, e continuo correndo corredor acima, para depois abrir

desajeitadamente a porta para entrar nesta construção. Quase não consigo respirar de tão intensas

que são as lágrimas. Continuo correndo quando estou do lado de fora, mas não preciso me

preocupar com a súbita forte luz, pois não consigo ver nada. Continuo correndo, chorando e

lamentando. É incrível pensar que eu permaneço em pé.

Comemorei cedo demais. Eu tropeço e caio na grama, nem ao menos sei onde. Ralo meu

joelho, mas não sinto dor física. Continuo chorando, deitada, enfraquecida. Sei que deve haver

estudantes por perto, mas não consigo ouvir murmúrios, nem vozes estridentes, nem qualquer coisa

que não minha respiração acelerada e entrecortada. Meus joelhos ardem. Tenho certeza de que não

apenas os arranhei. Meus cotovelos também doem, assim como as palmas de minhas mãos. É

inacreditável que eu tenha me ferido tanto apenas caindo na grama.

Pouco tempo se passa até que braços me aninham. Apenas pela maneira como me abraçam,

sei que são os de Gael. Ele me puxa para ele, mas eu me recuso a ir, me recuso a permitir que seja

gentil comigo. O que Marvee disse é verdade, eu estou delongando o sofrimento deles pospondo

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minha escolha. Talvez eu nem mesmo ame algum deles. Meu peito arde. Eu me recuso a abrir os

olhos, mesmo quando Gael me iça para cima de suas pernas e me aperta contra sua barriga na

tentativa de me tranquilizar.

Muito tempo se passa até que eu pare de chorar. Este é o pior tipo de dor que alguém pode

sentir: dor emocional. É fria, solitária e insistente. Quando se pensa que está indo embora, uma

nova onda começa. Mas, por fim, as lágrimas cessam completamente. Demoro muito até conseguir

abrir completamente os olhos. Estão inchados e doloridos. Ouço uma risada de Gael, pequena e

tímida, então ele passa um pano molhado em meus olhos. Isso ajuda a abri-lo com mais facilidade.

Eu vejo seu belo rosto assim que consigo me livrar do inchaço o suficiente. A luz do sol é

ofuscante.

- Hei... – diz ele, baixinho. Eu dou um pequeno sorriso, ainda sentindo pesar. – O que

houve? – pergunta.

Eu sinto as lágrimas retornando, um bolo novamente se formando em minha garganta.

Troco de assunto para não continuar chorando.

- Por que você trouxe água? – pergunto, brincando com ele. Ele dá uma risadinha.

- Eu vi você sair chorando. Sabia que seus olhos iam ficar inchados. Queria te ajudar.

Eu faço um sinal para ele com o dedos, aproximo-o de mim. Beijo-o, mesmo sabendo que

é errado.

- Você ouviu o que Marvee disse? – questiono. Ele desvia o olhar e balança a cabeça em

aquiescência. O bolo em minha garganta aumenta. – E você não pensa o mesmo? – Minha voz

vacila durante toda a frase.

- Claro que não – responde ele, de modo gentil, acariciando o topo de minha cabeça. – Eu

sei que você ama nós três, Ky. Não está nos enrolando porque é sádica ou gosta de ver pessoas aos

seus pés. Acredito que você está confusa. Eu também ficaria assim na sua posição. Imagina que

louco seria ter três garotas entre as quais escolher – diz, empurrando meu braço com o cotovelo.

Nós dois damos uma risada. Isso ameniza um pouquinho as coisas. – Além disso, você tem de se

lembrar, Ky, de que ele está doente. Lembra do que Siobhan disse, que ele está sofrendo

alucinações? Se você realmente o ama, então deveria ignorar isso. Deveria apoiá-lo.

Principalmente neste momento, quando ele mais precisa.

- Como Gael? Como amar se eu tenho tanto medo de me machucar ou machucar aqueles

que amo? Quer dizer, como você acha que eu me sentiria sabendo que preteri dois de vocês pelo

outro? Como você acha que eu me sentiria por Marvee e Arati se escolhesse você?

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- Sei que deve ser difícil. Mas nós três te amamos, Ky. Realmente amamos. Bem, pelo

menos eu amo. – Eu lhe dou um meio-sorriso em resposta ao seu sorriso. – E os outros dois vão

entender. Quando você escolher, vai ser feliz. A dor vai passar. Os outros dois vão encontrar seus

pares. Um de nós será sortudo e terá você. Fim da história.

- Não é uma questão de sorte.

- Não, realmente não é. – Ele faz uma pausa e respira fundo. Então olha para o horizonte.

– Se você soubesse o quanto eu te amo, Ky... Tenho certeza de que me escolheria.

- Nunca se sabe – digo, e me levanto para ficar na altura de seus olhos. Ainda estou sentada

em seu colo. Eu o beijo uma vez. – Você também não sabe como eu te amo, Gael... Te amo muito.

Só... Não estou pronta para escolher ainda. Há tanta coisa em minha cabeça... Eu nem sei por onde

começar.

- Então não comece. – Ele me beija. – Só deixe rolar.

- Não dá... – Eu suspiro fundo. – Preciso de um plano. Preciso saber o que fazer. Só... – Eu

paro de falar, perdida. Em pensamentos. Em mim mesma.

Ele se aproxima uma outra vez e me beija, da mesma forma como começou lá atrás há

menos de três horas. Primeiro ternamente, devagar, depois com ferocidade e fome. Ele me deita

na grama e me beija com veemência. Eu permito que ele me beije. Eu sei o que virá a seguir, e

amo isso. As atitudes de Gael são assim, outrossim como em nossa relação. Seguras e prováveis,

mas não desprovidas de ardência.

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Capítulo 8 – Crescente preocupação

Não voltamos para dentro tão cedo, mas quando voltamos, descobrimos que ficar lá fora tanto

tempo foi uma péssima decisão. Richter já estava preocupado antes, e agora que eu posso vê-lo

com meus próprios olhos, descubro que ele está ainda pior. Ele olha para o nada enquanto

repetidamente encosta um pano na testa lívida de Marvee. Ele parece alheio ao que está fazendo.

Eu imediatamente corro para ele e, com delicadeza, tiro o tecido seco de suas mãos e molho

uma outra vez na água morna dentro do balde ao lado da cama. Ele olha para mim e sorri

agradecido, e depois se levanta e vai se sentar no sofá, ainda perdido em seus pensamentos. Torço

o pedaço de tecido em minhas mãos com força, e então coloco-o na testa de Marvee. Ainda sinto

certo ressentimento pelo que ele disse, mas tento ser racional. Ele está doente, dizendo bobagem

após outra. Não há como culpá-lo por isso. Só posso esperar que Siobhan volte logo.

Depois de deixar um pano molhado sobre a testa dele e garantir que ficará fresco o

suficiente até que eu conclua, caminho de volta à cozinha, onde Gael improvisa o jantar. Ele faz

algo que parecem kebabs, enrolando pedaços cozidos de carne em algo que julgo serem tortilhas.

Pergunto se ele quer ajuda, mas ele responde que tem tudo sob controle. Assim sendo, encontro

uma vassoura no banheiro e começo a varrer a sujeira inexistente. Não há muito o que fazer por

aqui – inacreditavelmente, seis pessoas em um lugar pequeno fazem pouquíssima bagunça com

que se preocupar.

É estranho. Estamos nos refugiando neste bunker há bem menos que uma semana, mas já

me sinto completamente acostumada à rotina nele. Não consigo, entretanto, pensar em mais nada

do que isso enquanto trabalho. É como se minha mente estivesse travada como uma maneira de

autodefesa. Falta tão pouco tempo agora para que eu tenha de investir contra Abraham que é quase

uma dor física. É somente o terceiro dia até o fim do prazo de hiato, mas parece que faz uma

eternidade desde que tivemos aquela conversa com Silvia. Eu realmente queria que uma eternidade

transpusesse nosso encontro. Melhor ainda, queria que aquele encontro jamais houvesse ocorrido.

Se houvesse uma maneira de voltar no tempo, eu voltaria. Se houvesse uma maneira de proteger

todos aqueles que amo de todos os males, eu assim faria. Mas não posso. E isso me deixa aflita.

O dia se arrasta morosamente, mas finalmente chega ao fim. Durante todo ele, tento fazer

com que Marvee coma algo, mas tudo que acaba em seu estômago volta. Ele está demasiadamente

debilitado para aguentar algo mais forte que um copo d’água. Sua febre recrudesce, o que é

preocupante, mas não há muito que eu tenha podido fazer além de tentar abaixá-la com os poucos

recursos que tinha. Gael, Rich e eu fizemos uma tentativa de levá-lo ao banheiro, para banhá-lo

com água morna, mas ele se debateu muito por conta das alucinações, voltando a se aquietar apenas

quando deitamo-lo novamente. Meu coração se apertou de preocupação, mas, no fundo, também

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relaxou de alívio: ele disse muita coisa nesse meio tempo, insultou Rich e Gael também, disse

coisas que me machucariam profundamente se ele estivesse são. Isso prova que ele não me odeia.

Ele apenas está muito doente.

Esse pequeno momento de alívio, porém, não dura muito. Depois de colocarmos ele de

volta na cama, tentamos dar seguimento ao dia, mas era impossível. Nenhum de nós conseguiu

dormir. Há preocupações demais neste momento para pensarmos em relaxar. O clima ficou tão

tenso certo ponto que nós nem mesmo conversávamos entre nós.

Eu sei que é de madrugada pelo cansaço em meu corpo. Mais ou menos nesse ponto do dia,

se ainda estou acordada após meu horário máximo de estar dormindo, meu corpo começa a ficar

dolorido, como se eu houvesse corrido quilômetro em minutos. A tensão estala ao nosso redor, e

eu me levanto da cadeira de jantar e caminho até Marvee. Durante a noite passada, pedi ajuda de

Gael e Rich para tirar sua camiseta. Coloquei compressas de água em seu pescoço e dorso. Lembro

de ter lido em algum lugar que isso ajuda a diminuir a febre. Então, no momento atual, molho

novamente os pedaços de tecido e coloco-os sobre seu corpo novamente.

Só paro de cuidar de Marvee quando escuto a voz de Richter. Quando me viro para ele,

vejo-o parado na porta de saída, com sua sacola carregada de armas no ombro. Ele faz um

movimento com a cabeça, ordenando que eu o siga. Neste momento, qualquer distração é bem-

vinda, por isso eu vou com ele, e peço educadamente a Gael que cuide de Marvee enquanto

estivermos fora. Antes de sairmos, Rich informa a Gael o quarto onde estaremos: F14. De acordo

com suas instruções, ele deve nos procurar em caso de qualquer novidade ou emergência, mas não

deve vir em exceção. Me pergunto o porquê desse pedido.

Quando em F14, Richter me conduz para dentro do apartamento idêntico ao onde moramos

e fecha a porta atrás de nós. Os móveis que haviam sido afastados previamente, da última sessão

de treinamento, continuam onde foram largados. Em vou para o meio do cômodo e espero Rich

terminar de fazer seus preparativos.

Ele pega uma pistola, parecida com aquela que me pediu para carregar sempre – da qual eu

tenho esquecido constantemente – e carrega-a com um novo pente. Ele atira uma bala de festim

mirando longe de nós, o que causa um retinido em meus ouvidos. Eu observo-o, com detida

atenção, montar a arma de fogo com perícia. Então ele estende a arma a mim.

Na parede à nossa frente, ele então desenha – com corretivo escolar liquido tirado de dentro

da mochila militar – três pequenos pontos brancos. Um é na altura de seu cérebro, o outro, na altura

de seus olhos, e o terceiro, na altura de seu peito. Sei o que significam antes que ele precise me

dizer.

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Ele se posiciona atrás de mim e levanta meus braços, me mostrando como segurar a arma

para aguentar o coice do recuo, à maneira como ensinou os garotos a mirar.

- Atire em um dos três pontos – pede. Sua voz é firme, e pouco do antigo Richter aparece.

Este homem me pedindo para atirar na parede é bruto e insensível. – Mire e atire, da maneira como

eu ensinei a Gael, Marvee e Arati.

- Ok... – digo, sem querer contrariá-lo, para depois respirar fundo.

Eu miro como ele pediu. Aponto a arma, tendo em vista o ponto mais baixo, e tento puxar

o gatilho. Mas não consigo. É como se meu dedo estivesse congelado ou o gatilho estivesse

travado. “Aquele em sua frente é Brokeraven, Kaya. É o homem que tirou a vida das pessoas que

mais amou. Atira nele”, sussurra Richter ao meu ouvido. Suas palavras me deixam nervosa. Minha

respiração fica rasa e rápida, e eu engulo em seco. “Anda logo, o que está esperando?”, provoca.

Meu coração acelera cada momento mais. Eu não estou gostando desde jogo.

- Não dá... – digo após tentar forçar meu dedo a puxar o gatilho. Não consigo atirar, nem

mesmo contra uma parede nua. É impressão minha ou há algum tipo de pressão em meus ouvidos?

Isso seria síndrome do pânico?

- Atire logo, ou ele vai matar Marvee, Gael e Arati. Anda logo! – Não consigo de forma

alguma. Mentalmente eu puxo, mas na real não posso. Não consigo matar alguém, não é de mim.

– Você não se importa, não é?

A pergunta vem como uma punhalada em meu peito. É claro que me importo, tento dizer,

mas as palavras não saem. Há areia em minha garganta. Não há como demonstrar que eu os amo,

a todos, se não atirar, especialmente em Brokeraven, se tudo der certo. Mas não há condição para

que eu faça isso. Não é natural tirar vidas, eu não sou como ele, como aquele monstro que matou

Victor. Nesse momento, lembro-me de ter atirado uma adaga no peito daquele homem que

arrancou o braço dele. Eu nem ao menos hesitei. Por que hesitaria, então, em matar aquele que

deseja ver todos aqueles que amo mortos? Se eu não mato, então como consegui matar aquele

homem há tanto tempo? A situação é virtualmente igual, lá atrás e agora, e será a mesma quando

eu tiver de destruir o presidente. Então por que não consigo atirar?

- Fraca. É isso o que você é. Fraca. Não merece estar viva.

Essas palavras me atingem como um tiro na nuca. Isso dói demais! Como ele ousa? Essas

são palavras que jamais esperei ouvir, principalmente de um amigo. Eu não sou fraca! Eu sobrevivi

até aqui, lutei pela minha vida e pela de Gael, assim como ele. Isso por si só nos torna muito mais

fortes que Richter ou Marvee. E eu ganhei o direito de permanecer viva! Ganhei lá atrás, ainda

dentro do Shopping Mall. Uma fúria repentina se apodera de mim, juntamente com o mar de

agonia. Ouço outra voz no lugar da de Richter quando ele fala, uma voz ardilosa e amplificada por

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alto falantes. Brokeraven. Minha visão fica turva de lágrimas, e eu pisco para as conter. Estou

chorando de raiva.

- Eu tenho o poder. Eu decido quem vive e quem morre. Você não é nada além de uma

peça no meu jogo. Você não é páreo para mim.

- Para – peço, mas Richter me ignora.

- Você não vai sair viva dessa, principalmente se tentar me matar, porque você é fraca.

Victor era fraco. Você e todos os seus amigos são miseráveis e ineptos, reles carcaças em estado

de putrefação. Você devia ter morrido no meu jogo, devia ter sucumbido com seu amiguinho.

- Para. – Duas lágrimas escorrem, e eu não me curvo. Continuo rígida, apontando para a

parede. Em algum lugar ouço meu nome ser chamado, mas não atendo.

- Eu vou matar vocês um a um, mas primeiro vou pegar sua família e seus amigos, e vou

torturá-los lentamente, até que você implore para que eu os mate. Nesse ponto, eu vou te torturar

eu mesmo, até que você enlouqueça completamente, enquanto esfolo a pele de Gael Mitchel

centímetro por centímetro até que ele fique em carne viva.

- Para!

- Você não tem coragem, Kaya Freya, não tem coragem de me enfrentar! Vá em frente,

tente. A única coisa que vai conseguir é destruir você mesma e a todos aquele que você ama. Tudo

isso é culpa sua, tudo isso é culpa sua!

- PARA!

Eu atiro uma, duas, três vezes, e continuo atirando contra a parede à minha frente às cegas,

enquanto lágrimas escorrem desenfreadamente por meu rosto. Penso ouvir meu nome sendo

chamado uma outra vez em algum lugar, mas é como se eu estivesse debaixo d’água, e o som

saísse abafado.

- Não é culpa minha, não é culpa minha! – repito, chorando, enquanto descarrego o pente

às cegas. Eu soluço alto, e não paro de puxar o gatilho mesmo quando escuto o clique oco que

indica que a arma está sem balas. Eu continuo puxando o gatilho durante um tempo, sem saber por

que estou fazendo isso. Acabou.

Extenuada, eu desabo e sou amparada por Richter. Ele acaricia o topo de minha cabeça, e

eu me permito ser aninhada em seus braços. Ele me sobraça e deixa que eu encharque sua camiseta

com minhas lágrimas. Não consigo parar de soluçar e tremer. Soltei a arma há tempos, e por isso

abraço Richter com os dois braços. Ele me segura com força, como se eu fosse me despedaçar caso

ele me solte. De certa forma, realmente vou.

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Em minha mente se passam todos os tipos de cena. Lembranças felizes, lembranças

românticas e lembranças tristes, mas principalmente lembranças aterrorizantes. Victor volta à

minha mente, e seu pedido quando, há tanto tempo atrás, sorria em meu sonho me assombra.

“Sobreviva”, pediu. Até agora tenho sido bem sucedida, mas e no futuro? E me lembro de Gael

dizendo que também me amava quando disse a ele que achava que o amava pela primeira vez.

Lembro de todo o terror ao qual fomos submetidos, e o primeiro lobo metálico contra o qual lutei,

ainda mais atrás. Meu coração se aperta. Todas as vezes, desde que esse pesadelo do qual não

consigo acordar começou, eu jogo minhas esperanças para o alto, esperando que elas alcem voo,

mas ela caem toda vez. E isso dói. Eu fui esfolada e machucada e derrotada e arrastada e forçada

a ser forte mais de uma vez, e desta vez não está sendo diferente. Agora estou sendo novamente

forçada a ser uma rocha, para que as pessoas ao meu redor possam então respirar aliviadas. Estou

pronta para isso, no fundo eu sei, para ser essa guerreira, mas não quero carregar a imagem do

homem que destruiu meu mundo morto por minhas mãos. É tudo muito complexo, e não quero

mais chorar por isso. Contudo, não posso deixar de me desesperar.

- Por que você disse aquelas coisas, Rich? – pergunto, ouvindo minha própria voz lânguida

quando as lágrimas já não são mais prementes.

- Que coisas, Ky? – devolve, sua voz sensível; o velho Richter fala comigo.

- Aquelas coisas! – Minha voz sai falhada devido ao asco que sinto ao me lembrar do que

ele disse. – Por que imitou a voz de Brokeraven? – pergunto, mesmo tendo achado improvável.

Aquela não era uma simples imitação. Estava mais para algo saído direto de um filme de terror.

- Ky, olha para mim – pede, gentilmente conduzindo meu rosto com as pontas de seus

dedos. Eu olho fundo em seus olhos. – Eu não falei nada do que quer que você tenha ouvido. Eu

fiquei te chamando, tentando te trazer de volta à realidade, porque você parecia estar tendo uma

alucinação.

- O quê? – sussurro. É impossível que ele não tenha dito nada. Contrariada, resumo para

ele o que eu ouvi durante minha suposta alucinação, e seu rosto muda para uma careta a cada

palavra que digo.

- Eu não teria coragem de dizer isso! – diz, parecendo enojado e aterrorizado com a ideia.

– Eu tentei te encorajar a lutar, mas jamais diria algo do gênero.

- Então quem... – Não consigo continuar. Não há ninguém aqui, e não fui eu ou Richter

quem estava falando ao meu ouvido.

- De um ponto de vista psicológico, isso é explicável, acredito – começa. Parece falar mais

consigo mesmo que comigo – Não é incomum que vítimas de episódios traumáticos desenvolvam

algum tipo de distúrbio, com seu perdão. No seu caso, seu transtorno, causado por todo o estresse

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a que está sendo submetida desde que entrou no Shopping Center com seu amigo naquele dia, veio

em forma destas vozes que você ouviu, isso se não acompanhado de pesadelos. Não deve ser raro

você acordar com os músculos tensos, não é?

Balanço a cabeça, ainda com o coração partido e os músculos retesados. Desde quando

Richter é psiquiatra?

- Desculpe por isso. É que eu ficava perto demais das salas de interrogatório e

constantemente tinha de consolar vítimas, sabe? Então é instintivo fazer essas constatações. – Ele

me dá um sorriso tristonho. – Não queria ter de fazer você passar por isso. Mas eu não vou poder

estar lá com você quando precisar atirar, daqui a três dias. E mesmo se estiver, não vou poder

puxar o gatilho por você. Não teria tempo. Ele ia me matar antes que eu tivesse chance de chegar

perto. – Ele faz uma pausa, preparando-se para expor uma ideia ainda não discutida. Eu me

preparo. – Estivesse pensando... Podia ser Gael, no seu lugar, não acha?

- Não vamos colocar Gael nisso – exclamo. Por mais que eu dolorida com o que aconteceu

há momentos, meu espirito protetor é mais forte que o covarde. – Nem vamos discutir essa

possibilidade. Gael está morto para Brokeraven, para sua própria proteção.

- Foi só uma sugestão... – tenta ele dizer, mas eu o interrompo.

- Não sugira isso. E ele não pode saber, mas quando chegar o momento, ele não vai

conosco. Se algo der errado, não quero que ele esteja por perto.

- E como você espera que ele vá se sentir com isso, Ky? – questiona ele. – Ele não vai

simplesmente aceitar que você morreu por ele.

- Eu prefiro que ele sofra com minha morte que morra comigo. Eu tomei essa decisão.

- E ele não tem esse direito?

Eu seco uma lágrima que já estava para escorrer com o dedo indicador e olho com seriedade

para Rich.

- Eu escolhi esse caminho. Tudo ao meu redor é consequência. Eu amo você, amo Siobhan,

amo Marvee, Gael e Arati, assim como amava Victor, e não vou permitir que qualquer um coloque

suas vidas em risco. Eu escolhi. Não me importam as consequências, contanto que você estejam a

salvo.

- Foi por isso que chorou, então? – provoca.

Eu inspiro fundo. O choro ainda está preso em minha garganta. – Chorei porque não quero

ir embora desse mundo, Richter. Chorei porque não quero sentir saudades. Porque não quero que

você sintam saudades. Porque eu estou cansada de mortes.

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Eu entrego a arma a ele enquanto seco as lágrimas, obstinada. Richter pode não ter falado

aquelas coisas horríveis para mim, e eu até mesmo posso estar ouvindo vozes e estar tendo

pesadelos, mas isso não o dá o direito de questionar minhas decisões. Isso tudo começou por minha

causa. E vai terminar por minhas mãos. Eu escolhi isso.

- Ei – chama, antes que eu possa sair. Eu olho para ele com os olhos inchados. – Pelo menos

você acertou o alvo.

Ao olhar para a parede, vejo a verdade. De treze tiros, dois deles se aproximaram bastante

dos pontos brancos desenhados por Richter. Um deles, porém acertou o ponto mais baixo, que

representa o coração, bem no meio. Isso reforça um pensamento que tive há dias. Estaria eu

realmente destinada a derrubar Brokeraven?

Volto para nosso apartamento antes de Richter. Ainda estou ligeiramente abalada com ele, mas

tenho certeza de que não vou ficar assim por muito tempo. Nada do que houve é culpa dele; pelo

contrário, ele apenas tentou me ajudar. Não consigo, contido, apenas fingir que não temi que ele

houvesse dito aquelas coisas.

Gael está cuidando de Marvee com a mesma atenção que eu dei a ele enquanto estava

encarregada disso, então permito que ele continue. Não que eu não queira mais cuidar de Marvee.

Apenas preciso de uma pausa de tudo, e agora.

Sem dizer uma palavra, me enfio sob os cobertores em minha cama – ou pelo menos acho

que é minha cama, são todas iguais – e adormeço quase imediatamente. Como estou realmente

muito cansada, acabo sem sonhar. E para piorar, o pouco tempo de sono que consigo dispor não

me descansa, física ou mentalmente.

É o meio da noite, e as luzes estão todas apagadas, excetuando um abajur precariamente

colocado sobre um criado-mudo que ilumina o rosto lívido e doentio de Marvee. Richter sucumbiu

ao sono assim como Gael. Ambos parecem ter estado montando guarda sobre Marvee; ambos estão

em posições estranhas, como se estivessem conversando sentados sobre as camas mais próximas

e de repente, puf!

Não é isso o que me preocupa, todavia. É a visão que tenho de Marvee. Se Siobhan e Arati

não voltarem logo, seu corpo vai sucumbir à bactéria. E em breve, pelo que posso ver. Está tão

pálido que parece um fantasma. E agora treme com intensidade.

Eu tiro o cobertor de minha cama e coloco delicadamente sobre a ele. Encharco mais uma

vez o pano com água e faço uma nova tentativa de fazê-lo comer algo. Tento dar a finos pedaços

de maçã – tão finos que se partem como purê antes que eu possa concluir, e preciso fazer várias

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tentativas antes de conseguir um pedaço aceitável –, mas ele os vomita imediatamente, então volto

a fazê-lo ingerir água.

Quando termino, percebo o suor que cobre meu corpo. Suor que secou e agora está

desgrudando em camadas. É nojento. Por isso, vou tomar banho. Porém, quando termino, percebo

que não trouxe roupas, e está ficando frio. Sem querer me arriscar a ficar doente – meu corpo está

se acostumando à comodidade, e isso está enfraquecendo meu sistema imunológico –, procuro

alguma roupa dentro do banheiro. Tudo o que encontro é um agasalho de moletom de Gael – deve

ser de Marvee, mas vi Gael usando outro dia –, e então visto-o sobre a roupa íntima. Vou o mais

rápido possível até a mala de roupas de Siobhan e pego calças. Mas não tenho coragem de tirar o

agasalho de Gael. Seu cheiro me acompanha enquanto visto-o.

E é depois de me vestir que ocorre uma explosão que me faz ficar em pé em um pulo e me

preparar para o combate. Coloco os punhos em frente ao rosto e abaixo os cotovelos enquanto me

viro em direção à porta, que explode para dentro do cômodo. Demoro tempo demais para perceber

certos detalhes antes de atacar a figura que entra afobada: primeiro, não percebo que a porta se

abre voluntariamente – ninguém a chuta ou a arrebenta para dentro; segundo, a figura não entra

correndo, e sim dando passadas apressadas para dentro da sala, com pressa; terceiro, o nariz que

acerto é macio e conhecido – Arati.

Quando vejo o garoto ir ao chão com a força da pancada, me arrependo imediatamente.

Meu pulso lateja quando eu me abaixo para acudi-lo. Meu coração acelera. Ele está aqui, está aqui!

Finalmente! Isso quer dizer que Marvee tem uma chance de sobreviver!

- Arati, foi mal, foi mal, desculpa! – grito, tentando levantá-lo, mas ele está sem equilíbrio

e eu não ajudo em nada. Ele me leva junto ao chão quando eu tento colocá-lo em pé. Eu mesma

não conhecia essa minha força. Ouço um tropel vindo do quarto, e em um momento Rich e Gael

estão ao meu lado, também prontos para atacar. A expressão de Gael poderia ser hilária se a

situação toda não fosse alarmante.

- Licença, Ky! – pede Richter com urgência, então se abaixa para examinar Arati, que ainda

se contorce com a mão no nariz, seu cabelo castanho uma bagunça de mechas. Não há como não

me sentir culpada. Mas a culpa é dele! Rich tenta fazê-lo soltar o nariz, mas Arati o impede,

empurrando-o ás cegas para longe, choramingando baixinho. Acredito que viver durante toda a

sua existência na floresta não tenha-o ensinado sobre como reagir a um nariz quebrado.

Depois de momentos agonizantes, Arati para de se debater e repelir Richter. Quando tira a

mão do nariz posso ver a extensão de dano causada pelo soco. Não sei dizer se quebrou, mas é

normal o nariz de alguém ficar um pouco deformado para a esquerda depois de levar um soco?

Rich examina o órgão com delicadeza, tocando suavemente, mas por sua expressão confusa,

aposto que não tem certeza se está ou não quebrado.

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- Acho que não quebrou, mas vamos ter certeza quando Siobhan chegar – informa, tocando

o ombro de Arati e instruindo-o a manter o dedo pressionando a narina contra o septo para estancar

o sangramento. Caramba, tem um rio de sangue fluindo daquele troço! Gael não perde tempo e vai

buscar alguma coisa no banheiro – provavelmente uma roupa suja para limpar o oceano vermelho

–, e eu vou até a geladeira buscar cubos de gelo.

Entrego a Arati uma camiseta de Marvee recheada de gelo, e peço que ele coloque no nariz

quando o epistaxe finalmente para. Tento ajudá-lo a limpar a sujeira, mas ele está arredio e não me

permite. Em compensação, quando Richter tenta ajudá-lo, ele não se interpõe. Percebo que Gael

não é lá muito fã de Arati, o que é estranho e compreensível equitativamente. É estranho porque

ele geralmente é bem educado, e é compreensível porque ele também era assim com Marvee no

começo.

Depois de um tempo – no qual Gael e eu apenas observamos embasbacados –, Arati parece

melhor, mesmo que fisicamente – tá, provavelmente também psicologicamente – abalado. É neste

momento que eu percebo as finas alças da mochila em seus ombros.

Ele tira a sacola com urgência quando me vê olhando para elas, como se houvesse acabado

de se lembrar que estava correndo, de que estava com pressa. O susto de ser atacado parece ter

passado, mas obviamente não o medo. Abre-a e tira de dentro três caixas de remédios, grandes o

suficiente para me assustar. Ele me entrega, o que me deixa ainda mais apavorada. Eu terei de

administrar os medicamentos a Marvee? Isso não é função de Siobhan, sendo que é ela a

médica/enfermeira?

- Siobhan deixou as instruções – diz ele perante o pavor em meus olhos. Eu fico

ligeiramente mais aliviada, e imediatamente parto em direção à Marvee.

As instruções que Siobhan deixou são ligeiramente confusas e extensas, então preciso ler

mais de uma vez antes que compreender tudo. Mas no fim consigo. Pego as quantidades certas de

cada medicamento e forço Marvee a ingerir. Ele não fica muito feliz, mas sei que vai se recuperar

e isso é tudo o que importa. Agora vai se recuperar. Olho o relógio na parede. Está escuro e que

quase não vejo nada, mas presumo ser duas da manhã pela posição dos ponteiros. Preciso dar essa

mesma dose para ele de novo em algumas horas e...

Espere! Agora que eu parei para pensar, por que Siobhan deixaria instruções para mim?

Ela mesma poderia dar os medicamentos a ele, a menos que ela vá demorar mais para chegar do

que Arati. Mas por que ela demoraria, se os dois saíram juntos? Pensando agora, por que ela ainda

não chegou? Eles saíram juntos!

Richter parece perceber isso antes de mim.

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- Mas por que ela deixaria instruções para Ky medicar Marvee? – questiona. Arati desvia

o olhar momentaneamente. Eu sei o que isso quer dizer. Rich olha para ele com incredulidade.

Está realmente achando difícil acreditar. Eu vejo Arati engolir seco. – Arati? – começa ele devagar.

– On-onde está Siobhan?

- Ela está viva, se é o que quer saber. – É incrível que em apenas alguns dias Arati tenha se

acostumado tão bem ao nosso idioma. Ele está até sendo vago! Vejo Rich relaxar um pouquinho

imediatamente, mas a tensão não vai embora. Ele apenas está aliviado em saber que ela não

morreu, como temia.

- Eu fico feliz em saber disso, Arati, mas não foi o que eu perguntei. Eu quero saber onde

está Siobhan – diz ele pausadamente. Uma nova vez Arati hesita durante segundos.

- Foi falar com ele – responde conclusivamente, sendo vago de novo.

- Com ele quem?! – insiste Richter entredentes, visivelmente perdendo a paciência.

- Brokeraven! – vocifera Arati, exasperado. Ele parece ainda mais perturbado que Richter.

Seu olhar feroz, porém, esmaece. Com certeza sente-se culpado por tê-la deixado ir. – Ela foi falar

com ele. – Todos nós três encaramo-nos com incredulidade. Não é culpa de Arati, mas não

podemos deixar de sentir isso. Eu não posso. Se algo de ruim acontecer a ela... – Há um problema

com o plano da tal da Silva. – Ele pronuncia o nome de Silvia errado. – Rich – chama, lançando a

ele um olhar pesaroso. Parece que vai chorar –, Siobhan fez aquilo por você.

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Capítulo 9 – Prólogo

Dois dias, mais ou menos até que Silvia apareça e me leve para o abatedouro. Isso não me impede,

porém, de desejar que ela estivesse aqui agora para poder dar um soco naquele nariz enorme! Ela

sabia que seria arriscado para Rich ser o precursor para minha captura. Brokeraven? Perdoar

Richter? Jamais! Além de dissidente e traidor, ele – Rich – seria considerado covarde por

Brokeraven. A morte seria pouco para ele. E aposto que Silvia sabia disso.

Eu tento – quase em vão – fazer algo para todos comerem, mas tudo no que consigo pensar

é sanduiches de salame com alface. Eu sirvo a todos os triângulos mal cortados, e apenas Arati

come toda a sua porção. Em sua mochila havia, além dos antibióticos de Marvee, um pacote de

maçãs desidratadas e uma garrafa d’água, o que explica sua voracidade – fome.

Arati nos contou em que ponto se separou de Siobhan. Aliás, narrou toda sua aventura na

selva de pedra. Como era a única coisa que podíamos fazer para passar o tempo e estávamos tensos

e irritadiços demais para discutir a localização de Siobhan ou o que fazer a seguir, paramos para

escutar.

Boa parte do que ele contou é bobagem, tudo baseado na maneira como ele viu as coisas lá

fora. Pareceu realmente entusiasmado com tudo o que viu, com as maravilhas de um mundo

moderno. Não pelo primeira vez eu percebi o quão isolada a tribo de Arati viveu por todo esse

tempo. Isolada e ameaçada. Pelo que me lembro, Brokeraven gosta de perseguir esses índios e

mata-los por diversão – não muito diferente do que aconteceu em Canem há quase um ano, com

Gael e comigo.

Então apenas quando a “missão” realmente começa que as coisas ficam mais interessantes.

Sem dinheiro para comprar remédios e sabendo que seria idiotice simplesmente assaltar a

farmácia – pois era necessário tempo até encontrar os antibióticos e medicamentos certos para

Marvee –, os dois tiveram de bolar um plano alternativo para conseguir o que precisavam.

Antes de dar início ao dito cujo, os dois tiveram de “se disfarçar”. Não que Arati esteja

sendo procurado ou seja um rosto reconhecível. Apenas ninguém acreditaria que ele é um rapaz

comum que vaga por aí vestindo nada além de uma bermuda curta. Isso – assumir uma nova

aparência – fazia parte do plano, o qual Siobhan já tinha em mente de forma bruta.

Assim sendo, os dois partiram a procurar um lugar onde conseguir roupas. A primeiro loja

que encontraram foi a quinze quilômetros daqui, meio dia de caminhada, e para azar de Arati, era

uma loja especializada em roupas para motoqueiros e afins. Imagino quão bonito Arati deve ter

ficado metido em uma jaqueta de couro, camisa de botões e calças pretas. Mas os dois não tinha

dinheiro, o que ele já havia contado antes, então tiveram de driblar o vendedor e sair avoados do

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lugar. Foi quando eles finalmente pararam, dois quilômetros e vários metros de floresta adentro

depois, que Arati percebeu que Siobhan também tinha pego uma mochila de couro, a qual residia

agora em suas costas – a mesma mochila com a qual Arati chegou aqui.

Os dois então voltaram a caminhar, e durante todo o trajeto Arati se recusou a continuar

vestido a jaqueta até que chegassem ao destino final. Arati não esclareceu, mas acredito que

Siobhan não tenha roubado nada para ela além da mochila. Isso ela terá de nos contar quando

chegar – se conseguir voltar para cá. Pensar isso dá um nó em minha garganta.

Nesse meio tempo, enquanto fugiam da polícia local embrenhados na floresta, o plano de

ação foi repassado. A parte de Arati no plano seria... criar uma distração. Fiquei embasbacada ao

saber disso. E pela maneira como Arati conta e faz um tipo de teatrinho, ele realmente foi bom no

que fez. Siobhan se preocuparia em pegar o que que precisavam.

Ele entraram em uma farmácia de beira de estrada a cinquenta quilômetros daqui, mais

meio dia de caminhada depois. Siobhan pediu os remédios necessários ao farmacêutico, tudo

aquilo do que Marvee precisa para sobreviver à bactéria mortal. O farmacêutico aparentemente

ficou arredio à solicitação de Siobhan, e não quis liberar os medicamentos com facilidade. Foi aí

que Arati entrou em ação.

Digno de um ator de novela, Arati soltou alto gemidos e cai no chão com as mãos na

barriga, chorando quase de verdade. De acordo com ele, ele entrou na farmácia e foi falar direto

com um dos dois funcionários presentes, e quando ouviu Siobhan falar as palavras mágicas – de

antemão combinadas para ser “O que você quer dizer com isso?” –, ele iniciou sua parte. “Não

estou me sentindo muito bem...” dissera ele à mulher que o atendeu antes de sua cena. Ela

perguntara a ele o que ele sentia, mas ele não sabia explicar.

Então, quando ele se jogou no chão e ambos os funcionários saíram para ajudá-lo, Siobhan

surrupiou os medicamentos, enfiando-os dentro da mochila que eles pegaram. E tão subitamente

quanto sua falsa crise havia começado, terminou.

Os dois deram no pé antes que os farmacêuticos percebessem que Siobhan surrupiara os

remédios. E tão logo Arati se livrou da jaqueta de couro e calças jeans.

O que nós não sabíamos é que Siobhan havia roubado o telefone de Marvee antes de ela e

Arati saírem em missão. Não tenho como saber em que momento ela pegou o aparelho, se antes

de Marvee adoecer ou depois, mas sei que aquilo – roubar o aparelho – estava em seus planos.

Acredito que, de certa forma, a doença de Marvee apenas lhe deu a oportunidade perfeita para

concluir sua própria missão interna.

Não tenha certeza se ela sabia ou não que Richter corria perigo. Só tenho certeza de que

ela fez aquilo que julgou ser o certo. E não posso fazer nada agora além de agradecer a ela. Se não

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fosse por ela, estaríamos novamente sem plano e agora sem a ajuda de Silvia – eu não permitiria

continuar com o plano original suicida dela.

Para concluir, Arati nos contou que ela pegou o telefone de dentro da roupa enquanto ele

não olhava ou recuperava o fôlego e fez uma ligação. De acordo com meu pretendente, a chamada

não foi muito longa, e em momentos Siobhan o exortou a voltar para cá. Ele não conseguiu recusar,

pois ela usava um tom urgente ao falar com ele. Então ele se embrenhou dentro da floresta uma

outra vez e voltou para cá o mais rápido que pôde.

- Ouvi ela dizendo coisas estranhas – disse ele, com cara de confusão –, que não entendi

direito. O que seria “helicóptero” e o que ela quis dizer com “me resgatar”? – questionou.

Imediatamente nós três compreendemos. Ela ligou para o avô para pedir que mandasse

alguém a resgatasse de helicóptero, no meio da estrada, enquanto Arati corria de volta para seu

refúgio, aqui. Ela está se arriscando por nós neste momento. Se arriscando por mim.

É estranho não saber como Gael se sente com relação a isso tudo. Eu sei que sinto como se

pesasse uma tonelada, mas não faço ideia de como ele se sente. Tenho palpites, mas nada concreto.

Para mim é ainda pior saber que um amigo querido está novamente se arriscando por mim enquanto

eu estou aqui sentada discutindo sobre isso, ainda mais quando essa pessoa não tem a menor

obrigação de me ajudar. Só posso esperar pelo melhor.

E então me lembro de Gael, e de eu ter rechaçado a ideia de deixá-lo se arriscar. Como se

eu houvesse deixado ele para trás. Acho que em algum momento de minha jornada esqueci-me de

pensar nele, não como se ele não houvesse estado comigo dentro do jogo “Aniquilação” de

Brokeraven, mas sim como se ele houvesse morrido lá. Não sei em que ponto isso aconteceu. Mas

talvez saiba por que aconteceu.

Talvez eu tenha tanto querido proteger Gael que acabei por excluí-lo de minha mente.

Talvez eu o ame tanto que, no fundo, saiba que o melhor a fazer é deixá-lo fora disso, para poupá-

lo de sofrimento. Talvez meu maior medo seja inconsciente, de perdê-lo. Mas também talvez seja

como Richter me falou. Eu não posso levar em conta apenas aquilo que eu quero. Talvez seja

melhor dar a ele a oportunidade de escolha alguma vez.

Mas quando estou prestes a dizer a ele que permito que ele venha comigo derrotar

Brokeraven, seus olhos verdes me impedem. Eu não permitiria jamais que a luz neles se apagasse

para sempre. Não toleraria que ele corra perigo mais uma vez por minha causa. Este é o garoto que

ficou comigo no começo dos jogos, o garoto que acreditou em mim quando não tinha mais opção

e que continuou comigo mesmo tendo outras opções. Este é o garoto que permaneceu comigo

quando eu o feri.

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E, subitamente, uma chama irrompe em mim. Eu não aceito mais a morte como fim. Não

aceito mais que eu tenha de morrer. Serei eu aquela a destruir Abraham, mas não cairei lutando,

nem mesmo depois de lutar. Eu vou permanecer viva, não importa o que aconteça. Eu sobrevivi a

coisa pior.

Não vou me deixar ser destruída mais uma vez, principalmente pelo homem que me

destruiu no passado.

Um dia e meio se passam como se em segundos. Eu só consigo ficar cada segundo mais ansiosa e

apreensiva. Não sei o que me espera lá fora, e para piorar, Siobhan não voltou. Acredito que ela

está presa no Palácio da Enseada, onde reside o gabinete do presidente, consequentemente onde

reside o presidente. Quando eu assassinar seu avô – e começo a não sentir remorso ao pensar em

matar um ente de Siobhan –, vou tirá-la de lá pessoalmente, com Richter. O fato – que eu não

quero encarar – é que falta apenas mais meio dia até que Silvia venha nos buscar para nos levar ao

Palácio, onde o ápice do plano terá início. Não sei qual sentimento impera: medo, incerteza, terror

ou tristeza. Não estou certa de nada além de que meu nome é Kaya, e até mesmo disso duvido às

vezes.

Agora é de tarde, e eu estou sentada na cama de Marvee. Tudo bem, não estou sentada,

estou deitada ao seu lado, prestando atenção à sua respiração ritmada. Se ele melhorou alguma

coisa, não aparenta. O ponto realmente positivo é que sua febre abaixou consideravelmente, e

agora ele já não precisa ficar constantemente com um pano úmido na testa e enrolado em

cobertores. Sua temperatura está normal e aconchegante, visto que aqui dentro ficou subitamente

frio. Pergunto-me de onde vem o ar-condicionado, e como poderíamos alterar a temperatura à

nossa vontade. Se bem que isso já não adiantaria nada agora, visto que estamos prestes a sair. A

menos que eu falhe, pois aí os sobreviventes serão forçados a permanecer aqui até... Bem, até que

Brokeraven os encontre.

Não. Não vou falhar. Este pensamento me ocorre de súbito. Não posso errar. Isso custaria

um preço alto demais. Outra questão engraçada é isso: em momento algum eu considerei que

poderia fracassar. Considerei morrer e considerei permanecer viva, mas jamais baldar. Isso seria

excesso de autoconfiança ou um medo tão profundo que se tornou inefável e inquestionável?

Receio não ter muito tempo para refletir sobre.

Em certo momento, Marvee se movimenta, aparentemente tentando ficar mais confortável,

então eu me sento para esperar que ele se aprume. Quando ele para de se mexer, deito-me

novamente, desta vez de costas para ele, pois ele se deitou de lado. Não consigo adormecer, nem

mesmo relaxar, então me levanto.

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Arati e Richter saíram do apartamento para montar guarda, para o caso de Silvia aparecer

antes da hora. Neste momento estão do lado de fora, sentados sobre a sombra da mesma árvore

onde eu estive com Arati na primeira noite. Gael está no banho, ou dormindo, ou lendo, sei lá.

Tento não me preocupar demais com o que ele está fazendo, pois não quero desejar ir até ele e

abraçá-lo. Assim, apenas continuo parada, sem saber bem o que fazer. Ninguém está com fome –

até mesmo acho que seria impossível que acontecesse nessa altura do campeonato –, então não há

necessidade de fazer comida. Tudo está limpo, e as roupas lavadas já foram colocadas na secadora

– sim!, nós temos secadora, e isso foi surpresa até para mim –, ou seja, não há absolutamente nada

a fazer.

Incapaz de continuar parada como uma pedra, começo a arrumar as roupas na enorme mala

de Siobhan compulsivamente, apenas até que um ruído me interrompa. Mas não foi um ruído. Foi

uma voz. E não foi a voz de Gael.

Ao me virar, deparo-me com Marvee de olhos semiabertos, olhando para mim com um

pequeno sorriso despontando em seus lábios lívidos.

Não há como me conter. Felicíssima, eu corro até ele e aperto-lhe um beijo contra seus

lábios quentes, lembrando-me desse conhecido contorno, do sabor. Depois, movida pela mesma

força animada, abraço-o, e fico nesta posição por muito tempo. Ele me abraça de volta com

fraqueza, seus músculos e força normal ainda afetados pela doença. Lágrimas escorrem por meu

rosto até ele. Olho para ele depois de me afastar, sem em momento algum tirar meus braços de

cima dele.

- Como você tá, pequena? – é a primeira coisa que pergunta depois de dias de silêncio

inconsciente. Mais lágrimas escorrem rapidamente, e eu lhe dou mais um leve abraço. Ele retribui

da mesma maneira que antes, mas há uma determinação ardente na maneira como ele o faz desta

vez.

- Achei que nunca mais ia te ver – digo, mesmo sabendo que é bobagem dramática. Ele dá

uma risada resfolegada. Ele se esforça para chegar perto, então eu dou uma ajudinha e me coloco

sobre ele. Ele toca meus lábios com leveza e fraqueza, mas isso não torna seu beijo menos perfeito.

- Eu não poderia ir embora em silêncio – diz, e isso me faz lembrar das palavras que disse

quando ainda estava inconsciente. A dor retorna, mas eu a empurro para o fundo de minha mente.

Não há mais tempo para isso, ou motivo. Ele está acordado, e é tudo que importa.

- E eu não aguentaria te ver indo embora – digo, pronunciando meu maior medo neste

momento. Um peso sai de cima de meu peito, como se eu finalmente pudesse respirar novamente.

Eu o beijo delicadamente uma outra vez, como se esta fosse a primeira vez e eu estivesse viciada

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na sensação. A verdade é que quero me certificar que me lembrarei dessa sensação. – Eu te amo –

digo, ainda próxima de seu rosto.

- Eu também te amo – responde ele. Seus olhos estão pesados, como se estivesse cansado.

Acredito que ainda esteja. A bactéria que quase o matou ainda está em seu organismo, lutando

para permanecer viva, enquanto o corpo de Marvee continua digladiando pelo controle, e isso deve

ser exaustivo. Eu beijo cada pálpebra dele, incentivando-o a manter os olhos fechados.

- Descanse por enquanto – peço, em seguida dando um longo beijo em sua testa. – Vamos

ter tempo para conversar depois. – Não tenho lá muita fé nisso, mas é necessário prometer. A

perspectiva oposta é aterrorizante.

Ele balança a cabeça languidamente e então se recosta. Eu o observo voltar a dormir com

interesse intenso. Céus, como senti medo que Marvee morresse. Como temi que nunca mais fosse

ter seus olhos negros dentro dos meus. E agora que eu sei que ele está salvo – ou pelo menos tão

salvo quanto ele poderia estar em condições tão arbitrárias –, sinto-me melhor e mais forte.

Há pelo que lutar, subentendo. Há vidas que preciso manter. Há corações que precisam

bater. E há pessoas que merecem continuar vivas e sãs. Brokeraven já destruiu coisas demais desde

que se autoproclamou presidente, e não apenas em sentido literal.

Chega de mortes. Chega de destruição. Chega de ruina e decadência.

Chega de Abraham Brokeraven.

Eu olho para Richter. Saí do apartamento sem cruzar com Gael, e deixei Marvee dormindo depois

acordá-lo e tentar convencê-lo a comer, algo que não deu muito certo. Richter e Arati estão

sentados sobre o crepúsculo que chega, ainda aguardando que Siobhan chegue.

Mas ela não vai chegar. Não vai voltar. A menos que nós a procuremos. E isso só vai

acontecer quando eu matar Brokeraven. E há menos de horas para que nós nos encaminhemos para

lá.

Ele olha para cima, para mim, e imediatamente subentende o que estou querendo dizer.

Joga a mão para mim e eu o ajudo a se levantar. Faz um movimento com a cabeça para Arati, que

sem assentir ou produzir qualquer expressão se levanta e vem conosco.

Rumamos de volta ao apartamento F6, mas no meio do caminho eu paro Arati e o beijo

demoradamente. Não aceito a morte de maneira alguma, mas se for necessário morrer para salvar

as pessoas que amo, estou disposta da mesma forma. Não quero ir embora – daqui – sem a

lembrança de seus lábios nos meus.

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Dentro do apartamento, coloco as roupas mais justas de Siobhan que encontro: uma

camiseta cinza apertada, que por acaso não dá muito espaço para meus seios, uma calça legging

preta e tênis de corrida. É realmente inacreditável que estas roupas tenha cabido em mim tão

perfeitamente, visto que Siobhan é maior que eu. É como se elas estivessem aqui desde o princípio,

apenas esperando para que eu as usasse. E esse pensamento reforça o pensamento que tive outro

dia – no primeiro dia em que pisei neste lugar –, de que fui destinada a isso.

É meu destino.

Silvia chega faltando uma hora para meia-noite. Voltamos a montar vigia do lado de fora há quase

duas horas, mas desta vez fomos apenas Richter e eu.

Usei com Gael a desculpa de que precisava de um tempo sozinha com Richter para... Bem,

na realidade para falar sobre Siobhan. Sabia que essa desculpa tocaria o coração de Gael, e ele não

faria mais perguntas. Na verdade, Rich e eu quase não trocamos palavras enquanto aguardávamos

Silvia. Eu sabia – ou pelo menos contava com isso – que Silvia demoraria pelo menos umas doze

horas para chegar, então talvez eu tivesse tempo para descansar e me preparar mentalmente. Em

resumo, apenas não quero que Gael esteja aqui quando estivermos indo. Ele não vai me convencer

a levá-lo junto, nem a pau, como provavelmente faria se estivesse conosco na hora em que

estivéssemos indo embora.

Apenas não contei com sua falta de insistência.

- Você não vai me enganar, vai? – perguntou-me ele, encarando-me com olhos súplices.

- Claro que não! – respondi, renitente. – Eu nunca faria algo que pudesse te machucasse. –

Aquela foi a única verdade que disse a ele. Realmente não faria algo que causasse a ele a

possibilidade de o ferir. Por isso minha decisão de não levá-lo junto, e de lutar sozinha uma guerra

que cabe a nós dois. Ou talvez o que eu disse a ele também seja uma mentira, visto que eu farei

algo que provavelmente machucá-lo-á, e de mais de uma maneira. Então a verdade implícita em

minhas palavras é que quero que manter sua integridade física.

Ele me olhou com resignação, como se soubesse que eu estava mentindo mas aceitasse

isso, pois sabia que era para seu próprio bem. Aproximou seu rosto do meu com suavidade e

esperou que eu completasse o espaço ainda existente entre nós. Não o desapontei. Beijei-o também,

da mesma forma que beijei Marvee ou Arati: com tangível veemência, desejando guardar aquela

sensação comigo.

Depois desse nosso pequeno momento de conversa, Richter já estava pronto, colocado em

suas melhores roupas. E então saímos, com uma mentira e uma promessa: voltaremos.

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Dissemos a Gael que voltaríamos quando ela chegasse. Mas não voltamos. E ele não tem

como descobrir isso, visto que está no subsolo, um lugar inacessível e onde não ouvirá o barulho

do carro estacionando em algum lugar distante e os sons dos passos no gramado verde, e então

quando finalmente perceber que mentimos para ele, estaremos longe demais para que ele possa

nos seguir. E mesmo se seguir, jamais conseguirá chegar lá. Eu temo isso, de certa forma. Apenas

espero que ele considere minha promessa e me espere voltar.

Silvia Heatcliff vem caminhando pela grama com seus saltos altos elegantes, acompanhada

de dois seguranças altos marrentos, com uma expressão de tamanho triunfo no rosto. Meu ódio

por ela volta. Ela sabia que Richter podia morrer se fosse ele aquele a me delatar falsamente ao

presidente, e mesmo assim seguiu em frente sem se importar. Nós dois – Richter e eu – nos

levantamos ao mesmo tempo, e ficamos cara a cara com ela.

Apenas que, quando ela se aproxima o suficiente para estender a mão para mim, faço algo

que nem mesmo eu espero: levanto minha mão e lhe dou uma bofetada na cara com as costas da

mão. O estalo do tapa se propaga no silêncio da noite, e imediatamente os brutamontes de cara

amarrada estão em cima de mim, segurando meus braços – e dói pra caramba. Richter vai para

cima deles armado com próprios punhos. É claramente uma luta injusta, mas ele não parece se

importar. Nem eu. Debato-me contra os braços enormes dos guarda-costas, mas tudo o que consigo

é machucados nos lugares em que eles me seguram com demasiada força. Começo a chutar para

todos os lados e a gritar, tentando fazer com que me soltem, até que eles enfim me libertam. Mas

não pelos motivos que eu esperava – minha força de vontade, por exemplo.

Silvia fez um movimento com a mão, ordenando que parem. Os dois me largam e um deles,

aquele que luta com apenas um braço contra Richter, dá um empurrão nele, para então os dois se

lançarem sobre a mulher, protegendo-a com os próprios corpos. Antes que Rich possa apontar sua

arma para ele, eu o impeço. Coloco minha mão em seu braço e faço um sinal para que espere,

mesmo queimando vivamente de fúria. Meu desejo é de arrebentar Silvia na porrada, mas me

contenho. Com a voz comedida, falo com ela.

- Você sabia, sua vaca! Sabia que seria arriscado para Richter me delatar. Sabia que o

presidente não ia perdoar ele coisa nenhuma! E mesmo assim seguiu em frente!

- Foi um risco que tive de correr – responde ela, ainda testando o próprio maxilar com as

pontas dos dedos, porém sem perder a compostura.

Eu ofego.

- Eu devia abortar essa merda toda agora! – ameaço, tentando encontrar uma brecha entre

os seguranças para encará-la nos olhos – ou quem sabe bater mais um pouco.

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- Você não vai – nota. – Não vai perder a oportunidade de matar Brokeraven. – Ela já não

acaricia o maxilar, mas sim vem caminhando em minha direção, fazendo um sinal baixo com a

mão esquerda para os seguranças, que se prontificam em defendê-la. Vem para cima de mim

ameaçadoramente, no entanto. Quando está a apenas trinta centímetros, ela faz algo que eu não

esperava: segura meu queixo com a mão direita e inclina meu rosto na direção do dela.

Automaticamente Richter aponta sua arma para ela, mas antes que seus dois capangas possam

atacá-lo, ela volta a fazer o gesto baixo, o que faz com que os dois parem, mas não com que percam

a posição de ataque. – Eu não gosto de você, senhorita Freya. – Seu rosto está tão próximo do meu

que eu sinto seu hálito quente em mim. Mantendo meu orgulho na galáxia, eu não dou a ela a

satisfação de reagir ou demonstrar medo. – Não se esqueça que eu estou no comando por aqui.

Será necessário apenas um estalar de dedos para que meus homens abram mais buracos em você

que em uma peneira.

- E quem vai ajudar você a alcançar seu desejado poder, sua vadia?

Ela dá um sorriso sardônico, o qual não chega aos seus olhos. – Eu ainda tenho Gael.

Mas meu autodomínio vai ralo abaixo quando ela diz estas palavras.

Eu me livro de seu toque virando seu braço com um golpe que aprendi. Antes que ela veja

o que aconteceu, eu torço seu braço em um giro com meu corpo, depois puxo seu braço para dentro,

contra suas costas, e aperto sua mão na direção da dobra de seu cotovelo. Estou com tanta raiva

que poderia quebrar sua mão agora.

- Nunca mais se atreva a colocar mesmo o nome Gael no meio disso, está me ouvindo bem?

– grito ao seu ouvido. Então empurro. – Se quiser me dar um tiro agora, pode dar! Vai ter

desperdiçado sua única chance de conseguir o que quer.

Eu espero pelo tiro, realmente espero. Mas ele não vem. Isso porque Silvia se vira para

mim com olhos tão mortíferos que congelam minha alma, e simplesmente diz:

- Vamos.

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Capítulo 10 – Batalha Final

Não é um carro, como imaginei que era. É uma van ou algo do gênero. SUV ou sei lá. Não importa.

O importante é que estamos todos no carro, isso mais o motorista de Silvia e três soldados nos

bancos na frente do nosso. Ao todo estamos em três carros, os outros dois abarrotados de caras que

trabalham para Silvia vestidos como oficiais do governo. Caramba! O quanto essa mulher não deve

ter prometido à estas pessoas para conseguir um tratamento desses?

Eu não sei quanto tempo fico sentada naquele banco traseiro quente e que irrita minha pele.

Eu me deito no colo de Rich, durmo em seu ombro, olho pela janela e dou olhares mortíferos a

Silvia, mas não faço nada além disso. Parece que a viagem de diversas horas até a capital demorará,

e que nada de anormal acontecerá.

Depois que nós saímos com Silvia, há duas horas, mais ou menos, não rumamos direto para

a capital do país. Ao invés disso, fomos até uma casa de fazenda no meio do nada, o lugar em que

eu teoricamente estaria “escondida”, e foi naquele lugar onde os homens de Silvia infiltrados no

governo fizeram todo o teatrinho de me “capturar”. Também foi naquele local onde tentei exigir

que Richter deixasse de fazer parte do plano, o que ele recusou com veemência o suficiente para

conquistar uma nova função nele: agora Richter também é um suposto militar de Brokeraven que

me levará à sua presença e, juntamente com todo o esquadrão de Silvia, impedirá que eu sofra

qualquer tipo de dano até estar cara a cara com o presidente. Por um momento me senti-me uma

estrela de cinema, delicadamente protegida em seu carro de luxo para chegar ao seu destino longe

dos fãs alucinados.

A diferença gritante é que não estou sendo levada a uma premiação. Sim a um matadouro.

Ou pelo menos é esta a maneira como eu encaro aquele lugar.

Ah, sim, esqueci de comentar que Silvia tinha uma roupa preparada para mim. Um vestido

azul com gola em V – um V meio diferente, tenho de ressaltar – e saia plissada me foi dado. Por

que ela me vestiu assim não sei responder. O ponto principal foi um acessório que me colocaram,

que parecia uma liga de noiva, porém com coldre para levar uma pistola. O ponto importante: a

pistola está vazia. “Eles vão fazer uma revista rápida em você, e com certeza não serão soldados

meus”, disse Silvia com a voz baixa e rapidamente, como se quisesse acabar logo de falar comigo.

“Essa pistola vai ser o símbolo do seu desarmamento. E esse que entra o truque. Eles não vai

perceber que aqui”, disse ela, apontando para o meio do meu peito “está escondida outra pistola.

Vai ser menor e com menos munição, mais vai ter que servir”, comentou, de mal gosto. Aposto

que ela pensa que isso tudo é minha obrigação. Não sei se ela esqueceu que eu sou a vítima da

estória toda.

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Foi naquele ponto que percebi que meu seios estavam... Isso é embaraçoso de dizer, com

certeza... maiores. Há bojo em meu vestido, o que me deixa com formas mais avantajadas. Mas há

uma explicação. “A arma vai estar escondida no seu busto, mais precisamente entre seus seios, no

meio do enchimento”, explicou um militar falso, homem de Silvia. “Quando a hora propícia

chegar, você vai tirar essa arma...”, ele me mostrou uma pequena pistola – NAA Guardian .32 de

acordo com ele depois –, a qual ele sem o menor escrúpulo enfiou no lugar previamente indicado,

par depois, novamente sem mostrar a menos vergonha, retirar novamente. “... do esconderijo e

atirar nele. Tente atirar na cabeça ou no coração, essa pequenina não carrega muitas balas”,

acrescentou trivialmente.

“E se eles revistarem esse ponto?” questionei. Obviamente havia a possibilidade. “Só

podemos esperar que não façam isso”, respondeu ele, secamente. E por aí quase se foram minhas

esperanças de concluir isso tudo ilesa.

Enfim quando estávamos todos devidamente trocados e prontos para partir, entramos nos

mesmo carros e seguimos viagem. Richter e eu evitamos trocar palavras durante esse meio tempo.

Queremos evitar chamar atenção desnecessária, isso de acordo comigo. A verdade é que não quero

me arriscar a ouvir algo dele que tire de mim a tênue coragem que estou sentido.

E desde então seguimos viagem. Não faço mínima ideia de onde estamos ou quanto tempo

falta até chegarmos lá. Eu observo a paisagem monótona com desinteresse intermitente com minha

cabeça encostada na janela do carro. Rodovia larga comum, forrada de concreto, nada além da

encosta da montanha do lado direito e um declive que dá para a floresta à esquerda. Se houvesse

algum incidente, não haveria para onde correr. Entre subir esse barranco íngreme e rolar a

ribanceira, prefiro continuar com a estrada fastidiosa.

À frente, apenas uma curva realmente muito acentuada, perante a qual não consigo ver

nada além. Preparo-me para mais uma seção de tortura regada a estrada sem nada de especial

quando acontece.

O tiroteio começa imediatamente quando saímos de dentro do carro. Eu sou literalmente

jogada para fora quando ele para, por Richter, e é ele quem me protege dos disparos com seu

próprio corpo. Ele se joga por cima de mim enquanto o motorista freia e corre de dentro do veículo

ainda parcialmente em movimento. Ele viu o que eu não pensei que veria: uma maciça multidão

de pessoas armadas apontando diretamente para nós.

Como estávamos em três carros, estes formam uma precária barreira contra os tiros que

vêm da estrada à nossa frente. Eles logicamente estão abrindo fogo contra nós. Richter recupera o

equilíbrio e sai de cima de mim, mas nem por isso me deixa sozinha. Me puxa pelo pulso e me

encosta contra a lataria de metal que nos oferece esse parco escudo. Eu vejo Silvia sendo defendida

por dois caras enormes também vestidos de militares de Brokeraven. Eles usam o próprio corpo

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como escudo. Se isso – essa nossa empreitada contra Brokeraven – der errado, essa mulher estará

muito, muito ferrada.

Eu escuto alguém gritar alguma coisa sobre armas, e então um dos militares – não encontro

nome mais curto para eles – vai até a traseira de um dos carros e abre o porta-luvas. De dentro tira

uma mala com pintura militar de aspecto pesadíssimo, a qual deve estar cheia de armas.

Estou certa. De dentro da mala saem facilmente quatro metralhadoras e duas escopetas,

além de diversas pistolas. Ele joga as armas para seus companheiros sem pensar duas vezes, e estes

também não pensam duas vezes antes de revidar chumbo. Richter se remexe inquieto ao meu lado.

Ele quer brigar. Assim como eu também.

Com apenas um olhar eu aceito seu trato mudo: toma cuidado e atira para matar.

E antes que eu me dê conta, estou apoiada em um joelho com uma pistola nas mãos mirando

contra as pessoas que atiram contra nós atrás de uma barricada débil de madeira. Mas não são

pessoas. São animatrônicos. Estes não foram tão bem feitos quanto aqueles contra os quais lutei

quando ainda dentro do Shopping Mall disputando “Aniquilação”, o jogo proposto pelo presidente.

Há partes metálicas expostas em seus corpos, como por exemplo seus rostos. Uma pintura simples

fora colocada sobre eles, apenas para não deixar o metal nu. Irrecusável vaidade?

Eu tenho como alvo cabeças. Os coices dos primeiros disparos me jogam para trás com

força, e várias vezes eu quase perco o equilíbrio. Os outros dezenove homens que não estão

protegendo Silvia de levar um tiro disparam de incontáveis posições e lugares, sempre atrás dos

carros que nos protegem. Estávamos em vinte e quatro pessoas, mas considerando que três delas

não estão contra atacando – Silvia e seus dois guarda-costas –, estamos com boa vantagem – pelo

menos aparentemente na incomensurável situação atual.

Ou pelo menos é isso o que eu penso até ver que os monstros de metal que são destruídos

pelo nosso lado são rapidamente substituídos por outros iguais, que tomam suas armas e voltam a

atirar.

No princípio tudo é troada e bulício incessantes e o martelar surdo do sangue em meus

ouvidos me ensurdecendo. Explosões ocorrem de todos os lados a cada granada jogada de nosso

lado e em certo momento eu paro de prestar atenção a qualquer coisa que não seja meu próximo

alvo. Nós estamos ganhando a batalha durante um pedaço extenso, enquanto ainda possuímos

munição em nossas mãos. É só quando um dos homens de Silvia é atingido na testa e cai para trás

espirrando sangue que eu me dou conta de que isso não é só mais um jogo. Vamos acabar morrendo

aqui, pois realmente existe essa possibilidade.

Atiro até minhas balas acabarem. Sei que derrubei dezenove, pois era isso o que minha

pistola segurava. Jogo minha arma para trás e saio em busca da sacola com as armas. Está vazia!

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Não pode estar vazia! A ideia de procurar novamente no porta-malas me ocorre no momento em

que outro homem é acertado, e isso bem ao meu lado. Eu vejo seu corpo despencar com um baque

surdo e insignificante em meio à cacofonia intermitente.

Não há mais nada no bagageiro do primeiro carro. Jogo meu corpo contra o asfalto e me

arrasto até o bagageiro do segundo carro. É quase impossível abri-lo e não levar um tiro ao mesmo

tempo, mas eu consigo arrancar de dentro dele a sacola. Abro de qualquer jeito e tiro a primeira

arma que vejo.

Percebo ao voltar a tentar atirar que a massa de robôs que foi mandada para cima de nós é

ainda mais intensa do que pensei. E eles não estão mais atirando contra nós. Demoro muito para

perceber.

Estão...

- Bater em retirada! – grita Richter, desorganizando meus pensamentos. Eles estão vindo

para cima de nós com sua força sobre-humana e garras afiadas. Um cenário que eu não quero ver

jamais, mas que está impresso em minha mente. É a cena do Shopping Center uma outra vez!

Minha visão escurece para qualquer detalhe que não seja esse: eles estão atrás de mim e de Gael,

e eu preciso correr para nos salvar. Não estou mais com vinte e três pessoas em uma rua. Aliás,

nunca estive. Estou com Gael, e eles estão atrás de nós.

Eu sigo Gael pela rua reta e larga do Shopping, a metralhadora em minha mão esquerda

nada mais que um objeto inanimado e inútil. Eu corro para o que penso ser minha salvação, mas

quando olho para frente descubro que a rua que pensei que fosse dar na saída na verdade não tem

um fim em momento algum. Ela se desdobra infinitamente à frente, e os animatrônicos psicopatas

continuam vindo para cima de mim. E é um com o rosto de Victor que os lidera.

Não sei o que estou fazendo. Apenas agarro a mão estendida de Gael e continuo fugindo

com ele, permitindo que ele me guie. Ele me guia. Eu permito. É plano e simples e não há como

ou do que reclamar. Apenas sei que comecei a atirar contra os monstros de metal que estão atrás

de nós porque minha mãe esquerda vibra. Acerto vários deles nos peito e cabeça, mas eles

continuam vindo. Eles pulam carros que foram colocados em nosso caminho para impedir nossa

passagem rumo o outro lado do Shopping Center, e é nesse exato momento que sei exatamente o

que quanto estamos ferrados.

Se Gael e eu não pararmos de correr e começarmos a atirar contra eles, vamos acabar

estraçalhados!

Eu solto a mão de Gael e aponto a arma para a cabeça metálica dos monstros, onde espero

que esteja o disco rígido ou processador ou sei lá, o que quer que os controle e ordene a vir atrás

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de nós. Gael novamente tenta me levar com ele, tenta me puxar, mas eu permaneço firme. Continuo

atirando e derrubando-os.

E é quando a voz de Gael se transforma na voz de outra pessoa.

- Abram fogo!

Não é Gael. Minha visão volta ao normal quando eu me vejo no meio de uma autoestrada

infestada de animatrônicos mandados por Brokeraven e vários outros homens que eu mal conheço

ao meu redor. É Richter quem segura minha mão. Entretanto ele me solta quando começa a disparar

os projéteis de seu fuzil contra os corpos superiores de nossos inimigos. Ele é policial. O policial

que me ajudou quando Gael e eu saímos do Shopping Center feito de arena improvisada. Eu não

estou dentro daquele jogo ainda. Estou aqui fora, lutando para terminar o que Abraham começou.

O primeiro monstro se aproxima o suficiente de mim para que eu veja o brilho vermelho

em seus olhos. Ele fecha e levanta o punho para me socar e quebrar meu crânio. Num movimento

vindo de não sei aonde, esquivo-me dele abaixando-me contra o concreto, para então dar uma

guinada violenta para a direita e sair mandando balas para cima dele. Eu sinto o próximo vindo,

então estou chutando quando viro para ver a direção de onde ele vem. Meu tornozelo dói quando

acerta o corpo rígido do robô, e eu não dou chance a ele de investir. Atiro nele quando volto meu

pé ao chão.

Sei que minha arma está começando a ficar sem balas, e que sem elas não tenho chance.

Mas também não terei oportunidade alguma de me aproximar da sacola de armas que está perto

dos carros. Não há nada ao meu redor que eu possa usar como arma. E é quando vejo o terceiro

homem morrer. O monstro rasga sua garganta sem misericórdia, mesmo estando este militar caído

e indefeso. Desesperada para salvá-lo, eu me abaixo para evitar ser agarrada por algum outro robô

imbecil e atiro a cabeça daquele que está atacando o homem. Eu acerto alguma coisa importante,

porque ele desmonta em cima do homem, desligado.

Sabendo que este homem já está morto, pego sua escopeta que agora é sobressalente.

Apenas uma ponta de compaixão aparece em meio ao mar de adrenalina, e eu facilmente a ignoro.

Não é o momento para ser sentimental. Se eu não continuar brigando, não haverá mais como sentir

qualquer coisa.

Atiro contra a primeira coisa que cruza meu caminho ao me levantar. Vejo meu

improvisado esquadrão se movendo e os sigo, deixando o homem morto e seu assassino de metal

para trás. Ouço o tropel de pés metálicos ao meu redor e sem que ninguém me avise descubro o

animatrônico se lançando contra minhas costelas. Ele me derruba, mas eu não paro de lutar contra

ele.

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Foi assim que aquele homem foi morto, descubro. Ele foi derrubado primeiro, e depois o

monstro que o segurava contra o chão afundou suas unhas mortais em sua clavícula. É isso o que

este está prestes a fazer. Ele levanta a mão e abre os dedos, mas eu não consigo pensar no pior.

Tudo o que passa na minha cabeça é que eu vou me levantar e dar uma surra neles. E tão

subitamente quanto começou seu ataque, ele termina. O animatrônico cai sobre mim, os circuitos

em sua cabeça soltando centelhas.

- Aposto que achou que eu ia te deixar para trás, não é? – brinca Richter, estendendo a mão

para mim e me dando impulso para levantar. Num salto estou em pé. Sorrio para ele.

- Te garanto que foi a última coisa em que pensei.

Ele não percebe o robô vindo por trás dele. Eu, acometida de uma força que não me é

própria, levanto os três quilos de espingarda em minha mão esquerda e disparo o projétil maciço

contra o peito dele, que despenca para trás com um ruído metálico angustiante. Richter olha para

trás surpreso, antes de se virar de costas para mim. Eu me viro de costas para ele.

Fizemos de novo. Comunicamo-nos sem palavras. Guarda minha retaguarda enquanto eu

guardo a sua, disse ele. E é o que fazemos.

Eu continuo atirando projéteis enormes que expandem com facilidade para cima dos

assassinos metálicos enquanto sinto Rich enrijecer a cada tiro que ele dispara. É engraçada a

maneira como seus músculos se retesam quando ele atira, como se a tensão fosse insuportável. E

de certa forma é.

A pequena guerra – ou devo chamar de grande massacre? – emerge impiedosa à nossa

volta, mortal e violenta. Eu vejo um outro homem ser assassinado pela máquina, mais rápido do

que eu consigo me virar e atirar. A criatura dá nele uma cabeçada tão violenta que ele cai para trás,

e antes que eu consiga puxar o gatilho ela afunda o pé em seu crânio, esmagando-o como a um

ovo. Meu estômago imediatamente embrulha, e eu atiro. Não há mais o que ser feito em relação a

ele – tanto ao homem morto quanto ao robô.

Se não reagruparmos logo, constato, a matança será ainda maior. Se estamos em

desvantagem numérica dessa forma, estaremos em desvantagem ainda maior dispersos em

pequenos grupos ou sozinhos. Estou com Richter, que é um atirador excelente, mas nem todos tem

essa sorte. Eu vejo mais dois serem exterminados de maneira brutal, tão ruim eu prefiro não

comentar. Até agora já são seis pessoas mortas, e parece que este número pretende continuar

aumentando.

Se eu fosse fazer uma soma de todos os animatrônicos presentes diria que há entre cento e

cinquenta a duzentos, isso sem considerar aqueles já assassinamos. Eles podem nos dizimar, e não

haverá muito o que possamos fazer. Tudo o que posso dizer é que não cairei sem lutar.

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Eu não me atrevo a me abaixar para evitar ataques. Continuo atirando o máximo que posso

prevendo o máximo possível os movimentos deles, mas é quase impossível. Não posso deixar a

retaguarda de Richter descoberta. Preciso, porém, me aproximar o suficiente do homem caído para

recuperar sua arma. A sacola contendo aquilo que pode significar nossa salvação jaz no chão lá

perto dos carros. Enquanto não abrirmos caminho por entre essas máquinas de metal psicopatas,

não há como recuperá-la. E sem ela... Bem acho que já deixei frisando o quanto estamos fritos em

ela.

Minha última bala se esvai como a fumaça que sai do cano quando eu disparo. Uso a

carcaça de metal da arma pesada como arma, e preciso me desprender das costas de Richter para

fazer isso. Ele percebe que eu me afastei e se vira instintivamente para me observar, e eu já estou

golpeando o monstro à minha frente com o cano. Ele penetra o meio de sua testa com violência e

o chiado dos circuitos fritando com o golpe é audível até mesmo no meio da refrega.

Eu antecipo o ataque antes que ele aconteça. O robô não foi rápido o suficiente ao calcular

seu próximo golpe. Eu vejo, com a visão periférica, ele dobrar as pernas para atacar Richter. Eu

jogo o braço que segura a espingarda para trás e estico meu torço para dar ainda mais impulso ao

golpe, e quando ele se lança para cima do meu amigo eu jogo toda minha força contra minha mão

direita e giro o corpo para dentro. O metal acerta o monstro com força o suficiente para entortar

ambos os metais, e bem no meio de suas costas. Só percebo que eu acertei seu pescoço

manufaturado quando a cabeça pende no corpo.

Eu não tenho tempo para me recuperar da investida. Um deles chuta minha costela esquerda

antes que eu possa me levantar, e eu despenco para a direita. Tenho certeza de que quebrou. Eu

não tenho tempo para respirar. Caramba, isso dói muito! Eu me preparo para o próximo golpe. E

por sorte Richter percebe que fui ferida. Ele atira contra a cabeça do animatrônico que ia me

esmagar no meio da investida, fazendo com que fagulhas voem. Vem ao meu encontro e me ajuda

a levantar. Eu ainda vejo estrelas, e respiro golfadas de ar que fazem minhas costelas latejarem.

- Armas – diz ele, e é exatamente o que eu pensei. Ele atira em algum deles que estava se

aproximando de nós e volta a olhar para mim. Minha expressão deve estar realmente muito ruim,

pois seus olhos expressam sua dor ao me ver sofrendo. Eu balanço a cabeça. Ele aquiesce

novamente. – Reagrupem-se! – grita ele para os militares ao nosso redor.

Vários deles ouvem ao chamado, mas apenas os mais destemidos o seguem. Vejo ao longe

mais um deles ser assassinado enquanto correr para nós: ele tropeça e vai ao chão, ambos os seus

joelhos plantados no asfalto, quando um animatrônico pula em cima de sua cabeça. A explosão de

miolos é totalmente horrível. Meu estômago dá um salto triplo. Não há mais nada que eu possa

fazer. Por acaso é o mesmo militar que me mostrou onde guardar a pequena pistola. Esse ataque

todo não tem sentido!

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Quando o maior número de militares se reúne a nós – onze soldados mais Gael e eu. Um

deles ficou para trás e sem olhar sei que é tarde demais para tentarmos salvá-lo –, ainda batalhando

contra os monstros de metal, Richter faz um movimento com o braço indicando a sacola militar

onde estão as armas de fogo. Enquanto ele ainda está com o braço estendido, um animatrônico se

materializa do fogo do inferno e salta para cima dele. O grito agudo de Richter é rápido e é seguido

pelo som de um tiro, e a criatura que o agrediu jaze no chão, inócuo agora. Os monstros continuam

nos atacando, e eu mesma dou vários chutes para afastá-los, o que é quase inútil e realmente

doloroso.

Um momento depois nós começamos a investir contra as criaturas com os próprios punhos,

e eu acabo forçando minhas costelas ao tentar. Nós nos movimentamos em um círculo malfeito e

ganhamos território o mais rápido que podemos de volta aos carros. Em momento algum soube

aonde se enfiou Silvia Heatcliff – e neste momento é a última coisa em que consigo pensar. Eu

recebo um jab de um robô na boca e minha cabeça voa para trás. Um dos soldados me ampara e

dispara sua última bala contra aquele que me atacou.

A primeira arma na qual consigo pôr as mãos é uma submetralhadora. Já a vi em algum

videogame, acho que é uma Uzi. Eu atiro imediatamente contra a multidão de robôs e acerto vários

apenas no peito. Droga! Não sou lá grandes coisas portando armas automáticas. Tento dar tiros

controlados, mas é muito difícil! Descubro que atirar sem segurar o gatilho por mais de um

segundo é melhor.

Isso tudo não é divertido. Eu me abaixo para evitar ser acertada e atiro ainda do chão, e

quando estou prestes a levar um chute metálico, um dos militares me salva, mas é abatido por

conta disso. Inferno, esses animatrônicos são mortalmente fortes! O que é necessário para que esse

inferno tenha fim?

Estou nesta guerra há uma eternidade e eles não parecem parar de vir. Há quanto tempo

estou atirando? Dez segundos? Cinco minutos? Meia hora? Cinco horas? Já não sei. Mais sete

homens morreram. Sete – isto é, contando aquele que morreu para me salvar há pouco. Meus olhos

estão marejados de lágrimas por causa deles. Sei que no fundo estão lutando pelas próprias vidas,

mas nem por um momento deixam de me ajudar.

Batemos em retirada em algum ponto, acho, e nos esquivamos com veemência, e eles

continuaram vindo. Richter, com muita dificuldade, puxou a bolsa militar para o ombro esquerdo

e atirou apenas com a mão direita, canhestramente. Eu sabia que íamos morrer, só não tinha

certeza.

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No momento atual, estou, pela milionésima vez, caída, atirando contra meu agressor.

Explodo sua cabeça de metal antes que ele consiga me matar, e rolo para a esquerda quando outro

toma sua missão por sua e enfia o pé no concreto onde antes estava eu. Atiro contra este também

enquanto me levanto. Rich deixou a bolsa com munição e armas a seus pés, onde é mais seguro, e

há um militar às suas costas, dando cobertura a ele da mesma forma que eu dei antes. Dou uma

corrida até Richter e me abaixou quando me aproximo da linha de tiro. De dentro da mala pego

um pente fino e longo de balas 9mm para minha metralhadora. Tiro o pente atual de qualquer jeito

e enfio o novo com violência.

Estamos conseguido ganhar espaço, e não há muitos deles ao sul dos carros, ou seja, atrás

de nós. Há ainda uma enorme parede de monstros à nossa frente, mas a ameaça é menor que antes.

Um dos quatro militares restantes joga uma granada no meio dos robôs, causando um flash de luz

e som que me atordoa momentaneamente. Pedaços deles voam em todas as direção, juntamente

com pedaço de concreto. Não consigo me impedir de ficar feliz.

É quando ouço um som incomum: um grito de mulher. Ao me virar vejo Silvia correndo

para cima de nós. Ela ainda está com a aparência impecável, mas seu rosto demonstra terror. Ela

corre desajeitadamente e parece estar chorando. Desce a encosta da montanha em direção à rodovia

e apenas quando ela se desequilibra é que eu vejo os animatrônicos atrás dela.

São dois. Deve ter havido mais, mas estes parecem ser os remanescentes. Eles correm atrás

dela como cachorros correndo atrás de um gato. São obviamente muito mais rápidos que ela, e

quando estão perigosamente próximos dela, eu atiro. Minhas balas afundam a cabeça de um, mas

o outro é pego apenas de raspão. Ele dá uma guinada para frente e se lança sobre Silvia, que é

derrubada.

Ela cai de joelhos no chão, mas o peso da lataria de metal do animatrônico faz com que ela

acabe completamente no deitada no chão. Eu vejo o robô elevar a mão para enfiar as garras

metálicas nela. Tenho poucos segundos para reagir, mas é como se o tempo houvesse desacelerado.

Eu vejo o brilho do metal novo pronto para matar e que ninguém além de mim percebeu que Silvia

está sob ataque. Seria fácil simplesmente fingir que eu não a vi, simplesmente ignorar essa mulher

a quem odeio nesse momento de necessidade. Mas esta não sou eu. Eu não sou aquela que vê

alguém em perigo, mesmo que meu pior inimigo, e simplesmente deixa que ele afunde. Então,

meio contrariando meus instintos, eu aponto o braço metálico e puxo o gatilho.

Ele é lançado para trás, à distância e por tempo suficiente para que Silvia saia de debaixo

dele. O braço metálico arrancado está no chão, mas isso não impede que o robô desmembrado

deixe de investir. Ele se lança novamente contra ela. Contudo, eles dois agora estão próximos de

mim. Minha visão é perfeito, consequentemente, meu tiro é certeiro. A cabeça dele explode em

centelhas e ele desaba.

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Mas não Silvia.

Ela continua correndo para mim, e quando está a menos de dois metros, se lança sobre

mim.

- Me salve – diz ela, com os olhos vermelhos de chorar e o terror transparecendo em seu

rosto. Ela poderia ser uma mulher em pânico, e eu poderia ficar com pena. Mas ela não se

compadeceu ou se colocou no lugar de Richter ou no meu lugar ao planejar daquele jeito. Ela foi

inescrupulosa. Eu não deveria tratá-la diferente.

Empurro a arma em minhas mãos para o peito dela. Ela olha do objeto para mim e de mim

para ele novamente.

- Salve-se você mesma – digo, lançando a ela meu olhar mais cheio de desprezo e

arrogância que encontro. Ela parece apoplética. Eu a deixo desse jeito, de joelhos e atônita.

Volto à Richter. Pego de dentro de sua sacola uma pistola – minha arma favorita – e um

pente de munição. A batalha continua se desenrolando.

Formamos uma linha de frente mais organizada agora. Se Silvia estiver nos ajudando,

estamos em sete. Isso parece mais uma contenção ao ataque agora, não mais como se estivéssemos

perdidos. Ainda estamos perdidos. Mas agora parece que estamos menos. Ou talvez isto seja

apenas minha esperança falando mais alto.

Eu atiro no peito de um animatrônico para impedi-lo de pular e sigo atirando em sua cabeça.

Eu me sinto animada ao me ver acertando. Começo a ficar arrogante, de certa forma. Eu antevejo

que Tommie será atingido por um animatrônico correndo. Ele parece pronto para chutá-lo. Eu dou

uma corrida até ficar de frente para Richter. A organização da nossa linha é mais ou menos assim:

Silvia ou ninguém (caso ela tenha decidido não entrar na batalha), eu, um militar chamado Julian,

o militar que auxilia Richter, chamado Michay, Richter em seguida e por fim Tommie – acabamos

descobrindo, porque Richter não achou fácil ou mesmo educado ficar chamando todos e cada um

deles de soldado. Todos estão virados em direção à massa monstruosa e não veem o perigo

iminente.

Eu me abaixo para evitar a linha de tiro e atiro contra as pernas do animatrônico em questão.

Ele vai ao chão. Atiro em sua cabeça para finalizar. E é quando uma explosão repentina de tiros

de metralhadora – minha metralhadora Uzi – seguida por um grito rápido. Quando me viro, vejo

Julian caído com buracos escuros na parte de trás de sua cabeça e uma poça de sangue saindo

deles. E também vejo Silvia se recuperando do coice da arma.

Inicialmente, penso que algum animatrônico está novamente portando armas, e que teremos

de nos proteger detrás de uma barricada novamente. Minha mente programada para sobreviver

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quer ignorar fatos óbvios, mas eu tomo o controle. Em primeiro lugar, eles não estão mais portando

armas, uma vez que estão se lançando diretamente para cima de nós. E mesmo se estivessem, não

haveria como eles atirarem por trás de nós, acertando Julian na nuca. Não, esse ataque partiu de

nosso lado.

Eu não creio que isto está acontecendo. Ela... Ela o matou? Enquanto volto à minha posição

na fila para substituir Julian, eu não paro de pensar isso. Meu peito está carregado e eu respiro com

rapidez. Ela é um perigo com uma arma. Mas por que ela o matou? Será que tentou destruir algum

robô que julgou uma ameaça e sem querer atirou em Julian? Essa explicação seria plausível, não

fosse pelo fato de eles estarem vindo para cima de nós, não em diagonal, excetuando aquele que

ia atacar Tommie. Quando me aproximo o suficiente, vejo seu rosto retorcido de ódio. Eu não sou

mais alta que Silvia, não muita coisa, mas com certeza sou mais forte. Custo a acreditar que isso

foi acidente.

Com um movimento rápido, viro a mão com que ela segura a arma automática para longe

de mim e dos outros e arranco-a dela. Ela não protesta, porém o olhar que ela lança para mim

revela o quanto ela gostaria que aquelas balas tivessem me atingido. Essa ideia prevalece, e eu a

abraço.

Viro-me novamente para a montanha de monstros. Eles parecem não parar de vir, mas há

algo errado, algo que torna esta luta quase justa. Estamos em cinco agora – considerando que Silvia

não vai mais pegar numa arma e Julian está morto. Há hordas deles vindo em nosso encontro, e

mas é como se eles estivessem correndo devagar ou sei lá. Como se estivessem nos dando tempo

de revidar. Isso não faz sentido algum. Por que robôs enviados apenas com o intuito de nos

exterminar estariam sendo piedosos? Isso me faz lembrar também de quando eu ainda estava no

Shopping Mall, e de como as coisas aconteceram estranhamente. Quer dizer, o primeiro monstro

contra o qual lutei – e de maneira alguma poderia me esquecer disso – foi um lobo enorme de

metal, e eu consegui derrotá-lo apenas com minha força e uma porta – coisa demais para explicar

agora. E em seguida, Gael e eu lutamos contra eles com nossas próprias mãos e elementos que

encontramos pelo caminho. Sempre parecia haver pontos fracos neles, ou pelo menos pontos não

tão fortes, à maneira como deveriam ter sido projetados. Estes aqui parecem iguais. Se foram

projetados de maneira a nos destruir, então por que parecem estar hesitando? Ainda mais. São

robôs. As possibilidades do que eles podem fazer são quase infinitas, tais como pular a dezenas de

metros e correr mais que seres humanos. Isso tudo, desde o começo, não faz sentido. Mesmo não

sendo esta a hora certa para ponderar sobre o assunto, ele também não desgruda.

Acho que não sou a primeira a ouvir. Mas com certeza também não sou a última. Eu nunca

fui ao show de um elefante, mas sei que deve ser algo muito barulhento e intenso. Finalmente é

conspícua a diminuição na quantidade de robôs que estão vindo contra nós, mas isso não me alivia.

Eu acho – eu tenho certeza, aliás – que já ouvi um som parecido. Um som como o de um...

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Meus pensamentos ganham forma quando o animatrônico enorme aparece da mesma curva

de onde saíram os monstros de metal comuns. Eu digo comuns por causa da forma e do tamanho

deste, e digo enorme pelos mesmos motivos. Ele é realmente gigante, do tamanho de um elefante-

da-savana – lembro-me de ter estudado um pouco sobre esses animais em biologia em algum ano

da escola. As presas são gigantes e mortais, e as patas são grossas como pneus. A única coisa que

o torna diferente do elefante orgânico é a falta de uma tromba. E ao mesmo tempo em que meus

pensamentos ganham forma, eles desaparecem.

O troço corre para cima de nós com ferocidade e inclemência, e sai atropelando seus iguais

sem dó. Ele usa a tromba para jogar para fora do caminho aqueles que não saem voluntariamente.

Quando chega aos nossos carros, atropela dois deles, e a força com que eles são acertados faz com

que um voe despenhadeiro abaixo e o outro encosta acima. Deve estar correndo a uns setenta

quilômetros por hora, mais o peso de sete toneladas. A única coisa que tenho tempo de fazer é

gritar:

- Rich!

Ele e Michay ouvem meu pedido e correm em minha direção. Se sairmos da linha imediata

dele, sobreviveremos momentaneamente. Precisamos sair por tempo o suficiente para que ele

mude de direção, novamente à norte de nossa posição atual, para termos uma chance de atirar nele

pelas costas. Ele está rápido demais para conseguir corrigir o curso, mas vai parar quando perceber

que não nos matou.

O problema é que não apenas eles escutam meu chamado. Não que eu não queria que Silvia

Heatcliff se salve, até fico feliz que ela pense rápido e não espere por mim para ajudá-la. O

problema é que Tommie também escuta. Ele está muito mais longe de mim que Richter e Michay,

e o caminho que terá de percorrer para chegar até nós é maior. Porém eu não posso ficar para ver

o que vai acontecer. Eu corro para o declive íngreme que há do outro lado da estrada e me jogo

sobre a mureta que limita a estrada. Meu corpo passa facilmente por cima dela, mas eu continuo

agarrada a ela. Permito que meu corpo deslize para baixo, mas continuo me segurando firmemente

à ela. É um plano precário, mas é único que tenho – se eu me soltar, vou rolar até o fim íngreme

do declive e literalmente cair em queda livre do despenhadeiro até acabar na floresta (não preciso

dizer morta).

Eu ouço os estrondos que são os passos do animal metálico trovoando o asfalto e um

momento depois vejo Richter, Michay e Silvia me imitar e saírem do meio do caminho do elefante.

E escuto um barulho de trituração também, o qual prefiro não pensar sobre.

Quando os passos colossais desaceleram, os outros e eu imediatamente subimos. Ralei meu

joelho e antebraços fazendo essa acrobacia, mas realmente é uma dor pouco importante no

momento.

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De volta à rua, eu vejo a cena que estava tentando evitar há momentos. O corpo de Tommie

esmagado é como um outdoor insistente sobre nossa impotência. Não há nem mesmo tempo para

ficar enjoada, pois o monstro de metal em formato de elefante sem tromba já está preparando seu

próximo ataque.

Prometo ficar de luto por cada um destes soldados em breve. Assim que tudo isso acabar.

Se um dia acabar.

Vejo o monstro metálico olhando para nós, mas sinceramente não consigo dizer como ele

faz isso, pois eu não consigo enxergar o local onde as câmeras que lhe servem de olhos estão

localizadas. É como se ele fosse cego...

Tiros podem ser ouvidos de detrás de mim, e quando me viro vejo Richter e Michay

derrubando os animatrônicos que ainda estão em pé. E logo após descubro o elefante-da-savana

começando a correr, atraído pelo som dos tiros. É isso! Ele se guia pelo som!

- Richter! – berro, forçando-o a se virar. O elefante ainda está lento, mas um golpe dele

poderia quebrar ossos com extrema facilidade, isso sem falar em jogar o injuriado declive abaixo.

Ele parece não compreender o que está acontecendo.

Movida pela necessidade de salvar meu amigo, dou uma corrida por alguns metros até estar

a pouca distância do animal. Ele desce a cabeça enorme e depois sobe, investindo um golpe com

as presas de metal maciço. Eu me abaixo para evitar o golpe e projeto meu corpo para frente. Atrás

dele, eu atiro em sua cabeça, sabendo que não irei desativá-lo de forma alguma. Só quero divergi-

lo.

Sou bem sucedida. O monstro fica atordoado com as ondas de som vinda dos dois lados.

Diferente dos animatrônicos comuns, parece alheio ao dano em sua carcaça. Ele não desacelera,

contudo, e sim continua correndo, mas vira a cabeça para trás, para mim, o que dá tempo a Rich e

Michay de saírem de sua rota. Eles vem para o meu lado, e juntos continuamos atirando

incessantemente nas costas do bicho.

Ele para de correr completamente e começa a se virar. Seu corpo é enorme e obtuso, e por

conta do pouco espaço ele é forçado a se girar no próprio eixo devagar. Seu curso, porém, é

peculiar. Ele parece saber exatamente onde fica o limite da estrada e, quando se movimenta, seu

eixo central. É quando eu descubro: a máquina foi projetada para andar na rodovia. Ele não pode

sair desse curso. Por isso ele não tem olhos. Ele se baseia na audição. Isso quer dizer que o

processador central fica em algum lugar entre as presas. É a explicação que faz mais sentido.

Eu sei o que preciso fazer.

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- Richter – digo, parando de atirar, depois me aproximo de Richter apenas o suficiente para

ser seguro. – Richter – chamo novamente. Ele para de atirar e olha para mim, mas não abaixa a

arma ou desvia a linha de tiro. – Você ainda tem granadas? – pergunto. Ele levanta uma

sobrancelha para mim e faz cara de desentendido. – Eu preciso! Eu tenho um plano – acrescento

antes que ele abra a boca, que era o que ele faria a seguir. Ele procura rapidamente nos bolsos, mas

não encontra.

- Ky, não tem como a gente deixar isso para depois? – pergunta ele. Já não está mais

olhando para mim. Está mirando no elefante robótico à nossa frente. O monstrengo começou a

correr agora, e está começando a acelerar. Ele vê que eu não saio do lugar, por isso solta uma

lufada de ar e rosna. – Michay, tem alguma granada?

Michay, que está a uns dez metros de mim, olha rapidamente em minha direção e começa

a procurar nos bolsos ainda atirando com apenas uma mão. O objeto de metal voa em minha

direção, e eu a agarro canhestramente. Fico em dúvida se devo ou não tirar o pino de segurança

agora, porém este realmente não é o momento para ficar indecisa. Eu seguro a granada com a mão

esquerda e minha metralhadora com a direita. Tiro o pino da granada.

Eu corro em direção ao elefante robótico. Ouço Richter berrar meu nome, ouço correr atrás

de mim em pânico, realmente assustado. Se isso der errado, ele terá motivos para ficar assustado.

Meu coração acelera ainda mais, e meus pulmões parecem não serem capazes de suportar mais

que pequenos goles de oxigênio. Eu me sinto voando, correndo rápido como o vento.

O monstrengo ainda não começou a acelerar, por isso é quase segura a manobra que estou

tentando fazer. Há sulcos feitos por balas em seu rosto, se é que assim posso chamar, mas nenhum

destes buracos é grande o suficiente para o que estou planejando.

Quando estou a menos de cinco metros do animatrônico, eu pulo. Pulo para cima de sua

presa esquerda.

O vento sopra fortemente ao meu redor, insistentemente tentando me puxar para baixo,

para sob as patas pesadíssimas que sem sombra de dúvida vão me esmagar. O animal de metal está

começando a pegar velocidade, e essa minha manobra está ficando mais perigosa a cada segundo.

Sei que estou escorregando daqui, por causa do meu próprio suor, mas não posso cair. Se cair,

tudo, literalmente, estará perdido.

Aponto a arma para a carcaça de metal do elefante desajeitadamente, e não consigo

encontrar firmeza ao mirar. Os primeiros dois tiros formam uma linha para cima, e os outros três

formam um triângulo tosco. Eu me impulsiono para cima e tento chutar o triângulo que fiz, mas

não tenho força o suficiente. Quando tento pela segunda vez, consigo, e o triângulo afunda para

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dentro. Eu pressiono rapidamente a trava de segurança da granada e vejo-a cair, e instintivamente

jogo o objeto para dentro do buraco que produzi.

Eu não preciso me jogar de cima da presa para escapar da explosão. O elefante faz um

movimento rápido para a esquerda e depois um longo para a direita, me lançando de cima dele. Eu

não tempo de gritar, realmente. Estou voando para cima da encosta da montanha em um segundo.

Estatelo minhas costelas contra o chão duro ao mesmo tempo em que escuto uma explosão

colossal. Acho que agora realmente quebrei as costelas. Eu rolo encosta abaixo à mesma medida

que ouço o rugido do metal raspando asfalto.

Eu consegui! Eu derrubei a coisa. Sozinha! Estou toda ralada e sangrando, mas estou viva

e meus amigos – bem, Richter está, então o resto é resvalado a segundo plano – também estão, e

isso é o que importa. Imediatamente estamos a salvo.

Levanto-me sofregamente, coberta de meu próprio sangue, terra e pedaços de grama, além

de meu vestido estar rasgado em vários pequenos pontos, mas eu nunca me senti tão bem. Minha

metralhadora foi parar em algum lugar na rua, sei lá onde, e ainda há uns poucos animatrônicos

comuns remanescentes, mas eles são poucos, e Richter e Michay já estão dando conta deles. É só

então que noto que Silvia não está com a gente. Não há como não esperar pelo pior.

Eu corro até o último local onde a vi, nas barreiras que separam o limite da estrada do

começo do declive. E lá está ela, lutando para continuar se segurando.

Pego sua mão e a puxo para cima. Ela aceita minha ajuda de mal gosto, mas não quer

morrer. É ainda mais pesada do que eu imaginei, mas como eu já havia dito antes, este não é o

momento para reclamar de coisa alguma.

Quando me dou conta, Richter e Michay estão ao meu lado, ajudando-me a puxar a mulher

para cima. Mesmo com cortes superficiais nos pulsos e encharcada de suor, essa vaca ainda parece

uma droga de candidata a presidente. Mas isso não é capaz de estragar minha felicidade por estar

viva. E quando eu vejo Richter com o braço esquerdo ferido e seu rosto apresentando um sorriso

tímido para mim, não consigo me conter.

Estou suja e ferida e cansada, mas abraço Richter com energia mesmo assim. Minhas

costelas doem com o inferno, mas eu ignoro essa dor e continuo o abraçando. Ele me envolve com

seu braço são, e eu sinto as lágrimas vindo à superfície.

Estamos vivos até agora. Mas mesmo não sabendo se irei continuar viva por muito tempo,

tudo com o que me importo é esse momento.

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Capítulo 11 – Segundos

Sobramos apenas quatro: Richter, Michay, Silvia e eu.

É Michay quem dirige. Afastamos os destroços de animatrônicos que estavam no caminho

com o máximo de cuidado possível – alguns deles ainda se moviam debilmente. Com o caminho

limpo, entramos no carro menos danificado e seguimos viajem. Não como se nada houvesse

acontecido, apenas ignorando as mortes.

Estou exausta demais para chorar. Encosto-me no ombro de Richter e observo a estrada.

As lágrimas nem mesmo entaladas em minha garganta estão. Eu simplesmente não as tenho.

A estrada é longa e cheia de curvas, mas finalmente – finalmente – chegamos à uma cidade.

Eu não faço ideia do nome desse lugar, e Richter também não o informa a mim. Não faço questão

de saber. Quanto mais rápido estivermos no Palácio da Enseada, melhor. Eu só percebo agora que

o Palácio do presidente se encontra em uma enseada. Ou seja, perto do mar. Me pergunto onde me

encontrarei cara a cara com o presidente. Isto é, se é que me encontrarei com ele.

Depois do massacre que aconteceu há minutos, eu me pergunto porém se aquele monstro

terá colhões para me encarar. Se souber que eu sobrevivi. E quem sabe se não mandará atiradores

de elite me assassinarem no momento em que eu pisar no Palácio. A única coisa que posso fazer é

esperar que ele queira me enfrentar cara a cara.

A cidade onde entramos é bonita e clara, realmente como esperaria que fosse uma cidade

presidencial. Nossa SUV crivada de balas de balas realmente parece descolada neste lugar

imaculado. As pessoas que caminham pelas ruas largas arregalam os olhos e apontam para o carro

enorme perfurado como um queijo suíço. As janelas estão levantadas, o que confere ao carro uma

aparência ainda mais enigmática. É realmente inacreditável que as janelas estejam inteiras.

Richter passa o braço por cima de meus ombros e me dá um abraço caloroso. Eu retribuo,

sabendo que esta talvez seja a última vez que tenha a oportunidade de abraçar meu amigo.

Não, diz a voz em minha cabeça. Não é a última vez. Você vai sair dessa viva, e vai poder

abraçar Richter novamente e chorar de felicidade em seu ombro. É o que eu espero.

Ele sorri para mim quando eu levanto o rosto para ele. Em seu sorriso há esperança. Assim

como também tristeza. Eu sorrio de volta para ele, e tento transmitir toda a esperança que tenho

com esse sorriso.

Antes mesmo que eu perceba, estamos na estrada que leva ao palácio. Antes do início dela,

porém, há algo que parece um pedágio aparece. Mas não é um pedágio. É um portão de segurança.

Há algo como uma cerca elétrica no topo de cada metro dele, feita com o que acredito serem fios

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de aço finos como linha de algodão. Em vários pontos da contenção há homens armados,

provavelmente esperando por invasores.

Michay dirige devagar até a entrada e para. A janela do seu lado é baixada, e do outro lado

um homem com rosto severo lhe dirige um olhar inquisidor. Vejo a postura de Michay enrijecer.

O homem continua olhando para Michay por alguns segundos antes de balançar a cabeça em

aquiescia rapidamente e voltar para a cabine de controle. Os homens que ladeiam o portão

deslizante dão alguns passos para a esquerda, dando passagem ao nosso veículo.

Eu sinto meus órgãos se contorcendo. Está realmente acontecendo, então. Isso quer dizer

que eu em breve estarei cara a cara com Brokeraven – se, como já havia considerado, ele não me

matar antes. O caminho que leva à casa no fim, próxima à praia, é de cimento branco. O carro

desliza facilmente pelo declive, e eu consigo ver o fim do caminho a algumas centenas de metros.

A grama verde e fresca é cortada apenas pelo caminho que estamos seguindo, encimada por raros

arbustos de flores. O terreno do Palácio é imenso. O céu acima é azul e vasto, e não há nuvens.

O carro para a uns duzentos metros da entrada. Um grande grupos de homens vestidos

como Richter e Michay se aproxima do carro e, sem prévio aviso, abrem as portas e nos tiram de

dentro.

Sou puxada para longe de Richter, o que faz com que eu grite a plenos pulmões e me debata.

Richter! Eles não podem matá-lo! Tudo a que me prendo é a mais essa esperança perdida. Os

outros detalhes, como Silvia estar sendo levada na mesma direção do meu amigo, passam

despercebidos. Por favor, me deixem ficar com ele antes do momento final!

Porém não me é permitido esse último desejo. Ele é arrastado para longe, e parece estar

gritando meu nome, me pedindo ajuda. Richter é forte e insistente, sei que ele vai encontrar seu

caminho até mim. Porém os minutos se passam e sua voz se distancia, e ele some de vista,

juntamente com o grupo de homens que o leva.

Eu começo a chorar. O grupo de homens que antes me segurava agora se dissipou, todos

partindo na mesma direção para onde levaram Richter – para uma entrada alternativa ao Palácio,

um lugar de onde eu não poderei recuperá-lo. Eu tenho correr atrás deles, mas... Mas Michay me

impede.

Ele me segura contra seus braços, e antes que eu comece a tentar percebo que ele é forte

demais para mim. Não sendo páreo para ele, fico flácida em seus braços. Eu desabo e choro. Choro

de medo, pela perda, de raiva. As lágrimas vêm, rápidas e incessantes. Eu demoro a perceber que

ele não está mais me impedindo de correr. Está apenas me abraçando. E eu estou debruçada sobre

ele, tentando colocar os caquinhos do meu coração de volta no lugar. Estou tão assustada! Tão

intensamente apavorada! Isso tudo está no fim, e pode ser o meu fim. A pressão é gigante e

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horrível. E eu me lembro de Victor, e do quanto eu sinto sua falta. Se eu pudesse voltar no tempo,

diria a ele o quanto eu o amo, mesmo que ele fosse ficar constrangido e ruborizado. E eu escolheria

um dos garotos agora mesmo, apenas para poder dizer a ele o quanto eu o amo e sentirei sua falta.

Mas acima de tudo queria que fosse Richter aqui comigo. Ele se tornou meu melhor amigo, uma

pessoa em quem eu confiaria minha alma sem pensar duas vezes. O peso de tudo pelo que já passei

vem agora em forma de um único sentimento confuso, uma amálgama de sensações ruins e

distintas. E eu apenas choro.

Não obstante, da mesma forma que eu comecei a chorar, eu começo a parar. Os soluços

dão lugar a silêncio. As lágrimas desesperadas dão lugar à um rosto seco. O peso incomensurável

de antes agora não passa de indiferença. Minha mente me protege da onda de sentimentos dessa

forma. O único resquício de dor em mim restante é a raiva. Um ódio profundo e incessante. A

centelha está lentamente chegando à pólvora. E falta pouco para que eu exploda.

Em algum ponto, eu solto Michay. Ele parece desconfortável, por isso agradeço a ele por

ter me ajudado.

Sobramos apenas os dois aqui. Todos os outros desapareceram Palácio a dentro. Eu ainda

não morri, o que só pode significar que Brokeraven quer acabar comigo ele mesmo. Ou pior. Pode

significar que está esperando que Gael apareça.

Mas Michay não parece querer esperar por Gael. Faz um movimento com a cabeça

indicando que eu o siga, e eu o faço.

Fazemos o caminho que antes estávamos fazendo. Caminhamos lentamente pelo concreto

quente, nossos passos ecoando fortemente. A centelha em mim está se transformando em uma

chama. O silêncio entre ele e eu é confortável.

- Preparada? – pergunta Michay quando estamos a apenas dez metros da entrada. As portas

de mais de três metros em arco é bastante desafiadora agora. Porém eu a encaro com coragem.

- Acho que nunca estarei – respondo.

Dentro do palácio sou conduzida por outro grupo de homens. Estes não parecem tão amigáveis

quanto aqueles que trabalhavam para Silvia, contudo. Michay é deixado para trás, acompanha

outro grupo. Acho que ele vai ficar bem, mas aqui dentro nada é certo.

O lado de dentro, por onde o grupo de quatro homens me leva, é fresco e claro. Há muita

iluminação natural, e a cor marfim impera aqui dentro. Tapetes da cor abafam meus passos, e

alguns vasos também coloridos na tonalidade possuem flores brancas. O corredor é grande e

espaçoso, deve possuir uns dez metros de largura, pontuado apenas por algumas poucas entradas,

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também com muito espaço. O pé direito deve ter uns quatro metros. Eu deveria estar me sentindo

lisonjeada por estar dentro deste lugar, contudo sinto apenas aversão.

Os quatro homens estão ao meu redor como um tipo de círculo, como se eu fosse fugir a

qualquer momento. Ah!, qual é! Eu vim até aqui sozinha! Se Brokeraven realmente pensa que eu

vou dar para trás agora, ele deve estar muito louco.

Seguimos o mesmo corredor por vários metros, até que ele se abre num tipo de saguão de

teto alto, ainda mais alto do que o normal, que começa depois de uma escadaria de poucos degraus.

A laje é transparente, feita de algo que parece vidro, e a luz do sol que entra forma desenhos

abstratos no chão. É um lugar realmente bonito, que leva a outros corredores largos adjacentes.

Seguimos em frente, depois de sair desse saguão, seguimos pelo corredor a esquerda.

Passamos ao lado de uma biblioteca ou um tipo de escritório, e continuamos até o que

acredito que seja a saída. É uma saída. Uma porta de vidro aguarda.

Do lado de faro, estou num pátio imenso. O sangue ribomba em meus ouvidos como

tambores. Há arbustos nas laterais demarcando seus limites, e o pátio termina em uma encosta

convexa de pedra, seguindo a praia de areia clara. Seria uma visão bonita, se a situação não fosse

esta.

Há um círculo de pessoas me esperando, simplesmente. Realmente não é tão “glamoroso”

quanto eu esperava. Sei lá, acho que esperava algo mais épico e grande. Não sei dizer exatamente

o quê. Este é o dia em que Brokeraven planeja me matar. Acho que esperava mais grandioso.

Há um tipo de equipe de televisão documentando. Uma ou duas câmeras apontam para meu

rosto sujo e machucado, e outra aponta para ele. Os convidados variam de políticos à delegados.

Eu corro os olhos por eles, tentando reconhecer rostos, mas eu nunca fui uma garota exatamente

antenada ao cenário político, então não faço ideia de quem são essas pessoas. Provavelmente são

aquelas pessoas sobre quem Silvia comentou uma semana atrás. Se eu atacar o presidente, essas

serão as pessoas que me executarão. Estou em desvantagem esmagadora. Tudo o que me resta é

esperar pelo melhor – mesmo sendo difícil ver esse lado.

E lá no meio, sorrindo maliciosamente para mim, ele. Brokeraven.

O sangue lateja com intensidade em meus ouvidos, ainda mais agressivo que antes. Eu realmente

nunca estive tão furiosa em toda a minha vida, de verdade. Uma lágrima escorre de meu olho

direito. Eu pisco para afastar as demais. Esse é o homem que arruinou tudo. Não só minha vida,

mas a de mais milhares de pessoas. Este é o homem que decretou que vidas humanas não passam

de peças em um jogo cósmico. Este é o homem que brinca de deus e decide, com um gesto

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desdenhoso, quem ficará vivo para ver a luz do sol mais uma vez. Este é o homem que matou

Victor. E, acima de tudo, este é o homem que se proclamou nosso rei.

E eu sou a mulher que o desentronizará.

Seu sorriso sardônico atinge meu âmago. Sinto meu interior se aquecendo, como se a

chama simbólica que eu havia imaginado fosse algo real. Meu coração está batendo com a força

de uma britadeira. Estou perdendo minha calma. Tento me manter serena, mas outra lágrima

escapa, e agora há um bolo em minha garganta. Não sei onde foi parar meu medo, mas com certeza

não está comigo, e a sensação estranha em minha garganta é a prova; meu ódio se tornou tão

profundo que está me fazendo chorar.

Ele se aproxima alguns passos, mas para ainda longe. Seu sorriso aumenta. Eu já havia

visto seu rosto antes, em noticiários e jornais, mas jamais me atentei a ele. Eu não precisava – não

tinha preocupações patentes. Isto é, claro, antes de ele destruir minha vida.

Suas feições são magras, mas ele não é magro. Aliás, tem um rosto saudável e bem

alimentado. Seus cabelos são brancos e macios, penteados para trás, e sua barba segue o mesmo

padrão, espalhando-se por todo o seu rosto. Seus olhos são pequenos e astutos, como os de um

gato. Porém gatos não ascendem à presidência e saem por aí matando gente. Ele tem basicamente

minha altura, sendo pouca coisa mais alto, se for. Porém sua expressão corporal consegue desafiar

a minha – de alguém capaz de romper uma rocha apenas com as unhas. Eu entendo agora como

ele conseguiu angariar proteção, e garanto que não foi só com o dinheiro que ganhou quando se

livrou do antigo presidente: ele inspira confiança. Até mesmo a maneira como se move faz com

que as pessoas a sua volta acreditem que ele sabe o que está fazendo. Eu aposto que ele realmente

sabe.

- Como vai, senhorita Freya? – pergunta-me ele, sua voz a personificação da zombaria. –

Tem passado bem?

Ah! Pelos céus! Eu tenho vontade de esganar esse homem. Eu respondo a ele com a voz

esganiçada, toda a minha dor e ódio ficam claras como a luz do dia.

- O que você espera, seu desgraçado?! – Eu grito. A sensação desconfortável em minha

garganta alivia um pouco, mas o peso da realidade ainda é esmagador.

Ele dá uma risadinha, como se eu não passasse de uma adolescente dramática fazendo birra.

Seu sorriso é tão confiante de si que eu sinto nojo.

- Não se sinta mal, querida. Em breve você não será mais importunada. Ah!, e por falar em

importunar, onde se encontra seu fiel companheiro, Gael Mitchel?

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- Gael está morto! – eu grito a plenos pulmões. A maneira como eu informe isso, como eu

protejo seu nome com tanta veemência, faz com que os presentes acreditem em mim. Ele não tem

como saber que Gael não está morto. Ele poderia ter falecido naquele ataque contra nós a caminho

daqui. Algo me diz que essa era sua intenção. Seu sorriso se expande, um balão se enchendo de ar.

É isso o que faz as lágrimas escorrerem livremente. Não estou atuando, contudo.

Eu não vejo, mas sei que é o que ele faz, pela entonação que usa. Ele se vira para as câmeras

que estão gravando ou transmitindo isso e fala com firmeza.

- Povo de Aeris. Vejam agora a situação da criança que escolheram como heroína. Vejam

a miséria daquela que vocês decidiram apoiar, ao invés de seu líder e eu salvador. – Ele faz uma

pequena pausa dramática para que a câmera focalize em mim. Um dos soldados dá um empurrão

em mim e eu caio de joelhos. – Eu sou a única pessoa que pode salvar este país, e a única pessoa

que sabe o que é melhor para vocês. – Ele faz outra pausa. Eu vejo outra pessoa vindo, uma mulher

pequena e com cabelos escuros. Ela parece uma secretária ou algo do gênero. Traz em suas mãos

uma caixa grande de madeira. Eu começo a me levantar a medida que a mulher se aproxima. Parece

um tipo de ritual, algo muito mais simbólico do que real. É apenas quando ele puxa um revolver

Magnum de dentro dela que eu descubro o quão real é esse ato.

“Contudo, algumas vezes é necessário que o líder use força bruta para ensinar à seus

subjugados o que é o poder. Algumas vezes é necessário que vocês apenas se rendam à vontade

daqueles que estão acima de vocês. E algumas vezes é necessário que haja símbolos para que as

pessoas compreendam essa mensagem. Um deles foi “Aniquilação”, o jogo que criei há quase um

ano, constituído, para aqueles que não se lembram, de fechar centenas de pessoas no recém-

construído Shopping Mall e obrigá-las a lutar contra máquinas e contra si mesmas, sem que

houvesse sobrevivente ao seu fim. Se vocês acreditam que aquilo que eu planejei não passa de

crueldade, estão completamente enganados.”. Eu descubro nesse instante: esse cara é muito

insano! Nada do que ele disse faz sentido! Matar pessoas inocentes apenas para demonstrar quem

está no poder? O que ele pensa que é nossa vida? Um filme? Ele pega a arma em suas mãos e

checa o tambor. Obviamente está toda carregada. Ele não se vira para mim, pois continua falando

com as câmeras. Eu tenho certeza de que isso tudo está sendo transmitido nacionalmente.

“Todo aquele jogo foi arquitetado para mostrar que não há alguém que esteja acima da lei,

ou que seja mais poderoso do que aquele que governa. E para reforçar isso, no dia de hoje darei

fim à única sobrevivente remanescente do que lhe foi planejado”. Ele se vira para mim brevemente,

antes de voltar a olhar para as câmeras. “Kaya Freya ousou desafiar as vontades de seu líder, e foi

seguida por milhares que pensaram que ela fosse um tipo de heroína. Não obstante, essa criança

não passa de uma menina teimosa e desrespeitosa. É de meu conhecimento que vocês tomaram

essa menina como sua heroína. Porém, no dia de hoje, vocês a tornarão seu mártir”.

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Ele se vira para mim, apontando-me o revólver. Seu sorriso é frio e calculista. Mas eu não

tenho medo. Não estremeço diante de sua ameaça.

E uma calmaria muito súbita e diferente se instala em mim. Eu jamais havia sentido ódio

igual. A sensação é quente e densa, como mel, e se apodera de todos os meus sentidos. Acredito

que esse é o tipo de sentimento que antecede um arroubo de fúria.

- E tudo isso já estava planejado desde o começo, né? – pergunto em voz baixa, mas é

suficiente para que ele escute. Sua expressão seguinte demonstra surpresa, mas meu interesse na

concepção da trama o deixa fascina.

- É claro que tudo já estava planejado, senhorita Freya. Ou a senhorita acredita que eu

arranjaria animatrônicos programados com instintos assassinos de um segundo para o outro? – Ele

gargalha com vontade, como se a ideia lhe fosse ridícula. – Não, senhorita Freya, não. Se há algo

que deveria ter aprendido durante toda sua jornada fugindo tão veementemente de mim é isso.

Todos devem se curvar perante minha vontade, jovenzinha. Todo e cada engenheiro e arquiteto

envolvido na construção do Shopping Mall em Canem também sabia. Eu dou as cartas por aqui.

- Então você simplesmente construiu esses monstros para me destruir? – questiono. Sei que

estou enrolando-o, no entanto eu preciso. Preciso de tempo para pensar em como lutar contra um

homem com uma arma. Ele gargalha novamente.

- Eu sei o que você está fazendo, senhorita Freya. Todavia eu vou lhe contar. Até porque –

ele se vira em direção às câmeras por um momento com elegância – acho que a nação merece

saber. – Ele dá um sorriso gentil. Ou é essa emoção que ele deseja transmitir sorrindo. – Os robôs

são japoneses, senhorita Freya. Antes não seriam para seu propósito atual, porém meus

engenheiros são realmente brilhantes. As máquinas maiores são produção nossa, se quer saber.

Todo o sistema, desde o início, foi plano meu, executado por aqueles que trabalham para mim,

inclusive a inteligência. E caso você pense que eu não sei sobre seus amiguinhos escondidos em

algum canto, não se engane. Eu sei que Marvee Frost está com você, e que você fez contato com

indígenas na área central do país. Nenhum deles está livre. Meu país me serve, senhorita Freya. E

ele encontrará os rebeldes e os exterminará, assim como no dia de hoje eu exterminarei você.

Ele aponta a arma para o meio dos meus olhos. E eu... Eu começo a rir. Rio

compulsivamente.

Eu compreendi finalmente. Eu não sobrevivi tanto tempo sozinha. Eu jamais estive sozinha.

Gael e eu fomos ajudados todo esse tempo, mesmo dentro do Shopping Mall quando, há tanto

tempo, nós deveríamos ter sido mortos. Nós fomos poupados não por nossa força. Como eu havia

notado, cada monstro que nos perseguiu possuía um ponto fraco, uma parte vulnerável, uma

maneira de ser derrotado. E aqueles policias que nos perseguiram assim que saímos do Shopping

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Mall podiam ter nos capturado facilmente. A ideia de Gael havia sido boa, fingir nossa morte. Mas

ficamos expostos. Poderíamos ter sido pegos. Não fomos por esse simples motivo:

Todas essas pessoas já são insurgentes. Engenheiros, policias, funcionários públicos,

cidadãos. Todos eles se revoltaram silenciosamente de alguma forma. Criando maneiras de

sobrevivermos ao massacre, permitindo que nós nos escondêssemos, não nos delatando, e

trabalhando contra Brokeraven. Marvee era um insurgente. Richter também. E muitos mais. E isso

me faz rir.

- Você pensa... – começo, entre gargalhada e outra. – Você pensa que... – Não consigo

falar. Eu me curvo rindo. Ele fica aturdido, realmente sem saber como reagir. Acho que de todas

as reações imagináveis, rir era a última que ele esperava. – Você realmente pensa que comanda

alguma coisa! – Eu rio tanto que minha barriga dói. Quando finalmente consigo me controlar, eu

finalmente digo: - Ninguém está a seu favor, Brokeraven. Ninguém o obedece. Ninguém o teme.

Se não fossem estas pessoas – digo, apontando para eles brevemente –, você já não estaria no

poder!

- Não me faça rir, Freya. A mim você não engana. E eu sinceramente estou ficando cansado

dessa merda – diz, ressaltando a última palavra. Ele mais uma vez aponta a arma para mim.

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Capítulo 12 – Final

Aqui estou eu, de frente para o homem que mais de uma vez me arruinou. Fui atacada, ferida,

perseguida, esmagada, magoada, provocada e destruída. Contudo também fiquei mais forte, e

aprendi algumas coisas. Em primeiro lugar, o desejo de ninguém – ninguém – de me ver morta

seria em momento algum mais forte que meu desejo de sobreviver. E não há nada que eu não possa

fazer, se quiser. Eu sou uma garota forte, e nada assolará meu espírito.

Eu vejo seu dedo polegar puxando o cão do revólver devagar, saboreando cada segundo e

preparando-se para me matar. O ar cheira a maresia e o dia está claro. Neste momento somos

apenas ele e eu, como se todas as pessoas ao nosso redor simplesmente houvessem desaparecido.

Eu encaro meu oponente nos olhos, pronta para o que quer que esteja vindo. Eu não me atrevo a

respirar. Seu dedo indicador encaixa no gatilho.

Não tenho a opção de falhar. Eu vejo sua mão retesar sobre a arma, o dedo pressionando o

gatilho alguns milímetros à medida que ele aproveita a sensação gloriosa de acabar de uma vez

com todas comigo.

A imagem do garoto que eu amo – que eu realmente amo, acima dos outros – vem à minha

mente. E junta da imagem dele, a imagem de Victor, meu melhor amigo. É a consciência de que

eles estiveram em minha vida que me dá vontade de prosseguir com ela. A vida de Victor não foi

sacrificada em vão, e a vida de meu amado não será um abismo escuro de forma alguma.

A explosão estrondeia acima de minha cabeça. Eu soco seu braço direito com antebraço

esquerdo para cima no momento em que ele puxa o gatilho completamente.

Sem interromper meu movimento eu dou uma cotovelada nas costelas dele com o cotovelo

direito enquanto o pulso dele ainda está no alto. Jogo o peso de meu corpo para cima dele, para

derrubá-lo. Ele não cede facilmente, mas pelo menos a arma em sua mão cai com um ribombar

metálico. Antes que eu tenha tempo para reagir, ele estapeia meu rosto com as costas da mão, mas

a sensação é de um soco com o punho cerrado.

Eu sinto uma explosão de sangue em minha boca com força para me fazer rodopiar e cair.

Para um senhor da idade dele ele é bastante forte. Ainda tonta eu percebo que ele está se abaixando

para pegar o revólver. Sem pensar duas deles, empurro meu corpo para frente e chuto a arma. Ela

desliza pelo chão com um ruído agudo, mas isso não o impede de continuar tentando buscar a

arma.

Impulsionada por uma injeção de adrenalina, eu me levanto, ainda sentindo o sabor do

sangue se espalhando em minha boca, mas não mais sentindo a dor dos arranhões e concussão. A

arma foi parar quase no meio do pátio, e ele corre canhestramente para recuperá-la.

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Eu faço um movimento que nem mesma eu esperaria: eu pulo nas costas dele. O impacto

assomado à maneira como ele está curvado faz com que ele vá ao chão. A arma está a uns cinco

metros de nós, perto o suficiente para que ele a alcance se esticar o braço. Esse pensamento vem à

minha cabeça como um espinho em minha pele: não posso deixá-lo alcançar o revólver.

Balanço-me sobre ele para o lado oposto da arma, tentando leva-lo para longe, mas ele é

duro na queda. Ouço meu próprio ganido de frustração quando ele consegue se equilibrar mesmo

comigo em suas costas e colocar a mão sobre a arma. Eu salto em cima dele, e agarro sua mão.

Tem início uma pequena batalha pelo poder da Magnum. Se ele ganhar, poderá facilmente

me empurrar para longe e atirar em mim. Se eu ganhar, terei uma chance a mais de lutar.

Eu consigo enfiar meus dedos entre os dele e tirar o metal quente da mão dele. Impulsiono

meu corpo para trás para me levantar ao mesmo tempo em que ele tenta se virar para me pegar.

Ele dá uma braçada em mim, o que é doloroso mas também me ajuda a levantar.

Enfim em pé eu jogo meu braço para trás e jogo o revólver longe. Só me dou conta da

idiotice que fiz quando ele também se levanta e dá uma cotovelada em meu rosto, aproveitando-

se do fato de eu estar curvada de jogar sua arma tão longe. A arma desliza pelo chão até desaparecer

encosta abaixo.

Eu literalmente vejo estrelas. Elas pontuam minha visão e permanecem por um bom tempo,

mesmo depois de Brokeraven investir fisicamente contra mim. Fico sem fôlego imediatamente

depois de sentir uma pressão horrível no estômago, o que imagino ser um soco ou outra cotovelada.

Eu me curvo para frente: cometo um erro. Sou atingida por outro soco no rosto fortemente, e

consequentemente sou lançada para trás.

Estatelo-me no chão. Eu abro os olhos, mas a luz é ofuscante. Tenho apenas alguns

segundos para vislumbrar Brokeraven vindo para cima de mim com os punhos cerrados.

O primeiro soco faz minha cabeça bater no chão dolorosamente. Eu penso que vou perder

os sentidos, mas continuo acordada quando ele desfere mais um soco em mim. Sucessivamente ele

continua me batendo, e eu continuo mantendo minha cabeça longe do solo. Se eu bater a cabeça

novamente no chão vou desmaiar! Estando ele sentado sobre meu dorso, não há maneira fácil de

escapar. Eu puxo meu braço e coloco na frente do rosto, mas ele me afasta e continua a me agredir.

Minha mente está girando a mil quilômetros por horas, triturando as informações na tentativa de

encontrar uma saída.

A força que emprego na investida é tanta que a cabeça dele é jogada para trás quando meu

punho acerta seu queixo. Sei que é uma coisa ridículo de se pensar, principalmente no meio de

uma briga, mas uma força maior dentro de mim emprega força em meu punho quando eu o acerto.

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A deixa dele quando eu acerto o soco em seu queixo é o suficiente. Eu acerto seu peito da

maneira que consigo até que ele esteja longe de mim. Sinto o sangue escorrendo por meu rosto,

mas esta é a última sensação com a qual me preocupo. O ódio que eu sinto é intenso e intermitente,

tendo agora se tornado espesso e quente como magma. Eu corro até ele e, com a ajuda do impulso,

dou-lhe um chute, sem me importar com o lugar que meu pé acerta. Tudo o que me importa é o

efeito.

O velho está combalido no solo, assustado com a repentina mudança de figura. Quando

próxima o suficiente, eu me debruço sobre ele, colocando um joelho em cada braço seu. Sei que

não sou pesada o suficiente para mantê-lo no chão por muito tempo, mas tento mesmo assim.

Uso a mão direito para socá-lo, e cada golpe tem um significado diferente. Victor, Gael,

Marvee, a tribo de Arati, Richter, Siobhan, cada soldado de Silvia morto durante a batalha, cada

pessoa morta naquele jogo macabro. Eu mesma. Não percebo os nós dos meus dedos machucados

e ensanguentados, nem o rosto dele parecendo ter sido moído. Só me preocupo em bater nele.

Estou ficando cansada, e ele sabe disso. Assim, quando eu hesito, ele me empurra. Eu caio

para trás, sabendo que não terei chance se ele continuar investindo, porém neste momento tudo em

minha mente é obstinação.

Quando ele está prestes a vir para cima de mim, quando eu vejo em seus olhos chamas

mortais que acabaram de uma vez por todas com minha vida, ele para. Sua expressão voa do ódio

para a inexpressão e então à frieza. Seu rosto perde a cor e seus olhos o foco. A mancha escarlate

que se abre no lugar onde imagino que fique seu coração parece uma placa de neon com a palavra

“assassina” berrando.

E ele cai.

Eu só percebo a arma em minhas mãos – a arma que serviu ao seu propósito – quando

observo a fumaça saindo de seu cano.

E neste momento eu finalmente percebo que acabou.

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Capítulo 13 – Princesa de mármore

Eu serei metralhada!

Eu espero as balas perfurarem meu corpo ao me lembrar que ainda estou rodeada de pessoas

que não defender Brokeraven pelo dinheiro que ele os dá. O que eu fiz foi errado, foi um crime, e

mesmo que as pessoas ao meu redor não me odeiem porque eu matei o homem que lhes dá dinheiro,

têm o direito de me matar pelo crime que cometi! Eu assassinei alguém!

Mesmo assim, quando vejo o cadáver do homem que começou todo esse pesadelo, eu não

consigo me arrepender. A crescente sensação de alívio em mim não para de vir, e eu a abraço como

faria com uma boia salva-vidas. Mesmo que eu morra imediatamente, pelo menos acabou. Uma

poça de sangue começa a se formar no chão sob o corpo do ex-presidente, confirmando aquilo que

fiz – como se a arma que ainda está em minha mão direita não fosse confirmação o suficiente.

Mas as pessoas neste recinto que serviam Brokeraven não se manifestam. O som do disparo

ainda ressoa em minha mente à medida que eu foco cada rosto presente.

Suas expressões faciais variam entre a falta dela à raiva. Não consigo dizer se estão com

raiva de mim ou do morto. Eu não consigo decifrar. Neste momento, minha mente viaja a cem

metros por segundo. Eu sei o que tenho de fazer, e sei que preciso fazer isso logo. Preciso fugir

daqui antes que alguém venha atrás de mim, antes que eles se deem conta do que eu fiz. Duvido

que estas pessoas estejam apenas atônitas.

Mas.

Há algo que eu entendi apenas agora, ou pelo menos que eu só admiti agora: quem mata o

presidente se torna o presidente. A pergunta “Por que então ninguém no passado tentou assassinar

Brokeraven?” passa por minha cabeça, mas eu não atribuo a ela prioridade. A questão principal é

essa: eu agora sou a presidenta. É isso o que Silvia quis dizer. Não sei dizer se há maneira justa ou

diferente de trazer à presidência outro candidato, mas imagino que Silvia já tenha planejado isso.

Se eu disser que renuncio e que indico Silvia como nova presidenta, isso funcionará?

Não obstante, não consigo fazer isso. Eu levanto meus olhos do rosto das pessoas ao meu

redor para as câmeras filmando isso. Eu sei o que preciso dizer. Se eu realmente estou no poder

agora, mesmo que por poucos segundos, não posso então deixar que essa linha maligna prossiga.

Não posso permitir que Silvia seja o segundo Brokeraven, ou pior. Quem sabe se ela não mandará

pessoas atrás de meus amigos e parentes apenas para me apagar dos registros? Acima de tudo,

temo que ela faça pior do que Brokeraven fez: que ela repita o jogo “Aniquilação”.

Assim, quando eu sei que o cameraman está focalizando em mim, eu respiro fundo.

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- Povo de Aeris – começo, mesmo sabendo que é um começo ridículo. – Aqui quem fala é

Kaya Freya... – Minha voz morre.

As palavras ficam travadas em minha garganta.

Quem eu sou? Se essa pergunta fosse feita a mim um ano atrás, eu responderia sem hesitar.

Mas o tempo passou e as situações não são normais. Eu com certeza não sou a garota de um ano

atrás. Eu sei que me perdi no meio do caminho, e que muitas vezes não tive certeza de quem eu

era. Mas agora eu sei.

Eu sou Kaya Freya.

Eu sou uma sobrevivente a um massacre e à perseguição ferrenha.

Eu sou uma garota que ama três garotos, e que terá de escolher apenas um, mesmo sabendo

que isso partirá o coração dos outros dois.

Eu sou a garota que mais que tudo neste mundo deseja que as pessoas que ama fiquem

vivas e sejam felizes, mesmo que para isso seja necessário que eu morra.

Eu sou a garota que não permitirá que os erros do passado sejam cometidos novamente.

Eu sei quem sou.

- Meu nome é Kaya Freya. Eu sou a nova presidente de Aeris. – A confiança em minha voz

é muito maior do que a que eu realmente sinto. – Seu antigo presidente, Abraham Brokeraven, já

não está mais em poder. Eu estou. – Faço uma pequena pausa. – E decreto algumas mudanças

daqui para frente.

“Em primeiro lugar, não mais poder absoluto terá o presidente. Daqui em diante, mesmo

aquele que carrega o poder absoluto está sujeito às penas da lei. Não é minimamente justo que o

presidente possa fazer absolutamente tudo o que quer. Além disso, é obrigação total do presidente

ser o responsável pelo quadro político do país. É responsabilidade dele, daqui para frente, o quadro

econômico. Ou seja, se vocês não estiverem contentes com a situação com a qual vivem, é a ele

que irão cobrar, diferente da maneira como vem acontecendo.

“Além disso, não mais haverá mais a lei da sobrevivência. O presidente não mais será eleito

por sua sagacidade, sua capacidade de eliminar seus oponentes. Para ser justo, haverá eleições, e

o presidente será escolhido pelo povo, que é quem realmente importa aqui.

“Por fim, como meu último decreto, exijo que estas leis não sejam jamais revogadas. E

antes de abdicar meu mandato, eu solicito que sejam feitas eleições daqui a uma semana, tempo o

suficiente para que os candidatos à presidência que realmente querem fazer bem a este país

apresentem suas propostas.

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“Eu renuncio a presidência”.

Eu vejo... Silvia. Ela vem em minha direção com os punhos fechados e fogo nos olhos. Eu a encaro

de igual para igual. Este deveria ter sido seu momento de glória, o momento em que ela finalmente

consegue tudo o que quer. Mas ela se enganou se pensou que eu ia deixar que ela cometesse os

mesmos erros. Esse é o fim.

Quando está a dois metros de mim, ela me estapeia. O estalo de sua mão contra meu rosto

ressoa fortemente. Mas eu não me movo. Não reajo. Nem mesmo olho para ela. Simplesmente

permito.

- Nós tínhamos um trato – diz ela entredentes, furiosa. Seus olhos estão marejados,

molhados de lágrimas não derramadas. Mas eu não me comovo. Assim como sei que ela também

não ia se comover com o sofrimento da população. Ela até pode ter consciência da situação da

população, mas não tem compaixão para com eles.

- Se você realmente quer ajudar Aeris – digo, olhando agora para ela –, então as pessoas

vão ficar do seu lado. Mas se sua intenção era simplesmente tomar o lugar daquele lixo – digo,

referindo-me a Brokeraven –, então me desculpe por estragar seus planos.

- Você me paga – ameaça-me ela, falando tão baixo que apenas eu escuto.

- Experimente – rebato. – Experimente e eu grito para todo o país ouvir que tipo de pessoa

é você.

Ela se cala, mas eu sei que em sua mente ela grita. Sua vontade deve ser me mandar me

matar agora mesmo. Os soldados – aqueles que trabalhavam para Brokeraven e aqueles que

compactuavam com Silvia – estão se reunindo agora no pátio, cercando-nos para retirar o corpo

inerte do chão.

- Vá em frente e experimente – digo, também em voz baixa. – Faça o que quer fazer. Faça

em frente às câmeras. – Eu me inclino na direção dela. – Eu não tenho mais medo, Silvia. Não

tenho medo de você, nem do mundo. E agora que eu não tenho mais o que temer, não vou deixar

que outras pessoas sintam medo por causa de pessoas como você. Quer realmente comandar esse

país? Ótimo. Faça isso. Mas não pense que vai brincar com a vida de qualquer um, Silvia. Você

pode ser forte, mas não é invencível.

Seus olhos emitem chamas. Mas ela não faz nada. Empertiga-se e arruma a roupa, depois

pigarreia, recuperando a pose autocontrolada. Ela se parece um pouco mais com a mulher que

conheci uma semana atrás, mas não completamente. Eu frustrei seus planos. Ela agora me odeia.

A possibilidade de ela me matar depois do fim disso é descomunal.

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E ela sorri. Sorri para as câmeras, sorri para mim, sorri para todos os presentes. Então

começa seu discurso. Começa a falar tudo o que havia me falado uma semana atrás, sobre a

economia, sobre as leis contra as quais não concorda.

E eu saio. Passo pelas pessoas amontoadas no lugar com rapidez, apenas querendo

distância. Tenho de procurar Siobhan o mais rápido possível. E se Richter ainda estiver vivo,

também.

Dou uma corrida até o lugar em que imaginei ser uma biblioteca ou escritório e olho o

interior, mas não há ninguém lá, apenas mais militares nos corredores e alguns aliados de

Brokeraven – que já não estão mais mancomunados a eles. Volto ao saguão de teto alto que, antes

vazio, agora está apinhado de gente conversando e caminhando para todos os lados. É realmente

incrível que eles estejam trabalhando tão rápido após apenas alguns minutos desde que Brokeraven

foi morto.

Vejo duas pessoas se abraçando, mas meu coração não se aquece. Se eu não encontrar

Siobhan, então nada disso terá valido a pena...

- Ky!

Era Richter. Era ele quem abraçava a mulher, e a mulher era uma Siobhan com os olhos

marejados. Ele me viu por cima do ombro da garota e agora corre para me abraçar. Ela também

vem.

Ele está vivo. Richter está vivo, Siobhan está viva, e isto é tudo o que importa. Eles me

abraçam ao mesmo tempo, e pela primeira vez em tanto tempo eu sinto minhas pernas fraquejarem.

Ele não estava pedindo ajuda lá atrás. Estava gritando para que eu fosse forte. Para que eu

permanecesse viva. E eu fiz isso por ele.

Eu cedo sobre o peso de meu corpo, agora chorando compulsivamente. Não seria a primeira

vez hoje, mas é a primeira vez em quase um ano em que as lágrimas são de felicidade. De alívio.

Estou livre. Finalmente livre. Se continuarei assim depois da ascensão de Silvia Heatcliff

ao poder, não poderia dizer. Mas por ora, acabou. Não. Estou sendo pessimista. Realmente acabou.

Para sempre. Brokeraven não está mais aqui para ameaçar aqueles que amo. E eu choro por isso.

Richter e Siobhan me seguem, sentando-se comigo e chorando também. Os dois me

abraçam, e esta é a primeira vez que sinto Siobhan como uma irmã mais velha. E eu sinto as mãos

dos dois dadas em minhas costas. Não estou enganada. Eles se amam, de verdade, como eu

imaginava. Acredito que as pessoas ao nosso redor simplesmente nos ignoram; elas não nos

incomodam. Neste momento, nada poderia.

Estou livre.

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Nada pode estragar isso.

Este pesadelo enfim acabou.

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Capítulo 14 – Destino

Dirigimos o caminho todo conversando animadamente, mas duas vezes foi necessário que Richter

e Siobhan trocassem de lugar enquanto dirigiam por causa da ansiedade – nenhum dos dois

aguentou mais de uma hora inteira fazendo os mesmo movimentos mecânicos quando podiam

enfim respirar aliviados e se amarem livremente. No fim, Siobhan acabou aceitando dirigir até

próximo da Universidade, onde Richter assumiria o comando novamente, para que durante esse

meio tempo ele pudesse descansar um pouco. Acho que Siobhan está particularmente animada em

poder voltar à sua vida normal. Quer dizer, quase.

Eu sei que ela e Richter vão ficar juntos. Eles se amam. Sei disso desde a primeira vez em

que os vi. E fico imensamente feliz por eles. Estes dois finalmente terão a chance que merecem de

poder se amarem em segurança, sem que haja monstros lunáticos e policiais os perseguindo e a

ameaça iminente de morte pairando sobre suas cabeças. Sei que isso deveria se aplicar também a

mim, mas não sei como farei isso. Porque, gostando ou não, terei de sacrificar dois corações

quando voltarmos à Universidade Yurievna. Também não há mais essa ameaça sobre mim, mas

não sei com reagir a isso.

Para mim pareceu muito menos tempo a volta de carro com meus amigos para a

Universidade que a ida para o Palácio da Enseada. Bem, isso é facilmente explicável, para ser

sincera. Além de a situação na qual nos encontramos ser completamente diferente, o carro

emprestado por Michay também é mais rápido e macio. Isso tornou a viagem agradável e leve.

Quando o cansaço me venceu, eu dormi no banco de trás. Finalmente depois de tanto tempo

eu pude dormir sem me preocupar com a possibilidade de morrer durante o sono. E eu sonhei com

Victor. E em meu sonho eu pedi a ele desculpas. Por tudo o que já pensei de mal sobre ele. Por ter

sido uma amiga ruim quando ainda não imaginava que as coisas podiam ficar ruins. E ele me

confortou. Mais uma vez me confortou. Sei que essa parte foi só uma lembrança, mas ele me disse

que eu não havia sido uma amiga ruim, e me agradece por ter sido sua amiga. E evocou outra

lembrança: uma vez em que nós dois estávamos em uma feira no Ano-Novo Chinês. Ele era mais

alto que eu, e eu estava usando um cosplay, com direito a gravata e uma flor na cabeça. E toda a

felicidade daquele momento voltou a mim.

Éramos tão inocentes. E eu era tão feliz. Eu apenas não sabia disso. E mais tarde, quando

acordei ainda no banco do carro, continuei deitada apreciando a sensação do sonho que ainda

remanescia em mim. Ainda sinto o alívio por ter posto um ponto final nesta história, mas não posso

fingir que não sinto falta daquele pedaço específico de mim. Em momento algum eu me esquecerei

de Victor, e em momento algum eu poderei fingir que eu não sinto sua falta. Mesmo quando eu,

no futuro, estiver com o garoto que escolhi, eu ainda chorarei sua falta.

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Mas não hoje.

O dia de hoje será apenas reservado a comemoração. Talvez eu volte para a casa de meus

pais – e pensar que durante todo esse trajeto eu quase não pensei neles. Sei que quero continuar

me correspondendo com o garoto que eu escolhi. Seria loucura querer morar com ele? Espero que

não.

Eu sinto o carro parando e vejo Rich descendo. Estamos chegando. Eu me sento e sorrio

para os dois. O sol já se pôs lá em cima, e está bastante escuro. Mas mesmo sem conseguir ver

completamente a estrada que estamos seguindo, consigo dizer que não é a que usamos da primeira

vez – quando, há mais ou menos uma semana, nos escondemos aqui, esperando que o refúgio

servisse. Ao invés disso, Richter passa direto por aquela estrada. Seguimos em frente até o retorno,

onde Richter volta à caminho da Universidade. Agora já não precisamos mais nos esconder,

compreendo. Não há mais necessidade de entrar furtivamente.

Eu nunca havia visto a Universidade Yurievna pela frente, nem vejo no escuro. Mas sei

que estamos entrando pela entrada principal. Durante o tempo em que fiquei encarando Silvia mal

pensei no pai de Richter, Rurik, e no quanto ele ficará frustrado ao saber que seus planos de

conseguir poder embasando-se no poder de Silvia. Bem, estaremos partindo deste lugar amanhã

pela manhã, ou seja, isso realmente não importa mais.

Descemos do carro quando Richter para no estacionamento. Minhas pernas estão

ligeiramente adormecidas e andar causa comichão em mim, mas eu sigo firme. Como Richter sabe

exatamente para onde estamos indo, seguimos ele, mas não antes de eu notar Richter

espontaneamente segurar a mão de Siobhan antes que comecem a caminhar. O olhar que ela dá a

ele é tão cheio de significado que até eu compreendo. “Eu te amo”, diz ela claramente. “Eu também

te amo”, parece responder ele.

Caminhamos sob o céu sem lua nem estrela e nos dirigimos ao refúgio. Eu vejo ao longe a

árvore onde Arati e eu nos beijamos, e sob a qual eu conversei com Gael. Ela realmente não parece

a mesma agora. Não é necessário, contudo que nós entremos: os três estão esperando por nós, seus

rostos máscaras de ansiedade e preocupação, principalmente o de Gael. Se ele houvesse vindo

comigo, talvez eu não tivesse a oportunidade de enrolar Brokeraven, e talvez os dois estivéssemos

mortos agora. Não pense nisso, me repreendo. Está tudo acabado agora.

Quando veem a nós três sãos e salvos, os rostos dos três se iluminam em sorrisos carregados

de alívio. Eles sabem o que significa estarmos todos reunidos aqui.

Mas antes que corramos para o abraço, algo me impede. Eu não preciso olhar para Richter

ou Siobhan ou falar com eles para saber o que estão pensando. Eu preciso escolher. E a hora é

agora.

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Estão os três olhando para mim: à esquerda, o índio Pavuna de pele avermelhada, cabelo

longo e olhos castanhos-chocolate, Arati, a quem eu sempre atribui meus instintos. Estar com ele

é trazer à tona tudo de mais natural em mim; no meio, Gael, com seus cabelos loiros brilhantes e

olhos verdes, e a ele eu sempre atribui e atribuirei segurança. Ele está nessa comigo desde o

princípio, e estar com ele significa atender ao meu lado assustado, pois ele pode preencher minha

necessidade de segurança; e à direita, Marvee. Seus olhos e cabelos negros parecem um mar de

tranquilidade mesmo na tempestade. É a ele a quem atribui sempre a serenidade. Estar com ele

sempre me acalmou, mesmo quando as coisas estavam irremediavelmente ruins.

Os três lançam a mim o mesmo olhar súplice: sabem que chegou o tão aguardado momento.

Eu sorrio para os três, vendo imagens de mim com cada um deles, vendo a vida que eu poderia ter

com cada um deles, mas no fundo tomei minha decisão.

Lembranças das sensações dos lábios de cada garoto no meu são insistentes, e um fantasma

do perfume deles volta, como uma brisa suave acariciando minha pele. Eu sou extremamente

sortuda por possui-los em minha vida. E eu os amo, amo intensamente, amo tanto que dói em mim.

Porém eu não posso continuar com isso por mais um segundo. Parte meu coração ter de negar

qualquer coisa a estes garoto que amo tanto, mas eu prefiro tirar o band-aid de uma vez só a

prolongar a ferida.

A tensão explode quando eu estico meu braço e abro a palma de minha mão, convidando

apenas um deles a se juntar a mim.

O escolhido sabe que é ele. Ele sorri para mim, e eu retribuo o sorriso da maneira mais feliz

possível. Uma risada silenciosa escapa de meus lábios. Ele se aproxima. Posso sentir o coração

dos outros dois se partindo, e junto com eles também a ligação que os mantinham me amando. Ao

mesmo tempo posso sentir a ligação entre nós se fortalecendo, nossos corações se unindo como

um só.

Posso ver os outros dois baixando as cabeças pelo canto do olho, mas não posso me

preocupar com isso agora. É egoísta, mas não posso. É o melhor para eles.

Eu te escolhi porque realmente te amo, digo ao garoto que escolhi apenas com meu olhar e

minha mão estendida. Ele segura minha mão ao se aproximar, e retribui meu olhar. Sei disso, e

também te amo, é o que a emoção em seus olhos parece transmitir.

O beijo que dou suavemente em seus lábios sela o que eu havia imaginado, a explicação a

tudo o que nunca nem passou em minha cabeça, como um quebra-cabeça finalmente montado,

revelando uma imagem completamente diferente daquela que eu havia formado.

Tudo pelo que passei, todas as coisas que sofri e perdi, todas as guerras e todas as

depressões, todas elas foram apenas um prólogo, uma missão enorme e difícil que tive de enfrentar

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para descobrir o verdadeiro final, como um jogo de videogame cósmico com uma cena final

perfeita. É ele o homem que eu amo, e tudo o que houve comigo me levou a isso.

Porque tudo pelo que lutei não foi para destruir um tirano e reestabelecer a paz e segurança

em um país sem esperanças.

Tudo pelo que lutei não foi por vingança pessoal, nem pelas pessoas que amei, nem mesmo

por mim mesma.

Lutei pelo meu destino. Meu verdadeiro destino. Foi necessário batalhar até aqui para

descobrir isso.

Ele é meu verdadeiro destino.

Fim.

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Agradecimentos

Quase um ano se passou desde o lançamento do quinto livro da série – brincadeira. Mas mais de

um ano – ou quase – se passou desde o lançamento do primeiro livro de Destino, e vocês realmente

não sabem como é duro estar dizendo adeus a estes personagens que eu tanto amo.

Sinceramente, escrever Destino foi uma experiência completamente nova para mim,

contando todos os acessos de raiva, desistências e crises existências que vieram no pacote. Não

obstante, não me arrependo de nada. Faria tudo de novo.

Não é um adeus à série, definitivamente. Você ainda ouvirá falar de Kaya Freya e seus

amigos no futuro, apenas não agora. Nesse momento eu me despeço dos personagens em meio a

lágrimas e muita angústia. Quero dizer, o que eu vou fazer amanhã quando chegar do trabalho se

não continuar a saga de Ky?

Eu tenho, porém, de te agradecer por estar comigo e com todos os personagens de Destino

até agora. Realmente é muito importante para mim. Aliás, nestes agradecimentos, você é o

protagonista.

Agradeço também a Thais Saori, por ser minha amiga, por ter descendência japonesa e

basicamente por ter empurrado minha mente um pouco mais para os extremos – extrema felicidade

e extrema depressão. Eu te amo, sinceramente.

Outra pessoa a quem gostaria de agradecer é a Paloma Camões, diretamente da família do

Luiz de Camões – é cara, ela é descendente daquele poeta português totalmente demais! Todas

aquelas horas jogando papo fora e não atendendo as ligações foram incrivelmente importantes para

mim. Você só não sabia disso.

Agradeço também a Maurício Almeida e Lucas Vince, por serem dois grandes babacas – e

We are never EVER EVER getting back together!

Sem poder me esquecer, agradeço a Maria R. Montozo – minha irmã! –, por ter me ouvido

falar tanto de Destino.

Novamente, agradeço a meus leitores. Eu vivo por vocês, e respiro por vocês. É por vocês

que eu acordo todos os dias e continuo lutando. E isso nunca vai mudar.

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“Sobreviva”. Victor Allen, 1996 - 2014