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Page 1: demencia

ARTIGO ORIGINALSessões de Casos Clínicos - ABP

Veras AB, AyrãoV, Rozenthal M, Blay S, Elkis H, Bottino CM. Demência fronto-temporal. Casos Clin Psiquiatria [online]. Jan-dez 2003, vol. 5, no. 1-2.www.medicina.ufmg.br/ccp

Demência fronto-temporalFrontotemporal dementia

André Barciela Veras (apresentador), Márcia Rozenthal (supervisora), SérgioBlay, Hélio Elkis e Cássio Bottino (debatedores)

RESUMOPaciente masculino, 58 anos. Quadro inicial depressivo aos 53 anos, um anoapós aposentadoria. Com o tratamento, apresentou agitação psicomotora,recebendo diagnóstico de transtorno bipolar. Alternava períodos de apatia eirritabilidade, apresentando ainda mussitação e atitude alucinatória. Numaprimeira suspeita de doença degenerativa, os exames complementaresencontravam-se normais. Agravaram-se as alterações de comportamento,atitudes perseverantes e agressivas; recebeu diagnóstico de doençacorpuscular de Lewy. Aos 56 anos, saiu de casa e se perdeu na vizinhança.Exames mais recentes indicam processo neuro-degenerativo cortical, comsulcos e fissuras laterais marcados, especialmente nos lobos frontais. O casoclínico é discutido por especialistas, em especial quanto à evoluçãosintomatológica e ao diagnóstico.

Palavras-chave: Demência na doença de Pick. Demência fronto-temporal.Episódio depressivo. Agressividade.

SUMMARYMale patient 58 years – He presented initial depression at the age of 53, oneyear after his retirement. During the treatment he presented psychomotoragitation that led to the diagnosis of bipolar disorder. He had periods of apathyand irritability with muttering and hallucinatory attitude. At first speculation ofdegenerative disease the complementary exams seemed normal. His conditionworsened by further behavioral changes, persevering aggressive attitudes

Keywords: Dementia in Pick’s disease. Frontotemporal dementia. Depressiveepisode.

Identificação

C.C.M., masculino, 58 anos, branco, casado, brasileiro, natural do Rio de

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Janeiro, residente em Niterói, agnóstico, terceiro grau completo, aposentadocomo economista da Secretaria de Fazenda.

Queixa principal: Não formula.

Motivo da internação: “Heteroagressividade e alteração do comportamento”.

HDA

Segundo relato da esposa, quando C. tinha 53 anos, apresentou humor triste eanedonia, cerca de um ano após sua aposentadoria. Iniciou tratamento commedicação antidepressiva (venlafaxina) – não sabe informar a dose. Quatromeses após o início do tratamento, apresentou agitação psicomotora, humorirritável e heteroagressividade tendo sido internado no Hospital Pedro Ernesto(enfermaria de Psiquiatria). Recebeu então o diagnóstico de Transtorno Bipolardo Humor e iniciou monoterapia com carbonato de lítio. Durante o ano em queusou essa medicação, alternava períodos de apatia e irritabilidade,acrescentando a essa sintomatologia mussitação e atitude alucinatória. Foiprocurado outro psiquiatra que suspeitou tratar-se de doença degenerativa esolicitou tomografia de crânio, sorologia para HIV, dosagem de TSH, T4 livre,vitamina B12, folato e sorologia para lues. Todos os exames encontravam-senormais (sic). O comportamento do paciente foi progressivamente seagravando, apresentando perseveração do pensamento e jocosidade. Tornou-se agressivo com esposa e filho, não aceitava abordagem de pessoasdesconhecidas e tentou agredir a empregada, sem motivo aparente. A condutado psiquiatra foi suspender o carbonato de lítio e iniciar tentativas comantipsicóticos atípicos – recebeu então o diagnóstico de “Doença Corpuscularde Lewy”.

Aos 55 anos, realizou uma ressonância nuclear magnética que revelouproeminência de sulcos corticais em região frontal. Começou a apresentaresquecimento de fatos recentes e piora dos sintomas já descritos.

Em novembro de 2001, aos 56 anos, C. saiu de casa para comprar cigarros eficou perdido por 24 horas, sendo encontrado pela família próximo à suaresidência. Apresentava diversas escoriações pelo corpo e edema em cotovelodireito; foi levado ao ortopedista. Durante a consulta, impulsivamente agrediuo médico. A família o levou, então, ao Instituto Philipe Pinel e, em 21/11/2001,foi transferido para o IPUB.

História Patológica Pregressa

Paciente apresentou doenças comuns da infância (varicela, sarampo). Negapatologias crônicas (hipertensão arterial, diabetes mellitus, cardiopatias,doença renal e/ou hepática). Nega alergias, transfusões sanguíneas ecirurgias. Nega DSTs.

H. Fisiológica

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Nascido de parto vaginal a termo, sem intercorrências. A família negaalterações de desenvolvimento psicomotor.

H. Familiar

Tia paterna faleceu aos 56 anos, internada em hospital psiquiátrico, segundo afamília com quadro semelhante. Não fornecem maiores informações.

Pai e mãe falecidos, a família não sabe informar a causa.

Irmã com transtorno depressivo maior, no momento, em remissão.

H. da Pessoa

C. é o mais velho de uma prole de três. Completou o terceiro grau e trabalhadesde os dezoito anos.

Começou a namorar M. (sua atual esposa) com a idade de 17 anos, casou-seaos 20 anos, enquanto ainda cursavam, juntos, a faculdade. A esposa diz queC. sempre foi um excelente profissional. Participava ativamente do partidopolítico da sua cidade. Tiveram um filho, hoje com 30 anos.

Mora com a esposa e o filho em Niterói. Após o início da doença, seus contatossociais foram diminuindo progressivamente.

A família nega abuso de álcool ou drogas. Fuma cerca de 2 maços e meio pordia.

Exame Físico

Sinais Vitais: PA 130 x 80 mmHg; FC 87 bpm; FR 19 irpm; Tax 36,3.Somatoscopia: Paciente apresenta-se emagrecido; normocorado, anictérico,acianótico, normohidratado, eupneico, apirético, sem linfonodomegalias.Apresenta extremidades distais de segundo e terceiro quirodáctilos direitosescurecidas pelo hábito de fumar, além de algumas queimaduras leves namesma região.ACV: RCR em 2T; BNF, sem soprosAR: MVUA sem ruídos adventíciosAbdome: indolor à palpação superficial e profunda, ausência devisceromegalias.

Exame NeurológicoMarcha atípica; tônus e força muscular preservados.Reflexos ósteo-tendíneos sem alterações. Reflexo palmo-mentoniano presentebilateralmente. Reflexo orbicular da boca exarcebado. Reflexo cutâneo-plantarem flexão bilateralmente.Ausência de sinais extrapiramidais.Nervos cranianos sem alterações.Não apresenta sinais de irritação meníngea, alterações esfincterianas ou

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tremor de extremidades.Miniexame do estado mental: Dezembro de 2001 - escore 21/30; 25 de marçode 2002 - escore de 13/30; março de 2003 - não coopera.

Exame Psíquico

Encontro o paciente no pátio interno da enfermaria masculina, trajando vestesfornecidas pela instituição. As vestes estão sujas de cinza de cigarro edesalinhadas. Está descalço e em condições precárias de higiene. Ele se dirigeao posto de enfermagem e pede cigarro de forma perseverante. Ao abordá-lo esolicitar que me acompanhe para um outro recinto, a fim de realiza umaentrevista, o paciente apenas desvia o olhar em minha direção e continuapedindo um “cigarrinho”. C. acompanha-me inicialmente sem resistência aoser conduzido pela mão, mas durante o percurso tenta voltar à enfermariadiversas vezes. Essa resistência é facilmente vencida com a insistência de queme acompanhe ou com a promessa de lhe dar um cigarro.

Ao chegar à sala de exame, o paciente senta imediatamente no local indicado.C. permanece com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e o olhar fixo emuma das pessoas que se encontrava a sua frente na sala. Quando chamado pormim, só desvia o olhar após várias tentativas. Informa corretamente seunome, mas em relação às demais perguntas, ou não responde ou o faz deforma breve e pouco compreensível. Diversas vezes, levanta-se em direção àporta, voltando a sentar-se quando interpelado. As etapas do Mini-mentaltornam-se inexeqüíveis pela atenção, praticamente inexistente, ao exame. Naúltima vez que o paciente se levanta para deixar a sala, apenas o observo. C.abre a porta e volta calado para a enfermaria.

Súmula Psicopatológica

Aparência: descuidadaAtitude: indiferente e negativistaFala e linguagem: não fluente, perseverante; ecolalia.Consciência: sem rebaixamento do nível de consciênciaOrientação: desorientação cronopsíquica, desorientação espacial parcial;orientado autopsiquicamente.Consciência do eu: sem alterações ao exameAtenção: hipotenaz e hipovigilPensamento: curso alentecido, forma perseverante, conteúdo empobrecido.Sensopercepção: sem alteraçõesHumor: eutímicoAfeto: embotadoVolição: hipobúlicoPragmatismo: hipopragmáticoMemória: perda das recordações tardias e da capacidade de fixaçãoInteligência: abaixo do grau de escolaridadePsicomotricidade: empobrecidaConsciência de morbidade: ausente.Planos para o futuro: não formula.

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Diagnóstico Sindrômico

Síndrome demencial

Diagnóstico Nosológico

Eixo I: Episódio depressivoEixo II: Empobrecimento intelectual progressivoEixo III: Demência Fronto-temporal (F03 da CID 10)Eixo IV: Início da aposentadoria coincidente com o início do quadroEixo V: Dependência de cuidadores para realização de atividades básicas

Diagnóstico Diferencial

Demência na doença de Pick (F02.0 - CID 10)Demência na doença de Alzheimer (F00 - CID 10)Demência na doença vascular (F01 - CID 10)

Evolução

Dezembro 2001O paciente estava bastante agressivo no início da internação; era difícil aabordagem e a equipe de saúde tinha receio devido à agressividade. Emalguns momentos, recusava-se a tomar a medicação oral. Quando abordado,esquivava-se ou tinha atitude ameaçadora, chegando a agredir, algumasvezes, a equipe de enfermagem. Apresentava também insônia. Foi iniciadotrazodona (25mg/dia), com melhora importante da agressividade e da insônia.Como o paciente apresentava mussitação, alucinação auditiva e negativismo,foram introduzidos olanzapina 10 mg/dia e lorazepam 6mg/dia. Após 3semanas, ainda apresentava mussitação e alucinação auditiva; substituídaolanzapina por risperidona 3 mg/dia, com boa resposta.

Março 2003O paciente permanecia no leito durante quase o dia todo. Levantava-se apenaspara fumar e se alimentar. Não cuidava espontaneamente de sua higienepessoal. Não apresentava mais episódios de agressividade, mussitação oualucinações auditivas. Permanecia em uso de 25mg/dia de trazodona e2mg/dia de risperidona.Recebeu alta em abril do mesmo ano, com seguimento em regimeambulatorial.

Exames laboratoriais relevantes

Transcrição do laudo da RNM de crânio com espectroscopia realizadaem 20/02/2002, no Hospital Barra D or:

“Sulcos corticais e fissuras laterais marcados, especialmente nos lobos frontais.Foco de sinal elevado em T2 e Flair observados na substância branca

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periventricular, nas coroas radiadas, nos centros semiovais e subcorticalfrontal à direita.Sistema ventricular anatômico.Redução significativa dos níveis relativos do NAA compatível com diminuiçãoda densidade neuronal cortical.Esses achados sugerem possibilidade de processo neurodegenerativo cortical.”

Transcrição do laudo da RM de crânio com espectroscopia realizada em11/03/03, no IRM no Humaitá:

“Microangiopatia degenerativa da substância branca, inalterado emcomparação com o exame realizado em 28/03/01.Hipocampos com volume normal.Importantes alterações espectrais na margem posterior do giro do cíngulo.Redução do número e viabilidade neuronal frontal associado ao aumento dosníveis de glutamina e glutamato nesta topografia.”

Debate

Sérgio Blay (Psicogeriatra, Departamento de Psiquiatria da EPM – UNIFESP)

É uma pessoa que tem o terceiro grau completo, grau universitário, com 58anos. Um caso interessante, que começa 5 anos antes com uma históriaaparentemente de distúrbio de humor, sendo conduzido dessa forma. Umponto interessante, a ser explicado, é como as manifestações vão-seorganizando do ponto de vista da história clínica. Eventualmente, pensamosque a história do quadro clínico já vem pronta, mesmo quando se acompanhalongitudinalmente. Mas o que podemos ver aqui é que, ao longo da história, oquadro clínico apresenta-se de formas diferentes. É isso mesmo, a clínica édesta maneira: a psicopatologia muda, o quadro clínico muda e asintervenções mudam. Muitas vezes, aparece um caso clínico que passa porvários médicos, porque nenhum consegue perceber ou antever o diagnóstico e,só passado algum tempo, alguns anos, é que se firma um quadro clínico e setem uma certa clareza do universo do paciente. Muitas vezes, os sintomasiniciam-se de uma maneira e vão-se constituir numa forma sindrômica maisclara muito tempo depois.

Passada aquela fase inicial, em que havia a ocorrência do quadro depressivo,vieram surgindo algumas outras manifestações clínicas, que devem terchamado a atenção de vocês: a questão da agressividade, uma mudançamuito abrupta do comportamento, do modo usual da pessoa. Esta é umaquestão que vem chamando a atenção dos clínicos que o atenderam. E aprogressão foi muito rápida, certo? Quer dizer, desde que se pensou nisso. Eletinha 53 anos no início do quadro e a atual hipótese diagnóstica surgiu mais oumenos por volta dos 55, 56 anos. Há uma evolução muito rápida quanto àacentuação desse quadro deficitário do paciente. Isso é um dado clínicobastante importante.

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Faria alguns comentários a respeito desse quadro deficitário. Observando ovídeo, é evidente o aspecto deficitário do paciente. Mas alguns outros aspectosestão preservados. Gostaria de comentar isso e ver, também, a opinião doscolegas: não sei se perceberam que, quando vai fumar o cigarro, ele éabsolutamente competente para aquelas ações motoras! Estão envolvidasações complexas, motoras complexas, de pegar o cigarro, acender o isqueiro eisso foi rapidamente realizado, ele foi muito eficiente nisso. Então, para umapessoa muito deteriorada e que apresenta uma eficiência motora desse tipo,uma organização desse tipo... Acho que é um aspecto a ser comentado, a serdiscutido, quer dizer, que áreas estão preservadas? Que áreas estãodeterioradas? Essa é uma questão importante, principalmente quando se estãodiscutindo quadros orgânicos e demenciais, e se supondo um quadro frontalimportante. E isso, do ponto de vista clínico, poderia realmente orientar aavaliação dos pacientes? Que áreas estão mais comprometidas, que áreasestariam preservadas e se isso seria um diferencial interessante no exameclínico, para o diagnóstico.

Há uma série de outros aspectos médicos que estão relativamentepreservados. Do ponto de vista clínico geral, ele está relativamente bem, querdizer, a idéia de que manifestasse alguns outros sinais clínicos de problemasvasculares não fica evidente. Se estamos falando de quadros demenciais, deque tipos de quadros demenciais? Esse seria um desafio clínico interessante. Éevidente que estamos falando de quadros fronto-temporais, mas quais seriamas manifestações que estariam levando a uma diferenciação com os quadrosda doença de Alzheimer? Quais seriam os elementos clínicos que nosauxiliariam nesse diagnóstico diferencial? Do ponto de vista de imagem, pareceque os resultados vêm confirmando um pouco as manifestações: essa áreamais comprometida dos quadros fronto-temporais, mais de Pick. Enfim, aimagem está relativamente documentada. Mas as questões sintomatológicas,na distinção dos quadros fronto-temporais da doença de Alzheimer, seriamrealmente importantes. Deveríamos imaginar que as áreas fronto-temporaisestão comprometidas, mas que as áreas mais posteriores estariampreservadas. Nesse sentido, podemos fazer algumas correlações, quer dizer, oque poderíamos perceber na clínica se as áreas posteriores estão preservadas?Será que aquela relativa preservação da atividade motora, no caso de acendero cigarro, levantar-se, acender o isqueiro, essas atitudes complexas significamessa preservação das áreas posteriores? É uma questão a ser discutida.

Outro ponto também a ser levantado: ele tem um déficit importante já global,mas há alguns elementos de memória, em alguns momentos em que é exigidoem algumas tarefas, que aparentemente vêm de pronto. Ele eventualmenteevoca, lembra-se de algumas palavras, até rapidamente, embora aquilo seperca. Será que a memória – até considerando as imagens do hipocampo –está de certa forma preservada, mas sua utilização prejudicada? Quer dizer,até que ponto seria mais um problema dos recursos de utilização? Essa é umaquestão que eu também discutiria aqui.

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Hélio Elkis (Professor Associado Livre Docente do Departamento dePsiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Coordenador da Pós-graduaçãodo IPq-FMUSP, Coordenador do PROJESQ IPq-FMUSP)

Fico agradecido por debater este caso, embora esta não seja exatamenteminha área de atuação. Ontem eu estava entusiasmado com um caso deesquizofrenia na infância apresentado aqui. No final, depois de todo mundoconcordar que era esquizofrenia, pelo menos um quadro psicótico, levantouum colega e disse: “não, isso é um transtorno bipolar na infância”. Aí pegoufogo! Isso não vai acontecer hoje aqui, trabalhos mostram que a concordânciadiagnóstica de quadros orgânicos é muito grande. É muito difícil chegar agorae falar: “não, isso é transtorno bipolar”. É lógico que isso é uma demência. Nãotem muita discussão. A questão diagnóstica seria discutir que tipo dedemência. Por que não é de corpúsculos de Lewy? Por que não é vascular ououtra? Mesmo porque, muitas vezes, as demências se sobrepõem. Segundo arevisão do Lancet, de 2003, todas elas cursam com depressão, todas elasapresentam um quadro depressivo inicial. Exceto, isso que é interessante, ademência de Pick, fronto-temporal (para mim a demência fronto-temporal éum novo nome que estão dando para a demência de Pick). É uma demêncialocalizada que Bleuler chamou de síndrome psicorgânica localizada, cujadiferença da síndrome psicorgânica generalizada era a presença ou não dedistúrbio de memória. Quer dizer, na síndrome localizada, havia preservaçãode memória. Com o progresso da demência de Pick, havia comprometimento,mas, no quadro inicial, a grande distinção estaria na presença ou ausência deum distúrbio de memória. Tudo isso já está sendo narrado sobre essepaciente, basicamente com distúrbios de comportamento, inclusive liberaçãoinstintiva, mussitação e o que vocês chamam de atitude alucinatória. Não sãoalucinações realmente, certo?

Quanto exatamente ele obteve no Mini-mental? E quanto o Mini-mental foicapaz de discriminar, por exemplo, memória? Ou quanto o Mini-mental temessa capacidade? O hipocampo está preservado. Então ele teve 21 em 30...Em termos de ponto de corte, vocês usaram 24 para definir como demência?

Ele tem cinco anos de evolução. Como é a história dessa progressão? Como afamília notou isso? Não está muito claro para mim como o quadro progrediupara chegar a esse ponto em que ele está realmente muito demenciado.

Eu pergunto, ainda, o seguinte: por que ele não pode ter como eixo Isimplesmente uma síndrome demencial? Por que não passar do eixo III, comovocês diagnosticaram muito bem, para o I? Uma demência fronto-temporal, oucomo síndrome demencial.

E quanto podemos discriminar, tanto pelos testes quanto pelo exame clínico,essa questão da memória? Até que ponto podemos fazer um diagnósticodiferencial dos diversos tipos de demência? No caso, para mim, isso é Pick,demência de Pick ou fronto-temporal. Claro, sem dúvida alguma!

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Maurício Viotti Daker

Muito bem, estão aí as cartas na mesa. Abrimos a palavra à platéia, paradúvidas ou complementos.

Sérgio Blay

Eu gostaria apenas de chamar a atenção para a história familiar. Ele tem umatia paterna que aos 56 anos foi internada com quadro semelhante. É um dadoimportante da história familiar. Mas também tem uma irmã com transtornodepressivo maior. Isso manteria o clínico, há cinco anos, em dificuldades.

Uma questão que vem-se discutindo é como começam os quadros orgânicosdemenciais. Estávamos discutindo isso na mesa do Departamento dePsicogeriatria. Os sintomas depressivos podem ser sintomas de entrada, o quedeve nos alertar quanto à conduta e ao acompanhamento desses casos.

Cássio Bottino (Coordenador do Projeto Terceira Idade - PROTER, IPq-USP)

O caso é muito interessante. Inclusive, gostaria de tê-lo debatido em vez docaso seguinte, muito mais difícil. O paciente tem algumas características muitosugestivas de um quadro frontal. Pelo que vimos até agora, e no vídeo, não hádúvida que é um paciente que está demenciado. De fato, a dúvida seria quetipo de demência. Mas é interessante que esses quadros fronto-temporais sãoaqueles que o psiquiatra acaba vendo mais do que o neurologista, em geral,por causa da alteração de comportamento muito importante. Eles procuram osserviços de psiquiatria. No IPq, temos vários pacientes com diagnóstico fronto-temporal. E, de fato, não é incomum começarem com sintomas depressivos.Vemos isso, claramente, pela história. Até porque os quadros fronto-temporais, muitas vezes, oscilam entre esses dois pólos, de apatia ou dehiperatividade. Durante a evolução, podem passar de um pólo para outro.Então, às vezes, esse comportamento apático, meio alheio, pode se misturarcom sintomas de depressão no início. Eu até pensei que isso aconteceu com opaciente. Podemos imaginar, quem sabe, se esse quadro degenerativo já nãotenha começado há mais tempo. E pensarmos que ele tem cinco, seis anos deevolução, está quase na média dos quadros fronto-temporais, ou seja, não épor acaso que ele já está tão deteriorado, se for de fato isso. Mas a minhaimpressão é de um quadro bastante típico, acho que agora não há muitadúvida. A aparência no vídeo, a manutenção de aspectos da memória, querdizer, não é compatível o declínio que ele apresenta com a alteração damemória, que está, entre aspas, relativamente preservada, se fizermos umacomparação com as outras funções. Isso também é típico dos quadros fronto-temporais.

É interessante lembrar que nos quadros que Pick descreveu, muitos delestinham a alteração frontal e outros, a alteração temporal. Posteriormente, coma evolução dos acontecimentos, Ganz acabou agrupando tudo com esse nomefronto-temporal. Mas este caso até parece ser mais frontal mesmo, porque oshipocampos estão preservados, os lóbulos temporais parecem, aparentemente,

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relativamente preservados, parece ser mesmo um quadro de acometimentofrontal. E há vários subtipos neuropatológicos que, na clínica, não conseguimosdiferenciar. Seria interessante se tivesse um teste neuro-psicológico mesmo,porque o Mini-mental, vocês sabem, é um teste muito simples. Um testeneuro-psicológico, portanto, poderia acrescentar.

Concordo com o Hélio, acho que o diagnóstico eixo I dele é fronto-temporal.Ele pode até apresentar sintomas depressivos associados, mas, agora, oquadro demencial predomina claramente.

Outra coisa interessante, que discutimos na mesa de demências não-Alzheimer, é que ele respondeu relativamente bem à trazodona, que não é umneuroléptico. De fato, é um medicamento que usamos, existem diversosrelatos de algum sucesso do uso da trazodona em pacientes com demênciafronto-temporal, que é um quadro muito difícil de tratar. Temos pouco o quefazer, apenas controlar os sintomas de comportamento.

Maurício Viotti Daker

Obrigado, Cássio. De fato, como a mesa colocou, é um caso rico e me parecemuito instrutivo. Acredito que seja relativamente raro, qual a prevalência dademência fronto-temporal, de Pick? É pré-senil?

Cássio Bottino

Os casos fronto-temporais, de fato, se pegarmos os pacientes com iníciotardio, são mais raros. Mas, de início antes dos 65 anos, aparentemente elesrespondem por 10%, às vezes, dependendo da série de pacientes, até por20% dos casos de início precoce. Portanto, é uma alteração importante decomportamento nessa faixa etária, temos sempre de pensar, de investigar apossibilidade de ser um quadro fronto-temporal.

Márcia Rozenthal

Em primeiro lugar, eu queria muito agradecer a escolha do caso pela Comissãode Avaliação, a presença do Dr. Sérgio Blay e do Prof. Hélio Elkis.

Gostaria de ressaltar a dificuldade que tivemos no manejo desse caso e atéfazer um elogio tanto ao André quanto à Vanessa, que foi a residente queinicialmente recebeu esse paciente. Ele chegou com um quadro extremamentegrave, era um paciente de difícil manejo, extremamente agressivo naenfermaria. Havia uma dificuldade da enfermagem na lida com esse paciente,nos cuidados básicos. Ele chegou com o diagnóstico de demência com corposde Lewy, o que limitava a introdução de antipsicóticos, porque pacientes comesse diagnóstico são muito mais vulneráveis a quadros extrapiramidais, asíndrome neuroléptica maligna. A trazodona foi uma opção, inclusive devido aessa dúvida diagnóstica. Veio com esse diagnóstico feito por um colegareconhecido no nosso grupo no Instituto. Portanto, até que o diagnóstico fossebem caracterizado, tínhamos muito poucas alternativas terapêuticas. Mais

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tarde, optamos pela olanzapina, devido a essas dificuldades, e permanecemossempre com atípicos. Este é um ponto que acho importante ressaltar, adificuldade no manejo desses pacientes. Na prática, são pacientes muitodifíceis. A resposta é sempre muito ruim, são pacientes que deterioram. É umasíndrome, uma doença que incide basicamente sobre o comportamento. Vai-sedeteriorando, vai piorando. Tivemos essa experiência muito clara com essepaciente.

É transtorno do humor, ou é... Essa dúvida diagnóstica ocorre até porque asáreas frontais possuem uma ligação muito forte com toda modulação docomportamento. Toda alteração frontal geralmente vai cursar ou comalterações de personalidades, em que podemos ver mais desinibição, agitação,quadros basicamente de desinibição do comportamento, ou então o contrário,quadros de apatia, que é exatamente a descrição inicial, isso é da evoluçãodesse paciente. Quer dizer, provavelmente o que foi chamado de depressão ede “agitação”, e que foi diagnosticado erroneamente como quadro bipolar,provavelmente, já era essa alternância de um quadro de desinibição docomportamento e de um quadro de apatia. Pode ser que, como nessa revisãoque o Hélio mencionou, a depressão seja realmente um quadro depressivotípico, com alterações de humor características, próprias da depressão. Masexistem outros quadros que podem ser confundidos pelo empobrecimento,pela retração social, hipomimia, o paciente vai ficando com um quadrodeficitário.

Em relação ao Mini-mental, eu gostaria de fazer uma ressalva. É um teste parao qual podemos ter uma análise meramente quantitativa. É possível que, sefossemos aplicar o Mini-mental de uma forma dura, tal qual é formulado, essepaciente tivesse uma pontuação muito menor. Quer dizer, perguntando umavez ele não responderia nada. Vocês perceberam que, mesmo quando euperguntei onde ele estava, tive de dirigir a resposta: “Isto aqui é um hospital?”“Qual é o bairro em que nós estamos?” Enfim, é sempre importante observar oque é quantitativo e o que é qualitativo. Nós, inclusive, escrevemos um artigoexatamente sobre isso, sobre a riqueza que o Mini-mental pode nos oferecerem termos de exame qualitativo. Mas, talvez, numa análise quantitativa, tudoisso se perderia. Se transformássemos tudo num número, daria um númerobaixo e poderíamos dizer: “não, isso é Alzheimer!” Mas, no vídeo, pudemos vertoda a riqueza psicopatológica desse paciente, inclusive as disfunçõescognitivas. Ficou claro para todos que era muito mais evidente uma alteraçãoexecutiva da modulação da atividade cognitiva do que, propriamente, déficitscognitivos. Quer dizer, quando ele era bem orientado, quando dirigido, odesempenho melhorava. Naquele último teste em que eu pedi que ele falasseos animais, eu o deixei livre e ele simplesmente se levantou, de uma formadesinibida, e saiu. Ou quando pedia que evocasse livremente, ele falavapalavrão. Quer dizer, é um quadro franco de desinibição, mas, quando dirigido,consegue funcionar de uma forma bem melhor. Portanto acho que todaalteração qualitativa tem de ser descrita. O Sérgio foi muito perspicaz quanto àquestão do cigarro. Isso tudo é relevante. Não precisa fazer um Mini-mentalpara vermos que esse paciente mantém a própria praxis, apesar de já estarcom um curso tão longo da doença. Ele mantém várias atividades que, talvez,

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se fosse um paciente com Alzheimer, com esse nível de gravidade, dealteração de comportamento, provavelmente ele já apresentaria alterações delinguagem muito mais importantes, alterações práxicas, de memória, que nãoé o que chama mais atenção nesse caso. Basicamente são esses os meuscomentários, frisando que toda alteração qualitativa é sempre relevante e quepode-nos orientar num diagnóstico sindrômico, principalmente em quadros emque se pressupõe a presença de organicidade cerebral. Muito obrigada!

AgradecimentosCCP agradece Helbert Antoniazi Salem Campos, residente em psiquiatria doHC-UFMG, pela contribuição na transcrição do debate.

André Barciela Veras*

Vanessa Ayrão**

Márcia Rozenthal***

* Apresentador, Residente do Instituto de Psiquiatria da UFRJ - IPUB([email protected])** Integrante do Programa de Psiquiatria Infantil no IPUB – setor do GEDA*** Supervisora, Médica Assistente IPUB - UFRJ

Endereço para correspondência:[email protected], [email protected]