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OVDIO A interlocuo entre as Metamorfoses de Ovdio e as de Jorge de Sena talvez seja mais intensa do que se suspeita primeira vista, talvez extrapole o ttulo comum, a primeira e sintomtica epgrafe escolhida por Sena, e como quer James Houlihan a traduo que Sena faz da histria de Cfalo e Prcris cantada por Ovdio. Penso, por exemplo, no eplogo do poema de Ovdio a ecoar tanto em Cames dirige-se a seus contemporneos, como em A morte, o espao, a eternidade. No ser tambm ocioso evocar o texto de Ovdio quando, em muitos passos de seus livros, Sena convoca referentes mitolgicos j celebrados pelo poeta latino. Tambm no ser demais recordar que tanto Ovdio quanto Sena vivenciaram a experincia do exlio.PRIMITIVOS o prprio Jorge de Sena quem relembra a seus leitores sua primeira incurso pelo dilogo da poesia com as artes plsticas. Diz ele: De longa data me interessou uma repercusso potica das outras artes. [] Na minha coletnea, Pedra Filosofal, publicada em 1950, mas reunindo poemas de anos anteriores, h uma sequncia de trs pequenas lricas Primitivos que, comentando Uma Anunciao, O Patinir das Janelas Verdes e B antecipa, a uma escala miniatural, os poemas longos sobre objetos pictricos, escultricos, ou afins, que constituem estas Metamorfoses (Sena:151). Em direo oposta, recorde-se que depois das Metamorfoses, Sena publicou vrios poemas que poderiam integrar a coletnea, como, por exemplo, Chartres ou as pazes com a Europa (Peregrinatio ad loca infecta), Piazza Navona e Bernini (Exorcismos), O Hermafrodito do Museu do Prado (Conheo o Sal).QUATRO SONETOS Inicialmente publicados na revista Inveno 2, do grupo Concretista de So Paulo (outubro de 1962), no constituem Os quatro sonetos a Afrodite Anadimena (escritos em 6/5, 14/5 e 20/6 de 1961) fenmeno isolado na obra de Jorge de Sena. Na linha de recriao lxica, em que o fator semntico aparentemente se anula, encontram-se ainda 6 poemas: Colquio Sentimental em duas partes (1961), Na transtornncia impiala... (5/8/1961), Anflata cuanimene (8/10/1963), Aflia antonimera pendistalia (21/11/1967), Atia cu dolcema trazidara (/12/1963) e Petrina, sanguilcia, de soluo (3/3/1971). Hdo dvidas sobre a data precisa do primeiro, verifica-se que todos os demais so posteriores aos sonetos de Metamorfoses, o que faz pensar nestes ltimos como os desencadeadores do ciclo. Pensando ainda no conjunto da obra seniana, em interlocuo irnica com os sonetos, no pode deixar de ser referido o poema Afrodite? No, includo no livro pstumo Quarenta anos de servido. Trata-se igualmente de um soneto onde as palavras estranhas aos incautos na verdade encontram-se arroladas pelo renascentista Duarte Nunes de Leo no captulo XVIII de sua Origem da Lngua Portuguesa.O projeto do autor em relao aos poemas bastante conhecido: O que eu pretendo que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas conscincia liminar pelas associaes sonoras que as compem. Eu no quero ampliar a linguagem corrente da poesia; quero destru-la como significao, retirando-lhe o carter mtico-semntico, que transferido para a sobreposio de imagens (no sentido psquico e no estilstico), compondo um sentido global em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designao. No ltimo soneto, a maior parte das palavras no inventada, mas os eptetos gregos de Afrodite (Sena: 159). Para uma leitura produtiva deste segmento de Metamorfoses imprescindvel consultar a percuciente e exaustiva dissertao de Lus Adriano Carlos.SARAMAGO na correspondncia (ainda indita, porm j organizada por Mcia de Sena para publicao) trocada entre Jorge de Sena e Jos Saramago que se encontra um grande nmero de informaes sobre a gnese e a arquitetura do livro Metamorfoses. Na altura em que Jorge de Sena planeava sua publicao, Saramago era um dos diretores da Editorial Estdios Cor que j editara o primeiro livro de contos de Sena, Andanas do Demnio, e manifestara interesse em editar esse novo livro de poemas. A hiptese no se confirmou, mas, nas cartas trocadas, que, alis, vo revelando crescente amizade entre os dois signatrios, ficaram registrados dados preciosos para quantos quiserem exercer a crtica gentica tomando Metamorfoses como objeto.TESTEMUNHO Desde que, no famoso Prefcio da 1 edio de Poesia I Jorge de Sena escreveu Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistir em dar expresso ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, no apenas de outros mundos simultnea e idealmente possveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de facto. Testemunhar do que, em ns e atravs de ns, se transforma, e por isso ser capaz de compreender tudo, de reconhecer a funo positiva ou negativa (mas funo) de tudo, e de sofrer na conscincia ou nos afectos tudo[] eis o que foi, e , para mim a poesia., alaram-se estas palavras a uma espcie de sntese para a apreenso do conjunto da obra seniana. De fato, sob o prisma do testemunho, podemos ler no s a poesia, mas tudo quanto Sena escreveu. E Metamorfoses, claro est, no constitui exceo. At porque, como se viu, e como Jorge Fazenda Loureno desenvolve de maneira irretocvel, o processo testemunhal entrelaa-se com o metamrfico. Um poema em que estas idias so condensadas foi projetado inicialmente para integrar a coletnea. Trata-se do poema Dedicatria, que, conforme indicao do autor, nasceu junto com Cabecinha romana de Milreu: e vieram (12/3/63), numa noite e numa madrugada, uma Dedicatria, pela qual no esperava, e uma cabea pequenina que s depois reconheci como a que tive nas mos, uma vez, no Museu de Faro.[] Mas suprimi de publicao a Dedicatria (Sena: 154-5). Mas, hoje, graas vigilncia Mcia de Sena, o poema encontra-se estampado em 40 Anos de servido e, pela importncia programtica de que se reveste, aqui vai transcrito:Amigos meus: de que metamorfosessois vs meus fiis e como que inimigos?E que inimigos, as metamorfosesdas coisas e do tempo tm poderpara os aniquilar? Por mais que nasados homens o homem, e que esse homem faao que nos ser mais que natureza,nada resta seno este ar maligno,esta vileza insana, este morderraivoso e traste, esta indiferenaque nega mais a vida que a maldade.As obras ficam. Para qu? Quem perdeo tempo que lhe resta, em s am-lasno por si mesmo mas por outra vidaque exista nelas? Quem? Algum de vs?Que amor sentis que se desperta londe no resta j mais do que ideiade terem sido sangue, uma linguagemto morta para sempre, que palpitanessa iluso de que sois vida viva?Metamorfoses somos e seremos.E, se estes versos foram conformados,mais que por mim, de mim, sero as vossasque se aguardavam como tnues sombrasem risco de evolarem-se, beirado rio que, se o atravessassem, lhesdaria, no esquecerem-se, a existnciatranquila e slida da morte adiada.6 PASSOS PARA UMA HIPTESE DE LEITURA:1) Depois do Caos Todas as abordagens de Ante-Metamorfose (o poema que, sob o ttulo de Metamorfose tout court, havia sido publicado em Fidelidade, de 1958, e agora realocado pelo autor no novo livro) apontam a atmosfera de indefinio, indeterminao, que ressuma de seus versos repletos de optativas e interrogaes. Fazendo ecoar as primeiras pginas das Metamorfoses de Ovdio, dir-se-ia tratar-se de tempos primordiais onde o informe cede lugar a uma primeira ordenao do universo, onde a memria do caos no se apagou de todo, onde o silncio e o verbo ainda se defrontam aqueles em que um deus, ou uma deusa, ou imagem, s lembrana, aspirao? se alonga, de bruos, sobre o areal. Deus ou deusa, acordado ou adormecido, morto ou vivo? so as indagaes, sem resposta, que, na voz de quem contempla, se entrecruzam com outra ainda mais insistente: h quanto tempo ali estaria, naquele espao que insinua o dilogo estreito entre terra e gua, entre o emerso e o imerso? Contudo, na pintura em pincel fino que nos descrita, algumas certezas: de corpo talhado imagem e semelhana do humano este ser onde esto calcanhares /um pouco soerguidos na lembrana de asas. Mas, por essa potencialidade do vo pressentida no que jaz em terra, trata-se de um deus que se humanizou, abdicando de divinas asas; ou de um homem que buscara, qual outro frustrado caro, alar-se acima de sua humanidade? Em espao hbrido e tempo incerto posteriores ao caos mas anteriores histria -, como distinguir limites entre o humano e o divino? Mas, mesmo imprescindvel distinguir esses limites?