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Desenvolvimento psicológico e educação 2. Psicologia da educação escolar 2 â edição César COLL Álvaro MARCHESI Jesús PALACIOS & colaboradores Tradução: Fátima Murad Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: Maria da Graça Souza Horn Pedagoga. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 2004

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Page 1: desenvolvimento psicológico e educação

Desenvolvimento psicológico e educação

2. Psicologia da

educação escolar 2â edição

César COLL Álvaro MARCHESI Jesús PALACIOS

& colaboradores

Tradução: Fátima Murad

Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: Maria da Graça Souza Horn

Pedagoga. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

2004

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Desenvolvimento, educação e educação escolar: a teoria

sociocultural do desenvolvimento e da aprendizagem

ROSÁRIO CUBERO E ALFONSO LUQUE

INTRODUÇÃO

Nas primeiras décadas do século XX, a psicologia já era uma disciplina científica re-conhecida e em crescente processo de ins-titucionalização na América do Norte e em muitos países europeus. Tinham sido publica-dos importantes estudos sobre o desenvolvi-mento das capacidades durante a infância e gozava de grande prestígio a pesquisa experi-mental sobre a aprendizagem animal e a hu-mana. Produzira-se, inclusive, uma notável li-teratura sobre a aplicação de tais descobertas da psicologia evolutiva e da psicologia da aprendizagem na educação das crianças. En-tretanto, nenhum dos sistemas teóricos cons-truídos antes de 1925 tinham considerado a educação como processo decisivo na gênese das capacidades psicológicas que nos caracterizam como seres humanos.

Por isso, pode parecer um tanto surpreen-dente que um jovem e desconhecido professor de psicologia na Escola de Magistério de uma pequena capital de província da Rússia ousas-se propor e desenvolver uma teoria revolucio-nária na qual a natureza humana é o resultado da interiorização, socialmente guiada, da ex-periência cultural transmitida de geração em geração. Mas aquele ousado LevSemionovitch Vygotsky (1896-1934) era um intelectual ex-cepcional em circunstâncias igualmente excep-cionais. Tivera uma educação muito cuidado-sa e abrangente em sua infância. Desde ado-

lescente, mostrara um vivo interesse pela lite-ratura, como também por muitas outras mani-festações artísticas e culturais e uma inusitada capacidade para compartilhar esses interesses e envolver os que estavam à sua volta em seus projetos. Na universidade estudara direito, mas igualmente fisolofia e história. Sem dar mos-tras de submissão ao marxismo como ideolo-gia, foi desde muito jovem um ativo pensador marxista. Viveu com entusiasmo a revolução soviética de 1917, compartilhou com outros eminentes autores de sua geração a intensida-de intelectual e a efervescência criativa dos anos imediatamente posteriores e envolveu-se ativamente na tarefa revolucionária de cons-truir uma nova sociedade, uma nova cultura, uma nova ciência e um novo homem.

Esse ambicioso projeto de transformação tinha de apoiar-se necessariamente em uma teo-ria científica sobre a natureza humana e sua mudança; uma teoria que só podia ser o resul-tado da aplicação da análise materialista dialética às funções psicológicas humanas e às produções artísticas e culturais. Daí emergem todos os temas de pesquisa que foram tratados sucessivamente por Vygotsky: a necessidade de encontrar um método (o método genético ex-perimental) e uma unidade de análise (a ativi-dade instrumental e a interação) para o estu-do científico da psicologia, a origem sócio-his-tórica das funções psicológicas superiores, a im-portância dos instrumentos de mediação na gê-nese e na variabilidade cultural da consciên-

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cia, as relações entre aprendizagem e desen-volvimento, a organização semiótica do pen-samento, etc.

Vygotsky viveu apenas o suficiente para nraçar com rigor as linhas mestras desse ingen-te processo de reconstrução da psicologia. Seus muitos colaboradores e discípulos, entre os quais se destacam principalmente Luria, Leontiev, Zaporozhets, Levina, Elkonin e Galperin, deram continuidade à sua obra inacabada. Esses de-senvolvimentos das concepções e das institui-ções vygotskianas constituem atualmente o mais estimulante da produção da chamada "es-cola de psicologia soviética". Os trabalhos de Vygotsky ficaram praticamente desconhecidos no Ocidente, até que, em 1962, publicou-se em mglês uma versão resumida de Pensamento e linguagem, uma de suas obras capitais. Entre 1979 e 1984 recupera-se seu legado intelectu-al e científico. Desde então, sua influência não parou de crescer e hoje sua teoria sociocultural e uma referência inegável no desenvolvimen-to histórico da psicologia.

Desde que concluiu seus estudos, Vygots-ky sempre trabalhou como professor. Embora tenha multiplicado suas atividades e dedicado muitas energias à pesquisa e à escrita, sua prin-cipal ocupação sempre foi a docência. Foi mais educador que psicólogo e chegou à psicologia por seu interesse pela educação. Em sua con-cepção psicológica, a educação é o processo central da humanização, e a escola, o principal "laboratório" para estudar a dimensão cultu-ral, especificamente humana, do desenvolvi-mento. Ao mesmo tempo, durante toda sua '.ida científica sustentou que o objetivo práti-co da psicologia é a melhoria da sociedade por meio do aperfeiçoamento da educação.

A teoria sociocultural foi um remédio para a psicologia individualista tradicional e serviu não só para redefinir muitas perguntas da pes-quisa, como também para formular questões de uma perspectiva em que a dimensão social adquire um caráter fundamental na explica-ção da natureza humana. A perspectiva cultu-ral conta hoje com um extenso corpo de pes-quisadores, tanto em psicologia básica como evolutiva ou em psicologia da educação; espe-cificamente relacionada com a escola como ins-tituição cultural na qual se produzem aprendi-zagens. A diversidade de aplicações que resul-

taram de tal perspectiva e das diferentes for-mas como os pesquisadores assumiram e inte-graram os princípios da escola soviética são im-possíveis de rever de modo detalhado, diferen-ciado e sistemático em um capítulo de um tex-to com essas características e, por isso, opta-mos por ajustar-nos aos pressupostos centrais da teoria e complementá-los brevemente com os aportes recentes dos autores ou das autoras mais influentes no âmbito internacional e no espanhol.

0 MÉTODO GENÉTICO: A CONDUTA COMO A HISTÓRIA DA CONDUTA

O estudo dos processos psicológicos de uma perspectiva histórico-cultural necessitou do desenvolvimento de uma metodologia con-sistente com seus princípios teóricos. Para Vygotsky (Vygotsky, 1978), diferentemente dos métodos utilizados para as teorias asso-ciacionistas, que se sustentam em um esque-ma unidirecional "estímulo-resposta", a cha-ve da compreensão da conduta residia nas re-lações dialéticas que esta mantém com seu meio. Assim, não apenas a natureza influi na conduta humana, como também as pessoas modificam e criam suas próprias condições de desenvolvimento.

A crítica aos modelos teóricos dominan-tes significava também desmantelar a maneira como os dados chegavam a se constituir como tais. Vygotsky rechaçava a concepção positivista dos métodos como ferramentas neutras que po-diam ser utilizadas por qualquer orientação com pretensões científicas, independentemen-te do enfoque teórico de que se tratasse (Riviè-re, 1984). O método, por sua vez, mantinha uma estreita relação com a argumentação teó-rica, e foi precisamente essa necessidade de novas formas de pesquisa concordantes com a psicologia que estava construindo que o levou ao desenvolvimento do método genético-expe-rimental.

Segundo Vygotsky, o estudo do desenvol-vimento de qualquer processo psicológico per-mite descobrir sua essência ou sua natureza; é somente pela análise de sua evolução que é pos-sível entender o que significa. "Estudar algo do ponto de vista histórico", segundo o autor,

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não consiste em analisar acontecimentos pas-sados, mas significa "estudá-lo em seu proces-so de mudança" (Vygotsky, 1978). Tais idéias estão fundadas nos aportes de Blonski, para quem "a conduta só pode ser compreendida como a história da conduta" (cit. por Vygotsky, 1978). Entender o comportamento humano re-quer, portanto, a análise do próprio desenvol-vimento, de suas origens e das transformações genéticas (Wetsch, 1991). O contrário consis-tiria em estudar condutas que Vygotsky (1978) chamava de "fossilizadas", isto é, processos que se desenvolveram historicamente e cujos pro-dutos apresentam-se diante de nós sem que possamos ter acesso à sua origem.

Além disso, centrar-se no processo mais que no produto permitiria não apenas uma des-crição do funcionamento psicológico, mas sim, o que é muito mais importante de acordo com os interesses de Vygotsky, permitiria uma ex-plicação deles. Vygotsky (1978, p. 105) resu-miu como segue os elementos básicos de sua proposta metodológica.

Em poucas palavras, o objetivo da análi-se psicológica e seus fatores essenciais são os seguintes: 1) a análise do processo em oposição à análise do objeto; 2) a análise que revela relações causais, reais ou di-nâmicas em oposição à enumeração dos traços externos de um processo, ou seja, a análise deve ser explicativa, não descri-tiva; 3) a análise evolutiva que retorna à fonte principal e reconstrói todos os pon-tos do desenvolvimento de uma determi-nada estrutura.

Temos, portanto, como elementos indis-pensáveis a análise dos processos, a explica-ção genotípica - que leva em conta a história, a gênese e o desenvolvimento da conduta, mais do que a mera descrição de um estado particu-lar dessa conduta (Vygotsky, 1978). Entretan-to, uma proposta com tais características fica-ria incompleta sem uma redefinição do que se entende por desenvolvimento. Em outras pa-lavras, a exigência de uma reconstrução do pro-cesso de desenvolvimento dos fenômenos psi-cológicos implica, por sua vez, uma noção es-pecífica da própria natureza do desenvolvimen-to. De acordo com Wertsch (1985), tal noção pode concretizar-se em três pontos.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento não é definido como um incremento quantita-tivo e cumulativo constante nas capacidades dos indivíduos, mas como um processo no qual se dão saltos "revolucionários", capazes de mu-dar a própria natureza do desenvolvimento. O conjunto de transformações não obedeceria a uma acumulação progressiva de traços inde-pendentes. Por outro lado, em determinados momentos do desenvolvimento, novas forças e novos princípios educacionais entrariam em jogo (princípios biológicos ou fisiológicos, como a maturação sexual, por exemplo, ou relativos a fatores sociais). Um único princípio não pode dar conta da mudança; mas as for-ças que controlam o desenvolvimento se rela-cionariam de forma diferente em momentos distintos, o que originaria a mudanças qualita-tivas. A nova reorganização resultante seria explicada, então, por um conjunto diferente de princípios.

Em segundo lugar, essas reorganizações estão relacionadas com o surgimento de novas formas de mediação dos processos psicológi-cos ao longo do desenvolvimento (por exem-plo, no desenvolvimento do indivíduo surgiriam novos instrumentos de mediação, como a es-crita, e novas estratégias de resolução de pro-blemas; se nos referimos ao desenvolvimento da espécie, o surgimento dos signos psicológi-cos na história implicaria um desenvolvimen-to não exclusivamente governado pelos prin-cípios evolutivos darwinianos). Não se trata de que as novas formas de mediação substituam as anteriores, mas de que as relações entre os diferentes fatores devam ser reformulados para que se integrem.

Por último, o terceiro dos aspectos relati-vos à noção de desenvolvimento em Vygotsky refere-se à inexistência de uma única classe de desenvolvimento relevante para a explicação do funcionamento intelectual humano, mas há diferentes tipos de desenvolvimento ou domí-nios genéticos. Vygotsky referiu-se a quatro do-mínios genéticos necessários para entender a conduta humana e os processos psicológicos, a saber, o filogenéticoo sociogenético, o ontoge-nético e o chamado microgenético. Desse modo, o uso do método genético não se circunscreve ao domínio ontogenético, embora os trabalhos empíricos de Vygotsky estejam mais relaciona-dos com esse nível (Wertsch, 1991).

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Em relação à filogênese, ou seja, a histó-ria evolutiva da espécie, Vygotsky centrou-se na comparação entre os símios superiores e os seres humanos e aceitou o princípio darwiniano da adaptação como fator explicativo das trans-formações (Leontiev, 1959/1983). De acordo com o autor, o abismo qualitativo que separa os símios e os seres humanos é explicado não só pelas transformações biológicas, como tam-bém pelo uso de ferramentas, que desempe-nharam um papel fundamental na emergência das funções psicológicas superiores (voltaremos a tratar do assunto mais adiante). O domínio sociogenético ou histórico-cultural refere-se à evolução do indivíduo não como sujeito bioló-gico, mas como participante em um grupo cul-tural. Nesse caso, Vygotsky estava interessado no desenvolvimento de diferentes formas de funcionamento intelectual, dependendo de di-ferentes épocas históricas e associadas a dife-rentes estruturas socioeconômicas. Chegava a tais comparações por meio do estudo de dife-rentes culturas que correspondiam, de acordo com esse enfoque, a diferentes momentos his-tóricos, mas a maioria dos argumentos relati-vos a esse domínio - como no caso do domínio anterior - era baseada em conclusões teóricas ou contribuições da obra de outros autores (Wertsch, 1985).

No domínio ontogenético, que se refere ao desenvolvimento pessoal, podem-se distin-guir dois planos de desenvolvimento: a linha natural e a linha cultural do desenvolvimento. A linha natural do desenvolvimento é determi-nada pelas características biológicas da espé-cie, transmitidas geneticamente e que em de-terminados aspectos fazem sua aparição de acordo com um calendário maturativo comum. Tais características configuram e possibilitam o funcionamento mental elementar, os chama-dos processos psicológicos inferiores. Esses pro-cessos, resultantes da evolução filogenética da espécie, aproximam-nos das demais espécies animais; contudo, ao longo do desenvolvimento humano são modificados pela herança social-mente transmitida. Na concepção vygotskiana, a evolução histórico-cultural da espécie cria e define outro repertório de funções psicológi-cas que supõem um salto qualitativo em rela-ção aos processos psicológicos inferiores. As-sim, funções psicológicas como a atenção, a percepção, o pensamento ou a memória apa-

recem primeiro como processos elementares para mais tarde se transformarem em proces-sos superiores. A influência da linha cultural do desenvolvimento, por meio da linguagem e de outros sistemas simbólicos, traduz-se, por-tanto, na aquisição das funções psicológicas superiores, genuinamente humanas. A esse do-mínio ontogenético correspondem os estudos sobre a interiorização: a gênese e a transfor-mação de um processo psicológico desde suas formas sociais e compartilhadas até suas for-mas privadas ou individuais (Vygotsky, 1978).

Por último, o domínio microgenético re-fere-se a dois tipos de processos que interessa-vam a Vygotsky. Por um lado, a gênese de um ato mental singular, e, por outro, as transfor-mações ocorridas durante uma sessão experi-mental como as que utilizava nos projetos de suas pesquisas. Em qualquer caso, trata-se das mudanças ocorridas em um período delimita-do e não muito extenso de tempo. Embora Vygotsky não tenha feito uma referência dire-ta a um domínio microgenético como tal, al-guns autores assinalaram que o interesse por esse nível de análise pode ser encontrado em seus trabalhos, razão pela qual parece adequa-do incluí-lo como mais um domínio (Wertsch, 1985).

Para a reformulação de uma proposta des-se estilo sobre a análise genética, Vygotsky uti-lizou referências e teve influência de pensado-res como Marx, Engels e Hegel, assim como de psicólogos como Blonski, Piaget e Werner; con-tudo, reelaborou tais influências de acordo com seu próprio discurso e atribuiu ao método ge-nético um caráter essencial em sua teoria.

A ORIGEM SOCIAL DO FUNCIONAMENTO MENTAL NO INDIVÍDUO

Como se mostrou no Capítulo 1 do pri-meiro Volume desta obra, a idéia de que os pro-cessos psicológicos superiores têm sua origem na vida social, nas interações que se mantêm com outras pessoas e na participação em ativi-dades reguladas culturalmente talvez seja o postulado emblemático da teoria histórico-cul-tural. No domínio ontogenético, encontramos, na obra de Vygotsky, uma expressão mais cla-ra das origens sociais do psiquismo humano.

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Vygotsky (1978) formulou a relação entre o grupo social e o desenvolvimento pessoal em sua Lei genética do desenvolvimento cultural:

Qualquer função no desenvolvimento cul-tural do menino ou da menina aparece duas vezes, ou em dois planos. Primeiro aparece no plano social e depois no plano psicológico. Em primeiro lugar, aparece en-tre as pessoas como uma categoria inter-psicológica e depois aparece no menino ou na menina como uma categoria intra-psicológica. Isso também é certo com re-lação à atenção voluntária, à memória ló-gica, à formação de conceitos e ao desen-volvimento da volição [...] As relações so-ciais ou as relações entre as pessoas subjazem geneticamente a todas as fun-ções e às suas relações.

Podemos nos perguntar, pelo menos, como ocorre essa transição do social para o in-dividual, em que ela consiste e como os dois planos se relacionam. Os conceitos de interio-rização (ou internalização), zona de desenvol-vimento proximal e apropriação são alguma das ferramentas que serviram à teoria sociocultural para responder a essas perguntas.

O processo envolvido na transformação das atividades ou dos fenômenos sociais em fenômenos psicológicos é o de interiorização. A interiorização é a reconstrução em nível interpsicológico de uma operação intrapsico-lógica, graças às ações com signos (Vygotsky, 1978). Esse processo converte uma operação realizada no plano externo ou social em uma que se realiza no plano interno ou psicológi-co. A interiorização não deve ser entendida como uma cópia ou uma transferência, mas sim como um processo de transformação que implica mudanças nas estruturas e nas fun-ções interiorizadas. Longe de ser uma trans-missão de propriedades, é definido como o processo pelo qual o mesmo plano interpsi-cológico se forma (Leontiev, 1981; Vygotsky, 1978; Wertsch, 1985).

Vygotsky concebe a internalização como "um processo em que certos aspectos da es-trutura da atividade realizada em um plano externo passam a ser executados em um pla-no interno" (Wertsch, 1985); como um pro-cesso de controle dos signos que em sua ori-

gem faziam parte de uma atividade social. Tal idéia também está presente em outros auto-res, mas, para Vygotsky, diferentemente de-les, é na qualidade da atividade externa, con-siderada social e semioticamente mediada, que se encontra o germe do que depois cons-tituirá a dinâmica intrapsicológica; por exem-plo, propriedades estruturais do funcionamen-to intrapsicológico como o da organização dialética pergunta-resposta passariam a fazer parte, por meio da internalização, do funcio-namento interno. Vygotsky (1978) resume em três pontos as transformações que ocorrem em tal processo:

a) Uma operação que inicialmente repre-senta uma atividade externa se recons-trói e começa a ocorrer internamente.

b) Um processo interpessoal é transfor-mado em outro intrapessoal.

c) A transformação de um processo in-terpessoal em um processo intrapes-soal é o resultado de uma prolonga-da série de acontecimentos evoluti-vos. O processo, mesmo sendo trans-formado, continua existindo e muda como uma forma externa de ativi-dade durante certo tempo antes de internalizar-se definitivamente (p. 93-94 da ed. esp.)

Vygotsky e posteriormente Leontiev uti-lizam o termo apropriação para referir-se à re-construção feita pelos sujeitos das ferramen-tas psicológicas em seu desenvolvimento his-tórico. Segundo Leontiev (1959-1983), Vygo-tsky interpretava tal aquisição como o resulta-do da apropriação, por parte do homem, dos produtos da cultura humana no curso de seus contatos com os semelhantes. Nesse sentido, os seres humanos, mais do que adaptar-se aos fenômenos à sua volta, os fazem seus ou, o que é o mesmo, apropriam-se deles. Enquanto a adaptação implica um processo de modifica-ção das faculdades e das características dos indivíduos por exigências do meio - ou assim pode ser definido oconceito clássico de adapta-ção na lógica do determinismo darwiniano a apropriação tem como resultado a reconstru-ção, por parte dos indivíduos, de faculdades e modos de comportamento desenvolvidos his-toricamente. A apropriação é um processo ati-

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vo, de interação com os objetos e os indivídu-os e de reconstrução pessoal. Um processo ati-vo em que o sujeito tem distintas opções semióticas, ou seja, pode recorrer a diferentes linguagens para resolver os problemas. Em cada momento, as pessoas conferem significa-do às situações das quais participam e à sua própria atividade em função de suas caracte-rísticas pessoais idiossincráticas, de suas idéi-as, de seus conhecimentos, de sua experiên-cia, de seus interesses, etc.

Existem dois níveis de análise dos pro-cessos biológicos superiores. Não apenas o in-divíduo como nível de análise pode pensar ou recordar. Também as duplas ou os grupos de pessoas podem fazê-lo. A memória, a atenção ou o pensamento podem ser predicados do social além de formas individuais de ação (Rivière, 1984). O pensamento e a recordação nunca pertencem ao sujeito, mas ao indivíduo, atuando com outros indivíduos, por meio dos instrumentos de mediação. Afinados com tais formulações, alguns autores, como Middleton e Edwards, estudaram processos que chama-ram de memória coletiva ou recordação com-partilhada (Edwards e Middleton, 1986). Em seus trabalhos, descrevem dinâmicas sociais em que a engrenagem de turnos em uma conversa constrói uma versão do que aconteceu ou do que vale como certo. Não se trata apenas de compartilhar memórias de fatos e de objetos que são sociais na origem. Recordar juntos não significa unicamente, por exemplo, comparti-lhar um conteúdo de memória que pode ser social, situando a própria memória como um processo essencialmente individual. Recordar juntos é construir coletivamente uma narração na qual os diversos participantes são elemen-tos de um sistema comum, em que a memória pode ser compreendida como uma ação social organizada (Edwards e Middleton, 1986). As-sim, as atividades no plano intrapsicológico são sociais porque se realizam com outras pessoas dentro de uma cultura e com ferramentas que a própria cultura proporciona, mas são tam-bém sociais, porque são compartilhadas ou con-cebidas como funções distribuídas no grupo. De forma complementar, o funcionamento no plano intrapsicológico reflete seus precursores interpsicológicos ou, o que é o mesmo, retém sua natureza quase social (Vygotsky, 1998) e retém as funções da interação social.

A ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL

Seguindo nessa linha, podemos nos per-guntar como uma pessoa pode interiorizar os conteúdos e as ferramentas psicológicas de sua cultura, como ocorre essa transição do interpes-soal ao intrapessoal. O conceito de zona de de-senvolvimento proximal formulado por Vygotsky responde à pergunta ao definir uma zona na qual funciona um sistema interativo, uma es-trutura de apoio criada por outras pessoas e pelas ferramentas culturais apropriadas para uma situação (Cole, 1984; Newman, Griffin e Cole, 1989), que permite ao indivíduo ir além de suas competências atuais. Vygotsky (1978, p. 133 da edição castelhana) diz a respeito dela que

Não é senão a distância entre o nível real de desenvolvimento, determinado pela ca-pacidade de resolver independentemente um problema, e o nível de desenvolvimen-to potencial, determinado através da re-solução de um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com ou-tro companheiro mais capaz.

Para Vygotsky, como vimos, a participa-ção dos meninos e das meninas nas atividades culturais, em que compartilham com colegas mais capazes os conhecimentos e instrumen-tos desenvolvidos por sua cultura, permite que interiorizem os instrumentos necessários para pensar e atuar. Os agentes ativos na zona de desenvolvimento proximal (ZDP daqui em diante) não incluem apenas pessoas, como crianças e adultos com grau diverso de expe-riência, mas também artefatos, como livros, vídeos, suporte informático, etc. Gostaríamos de destacar algumas características dessa zona de desenvolvimento mais próxima ou mais ime-diata (Wertsch, 1985) que nos parecem rele-vantes por suas implicações para a compreen-são da intervenção educacional em contextos formais como a escola. Ao mesmo tempo, po-demos inserir os trabalhos desenvolvidos hoje por outros autores que, da perspectiva sociocul-tural, permitem-nos definir e enriquecer tal conceito (Álvarez e dei Rio, 1990).

Em primeiro lugar, a ZDP não é uma pro-priedade do indivíduo nem do domínio

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interpsicológico, mas de ambos: é determina-da, ao mesmo tempo, pelo nível de desenvol-vimento da criança e pelas formas de ensino envolvidos no desenvolvimento da atividade (Wertsch, 1985). De acordo com essa determi-nação, são as atividades educacionais - no caso da escola, podemos dizer os processos de ensi-no e aprendizagem - que criam a zona de de-senvolvimento proximal.

A ZDR em segundo lugar, não é uma zona estática, mas dinâmica, em que cada passo é uma construção interativa específica desse mo-mento, que, por sua vez, abre diversos canais de evolução futuros. O adulto ou a criança mais competente realiza ações para que o partici-pante menos competente possa fazer de forma compartilhada o que não é capaz de realizar sozinho. Em tais ações, as pessoas adultas con-trolam o centro de atenção e mantêm os seg-mentos da tarefa nos quais participam, sempre em um nível de complexidade adequado às pos-sibilidades de meninos e meninas (Bruner, 1996). Estamos falando de um processo de "ajuste" a que Bruner (1986, p. 86 da ed. cast.) se referiu afirmando que o adulto "permanece sempre no limite crescente da competência da criança". Nas palavras de Wertsch (1985, p. 84 da ed. cast.), a ZDP é "a região dinâmica da sensibilidade na qual se pode realizar a transi-ção do funcionamento interpsicológico para o funcionamento intrapsicológico.

Trabalhando de acordo com essa tradi-ção teórica, Wood, Bruner e Ross (1976) for-mularam o conceito de andaime que também reflete, a nosso ver, o caráter dinâmico a que temos nos referido. O conceito sugere que o apoio eficaz proporcionado à criança pelo adul-to é aquele que se ajusta a suas competências em cada momento e que varia à medida que esta pode ter mais responsabilidade na ativi-dade. A resposta do adulto em função da crian-ça tem, então, a condição complementar de ser um apoio ajustado, mas de forma transitória; a retirada da ajuda e a cessão progressiva do controle à criança, de forma contingente a seu progresso na tarefa, asseguram a transferên-cia da responsabilidade, que é em si a meta da atividade.

O terceiro e último aspecto que queremos destacar é que o papel ativo dos alunos de-sempenha um papel importante no caráter di-nâmico da ZDP As pesquisas de Newman,

Griffin e Cole (1989), realizadas no contexto educacional, mostraram que as intervenções de todos os participantes em uma atividade, e não apenas as dos mais especializados, é fun-damental para o rumo que tais atividades to-mam. Ainda que a definição da tarefa predo-minante seja a do professor, isto é, o professor ou a professora, na maioria dos casos, orienta as trocas e dá sentido ou situa as intervenções dos participantes, os alunos podem apropriar-se da situação em sentidos não-previstos pelo professor. Portanto, as compreensões de meni-nos e meninas desepenham um papel impor-tante no sistema funcional. Todos os pontos de vista envolvidos em uma ZDP são decisivos para sua evolução. Essa qualidade está estrei-tamente relacionada com a natureza dinâmica da ZDP a que nos referimos no parágrafo an-terior. Rogoff (1990) também destacou a in-terdependência das ações de crianças e de adul-tos no desenvolvimento das atividades, acen-tuando o caráter ativo de meninos e meninas, que se esforçam em participar e compartilhar de tais atividades.

A discussão sobre a noção de ZDP leva-nos a uma breve reflexão sobre suas relações com os processos de desenvolvimento. Um es-tudo detalhado dos conceitos de desenvolvi-mento e de aprendizagem em Vygotsky nos permitirá avaliar a complexidade das relações entre ambos e a dificuldade de dar uma res-posta simples ou concludente (Vygotsky, 1978). Talvez Vygotsky não tenha tido tempo para perfilar e polir sua obra; o que podemos en-contrar são diferentes versões da maneira como ensino e aprendizagem estão relacio-nados em seus textos (para uma discussão sobre esse aspecto, ver Ramírez e Wertsch, 1997: Wertsch, 1985). Aqui, nos interessa apenas assinalar brevemente que, para Vygotsky, os processos evolutivos e os de aprendizagem não coincidem, nem são idên-ticos, ainda que constituam uma unidade (Vygotsky, 1978). O desenvolvimento é enco-rajado pelos processos de aprendizagem e, em grande medida, é conseqüência deles. "O pro-cesso evolutivo vai "a reboque" do processo de aprendizagem; é nessa seqüência que se torna ZDP", ainda que "o desenvolvimento nunca siga a aprendizagem escolar do mes-mo modo que uma sombra segue o objeto que a projeta" (Vygotsky, p. 140 da ed. cast.).

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PARTICIPAÇÃO GUIADA, A P R O P R I A Ç Ã O E INTERSUBJETIVIDADE

Barbara Rogoff retomou e ampliou em suas pesquisas o conceito de ZDP integrando-o na chamada participação guiada, que nos parece um conceito de especial interesse para o contexto escolar. De acordo com a autora, a aprendizagem pode ser compreendida como a apropriação dos recursos da cultura median-te a participação em atividades conjuntas (Rogoff, 1990). A aprendizagem escolar é um fenômeno comunitário, no qual alunos e alu-nas aprendem graças à sua participação nas atividades desenvolvidas em comunidades de alunos, atividades que estão conectadas com as práticas de sua comunidade e com a sua história. Nos processos que ocorrem quando crianças e adultos realizam juntos tais ativi-dades, as crianças adquirem formas mais ma-duras de participação na sociedade graças à assistência direta que recebem dos adultos ou de outras crianças.

Segundo Rogoff (1990), são dois os pro-cessos que ocorrem na participação guiada. Em primeiro lugar, os adultos e os companheiros apoiam, estimulam e organizam as atividades de forma que as crianças possam realizar a parte que é acessível a elas. O que fazem é cons-truir pontes do nível de compreensão e de ha-bilidade do menino ou da menina até outros níveis mais complexos. Tornando o aluno res-ponsável por parte da atividade que se com-partilha, possibilita-se que ele controle metas ao mesmo tempo exeqüíveis e desafiadoras, metas que aumentam sua complexidade à me-dida que crescem o conhecimento e as habili-dades de meninos e meninas. Em segundo lu-gar, os adultos e os companheiros estruturam a participação das crianças de forma dinâmi-ca, ajustando-se às condições do momento. A medida que a responsabilidade e a autonomia dos alunos for progressivamente maior, o con-trole da atividade será transferido do adulto para a própria criança.

Como expusemos, mediante a participa-ção guiada, as crianças podem apropriar-se dos conhecimentos e das ferramentas culturais que fazem parte da atividade. O conceito de apro-priação, mais uma vez, acentua o fato de que esse fazer seu supõe uma reconstrução e uma transformação dos conhecimentos e dos ins-

trumentos que são objeto de apropriação (Leontiev, 1981; Rogoff, 1990). Uma recons-trução na qual são determinantes fatores pes-soais, como a compreensão dos participantes ou a representação que construíram da situa-ção. Os conhecimentos e os instrumentos as-sim adquiridos serão ainda utilizados em situa-ções futuras de forma contextualizada, o que pode significar usos diferentes aos do contex-to no qual se aprendeu (Rogoff, 1990).

Newman, Griffin e Cole (1989) utilizam também o conceito de apropriação para com-preender as situações educacionais que se dão no contexto escolar. De acordo com esses au-tores, o professor, que estrutura as interações na ZDP inclui as ações dos alunos no curso das atividades que ele desenvolve e controla. Po-deríamos dizer que, procedendo dessa manei-ra, insere as ações das crianças em significa-dos concretos estabelecidos por ele. O profes-sor opera com o que os autores chamam de "ficção estratégica", isto é, tornam possível que os alunos realizem uma determinada parte da tarefa - e que a façam bem - mesmo quando não a compreendam em sua globalidade e a interpretem de acordo com seus próprios obje-tivos. Por outro lado, "o processo de apropria-ção mostra à criança como a tarefa e sua res-posta a ela são vistas do ponto de vista da aná-lise do professor" (Newman, Griffin e Cole, 1989, p. 150 da ed. cast.). A construção de si-tuações educacionais e a comunicação que se dá nelas torna possível, dessa maneira, um diá-logo com o futuro da criança.

Ao longo da discussão sobre a ZDP e o contexto educacional, parece que a idéia de ajuste se repete como um elemento essencial para o projeto da intervenção. Gostaríamos de fazer duas observações sobre esse aspecto. A primeira é que, situados na perspectiva cons-trutivista dos processos de ensino e aprendi-zagem, parece que todo o processo de cons-trução do conhecimento na escola nos leva a "entender a influência educacional em termos de ajuda prestada à atividade construtiva do aluno; e a influência educacional eficaz em termos de um ajuste constante e sustentado dessa ajuda às vicissitudes do processo de construção realizado pelo aluno" (Coll, 1990b, p. 448).

A segunda consideração, que é uma re-flexão compartilhada com muitos outros auto-

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res, refere-se à necessária reserva que deve-mos ter quando transferimos os conceitos for-mulados para outros contextos de atividade ao contexto escolar, já que podem ter uma valida-de limitada. No caso da escola, a compreensão dos mecanismos pelos quais se dá o ajuste da ajuda educacional ao processo de construção do conhecimento dos alunos ainda é muito li-mitada e provém, em sua maior parte, do es-tudo das relações didáticas mãe/filho ou adul-to/criança em situações educacionais estru-turadas (Coll, 1990b) .Visto que se trata de con-ceitos elaborados sobre a análise de interações didáticas ou muito controladas dentro e fora do contexto escolar (fundamentalmente fora), parece necessário um trabalho de pesquisa no contexto natural da sala de aula que ponha à prova, confirme e amplie ou redefina a utilida-de de tais significados para a explicação dos processos de construção de conhecimento (ver Capítulo 17 deste volume).

Por último, e em relação ao conceito de ZDP para que a comunicação seja possível, e com ela a atividade conjunta, é necessário que os participantes da interação possam compar-tilhar perspectivas; essa compreensão mútua foi chamada de intersubjetividade (Romme-tveit, 1979). Podemos nos entender à medida que compartilhamos um ponto de vista, uma referência comum à qual se chega na comuni-cação modificando o próprio ponto de vista, se necessário, para aproximá-lo do de outro. Wertsch (1985), em uma discussão mais am-pla sobre o conceito de ZDP, assinalou que o ajuste mútuo que deve se produzir em tais si-tuações para que se dê a comunicação depen-de, em grande medida, de que os participan-tes compartilhem uma certa representação da situação, isto é, uma mesma definição da situ-ação. Edwards e Mercer (1987) chamaram-na de compreensão conjunta ou conhecimento com-partilhado. Essa definição intersubjetiva da si-tuação pode ser alcançada graças a um pro-cesso de negociação das diferentes definições intra-subjetivas dos participantes das intera-ções. Tanto a definição da situação a partir dos significados subjetivos como o estabelecimen-to de uma perspectiva comum de significados compartilhados dependem do uso de formas apropriadas de mediação semiótica (Wertsch, 1985). Na opinião de Coll e outros (1992), há duas características novas da análise que

Wertsch realiza em relação a esse ponto: a va-lorização do contexto de construção de signi-ficados compartilhados e a importância da lin-guagem para a compreensão dos processos de influência educacional. Este último aspecto será referido a seguir

OS PROCESSOS DE MEDIAÇÃO SEMIÓTICA

As contribuições mais importantes, e in-clusive mais originais, de Vygotsky referem-se à atividade humana como um fenômeno me-diado por signos e ferramentas. E precisamen-te essa função mediadora que torna possível a analogia entre ambos no desenvolvimento psi-cológico humano (Vygotsky, 1978). A filosofia marxista, pelo discurso de Engels, influenciou em muitos aspectos do desenvolvimento teóri-co das teses vygotskianas e, particularmente, na mediação instrumental. O argumento de Vygotsky era que nas relações entre as pessoas e seu meio, nas quais estão envolvidas as for-mas superiores de comportamento humano, os indivíduos modificam ativamente a situação ambiental. Por meio do uso de ferramentas, as pessoas regulam e transformam a natureza e, com isso, a si mesmas (Leontiev, 1959, 1983). Especificamente, o uso de um sistema de sig-nos. produzido socialmente e encontrado pelo indivíduo em sua vida social, transforma a fala, o pensamento e, em geral, a ação humana; sig-nos estes que se caracterizam por serem signi-ficativos - o significado do signo como elemen-to instrumental - e cuja natureza primordial é comunicativa (Wer tsch, 1985).

As ferramentas psicológicas incluem di-versos sistemas de signos: sistemas de nume-ração, sistemas de símbolos algébricos, tra-balhos de arte, esquemas, diagramas, mapas, desenhos e todo tipo de símbolos convencio-nais, mas é a linguagem que se torna, ao lon-go do desenvolvimento humano, o instrumen-to mediador fundamental da ação psicológi-ca (Vygotsky, 1978, 1982). Segundo Vygotsky, do mesmo modo que.as ferramentas materiais medeiam a relação com o ambiente físico, transformando-o, as ferramentas psicológicas medeiam as funções psicológicas, mudando a sua natureza. Por exemplo, se a linguagem in-troduz-se em uma função psicológica como a

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memória, essa função é transformada. Não se trata apenas de que qs signos facilitem formas mais eficazes de intervenção. A explicação de Vygotsky levava em conta que os instrumentos de mediação dão forma à atividade humana, tanto no plano intrapsicológico como no inter-psicológico (Vygotsky, 1978).

Essa concepção instrumental está indisso-luvelmente ligada à tese da gênese sócio-his-tórica das funções psicológicas. Os signos têm um caráter social, são produto das práticas cul-turais. O acesso a eles por parte dos indivídu-os é assegurado por sua vinculação a uma cul-tura específica. A ação mediada é sempre uma ação situada, dependente do meio no qual ocor-re (Wertsch, 1991). Assim, os signos, produto da evolução sócio-histórica dos grupos cultu-rais, são adquiridos mediante as práticas des-sas culturas em atividades de interação social próxima. Não se trata, segundo Wertsch, de que todas as ferramentas e os signos sejam adqui-ridos mediante um ensino direto que pretenda esse objetivo, mas que os ambientes de intera-ção proporcionam oportunidades suficientes para sua descoberta (Wertsch, 1985).

Como dizíamos, segundo Vygotsky, a lin-guagem tranforma-se no sistema de signos pri-vilegiado pelo desenvolvimento psicológico hu-mano. A linguagem medeia a relação com os outros e, além disso, a relação da pessoa con-sigo mesma, isto é, de acordo com a lei genéti-ca do desenvolvimento cultural, a linguagem nos seres humanos, assim como nas demais funções psicológicas superiores, é primeiro uma ferramenta compartilhada com outros partici-pantes em atividades sociais, para depois tor-nar-se em uma ferramenta de diálogo interior. No princípio, a linguagem tem uma função es-sencialmente comunicativa e de regulação da relação com o mundo externo; mais adiante, a linguagem se torna um regulador da própria ação. Um signo sempre é, em primeiro lugar, um instrumento para influir nos demais, e só depois se torna uma ferramenta que influi no próprio indivíduo (Vygotsky, 1978). A tal pon-to é importante na explicação vygotskiana que, como argumentávamos anteriormente, os sal-tos qualitativos no desenvolvimento psicológi-co estão associados a novas formas de media-ção semiótica. O desenvolvimento não obede-ce a um incremento quantitativo, mas a trans-formações qualitativas associadas às mudan-

ças que se produzem no uso das ferramentas psicológicas.

O interesse primordial de Vygotsky ao es-tudar os sistemas de signos utilizados na co-municação humana centrava-se não na lingua-gem como sistema abstrato, mas na fala, parti-cularmente na relação da fala com a atividade social e a atividade individual (Wertsch, 1990). Conectando suas idéias com outros desenvol-vimentos psicológicos atuais, poderíamos di-zer que Vygotsky estava interessado na análise do discurso nas interações sociais, isto é, nas formas e nos usos pragmáticos da linguagem. As implicações desse conceito chegam à pró-pria dimensão da unidade de análise da ativi-dade psicológica, que, para Vygotsky, era o sig-nificado da palavra (Vygotsky, 1982).

Wertsch (1991), estendendo a tese de Vygotsky e orientando o trabalho futuro na perspectiva sociocultural, oferece muitas idéias interessantes, que mencionaremos a seguir. Ainda que Vygotsky, no nível da formulação teórica da nova psicologia que estava criando, desse atenção aos fatores históricos e culturais, parece que em seus estudos empíricos estes re-ceberam menos atenção. Vygotsky centrou-se mais no estudos de díadas ou pequenos gru-pos, nos quais o tratamento do funcionamento individual era compatível com uma perspecti-va mais ampla em termos de processos sociais (Wertsch, 1990). Baseando-se no estudo da evolução dos trabalhos do próprio Vygotsky, Wertsch, junto com outros autores (Kozulin, 1994; Ramírez e Cubero, 1995), aponta uma mudança nos interesses deste autor no final da vida.

De acordo com a análise desses autores, parece que no início Vygotsky enfocava o estu-do do desenvolvimento intelectual nas crian-ças - o desenvolvimento dos conceitos científi-cos - a partir de um tratamento intrapsico-lógico, mais centrado nos processos que ocor-rem no indivíduo e também da perspectiva de uma psicologia mais individual. No final de sua vida, entretanto, o tratamento do tema sofreu uma mudança. Sem abandonar seu interesse pela análise intrapsicológica, interessou-se igualmente pelo ensino dos conceitos no con-texto de atividades situadas e compartilhadas, ocorridas em um contexto institucional, como é a escola. Especificamente, "estava interes-sado em como as formas de discurso encon-

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tradas na instituição social da escolarização formal proporcionam o contexto subjacente no qual se dá o desenvolvimento conceituai" (Wertsch, 1990, p. 116). Ou seja, estava inte-ressado em situações concretas de atividade professor/alunos:

A tendência no pensamento de Vygotsky até o fim de sua vida é clara. Ele estava buscando uma forma de relacionar o fun-cionamento psicológico do indivíduo a contextos socioculturais concretos, espe-cificamente ao contexto de ensino formal. Os mecanismos teóricos que utilizou para esclarecer essa relação estavam fundamen-tados em seu tema da mediação semiótica; sua linha de raciocínio era identificar as formas de fala ou características do dis-curso de contextos socioculturais concre-tos e examinar o impacto que seu domí-nio tinha no funcionamento mental (nos dois planos, o interpsicológico e o intra-psicológico).

Assim, o próprio Vygotsky estava inte-ressado na análise do discurso educacional ca-racterístico dos contextos formais. Esse aspec-to tem, entre outras, uma implicação muito importante, que é de reconhecer as formas de funcionamento interpsicológico como ativida-des socioculturais situadas. Atualmente, é um dos aspectos que mais interessa aos pesquisa-dores que, a partir dessa orientação, tentam compreender a atividade escolar. Os trabalhos de Michael Cole e seus colaboradores, a que já nos referimos em relação aos conceitos de apro-priação e ZDP, são particularmente relevantes para a caracterização do contexto escolar e das atividades que ocorrem ali.

Entre os elementos que Cole (1990) con-sidera fundamentais para uma definição sócio-histórica da escola, encontram-se alguns aspec-tos sobre os quais já nos estendemos, como o fato de que a mediação cultural muda a estru-tura das funções psicológicas humanas ou que as funções psicológicas humanas são fenôme-nos históricos; por isso, não nos deteremos mais sobre eles. Entretanto, interessa-nos tra-zer a este momento de discussão outro postu-lado básico que o autor destaca: o do estudo dos processos psicológicos por meio da análise da atividade prática. Isso está relacionado com

a especificidade de contexto dos processos mentais. O funcionamento psicológico huma-no tem sentido dentro de um fluxo de intera-ção social em que diferentes participantes com-partilham uma atividade prática; são esses in-divíduos concretos em contextos de relação concretos, cujo sistema social é a garantia da existência da atividade humana (Leontiev, 1981, citado por Cole, 1990, p. 92). Além dis-so, o conjunto de capacidades postas em práti-ca em uma interação social são capacidades específicas que se relacionam com tais contex-tos práticos de ação (Vygotsky, 1978).

A escola, como instituição presente nas sociedades avançadas, caracteriza-se por uma série de traços e por uma organização peculiar do comportamento (Cole, 1990). A estrutura social e o conjunto de atividades que se reali-zam são específicas desse contexto. As unida-des são formadas por grupos amplos, nos quais uma pessoa adulta, que não pertence ao con-texto familiar próximo de desenvolvimento dos alunos, é responsável por um grupo grande de meninos e meninas. As atividades realizadas nes-ses grupos sociais estão deslocadas dos contex-tos práticos de atividade em si: nelas se desen-volverão, em grande medida, habilidades julgadas necessárias para contextos sociais fu-turos. Os meios utilizados no contexto educa-cional são, além disso, característicos do tipo de atividades que se desenvolvem ali, como é o caso dos sistemas simbólicos de escrita.

A estrutura de participação e as formas de discurso também são específicas. E esse as-pecto de seu trabalho que mais nos interessa para a discussão do valor dos signos como mediadores do desenvolvimento psicológico e, mais especificamente, dos instrumentos de mediação no contexto da educação formal. Os estudos sobre as formas como a linguagem é utilizada nas escolas revelam padrões que po-dem ser chamados de discurso do ensino (Cole, 1990). Tal discurso, diferente, na forma e no conteúdo, de outras interações verbais, revela turnos de interação dirigidos a proporcionar informação específica, controlar as execuções dos participantes e avaliar o progresso dos alu-nos, caracterizando-se por estruturas intera-tivas específicas do discurso escolar (Mehan, 1979; Rogoff, 1990). O estudo das formas discursivas oferece algumas respostas sobre a

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maneira como os instrumentos de mediação semiótica modificam o funcionamento cogni-tivo graças à participação dos indivíduos em contextos de atividade específicos. Por sua vez, e nesse mesmo sentido, Wertsch (1990) pro-põe o estudo dos próprios instrumentos de mediação que refletem aspectos fundamentais do contexto sociocultural e que às vezes im-portam estruturas alheias ao próprio funciona-mento psicológico.

A TEORIA SOCIOCULTURAL E A E D U C A Ç Ã O ESCOLAR

O processo de construção de conhecimen-tos não é mais entendido como uma realiza-ção individual, mas como um processo de co-construção ou de construção conjunta (Driver e outros, 1994; Edwards e Mercer, 1987; Valsiner, 1988) realizado com a ajuda de ou-tras pessoas, que, no contexto escolar, são o professor e os colegas de sala de aula. A sala de aula é definida, assim, como uma comuni-dade de alunos, em que o professor ou a pro-fessora orquestra as atividades (Bruner, 197). A ajuda educacional, ou seja, os mecanismos mediante os quais se tenta influir no desenvol-vimento e na aprendizagem da criança, é rea-lizada mediante uma série de procedimentos de regulação da atividade conjunta (Coll e outros, 1992). Essa ajuda é possível graças à negocia-ção dos significados e ao estabelecimento de um contexto discursivo que torna factíveis a comunicação e a expressão.

A construção do conhecimento na sala de aula é um processo social e compartilhado. A interação se dá em um contexto socialmente pautado, no qual o sujeito participa de práti-cas culturalmente organizadas com ferramen-tas e conteúdos culturais. As perspectivas socioculturais enfatizam a interdependência entre os processos individuais e os sociais na construção do conhecimento. Sua interpreta-ção dos processos de aprendizagem fundamen-ta-se na idéia de que as atividades humanas estão posicionadas em contextos culturais e são mediadas pela linguagem e por outros siste-mas simbólicos. A teoria sociocultural entende a aprendizagem como um processo distribuído, interativo, contextual e que é resultado da parti-

cipação dos alunos em uma comunidade de prá-tica. Aprender, de acordo com essa concepção, não significa interiorizar um conjunto de fatos ou de entidades objetivas, mas sim participar de uma série de atividades humanas que im-plicam processos em contínua mudança (Lave, 1996).

Os processos de troca e de negociação no cenário (Rodrigo e Cuberto, 1998) realizam-se por meio da participação guiada. Esta su-põe o professor como guia para a aprendiza-gem dos alunos, ao mesmo tempo em que par-ticipa, junto com eles e lhes oferece vários ti-pos de ajuda:

1. constrói pontes do nível de compreen-são e de habilidade do menino e da menina até outros níveis mais com-plexos;

2. estrutura a participação das crian-ças, manipulando a apresentação da tarefa de forma dinâmica, ajustan-do-se às condições do momento;

3. transfere gradualmente o controle da atividade até que o próprio alu-no seja capaz de controlar por si mesmo a execução da tarefa.

Com tudo isso, a meta educacional a ser alcançada é que o aluno se aproprie dos recur-sos da cultura, pela sua participação com ou-tros mais experientes em atividades conjuntas também definidas pela cultura (Rogoff, 1990). A apropriação de objetos de conhecimento e de ferramentas culturais mediada pela ajuda de outros supõe:

a) incorporar o objeto de conhecimento ou a nova ferramenta cultural aos re-cursos mentais disponíveis até esse momento por parte do aluno;

b) fazer seu o conhecimento e a ferra-menta cultural aprendidos, dando-lhes um sentido e um significado;

c) incluí-los no repertório de práticas uti-lizadas;

d) compartilhar seu uso com os demais.

Conceitos elaborados a partir de diferen-tes orientações - por exemplo, os de conheci-mento compartilhado, "andaime" ou participa-

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ção - confluem em uma explicação da apren-dizagem como colaboração ou coordenação conjunta, em que a influência educacional não se restringe ã interação professor e aluno. A interação entre alunos também é reconheci-da como contexto social de construção de sig-nificados, em que se põem em prática meca-nismos como os de expressão e de reconheci-mento de pontos de vista contrapostos, cria-ção e resolução de conflitos, que se mostra-rão relevantes para a aprendizagem (Cazden, 1988). Entre os trabalhos que estudaram a interação entre iguais a partir da teoria so-ciocultural, são muito conhecidos aqueles rea-lizados por Forman (1992) sobre a resolução de problemas em situações de colaboração entre iguais. Dois aspectos podem ser des-tacados dos trabalhos da autora (Lacasa e Herrans Ybarra, 1995): seu interesse pelas re-lações entre iguais como contexto de cons-trução conjunta de significados e a análise que realiza de como os meninos e as meninas aprendem a utilizar diferentes tipos de dis-

cursos em função do contexto do qual parti-cipam (ver Capítulo 16 deste volume).

Os estudos socioculturais da aprendiza-gem na sala de aula interessaram-se particu-larmente pela análise do discurso escolar. Na sala de aula, a comunicação e a construção de novos conceitos ocorrem em práticas nas quais o discurso educacional desempenha um papel primordial. E por meio do discurso que as ver-sões sobre o conhecimento se constroem e é também por meio dele que podemos analisar como se constroem (ver os Capítulos 15 e 17 deste volume). A linguagem e o estabelecimen-to de um consenso na sala de aula são o reper-tório coletivo de conhecimento que uma co-munidade compartilha, como é, em nosso caso, a comunidade educacional. Com relação a este último aspecto, a aprendizagem escolar é con-cebida por grande parte das propostas cons-trutivistas como a socialização dos alunos e das alunas em formas de fala e em modos de dis-curso, que são específicos de contextos cultu-ral e historicamente situados.