desinstitucionalização em saúde mental

10

Click here to load reader

Upload: jeane90144994

Post on 04-Jun-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 1/10

ART I   G O

ART I   C L E 

195

1Departamento dePsicologia, UniversidadePotiguar (UnP). Av.Salgado Filho 1600, LagoaNova. 59056-000 NatalRN. [email protected] de Pós-Graduação em PsicologiaSocial, UFRN.

Desinstitucionalização em saúde mental e práticas de cuidadono contexto do serviço residencial terapêutico

De-institutionalization of mental health and care practices

in the context of home-based care

Resumo Os serviços residenciais terapêut icos (SRT) no Brasil são considerados estratégicos e imprescindí- veis no processo de desinsti tucionalização de egressos de longas int ernações psiquiátricas que perderam vínculos sociai s e familiares. No entanto, mui tos são os problemas e desafios que este serviço evidencia no 

contexto mais amplo da atenção àsaúde. Este artigo procura anali sar alguns desses problemas e desafios a part ir da experiência do SRT de Natal, Rio Grande do Norte, e de contribuições da literatura do campo.Propostos com base na idéia de que os encont ros en- tre loucura e cidade são potentes no sent ido da des- construção da “lógica manicomi al”, os SRT são proble- matizadores do modelo de atenção em saúde vigente,pois exigem a desconstrução das formas rígidas e hege- mônicas de morar e cuidar. Pretende-se problemati - zar essa “lógica mani comi al” que atravessa os limi - tes dos manicômios concretos e se atual iza no cotidia- no dos serviços substi tut ivos em certas práticas e na 

frágil articulação da rede de saúde mental. A fal ta de articulação efetiva entre SRT e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) dálugar a di spositi vos biopolíti - cos no coti di ano através dos quais essa lógica opera.Discutimos, então, os ri scos de captura por esta lógi- ca e indicamos algumas das possibilidades de descons- trução, defendendo uma clíni ca que possibi lite encon- tros potentes com a cidade e a construção de “redes de trabalho afeti vo” produtoras de vida e li berdade.Palavras-chave Desinsti tucionalização, Saúde men- tal, Serviço residencial terapêut ico, Práticas em saúde 

Abstract In Brazil , the home-based care services (HCS) are considered strategic and essent ial in the de-insti tuti onali zation process of pati ents who passed years in psychiatr ic hospit als and lost their fami ly and social li nks. However, this service faces a series of problems and challenges in the wider context of health 

care. This article seeks to analyze some of these prob- lems and challenges based on the experi ence of the home-based care service in Natal – RN and on the li terature in t his field. Proposed on the basis of the idea that the encounters between insani ty and city are potent destructors of the “asylum logic”, these home-based care services put in questi on the cur rent healthcare model, claiming to destruct the rigid and hegemonic forms of residence and care. The aim of thi s art icle is to discuss this “asylum logic” that sur- passes the limi ts of the concrete insane asylum pene- tr ati ng some dai ly practices of the substi tu te services,taki ng advantage of the weak art iculati on between 

the mental health services. The lack of a strong con- necti on between the home-based care service and the psychosocial care center al lows this logic to operate through day-by-day bio-polit ical devices. Thus, we discuss the ri sks of this logic taki ng over and indicate some possibil iti es of avoidi ng thi s, defending a care model allowing for potent meetings with the cit y and for the construction of “affecti onate networks” pro- ducing li fe and li bert y.Key words  De-insti tut ionalization, Mental health,Therapeuti c homes, Care practices 

Ana Karenina de Melo Arraes Amorim 1

Magda Dimenstein 2

Page 2: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 2/10

19 6

   A  m  o  r   i  m ,   A

   K   M   A ,

   D   i  m  e  n  s   t  e   i  n   M

Introdução

A história da reforma psiquiátrica brasileira é umprocesso em construção e um projeto com dife-rentes versões. A mais atual, que fundamenta as

políti cas de saúde mental, é a da desinstitucionali-zação entendida como desconstrução de saberes,discursos e práticas psiquiátricos que sustentam aloucura reduzida ao signo da doença mental e re-forçam a instituição hospitalar como a principalreferência da atenção à saúde mental1. No entanto,quando analisamos a realidade da saúde mentalbrasileira, observamos que existe uma série de im-passes que dificultam a concretização deste proje-to de desinstitucionalização. Dentre esses impas-ses, encontram-se a redução da reforma a um pro-cesso de desospitalização sem a real desmontagemdo hospital psiquiátri co e o deslocamento comple-

to da atenção em saúde mental para serviços subs-titutivos territoriais integrados à rede de saúdemais ampla. Esta dificuldade gera, dentre outrasproblemáticas, o fato de que os serviços que deve-riam ser substi tut ivos ao hospital psiquiátr ico nãoatendem à demanda em saúde mental da popula-ção, colaborando para a existência de discursossegundo os quais a reforma psiquiátrica tem pro-movido desassistência e justificando a manuten-ção da estrutura psiquiátrica tradicional. Temos,então, que a desinstitucionalização, como proces-so efetivo de desconstrução de saberes e práticasmanicomiais, ainda se coloca como um projetocujas bases precisam ser mais bem desenvolvidas.

Diante dessa realidade, procuramos lançar nos-sos questionamentos em relação ao mais recentedispositivo no processo de reforma psiquiátricabrasileira: o serviço residencial terapêutico (SRT).O Ministério da Saúde2indica que a criação de ser-viços residenciais terapêuticos é imprescindível paraa substituição dos leitos em hospitais psiquiátri-cos por que estes serviços visam a oferecer condi-ções de vida para aqueles com histórico de longasinternações psiquiátricas, moradores de rua eegressos de insti tuições penais e manicômios judi-

ciários, ou seja, pessoas com vínculos familiares esociais comprometidos ou inexistentes. Para tan-to, a Portaria nº 106/20002 estabelece a vinculaçãode cada SRT a um serviço de referência, que se con-figura como local de tratamento para os seus mo-radores. Este serviço de referência pode ser umCAPS (Centro de Atenção Psicossocial), um servi-ço ambulatorial especializado em saúde mental ouainda uma equipe de saúde da família com apoiomatricial em saúde mental.

Os SRTs “visam os processos de autonomia, deconstrução de direitos, de cidadania e de novas

possibilidades de vida para todos” e devem garan-tir “o acesso, o acolhimento, a responsabilização ea produção de novas formas de cuidado do sofri-mento” 2. Sendo assim, configuram uma modali-dade de serviço que pode ser considerada avança-

da no sentido da desconstrução da loucura comosigno de aprisionamento, periculosidade e isola-mento, pois aposta na convivência urbana dos “ lou-cos” como cidadãos e busca concretizar a efetivasubstituição dos manicômios e a liberdade de ex-internos de circular pela cidade.

Na realidade específica da saúde mental nomunicípio de Natal (RN), foi implantado em maiode 2005 o primeiro serviço residencial terapêutico,de modo a despertar nosso interesse sobre o pro-cesso de desinstitucionalização em curso neste con-texto específ ico, tendo em vista que é uma primei-ra experiência com este tipo de serviço na região e

que, como tal, seria potencialmente livre de croni-cidades e repleto de desafios em sua implantação efuncionamento.

Considerando as características e a concepçãode SRT tal como proposto pelo Ministério da Saú-de e as peculiaridades da experiência do SRT de Natal,esse trabalho visa a problematizar as práticas decuidado produzidas no seu cotidiano de modo aconstruir novas possibilidades de vida para usuári -os e técnicos e como estas práticas de cuidado, emalguma medida, podem também ser capturadaspela lógica manicomial, reproduzindo-a e impedin-do a construção de vida para além do hospital, dosmuros institucionais e dos serviços de saúde emgeral. Colocamos, assim, em discussão, a clínicaque se pode desenvolver nesses serviços e algumasdas problemáticas trazidas na literatura e outrasque emergem da própria experiência do SRT de Natalque temos acompanhado, sabendo que esta mo-dalidade de serviço lança o desafio da desconstru-ção das formas habituais e hegemônicas de morare de cuidar e clinicar, considerando as imprevisibil i-dades que o encontro da loucura em sua estranhe-za e em suas formas institucionalizadas com a cida-de traz para moradores e cuidadores3.

O processo de desinstitucionalizaçãoe a proposição dos serviços residenciaisterapêuticos

O processo de reforma psiquiátrica vem sendoconstruído no Brasil há vários anos e tem comoum dos seus pilares principais a desinstitucionali-zação4, 5. No entanto, ao longo do processo histó-rico de construção da reforma, mui tas são as con-cepções e as práticas de desinstitucionalização, de

Page 3: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 3/10

197 Ci   ê n c i   a &  S a ú  d  e C ol   e t i  v  a ,1 4  ( 1  ) : 1  9  5 -2  0 4  ,2  0  0  9 

modo que os projetos de reforma não são homo-gêneos e o que efetivamente demarca uma real dis- tinção entre os projetos de reforma , [...] éa forma do lidar prático e teórico da desinsti tucional ização, con- ceito este que sofre metamorfose substancial e que 

abre novas possibili dades para o campo da reforma 4.Consideramos aqui a desinstitucionalizaçãocomo desconstrução de saberes e práticas psiquiá-tricas, perspectiva que fundamenta o movimentode reforma psiquiátrica e a polí tica de saúde men-tal brasileira, inspirada na proposta da psiquiatr iademocrática italiana. Essa versão da desinstitucio-nalização é caracterizada pela crítica epistemológi- ca ao saber médico psiquiátrico, na qual o sentido de cidadania u lt rapassa o do valor uni versal para colo- car em questão o própri o conceito de doença mental que determi na l imi tes aos di reitos dos cidadãos 6.

Nesse sentido, o movimento de reforma psi-

quiátrica brasileira busca a desconstrução da rea-lidade manicomial - para além da “queda dosmuros manicomiais” em sentido fí sico - e a cons-trução de novas realidades, segundo novas basesepistemológicas, políticas e sociais, operando trans-formações de toda uma cultura que sustenta a vi-olência, a discriminação e o aprisionamento daloucura. Para tanto, é necessária a desmontagemda cultura e da estrutura psiquiátrica que separou“um objeto científico, a doença, da existência glo-bal complexa e concreta dos pacientes e do corposocial”6. O primeiro passo nessa desmontagemseria renunciar à perseguição da cura, na relaçãoproblema-solução, tomando como objeto a exis-tência-sofrimento. Assim, a ênfase não é mais co-locada no processo de cura no sentido da vida pro-dutiva, mas no projeto de “ invenção da saúde” e de“reprodução social do paciente” através da utiliza-ção das formas e dos espaços coletivos de convi-vência dispersa6. A saúde passa, então, a ser enten-dida não mais a partir de parâmetros de bem-es-tar definidos desde princípios biomédicos e regu-lados pelo Estado, mas como produção da vidapossível e com sentido para os sujeitos em suassingularidades nos diferentes espaços de sociabili-

dade e solidariedade em que circulam.Assim sendo, a concepção de território é fun-damental na construção do cenário estratégico dasaúde mental. O território é uma “força viva derelações concretas e imaginárias que as pessoasestabelecem entre si, com os objetos, com a cultu-ra, com as relações que se dinamizam e se trans-formam”1. O trabalho no território não seria umtrabalho de promoção de saúde mental, mas de“ invenção de saúde”. Isso porque o que habitual-mente se chama de comunidade pode ser “ um gran-de deserto, pode ser o lugar da anomia”, enquanto

no território existem forças vi vas e não forças mor- tas [...] exi stem os homens que buscam trabalhar sobre as inovações sociai s [...]. Então, o saber do paciente, o saber do sujeito paciente, o saber dos fa- miliares, esses saberes que exi stem no terr i tório de- 

vem ser incorporados em nossas práticas 7.Com base nessas idéias de desinstitucionaliza-ção como desconstrução e de território é que omodelo de atenção em saúde mental brasileiro foiproposto no sentido de expandir e consolidar umarede de atenção extra-hospitalar, de modo a aten-der as demandas territoriais específicas sem desas-sistir e indo além da pura desospitalização. Estarede hoje é consti tuída de unidades básicas de saú-de (UBS), centros de saúde, serviços de pronto-atendimento, ambulatórios, centros de atençãopsicossocial (CAPS) e serviços residenciais terapêu-ticos (SRT).

Nesta rede de serviços, destacamos os SRT porconsti tuírem os mais recentes dispositivos terapêu-ticos oferecidos na rede, sendo reconhecidos comoavanço no processo de reforma psiquiátrica brasi-leira. No entanto, caracterizando-se como serviçosque devem ser “prioritariamente” locais de mora-dia e não de tratamento, ficando este sob a respon-sabilidade dos outros serviços substitutivos da rede,os SRT produzem questionamentos ao modo defuncionamento da mesma, assim como apontamdesafios nos processos de produção de saúde quese desenvolvem diretamente nele ou a partir dele.

Para pensar tais desafios, é preciso considerarque, apesar do modelo assistencial proposto pelaspolíticas de saúde mental nacional, regionais e lo-cais e dos avanços no sentido da desospitalizaçãocom a implantação dos serviços acima destacadose a expansão da rede, quando analisamos o pro-cesso de reforma psiquiátrica brasileira como umtodo, encontramos uma série de impasses queobstaculizam o processo de desinstitucionalizaçãocomo real desconstrução.

Dentre os impasses, está a chamada “ insti tuci-onalização do CAPS” 8, problemática que pode serestendida para qualquer tipo de serviço substituti-

vo da rede de saúde mental. Se por um lado estainstitucionalidade é necessária à legitimidade des-tes serviços na rede de saúde, por outro, se corre orisco que ela se transforme em institucionalizaçãocrônica e cronificada, reproduzindo o manicômiodo qual quer escapar. Há, por exemplo, a repetiçãode certas práticas tutelares e absorção de deman-das que “deveriam” ser atendidas por outros dis-positivos da rede. A cada dia aumenta o númerode usuários que freqüentam o CAPS, forçando-nos a questionar como construir outros projetosde vida que não dependam dos serviços e como

Page 4: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 4/10

19 8

   A  m  o  r   i  m ,   A

   K   M   A ,

   D   i  m  e  n  s   t  e   i  n   M

escapar das práticas tutelares sem desassistir, bemcomo criar fluxos de encaminhamentos, comocriar efetivamente uma rede de assistência.

A questão da inexistência ou da fragilidade deuma efetiva “rede” de atenção em saúde e, em espe-

cial, em saúde mental, pode ser observada na de-sorganização de várias portas de entrada e a faltade portas de saída, de modo que a rede não se faz,pois características essenciais como a descentrali-zação e a conectividade não se operam e o que ve-mos é “um conjunto de pontos ligados frágil e bu-rocraticamente” 8. Isto por que se temos uma orga-nização de serviços que se configura com uma for-te referência central, sem um fluxo de encaminha-mento e que não é objeto de pensamento e trans-formação permanentes, o que se configura é umarígida estrutura “em grade” e não uma rede em quetenha lugar a liberdade e a invenção da saúde. Tal

desarticulação da rede reflete-se de modo mais es-pecífico na relação do próprio SRT com o CAPS dereferência, trazendo diversos problemas para a aten-ção aos usuários. Na realidade de Natal, por exem-plo, podemos observar dificuldades na construçãode espaços de comunicação entre os técnicos dosserviços, o que impede as necessárias discussõesacerca do modo como estes moradores devem ounão ser acompanhados pelo CAPS, bem como acer-ca da regularidade e freqüência a tal serviço paraparticiparem de suas atividades e receberem medi-cação, sabendo-se que há uma equipe de cuidado-res no SRT.

 Assim, pela precariedade de espaços de discus-são entre os serviços, há a falta de clareza em rela-ção às atribuições de cada serviço para com aque-les usuários, produzindo uma precária co-respon-sabilização pelo cuidado destes que, enquanto mo-radores do SRT, são considerados usuários “ex-tras” pelo CAPS, contrariando a própria orienta-ção oficial do Ministério da Saúde2 a respeito daarticulação desses serviços.

Assim, observamos que a passagem de um regi-me tutelar para outra forma de cuidado que pro-ponha a produção de práticas de liberdade consti-

tui um processo cheio de atravessamentos, de modoque mesmo nos serviços substitutivos sobrevivemcondutas e posicionamentos que revelam não maisuma estrutura manicomial, mas idéias manicomi-ais que ainda circulam e se fazem presentes nos ser-viços de saúde mental e se atualizam “em práticas/ discursos de exacerbada medicalização, de interpre-tações violentas, de posturas rígidas e despóticas” 9.

Por isso, ao analisarmos este processo de de-sinstitucionalização da loucura no âmbito dos SRT,não se pode pensar apenas no campo técnico-as-sistencial, mas também nas forças em jogo nos

campos sociocultural e político-jurídico, que con-ferem complexidade a esse processo e nos quaisuma lógica manicomial parece se operar de modoefetivo e amplo.

Lógica manicomial e dispositivosbiopolíticos no cuidado em saúde mental

Diante da complexidade do processo de desinsti-tucionalização e das problemáticas em torno dele,é preciso considerar a existência de uma lógicamanicomial que atravessa as mais diferentes reali-dades no campo da saúde mental, dizendo respei-to ao caráter asilar, segregante e tutelar dos pro-cessos de subjetivação na contemporaneidade, paraalém desse campo específico de interesse. Esta lógi-ca manicomial parece estar presente nos diferentes

espaços e tempos, configurando diferentes formasde controle da vida que superam as formas disci-plinares de aprisionamento dos corpos10.

Para realizar a análise da lógica manicomial emdiferentes campos, as contribuições de Michel Fou-cault sobre o biopoder e aquelas de Gilles Deleuze eFélix Guattari sobre a chamada sociedade de con-trole e os processos de subjetivação na contempo-raneidade capitalista colocam-se como interessan-tes e potentes na produção de reflexões.

A noção de biopoder no sentido do “poder so-bre a vida”  11 diz respeito à gestão da vida incidindo já não mais sobre os indivíduos (como no sistemadisciplinar), mas sobre a população que passa a sercontrolada, regulada em seus processos biológicos(tais como a reprodução, a natalidade, a mortali-dade e o nível de saúde). Assim, de acordo com asidéias de Foucault10, enquanto a disciplina controlacada indivíduo em seu corpo e em seus desejos nasfábricas, prisões e manicômios, o biopoder, ou po-der de regulação da vida, administra o homem en-quanto espécie viva nas cidades, na população, nasdiversas instituições. Há, com a “derrubada dosmuros” no sentido físico, uma diluição dos “mu-ros” e o transbordamento da lógica de poder para

outros setores da vida, fazendo-nos “prisioneiros acéu aberto”12. É nesse sentido que Deleuze sugereque os poderes sobre a vida encontram-se diluídoshoje na chamada “sociedade de controle”, atravésdo cruzamento entre a norma da disciplina e a nor-ma da regulamentação (operada pelo biopoder), eem relação aos quais devemos responder com as“potências de criação da vida” 13.

Na “sociedade de controle” 13, controles implí-citos da vida nos atravessam de modo insistente einsuspeito. E eles dizem respeito, sobretudo, à re-lação humana com o tempo e o espaço de existên-

Page 5: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 5/10

199 Ci   ê n c i   a &  S a ú  d  e C ol   e t i  v  a ,1 4  ( 1  ) : 1  9  5 -2  0 4  ,2  0  0  9 

cia. Constatamos diariamente a nossa insuficiên-cia para acompanhar a sua velocidade, somos cha-mados a correr atrás de um futuro que parece es-corregar. E, nessa sensação de insuficiência, somostentados a utilizar diferentes formas de controle

do tempo, seja de ordem tecnológica e material(máquinas do tempo), seja de ordem relacional(rotinas, horas marcadas, controle da duração dequase todos os acontecimentos a que se está sujei-to diariamente).

No mesmo sentido, em relação aos espaços deexistência, a lógica da globalização capitalista atualleva-nos a transcender territórios e a estar conec-tados com a diversidade e a multiplicidade de cul-turas e lugares, de modo que podemos ter acesso adiferentes territórios identitários sem que esteja-mos fixos em nenhum deles. Porém, o que é am-plamente ofertado pelo mercado global capitalista

são formas de fixar identidades, através de estraté-gias de mídia, de suportes tecnológicos, de aprisio-namentos teóricos e de pensamento. Dentre taismecanismos de aprisionamento, destacamos aquias fixações identi tárias na figura do doente mentalcomo signo de periculosidade, que sustenta a lógi-ca manicomial em nossa cultura.

Assim, os mecanismos de controle e poder nãoestão mais evidentes ou claramente delimitadoscomo nas insti tui ções totais psiquiátricas tradicio-nais estudadas por Goffman14, mas estão presen-tes nos controles implícitos de espaço e tempo aque todos estão sujeitos nos processos de fabrica-ção de subjetividades na contemporaneidade15, 16 eque se colocam de modo peculiar na realidade daatenção à saúde mental brasileira.

Situando tal lógica na atenção em saúde men-tal, observamos que, seja na rotina diária de ativi-dades nos serviços substitutivos, seja no tempo deinstitucionalização no hospital psiquiátrico ou nes-tes serviços ou no tempo “fora” dos serviços, a ex-periência e a relação que se estabelece com o tempose colocam de modo que há uma espécie de “con-trole da vida pelo tempo” que liga de modo impor-tante os usuários aos serviços e que os separa da

vida “ lá fora”, da vida na cidade para além das “ li -nhas de ônibus” (rotineiramente utilizadas pelosusuários e que constituem uma das poucas formasde contato com a cidade para além da casa e doserviço).

Dessa forma, é pertinente questionarmos comocertos limites de tempo (permanência no serviçodurante a semana, freqüência ao serviço, períododestinado às atividades desenvolvidas), que sãoestabelecidos pelos serviços através do exercício dossaberes e poderes que nele circulam, funcionam demodo a deixá-los numa espécie de “dependência”

da instituição8 que não raro se justifica, no discur-so profissional, pela “dependência” aos medica-mentos e ao acompanhamento médico.

Em relação à delimitação do espaço, observa-mos que os usuários de serviços extra-hospitala-

res, sobretudo aqueles de regime semi-intensivo,percebem suas casas como “prisões de fim de se-mana”, que os protegem das ameaças da vida nascidades e que a “vida livre” ou a vida possível pareceser encontrada no contexto do serviço, de modoque apenas dentro dos muros institucionais é pos-sível existir. Assim, a vida que é produzida de algu-ma maneira nos serviços parece não ter extensãopara a vida “ lá fora”. Diante disso, indagamos: comofazer acontecer esta extensão, ou melhor, como fa-zer acontecer o “livre trânsito” dessas pessoas navida comum das cidades, nos diferentes espaços etempos de vida?Ou antes, que “ linhas” são essas

que as amarram aos serviços e as impedem de cir-cular livremente pelas cidades no trânsito para casa?

A existência dessa forma de dependência mar-cada pela temporalidade e pela espacialidade pare-ce evidente também nos usuários que são mora-dores de SRT quando, tal como ocorre em Natal,as atividades que exigem circulação pela cidade sãorestritas e dependem da disponibili dade dos técni-cos do SRT em acompanhá-los ou quando é esta-belecida uma regularidade de participação nas ati-vidades do CAPS do território e de busca pela me-dicação que os obriga a freqüentar este serviço semque isso esteja claramente atrelado aos projetosterapêuticos, o que certamente resultaria em dife-rentes arranjos em função das necessidades de saú-de singulares a cada um.

Esta desarticulação em relação aos projetos te-rapêuticos de cada morador f ica evidente, pela re-cusa ou insatisfação de alguns moradores em fre-qüentar o CAPS, por se sent irem “presos” lá den-tro ou por não verem sentido no que fazem noserviço. Além disso, tal recusa parece colocar a ne-cessidade de se pensar novas práticas de cuidadodestinadas aos usuários do CAPS de modo geral.Práticas estas que devem ser discutidas junto aos

cuidadores do SRT ou aos familiares dos usuáriosem geral no sentido de, por exemplo, se desenvol-verem “fora” dos muros físicos do CAPS, na circu-lação pela cidade, o que poderia permitir a cons-trução de projetos terapêuticos que efetivamenteatendessem as necessidades de saúde de cada usu-ário vinculadas aos seus “projetos de felicidade” 17.

Diante dessa constatação, parece necessário quetodos os envolvidos estejam atentos a estas for-mas de captura biopolítica que sutilmente se operano cuidado a esses usuários, de modo a fazer aclínica se movimentar. Para tanto, não seria neces-

Page 6: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 6/10

20 0

   A  m  o  r   i  m ,   A

   K   M   A ,

   D   i  m  e  n  s   t  e   i  n   M

sária a criação de parcerias e espaços de discussãoefetivos sobre as peculiaridades do trabalho e osprojetos terapêuticos de cada usuário? Em quemedida esses projetos estão vinculados aos seus“projetos de felicidade”17?A vinculação do SRT com

o CAPS implica um trabalho atento a questõescomo estas e que respeite as necessidades de saúdesingulares a cada morador, o que exige a criação dealternativas de cuidado que escapam ao modeloterapêutico institucionalizado de CAPS.

Quando consideramos esta realidade específi-ca do SRT, que é ao mesmo tempo uma casa naqual os moradores, como em qualquer casa, de-vem poder circular a qualquer tempo por diferen-tes espaços sociais e públ icos, podemos pensar queesses mecanismos de controle e as estratégias deresistência à lógica manicomial vão incidir sobre ocotidiano dos moradores e cuidadores, nas rela-

ções que estes estabelecem entre si, nos mais varia-dos âmbitos da vida que estão construindo juntose também sobre as práticas de cuidado em saúdeque ali estão se realizando. É nesse sentido que osSRT têm se revelado como problematizadores daatenção em saúde mental e, como tal, têm mobili -zado uma série de questionamentos relativos à clí -nica e aos modos de morar e habitar, tais como:que clínica é possível neste contexto residencial semcair nas práticas tutelares? Que acolhimento e queformas de cuidado se fazem nesse novo modelosem aprisionar a vida? Como se fazem essas for-mas de cuidado no transitar cotidiano entre casa ecidade e tudo que a vida comum comporta?

Temos, assim, uma série de questões que exi-gem análise sobre a cidade, como espaço em que ocotidiano se faz e em que os diversos processos desubjetivação se produzem; sobre os modos de mo-rar como formas de lidar com o espaço e o tempode vida cotidiana que, tradicionalmente, são natu-ralizados em modelos privatizados, impermeáveise higiênicos de habitar e sobre a clínica como umconjunto de equipamentos teóricos e práticos decuidado e de produção de saúde, que tradicional emodernamente têm se operado e se naturalizado

em modelos também privatizados, impermeáveis ehigiênicos, sem espaço para a criatividade na cons-trução de novas práticas e modelos teóricos18.

Cidade e subjetivação: (des)construçãode modos de morar e clinicar

Na análise das questões que envolvem a cidade, osmodos de morar e clinicar que nossa problemáticaexige, consideramos a subjetividade no sentido doseu processo de produção, mais precisamente como

processo de subjetivação, que perpassa o pensa-mento de Gilles Deleuze e Félix Guattari15, 16. Ouseja, interessa-nos a produção ou fabricação desubjetividade no contexto capitalista da atualidade,com as forças de ordem política, social, ética e esté-

tica que caracterizam o momento contemporâneo.Colocando a subjetividade sob o signo da ex-terioridade, Guattari19 propõe a idéia de cidadesubjetiva. Nesta proposição, a cidade e a subjeti vi-dade seriam uma mesma coisa, desde que ambasfossem remetidas à dimensão da exterioridade evirtualidade que lhes é comum, naquilo que am-bas comportam de meios a serem explorados, tra- jetos de vida a serem percorridos, devires a sereminventados. A cidade subjetiva representaria essaprocessualidade da produção subjetiva no sentidoda invenção que se opera na coletividade e não daserialização, homogeneização e reprodução da vida.

Nesse sentido, Baptista18 propõe que pensemosna cidade como espaço de subjetivação em que aheterogeneidade, o imprevisível, as impurezas, asestranhezas colocam desafios e exigem invençõescotidianas aos modos de morar e habitar, cujaporosidade os distancia de um ato humano fixadoe de um modo particular de operar a existênciaque define a subjetividade como atributo indivi-dual. Tal porosidade permite a entrada dos para-doxos e cont radições do espaço públ ico, ameaçan-do, assim, certas modalidades de gerência da saú-de e do sofrimento que caracterizam a lógica ma-nicomial e exigindo a criação de novas formas decuidar e de morar, não mais calcadas em modelosde vigilância do íntimo e em regimes de tutela legi-timados pela soberania dos saberes, ou em modosde morar restritos à casa como espaço íntimo im-permeável que bloqueia os sentidos da diversidadee inibe as construções e narrativas coletivas.

Considerando esta idéia da cidade como espa-ço de subjetivação, pensamos, então, no encontroentre loucos e cidade, no qual estas experimenta-ções podem se fazer. Segundo Amarante4, baseadonas reflexões de Basaglia, o louco, expropriado deseus direitos, de sua famíli a, de sua comunidade de

origem e do convívio com a sociedade, deve ter nacidade o espaço real “dos processos de validaçãosocial dos sujeitos”. A proposta basagliana defendeentão a necessidade do encontro entre a loucura ea cidade, entendendo esta como “território” 1. E,nesta proposta, tal encontro deve ser orientadopela desinstitucionalização e atravessado pelas prá-ti cas de cuidado promovidas pelos serviços substi-tutivos, mas também por outras estratégias, práti-cas e redes de cuidado e equipamentos sociais quepossam vir a ser desenvolvidas na cidade, nos es-paços micropolíticos de vida, como extensão ou

Page 7: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 7/10

Page 8: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 8/10

20 2

   A  m  o  r   i  m ,   A

   K   M   A ,

   D   i  m  e  n  s   t  e   i  n   M

parti r do desejo de mundo que dissipa a dicotomiadentro-fora e permite a inserção de ambos numespaço compartilhado, possibilitando a produçãode singularidades. Assim, a clínica consti tuiria umaferramenta na invenção da saúde que se faz como

cartografia dos modos de existir, ou seja, como opercorrer/acompanhar os espaços de ruptura e pro-pagação do novo, o “aguçar as sensações, abrir ocorpo, para torná-lo passagem de vozes/imagensde mundo ainda não conhecido e experimentado”22.

E para pensar essa “produção de saúde” nocontexto dos SRT, parece-nos pertinente o convitede Teixeira23 a refletir sobre as conseqüências mi-cropolíticas das práticas de cuidado, consideran-do a possibilidade de operarem como autênticas“técnicas de reconstituição do laço social”, sendo,portanto, amplamente coletivas. Ou seja, pensarem “produção de saúde” é pensar nas práticas de

cuidado que são coletivamente desenvolvidas em“redes de trabalho social” a partir da experimenta-ção e que possibilitam a vida e a saúde de indivídu-os e populações.

Assim, entendemos que há uma indissociabili -dade entre produção de saúde e de subjetividades,entre atenção, gestão e modos de existência movi-dos por forças que lutam contra a conservação e areprodução das formas instituídas de viver e cui-dar. Ou seja, há que se pensar a saúde “como expe-riência de criação de si e de modos de viver [...],isto é, novos sujeitos implicados em novas práti-cas de saúde”24.

Uma dessas novas práticas seria a do acolhi-mento que Teixeira23 propõe que seja pensada como“acolhimento-diálogo”, como uma “técnica de con-versa” que define a dimensão pragmática dos en-contros, seus domínios de ação (emoções e afetos)e de significação, evidenciando “redes de trabalhoafetivo”. Tais “redes de trabalho afetivo” seriam re-des de produção de afeto, o que é “a própria pro-dução de redes sociais, de comunidades, de formasde vida (biopoder), de produção de subjetividades(individuais e coletivas) e de sociabilidade”.

Interessante destacar que, nesse sentido, na

prática em “redes de trabalho afetivo”, há a neces-sidade da construção da confiança naquilo que,inspirado em Espinosa, Teixeira23 chama de “zonade comunidade”, em que se coloca o desafio daalteridade, de aceitação do outro como legítimooutro e em que experimentamos novas intensida-des, às quais fomos conduzidos pelos afetos aumen- tat ivos que anunciam, por sua vez, outros modos de exi stência, em que nos tornamos a causa última de nossas paixões, em que ent ramos plenamente na posse de nossa potência. Para Espinosa, a l iberdade . Queoutra forma de conceber as práticas de saúde seria

mais coerente com a proposta dos SRT que essa?No encontro com a cidade, é preciso que o acolhi-mento-diálogo se coloque como prática de saúde,de invenção de vida, de subjetivação e sociabilida-de para os moradores, possibilitando a constru-

ção dessas “zonas de comunidade”, desse “aumen-to da potência da vida” que é a própria liberdade.

Considerações finais

Diante dessas considerações, temos que o SRT co-loca-se fundamentalmente como um dispositivoproblematizador da atenção em saúde mental, exi-gindo a constante reflexão sobre as práticas e sa-beres em jogo no processo de desinstitucionaliza-ção em construção, sob pena de cairmos nas ar-madilhas da lógica manicomial, da “prisão a céu

aberto”11.Desta forma, o trabalho no SRT exige, sobre-

tudo, a construção efetiva de redes de cuidado en-tre os serviços e entre diferentes equipamentos so-ciais, envolvendo a cidade com suas diferentes epotentes estratégias de cuidado. Isto implica aampliação, a desnaturalização e o movimento cons-tante do próprio trabalho em saúde, do que seentende por “clínica” a ser desenvolvida nos servi-ços, especialmente nos CAPS.

Temos, então, que os desafios colocados pelosSRT têm origem e dirigem-se a diferentes espaços eatores envolvidos no cuidado de seus moradores,assim como exigem a construção efetiva de redes decuidado e sociabilidade no trânsito dos moradorespela cidade. No entanto, isso parece depender detransformações e iniciativas em diferentes níveis.

Num nível macropolítico, está a necessidade depolíticas públicas que exijam e possibilitem aos ser-viços a articulação com a vida “lá fora”, na constru-ção de redes de conexão e diálogo nos diferentesespaços onde cada usuário circula e constrói suavida de modo a garantir a (des) construção perma-nente das práticas de cuidado de acordo com asnecessidades específicas de saúde de cada usuário.

Num nível micropolítico, estaria a articulaçãoentre os próprios técnicos, moradores e comuni-dade mais ampla, na produção/invenção do cuida-do destes moradores. Aqui estaria talvez a própriacondição de se pensar que este tipo de serviço tra-balha para não ser mais necessário ao moradorque, como uma pessoa qualquer na cidade, pode-ria buscar um “serviço de saúde” quando necessi-tasse. E, para isso, devem ir se desenvolvendo redessociais de apoio e cuidado, construídas no cotidia-no da cidade, com vizinhos, amigos ex-internos,namorados, técnicos que viraram amigos acolhe-

Page 9: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 9/10

203 Ci   ê n c i   a &  S a ú  d  e C ol   e t i  v  a ,1 4  ( 1  ) : 1  9  5 -2  0 4  ,2  0  0  9 

dores, comerciantes, motoristas de ônibus, entreoutros, multiplicando o cuidado na vida de todos ecada um.

Um desafio seria, então, o de viabilizar que acirculação desses moradores na vida cotidiana, na

cidade múltipla, diversa e imprevisível, comporte apossibilidade de encontros “aumentativos de po-tência”, produzindo liberdade e vida. E que essaviabilidade seja tomada como algo que esponta-neamente vai se fazendo também para além eaquém das ações dos profissionais de saúde, desdeque as intervenções por eles realizadas nesse con-texto sejam constantemente objeto de reflexão, nãose reproduzindo em “pequenos manicômios”.

Assim, outro desafio que se coloca é a descons-trução e a desnaturalização das práticas profissio-nais a partir do acolhimento-diálogo no contextodos SRT sem incidir na clínica tradicional, na escu-

ta surda do modelo psicoterápico privado e indivi-dual. Para tanto, é preciso fazer-se “zona de comu-nidade”23 que seria, como nos sugere Rolnik25, um“sofrer junto com” feito ao mesmo tempo de indi-ferença a tudo o que se aproxima da homogenei-zação (por exemplo, viver a queda como vítima) e

de cumplicidade com todo e qualquer movimentode entrega e de diferenciação.

O trabalho em saúde seria efetivado, assim,como prática intercessora, entendendo com Deleu-ze13 intercessor como algo ou alguém que funciona

intercedendo a favor do estranho que nos habita,invocando-o e acolhendo-o, não como aquilo quehá de monstruoso e perigoso, mas como aquilo quehá de mais potente em cada um. Assim concebido, otrabalho em saúde exigeesta mudança em nosso modo de subjetivação, [...] esta abertura para o estranho- em-nós, que émais do que o simples respeito democrá- tico pelo out ro em seus direitos e deveres, poi s éum desejo de se deixar afetar pelo out ro, éum amor pela alteridade, pelo devir e a incerteza criadora 25.

Desejamos assim que, na realidade de trabalhonesses serviços residenciais, encontros com o es-tranho se façam, nos espaços porosos entre a casa

e a cidade, os loucos e a casa, os loucos e a rua, osloucos e a cidade, os profissionais e os loucos, osprofissionais e a rua, os profissionais e a casa, en-tre os loucos profissionais e a cidade, enfim, múl-tiplos encontros que vão constituindo em redes detrabalho afetivo produtoras de vida e liberdade.

Colaboradores

AK Amorim trabalhou na concepção, redação dotexto e pesquisa que dá subsídios ao artigo e MDimenstein orientou a pesquisa teórica e empíricaque fundamenta o artigo e trabalhou na redação erevisão final do texto.

Page 10: Desinstitucionalização em saúde mental

8/13/2019 Desinstitucionalização em saúde mental

http://slidepdf.com/reader/full/desinstitucionalizacao-em-saude-mental 10/10

20 4

   A  m  o  r   i  m ,   A

   K   M   A ,

   D   i  m  e  n  s   t  e   i  n   M

Referências

Amarante P, organizador. Psiqu iatr ia social e reforma psiquiátr ica . Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção àSaúde. Departamento de ações programáticas estra-

tégicas. Coordenação Nacional de Saúde Mental.Residênci as terapêut icas: o que são, par a que servem .Brasília: Ministério da Saúde; 2004.Baptista LA, Zwarg MD, Moraes R. Reforma Psiquiá-trica e os dispositivos residenciais: afirmações e im-passes. In: Machado LD, Lavrador MC, Barros MEB,organizadores. Texturas da psicologia. Subjeti vidade e política no contemporâneo . São Paulo: Casa do Psicó-logo; 2001. p. 59-67.Amarante P. O homem e a serpente: outras históri as para a loucura e a psiquiat ri a . Rio de Janeiro: Fiocruz; 1996.Daúd Júnior N. Considerações histórico-conceituaissobre a instituição psiquiátrica no Brasil e a desinsti-tucionalização do “doente mental”. In: Boarini ML,organizadora. Desaf i os na atenção á saúde ment al .

Maringá, SP: Eduem; 2000. p 31-64.Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionaliza-ção, uma outra via. In: Rotelli F, Leonardis O, MauriD, organizadores. Desinst i tucional ização . São Paulo:Hucitec; 2001. p. 17-59.Rotelli F. Superando o manicômio: o circuito psiqui-átrico de Trieste. In: Amarante P, organizador. Psi- quiatr ia social e reforma psiqu iátr ica . Rio de Janeiro:Fiocruz; 1994. p. 149-169.Barros RB. Reforma Psiquiátrica Brasileira: resistên-cias e capturas em tempos neoliberais. In: ConselhoFederal de Psicologia. Loucura, ética e política: escri - tos mi li tantes . São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003. p.196-206.Machado LD, Lavrador MC. Loucura e subjetivida-

de. In: Machado LD, Lavrador MC, Barros MEB, or-ganizadores. Texturas da psi cologia. Subjeti vi dade e política no contemporâneo . São Paulo: Casa do Psicó-logo; 2001. p. 45-58.Foucault M. Vigiar e punir . Petrópolis: Vozes; 1984.Pelbart PP.Vida capital : ensaios de biopolít ica. São Paulo:Iluminuras; 2003.Pelbart PP. A vert igem por um fi o: políti cas da subjeti- vidade contemporânea . São Paulo: Iluminuras; 2000.Deleuze G. Conver sações. Rio de Janeiro: Editora 34;1992.

1.

2.

3.

4.

5.

6.

7.

8.

9.

10.11.

12.

13.

Goffman E. Mani cômi os, pr isões e conventos. São Pau-lo: Perspectiva; 1961.Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capital ismo e esqui- zofrenia . Volume 1. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995.

Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capital ismo e esqui- zofrenia . Volume 3. Rio de Janeiro: Editora 34; 1996.Ayres JR. Cuidado e reconstrução das práticas desaúde. In terface (Botucatu)  2004; 14(8):73-92.Baptista LA. Dispositivo Residencial e as Máquinas doMorar. In: Jacó-Vilela AM Cerezzo AC, Rodrigues HBC,organizadores. IV Encontro Cli o-Psyché- H istória e Memória . Volume 1. Juiz de Fora: Clioedel; 2005.Guattari F. Caosmose . São Paulo, Editora 34; 1992.Palombini AL. Acompanhamento terapêut ico na rede públi ca: a clíni ca em movimento . Porto Alegre: EditoraUFRGS; 2004.Certeau M. A i nvenção do cot idi ano. 1. Ar tes de fazer .Petrópolis: Vozes; 2004.Fonseca TMG, Kirst PG. O desejo de mundo: um

olhar sobre a clínica. Psicologia & Sociedade  2004;16(3):29-34.Teixeira RR. As redes de trabalho afetivo e a contri-buição da saúde para a emergência de uma outraconcepção de público. In: Research Conference onRethinking “the Public” in Public Health: Neolibera-lism, Structural Violence, and Epidemics of Inequa-lity in Latin America. San Diego: Center for Iberianand Latin American Studies (CILAS)/ University of California; 2004.Benevides R, Passos E. A humanização como dimen-são pública das políticas de saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(3):561-571.Rolnik S. Subjetividade e História. Revista Rua  [perió-dico na Int ernet] ; 2002. [acessado 2002 ago 29]. 1

[cerca de 6 p.]. Disponível em: http://www.labeurb.unicamp.br/rua1_texto3.htm

Artigo apresentado em 06/07/2006Aprovado em 13/09/2007Versão final apresentada em 28/11/2007

14.

15.

16.

17.

18.

19.20.

21.

22.

23.

24.

25.