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Deus

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Deus

Tradução:Marlene SuanoProfessora do Departamento de História – FFLCH/USPEspecialista em história e arqueologia do Mediterrâneo Antigo

Reza Aslan

DeusUma história humana

Título original:God(A Human History)

Tradução autorizada da primeira edição americana, publicada em 207 por Random House, um selo e divisão de Penguin Random House llc, de Nova York, Estados Unidos

Copyright © 207, Aslan Media, Inc.

Copyright da edição brasileira © 208: Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marquês de S. Vicente 99 ‒ o | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) [email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não autorizada desta publicação, no todoou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.60/98)

Proibida a venda em Portugal

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Preparação: Angela Ramalho ViannaRevisão: Tamara Sender, Eduardo MonteiroCapa: Sérgio Campante

cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Aslan, Reza, 972-A858d  Deus: uma história humana/Reza Aslan; tradução Marlene Suano. – .ed. – Rio

de Janeiro: Zahar, 208.

Tradução de: God: a human historyInclui bibliografia e índiceisbn 978-85-378-765-0

.Deus. i. Suano, Marlene. ii. Título. cdd: 2

8-49043 cdu: 2-4

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária crb-7/6439

Para meus filhos, Cyrus, Jaspar e Asa, que estão embarcando em suas próprias jornadas espirituais.

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Introdução

À nossa imagem

Quando eu era criança, achava que Deus era um homem velho, grande e poderoso que morava no céu – uma versão maior e mais forte de meu pai, mas com poderes mágicos. Eu o imaginava bonito, com longos cabelos grisalhos sobre os ombros largos. Ele se sentava em um trono circundado de nuvens. Quando falava, sua voz ribombava pelos céus, especialmente quando estava bravo. E ele ficava bravo muitas vezes. Mas também era caloroso e amável, misericordioso e gentil. Ria quando estava feliz e cho-rava quando estava triste.

Não tenho certeza de onde veio essa imagem de Deus. Talvez eu a tenha vislumbrado em algum lugar, pintada em vitrais ou impressa num livro. Talvez eu tenha nascido com ela. Estudos demonstraram que as crianças pequenas, independentemente de onde estejam, se são ou não religiosas, têm dificuldade em distinguir os seres humanos e Deus em termos de ação ou agência. Quando solicitadas a imaginar Deus, elas inva-riavelmente descrevem um ser humano com habilidades sobre-humanas.¹

À medida que eu crescia, deixei para trás a maior parte das minhas visões infantis. No entanto, a imagem de Deus permaneceu. Não fui criado numa família particularmente religiosa, mas sempre me senti fascinado pela religião e pela espiritualidade. Minha cabeça estava cheia de teorias incompletas sobre o que era Deus, de onde ele viera e qual sua aparência (curiosamente, ele ainda se parecia com meu pai). Eu não queria simples-mente saber sobre Deus; eu queria experimentar Deus, sentir sua presença na minha vida. No entanto, quando tentei, não pude deixar de imaginar um grande abismo abrindo-se entre nós, com Deus de um lado, eu do outro, e nenhuma maneira de um dos dois atravessá-lo.

8 Deus

Na adolescência, converti-me do tépido islamismo de meus pais ira-nianos ao zeloso cristianismo de meus amigos americanos. E de uma só vez aquele desejo de infância de pensar em Deus como um poderoso ser humano cristalizou-se no culto de Jesus Cristo como, literalmente, “Deus feito carne”. No começo, a experiência foi como coçar um prurido que eu tivera durante toda a vida. Ao longo de anos eu procurara uma maneira de superar o abismo entre mim e Deus. Agora havia uma religião que afirmava não haver abismo. Se eu quisesse saber como era Deus, tudo o que eu tinha a fazer era imaginar o mais perfeito ser humano.

Isso fazia certo sentido. Que melhor maneira de remover a barreira entre seres humanos e Deus que fazer de Deus um ser humano? Como disse o famoso filósofo alemão Ludwig Feuerbach, ao explicar o enorme sucesso da concepção cristã de Deus, “apenas um ser que compreende em si o homem todo pode satisfazer o homem todo”.²

Eu li essa citação de Feuerbach pela primeira vez na faculdade, no momento em que decidira dedicar-me a pesquisar as religiões do mundo. O que Feuerbach parecia dizer é que o apelo quase universal de um Deus que olha, pensa e sente, e age exatamente como nós, está enraizado em nossa profunda necessidade de experimentar o divino como um reflexo de nós mesmos. Essa verdade me atingiu como um estrondo de trovão. Seria por isso que fui atraído pelo cristianismo quando criança? Estaria eu construindo minha imagem de Deus, todo esse tempo, como um espelho refletindo de volta minhas próprias características e emoções?

A possibilidade me deixou amargurado e desiludido. Buscando uma concepção mais ampla de Deus, abandonei o cristianismo e voltei ao islamismo, atraído pela iconoclastia radical da religião: a crença de que Deus não pode ser confinado por qualquer imagem, humana ou não. Contudo, reconheci rapidamente que a recusa do islamismo em repre-sentar Deus na forma humana não se traduz numa recusa de pensar Deus em termos humanos. Tanto quanto qualquer outra pessoa, pro-vavelmente os muçulmanos atribuem a Deus suas próprias virtudes e vícios, seus próprios sentimentos e falhas. Eles têm parcas escolhas no assunto. Poucos de nós têm.

Introdução 9

Acontece que essa compulsão em humanizar o divino está entranhada em nosso cérebro, motivo pelo qual se tornou uma característica central em quase todas as tradições religiosas que o mundo conheceu. O próprio processo pelo qual o conceito de Deus surgiu na evolução humana nos obriga, conscientemente ou não, a moldar Deus à nossa própria imagem. De fato, toda a história da espiritualidade humana pode ser vista como um esforço longo, interconectado, em constante evolução e notavelmente coeso para dar sentido ao divino, atribuindo-lhe nossas emoções e nossas personalidades, nossas características e nossos desejos, fornecendo-lhe nossos pontos fortes e nossas fraquezas, até mesmo nossos próprios cor-pos – em suma, tornando Deus nós mesmos. Quero dizer que, na maioria das vezes, estejamos conscientes disso ou não, e independentemente de sermos crentes ou não, o que a grande maioria de nós pensa quando pensa em Deus é uma versão divina de nós mesmos: um ser humano, mas com poderes sobre-humanos.³

Isso não é para afirmar que Deus não existe ou que o que chamamos de Deus é uma total invenção humana. As duas afirmações podem muito bem ser verdadeiras, mas essa não é a preocupação deste livro. Não tenho interesse em provar a existência ou inexistência de Deus pela simples razão de que não há prova para nenhum dos casos. A fé é uma escolha; quem disser o contrário está fazendo proselitismo. Opta-se – ou não – por acre-ditar que existe algo além do domínio material – algo real, algo cognoscível. Quem, como eu, optar por crer, então deverá se fazer outra pergunta: desejo experimentar isso? Desejo comungar com isso? Para conhecê-lo? Se assim for, talvez ajude ter uma linguagem para expressar o que é funda-mentalmente uma experiência inexprimível.

É aí que entra a religião. Além dos mitos e rituais, dos templos e cate-drais, dos faça e não faça que por milênios separaram a humanidade em campos de crença diferentes e muitas vezes concorrentes, a religião é pouco mais que uma “linguagem” composta de símbolos e metáforas que permi-tem que os fiéis comuniquem, uns aos outros e a si mesmos, a experiência indizível da fé. Acontece apenas que, ao longo da história das religiões, há um símbolo que se destacou como uma grande metáfora universal e su-

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prema para Deus, da qual praticamente derivaram todos os outros símbolos e metáforas em quase todas as religiões do mundo: nós, o ser humano.

Esse conceito, que eu chamo de “Deus humanizado”, estava embutido em nossa consciência no momento em que a ideia de Deus nos ocorreu pela primeira vez. Isso levou à nossa primeira teoria sobre a natureza do universo e ao nosso papel nele; forneceu nossas primeiras representações físicas do mundo para além do nosso. A crença em deuses humanizados nos guiou como caçadores-coletores e, dezenas de milhares de anos depois, nos levou a trocar nossas lanças por arados e a começar a plantar. Nossos primeiros templos foram construídos por pessoas que pensavam nos deu-ses como seres sobre-humanos – como foram nossas primeiras religiões. Mesopotâmicos, egípcios, gregos, romanos, indianos, persas, hebreus, ára-bes conceberam seus sistemas teístas em termos humanos e com imagens humanas. O mesmo vale para as tradições não teístas, como o jainismo ou o budismo, que concebem os espíritos, e os devas, que povoam suas teolo-gias como seres sobre-humanos que são, como seus homólogos humanos, vinculados pelas leis do karma.⁴

Mesmo aqueles judeus, cristãos e muçulmanos contemporâneos que se esforçam tanto para professar crenças teologicamente “corretas” sobre um único Deus singular, incorpóreo ou infalível, onipresente ou onisciente, parecem compelidos a imaginar Deus em forma humana e a falar de Deus em termos humanos. Estudos realizados por uma série de psicólogos e estudiosos da cognição mostraram que os crentes mais devotos, quando for-çados a comunicar seus pensamentos sobre Deus, tratam-no em peso como se estivessem falando sobre alguém que poderiam ter encontrado na rua.⁵

Pense no modo como os crentes com tanta frequência descrevem Deus como bom ou amoroso, cruel ou ciumento, indulgente ou gentil. Esses são, claro, atributos humanos. No entanto, essa insistência em usar as emoções humanas para descrever algo que é – seja lá o que for – absolutamente não humano só confirma nossa necessidade existencial de projetar nossa humanidade em Deus, conferir a ele não apenas tudo o que é digno da natureza humana – nossa capacidade de amor ilimitado, nossa empatia e ânsia de mostrar compaixão, nossa sede de justiça –, mas também tudo

Introdução 11

de vil que nela há: nossa agressividade e ganância, nosso preconceito e fanatismo, nossa propensão para atos extremos de violência.

Há, como se pode imaginar, certas consequências decorrentes desse impulso natural de humanizar o divino. Pois quando atribuímos a Deus qualidades humanas, essencialmente divinizamos essas qualidades, de modo que tudo o que é bom ou ruim em nossas religiões é apenas um reflexo de tudo o que é bom ou ruim em relação a nós mesmos. Nossos desejos se tornam os desejos de Deus, mas sem fronteiras. Nossas ações se tornam ações de Deus, mas sem consequências. Criamos um ser sobre- humano dotado de traços humanos, mas sem limitações humanas. Mol-damos nossas religiões, culturas, sociedades e nossos governos de acordo com nossas próprias necessidades humanas, ao mesmo tempo que nos convencemos de que essas necessidades são de Deus.

Isso, mais que qualquer outra coisa, explica por que, em toda a histó-ria humana, a religião tem sido uma força tanto para o bem sem limites quanto para o mal indizível; por que a mesma fé no mesmo Deus inculca o amor e a compaixão em um crente, o ódio e a violência em outro; por que duas pessoas podem abordar a mesma escritura, ao mesmo tempo, e interpretá-la de duas maneiras radicalmente opostas. Na verdade, a maioria dos conflitos religiosos que continuam a turvar o nosso mundo surge do nosso desejo inato e inconsciente de nos tornarmos a apoteose do que é Deus e do que Deus quer, a quem Deus ama e a quem Deus odeia.

Demorou muitos anos para que eu me desse conta de que a concepção de Deus que eu estava procurando era ampla demais para ser definida por qualquer tradição religiosa, que a única maneira de experimentar verda-deiramente o divino era desumanizar Deus na minha consciência espiritual.

Assim, este livro é mais do que apenas uma história de como nós hu-manizamos Deus. É também um apelo para pararmos de colocar nossas compulsões humanas sobre o divino e desenvolvermos uma visão mais panteísta de Deus. Pelo menos é um lembrete de que, quer você acredite em um deus ou muitos deuses, ou em deus algum, somos nós que forma-mos Deus à nossa imagem, e não o contrário. E nessa verdade está a chave para uma forma de espiritualidade mais madura, mais pacífica e primeva.

parte i

A alma encarnada

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. Adão e Eva no Éden

No início era o vazio. Trevas. Caos. Um vasto mar de vazio sem forma ou substância. Sem céu, sem terra, sem separação das águas. Nenhum deus se manifestou nem nomes foram pronunciados. Nenhum destino foi decretado até… um lampejo, uma luz e uma súbita expansão do espaço e do tempo, de energia e matéria, de átomos e moléculas – os blocos de construção de 00 bilhões de galáxias, cada uma com uma centena de bilhões de estrelas.

Perto de uma dessas estrelas, uma partícula de poeira, de tamanho micrométrico, colide com outra e, através de centenas de milhões de anos de crescimento, começa a girar, reunindo massa, formando uma crosta, criando oceanos, terra e, inesperadamente, vida: simples, depois complexa; deslizando, depois andando.

Milênios se vão enquanto as geleiras avançam e recuam sobre a su-perfície da Terra. As calotas de gelo se derretem e os mares se elevam. Os glaciares continentais amolecem e deslizam sobre as baixas colinas e vales da Europa e da Ásia, transformando vastas florestas em planícies sem árvores. E nesse refúgio comparecem os incunábulos de nossa espécie – os

“históricos” Adão e Eva, se você preferir: Homo sapiens, “o homem sagaz”.Altos, eretos e fortes, com narizes amplos e frontes sem inclinação,

Adão e Eva começaram sua evolução entre 300000 e 200000 a.C., como o ramo final na árvore genética humana. Seus ancestrais arrastaram-se para fora da África há aproximadamente 00 mil anos, num período em que o Saara não era o deserto de hoje, mas uma terra de lagos generosos e vegetação exuberante. Eles atravessaram a península Arábica em ondas, avançando para o norte através das estepes da Ásia Central, a leste até o

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subcontinente indiano, atravessando o mar até a Austrália e para o oeste sobre os Bálcãs, até chegarem ao sul da Espanha e à borda da Europa.

Ao longo do caminho, eles encontraram espécies anteriores de seres humanos migratórios: o ereto Homo erectus, que fizera jornada semelhante para a Europa centenas de milhares de anos antes; o robusto Homo denisova, que perambulava pelas planícies da Sibéria e pelo leste da Ásia; o Homo neanderthalensis de peitoral largo – o neandertal –, a quem o Homo sapiens aniquilou ou absorveu (ninguém sabe com certeza).¹

Adão é um caçador. Então, quando você o imagina, imagine uma lança a seu lado, uma pele de mamute aberta e enrolada sobre seus ombros. Sua transformação de presa em predador deixou uma impressão genética, um instinto para a caça. Ele pode rastrear um animal ao longo das estações, esperando pacientemente o momento certo para atacar numa explosão de violência. Quando ele mata, não rasga a carne e a devora no local. Ele a leva de volta ao seu abrigo para compartilhar com sua comunidade. Em grupo, sob um dossel largo feito de pele animal e emoldurado por ossos de mamute, ele cozinha sua comida em fogos flanqueados por pedras e armazena os restos em poços profundos cavados no solo congelado.

Eva também é caçadora, embora sua arma preferida não seja um dardo, mas uma rede, que ela passou meses, talvez anos, tecendo com delicadas fibras de plantas. Agachada no chão da floresta na luz da aurora, ela cui-dadosamente coloca suas armadilhas ao longo da superfície coberta de musgo e aguarda com paciência que um coelho ou raposa desafortunados caiam nelas. Enquanto isso, seus filhos exploram os bosques em busca de plantas comestíveis, desenterrando fungos e raízes, pegando répteis e grandes insetos para trazer de volta ao acampamento. Quando se trata de alimentar a comunidade, todos têm um papel.²

As ferramentas que Adão e Eva carregam são feitas de sílex e pedra, mas esses não são simples recursos recolhidos do chão e facilmente descar-tados. Eles fazem parte de um repertório permanente: duráveis e intrinca-dos; feitos, não encontrados. Adão e Eva levam suas ferramentas com eles, de abrigo em abrigo, e as comerciam ocasionalmente para obter melhores ferramentas, ou por ornamentos feitos de marfim ou chifre, pingentes fei-

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tos de ossos, dentes e conchas de moluscos. Tais coisas são preciosas para eles; elas os individuam do resto de sua comunidade. Quando um deles morre e é enterrado no chão, esses objetos também serão enterrados, para que o falecido possa continuar a apreciá-los na vida por vir.³

Haverá uma vida futura, e disso Adão e Eva estão certos. Por que se incomodar com o enterro? Eles não têm nenhuma razão prática para en-terrar os mortos. É muito mais fácil expor os corpos, deixá-los apodrecer ao relento ou serem descarnados pelos pássaros. No entanto, eles insistem em enterrar os corpos de seus amigos e familiares para protegê-los dos estragos da natureza, tratando-os com certo respeito. Por exemplo, deli-beradamente depositarão o cadáver, estendendo-o ou dobrando-o na posi-ção fetal, orientando-o para o leste para encontrar o sol nascente. Podem escalpelar ou descascar o crânio, reenterrá-lo numa cova secundária, ou removê-lo completamente para exibição, com olhos artificiais para simular um olhar. Também podem abrir o crânio, retirar o cérebro e devorá-lo.

O corpo em si será colorido com pó de ocre vermelho-sangue (a cor símbolo da vida) antes de ser colocado em uma cama de flores e orna-mentado com colares, conchas, ossos de animais ou ferramentas – objetos que eram queridos aos mortos; objetos de que ele ou ela possam precisar na próxima vida. Eles acenderão fogueiras ao redor do corpo e lhe farão oferendas. Até colocarão pedras no montículo para marcar o túmulo a fim de encontrá-lo novamente e revisitá-lo nos anos seguintes.⁴

A suposição é de que Adão e Eva façam essas coisas porque acreditam que os mortos não estão realmente mortos, mas apenas em outro domí-nio, que os vivos podem acessar através de sonhos e visões. O corpo pode apodrecer, mas algo do indivíduo persiste, algo distinto e separado do corpo – uma alma, por falta de palavra melhor.⁵

De onde eles tiraram essa ideia, não sabemos, mas ela é essencial para sua consciência de si mesmos. Adão e Eva parecem saber intuitivamente que são almas encarnadas. É uma crença tão primitiva e inata, tão profun-damente enraizada e generalizada, que deve ser considerada nada menos que a marca característica da experiência humana. Na verdade, Adão e Eva compartilham essa crença com seus antepassados, o neandertal e o

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Homo erectus. Eles também parecem ter praticado várias formas de enterro ritual, o que significa que podem ter concebido a alma separada do corpo.⁶

Se a alma é separada do corpo, ela pode sobreviver ao corpo. E se a alma sobrevive ao corpo, então o mundo visível deve estar cheio das almas de todos os que já viveram e morreram. Para Adão e Eva, essas almas são perceptíveis; elas existem em inúmeras formas. Desencarnadas, tornam-se espíritos com o poder de morar em todas as coisas: os pássaros, as árvores, as montanhas, o sol e a lua. Todos esses pulsam com vida; eles são animados.

Chegará um dia em que esses espíritos serão totalmente humaniza-dos, receberão nomes e mitologias, transformados em seres sobrenaturais, adorados, recebendo orações como se fossem deuses.

Mas ainda não chegamos lá.Ainda assim, não é muito difícil para Adão e Eva concluírem que suas

almas – o que os faz serem eles próprios – não são tão diferentes em forma ou substância das almas dos que os rodeiam, das almas daqueles antes deles, dos espíritos das árvores e dos espíritos nas montanhas. O que quer que sejam, seja qual for a sua essência, eles a compartilham com toda a criação. São parte de um todo.

Essa crença é chamada animismo – a atribuição de uma essência es-piritual, ou “alma”, a todos os objetos, humanos ou não, e muito prova-velmente é a primeira expressão humana de qualquer coisa que possa se chamar religião.⁷

Nossos antepassados primitivos, Adão e Eva, são primitivos apenas em relação às suas ferramentas e tecnologia. O cérebro deles é tão grande e desenvolvido quanto o nosso. Eles são capazes de pensamentos abstratos e possuem a linguagem para compartilhar esses pensamentos uns com os outros. Eles falam como nós. Pensam como nós. Imaginam, criam, co-municam e argumentam como nós. Simplesmente são nós: seres humanos totais e completos.

Como seres humanos totais e completos, eles podem ser críticos e ex-perimentalistas. Podem usar o raciocínio analógico para postular teorias

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complexas sobre a natureza da realidade. Podem formar crenças coerentes baseadas nessas teorias. E eles podem preservar suas crenças, passando-as adiante, de geração em geração.

Na verdade, em quase todos os lugares por onde o Homo sapiens pas-sou, ele deixou uma marca dessas crenças para descobrirmos. Algumas delas têm a forma de monumentos ao ar livre, a maioria destruída ao longo do tempo. Outras estão inumadas em túmulos que, mesmo dezenas de milhares de anos depois, apresentam sinais inequívocos de atividade ritual. Mas em nenhum lugar entramos em contato tão próximo com nossos antepassados antigos – em nenhum lugar eles se apresentam mais humanos – do que dentro das cavernas espetacularmente pintadas que se espalham pela paisagem da Europa e da Ásia como pegadas que marcam o caminho da migração.⁸

Tanto quanto podemos dizer, é fundamental para o sistema de crenças de Adão e Eva a noção de que o cosmo é organizado em camadas. A Terra é uma camada intermediária entre a cúpula do céu e o receptáculo raso do submundo. Os reinos superiores só podem ser alcançados em sonhos e estados alterados, e geralmente apenas por um feiticeiro, que atua como intermediário entre os mundos espiritual e material. Mas os reinos infe-riores podem ser acessados por qualquer pessoa, simplesmente entrando profundamente na terra – rastejando, às vezes por um quilômetro ou mais, através de cavernas e grutas, para pintar, gravar e esculpir suas crenças diretamente sobre a parede da rocha, que atua como uma “membrana” conectando seu mundo ao mundo do além.⁹

Essas cavernas pintadas podem ser encontradas em lugares tão distan-tes como a Austrália e as ilhas da Indonésia. Aparecem em todo o Cáucaso

– da caverna de Kapova, nos montes Urais, no sul da Rússia, até a caverna de Cuciulat, no oeste da Romênia, e ao longo do vale superior do rio Lena, na Sibéria. Algumas das amostras mais antigas e surpreendentemente bem-preservadas da arte rupestre pré-histórica podem ser encontradas nas regiões montanhosas da Europa Ocidental. No norte da Espanha, um grande disco vermelho pintado em uma parede de caverna em El Castillo pode ser datado até cerca de 4 mil anos atrás, por volta da época em que

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o Homo sapiens chegou à região. O sul da França é perfurado de cavernas semelhantes – de Font de Gaume e Les Combarelles no vale do Vézère, Chauvet, Lascaux, às cavernas de Volp no sopé dos Pireneus.10

As cavernas de Volp, em particular, fornecem um vislumbre exclusivo sobre o propósito e a função desses santuários subterrâneos. As cavernas consistem em três grutas interligadas esculpidas em pedra calcária pela persistência do rio Volp: Enlène a leste, Le Tuc d’Audoubert a oeste e, no centro, Les Trois-Frères, que recebeu o nome dos três irmãos franceses que acidentalmente descobriram as cavernas em 92.

As três cavernas foram estudadas pela primeira vez pelo arqueólogo e sacerdote francês Henri Breuil, conhecido como abade Breuil, que meti-culosamente copiou à mão as imagens que encontrou dentro delas. Suas representações abriram a janela para um passado obscuro, permitindo- nos reconstruir uma interpretação plausível da surpreendente jornada es-piritual que nossos antepassados pré-históricos poderiam ter feito ali há dezenas de milhares de anos.¹¹

Aquela jornada começa a cerca de 50 metros da entrada da primeira caverna – Enlène – no complexo de Volp, em uma pequena antecâmara agora chamada Sala dos Mortos. É importante notar que Adão e Eva não vivem nessas cavernas; eles não são “homens das cavernas”. A maioria das cavernas pintadas é difícil de alcançar e imprópria para habitação hu-mana. Entrar nelas é como passar pelo espaço liminar, como cruzar um limiar entre os mundos visível e suprassensível. Algumas cavernas mos-tram evidências de atividade prolongada, outras contêm uma espécie de antecâmara onde evidências arqueológicas sugerem que os adoradores podem ter se reunido ali para comer e dormir. Mas estes não são lugares de habitação; são espaços sagrados, o que explica por que as imagens en-contradas dentro deles frequentemente são colocadas a grandes distâncias da entrada da caverna, exigindo uma jornada perigosa através de passagens labirínticas para vê-las.

Nas cavernas de Volp, a Sala dos Mortos serve como meio de prepara-ção, um lugar onde Adão e Eva podem se preparar para a experiência que virá. Aqui eles estão envolvidos no cheiro sufocante de ossos queimados.

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Há fogos afundados em todo o piso da câmara, ardendo com pilhas de ossos de animais. Osso, obviamente, é um combustível forte, mas não é por isso que é queimado aqui. Não há escassez de madeira no sopé dos Pireneus; madeira é muito mais abundante que osso, e muito mais fácil de se obter.

No entanto, acredita-se que os ossos de animais possuam um poder mediador – eles estão dentro da carne, mas não são carne. É por isso que são frequentemente coletados, polidos e usados como ornamentos. É por isso que são esculpidos em talismãs intrincados, incisos com imagens de bisões, renas ou peixes – animais que raramente correspondem a esses ossos. Às vezes os ossos são inseridos diretamente nas fendas e fissuras das paredes das cavernas, talvez como forma de oração, um meio de transmitir mensagens para o reino espiritual.

Queimar ossos de animais nesses fogos provavelmente é um meio para absorver a essência do animal. O aroma irresistível do osso e da medula ardente em espaço tão confinado atua como uma espécie de incenso des-tinado a consagrar os que ali se encontram reunidos. Imagine Adão e Eva sentados nessa antecâmara por horas a fio, envoltos pela fumaça, balan-çando com seus familiares ao ritmo do batuque de tambores de couro de animal, o delicado eco de flautas esculpidas em ossos de abutre e o tilintar de xilofones construídos com lâminas polidas de sílex – todas descobertas dentro e ao redor de cavernas como essas –, até alcançarem o estado san-tificado necessário para continuar em sua jornada.12

Adão e Eva não vagueiam sem rumo através dessas cavernas. Cada câmara, cada nicho, cada fissura, corredor e recesso tem um propósito específico – tudo deliberadamente projetado para induzir uma experiência de êxtase. Esse é um assunto cuidadosamente controlado, de modo que passar pelos recantos e passagens, absorvendo as imagens espalhadas nas paredes, nos pisos, nos tetos, propicia uma resposta emocional particular, um pouco semelhante a seguir as Estações da Cruz numa igreja medieval.

Primeiramente, eles devem ficar de quatro e rastejar por uma pas-sagem de sessenta metros que liga Enlène a Les Trois-Frères, a segunda caverna no complexo. Agora eles entram num domínio totalmente novo, marcado por algo que tão obviamente falta na primeira caverna que não

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pode ser coincidência. Pois é nessa segunda caverna que Adão e Eva encontram primeiro a arte rupestre que tão indelevelmente define sua vida espiritual.

A passagem principal em Les Trois-Frères se bifurca em dois caminhos estreitos. O caminho para a esquerda leva a uma longa câmara marcada por uma linha após outra de pontos pretos e vermelhos de vários tamanhos. Es-ses pontos representam a forma mais antiga de pintura rupestre; em algumas cavernas foram datados em mais de 40 mil anos. Ninguém realmente sabe o que os pontos significam. Podem ser uma gravação de visões espirituais. É possível que representem símbolos masculinos e femininos. Bem certo, no entanto, é que os pontos não estão espalhados de modo aleatório pelas pa-redes. Pelo contrário, com frequência são pintados num padrão claramente perceptível, repetido de câmara em câmara. Isso sugere que os pontos po-dem ser uma forma de comunicação ou instrução, um tipo de código que transmite algumas informações vitais para os suplicantes à medida que eles continuam a se aprofundar nas entranhas da terra.13

O caminho à direita da passagem principal em Les Trois-Frères avança em direção a outro quarto pequeno e escuro popularmente chamado de Galeria das Mãos. As paredes aqui são marcadas não com pontos, mas com impressões de mão – dezenas delas. Esta é, de longe, a forma mais onipresente e instantaneamente reconhecível de arte rupestre existente. As impressões de mão mais antigas remontam a cerca de 39 mil anos e podem ser encontradas não só na Europa e na Ásia, mas também na Aus-trália, em Bornéu, no México, no Peru, na Argentina, no deserto do Saara e até nos Estados Unidos. As impressões são feitas mergulhando-se a mão no pigmento úmido e pressionando-a contra a parede da caverna, ou co-locando a mão diretamente sobre a parede e pulverizando ocre em torno dela, com a ajuda de um osso vazado, para criar uma sombra negativa. O ocre em si tem uma função sagrada; a tinta vermelho-sangue serve como uma ponte entre os mundos material e espiritual.14

O notável nessas impressões de mão é que elas quase nunca são dei-xadas em áreas suaves e de fácil acesso, como seria de esperar. Em vez disso, se reúnem em torno de certas características topográficas: em cima

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ou perto de fissuras e rachaduras, dentro de depressões côncavas ou entre fluxos de estalagmites, em tetos altos ou em espaços de difícil acesso. Al-gumas das impressões são moldadas de tal forma que os dedos parecem estar agarrando a rocha. Outras têm os dedos dobrados, ou faltam dedos. Várias das impressões são claramente feitas pela mesma mão, mas faltam dedos diferentes de um estêncil para o próximo, sugerindo que, como os pontos pretos e vermelhos, as impressões de mãos também podem ser uma forma antiga de comunicação simbólica – uma espécie primitiva de “lin-guagem de sinais”. De fato, as semelhanças estranhas entre impressões de mão encontradas em lados opostos do globo podem indicar que essa prá-tica compartilha uma origem comum, que antecede a migração do Homo sapiens para fora da África há quase 00 mil anos. Talvez os seres humanos que fizeram as impressões de mão na Indonésia e aqueles que as criaram na Europa Ocidental estivessem falando a mesma linguagem simbólica.

Impressões de mãos, negativas e positivas, encontradas em Cueva de las Manos, Santa Cruz, Argentina (c.5000 a 000 a.C.).

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Curiosamente, os estudiosos agora acreditam que a maioria das im-pressões de mãos encontradas nas cavernas da Europa e da Ásia pertence a mulheres. Isso desmente a noção de que essas cavernas e os rituais nelas envolvidos eram principalmente um assunto masculino. Quem sabe o acesso a determinadas câmaras ou atividades fosse restrito para aqueles envolvidos em algum rito ou iniciação. Mas os santuários propriamente ditos parecem ter recebido todos os membros da comunidade: homens ou mulheres, jovens e anciãos.15

Com a luz fraca de uma chama trêmula, Adão e Eva seguem cuida-dosamente o caminho por meio do toque, sentindo cada irregularidade nas paredes – suas ondulações, seus pontos quentes e frios –, procurando o lugar certo para deixar a impressão de suas próprias mãos. Este é um processo longo e íntimo, que requer uma grande familiaridade com a su-perfície da rocha. Só depois de deixar suas marcas é que eles estão prontos para continuar sua jornada ao coração da caverna: um pequeno e apertado cômodo escondido num canto perigosamente inclinado e quase inacessível do complexo que Breuil chamou de Santuário.

Aqui, as paredes praticamente pulsam com imagens de animais de cores vivas, desenhadas e incisas na rocha. Há centenas deles, sobrepostos uns aos outros, imobilizados em um frenesi de atividade: bisões, ursos, cavalos, renas, mamutes, veados, íbices e algumas criaturas misteriosas e não identificáveis – algumas fantásticas demais para serem reais, outras que enevoam o limite entre humanos e animais.

Não é exatamente correto chamar esses desenhos de “imagens”. Eles são, como os pontos e as impressões de mão, símbolos que refletem a crença animista de nossos antigos ancestrais, de que todos os seres vivos estão in-terligados, que todos compartilham o mesmo espírito universal. É por essa razão que raramente se vê o ambiente dos animais retratado nessas cavernas. Muitas vezes os animais são desenhados num borrão cinético sugerindo mo-vimento. Mas não há grama, árvores, arbustos e córregos para que possam seguir em frente; não existe nenhum “terreno”. Os animais parecem flutuar no espaço, de cabeça para baixo, em ângulos estranhos e impossíveis. Eles são alucinantes, desprovidos de contexto, irreais.16

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A suposição comum é que essas pinturas rupestres teriam a função de uma espécie de “caça mágica”, um encanto para ajudar o caçador a abater suas presas. No entanto, os animais retratados dentro das cavernas não são, em sua maior parte, representativos dos animais que vagam fora das cavernas. As escavações arqueológicas mostraram que há pouca corres-pondência entre as espécies exibidas nas paredes e aquelas que constituíam a dieta dos artistas. Raramente os animais são vistos como caçados, cap-turados, sofrendo ou com dor. Poucas vezes há sinal de violência nessas cavernas. Alguns dos animais estão entrecruzados com linhas finas, ge-ralmente interpretadas como lanças ou flechas que perfuram seus flancos. Contudo, um olhar mais atento às imagens sugere que essas linhas não estão entrando no corpo do animal; elas estão emanando dele. As linhas pa-recem representar a aura ou espírito do animal – sua alma. Como observou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, os seres humanos primitivos escolheram os animais que gravaram sobre a rocha não porque fossem

“bons de comer”, mas porque eram “bons de pensar”.17Adão e Eva entram nessas cavernas não para pintar o mundo que co-

nhecem. Qual seria o objetivo? Eles estão aqui para imaginar o mundo que existe além daquele deles próprios. Na verdade, eles não desenham propriamente imagens de bisões e ursos na rocha, mas libertam dela tais imagens. De pé na luz fraca de uma passagem estreita, examinando a pa-rede da caverna, acariciando-a com as mãos, esperam que a imagem seja projetada de volta para eles. Uma curva na rocha torna-se uma coxa do antílope. Uma fissura ou uma rachadura servem como ponto de partida para um chifre de rena. Às vezes, é preciso somente uma pequena adição

– uma pincelada de tinta aqui, um sulco profundo acolá – para transformar o formato natural da rocha num mamute ou íbex. Seja qual for o assunto, sua tarefa não é desenhar a imagem, mas concluí-la.

Os desenhos muitas vezes estão escondidos entre pilares ou coloca-dos em uma posição que permite que eles sejam vistos apenas a partir de certos ângulos e somente por um punhado de pessoas ao mesmo tempo, indicando que a caverna – e não apenas as imagens projetadas sobre ela, mas a caverna em si mesma – era destinada a fazer parte da experiência

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espiritual. A caverna se torna um mitograma; ela deve ser lida, da mesma maneira como se lê a escrita.18

Se as cavernas de Volp são uma forma de escritura, então Adão e Eva estão prestes a alcançar seu ponto principal, o momento em que o mis-tério de tudo o que eles experimentaram até agora será revelado em um clímax espetacular.

Na extremidade final do Santuário há um túnel tão estreito que por ele pode passar apenas uma ou duas pessoas de cada vez. Para entrar, elas devem avançar andando sobre as mãos e os joelhos, quando o túnel se curva para cima em uma borda estreita a poucos metros do chão. Uma vez no topo, elas podem levantar e caminhar ao longo da borda arrastando os pés, as costas contra a parede, agarrando-se à rocha para não cair. Depois de alguns metros, a borda fica mais larga, permitindo que as pessoas virem o corpo e finalmente encarem a parede. Só então, ao levantar os olhos para o teto, podem ver a imagem que coroa o complexo – uma imagem tão impressionante, tão formidável, que praticamente desafia a descrição.

É um homem – isso é certo. Mas é algo mais. Tem as pernas e os pés de ser humano, mas orelhas de veado e olhos de coruja. Uma barba longa e grosseira cai do queixo até o peito. Dois chifres lindamente lavrados se projetam de sua cabeça. Suas mãos se assemelham às patas de um urso. O tronco musculoso e as coxas pertencem a um antílope ou a uma gazela. Saindo por entre as pernas traseiras, um grande pênis, semiereto, se curva para cima, quase tocando o rabo de cavalo eriçado que sobe de suas náde-gas. A figura é desenhada no que parece um tipo de dança; o corpo está inclinado para a esquerda. Mas ele está de frente para o espectador, os olhos de coruja delineados em preto e arregalados, as pupilas pequenas e brancas, centradas em foco perpétuo.

A figura é única nessas cavernas na medida em que é tanto pintada quanto incisa; ela foi repetidamente modificada, redesenhada e repintada, talvez por milhares de anos. Há traços fracos de cor no nariz e na testa. Em alguns lugares os detalhes são primorosos. É possível ver a patela na perna esquerda. Em outros, são descuidados. As patas dianteiras, em particular, mostram um traço apressado e inacabado. Toda a figura tem cerca de 2,5

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metros de altura, muito maior que qualquer outra imagem na sala. Seja o que for, a imagem domina a câmara, fl utuando acima da escuridão.

Quando Henri Breuil viu a fi gura pela primeira vez, há um século, ele fi cou estupefato. Claramente era uma imagem de culto destinada à venera-ção, talvez até à adoração. Uma fi gura humanoide única e dominante, colo-cada em separado como esta, é inaudita em tais cavernas. Sua localização na câmara, elevada acima do nível dos olhos, faz parecer que preside o emara-nhado de animais coletados no santuário. Em primeiro lugar, Breuil assumiu que a fi gura era um xamã vestido com a roupagem de algum tipo de animal híbrido. Ele a batizou de “Feiticeiro”, e o nome se manteve.19

O Feiticeiro (interpretação de um desenho de Henri Breuil).Les Trois-Frères, Montesquieu-Avantes, França (c.8000 a 6000 a.C.).

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A interpretação inicial que Breuil faz da figura é compreensível. Nas co-munidades antigas, pensava-se que os xamãs tinham um pé neste mundo e um no próximo. Eles possuíam a capacidade de entrar em estados alterados (muitas vezes com a ajuda de alucinógenos), podendo deixar seus corpos e viajar para o mundo espiritual a fim de trazer de volta as mensagens do além, geralmente com a ajuda de um guia animal.20

Essa conexão com os animais foi o motivo de Breuil julgar que o Feiti-ceiro humano-animal era um xamã, talvez pego no meio da transformação, largando seu corpo a fim de viajar para o outro mundo. Pelo menos setenta outras figuras híbridas humano-animal foram descobertas em cavernas em toda a Europa e Ásia, e considerou-se também que a maioria delas representava xamãs. Na caverna de Chauvet na França, um meio homem/meio bisão está esboçado em uma pedra em forma de lágrima pendurada do teto; seu corpo se dobra sobre a imagem inconfundível de uma vagina coberta de espessos pelos púbicos negros desenhados ao longo do ápice da rocha. Nas paredes de Lascaux há a imagem de um homem com cabeça de cavalo e outro com cabeça de pássaro deitado diante de um touro que o ataca. Não muito longe de onde o Feiticeiro aparece nas cavernas de Volp está a figura muito menor de um bisão com braços e pernas humanos tocando o que parece uma flauta presa às narinas.21

No entanto, essas imagens híbridas não representam xamãs, assim como as imagens de animais não representam animais de verdade. Como os pontos e as impressões de mãos e praticamente todo o resto nessas ca-vernas, as figuras híbridas são símbolos destinados a representar “o outro mundo” – o mundo além do domínio material.

Até Breuil reconheceu que havia algo único no Feiticeiro. Afinal, não era um mero híbrido humano-animal, mas uma colagem de espécies uni-das para criar um ser único, ativo e animado, diferente de qualquer coisa descoberta em qualquer caverna pintada. E assim, depois de alguma con-sideração, ele mudou de ideia sobre o que descobriu, concluindo que essa estranha criatura hipnagógica que olhava para ele do alto não era de fato um xamã. Ela era, como escreveu em seu caderno, a primeira imagem até então encontrada de Deus.²²