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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
ULISSES ROCHA LOUREIRO DA SILVA
DEZ ESTUDOS PARA VIOLÃO, de Ulisses Rocha:
Uma análise do processo composicional da obra
CAMPINAS
2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
ULISSES ROCHA LOUREIRO DA SILVA
DEZ ESTUDOS PARA VIOLÃO, de Ulisses Rocha:
uma análise do processo composicional da obra
Tese apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Doutor em Música:
Área de concentração: Processos Criativos,
sob a orientação do Prof. Dr. Claudiney
Rodrigues Carrasco e coorientação do Prof.
Dr. Paulo José de Siqueira Tiné
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA TESE DEFENDIDA POR ULISSES ROCHA
LOUREIRO DA SILVA E ORIENTADA PELO PROF.
DR. CLAUDINEY RODRIGUES CARRASCO.
_______________________________________
CAMPINAS
2015
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RESUMO
Os 10 Estudos para violão escritos por mim em 1997 e publicados em 2000, foram o
resultado de uma vivência prática, que exigia revisões constantes dos princípios técnicos
utilizados em minhas experiências musicais, que ocorriam sempre na tentativa do equilíbrio entre
a estética do violão clássico, do violão popular brasileiro e do jazz.
Esta dissertação é uma análise do trabalho sobre tais estudos, desde o fator desencadeante
do processo, até os elementos utilizados no âmbito técnico e musical, buscando relatar de forma
detalhada as questões envolvidas na elaboração de uma obra artística de aplicação didática, além
de uma avaliação dos objetivos alcançados em cada um dos casos, propondo uma reflexão em
amplo espectro sobre a questão da composição de estudos para o instrumento.
ABSTRACT
10 Studies for guitar written by myself in 1997 and published in 2000, are the result of
practical experiences, requiring regular review of the fundamentals of technique used in my
musical activity, which always occurred in an attempt to reach the balance between the aesthetics
of classical guitar, the brazilian guitar and jazz.
This thesis is an analysis of the work on such studies, considering the triggering factor of
the process and the data used in the technical and musical contexts, seeking to report in detail the
issues involved during the development of an artistic work applied to didactics, in addition to a
review of the goals achieved in each case by proposing a broad spectrum reflection on the
question of composing studies for the instrument.
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ix
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................................................29
1. Estudo no 1.................................................................................................................................39
1.1. Apresentação
1.2. Objeto técnico
1.3. Plataforma musical
1.4. Aplicabilidade
1.5. Exequibilidade
2. Estudo no 2.................................................................................................................................57
2.1. Apresentação
2.2. Objeto técnico
2.3. Plataforma musical
2.4. Aplicabilidade
2.5. Exequibilidade
3. Estudo no 3.................................................................................................................................65
3.1. Apresentação
3.2. Objeto técnico
3.3. Plataforma musical
3.4. Aplicabilidade
3.5. Exequibilidade
4. Estudo no 4.................................................................................................................................75
4.1. Apresentação
4.2. Objeto técnico
4.3. Plataforma musical
4.4. Aplicabilidade
4.5. Exequibilidade
x
5. Estudo no 5.................................................................................................................................93
5.1. Apresentação
5.2. Objeto técnico
5.3. Plataforma musical
5.4. Aplicabilidade
5.5. Exequibilidade
6. Estudo no 6...............................................................................................................................109
6.1. Apresentação
6.2. Objeto técnico
6.3. Plataforma musical
6.4. Aplicabilidade
6.5. Exequibilidade
7. Estudo no 7...............................................................................................................................125
7.1. Apresentação
7.2. Objeto técnico
7.3. Plataforma musical
7.4. Aplicabilidade
7.5. Exequibilidade
8. Estudo no 8...............................................................................................................................137
8.1. Apresentação
8.2. Objeto técnico
8.3. Plataforma musical
8.4. Aplicabilidade
8.5. Exequibilidade
9. Estudo no 9...............................................................................................................................155
9.1. Apresentação
9.2. Objeto técnico
9.3. Plataforma musical
9.4. Aplicabilidade
xi
9.5. Exequibilidade
10. Estudo no 10...........................................................................................................................173
10.1. Apresentação
10.2. Objeto técnico
10.3. Plataforma musical
10.4. Aplicabilidade
10.5. Exequibilidade
Conclusão.....................................................................................................................................185
Referências Bibliográficas...........................................................................................................187
Anexos.........................................................................................................................................189
xii
xiii
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu falecido pai,
Remigio Loureiro da Silva, minha maior
referência de valores e conduta, que me ensinou
que tudo é possível para quem acredita em si
próprio e que, acima de tudo, foi meu melhor
amigo.
xiv
xv
AGRADECIMENTOS
Aos meus filhos, Livia, Vitor e Caio, por serem minha constante força motriz.
À minha esposa, Eleuse, pelo companheirismo, compreensão e inspiração.
À minha mãe, Lisete Rocha da Silva, pelo apoio irrestrito.
Aos meus colegas, Fernando Hashimoto, Esdras Rodrigues, Rafael dos Santos e José
Augusto Mannis, pelos conselhos, incentivo e confiança.
Aos meus ex-alunos e grandes amigos, Diogo Carvalho e Rafael Thomas, por serem meu
braço direito nos momentos mais importantes.
E, principalmente, ao meu orientador, Claudiney Rodrigues Carrasco, e ao meu
coorientador, Paulo Tiné.
xvi
xvii
LISTAGEM DE FIGURAS
Fig. 1 - Cuaderno 2 de Abel Carlevaro, fórmulas de 2 a 4.
Fig. 2 - Estudo No. 6 de Leo Brouwer – compassos de 1 a 12.
Fig. 3 - Estudo No.1 de Villa-Lobos, compassos de 1 a 8.
Fig. 4 - Estudo No.1 de Villa-Lobos, compassos de 23 a 26.
Fig. 5 - Estudo No.1 de Radamés Gnattali – 1o arpejo proposto.
Fig. 6 - Estudo No.1 de Radamés Gnattali – 2o arpejo proposto.
Fig. 7 - Estudo No.1 de Radamés Gnattali – 3o arpejo proposto.
Fig. 8 - Estudo 1, compasso de 1 a 4.
Fig. 9 - Estudo 1, compassos 5 e 16.
Fig. 10 - Estudo 1, compassos de 41 a 48.
Fig. 11 - Estudo 1, compassos de 61 a 68.
Fig. 12 - Estudo 1, compassos de 69 a 76.
Fig. 13 - Estudo 2, compassos 1 e 2.
Fig. 14 - Trecho do Prelúdio No. 2 de Villa-Lobos – início da segunda parte.
Fig. 15 - Estudo 2, compassos de 21 a 26.
Fig. 16 - Trecho do Prelúdio IV de Heitor Villa-Lobos.
Fig. 17 - Estudo 3, compassos 1 e 2.
Fig. 18 - Estudo 3, compassos de 1 a 6.
Fig. 19 - Estudo 3, compassos de 7 a 14.
Fig. 20 - Estudo 3, compassos de 15 a 22.
Fig. 21 - Estudo 3, compassos de 21 a 24.
Fig. 22 - Exercício 31, Technique Development in Fourth.
Fig. 23 - Estudo 4, compassos de 1a 8.
Fig. 24 - Estudo 4, compassos 9 e 10.
Fig. 25 - Technique Development in Fourth, exercício 46.
Fig. 26 - Estudo 4, compassos de 11 a 18.
Fig. 27 - Estudo 4, compassos de 19 a 22.
xviii
Fig. 28 - Estudo 4, compassos de 25 a 30.
Fig. 29 - Estudo 4, compassos de 49 a 54.
Fig. 30 - Estudo 4, compassos de 53 a 55.
Fig. 31 - Estudo 4, compassos de 55 a 59.
Fig. 32 - Estudo 4, compassos de 59 a 61.
Fig. 33 - Estudo 4, compassos de 1 a 4.
Fig. 34 - Estudo 4, compassos de 25 a 27.
Fig. 35 - Estudo 4, compassos de 29 a 31.
Fig. 36 - Trecho de Asturias, de Isaac Albéniz.
Fig. 37 - Estudo 5, compassos de 1 a 8.
Fig. 38 - Estudo 5, compassos de 9 a 48.
Fig. 39 - Estudo 5, compassos de 17 a 32.
Fig. 40 - Estudo 5, compassos de 57 a 62.
Fig. 41 - Estudo 5, compassos de 78 a 85.
Fig. 42 - Estudo 5, compassos de 67 a 76.
Fig. 43 - Estudo 5, compassos de 49 a 57.
Fig. 44 - Estudo 5, compassos de 72 a 84.
Fig. 45 -Tríades sobre o modo Lídio.
Fig. 46 - Estudo 5, compassos de 77 a 85.
Fig. 47 - Exercícios de velocidade, fórmulas de 1 a 4.
Fig. 48 - Exercícios de velocidade, fórmulas de 5 a 12.
Fig. 49- Estudo 6, compassos de 1 a 3.
Fig. 50 – Estudo no 6, compassos de 7 a 12.
Fig. 51 - Estudo 6, compassos de 13 a 18.
Fig. 52 - Modo Superlócrio com indicações das notas da primeira tríade da sequência.
Fig. 53 - Modo Superlócrio com indicações das notas da segunda tríade da sequência.
Fig. 54 - Escala Dominante Diminuta com indicações das notas da primeira tríade do compasso
16.
xix
Fig. 55 - Escala Dominante Diminuta com indicações das notas da segunda tríade do compasso
16.
Fig. 56 - Estudo 6, compassos de 1 a 3.
Fig. 57 - Estudo 7, compassos 1 e 2.
Fig. 58- Estudo 7, compassos 3 e 4.
Fig. 59 - Estudo 7, compassos de 5 a 8.
Fig. 60 - Estudo 7, compassos de 9 a 12.
Fig. 61 - Estudo 7, compassos de 29 a 36.
Fig. 62 - Estudo 7, compassos 31 e 32.
Fig. 63 - Estudo 7, compassos de 1 a 5.
Fig. 64 - Estudo 7, compassos de 29 a 36.
Fig. 65 - Estudo 7, compassos de 41 a 46.
Fig. 66 - Estudo No. 2 de Villa-Lobos, compassos de 1 a 6.
Fig. 67 - Estudo 8, compassos de 3 a 8.
Fig. 68 - Estudo 8, compassos de 1 a 4.
Fig. 69 - Estudo 8, compassos 33 e 34.
Fig. 70 - Estudo 8, compassos de 1 a 8.
Fig. 71 - Estudo 8, compassos de 7 a 10.
Fig. 72 - Acordes, Arpejos e Escalas para violão e Guitarra, Tétrades Maiores.
Fig. 73 - Estudo 8, compassos de 33 a 36.
Fig. 74 - Exemplo de uma fórmula rítmico/harmônica utilizada na Bossa Nova.
Fig. 75 - Fórmula rítmica da bossa nova, utilizando-se da técnica disseminada por Baden Powell.
Fig. 76 - Trecho do arranjo para violão de Baden Powell da composição “A Lenda do Abaeté”,
de Dorival Caymmi.
Fig. 77 - Trecho do arranjo de Raphael Rabello para a composição “Lamentos do Morro”, de
Garoto.
Fig. 78 - Trecho da introdução da composição “Regra Três”, de Toquinho e Vinicius de Moraes.
Fig. 79 - Estudo 9, compassos de 1 a 12.
Fig. 80 - Estudo 9, compassos de 17 a 24.
xx
Fig. 81 - Estudo 9, compassos de 57 a 60.
Fig. 82 - Estudo 9, compasso de 57 a 72.
Fig. 83 - Estudo 9, compassos de 73 a 88.
Fig. 84 - Estudo 9, compassos de 1 a 12.
Fig. 85 - Estudo 9, compassos de 49 a 52.
Fig. 86 - Estudo 9, compasso de 37 a 40.
Fig. 87 - Estudo 9, compasso de 41 a 52.
Fig. 88 - Estudo 9, compassos de 81 a 84.
Fig. 89 - Estudo 1 de Heitor Villa-Lobos, compassos de 7 a 12.
Fig. 90 - Estudo 2 de Heitor Villa-Lobos, compassos de 13 a 22.
Fig. 91 - Pumping Nylon, ligaduras ascendentes.
Fig. 92 - Pumping Nylon, ligaduras descendentes.
Fig. 93 - Pumping Nylon, ilustração de ligaduras descendentes.
Fig. 94 - Estudo 3 de Heitor Villa-Lobos, compassos de 1 a 6.
Fig. 95 - Estudo 10, compassos de 1 a 8.
Fig. 96 - Fragmento do compasso 1 e diagramas correspondentes.
Fig. 97 - Frase sobre a escala de blues em Mi
21
APRESENTAÇÃO
A noção de que o violão está intimamente ligado à história da música brasileira está tão
disseminada que pode tornar redundante qualquer discurso acadêmico que pretenda abordar o
instrumento, suas conexões artísticas e seu papel sociocultural.
Inúmeros são os trabalhos que tratam da história do violão no Brasil, a linha evolutiva de
sua estrutura física e seus parentes trazidos pelos jesuítas, como a vihuela, a viola e a viola
caipira.
Não pretendo fazer aqui um levantamento dos grandes violonistas brasileiros, mas citar
brevemente aqueles que foram responsáveis por mesclar a linguagem clássica e a Música
Popular Brasileira.
Não é raro ouvirmos falar de Américo Jacomino, o “Canhoto”, (1889-1928), reconhecido
como o primeiro concertista brasileiro para o instrumento, ou ainda de João Pernambuco (1883-
1947) e o sucesso de suas composições populares para o violão.
Há, no entanto, um nome que, além de constantemente lembrado, carrega a
responsabilidade de ser um grande divisor de águas na história do violão no Brasil: Heitor Villa-
Lobos (1887-1959). Vale lembrar e ressaltar importantes aspectos de sua obra, pois Villa-Lobos
rompeu as fronteiras geográficas de nossa música, tornando-se um dos compositores mais
executados por violonistas no mundo todo. Peças como os 12 Estudos para Violão, os 5
Prelúdios, a Suíte Popular Brasileira ou ainda o Concerto para Violão e Pequena Orquestra têm
sido gravadas e executadas por centenas de instrumentistas, incluindo nomes lendários, como
Andrés Segovia, John Williams e Juliam Bream.
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Tal popularidade seja talvez o resultado da autenticidade de suas composições - uma
síntese clara entre a técnica clássica, a estética composicional erudita da época e as influências da
música popular brasileira, mais especificamente do choro, estilo pelo qual mostrava grande
fascínio. Talvez tenha sido essa forma musical a responsável pelo interesse de Villa-Lobos pelo
violão, já que permitia sua participação nas rodas de choro, ao contrário do violoncelo, seu
instrumento principal, que não era utilizado nesse contexto.
A forma híbrida com que Villa-Lobos tratou suas composições para violão e, de certa
forma, uma grande parte de sua obra é muito representativa do comportamento do músico
brasileiro, tradicionalmente aberto às influências de outras culturas, mas com um talento
acentuado para a reformulação de tais influências, propiciando sua fusão com as características
singulares e próprias de nossa música.
Outro nome que, após resgatado por Paulo Bellinati (n-1950), tornou-se frequente nos
trabalhos acadêmicos e nos programas de concertos dos violonistas é o de Aníbal Augusto
Sardinha, o “Garoto” (1915-1955). Bellinati, ao regravar suas composições e publicar as
respectivas partituras, trouxe à luz um trabalho um tanto esquecido e que logo passou a ser
visitado por violonistas no mundo todo.
A obra de Garoto, assim como a de Villa-Lobos, também traz como característica a fusão
das influências clássicas e populares. Além do reconhecido virtuosismo, da grande familiaridade
com a música popular brasileira da época e de certo conhecimento da estética clássica, com
destaque para a música impressionista, Garoto incluiu em sua síntese musical alguns elementos
do jazz. Tais elementos, provavelmente adquiridos na época em que fazia parte do Bando da
Lua, grupo que acompanhava Carmem Miranda, constituíram um aspecto marcante em sua obra.
Com muita frequência é atribuída a ele a responsabilidade de ter dado os primeiros passos na
confecção de um estilo musical que seria posteriormente conhecido como Bossa Nova.
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Baden Powell de Aquino (1937-2000) não fugiu à essa tendência de mesclar linguagens,
acrescentando a sua produção o seguimento da música brasileira mais conectada à cultura africana.
Ao gravar as músicas do LP Afro-Sambas, compostas em parceria com Vinícius de
Moraes, Baden deixa talvez a sua maior contribuição para a história do violão brasileiro: a
capacidade única de retratar a fusão dos ritmos oriundos do candomblé e da umbanda e o samba.
Baden aventurou-se também pelo mundo do jazz, apresentando-se em diversos festivais
com baixo acústico e bateria, formação característica do estilo. Além disso, mostrava grande
domínio da técnica clássica.
Os violonistas de tradição popular das gerações posteriores à de Baden Powell quase
sempre o apontam como sua principal influência, o que realmente é possível notar em um grande
número de instrumentistas que se seguiram a ele.
O compositor e multi-instrumentista Egberto Gismonti ( 1947- )fez do violão um grande
protagonista em sua carreira. Sempre conectado às tendências mais modernas, aperfeiçoou seus
estudos com Nadia Boulanger, assim como fizeram Quincy Jones, Philip Glass e Astor Piazzola,
que também encontraram na famosa musicista as informações necessárias para o seu
desenvolvimento.
Egberto Gismonti, admirador confesso de Baden Powell, a quem dedicou uma de suas
mais brilhantes composições, intitulada “Salvador”, uniu suas características de violonista
brasileiro à estética da música moderna, enveredando por um caminho experimental sem
paralelos até então.
Menos preocupado com o perfeccionismo técnico e mais focado em aspectos rítmicos e
exploração de novas possibilidades timbrísticas do instrumento, Gismonti especializou-se no uso
de violões especialmente construídos para suas propostas musicais. Seus instrumentos são
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diferentes entre si, mas têm em comum o fato de apresentarem sempre mais cordas do que os
violões convencionais, aceitando encordoamentos de nylon ou de aço e propiciando afinações
variadas. Tais instrumentos são usados de uma forma ampla, não sendo raro sua exploração de
forma mais percussiva.
Egberto Gismonti é um inovador, e sua obra tem influenciado muitos artistas em todo o mundo.
Raphael Rabello (1962-1995), um dos mais expressivos violonistas no período
compreendido entre os anos 1980 e 1990, sempre ressaltava a grande admiração que nutria por
Baden, além de exibir orgulhosamente as influências recebidas do grande violonista. Raphael
também seguiu a tendência das mesclas estéticas, mas incorporou à sua música, já repleta de
influências do choro, da música clássica e do samba, elementos do violão flamenco.
Após alguns encontros com Paco de Lucia, Raphael Rabello passou a ostentar uma
capacidade incomum de reproduzir escalas em alta velocidade, além de rasgueados complexos e
exuberantes, tornando evidentes as influências adquiridas pelo convívio com o violonista
espanhol.
Rabello tornou-se internacionalmente conhecido não apenas como solista, mas também
como acompanhador de cantores, como Gal Costa e Ney Mato Grosso, e pela participação, desde
muito jovem, em gravações de inúmeros artistas, dentre eles Chico Buarque de Hollanda.
Seu repertório era extenso e seus concertos exibiam sempre uma pequena parte de suas
possibilidades como solista. Em um mesmo concerto ele poderia apresentar arranjos próprios de
choros e de canções de Tom Jobim, peças clássicas de Francisco Tárrega e Agustin Barrios,
estudos de Villa-Lobos e Radamés Gnátalli ou ainda serestas de Dilermando Reis. Não era raro
Raphael Rabello surpreender a plateia, apresentando-se ao lado de convidados, como, por
exemplo, de um grupo de percussionistas pertencentes à bateria da Portela.
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Violonistas contemporâneos de Raphael Rabello também deixaram sua marca e ainda hoje
contribuem com suas performances, aulas e composições para violão.
O paulista Marco Pereira (n-1950), que iniciou seus estudos de violão clássico no Conservatório
Dramático musical de São Paulo, recebeu os títulos de Mestre em performance pela Université
Musicale Internacionale de Paris e Mestre em musicologia pela Sorbonne, também em Paris.
Apesar da densa formação acadêmica, ao retornar ao Brasil, quando passou a integrar o
quadro de professores da Universidade Federal de Brasília, o violonista gravou seu primeiro LP,
Violão Popular Brasileiro Contemporâneo, no qual ficam claras as influências que recebeu da
música popular brasileira e do jazz.
Desde seu retorno ao Brasil, em meados dos anos 1980, Marco Pereira vem produzido
CDs, oferecendo concertos e publicando composições com de abrangência internacional.
Não se pode deixar de destacar, no entanto, um fato marcante: Marco Pereira é, talvez, o
primeiro nome proeminente do violão popular brasileiro a fazer parte de um corpo docente de
uma universidade. Tal equilíbrio entre a vida acadêmica e as salas de concerto, envolvendo
músicos de tradição popular, não era um aspecto comum aos artistas de sua geração. Hoje em
dia, no entanto, tem sido cada vez mais frequente a dedicação de músicos às duas áreas
concomitantemente. Marco Pereira leciona atualmente na Universidade Federal do Rio de
Janeiro
Outro paulista, Paulo Bellinati, tem contribuído enormemente o desenvolvimento da
linguagem do violão brasileiro. Estudou no Conservatório Dramático Musical na mesma época
de Marco Pereira, desenvolveu seus estudos em Genebra, Suíça, e lecionou no conservatório de
Lauzanne, no mesmo país. Ao voltar para o Brasil, passou a integrar o grupo Pau Brasil a partir
de 1980. No grupo, Bellinati exibe uma grande flexibilidade musical, revezando-se no uso do
violão clássico e da guitarra elétrica, na execução de peças solo e em improvisações jazzísticas.
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Tal flexibilidade revela mais um passo do violão brasileiro em direção à fusão com outras
linguagens.
A partir de meados da década de 1970 surgiram guitarristas de jazz que passaram a utilizar
o violão em seus discursos musicais, o que determinou um estilo bem comum no Brasil, um
violão jazzista brasileiro que tem pouca influência do violão clássico. Mesmo assim, a opção
pelo uso dos dedos da mão direita em detrimento da palheta sugere que alguns desses violonistas
não desprezaram por completo a técnica tradicional.
Um dos músicos que fez a aproximação da guitarra do jazz com o violão de maneira mais
expressiva foi Hélio Delmiro (n-1947). Músico ativo no cenário popular tanto em gravações
como em acompanhamento de cantores do porte de Elis Regina, Milton Nascimento e Sarah
Vaughan ou ainda ao lado de músicos como Cesar Camargo Mariano e Tom Jobim, Hélio
Delmiro inspirou seus contemporâneos e as gerações seguintes.
Dono de uma notável fluência na arte de improvisar e harmonizar, Helio vem sendo
seguido por outros notáveis talentos, como, por exemplo, Romero Lubambo (n-1955). Este,
residente em New Jersey, Estados Unidos, desde 1985, tem sido um dos principais divulgadores
da música brasileira no exterior. A forte influência do jazz aplicada ao violão, somada a laços
com a música brasileira, colocaram Romero em estúdios e palcos ao lado de nomes como Dizzy
Gillespie, Michael Brecker, All Jarreau, Herbie Man, Paquito de Rivera e Diane Reeves, apenas
para citar alguns.
Nessa mesma tendência, podemos acrescentar nomes mais jovens como Chico Pinheiro,
Diego Figueiredo e Lula Galvão. Todos guitarristas virtuosos e improvisadores que passaram a
utilizar o violão como um recurso a mais e acabaram por contribuir para a formação de uma nova
estética para o instrumento.
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Outra fusão notável foi apresentada pelo jovem violonista Yamandú Costa (n-1980). Filho
de músicos, nascido em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Yamandú passou a participar das
apresentações musicais ao lado de seu pai, este sempre envolvido com as festas folclóricas
tradicionais da região. Aprimorou-se como violonista, tendo aulas com o argentino radicado no
Brasil, Lúcio Yanel, com quem aprendeu ritmos folclóricos gaúchos, marca registrada da
primeira fase de seu trabalho.
Aos 17 anos de idade, fazendo parte do grupo que acompanhava o gaitista Renato
Borguetti, Yamandú chegou a São Paulo no início da década de 1990 e impressionou os
produtores do evento Banco do Brasil Musical, que se encarregaram de desenvolver sua carreira.
Admirador de Baden Powell e Raphael Rabello, Yamandú trouxe um violão ágil e rítmico, num
estilo difícil de ser definido em virtude da amplitude do seu discurso musical.
Mais uma importante contribuição para o violão popular brasileiro contemporâneo é
atribuída a Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar (n-1950), o “Ginga”. De tão impressionado
com o talento de Hélio Delmiro, de quem foi amigo na juventude, Guinga acreditava que não
haveria lugar para ele como violonista no cenário da música brasileira.
Estabeleceu-se profissionalmente como dentista, sem nunca deixar de lado, no entanto,
suas atividades como músico. Paralelamente ao consultório dentário, acompanhava cantores,
como Beth Carvalho e Cartola, e compunha ao lado de parceiros, como Paulo Cesar Pinheiro e
Aldir Blanc.
Seu primeiro disco aconteceu apenas no início da década de 90, quando Ivan Lins e Victor
Martins, ao fundarem o selo Velas, convidaram-no a fazer parte do catálogo de artistas. Com o
lançamento desse disco, Guinga passou a ser reconhecido como um compositor inovador para o
instrumento.
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Suas composições para violão têm um estilo pessoal e intrigante. Explorando aspectos
gráficos do braço do instrumento com inteligência e criatividade, Guinga criou situações
harmônicas que, arpejadas, resultaram em melodias inusitadas.
Como se pode observar, a história do violão no Brasil é recorrente quanto ao talento do
músico brasileiro para fazer fusões estéticas. Tal talento levou o nosso violão a uma condição
única no cenário mundial, sendo comparado, em termos de autenticidade, apenas ao violão
espanhol. Em nenhum outro país o violão desenvolveu-se tão amplamente sem perder as
conexões com a música e a cultura locais.
Essa trajetória agregadora vai elevando progressivamente o patamar qualitativo da música
composta para o instrumento. Tal elevação da qualidade implica maior reflexão sobre a didática
do instrumento, agora muito mais complexo e sofisticado do que no começo de sua história em
nosso país.
Entretanto, as várias tendências estéticas criam atitudes técnicas particulares e muitas vezes
só aplicáveis a um determinado estilo, o que dificulta o desenvolvimento do músico que quer se
dedicar ao instrumento de uma forma mais ampla.
A Tese a seguir é o relato de um caminho dedicado à busca de soluções abrangentes em
termos da técnica para o instrumento. É uma reflexão sobre os objetivos, as expectativas e os
resultados alcançados no processo de desenvolvimento de uma técnica que pudesse dar conta de,
senão todas, muitas das vertentes estéticas alcançadas pelo violão brasileiro.
29
INTRODUÇÃO
O principal motivo que me levou a elaborar estes Estudos foi minha própria resistência em
fazer exercícios para o desenvolvimento da técnica para violão cujo foco fosse restrito à
mecânica do movimento. Por essa razão, sempre dei preferência ao trabalho da técnica a partir
do repertório, pois assim estaria atrelando os estudos ao que chamo de plataforma musical. O
intuito era obter melhor aproveitamento do tempo e a aplicação imediata do objeto estudado na
peça musical em questão.
Os exercícios comumente usados para o desenvolvimento da técnica com foco dirigido à
mecânica do movimento, que daqui para frente denominarei técnica pura, é uma prática
frequentemente associada à repetição e mostra resultados positivos em um tempo reduzido. A
repetição consiste em exercitar um determinado movimento tantas vezes quantas forem
necessárias para que o referido movimento se torne facilmente executável, o que sinaliza um
amadurecimento motor e muscular relacionado à finalidade proposta. Essa prática, no entanto,
além de ocupar uma boa parcela do tempo diário dedicado aos estudos e exigir acentuada
disciplina por parte do músico, se mal programada ou mal compreendida em sua essência, pode
levar a efeitos colaterais indesejáveis, como o afastamento do aspecto musical e seu significado
como linguagem; à supervalorização da mecânica como recurso artístico em detrimento das
dimensões mais subjetivas e pouco mensuráveis, como a criatividade e a expressividade; e
também a problemas físicos, como, por exemplo, lesão por esforço repetitivo, também conhecida
por LER, e a distonia focal.
O uruguaio de Montevideo, Abel Carlevaro (1916-2011), autor da obra Escuela de la
Guitarra - Exposición de la Teoria Instrumental, complementada por exercícios específicos
publicados em seus quatro Cuadernos de Técnica, mostra uma grande preocupação com essa
questão. Seu trabalho de observação corporal e da dinâmica do movimento levaram-no a uma
série de soluções para problemas técnicos frequentes, cuja eficiência foi logo reconhecida
30
mundialmente, sendo ainda hoje referência no mundo violonístico. Em seus "Cuadernos"
figuram pequenos e específicos exercícios expostos por meio de fórmulas de característica
meramente mecânica e organizados minuciosamente para ser praticados a partir da repetição com
o objetivo de propiciar ao jovem violonista o máximo de concentração e foco sobre um
determinado aspecto, o que levaria a uma profunda e rápida aquisição do conteúdo.
Fig. 1 – Cuaderno 2 de Abel Carlevaro, fórmulas de 2 a 4.
Para um instrumentista que vislumbra o domínio do instrumento num espectro mais amplo,
abrangendo, além da execução de peças escritas, o arranjo, a composição e a improvisação, a
acuidade técnica pode não ser a única meta e por vezes nem a mais importante. A quantidade de
informação e o treinamento necessário para o desenvolvimento desses aspectos, principalmente
no caso da improvisação, pode representar um impasse na programação diária de estudos não só
por demandar um considerável acréscimo na quantidade de horas dedicadas, mas também
31
porque, no âmbito da improvisação, o inesperado é uma porção essencial e constante na
performance artística, não havendo espaço hábil para uma reflexão prévia sobre as estratégias
mecânicas a serem utilizadas nas diversas passagens musicais.
No âmbito estilístico, também as diferenças entre os objetivos almejados pelos violonistas
de tradição erudita em contraposição àqueles de tradição popular se fazem sentir claramente. Não
é incomum que a perfeição sonora e interpretativa, associada a um profundo poder de
concentração e autocontrole, características almejadas por um instrumentista da área erudita, seja
compreendida por um violonista popular como "frieza", "calculismo" ou "puritanismo",
interpretação que tem como contrapartida imediata a visão, pelo lado erudito, de que o músico
popular não é "requintado" ou "estudado". Mesmo os mais talentosos dessa categoria costumam
ser vistos como "talentos a serem lapidados". Rivalidades à parte, o fato é que tais diferenças
realmente existem, e um estudante do instrumento será naturalmente conduzido a um impasse
que resultará na escolha de seu caminho.
Como um violonista que tentava equilibrar-se entre o universo técnico erudito e a tradição
popular, preferi deixar de lado os exercícios de técnica pura, buscando soluções para os
problemas com que me deparava em exercícios criados e dirigidos à prática do momento, como
no estudo de escalas, arpejos e padrões melódicos aplicados à improvisação ou então à execução
do repertório. Assim, seria possível refletir sobre as passagens mais difíceis, testando
possibilidades e encontrando soluções às vezes momentâneas e outras vezes, mais perenes.
Num primeiro e razoavelmente alargado período que se estendeu do início de meu
convívio com o violão em 1968 até início da década de 1990 tudo funcionava bem e a
programação de estudos exclusiva aos exercícios de técnica pura pareciam ter dado bons
resultados no âmbito profissional e artístico no qual vinha atuando. No entanto, na minha
intimidade com o instrumento, travava batalhas infindas com aspectos específicos da técnica que
perduravam sem uma resolução efetiva e satisfatória. Apresentaram-se, de início, como pequenos
32
detalhes sem maior importância; no entanto, com o tempo, transformaram-se em grandes
barreiras aparentemente intransponíveis que iriam me desafiar até o ponto em que me decidisse a
resolvê-los de forma drástica e definitiva, momento em que iniciei o trabalho de composição e
escrita destes 10 Estudos para Violão.
O elemento desencadeador do processo de elaboração dos referidos Estudos foi o Prelúdio
No. 4, de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Ao mesmo tempo em que era o meu predileto da
coleção dos cinco prelúdios escritos por ele para o violão, especialmente pela primeira parte,
poeticamente misteriosa e lacônica, era também frustrante para mim devido à segunda parte, uma
sequência de arpejos de quatro notas, com movimentos do grave para o agudo sobre acordes
diminutos, a qual eu nunca conseguia tocar com o devido equilíbrio e a esperada fluência. O
constante fracasso diante das inúmeras tentativas, aliado à ideia de que minha técnica
necessitaria de uma vasta e urgente revisão, conduziu-me à opção de construir exercícios
específicos que contribuíssem para a resolução do problema.
O estudo por meio dos exercícios de técnica pura foi improdutivo, pois eles se mostravam
artisticamente enfadonhos e geravam, portanto, perda da concentração, elemento pertinente ao
processo de maturação neurológica. Trazia a "parcialmente verdadeira" sensação de que eu
estava perdendo um importante tempo na aquisição de outras informações. Digo "parcialmente
verdadeira" por entender que essa sensação estaria também associada a uma característica
pessoal e menos aplicável a uma maioria e que teria um provável gérmen ancorado numa
personalidade inquieta e, por vezes, ansiosa. Um tanto de arrogância também impedia a consulta
a um amigo mais preparado e vivido tecnicamente. Uma avaliação posterior dessa postura de
resolver problemas técnicos por meio de tentativa e erro, sem recorrer a métodos, colegas ou
professores, mostrou aspectos positivos e negativos. Dentre os negativos, destaco todo o tempo
gasto na busca de resolução de um problema que talvez fosse facilmente resolvido com alguns
simples conselhos relacionados ao posicionamento ou à dinâmica de movimento. Dentre os
positivos, destaco o mesmo tempo gasto na tentativa de resolução do problema, o que me levou a
33
uma intensa e profunda reflexão sobre nosso corpo e sua relação com o instrumento, resultando
num outro conhecimento que transbordaria e alagaria as fronteiras almejadas a priori,
estendendo meus horizontes técnicos e minhas possibilidades artísticas.
O caminho mais natural foi, portanto, compor um estudo com foco nos arpejos da segunda
parte do Prelúdio No. 4, de Heitor Villa-Lobos. Foi assim que nasceu o Estudo No. 3, o primeiro
a ser composto, mas que ocupou a terceira posição por uma questão de organização do material.
Após a composição do Estudo No. 3, a constatação da necessidade de estudos que
tratassem de outros aspectos carentes de correção se fez presente. Assim, de uma forma quase
lúdica, fui me aventurando na composição dos outros nove estudos. Menciono o lado lúdico
desse grupo de composições, pois não havia naquele momento a menor intenção artística, e o
material composicional deveria ser usado exclusivamente como uma série de exercícios. Essa
falta de compromisso artístico resultou numa surpreendente avalanche de ideias sem censura,
pois, afinal de contas, deveriam ser apenas exercícios.
Não se passou mais de um mês para que as dez peças fossem compostas. Apenas depois de
ter completado a série, dei-me conta, primeiramente, da importância que tais composições
desempenhariam na construção da minha técnica. Depois, percebi a contribuição do material
para minha obra artística.
Parâmetros para a análise
A análise de cada um dos Estudos será feita a partir de parâmetros preestabelecidos e
abaixo descritos na tentativa de isolar e refletir sobre os critérios utilizados desde a escolha do
objeto técnico a ser desenvolvido até os resultados atingidos não somente no que diz respeito à
mecânica do movimento, mas também no âmbito de sua aplicação no contexto musical
pretendido.
a) O objeto técnico
34
Denominarei "objeto técnico" a atitude mecânica definida a ser trabalhada e desenvolvida
em cada Estudo. O conjunto de possibilidades e variações na forma de abordar as cordas do
instrumento - tanto com a mão direita, responsável pelo disparo da vibração das cordas, quanto
com a mão esquerda, responsável pela seleção das alturas das notas - pode ter seu conteúdo
representado por um número muito extenso, praticamente impossível de ser abordado em um
único trabalho dedicado ao assunto. Por esse motivo, esta obra isolou alguns dos recursos que
constituem o alicerce da técnica violonística - como arpejos, escalas, ligaduras ascendentes e
descendentes, toques com e sem apoio, progressão de acordes, além da respectiva dinâmica de
movimento, ou seja, a forma de racionalizar e executar o movimento correto - no sentido de
contribuir para o melhor rendimento possível não só no que se refere à destreza, mas também à
qualidade sonora, levando-se em consideração o volume, a acuidade timbrística e a fluência da
interpretação.
O termo "dinâmica do movimento" abrange a angulação de ambas as mãos em relação às
cordas e ao corpo do instrumento, a amplitude da movimentação dos dedos, a consciência
vetorial para o direcionamento correto do fluxo energético, a noção de centro de gravidade
aplicada ao instrumento e a independência na movimentação dos dedos.
b) A plataforma musical
Cada estudo foi escrito a partir do que denominei “plataforma musical” e construído em
um ambiente musical inteligível com a utilização de recursos harmônicos e melódicos oriundos
de diversas influências artísticas adquiridas nas últimas quatro décadas de minha trajetória
musical. Não há uma proposta de vanguarda musical; pelo contrário, neste grupo de composições
foram utilizados elementos cotidianos, mais ou menos complexos, no sentido de criar mais
rapidamente um elo de familiaridade com o executante, sem perder de vista a noção do desafio
cognitivo. A intenção era tornar agradável e lúdico um estudo que por vezes pode ser muito
cansativo e pouco inspirador.
35
Foi dada a preferência aos elementos melódico-harmônicos mais comuns na música
popular brasileira e na música erudita, mais especificamente concentrados nas obras compostas
entre os períodos romântico e impressionista.
Na análise da plataforma musical, tentarei demonstrar os recursos harmônicos e melódicos
aplicados em cada caso e associados às devidas referências, procurando citar, sempre que
possível, as fontes inspiradoras que me movimentaram no sentido da composição.
c) A aplicabilidade
Os estudos foram compostos não apenas para desenvolver objetos técnicos, mas para
desenvolvê-los visando à aplicação dos seus resultados no contexto da improvisação solo.
Durante muitos anos alimentei, e ainda hoje alimento, o desejo de atingir o domínio da
improvisação solo para violão, o que significa ser capaz de improvisar em sessões de gravações
ou em performances ao vivo sobre temas musicais, previamente estabelecidos ou não, sem o
apoio de qualquer instrumento harmônico ou rítmico. Tal objetivo mostrou-se muito difícil de ser
atingido, pois muitas vezes apresentava-se encapsulado em enormes paradigmas - tais como a
ideia enraizada da improvisação jazzística como referência formal e amplamente respeitada, ou
do acorde a quatro vozes como elemento necessário para a base harmônica da improvisação, ou
da concepção escalar como fonte do material necessário para tal atividade. Podemos acrescentar
ainda fatores complicadores evidentes e fórmulas de difícil solução, como, por exemplo, sugerir
melodia e harmonia ao mesmo tempo, estar preparado para digitar uma frase que brota
subitamente durante a performance sem o tempo para a elaboração de uma estratégia de
digitação adequada ou ainda economizar energia para poder suportar fisicamente todo o ciclo
harmônico proposto sem perder a fluência e a expressividade.
Para contornar tais dificuldades, foi necessário propor alternativas técnicas para alcançar as
36
frases almejadas. Isso exigiu uma mudança de posicionamento básico da mão direita, que deveria
agora estar apta não só para lidar com toques apoiados e não apoiados, tanto na execução de
escalas como de arpejos, mas também para tornar possível a alternância rápida entre esses toques
sem variação excessiva de timbre ou perda de fluência. Além disso, esse novo posicionamento
ajudou a disponibilizar o polegar como um elemento a mais na construção da melodia,
juntamente com os dedos indicador, médio e anular. Tais recursos são também necessários na
execução de peças solo, mas, no caso da improvisação, como já mencionado anteriormente, não
existe tempo hábil para a formatação de uma estratégia para cada momento; por isso, a
necessidade de uma perspectiva técnica particular que propicie mais flexibilidade para essa
situação.
A difícil lida com os fatores descritos acima foram elementos que nortearam a escolha dos
objetos técnicos abordados que, ao lado das plataformas musicais, tiveram o objetivo de preparar
o aluno para todas as situações técnicas, desde as mais simples até as mais complexas.
Por meio do parâmetro “aplicabilidade”, tentarei demonstrar os critérios levados em
consideração para priorizar os elementos técnicos, harmônicos e melódicos requeridos para o
desenvolvimento da técnica na direção desejada, refletindo sobre as escolhas, suas aplicações e
os prováveis ganhos qualitativos.
d) A exequibilidade
A confecção dos Estudos teve a preocupação com o equilíbrio entre viabilidade de sua
execução no treinamento diário e os resultados almejados. Inspirados em boa parte no princípio
da repetição com pouco esforço muscular - característica marcante no "Cuaderno no. 2 da série
didática para guitarra", por Abel Carlevaro -, os referidos Estudos são, em parte, uma tentativa de
exercitar alguns dos princípios propostos pelo mestre uruguaio num contexto musical de média
dificuldade.
37
Minha preocupação com a exequibilidade nasceu do contato com os Doze Estudos, de
Villa-Lobos; os Dez Estudos, de Radamés Gnattali (1906-1988); e os Doze Estudos para Violão,
de Francisco Mignone (1897-1986), trabalhos de excelência composicional e de acentuada
dificuldade técnica que por vezes acabam se distanciando do estudante mediano.
Neste tópico tentarei demonstrar os critérios de avaliação que usei a respeito da dificuldade
de execução e seus custos em termos de tempo e esforço em comparação com os resultados
atingidos.
38
39
1. Estudo 1
1.1. Apresentação
O primeiro Estudo da série não foi o primeiro a ser composto, como já mencionado
anteriormente, mas ocupou o primeiro lugar na organização numérica por dedicar-se a um
assunto básico, quase elementar - o arpejo -, que consiste em tocar uma determinada sequência
de notas, geralmente pertencentes a um acorde, em cordas subsequentes, usando para o ataque os
quatro dedos ativos da mão direita (p i m a)1, um em cada corda, com o disparo dos movimentos
em momentos rítmicos diferentes e sucessivos, mas proporcionais em duração e intervalos de
tempo. Popularmente chamado de dedilhado, o arpejo é amplamente usado em
acompanhamentos de melodias cantadas ou tocadas por músicos de todos os níveis, tanto
iniciantes como avançados. Compositores para violão solo utilizam esse recurso em muitos casos
na busca efeitos virtuosísticos, dada a ergonomia que possibilita movimentos muito rápidos e
com resultado sonoro envolvente, além de maior aproveitamento das durações das notas, aqui
vibrando em cordas diferentes. Há estudos famosos dedicados ao assunto, dentre os quais
destaco o Estudo No.1 da série de doze compostos por Heitor Villa-Lobos em 1924; o Estudo
No. 6 da série 20 Estudios Sencillos, de Leo Brouwer (1939), amplamente usados por estudantes
no mundo inteiro; e o Estudo No.1 da série de dez de Radamés Gnattali, compostos em 1967 e
menos conhecidos internacionalmente, porém não menos inspiradores e desafiadores.
Os três estudos citados acima são bem diferentes no que diz respeito à abordagem do
arpejo, sendo que o mais acessível tecnicamente é o de Leo Brouwer - de curta duração e pouca
variação na fórmula do arpejo -, dedicado a estudantes de nível médio. Inicia-se com um acorde
1 “p i m a” é a sigla utilizada para representar os dedos ativos da mão direita: polegar, indicador, médio e
anular, respectivamente. Tais letras aparecem na partitura para violão próximas às notas, indicando os dedos com
que elas devem ser atacadas.
40
de Lá com 11ª aumentada (A11#), com as notas Mi na primeira corda e Lá na quinta corda soltas,
promovendo um efeito pedal que perdura por quase toda a peça, elemento facilitador do trabalho
técnico da mão esquerda, o que é coerente se levarmos em consideração o fato de que o referido
Estudo foi escrito com o objetivo de desenvolver a técnica do arpejo, função desempenhada pela
mão direita.
Fig. 2 –Estudo No. 6, de Leo Brouwer – compassos de 1 a 12
No caso do Estudo No. 1, de Villa-Lobos, amplamente utilizado por violonistas do mundo
inteiro, os arpejos seguem uma fórmula mais complexa, também com a utilização do baixo
pedal, mas agora na nota Mi produzida pela vibração da 6a corda solta. Os acordes e saltos são de
difícil execução para a mão esquerda, fator que compromete o foco principal, o arpejo.
O primeiro salto de grande dificuldade ocorre logo entre os compassos 7 e 8 quando, de
um acorde de Mi Maior com terça Maior no baixo (E/G#), tem-se de alcançar, no espaço de
41
tempo de uma semicolcheia em andamento allegro non tropo2 um acorde de Lá menor (Am)
oriundo de uma pestana sobre a 5a
casa. O acorde de Mi Maior é construído com uma digitação
alargada, ocupando os quatro primeiros trastes do instrumento e tendo numa extremidade o dedo
1 pressionando a 3a
corda na 1a
casa sobre a nota Sol#, e na outra, o dedo 4 pressionando a nota
G# sobre a 6a
corda na 4a
casa. A passagem do Mi Maior para o Lá menor obriga o violonista a
muitas horas de estudo para superar apenas esse trecho.
Fig. 3 - Estudo No. 1, de Villa-Lobos, compassos de 1 a 8
2 Andamento ligeiro e alegre, pouco menos rápido que o allegro.
42
Na mesma obra, outro momento que merece destaque é a frase que se inicia no final do
compasso 23 e abrange todo o compasso 24, percorrendo o braço do instrumento duas vezes
consecutivas, mas em sentido contrário. Os dedos da mão esquerda, que no início do compasso
23 formam um acorde de Em na 2a casa, vão seguindo rapidamente o fluxo da frase até a 12
a casa
na primeira corda, ou seja, quase toda a extensão do braço do instrumento, tanto na vertical como
na horizontal, e retornam desenhando ligaduras ascendentes3 desde o Mi na primeira corda e 12
a
casa até a nota Fá na 6a
corda e 1a
casa. É uma frase também de alta dificuldade de execução e
fora do padrão do arpejo proposto pelo autor, um ponto delicado sob o aspecto da funcionalidade
do estudo.
Fig. 4 - Estudo No. 1, de Villa-Lobos, compassos de 23 a 26.
O Estudo No. 1, de Radamés Gnattali, é outro exemplo a ser destacado por suas
peculiaridades.
3 Tipo de toque no qual o dedo da mão esquerda projeta-se sobre a corda sem o ataque dos dedos da mão
direita, produzindo a nota pelo impacto, como uma martelada, metáfora esta que inspirou o termo em inglês
“Hammer on”, usado para designar o mesmo tipo de toque
43
Composto na tonalidade de Ré Maior, mantém sexta corda afinada em Ré na função de
baixo pedal. Os acordes escolhidos mostram forte influência da música popular brasileira e do
jazz.
De denso conteúdo harmônico, é, dentre os três exemplos citados, o mais difícil de ser
executado, primeiramente pela necessidade de repetição constante do dedo anular, ação a ser
evitada pelo instrumentista e que aqui aparece como solução para uma dificuldade imposta pelo
arpejo proposto; em segundo lugar, pela mudança de atitude técnica que ocorre duas vezes: uma
na parte intermediária, e outra, na parte final da obra
Como será mostrado na figura abaixo, a última série de quatro notas do final de cada
compasso deve ser executada por “p i m a”, sendo que a última nota de cada compasso,
produzida pelo ataque do dedo anular, caminha para a primeira nota do compasso seguinte. Por
conta da característica do arpejo, essa primeira nota também é executada pelo dedo anular,
forçando o violonista à repetição desse dedo.
Fig. 5 – Estudo No. 1, de Radamés Gnattali – 1o arpejo proposto
44
A figura a seguir mostra o segundo arpejo proposto, no qual há um acorde de seis notas
intercalado entre as notas do dedilhado, o que obriga o violonista a um rasgueado4 que desloca
toda a mão direita no sentido dos bordões5 para as primas
6, contrariando a tendência natural da
digitação proposta pelo Estudo e criando um foco inesperado de dificuldade técnica.
Fig. 6 – Estudo No. 1, de Radamés Gnattali – 2o arpejo proposto
A figura a seguir mostra o terceiro arpejo proposto, que consiste de um dedilhado
composto por “p p p i m a” na fase ascendente, abrangendo consecutivamente as seis cordas no
sentido dos bordões para as primas; na fase descendente, um único dedo, normalmente o anular,
4 Tipo de toque em que um único dedo da mão direita desliza sobre as cordas, criando um efeito de arpejo
súbito e enérgico.
5 As três cordas graves do violão revestidas de material metálico.
6 As três cordas agudas do violão confeccionadas em nylon, carbono ou titânio.
45
desliza sobre as seis cordas em sentido contrário. É um movimento complexo que impõe grande
dificuldade para o alcance do equilíbrio do volume entre as cordas e para a regularidade rítmica
entre as notas.
Fig. 7 – Estudo No. 1, de Radamés Gnattali – 3o arpejo proposto
O Estudo 1 da série analisada neste trabalho procura concentrar o foco técnico num arpejo
definido e sem variações na tentativa de evitar o desvio da atenção do executante, além de propor
um encaminhamento harmônico convidativo à subjetividade na intenção de diminuir o estresse
da repetição proposta pelos estudos de forma geral.
Para melhor compreensão harmônica da peça, foram adicionadas chaves na partitura na
parte superior da pauta, sobre as quais estão escritas as cifras dos acordes executados em forma
de arpejos.
46
1.2. Objeto técnico
Diretamente inspirado na “Serie Didactica para Guitarra- Tecnica de La Mano Derecha,
cuaderno 2”, de Abel Carlevaro, o Estudo 1 consiste numa sequência de acordes de quatro notas
a serem arpejados com “p i m a” com o objetivo de proporcionar o exercício do equilíbrio
sonoro e rítmico do toque com os dedos da mão direita.
A ideia de compor um estudo nesse formato surgiu a partir da constatação de que meu dedo
anular não possuía a mesma destreza dos demais, o que resultava num desiquilíbrio tanto em
relação ao volume quanto em relação ao ritmo na execução de arpejos. Construí então uma
fórmula de movimentação dos dedos da mão direita com seis toques em compasso composto
(6/8) de modo que houvesse uma utilização do dedo anular em um número maior de toques. A
intenção foi criar uma atenção localizada nesse dedo numa tentativa de adaptar os exercícios
propostos por Carlevaro para um contexto musical. Como o compasso escolhido foi o 6/8, tendo
a semínima como unidade de tempo, tive de escolher mais um dedo para ser repetido na
sequência, evitando construir o Estudo sobre um compasso quinário, o que exigiria uma atenção
rítmica mais acentuada. Escolhi, portanto, o indicador em função da ideia musical, e não mais
por uma necessidade técnica. A digitação da mão direita aparece indicada no primeiro compasso
da figura de no 8.
Fig. 8 – Estudo 1, compassos de 1 a 4
47
Associei à fórmula do movimento o componente harmônico, no intuito de criar um
ambiente musical mais aconchegante e interessante, o que não acontece nos exercícios de técnica
pura propostos por Carlevaro.
Outro aspecto relevante deste Estudo foi a preferência pelo uso de arpejos em cordas
subsequentes, o que condiciona a movimentação dos dedos a uma amplitude menor,
principalmente no caso da posição do polegar, que passa a atuar sempre próximo ao indicador.
Essa estratégia deveria ter como efeito secundário uma melhora do posicionamento da mão
direita como um todo, já que a atuação próxima do indicador com o polegar coloca-os em rota de
colisão, um sério empecilho para uma boa execução. Nenhum dos dois dedos poderia imprimir a
correta excitação da corda por falta de espaço quando requeridos sucessivamente, a não ser que o
intérprete deslizasse levemente o polegar de tal forma a afastá-lo do centro da palma da mão,
posicionamento conhecido como “polegar projetado”. Tal estratégia foi usada também em outros
estudos da série, como será demonstrado na sequência deste trabalho.
1.3. Plataforma musical
O encaminhamento dos acordes utilizados no Estudo 1 obedece a uma regra básica da
harmonia tradicional: o menor caminho possível entre as vozes. Para evitar a utilização de tríades
simples, valorizei a dissonância, os acordes de empréstimo modal e as cadências plagais.
A peça desenvolve-se a partir da tonalidade de Dó Maior e o primeiro acorde aparece
invertido, tendo como nota mais grave o Mi na quarta corda, segunda casa, desempenhando a
função tônica. Segue-se a ele um B7(9b)/Eb descendente, conduzindo a um Dm6 seguido de um
A9/C#, um acorde de empréstimo modal, retardando a volta à tônica, o que acontece no
compasso seguinte, no qual aparece o acorde de C7M(6) seguido de um C7M, indicando um
caminho da 6a Maior em direção à 5
a justa que continua no compasso seguinte seu movimento
48
descendente na direção da 5a diminuta, ao mesmo tempo em que a 7
a Maior caminha para a 7
a
menor, movimentos que resultam num acorde de C7(5b) que desempenha a função de subV77.
Esse acorde encontra sua resolução em B7(4), cuja 4a justa caminha para terça Maior, ao mesmo
tempo em que a 7a menor encaminha-se para a 6
a menor, formando um B7(13b), porém com a 5
a
aparente, evento que cria uma tensão extra no acorde em função do intervalo de 2a menor criado
entre a 6a menor e a 5
a justa, acorde este que desempenha também a função de subV7. A esse
dominante substituto segue-se um novo acorde suspenso, Bb4(13), cuja 4a encaminha-se para a
3a Maior, criando um novo subV7 com 13
a Maior e 7ª menor subentendida que perdura nesse
formato por apenas um compasso. No compasso seguinte, a 5a justa é rebaixada, conduzindo a
um acorde de Bb6(11#) - na verdade uma inversão do Gm6 - que se encaminha para um A7(4)
seguido de um A7 encerrando a série cromática de acordes e tendo como resolução final um Ab9.
No compasso 33, vale a pena ressaltar, como demonstrado nesta análise, os caminhos das
vozes movimentando-se sempre em pequeno número (uma ou duas por vez), mas que podem
determinar importantes mudanças de função, levando a modulações passageiras e resoluções
deceptivas. A intenção foi criar um ambiente um tanto intrigante na medida em que os pequenos
movimentos das vozes pudessem conduzir a mudanças nas cores harmônicas, o que efetivamente
acontece.
A resolução em Ab9 é passageira e os encaminhamentos continuam acontecendo com as
mesmas características. Segue-se uma mudança no baixo, que caminha da fundamental
descendentemente para a 7a Maior do acorde e, em seguida, para a 7
a menor, gerando um
dominante invertido. No compasso seguinte, esse Ab7/Gb recebe duas alterações nas notas mais
agudas, o Si bemol e o Ré, a 9a Maior e a 11
a aumentada, respectivamente, que, continuando a se
movimentar na direção descendente, acabam por alcançar o acorde de Ab7(9b)/Gb, que também
pode ser cifrado como G0. Na sequência, essa mesma 9
a menor caminha ascendentemente,
7 subV7 é a sigla que representa, na análise harmônica, o acorde substituto do acorde dominante.
49
alcançando a nota Sol e gerando uma sonoridade que sugere um acorde de Cm6/G de função
subdominante menor, o que se confirma pela resolução da sequência num G9. Esse acorde se
configura como nova tonalidade e perdura na função de repouso por quatro compassos. A
cadência descrita é tipicamente plagal menor, e a partir de agora o Estudo passa a desenvolver-se
sobre a tonalidade de Sol Maior.
O primeiro acorde da sequência na tonalidade de Sol Maior é um G7M com a 5a omitida,
ao qual se segue um acorde de C7M(11#)/G com 3a Maior omitida e outro de C#ø/G e 3
a menor
omitida. Em continuação, uma variação do mesmo acorde, C#ø(6)/G, e novamente o G9 por
quatro compassos. Depois, um G9(5#) por 4 compassos e um C7M/G por mais quatro compassos
até a 3a Maior (Mi) caminhar um semitom até o Fá, formando um G7(4)(3). Na sequência, um
G7(4) seguido de um C/G e, após quatro compassos, a 5a do acorde é elevada em meio tom,
atingindo a nota G#. Outro caminho ascendente de meio tom atinge a nota A ao mesmo tempo
em que a nota mais aguda do acorde, a nota Mi, sobe meio tom atingindo um Fá, configuração
que perfaz um acorde de F/G por dois compassos. A sequência acontece agora no sentido
contrário, aparecendo novamente o C5#/G e o C/G, seguidos de um G74(9b) e um G7(9b), e
terminando por resolver em C7M com 5a
omitida. Neste momento inicia-se a fase final do
Estudo, na qual o acorde de tônica se reveza com seu homônimo menor com 6a
Maior e
desempenha o papel de empréstimo modal. Cada um dos acordes perdura por quatro compassos.
Os sete últimos apresentam uma cadência plagal menor na qual a tônica (C7M) se reveza com a
subdominante menor (Fm7), ocupando cada uma um compasso por três ciclos com variação das
inversões. As notas mais agudas de cada acorde criam uma ideia melódica ascendente, que se
inicia no Dó executado na segunda corda e primeira casa e termina no Mi na terceira linha
suplementar superior e tocada na primeira corda na 12a casa do braço do instrumento.
50
1.4. Aplicabilidade
O foco deste Estudo é o equilíbrio entre os quatro dedos da mão direita (p i m a).
A consciência de cada toque gera o controle preciso da rítmica e da dinâmica, tanto na
interpretação de peças solo como em acompanhamentos e improvisações.
Há, no entanto, um aspecto na confecção deste Estudo que é especialmente dedicado à
improvisação na tentativa de manter a ação do polegar próxima do indicador, sempre
condicionando o trabalho desses dedos à menor distância possível. Essa preocupação se deve ao
fato de consideramos o arpejo uma importante estratégia para a melhor utilização dos recursos
do instrumento na improvisação. Além disso, ter o polegar de prontidão para complementar uma
frase passa a ser uma condição imprescindível, pois evita a sobrecarga dos dedos indicador,
médio e anular.
O polegar é naturalmente entendido como responsável pelos baixos ou por frases graves
por motivos ergonômicos tão óbvios que criam um certo limite psicológico e levam a uma
utilização limitada desse dedo. Ao incluirmos o polegar como um suporte necessário ao
complemento do fraseado melódico, alcançamos mais flexibilidade não só na construção
melódica, mas também na destreza, o que acarreta ganhos correlatos em velocidade, sonoridade e
dinâmica. Para isso, é importante condicionar o trabalho do polegar à sua proximidade máxima
dos outros dedos, em especial do indicador.
Este Estudo proporciona ganhos nos movimentos da mão esquerda, que é
consideravelmente exigida devido às aberturas dos acordes, levando o intérprete a uma forte
racionalização da movimentação dos dedos numa sequência adequada para que não haja perda de
sustentação das notas e promova o consequente aproveitamento da aura de harmônicos
resultantes. Tal racionalização exercita o cérebro na compreensão da necessidade da mudança de
51
posição em parcelas de movimento, ou seja, em vez de se caminhar de um acorde para o outro,
mudando as notas de posição de uma só vez, o que é muito comum em acompanhamentos
rítmicos na música popular, deve-se mudar os dedos da mão esquerda, sempre um de cada vez,
de acordo com a necessidade gerada pelos dedos da mão direita. Dessa forma, além de
simplificar a mudança, já que consideramos uma nota de cada vez, obtemos uma vibração mais
prolongada das notas pressionadas pelos dedos ainda não requisitados, o que gera maior aura
harmônica e um legato adicional muitas vezes importante para a fluidez da obra.
1.5. Exequibilidade
O Estudo 1 pode ser considerado como uma peça de nível médio no que se refere à
dificuldade de execução; mesmo assim, há algumas passagens que exigem maior atenção
estratégica. Tais dificuldades concentram-se sobre a mão esquerda, já que em alguns momentos,
devido à busca de melhor solução musical, há uma sobrecarga de trabalho sobre esses dedos.
O primeiro exemplo ocorre logo no trecho compreendido entre os compassos 8 e 16. O
acorde de Dm6 no compasso 9 é digitado, mantendo-se o dedo 3 na nota Lá da terceira corda
sobre a segunda casa, a nota Si na segunda corda solta e o dedo 2 na nota Fá, a mais aguda do
acorde, sobre a primeira corda na 1a casa. Essa digitação é decorrente do acorde anterior, o
Ebº(6b), no compasso 8. Para evitar uma troca excessiva de posicionamento dos dedos, optei por
deslizar o acorde meio tom abaixo, liberando a pestana e a segunda corda, mantendo o segundo
dedo pressionado sobre a primeira corda e restringindo a mudança apenas à nota Si na 3a corda,
que caminha um tom abaixo para a nota Lá do acorde de Dm6. A digitação, no entanto, não se
mostra favorável na próxima mudança em direção ao A9/C# que ocorrerá no compasso 13.
Como o Dm6 permanece inalterado por quatro compassos, optei por preparar a nova digitação
em duas etapas: primeiro no compasso 11, substituindo o dedo 2 pelo dedo 1 sobre a nota Fá;
logo a seguir, no compasso 12, substituindo o dedo 3 pelo dedo 2 sobre a nota Lá, liberando
52
assim o dedo 4 para o baixo do acorde subsequente, a nota Dó#.
Fig. 9 - Estudo 1, compassos de 5 a 16
O recurso da troca de digitação sobre o mesmo acorde mostrou-se muito útil e foi utilizado
diversas vezes neste Estudo. É importante destacar que tal mudança foi planejada para ocorrer
sempre no momento em que não houvesse a perda de sustentação das notas.
Caso semelhante ao descrito acima acontece no trecho compreendido entre os compassos
41 e 48. O Cm6/G mostrado no compasso 41 apresenta-se digitado com o 4o dedo sobre o baixo,
que é substituído pelo 3o dedo logo no compasso 44, preparando a digitação do acorde de G9,
que aparecerá no compasso 45, a partir da liberação da pestana na casa 1.
53
Tal mudança foi mais uma vez aplicada para preservar a vibração do maior número
possível de notas, além de preparar a digitação para o acorde subsequente.
Fig. 10 – Estudo 1, compassos de 41 a 48
Mais uma vez o mesmo recurso mostra-se muito útil no trecho compreendido entre os
compassos 61 e 65. O acorde de G9 no compasso 61 apresenta a nota Sol do baixo pressionada
pelo dedo 2, a nota Ré resultante da 4a corda solta, a nota Lá pressionada pelo dedo 1 e o Si
resultante da vibração da 2a corda solta. O acorde que aparece no compasso 61 sofre a primeira
mudança de digitação no compasso 62, quando da substituição do dedo 2 pelo dedo 3 para
pressionar o baixo; em seguida, no compasso 63, o dedo 1, que pressiona a nota Lá, é substituído
pelo dedo 2. Com essa mudança, o dedo 1 fica livre para atuar na 4a corda, pressionando a nota
D# na primeira casa e completando o próximo acorde, um G9(5#), como descrito abaixo:
54
Fig.11 – Estudo 1, compassos de 61 a 68
Uma estratégia não muito usual ocorre na mudança de acorde compreendida entre os
compassos 72 e 73.
No compasso 72, as notas Sol, Mi, Lá e Si, nessa sequência, são pressionadas
respectivamente pelos dedos 3, 2, 1 e 4 da mão esquerda, construindo um acorde de C7M/G. No
compasso 73, há a mudança da nota Mi da primeira linha para a nota Fá no primeiro espaço.
Apesar de a referida mudança ser de apenas uma nota, para respeitar a ergonomia seria preciso
mudar dois dedos de posição. O dedo 2 deveria pressionar a nota G grave e o dedo 3, a nota Fá
no primeiro espaço. Tal mudança, apesar de ergonomicamente mais confortável, ofereceria como
efeito indesejável a perda precoce da vibração das notas Mi da primeira linha e Sol grave em
virtude da troca simultânea de posição dos dedos para cordas diferentes, o que resultaria num
staccato8 fora de contexto.
Para evitar tal efeito, preferi deslizar o segundo dedo para a nota Fá no primeiro espaço,
88Designa a forma de tocar destacadamente as notas de uma frase musical, mantendo um espaço de tempo
entre elas.
55
criando uma posição ligeiramente menos confortável, já que os dedos 2 e 3 passam agora a
ocupar o mesmo traste, porém em posição inversa à ergonomia, com o dedo 3 ocupando o Sol
baixo e o dedo 2 ocupando a nota Fá no centro do acorde. Dessa forma, foi possível manter o
baixo pedal vibrando, mantendo a continuidade sonora.
Fig.12 – Estudo 1, compassos de 69 a 76
Os demais trechos podem ser executados de forma natural, sem maiores reflexões
estratégicas, já que se apresentam num patamar de razoável compreensão e execução.
56
57
2. Estudo 2
2.1. Apresentação
O Estudo 2 foi dedicado a um aspecto muito específico da técnica de mão direita: a
inversão dos dedos indicador e médio nos saltos entre as cordas.
Por serem de tamanhos diferentes, os dedos indicador e médio funcionam melhor na
execução de escalas quando atuam sobre a mesma corda ou na execução de arpejos, pois
trabalham numa posição mais ergonômica, ou seja, o indicador deve trabalhar sempre numa
corda posterior àquela abordada pelo dedo médio, tomando-se a primeira corda como referência.
Por ser mais curto, esse dedo funcionará melhor atuando entre o dedo médio e o polegar.
O discurso musical, no entanto, por vezes exige uma inversão dessa ordem lógica, criando
uma situação contraditória sob o aspecto ergonômico e frequentemente o ponto frágil de uma
obra, colocando em risco a fluidez da interpretação ou até mesmo induzindo o intérprete ao erro.
Este estudo trata de uma exacerbação dessa situação, concentrando todo o foco nessa
inversão de dedos na tentativa de tornar familiar e natural esse complexo movimento.
Novamente baseado no princípio da repetição, usando um material harmônico atual e
prevendo situações recorrentes na prática da improvisação, o Estudo 2 foi elaborado evitando a
sobrecarga da mão esquerda e procurando canalizar toda a atenção do estudante para um único
aspecto: o da inversão dos dedos indicador e médio da mão direita.
Dentre os Dez Estudos que compõem a série, este é o que menos exige da parte muscular,
mas um dos que mais trabalha o aspecto motor, requerendo intensa concentração na amplitude de
movimentos e no posicionamento da mão direita.
58
Aqui também surge a preocupação em manter o polegar sempre próximo do indicador na
tentativa de condicionar tais dedos ao convívio mais intenso, o que leva a uma maior
flexibilidade técnica.
2.2. Objeto técnico
O Estudo 2 mostra, logo no primeiro compasso, sua finalidade, como mostra a figura
abaixo:
Fig. 13 – Estudo 2, compassos 1 e 2
A digitação de mão direita, representada na partitura pelas letras p i m a, propõe uma
movimentação alternativa para fugir da repetição natural dos dedos polegar e anular. Partindo-se
do princípio de que cada nota da partitura será tocada em uma corda diferente, seria plausível
entender que, para a fase ascendente do arpejo de quatro notas e levando em conta a ergonomia,
seria adequada a utilização de p i m a, sendo os dedos polegar para a 4a corda, o indicador para a
3a, o médio para a 2
a e o indicador para a 1
a.
De acordo com o mesmo raciocínio, entenderíamos que a melhor alternativa para a
execução da fase descendente do mesmo arpejo seria a m i p, ou seja, o anular para a 1a corda, o
médio para a 2a, o indicador para a 3
a e polegar para a 4
a. No entanto, se optarmos por essa
59
digitação, seremos obrigados a repetir o dedo anular no início de cada fase descendente e o
polegar no início de cada fase ascendente. O problema decorrente dessa escolha aparecerá na
medida em que se implementa velocidade à execução do estudo. A repetição de dedos da mão
direita é contraindicada, pois leva à tensão e consequente cansaço e desequilíbrio.
Para evitar a repetição, foi necessário estabelecer uma nova digitação que viabilizasse a
execução do Estudo na velocidade desejada - nesse caso relativamente alta, proposta em torno
dos 100 pulsos por minuto.
Qualquer que fosse a solução encontrada para evitar essa repetição, ela levaria o
instrumentista a enfrentar uma situação bem comum e de difícil administração: a inversão dos
dedos.
A mão direita atua confortavelmente quando os dedos p i m a trabalham em cordas
subsequentes, obedecendo à essa ordem; no entanto, encontra considerável desconforto se essa
ordem é alterada em virtude da diferença de tamanho entre os dedos indicador e médio. Numa
situação como a proposta pelo Estudo 2, precisamos lidar com essa inversão a fim de evitar a
repetição de dedos.
Observando o primeiro compasso, podemos observar a digitação da fase ascendente dentro
do padrão esperado; porém, na fase descendente, para evitar a repetição do dedo anular,
precisamos usar o médio na primeira corda e, consequentemente, o indicador na segunda corda.
O polegar teria de dar conta das outras duas notas dessa fase, atuando repetidamente para
completar o arpejo, o que por princípio deveria ser evitado. Sendo assim, a solução passa a ser a
inversão de digitação, ou seja, após usar o dedo indicador na segunda corda, devemos usar o
médio na 3a e novamente o indicador na 1
a, deixando o polegar livre para recomeçar o ciclo.
Essa solução aparentemente simples mascara uma grande dificuldade técnica explicada
60
pela fisiologia, já que a diferença de tamanho entre os dedos não favorece o uso do dedo médio,
que, ao atacar a corda acima do dedo indicador, atinge-a em ângulo forçado, favorecendo o risco
de o intérprete enganchar a unha na corda. Há também o aspecto psicomotor que, de acordo com
a perspectiva visual do intérprete, contribui para a compreensão de que o dedo indicador deverá
estar sempre acima do dedo médio, noção que será desrespeitada na sequência proposta pelo
Estudo. Esses fatores concorrem para a instabilidade do toque, cuja superação conta com o
reajuste de posicionamento da mão como um todo, além do treinamento cerebral.
A sequência de ataque dos dedos da mão direita, portanto, respeitará a seguinte ordem: p i
m a m i m i. Um violonista inquisitivo poderia propor uma outra alternativa também plausível: p
i m a m a m i. Nesta tese escolhemos lidar apenas com a primeira sequência, evitando assim um
prolongamento desnecessário da argumentação sobre o assunto.
2.3. Plataforma musical
O Estudo 2 usa como argumento musical para o trabalho do objeto técnico exposto
anteriormente uma sequência de acordes que progride em ambiente tonal, encaminhando-se pelo
menor caminho possível. Os acordes são compostos por quatro notas, em sua maioria sem
repetição, explorando extensões de tríades tais como 6as
, 7as
e 9as
, além de alterações, mantendo-
se, portanto, próximo à tradição harmônica praticada na música popular brasileira e no jazz.
Partindo da tonalidade de Sol Maior e iniciando-se pela dominante em forma de acorde
suspenso construído sobre a nota Ré, a sequência é o resultado da influência de diversos
compositores, dentre os quais Egberto Gismonti, Tom Jobim, Garoto, Radamés Gnátalli e Pat
Metheny.
É difícil especificar quais passagens foram inspiradas em quais trechos das obras dos
61
compositores mencionados; no entanto, durante o processo de composição do Estudo a
lembrança de certas passagens se fazia presente. Posso destacar Tom Jobim, na composição
“Amparo”, originalmente instrumental, mas que ganhou posteriormente letra de Chico Buarque e
Vinicius de Moraes, passando a chamar-se “Olha Maria”; Egberto Gismonti, na composição
“Fazendo Arte”, do disco “Cidade Coração”; Garoto, na composição “Lamentos do Morro”;
Radamés Gnátalli, no “Estudo No
1 para violão”, da série dedicada a Raphael Rabello; e Pat
Metheny, na composição “It’s for you”, presente no disco “As falls Wichita so falls Wichita
Falls.
Todas as composições mencionadas trabalham com acordes encadeados pelo menor
caminho possível e apareceram como influência clara no Estudo 2, dedicado a uma forma
específica de arpejo.
2.4. Aplicabilidade
A busca de uma técnica que possa preparar o violonista para as situações adversas
decorrentes de um discurso musical improvisado foi também elemento inspirador deste Estudo.
Na improvisação jazzística, é muito comum o uso de arpejos associados a frases por grau
conjunto; dependendo da situação, tem-se de lidar com inversões inesperadas de digitação da
mão direita.
O Estudo 2, mantendo o foco na inversão de dedos da mão direita, prepara o violonista
para tal situação. Apesar de ter sido inspirado nas dificuldades impostas pela improvisação
jazzística, mostra-se útil na preparação do intérprete para executar peças clássicas que tenham
conteúdo arpejado.
62
Um exemplo importante é o Prelúdio No 1, de Villa-Lobos, que, na segunda parte,
apresenta um arpejo de difícil solução ergonômica, sendo o violonista induzido à repetição ou à
inversão de dedos.
Fig. 14 – Trecho do Prelúdio No. 2, de Villa-Lobos – início da segunda parte.
A fórmula de arpejo escolhida por Villa-Lobos para a segunda parte do Prelúdio No 2
apresenta uma questão de difícil solução. As notas mais graves, Fá# e Dó#, são atacadas com o
polegar, que deve deslizar até a 4a corda e atacar também a nota Fá#, deixando os dedos i m a
encarregados do disparo das notas Lá, Si e Mi, nas 3a, 2
a e 1
a cordas, respectivamente. O
problema aparece na volta do arpejo, pois a m i encarregam-se das notas Mi, Si e Lá, nas 1a, 2
a e
3a cordas, respectivamente, restando ainda para ser atacada a nota Fá# na 4
a corda. Nessa
situação, deve-se decidir entre repetir um dos dedos ou inverter a digitação para evitar a
repetição. Uma solução muito comum para esse caso é o ataque da nota Fá# da 4a corda com o
dedo médio, o que consiste numa inversão de digitação, já que o indicador atacou a 3a corda.
Esse é um exemplo muito conhecido, no qual a inversão de digitação revela-se um recurso
eficaz.
63
2.5. Exequibilidade
O Estudo 2 mostra-se aparentemente fácil para a mão esquerda, já que o foco principal está
direcionado para a mão direita; no entanto, em certos momentos a configuração do arpejo
proposto exige uma preocupação especial, principalmente na mudança de acordes, como mostra
a figura a seguir.
Fig. 15 – Estudo 2, compassos de 21 a 26.
Como se pode observar na figura acima, a última nota do primeiro arpejo é repetida no
início do segundo, o que configura uma área de dificuldade, já que a nota Lá na 4a corda, quando
na posição de última nota do primeiro arpejo, é atacada com o dedo indicador e, na sua repetição,
quando o arpejo recomeça, é atacada com o polegar. Essa proximidade entre indicador e polegar
é um aspecto importante e frequentemente revisto nesta série de estudos por se apresentar como
64
um fator de risco para a execução. A seguir, no compasso 22, há uma exacerbação dessa
dificuldade, já que existe uma troca de acorde, ou seja, além da preocupação com o movimento
próximo entre polegar e indicador, tem-se de pensar na mudança de acorde sem que se perca a
vibração de nenhuma das notas dos arpejos.
Aspectos como esse, que se repetem durante toda a extensão da peça, fazem com que o
Estudo 2, apesar de não exigir maiores esforços sob o aspecto da resistência muscular, seja uma
composição que exige muita atenção e destreza do violonista para que todas as notas sejam
emitidas com a devida consistência.
65
3. Estudo 3
3.1. Apresentação
O Estudo 3 foi o primeiro da série e criado para exercitar a segunda parte do Prelúdio No.
4, de Heitor Villa-Lobos.
A referida parte consiste de uma sequência de arpejos de quatro notas com a utilização de p
i m a, nessa ordem, para mencionar acordes diminutos que progridem em andamento rápido,
como se pode observar na figura abaixo.
Fig. 16 – Trecho do Prelúdio No.4, de Heitor Villa-Lobos.
66
O primeiro contato com a peça sugere uma certa simplicidade, que dá a falsa ilusão de
facilidade. No entanto, arpejos que utilizam a forma direta p i m a mostram-se muito difíceis em
relação ao equilíbrio rítmico-sonoro, pois o executante tende a tocar sem a consciência plena de
cada toque e, valendo-se da ergonomia favorável, dispara os ataques recorrendo a uma simples
rotação da mão direita.
As dificuldades geralmente encontradas são de ordem motora e psicológica. Do lado
motor, há a dificuldade de encontrar o melhor posicionamento e a apropriada estratégia de
movimento para executar o referido arpejo. O sucesso só vem depois de um longo período de
tentativas devido ao aquecimento decorrente delas; entretanto, mostra-se temporário, pois no dia
seguinte à sessão de estudos as dificuldades técnicas revelam-se recorrentes e os ganhos reais,
apesar de existirem, não são entusiasmantes. Do lado psicológico, torna-se crescente o
abatimento causado pelos insucessos recorrentes, o que gera um sentimento de impotência
extremamente contraproducente para um instrumentista em desenvolvimento. A alternativa,
portanto, foi desenvolver um exercício paralelo, de mesmo conteúdo e objetivo, que explorasse
um outro colorido musical no intuito de se provocar um distanciamento da prática do Prelúdio
No 4, atividade que pode acabar se tornando enfadonha e desgastante.
Assim, usando o mesmo mecanismo da mão direita requerido pelo Prelúdio IV, mas sobre
uma outra plataforma melódico/harmônica, nasceu o Estudo 3, numerado posteriormente,
quando da organização da série como um todo.
3.2. Objeto técnico
O Estudo 3 foi escrito para praticar o arpejo de quatro notas em uma única direção,
utilizando p i m a, nessa ordem. A ergonomia favorável leva o violonista a menosprezar esse
Estudo que aborda um tipo de arpejo que oferece dificuldades importantes no que se refere ao
67
equilíbrio rítmico-sonoro.
A prática deste Estudo exige uma prévia racionalização do posicionamento da mão direita,
pois, além de os dedos i m a trabalharem muito próximos do polegar, a direção em que o arpejo é
executado dificulta a movimentação desse dedo, que tem o movimento constantemente limitado
pela presença do indicador.
Aqui, não por definição, mas por necessidade, o polegar precisa estar ligeiramente
projetado em relação a i m a. Esse ligeiro deslocamento de posição do polegar evita a colisão
com o indicador durante a execução da peça, situação que se repete quatro vezes a cada
compasso.
Fig. 17 – Estudo 3, compassos 1 e 2.
No trecho acima, as notas dos arpejos encontram-se nas 5a, 4
a, 3
a e 2
a cordas
sucessivamente, o que põe o polegar, que se movimenta no sentido gravitacional, em rota de
colisão com o indicador, que se movimenta no sentido antigravitacional.
Executados em semicolcheias a 140 bpm, os arpejos exigem uma grande estabilidade da
mão direita, normalmente obtida com o apoio do polegar. No entanto, como nesse caso não há
espaço suficiente por conta do toque do indicador na corda imediatamente abaixo daquela
68
atacada pelo polegar, obtém-se a almejada estabilidade tocando os dedos da mão direita nas
respectivas cordas uma fração de segundo antes do disparo.
Tocar as cordas antes de atacá-las é um recurso muito usado para conferir estabilidade aos
dedos da mão direita, já que o intérprete tem uma ideia clara de suas posições antes mesmo do
toque. Há também um outro ganho decorrente dessa estratégia, que é maior controle sobre o
disparo, o que possibilita o domínio da intensidade de cada toque e do espaço de tempo entre os
toques, ou seja, de todos os fatores necessários para atingir um perfeito equilíbrio rítmico-
sonoro.
A estrutura deste Estudo está organizada basicamente em torno da ideia de intervalos de
terça que se deslocam horizontalmente pelo braço do instrumento complementados por duas
cordas soltas de efeito pedal. O problema é que esse deslocamento horizontal sobre a 5a e a 4
a
cordas tende a gerar um ruído característico, oriundo do atrito entre dedos da mão esquerda e os
bordões. Tal ruído pode ser evitado livrando as cordas do contato com os dedos, antes de
deslocar a mão para a próxima posição, o que é uma outra preocupação para o violonista.
No caso do Estudo 3, essa preocupação paralela é bem-vinda, já que obriga o
instrumentista a praticar em andamento mais lento, condição importante para a maturação do
reflexo cerebral.
3.3. Plataforma musical
O Estudo 3 desenvolve-se em ambiente tonal, com um forte colorido modal. A pouca
frequência de relações de tensão e repouso e os longos trechos dedicados a uma única função
realçam as características dos modos explorados.
69
Basicamente o Estudo utiliza o movimento de intervalos de terça que caminham sobre os
graus do campo harmônico, gerando um efeito melódico a duas vozes, enquanto as outras duas
notas complementares do arpejo são produzidas em cordas soltas que tendem a gerar um efeito
pedal.
A tonalidade escolhida foi Mi menor, mas a apresentação do tema, que ocorre nos seis
primeiros compassos, utiliza, como empréstimo modal, o modo Dórico em vez do Eólio.
Fig. 18 – Estudo 3, compassos de 1a 6.
Do compasso 7 até o compasso 14, o discurso musical desenvolve-se sobre um Dó Maior
Lídio.
70
Fig. 19 – Estudo 3, compassos de 7 a 14.
Segue-se, a partir do compasso 15 e estendendo-se até o compasso 21, um período de
modulações sucessivas, todas em modo Lídio.
71
Fig. 20 – Estudo 3, compassos de 15 a 22.
Segue-se, no compasso 22, uma sequência de duas tríades aumentadas, separadas por
intervalo de um tom, tendo as fundamentais apoiadas sobre as notas Mi na primeira tríade e Ré,
na segunda, resolvendo a sequência num acorde de Lá Maior com Dó# no baixo. Essas tríades
foram construídas sobre uma escala de tons inteiros sobre a nota Mi, apesar de as cordas soltas
de efeito pedal apresentarem a nota Si não pertencente à referida escala. Entretanto, essa nota
pode ser aceita como dissonância resultante da digitação e usada para acentuar a tensão,
valorizando assim o relaxamento em Lá Maior.
72
Fig. 21 – Estudo 3, compassos de 21 a 24.
Os exemplos acima comprovam a forte tendência modal do Estudo 3, tendência que
persiste durante toda a peça.
3.4. Aplicabilidade
Como já mencionado anteriormente, o Estudo 3 foi escrito com a função de exercitar o
arpejo de quatro notas, p i m a, para a superação das dificuldades encontradas no Prelúdio No 4,
de Heitor Villa-Lobos.
Apesar de o foco principal estar bem delineado, os ganhos com o Estudo 3 foram muito
além do objetivo que resultou na sua concepção, pois, ao praticá-lo, o violonista desenvolve
aspectos mais subjetivos da técnica, todos relacionados com a consciência da dinâmica do
movimento de cada dedo.
Diversas peças do repertório disponível para violão solo apresentam passagens que
73
utilizam essa forma de arpejo, principalmente as pertencentes ao repertório flamenco, no qual o
arpejo de p i m a acontece com muita frequência.
A prática da improvisação também se beneficia do domínio desse arpejo, já que uma boa
parte do estudo dispensado à arte de improvisar diz respeito aos arpejos de todas as categorias de
acordes.
3.5. Exequibilidade
O Estudo 3 não oferece maiores dificuldades para a mão esquerda em relação aos aspectos
relacionados ao esforço muscular, mas propõe um desafio para aqueles que buscam uma
sonoridade mais refinada. Isso por que as mudanças constantes de posição em alta velocidade, no
sentido longitudinal do braço do instrumento, tendem a gerar, em virtude do atrito entre dedos e
bordões, um ruído característico, agudo e incômodo, de difícil controle.
Os exercícios já existentes para evitar esse tipo de ruído devem ser relembrados antes da
prática do Estudo 3 e consistem em relaxar os dedos da mão esquerda antes de movê-los no
sentido do distanciamento da corda. Só após esse distanciamento haverá o deslocamento da mão
para uma nova posição.
O problema da geração de ruído como decorrência do atrito é, sem dúvida, uma dificuldade
a mais e poderia ser encarada como um ponto negativo nesta proposta de trabalho. No entanto,
essa movimentação da mão esquerda também ocorre no Prelúdio No 4, de Villa-Lobos, razão
pela qual foi mantida no contexto do Estudo.
No que diz respeito à mão direita, como já descrito anteriormente, as dificuldades ocorrem
mais no âmbito motor do que no muscular, já que o arpejo de p i m a respeita a ergonomia e não
oferece barreiras de ordem mecânica.
74
A prática do Estudo 3 requer especialmente que o intérprete se recorde constantemente dos
ensinamentos de Abel Carlevaro deixados por escrito na página de apresentação de seu Cuaderno
no 2, dedicado à técnica da mão direita e dá destaque aos seguintes pontos:
“...todo exercício deve ser praticado muito lentamente e, uma vez
dominado, pode ser acelerado, mas nunca a um andamento que impeça o
controle dos movimentos...”,
“...os dedos devem sentir-se completamente livres uns dos outros, para
responder com toda presteza às intenções do pensamento ...”,
“...a imobilidade dos dedos que não atuam é tão importante quanto o
movimento dos outros dedos...”
“... os dedos das mãos não estão exatamente constituídos, e é necessário
nivelar ao máximo as suas forças...”.
75
4. Estudo 4
4.1. Apresentação
Composto para trabalhar com acordes de três notas construídos com intervalos de quartas
sobrepostas, este Estudo propõe-se a exercitar a execução de tais acordes e também a
compreensão da sua utilização no contexto harmônico.
A harmonia por quartas ou quartal consiste na preferência pela sobreposição dos intervalos
de quarta a sobreposição dos intervalos de terça na construção de acordes. O resultado sonoro
característico de tais acordes revela uma grande flexibilidade funcional, o que os torna opções
importantes em composições, arranjos e improvisações.
Na improvisação esses acordes são largamente utilizados não apenas como base para solos,
mas também por fornecer interessantes recursos melódicos quando executados na forma de
arpejos, assunto abordado por Ramon Ricker9 em seu livro.
O referido livro não foi escrito para instrumentos específicos, e alguns exercícios impõem
dificuldades ao violonista, já que são, na maioria das vezes, arpejos de três ou quatro notas que
se encadeiam em estruturas melódicas diversas, situações que exigem estratégias especiais de
digitação tanto para a mão direita quanto para a esquerda.
A figura a seguir mostra o exercício 31, uma sequência cromática de acordes por
sobreposição de 4as
justas que se inicia na nota Dó, fundamental do primeiro acorde, escrita na
9RICKER, Ramon. Technique Development in Fourths For Jazz Improvisation. USA: Alfred sd
76
primeira linha suplementar inferior, prosseguindo até o acorde com a fundamental em Sol no
último espaço do pentagrama, cuja nota mais aguda é Fá, escrita na 3a linha suplementar
superior.
Fig. 22 – Exercício 31, Technique Development in Fourth.
O exercício acima impõe uma reflexão sobre a digitação mais favorável para a
movimentação dos dedos da mão direita. A direção contrária dos arpejos gera um impasse
técnico que será abordado mais profundamente a seguir. Essa questão gerou o primeiro ponto de
interesse para o desenvolvimento deste Estudo específico. O assunto central do trabalho - o uso
dos intervalos de 4a
e sua aplicação na improvisação - foi o outro importante fator gerador de
77
entusiasmo, dada a riqueza de possibilidades reveladas pelo trabalho de Ricker.
O confronto com tais dificuldades desencadeou um processo analítico que culminou na
elaboração do Estudo 4, que se inicia com uma sequência de acordes de três notas construídos
com quartas sobrepostas e com elementos modais que evoluem, abrangendo a totalidade da área
livre do braço do instrumento, tanto no sentido vertical, desde a 6a
até a 1a corda, como no
sentido horizontal, ou seja, desde a primeira até a décima segunda casa.
4.2. Objeto técnico
O Estudo 4 foi inspirado numa dificuldade técnica imposta durante o estudo da aplicação
dos acordes por sobreposição de intervalos de quarta na prática da improvisação.
A estrutura do Estudo mostra, logo nos primeiros compassos, o objeto a ser trabalhado.
78
Fig. 23 – Estudo 4, compassos de 1 a 8.
Na figura acima, os primeiros oito compassos do Estudo mostram acordes de três notas
construídos por sobreposição de intervalos de quarta executados na forma de arpejos,
apresentados em pares e executados em direções opostas, ou seja, um na direção ascendente e
outro, na descendente, alternadamente.
Apesar de os arpejos abrangerem três notas e serem construídos sobre notas subsequentes,
o fato de se apresentarem em sentidos contrários faz com que a última nota do primeiro esteja
sempre na mesma corda que a primeira nota do segundo, criando uma situação técnica que
exigiria a repetição de um dedo da mão direita a cada princípio do próximo arpejo. Se tais
arpejos fossem apresentados sempre no mesmo sentido, ascendente ou descendente, poderíamos
eleger i m a ou p i m para produzi-los de forma sucessiva. Na forma em que aparecem, no
entanto, tanto para o uso de i m a quanto para p i m seria necessária a repetição do de i e de a a
79
cada inversão de direção dos acordes, o mesmo acontecendo no caso da escolha por p m i, no
qual seria necessária a repetição de p e m a cada mudança de sentido na execução dos arpejos.
Para resolver o problema da repetição, que é um gerador de tensão e consequente fator de
redução de desempenho, a opção foi utilizar a m i para os arpejos na direção descendente e p i m
para os arpejos na direção ascendente, como mostra a indicação de digitação no compasso 1.
Além de evitar a repetição, essa opção explora uma das principais premissas deste grupo
de estudos, que é trabalhar a proximidade do polegar dos demais dedos da mão direita como
elemento de apoio na construção de frases.
Este Estudo apresenta também uma exigência de atenção para a movimentação da mão
esquerda. Encaminhamentos de acordes são frequentemente geradores de ruídos oriundos do
atrito entre os dedos da mão esquerda e os bordões10
. Tais ruídos são gerados quando
prematuramente, no momento em que o intérprete está aliviando a pressão dos dedos sobre as
cordas, inicia o movimento de realocação dos mesmos dedos em uma nova posição para a
produção de um novo acorde, situação que se repete em todo o decorrer do discurso musical do
Estudo.
Evitar tal ruído exige uma atenção especial na troca dos acordes, pois obriga o
instrumentista a racionalizar cada passagem para buscar o tempo exato das mudanças,
organizando e preparando estrategicamente a movimentação de cada dedo.
10 As três cordas mais graves do violão, fabricadas a partir de um feixe de fibras de nylon envolvidas por
um filamento de metal de forma helicoidal.
80
4.3. Plataforma musical
Os acordes de quartas foram construídos a partir de notas de escalas como elementos de
campos harmônicos na busca de um efeito modal para a composição como um todo. No entanto,
acordes construídos a partir de outras estruturas não quartais mesclam-se a esses para diluir o
efeito de suspensão causado por tais acordes, contribuindo para melhor compreensão de suas
funções harmônicas.
Nos primeiros oito compassos, o modo que gerou os elementos para a construção dos
acordes foi o Dórico em Lá.
A seguir, aparece uma sequência de acordes por 4as
sobrepostas construídos a partir das
notas de um arpejo diminuto iniciado pela nota Mi produzida pela vibração da 6a corda solta,
como mostra a figura abaixo.
Fig. 24 – Estudo 4, compassos 9 e 10
Esta sequência desobedece à ordem proposta para este Estudo, que consiste em manter os
arpejos sempre em sentido contrário. Isso ocorre para quebrar uma certa monotonia causada
pelos primeiros oito compassos, nos quais sequências de dois acordes de sentidos opostos são
repetidas quatro vezes. Após esse período de repetições sucessivas com elementos do Lá menor
Dórico, a sequência construída sobre um arpejo diminuto com os acordes na direção ascendente
81
causa um efeito surpresa, tanto na forma quanto na sonoridade resultante da simetria da frase, já
que a distância que separa os acordes é sempre de um tom e meio.
A construção de acordes de 4as
sobre arpejos é um dos assuntos abordados no já
mencionado trabalho de Ramon Ricker, como mostra a figura abaixo, referente a um dos
exercícios propostos.
Fig. 25 – Technique Development in Fourth, exercício 46.
O último acorde da sequência mostrada na figura 24 serve como aproximação cromática
para o acorde seguinte, localizado meio tom abaixo e que inicia uma nova fase de repetições
idênticas às dos oito primeiros compassos, mas agora com acordes construídos com elementos
do Modo Dórico em Sol, como mostra a figura abaixo.
82
Fig. 26 – Estudo 4, compassos de 11 a 18
A partir do compasso 19 acontece uma modulação para Mi menor Dórico, evidenciada por
uma sequência de três acordes em forma de progressão ascendente e descendente, sucessiva e
repetidamente, sobre os três primeiros graus do campo harmônico. Os referidos acordes não
respeitam a ideia inicial da sobreposição dos intervalos de 4a, constituindo acordes de 7
a com a
supressão da terça no caso do primeiro acorde e supressão das 5as
no segundo e terceiro acordes
da série, o que confere a essa sequência um efeito menos suspensivo, sugerindo um contexto
modal mais definido, como mostra a figura abaixo.
83
Fig. 27. Estudo 4, compassos de 19 a 22
Esta sequência é repetida uma vez, modulando para o modo Sib Lídio. Nesse ambiente
mesclam-se tríades e acordes quartais em forma de progressão descendente sobre o campo
harmônico do referido modo até o desfecho da frase em uma nova modulação pontuada pelo
aparecimento de um acorde de Fá sustenido Maior com 7a Maior e 11
a aumentada, sinalizando a
modulação para um Fá sustenido Lídio.
Fig. 28 - Estudo 4, compassos de 25 a 30
84
Segue-se uma nova sequência de tríades e acordes quartais em progressão descendente até
a volta para o modo Dórico em Sol, à qual se segue a repetição da sequência de acordes
compreendidos entre os compassos 11 e 26, o que representa uma retomada da primeira parte do
Estudo.
Do compasso 50 em diante, desenvolve-se a preparação para o final, em que ocorre uma
sequência de acordes maiores com 7a Maior e 11
a aumentada. Tais acordes evoluem
paralelamente em saltos de 4as
, no sentido ascendente, até o ponto mais agudo do Estudo: uma
nota Sol tocada sobre a primeira corda na 15a casa. Tal nota desempenha o papel de 11
a
aumentada do acorde de Ré bemol Maior com 7a Maior construído a partir da 4ª corda na décima
primeira casa.
85
Fig. 29 - Estudo 4, compassos de 49 a 54
No espaço compreendido entre os compassos 54 e 55, os acordes apresentam estruturas
diferentes. O primeiro surge arpejado no sentido descendente e é composto pelas notas Fá#, Si e
Sol, que constituem a 7a Maior, a 3
a Maior e a fundamental, respectivamente da mais aguda para
a mais grave. O segundo acorde é arpejado no sentido ascendente, expondo as notas Fá#, Si e Mi
que constituem a 7a Maior, a 3
a Maior e a 6
a Maior, respectivamente. Tal sequência evolui em
paralelo no sentido descendente nas três primeiras cordas até a 1ª casa, como mostra a figura
abaixo.
86
Fig. 30 - Estudo 4, compassos de 53 a 55
Tal sequência culmina num acorde de Fá Maior invertido com 7a
Maior, 5a e 11
a
aumentadas, tendo um Lá como nota do baixo. Esse acorde é apresentado em fragmentos de três
notas arpejadas nos sentidos descendente e ascendente, e tais fragmentos são executados
mantendo os baixos nas 3a, 4
a, 5
a e 6
a cordas respectivamente.
Após essa fase, segue-se uma sequência de fragmentos de um acorde de Fá Maior com 7a
Maior e 11a aumentada no sentido ascendente, o que representa um relaxamento da tensão
provocada pela 5a aumentada, um Dó# que caminha para a 5
a justa, um Dó natural.
87
Fig. 31- Estudo 4, compassos de 55 a 59
A conclusão do estudo ocorre nos compassos 60 e 61, nos quais aparecem novamente os
acordes por sobreposição de 4as
, mas que aqui se apresentam invertidos, mantendo a 7a menor no
baixo, exceto para os dois últimos acordes da série, uma tríade de Mi menor que antecede o
acorde final e uma tríade de Lá Maior com duplicação da fundamental na posição mais aguda.
Fig. 32- Estudo 4, compassos de 59 a 61
88
4.4. Aplicabilidade
A tentativa de resolver o problema da repetição dos dedos da mão direita na execução de
acordes de três notas em cordas subsequentes, em sentidos opostos e alternadamente trouxe a
solução para o dedilhado e também uma plataforma de exercícios para o trabalho de
aproximação do polegar dos demais dedos (i m a) para que seja usado como suporte no fraseado
melódico exigido na improvisação.
Ampliar as possibilidades técnicas para a prática da improvisação foi o incentivo principal
para a elaboração de toda a série dos 10 Estudos, mas especialmente o Estudo 4, que, além do
aprimoramento técnico, promove uma compreensão do material melódico/harmônico
contextualizado em ambiente modal. Tal contextualização serve como exercício de memorização
das sequências de acordes num determinado campo harmônico. Essa memorização é importante
na medida em que se pode aplicar as relações gráficas e sonoras provenientes da execução de tais
acordes em contextos diferentes, mas que utilizam o mesmo material escalar, o que ocorre
frequentemente com o repertório sobre o qual se pratica a improvisação.
Pode-se concluir, portanto, que o Estudo 4 promove ganhos consideráveis no âmbito
técnico e também no melódico/harmônico, aumentando a mobilidade na execução de acordes e
desenvolvendo a visão das possibilidades musicais no braço do instrumento no contexto da
improvisação.
Tais ganhos podem ser computados positivamente também se considerarmos que o
aprimoramento da técnica é um fator determina uma melhora em amplo espectro no mecanismo
do violonista, que poderá utilizar tais princípios em outros contextos em que apareçam arpejos,
como no caso da execução de peças clássicas.
89
4.5. Exequibilidade
O Estudo 4, por permitir uma execução em andamento rápido e causar um efeito
virtuosístico, sugere um nível de dificuldade mais elevado do que aquele realmente encontrado
pelo violonista que o executa.
A partir do momento em que o intérprete interioriza a movimentação, principalmente da
mão direita, são poucas as ocasiões em que ele é desafiado. Há, no entanto, algumas que
merecem uma atenção especial. Acordes em sequência trazem o problema do salto com vários
dedos ao mesmo tempo, o que pode gerar ruídos provenientes do atrito com as cordas e uma
perda precoce da vibração das notas causada pelo processo de troca de posição.
Para contornar o problema, foi necessário o uso de estratégias de digitação. A primeira
delas ocorre logo no compasso 3.
Fig. 33 - Estudo 4, compassos de 1 a 4
No trecho acima, as letras representam os dedos da mão direita e os números, os dedos da
mão esquerda: 1 para o indicador, 2 para o médio, 3 para o anular e 4 para o mínimo. Os
90
números circulados representam os números das cordas do violão, que são numeradas da mais
aguda para a mais grave.
O último acorde do compasso 2 tem como nota mais aguda um Si na sétima casa
pressionado pelo dedo 4. A nota imediatamente a seguir é um Sol na 2ª corda e na oitava casa.
Como o dedo 4 está encarregado de produzir a nota anterior, o intérprete usa o dedo 3 para
pressionar a referida nota Sol, sendo as demais notas do acorde produzidas com a ajuda de uma
meia pestana11
na sétima casa. Essa sequência de dois acordes é repetida dentro do mesmo
compasso, mas o terceiro acorde, que é repetição do primeiro, mostra uma indicação de digitação
diferente, elegendo os dedos 4, 3 e 2 para a mesma função. Isso ocorre devido à procedência e à
consequência da frase. Apesar de diferentes, ambas as digitações da mesma estrutura acórdica
são adequadas aos momentos em que aparecem no discurso musical.
No compasso 26 ocorre novamente a estratégia de troca de digitação para um mesmo
acorde na tentativa de preparar o acorde seguinte. Os dois últimos arpejos do compasso referem-
se ao mesmo acorde, cujas notas aparecem primeiramente no sentido descendente e, logo a
seguir, no sentido contrário. Na fase descendente, a nota Mi sobre a 3ª corda na oitava casa
aparece pressionada pelo dedo 4. Na fase ascendente, a mesma nota aparece pressionada pelo
dedo 3 devido à nota Lá sobre a 2ª corda na décima casa pertencente ao primeiro acorde do
compasso 27. Tal nota deve ser alcançada com o dedo 4 para preservar a sustentação da nota
anterior. Essa movimentação pode ser observada na figura a seguir:
11 A pestana ocorre quando se pressiona com um único dedo da mão esquerda, geralmente o dedo “1”, mais
de uma corda sobre a mesma casa. A meia pestana é conseguida pressionando-se três das seis cordas do violão sobre
a mesma casa com um único dedo.
91
Fig. 34 - Estudo 4, compassos de 25 a 27
Situação idêntica, porém em outro tom, ocorre no compasso 30. Os dois últimos arpejos do
compasso correspondem a um mesmo acorde, que se apresenta em dois sentidos, o descendente
seguido pelo ascendente, sendo que a nota Si# aparece na fase descendente pressionada pelo
dedo 4; na fase ascendente, essa mesma nota aparece pressionada pelo dedo 3, deixando o dedo 4
livre para iniciar o arpejo seguinte, no início do compasso 31.
Fig. 35 - Estudo 4, compassos de 29 a 31
92
93
5. Estudo 5
5.1. Apresentação
O Estudo 5 é dedicado à prática do descolamento vertical da mão direita e utiliza para tal
um pequeno arpejo de três notas, disparadas por p i m, que atuam em cordas subsequentes,
abrangendo as quatro regiões possíveis para essa configuração. Devido ao efeito de continuidade
O arpejo desenhado por p m i tem o resultado sonoro próximo ao do tremolo12
e é usado
frequentemente em peças para violão solo, como, por exemplo, Asturias, composição de Isaac
Albeniz (1860-1909), transcrita para violão por Francisco Tárrega (1852-1909).
Fig. 36 – Trecho de Asturias, de Isaac Albéniz.
12 Efeito de continuidade construído a partir do movimento coordenado dos dedos p i m a, sendo p
encarregado de produzir os sons nos bordões, que normalmente arpejam um acorde que tem a função de base
harmônica, enquanto i m a atuam numa mesma corda prima criando o efeito final, uma imitação do som causado por
uma palheta percutindo repetidamente as cordas de um bandolim ou uma guitarra portuguesa, por exemplo.
94
A figura 36 acima mostra um trecho da transcrição de Asturias em que aparece um arpejo
similar ao abordado no Estudo 5, no qual o primeiro evento são duas notas atacadas no primeiro
tempo do compasso 17, sendo uma delas, o baixo em Mi produzido na 6a corda solta, e a outra,
um Mi oitava acima produzido na 5a corda. Cada grupo de tercinas representa um arpejo em que
a nota mais grave corresponde ao polegar, a nota intermediária ao dedo indicador e a nota mais
alta ao dedo médio.
As notas atacadas por i m permanecem como um acompanhamento fixo enquanto o
polegar desenha a linha melódica. É aqui que reside o principal diferencial em comparação com
a estrutura do arpejo abordado pelo Estudo 5, no qual todo o grupo varia e todos os dedos
envolvidos no arpejo trocam de corda a cada grupo rítmico.
No Estudo 5, o polegar também trabalha próximo aos dedos indicador e anular, o que é
uma constante nesta série de estudos, como já mencionado anteriormente. Um polegar ativo e
95
próximo aos dedos da mão direita pode dar bastante flexibilidade técnica, principalmente na
improvisação, objetivo inspirador desta obra como um todo.
5.2. Objeto técnico
O Estudo 5 dedica-se ao deslocamento da mão direita enquanto produz arpejos de três
notas com p i m. O anular não foi incluído nesse arpejo para que haja mais opções de
deslocamento da mão direita, o que proporciona maior aproveitamento do exercício.
Para entender melhor a estrutura do Estudo, devemos observar a figura a seguir:
Fig. 37 – Estudo 5, compassos de 1 a 8
Como se pode observar, os arpejos p i m deslocam-se a cada tempo do compasso, sendo
que o polegar ataca sucessivamente as 6a, 5
a, 4
a e 3
a cordas num caminho de ida e volta,
movimento que se repete quatro vezes.
Essa mesma estrutura de arpejos será respeitada até o final do Estudo.
96
O polegar deve atacar as cordas sem o recurso do apoio e ligeiramente projetado no sentido
do distanciamento do dedo indicador, já que o movimento natural dos dois dedos tende a
conduzi-los ao choque.
Sem o recurso do apoio, a mão direita fica vulnerável no momento da recolocação de p i m
no próximo grupo de cordas a serem atacadas. Por esse motivo, o intérprete deve usar o recurso
do contato prévio com a corda, ou seja, numa fração de segundo anterior ao ataque os dedos
tocam as cordas, como para se certificarem do correto posicionamento, e só então disparam o
movimento. Esse conjunto de movimentos deve ser feito tão sutilmente que o bloqueio da
vibração das cordas pela aproximação dos dedos não deve ser percebida pelo ouvinte, que deverá
sentir apenas a fluência natural do discurso musical, sem nenhum tipo de interrupção.
A mão esquerda é mais estática neste Estudo, mantendo-se fixa na sustentação de acordes
por longos períodos, geralmente de oito compassos, como mostra a figura a seguir:
Fig. 38 – Estudo 5, compassos de 9 a 48
97
Para o efeito de fluência dos arpejos em deslocamento, os dedos da mão esquerda devem
permanecer pressionando as cordas durante toda a peça, o que já se torna um obstáculo devido à
extensão dela, que abrange um período equivalente a 173 compassos.
Apesar de o foco principal do estudo ser o controle sobre o deslocamento da mão direita, a
peça pode e deve ser também utilizada como um exercício de resistência, já que em muitos
momentos o intérprete deve lançar mão de estratégias específicas para superar a fadiga
provocada pelo longo período pressionando as cordas do instrumento.
A primeira situação que requer um cuidado especial ocorre no período compreendido entre
os compassos 17 e 32.
98
Fig. 39 – Estudo 5, compassos de 17 a 32
No compasso 17 e 18, período no qual é exposto o ciclo completo de arpejos, pode-se
observar que a digitação sugere uma pestana parcial com o dedo indicador da mão esquerda, aqui
representado pelo número 1. A pestana deve ser parcial, pois as 2a e 3
a cordas devem permanecer
abertas para que o efeito harmônico do acorde se estabeleça da forma desejada. Esse tipo de
pestana não é natural e exige uma torção do dedo indicador, que deve pressionar os três bordões,
mantendo as três primas isentas de pressão, o que exige também um esforço extra do polegar da
mão esquerda que dá o suporte na parte posterior do braço do instrumento.
Na sequência, na mudança de acordes que ocorre no compasso 25, há um problema de
ordem mecânica que exige muita destreza do violonista, pois a última nota do arpejo anterior, o
Lá na 3a corda, é pressionada com o dedo 2, e a primeira nota do próximo acorde, um Sol na 6
a
corda, também deve ser pressionada com o dedo 2, já que todos os outros dedos já possuem
funções definidas. Esse salto com o mesmo dedo, num intervalo de uma colcheia, é um ponto
muito delicado e de difícil solução, restando ao violonista apenas a opção da destreza para
superar o problema.
Outro momento que merece atenção ocorre entre os compassos 57 e 64.
99
Fig. 40- Estudo 5, compasso de 57 a 62.
No compasso 57 os dedos 2, 3, 1 e 4 encontram-se na 6a, 5
a, 4
a e 3
a cordas sobre as casas
3,3, 2 e 4, nessa ordem e respectivamente.
No compasso 61, apenas o dedo 2 se movimenta meio tom abaixo, criando uma situação
forçada sob o aspecto ergonômico, já que o dedo 2 vai ocupar a mesma casa do dedo 1, mas
ambos em alturas invertidas. A ergonomia natural favoreceria o dedo 1 na 2a casa da 6
a corda e o
dedo 2 na 2a casa da 4
a corda e não o contrário, como ocorre. A questão é que para que seja
mantida a fluência da execução, não se pode trocar os outros dedos de posição, o que
interromperia a vibração das cordas. Sendo assim, restou apenas a opção da colocação forçada
do dedo 2 sobre o dedo 1 na mesma casa.
No compasso 63 acontece novamente a pestana parcial com o dedo 1, deixando agora
apenas a 1a corda aberta.
O momento crítico da execução da peça acontece entre os compassos 80 e 81 em que há
uma mudança brusca de região do braço do instrumento, sendo que o acorde de chegada é de
difícil execução, o que exige muito preparo e prévia racionalização por parte do violonista.
Fig. 41- Estudo 5, compasso de 78 a 85.
100
O acorde que se inicia no compasso 81 possui a fundamental localizada na 5a corda
pressionada com o dedo 2 na 7a casa do violão. Partindo-se do fato de que no acorde anterior o
dedo 2 estava pressionando também a 5a corda, porém na 2
a casa, temos um salto de cinco casas
na direção de um acorde que apresenta uma configuração bem dilatada no que diz respeito à
digitação da mão esquerda. A solução aqui é usar o dedo 2 como dedo guia, ou seja, o dedo de
referência, já que ele permanece na mesma corda e basta, portanto, deslizá-lo para a nova casa
para posteriormente acomodar os outros dedos em suas devidas posições. O momento crítico da
passagem ocorre depois da chegada do dedo 2 à 7a casa, quando é preciso acomodar o dedo 3 na
4a corda, duas casas à diante, obrigando o instrumentista a executar uma abertura muito alargada
e antinatural para esses dois dedos. Para reduzir o incômodo, tem-se de lançar mão do conceito
de mudança dos dedos da mão esquerda por ordem de disparo dos dedos da mão direita, o que
gera um tempo extra, necessário para acomodar os dedos em posições menos ergonômicas.
5.3. Plataforma musical
O Estudo 5 é construído quase que totalmente sobre uma sequência de acordes encadeados
pelo menor caminho possível, em ambiente tonal e inspirada nas obras orquestrais de Tom
Jobim, destacando-se especialmente “Amparo” e “Banzália”.
101
As funções harmônicas foram escolhidas com o intuito de manter a 1a e a 2
a cordas
abertas na parte inicial da peça, aproveitando a geração mais rica em harmônicos por parte das
cordas soltas, além de evitar o esforço excessivo da mão esquerda, evitando, na medida do
possível, pestanas decorrentes de encaminhamentos mais complexos. Algumas pestanas, no
entanto, foram inevitáveis, já que a sequência pretendida as exigia para maior clareza funcional e
lisura estética, como é o caso mostrado abaixo.
Fig. 42 – Estudo 5, compassos de 67 a 76.
A pestana usada para montar o acorde de Fá# diminuto com 7a maior (F#
o7M) foi
necessária. Se fossem mantidas abertas a 1a e a 2
a cordas, o acorde em questão contaria com a
presença da nota Mi natural, uma 7a menor, que, além de se chocar com a 7
a diminuta (Mib)
mencionada na 4a corda, descaracterizaria o efeito dominante do acorde. Esse acorde diminuto é,
na verdade, uma inversão de Si dominante com 9a menor e 11
a aumentada, com a tônica
subentendida. Caso fosse analisado como um Si dominante, a nota Mi solta seria uma 4a justa, o
que novamente descaracterizaria o seu efeito dominante.
O Estudo 5 se desenvolve na tonalidade de Lá menor, mas diversas modulações sucessivas
e substituições funcionais fazem com que a sensação de uma tonalidade central fique menos
óbvia. Apesar de as modulações se mostrarem por vezes bem evidentes, o movimento dos dedos
102
nem sempre sugere a dimensão da mudança, pois eles caminham na maior parte do tempo pelo
menor caminho possível, muitas vezes de apenas um semitom.
Fig. 43 – Estudo 5, compassos de 49 a 57
No compasso 49 o acorde desenhado pelo arpejo é um Ré Maior com 7a Maior, 6
a Maior e
9a Maior, com o baixo em Lá. As extensões de 6
a e 9
a são provenientes da vibração das 2
a e 1
a
cordas abertas, produzindo as notas Si e Mi, respectivamente. No compasso 53, o baixo
movimenta-se meio tom em sentido descendente, gerando um acorde híbrido. Esse caráter
híbrido é dado pelas já mencionadas cordas soltas, Si e Mi, que nesse novo acorde desempenham
os papéis de 5a diminuta e 7
a Maior, respectivamente. A nota Si, especialmente, é a nota que gera
a ambiguidade na análise do acorde, que tem o efeito funcional de IV grau menor caminhando
para a dominante. As notas presas do acorde do compasso 53 formam um Fá menor com 6a
Maior e 7a Maior que caminha para um acorde de Sol suspenso, como será demonstrado a seguir.
No entanto, as notas soltas tendem a interferir nesse caráter subdominante pela presença da nota
Si, que poderia nos levar a analisar o acorde como um diminuto. A escolha da análise do acorde
como um IV menor, e não como um diminuto, deve-se ao fato de que as cordas soltas, presentes
em toda a sequência até este momento, funcionam com um corpo estático, uma espécie de pedal,
que, com a repetição, tende a ocupar um papel secundário na atenção auditiva, fazendo com que
103
as vozes em movimento ganhem maior destaque e, consequentemente, a capacidade de desenhar
um caminho harmônico mais claro e definido.
No compasso 55 o acorde em questão também apresenta ambiguidade. Analisado sem as
cordas soltas, é claramente um acorde suspenso, tendo como tônica a nota Sol. Entretanto, a
segunda corda solta, a nota Si, desempenha o papel de 3a Maior, o que dá uma função dupla ao
acorde, que pode então ser encarado como subdominante com 2a no baixo, o que na verdade
seria um acorde suspenso na posição de V grau ou ser considerado um dominante com a 4a justa
como nota de tensão. As duas análises, portanto, são plausíveis, já que a resolução da cadência
vai na direção de uma nova tonalidade, uma modulação passageira representada por um acorde
de Dó Maior, 7a Maior e 9
a com Sol no baixo.
A partir do compasso 73, a peça explora outra região do braço do instrumento,
desenvolvendo-se a partir da tonalidade de Mi Maior. Os acordes agora se concentram mais nas
cordas intermediárias, deixando livres a 6a e a 1
a cordas, duas notas Mi separadas por duas
oitavas.
104
Fig. 44 – Estudo 5, compassos de 72 a 84.
A figura 45 mostra um trecho em que passam a aparecer como elementos constantes as
duas notas Mi soltas, aquela correspondente à 6a corda e a outra correspondente à 1
a corda. Essas
duas notas Mi farão, a partir desse trecho, até a volta para a repetição da primeira parte que
conduzirá à parte final, o papel de notas pedal.
5.4. Aplicabilidade
A aplicabilidade desse tipo de arpejo mostra-se mais importante na medida em que o
violonista se aventura pelos caminhos do estudo dos arpejos das tríades aplicados à
improvisação.
105
As tríades, apesar de constituírem um assunto básico do estudo da teoria musical, no
universo da improvisação adquire uma dimensão muito mais expressiva, pois sua aplicação
transcende a própria prerrogativa teórica que a define.
Uma tríade pode ser apenas a forma básica de um acorde, mas pode ser parte de uma
estrutura mais ampla, como mostra a figura a seguir:
Fig. 45 – Tríades sobre o modo Lídio.
A figura acima mostra um modo Lídio organizado numa sequência de terças para que seja
possível visualizar as estruturas triádicas possíveis.
Um modo Lídio é normalmente usado como matéria-prima para a improvisação sobre a
família dos acordes maiores com 7a Maior que desempenhe preferencialmente a função IV grau
no campo harmônico, função compatível com a 4a aumentada, nota característica do modo.
As tríades organizadas da forma exposta na figura 46 separam certas notas do modo, que,
organizadas em forma de arpejos, são utilizadas no contexto da improvisação como uma
estrutura definida de colorido destacado e particular.
106
A primeira tríade, a de Dó Maior, dá destaque para a tônica, a 3a Maior e a 5
a justa, notas
básicas, de caráter objetivo e denso. Já a segunda tríade, um Mi menor, destaca a 3a Maior, a 5
a
justa e a 7a Maior, menos objetiva do que a de Dó maior tendo a 7
a Maior como um componente
dissonante característico do discurso jazzístico. A terceira tríade da série dá destaque para a 5a
justa, a 7a Maior e a 9
a, uma estrutura mais complementar e menos objetiva do que a tríade
principal, apresentando extensões em maior número do que as notas básicas. Num contexto
melódico, o uso de notas mais afastadas da tríade básica confere um efeito mais leve e fluido,
sem a confirmação óbvia dos elementos mais básicos. A quarta tríade da série destaca uma parte
ainda mais alta da escala, utilizando a 7a Maior, a 9
a Maior e a 11
a aumentada, nota característica
do modo Lídio,
Na verdade, todo campo harmônico em tríades de um determinado modo pode ser utilizado
no contexto da improvisação para destacar notas que tenham funções estruturais específicas,
criando um ambiente sonoro característico. Se estendermos esse conceito a todas as escalas
disponíveis, teremos um número bem expressivo de possibilidades a serem estudadas e
aplicadas.
Partindo do pressuposto de que tríades são recursos que permitem uma larga utilização no
contexto da improvisação, a preparação técnica para a sua aplicação torna-se um quesito de
considerável importância.
5.5. Ezequibilidade
O Estudo 5, no que diz respeito à mão direita, apresenta aspectos a serem trabalhados mais
na área motora do que na muscular, exigindo muita atenção e paciência por parte do violonista.
Os maiores desafios concentram-se, na verdade, na mão esquerda.
107
O efeito de continuidade proposta pela mão direita e a característica estática dos acordes
construídos pela mão esquerda passam a exigir desta alguns aspectos que configuram
importantes obstáculos.
O primeiro deles é a resistência muscular. Muitos acordes são mantidos por períodos
longos, de até oito compassos, e em alguns casos com aberturas incômodas e não ergonômicas.
Outro problema é a mudança de um acorde para o outro, muitas vezes de difícil execução
também em virtude do efeito de continuidade que não deixa um espaço confortável para essa
mudança.
Um ponto crítico que pode ser destacado como exemplo é o trecho compreendido entre os
compassos 80 e 81.
Fig. 46 – Estudo 5, compassos de 77 a 85.
O acorde de Mi Maior com 9a adicionada, mencionado nos compassos 79 e 80, está
posicionado no começo do braço do violão, numa posição razoavelmente confortável para o
instrumentista. O salto necessário para que se atinja o acorde proposto no compasso 81 é bem
extenso e abrange um espaço de cinco casas. Além do salto extenso, outro aspecto que dificulta a
execução é a abertura necessária entre os dedos 2 e 3, que são os primeiros a serem exigidos pela
108
digitação da mão direita e encontram-se afastados pelo espaço de duas casas. O salto, somado à
necessidade de ordenação dos dedos exigida pelo ataque da mão direita e associado à abertura
desconfortável, faz da referida passagem um ponto de extrema atenção por parte do intérprete.
O Estudo 5 pode ser considerado o mais desiquilibrado da série, se levarmos em conta a
proposta inicial, totalmente voltada para a mão direita, em contraposição à toda gama de
dificuldades resultantes para o trabalho da mão esquerda. As características harmônicas do
Estudo, associadas ao ciclo dilatado de mudanças de acordes, de caráter um tanto mântrico,
levaram a uma contaminação poética que acabou por conduzir mais a escolhas mais alinhadas
com o efeito musical do que ao objetivo prático. O resultado foi um estudo eficaz dentro de sua
proposta, mas com consideráveis efeitos colaterais sob o aspecto da execução. Curiosamente, o
violonista Fabio Zanon tem o Estudo 5 como o seu preferido entre os dez, tendo-o incluído no
programa de alguns de seus concertos.
109
6. Estudo 6
6.1. Apresentação
Executar escalas e frases melódicas em velocidade passou a ser uma meta desde o
momento que que assisti ao concerto de Paco de Lucia13
, no teatro de Cultura Artística, na
cidade de São Paulo, no final da década de 70.
A técnica apresentada pelo violonista beirava a perfeição e mostrava possibilidades
interpretativas muito variadas, o que fazia com que o violão, em suas mãos, parecesse ser um
instrumento simples de ser tocado.
Um desses fundamentos, no entanto, merece uma atenção especial – a velocidade na
execução das escalas. Essa velocidade talvez tenha sido um dos elementos facilitadores de sua
ampla aceitação, inclusive no mundo do jazz, ambiente que teve importante papel na
universalização de sua música.
A participação de Paco de Lucia em projetos como o Friday Night in San Francisco, disco
gravado ao vivo em 1981 ao lado de John McLaughlin (1942)14
e Al Di Meola (1954)15
ou como
13 Francisco Gustavo Sánchez Gomes (1947-2014), conhecido internacionalmente como Paco de Lucia, foi
um violonista espanhol de grande projeção mundial, responsável por difundir a música flamenca além das fronteiras
de seu país, dando sua contribuição musical para outros gêneros musicais, como o jazz, o pop e a música clássica.
14 Guitarrista britânico, também conhecido como Mahavishnu John McLaughlin, fundador da Mahavishnu
Orchestra, ao qual se atribui o papel de grande divulgador de um estilo musical que viria a ser conhecido como jazz-
rock.
110
convidado na gravação de Have You Ever Really Loved a Woman, do cantor pop canadense,
Brian Adams, teve importante papel na projeção do violonista.
Conhecida como picado, a técnica de execução de escalas em alta velocidade a partir do
ataque dos dedos indicador e médio da mão direita é uma característica comum entre os
violonistas flamencos16
, sendo, juntamente com os rasgueados17
, um dos alicerces técnicos do
estilo.
Com Paco de Lucia, durante o concerto acima mencionado, tive meu primeiro contato com
o picado18
, técnica que passou a ocupar o primeiro lugar entre minhas metas como violonista.
Na tentativa de desenvolver a tão almejada velocidade, empenhei anos a esse estudo; no
entanto, apesar do empenho, os resultados ficavam muito aquém do esperado. Foi uma época
muito importante, que me levou a muita reflexão e autoconhecimento físico, mental e emocional.
A busca pelos resultados delineou-se na criação de exercícios dos mais variados, repetidos
à exaustão, revisitados sob novas perspectivas de posicionamento e dinâmicas de estudo, sempre
15 Guitarrista americano, Alberto Laurence Di Meola ficou internacionalmente conhecido por suas fluência
e velocidade, importantes características de seu estilo. Ainda muito jovem, despontou no cenário mundial como
integrante do Return to Forever, importante grupo de jazz-rock liderado pelo tecladista Chick Corea.
16 Segundo Michaelis, música e dança típicas da Espanha
17 Tipo de toque, comumente relacionado com a música flamenca, na qual as cordas são atacadas em grupo
por um só dedo de cada vez, gerando um efeito percussivo característico do estilo, muito usado no acompanhamento
da dança.
18 Muito frequentemente usada pelos violonistas flamencos, o picado consiste em executar frases melódicas
ou escalares com os dedos indicador e médio, geralmente em alta velocidade e utilizando o toque com apoio.
111
com resultados parciais. Apesar de haver certamente um ganho no sentido esperado, nunca era o
suficiente para alcançar o desempenho de Paco.
Tais exercícios estavam sempre relacionados à pratica de escalas, as mesmas que eu usava
no estudo da improvisação, tentando assim desenvolver os dois aspectos concomitantemente, o
que mais tarde entenderia como um grande engano na busca pela velocidade.
Demorou muito tempo até ficar claro que o caminho da prática das escalas aplicada ao
estudo da velocidade não levaria ao fim que eu esperava.
A percepção de que talvez estivesse no caminho errado veio inesperadamente durante a
escuta da música Mediterranean Sundance, gravada no disco Friday Night in San Francisco, por
Paco de Lucia e Al Di Meola. A composição, uma espécie de plataforma para improvisação com
forte influência do estilo flamenco, inicia-se com uma introdução que consiste de arpejos em Lá
menor e Mi menor à qual se segue a exposição do primeiro tema, que se desenvolve até um ápice
de energia delineado por frases curtas, compostas de grupos rítmicos de cinco notas separados
por uma pausa. Os grupos de cinco notas são executados com extrema velocidade, efeito que
encantava as plateias que se expressavam com entusiasmados aplausos, como mostra a referida
gravação.
Na tentativa de estudar a famosa frase de Mediterranean Sundance, desenvolvi uma série
de exercícios de sextinas em semicolcheias, com uma pausa na última fração do grupo.
Esses exercícios sugeriam inúmeras fórmulas de sequências dos dedos da mão esquerda, o
que exigiu uma tabulação das possibilidades a serem estudadas uma a uma numa rotina diária.
Após alguns dias de prática, senti um implemento considerável na capacidade de execução
de notas simples em alta velocidade.
112
Naquele momento então percebi que o estudo da velocidade deveria ser conduzido de uma
forma completamente diferente daquela relacionada às escalas.
As frases curtas separadas por pausas trabalhavam o reflexo cerebral sem exigir demais da
musculatura. Além disso, a pequena pausa entre as frases produzia um efeito de relaxamento,
funcionando como um ponto de descanso para os dedos e o cérebro. Dessa forma, com a ajuda
de um metrônomo, foi possível dedicar-me intensamente a um exercício cujo foco principal era o
desenvolvimento do que passei a chamar de “reflexo da velocidade”.
Um aspecto importante a ser destacado é que as fórmulas deveriam ser executadas somente
nas cordas primas, ou seja, nas três mais agudas, de nylon e sem revestimento. Isso porque a
prática repetitiva de um exercício de velocidade causaria um desgaste considerável nas unhas da
mão direita, se aplicadas aos bordões, devido ao atrito causado pelo revestimento metálico, o que
conduziria a uma tentativa de ajuste técnico momentâneo para contornar o problema, terminando
por prejudicar o desenvolvimento do reflexo cerebral.
Tais fórmulas podem ser mais bem compreendidas por meio da figura 47.
113
Fig. 47 – Exercícios de velocidade, fórmulas de 1 a 4.
Para um resultado mais abrangente, as fórmulas deveriam ser executadas com os dedos
indicador e médio (i m) e com a utilização do toque com apoio ou sem apoio, repetindo a
fórmula até o final do braço do instrumento, seguindo as instruções mostradas na fórmula 1.
A figura acima apresenta fórmulas tocadas com os dedos 1, 2 e 4, cada uma propondo uma
sequência diferente. Respeitando-se as probabilidades matemáticas, pode-se alcançar um grande
número de fórmulas, suficientes para suprir meses ou até anos de prática sobre o tema.
A figura 48 mostra mais algumas possibilidades de exercícios com os dedos 1, 2 e 4,
iniciando com o dedo 1.
114
Fig. 48 – Exercícios de velocidade, fórmulas de 5 a 12
Ficou claro, a partir de então, que a busca da velocidade por meio da aplicação de
exercícios sobre o universo escalar não surtiu o resultado esperado, pois a musculatura entrava
em fadiga antes de o reflexo cerebral se estabelecer por completo. Os exercícios, por serem
extensos, sempre na amplitude de duas oitavas e buscando abranger, sem pausas, todas as regiões
do braço do instrumento, tinham muito mais valor no desenvolvimento da resistência muscular
do que no desenvolvimento da velocidade.
Nessa nova perspectiva do estudo da velocidade na execução de frases melódicas, os
resultados começaram a aparecer. Foi então que resolvi dedicar um dos estudos ao assunto.
6.2. Objeto técnico
O Estudo 6 é o primeiro dos dois dedicados ao desenvolvimento do picado.
115
Partindo do pressuposto de que o estudo da velocidade na execução de escalas ou frases
melódicas dá melhores resultados com a prática de frases rápidas, porém curtas, e com pequenos
espaços para descanso, foi construída a estrutura deste Estudo. Tal estrutura consiste de um
pequeno tema composto de duas partes distintas: uma frase rápida composta por três
semicolcheias executadas a 130 bpm19
e uma segunda em colcheias e mais lenta em colcheias,
com a função concomitante do desenvolvimento melódico e de descanso do stress causado pela
fase rápida do tema. Na fase mais lenta, o polegar é exigido para fazer não só o baixo, mas
também uma parte da melodia. O apoio melódico do qual o polegar se encarrega não é só uma
consequência técnica de uma melodia que exige tal ação, mas é parte da estratégia mantida em
todos os estudos da série: a de forçar o trabalho do polegar na área próxima à dos dedos i m a.
Exatamente como nos outros Estudos da série, o primeiro compasso mostra o que será
explorado durante toda a extensão da peça, como na figura abaixo.
Fig. 49 – Estudo 6, compassos de 1 a 3
19 Sigla que representa “beats per minute”, ou pulsações por minuto, referindo-se às marcações sonoras
emitidas pelo metrônomo.
116
O estudo inicia-se com a nota Ré da 4a corda solta, seguida das semicolcheias Sol, Lá e
Sib. Essa nota Ré, com duração de uma semibreve, desempenha, além do papel rítmico, o papel
harmônico ao se somar com as notas subsequentes. Essa frase é tocada com i m apoiados. Na
sequência, são executadas as notas Sib na 3a corda, tocada com o polegar; Mi da 1
a corda solta; a
nota Ré na 3a corda, também tocada com o polegar; e Fá e Sol na segunda corda, tocadas com i
m.
A pequena frase rápida que se segue ao primeiro baixo da peça é o objeto técnico principal.
Essa frase tem como objetivo trabalhar a explosão muscular seguida de um pequeno
relaxamento, estratégia descrita anteriormente e que tem como finalidade exercitar o reflexo da
velocidade, ao mesmo tempo em que se poupa os músculos de uma possível fadiga prematura.
As demais notas do compasso tocadas com o polegar ganham volume e corpo mais acentuados
devido à massa do polegar, maior do que dos outros dedos. Tal diferença dinâmica imprime uma
característica rítmica peculiar que, por vezes, remete a passagens constantes nos tangos de Astor
Piazzola, repletos de frases curtas e rápidas contrapostas a notas de maior duração. Tal
semelhança foi uma consequência acidental, não prevista, porém bem-vinda.
6.3. Plataforma musical
Neste Estudo, na maior parte do tempo a harmonia não é exposta a partir de acordes que
sustentam a melodia, mas é decorrente do próprio desenho melódico e do contraponto a duas
vozes determinado entre a melodia e o baixo, como pode ser observado na figura a seguir:
117
Fig. 50 – Estudo 6, compassos de 7 a 12
A partir do compasso 9, fica clara a progressão ascendente partindo do Sib tocado na 1a
casa da 5a corda que segue até seu ponto mais alto, no compasso 12, retornando
descendentemente até o ponto mais baixo, no compasso 15. Com exceção dos compassos 14 e
15, não aparecem acordes nesse trecho, sendo a harmonia percebida pela relação baixo/melodia.
O ambiente tonal torna-se mais evidente nos compassos 15 e 16, nos quais a sequência dos
acordes sugere uma preparação para a tonalidade de Ré menor por meio de seu dominante, o A7,
que aqui aparece alterado e precedido pelo seu dominante secundário, o E7, também alterado.
Essa passagem merece uma atenção especial, já que as funções dominantes não aparecem
de forma evidente, pois os trítonos não estão explícitos.
118
Fig. 51 – Estudo 6, compassos de 13 a 18.
No compasso 15, todas as notas, exceto o Ré#, pertencem à escala de Mi Surperlócrio20
,
também conhecida como Escala Alterada. A nota Ré# é uma aproximação cromática para o Mi
natural. As duas primeiras tríades maiores que progridem em paralelo são encontradas no mesmo
campo harmônico gerado pelo modo Surperlócrio; se encaradas como partes de uma função
dominante, evidenciam a 9a aumentada, a nota Sol, a 5
a aumentada, a nota Dó e a fundamental e
a nota Mi, no caso da primeira tríade da sequência.
20 O modo Superlócrio é o sétimo modo da Escala Menor Melodia Ascendente que, por suas características
estruturais, é muito utilizado na improvisação jazzística sobre acordes dominantes alterados. Por apresentar todas as
alterações possíveis para um acorde dominante, é também conhecido como “Escala Alterada”.
119
Fig. 52 – Modo Superlócrio com indicações das notas da primeira tríade da sequência.
No caso da segunda tríade do compasso, evidenciam-se a 9a menor, a nota Fá, a 5
a
diminuta, o Sib, a 7a menor e a nota Ré. Apesar de as tríades em paralelo não evidenciarem o
efeito da tensão característica da função dominante, a presença da 7a menor e das alterações no
desenvolvimento da frase dentro do compasso sugerem tal função.
Fig. 53 – Modo Superlócrio com indicações das notas da segunda tríade da sequência.
Na verdade, o uso das 4a e 5
a tríades do campo harmônico do modo Superlócrio na
sugestão da função dominante não chega a ser um recurso raro no ambiente jazzístico e foi
utilizado aqui propositalmente no intuito de evitar o efeito óbvio de um dominante convencional.
120
O compasso 16 explora a mesma ideia, utilizando agora a escala Dominante Diminuta21
.
O primeiro acorde do compasso 16 é composto pelas notas Sib, Réb e Fá# (ou Solb, por
enarmonia), 9a menor, 3
a Maior e 13
a, respectivamente, em relação à fundamental em Lá, nota
que aparece na posição mais grave no primeiro tempo do compasso. Tal acorde consiste de uma
tríade maior na primeira inversão, cujas notas encontram-se na escala Dominante Diminuta com
o primeiro grau sobre a nota Lá, como comprova a figura abaixo.
Fig. 54 – Escala Dominante Diminuta com indicações das notas da primeira tríade do compasso
16.
O segundo acorde do compasso 16 é formado pelas notas Sol, Sib e Mib, 7a menor, 9
a
menor e 5a diminuta, respectivamente, considerando-se a nota Lá como fundamental. Tal acorde
é uma tríade maior na primeira inversão, também encontrada na escala Dominante Diminuta.
21 É o segundo e único modo gerado pela escala diminuta. É composta de oito notas numa sequência de ½
tom e 1 tom sucessivamente e é utilizada em improvisação sobre acordes dominantes alterados.
121
Fig. 55 – Escala Dominante Diminuta com indicações das notas da segunda tríade do compasso
16.
A segunda parte do Estudo 6 desenvolve-se com uma estrutura similar à da primeira parte,
porém sobre o Ré Maior (tonalidade homônima maior), evoluindo sobre sucessivas modulações
até retornar à tonalidade inicial.
6.4. Aplicabilidade
O Estudo 6 é o primeiro dos dois dedicados ao desenvolvimento da velocidade na
execução de escalas e/ou notas melódicas constantes na série aqui analisada. Trata-se do
primeiro passo de um processo longo que envolve o equilíbrio entre os aspectos físico e motor.
Apesar de não exigir um esforço acentuado da musculatura, a prática deste Estudo torna-se
bastante complexa na medida em que muitos fatores, como posicionamento do corpo,
posicionamento das mãos, concentração, amplitude de movimentos e capacidade de tocar com a
ajuda do metrônomo têm de ser tratados concomitantemente para que se atinja um resultado
consistente. Pode ser usado tanto por músicos que dão preferência ao uso do toque com apoio,
como por aqueles que preferem o toque sem apoio, por violonistas eruditos ou populares,
122
jazzistas ou flamencos, já que todos esses estilos se beneficiam, com mais ou menos intensidade,
dos estudos de velocidade.
6.5. Exequibilidade
A estrutura da primeira parte deste Estudo, com o mínimo de acordes e mantendo o
discurso musical apoiado no aspecto melódico, torna propícia a prática da velocidade à parte da
questão da resistência muscular, permitindo ao intérprete dirigir sua atenção a outros aspectos
correlatos.
Na segunda parte, no entanto, apesar de soar de forma a sugerir a similaridade estrutural, o
estudo torna-se um pouco mais difícil de ser executado, já que os baixos mais distantes da linha
melódica exigem mais elasticidade dos dedos da mão esquerda. Assim, para que as aberturas
mais alargadas possam ser superadas, o intérprete deverá dedicar um tempo maior ao
desenvolvimento de uma estratégia de movimento, que vai desde a digitação correta até a noção
exata do tempo e da ordem de mudança de posição de cada dedo.
O Estudo 6 pode apresentar mais dificuldade se o executante optar pelo uso da técnica com
apoio em função da distância entre o polegar e os dedos indicador e médio.
No compasso 1, pode-se observar que, após a emissão do baixo, a nota Ré, as notas Si e Ré
nas segunda e terceira linhas da pauta, respectivamente, estão localizadas na terceira corda e são
executadas também com o polegar, enquanto as notas mais agudas são executadas pelos i m.
123
Fig. 56 – Estudo 6, compassos de 1 a 3
De uma forma geral, as dificuldades deste Estudo estão mais concentradas no aspecto
motor do que no muscular, sendo os equilíbrios rítmico e dinâmico das frases o grande desafio a
ser enfrentado e superado, o que exige paciência e persistência.
124
125
7. Estudo 7
7.1. Apresentação
O Estudo 7 é a continuação da prática proposta pelo Estudo 6, mas com as frases rápidas e
mais longas, sendo o tema principal constituído de sete semicolcheias.
O aumento do número de notas do tema principal, cuja estrutura rítmica será repetida
durante toda a extensão do estudo, tem como intenção acentuar a capacidade da execução das
escalas em alta velocidade em frase mais extensas.
Elaborado para ser executado em andamento de 140 pulsos por minuto, o Estudo 7 segue a
ideia do desenvolvimento do reflexo cerebral sem que se chegue à exaustão muscular; as frases
rápidas são sempre seguidas de momentos de relaxamento.
Pressupondo um preparo anterior proporcionado pela prática do Estudo 6, o Estudo 7
apresenta-se um pouco mais variado em sua forma, destacando momentos em que determinada
escala é executada na extensão de duas oitavas, utilizando as seis cordas do violão em uma frase
ininterrupta, seguidos de outros em que a velocidade é praticada sobre notas repetidas, além de
partes nas quais as frases rápidas são executadas com o apoio simultâneo dos baixos no primeiro
tempo do compasso.
Esses fatores complicadores tentam simular situações musicais provenientes do fraseado
proposto durante o transcurso da improvisação ou mesmo da execução de uma obra.
126
7.2. Objeto técnico
O Estudo 7, assim como o Estudo 6, também é dedicado à prática do picado.
Com frases mais extensas e aplicadas a variadas situações, este Estudo, além de trabalhar a
explosão muscular, dedica-se a preparar o intérprete para a execução de trechos escalares.
O tema principal aparece logo nos dois primeiros compassos, como mostra a figura abaixo.
Fig. 57 – Estudo 7, compassos de 1 a 2.
O tema é uma sequência de três notas por grau conjunto apresentadas no sentido
ascendente e descendente, alternadamente, repousando na nota mais aguda da série. É uma
aplicação musical dos exercícios técnicos dedicados à velocidade expostos anteriormente na
figura 47.
Após os dois primeiros compassos, surge uma frase de caráter escalar, composta por 23
notas, que explora a parte inicial do braço do violão, estendendo-se desde a primeira até a quinta
corda em semicolcheias.
127
Fig. 58 – Estudo 7, compassos de 3 a 4.
Esta frase é a meta almejada pelo Estudo, preparada pelos compassos anteriores que
desenvolveram a função de aquecimento para o desfecho em uma escala mais extensa e
executada em alta velocidade.
Tal ideia repete-se mais à frente, no trecho compreendido entre os compassos 5 e 8, como
mostra a figura abaixo.
Fig. 59 – Estudo 7, compassos de 5 a 8.
A estrutura mantém-se inalterada nos dois primeiros compassos do exemplo acima. É
constituída por uma pequena frase composta de seis semicolcheias e seguida de dois acordes que
128
ocupam o espaço rítmico de duas semínimas que desempenham a função de relaxamento
subsequente à explosão muscular anteriormente determinada.
Os compassos 7 e 8 constituem uma frase escalar escrita em semicolcheias e explora todas
as seis cordas do instrumento. Esses compassos constituem a conclusão da proposta técnica
reiniciada nos compassos 5 e 6.
Uma nova proposta técnica é abordada a partir do compasso 9 e explorada até o compasso
20. O grupo rítmico a ser executado com velocidade é agora composto por cinco semicolcheias
em forma de repetição de uma mesma nota nas primeiras quatro figuras do grupo. Nessa nova
etapa do Estudo, pode-se trabalhar a velocidade dos dedos indicador e médio da mão direita sem
exigir muito dos dedos da mão esquerda, bem utilizados nos compassos anteriores.
Fig. 60 – Estudo 7, compassos de 9 a 12.
Fica clara a busca pela alternância entre momentos de explosão muscular e relaxamento
como forma de trabalhar o reflexo da velocidade, ao mesmo tempo em que se evita a fadiga tanto
muscular como cerebral.
129
Merece atenção especial o trecho compreendido entre os compassos 30 e 36, no qual a
estrutura mostra-se diferente e sensivelmente mais complexa. Cada grupo de quatro
semicolcheias é composto por duas notas repetidas, ideia que se desenvolve durante seis
compassos. Nos primeiros tempos de cada compasso há um baixo com duração de uma
semibreve, executada simultaneamente com a primeira semicolcheia.
Fig. 61 – Estudo 7, compassos de 29 a 36
130
Tal trecho torna-se especialmente difícil se executado com o auxílio do toque com apoio,
tanto do polegar quanto dos “i m a”. Foi exatamente considerando a prática dessa situação que
esse trecho foi incluído no Estudo.
O movimento antagônico simultâneo do polegar em contraposição aos “i m a” é mais
simples quando executado sem a ajuda do toque apoiado. À medida que apoia o polegar ou os “i
m a”, o intérprete sente um considerável acréscimo de dificuldade que se acentua quando se
apoia ambos, polegar e “i m a”. Tal dificuldade ganha uma importância ainda maior quando os
dedos em questão são obrigados a trabalhar em rota de colisão determinada pela proximidade,
como podemos observar na figura abaixo.
Fig. 62 – Estudo 7, compassos 31 e 32.
No primeiro tempo do compasso 32, a nota Lá da melodia, executada sobre a terceira corda
na segunda casa, é emitida simultaneamente com a nota Lá do baixo, produzida pela vibração da
5a corda solta. Ambos os dedos, polegar e indicador, terão de apoiar-se sobre a 4
a corda, o que
constitui um momento de grande dificuldade, já que se chocarão no ponto de repouso, o que
anula o benefício do toque com apoio.
O fundamento do toque com apoio é a utilização da corda subsequente para bloquear o
fluxo do movimento, limitando artificialmente o percurso do dedo e propiciando ao violonista a
possibilidade de atacar a corda com maior vigor, sem o receio do contato com outras cordas, a
não ser as requeridas no momento em questão. Por esse motivo, o toque com apoio tende a
propiciar maior volume sonoro.
131
Para amenizar tal dificuldade, a estratégia constitui do desvio da rota de colisão entre as
duas partes. Projetando-se o polegar para a esquerda, no caso de um músico destro, obtém-se um
posicionamento no qual o contato entre as pontas dos dedos polegar e indicador torna-se
impossível, o que favorece a execução do trecho acima descrito.
O polegar projetado pode ser adotado como elemento constante de uma plataforma de
posicionamento de mão direita, já que é a mais funcional em situações extremas, como a descrita
acima, sem apresentar nenhuma contraindicação nas situações menos complexas.
O Estudo 7 pode ser executado com o toque sem apoio, o que levará a um resultado
diferente, tanto sob o aspecto da dinâmica, quanto da sonoridade. Para aqueles, no entanto, que
buscam a velocidade e o volume sonoro, aconselha-se o uso do toque com apoio.
7.3. Plataforma musical
O Estudo 7 inicia-se explorando elementos do modo Mixolídio #4 nos seis primeiros
compassos. Esse modo, gerado pela Escala Menor Melódica Ascendente, apresenta em sua
configuração, quando construído a partir da nota Ré, as notas Fá# e Sol#. O Mixolídio #4 é um
modo muito presente na música nordestina, o que confere ao Estudo um colorido que remete à
tradição da música brasileira regional.
132
Fig. 63 – Estudo 7, compassos de 1 a 5.
A parte que se segue à frase escalar localizada entre os compassos 7 e 8 desenvolve-se
sobre a tonalidade de Lá Maior, à qual se seguem constantes modulações, conferindo um caráter
tonal a essa nova fase.
Os acordes encaminham-se pelo menor caminho possível durante a maior parte da peça até
o compasso 30, onde começa a fase de preparação para o final. Esse trecho consiste em uma
frase extensa, construída a partir de notas duplicadas e ordenadas ritmicamente como
semicolcheias acompanhadas por baixos no primeiro tempo de cada compasso.
133
Fig. 64 – Estudo 7, compassos de 29 a 36.
A partir do compasso 36, inicia-se uma sequência de acordes intercalados com frases
escalares, compostas por sete semicolcheias. Os blocos formados por acordes e frases evoluem
paralela e ascendentemente com mínimas variações estruturais até o desfecho da peça, que se
constitui numa outra frase longa em semicolcheias e com notas repetidas aos pares que
caminham da primeira até a sexta corda.
A última frase da peça respeita a mesma estrutura do tema principal, sendo concluída em
um acorde de Ré Maior com 3a no baixo, a nota Fá#.
134
Fig. 65 – Estudo 7, compassos de 41 a 46.
7.4. Aplicabilidade
Apesar de a busca pelo aperfeiçoamento técnico aplicado ao estudo da improvisação ser o
objetivo principal do conjunto de estudos abordados neste trabalho, o Estudo 7 tem uma
aplicação mais ampla, podendo servir de exercício de apoio para violonistas pertencentes a
vários estilos que se utilizam da velocidade na execução de escalas como ferramenta de
expressividade. Dentre esses estilos, podemos destacar o violão flamenco, inspirador direto no
processo criativo deste Estudo.
135
O violonista que se dedica ao estilo flamenco deve estar sempre pronto para disparar frases
rápidas e voluptuosas em um volume suficiente para atingir o equilíbrio interpretativo quando
intercaladas com os rasgueados, recursos usados como base para os cantores e suas frases
repletas de melismas22
emitidas em alto volume e também para bailarinos executarem passos,
sapateados e batidas de palmas, elementos constantes do estilo.
Como o volume é um elemento importante para o suporte do canto e da dança,
consideravelmente ruidosos na cultura flamenca, o toque com apoio passa a ser um recurso
importante, já que proporciona maior projeção sonora do instrumento.
Também no violão brasileiro, em suas várias vertentes, a execução de frases de caráter
escalar associadas ao toque com apoio é bastante frequente. Violonistas como Baden Powell,
Raphael Rabello, Sebastião Tapajós, Toquinho, dentre outros, utilizaram e continuam utilizando
tal recurso em suas interpretações.
O repertório dedicado ao violão erudito recorre frequentemente ao uso do mesmo recurso.
Na obra de Villa-Lobos dedicada ao instrumento, por exemplo, observa-se a presença de
inúmeros trechos escalares. Peças como o Prelúdio no
2, o Concerto para Violão e Pequena
Orquestra e o Estudo no 7 comprovam a preocupação do compositor com o assunto.
7.5. Exequibilidade
22 Melisma é a técnica de variar a altura de uma nota relativa a uma sílaba de um texto cantado. A música
cantada nesse estilo é dita melismática, ao contrário da silábica, em que cada sílaba de texto corresponde a uma
única nota.
136
O Estudo 7 não apresenta maiores dificuldades em aspectos relacionados à resistência
muscular, mantendo o foco exclusivamente voltado para a velocidade.
A seleção de tal assunto como elemento a ser trabalhado com exclusividade, no entanto,
inclui uma série de preocupações simultâneas que tornam o trabalho sobre o referido estudo
razoavelmente minucioso e complexo, exigindo do violonista atenção redobrada no
posicionamento, na dinâmica do movimento de ambas as mãos, no relaxamento e na paciência,
já que o tempo de maturação da velocidade pode se estender por um período maior do que se
deseja.
São poucos os momentos que impõem ao instrumentista uma movimentação próxima ao
limite da ergonomia, destacando-se apenas o trecho do compasso 32, já descrito anteriormente,
no qual a proximidade da ação dos dedos i m a e do polegar cria um problema que demanda um
fino ajuste de posicionamento para aqueles que optam por trabalhar a peça com o uso do toque
com apoio.
As maiores dificuldades ficam por conta dos apoios simultâneos entre i m a e o polegar,
situação que ocorre poucas vezes no Estudo 7.
137
8. Estudo 8
8.1. Apresentação
Um dos assuntos abordados no estudo da improvisação é a prática dos arpejos, também
conhecidos como escalas acorde.
Tais arpejos consistem de notas de um determinado acorde executadas em sequência de
terças, ascendente ou descendentemente, na extensão de duas oitavas. Cabe aqui uma
consideração importante: arpejar notas ao violão consiste em tocar cada nota do acorde em uma
determinada parcela de tempo e em cordas diferentes. O entendimento da palavra arpejo no
estudo da improvisação é a citação de cada nota do acorde, sucessivamente em sua ordem
natural, podendo ou não estar em cordas diferentes.
Ao praticar esses arpejos, o intérprete memoriza a posição das notas do acorde nas mais
variadas regiões do braço do instrumento, estratégia muito útil quando se pretende criar as frases
improvisadas sobre uma determinada sequência harmônica.
O assunto relacionado aos arpejos aplicados à improvisação é extenso e complexo,
compreendendo aspectos técnicos, teóricos, harmônicos e estéticos, que fogem do âmbito desta
Tese.
A primeira etapa do processo de composição deste Estudo 8 consistiu em determinar as
digitações das tríades ou tétrades em suas formas fundamentais e inversões em todas as
tonalidades e regiões do braço do instrumento.
A segunda, consistiu na prática de tais digitações sob o enfoque da técnica, a fim de definir
as estratégias de movimentação para cada uma das digitações, que tendem a ser bem diferentes
138
umas das outras, o que leva a uma elaboração específica para cada uma, demandando grande
quantidade de tempo para essa experimentação de possibilidades.
Diferentemente do estudo das escalas, no qual a organização das notas por grau conjunto
cria uma situação mais favorável à execução e à memorização, os arpejos apresentam-se de
forma mais irregular, pois suas notas aparecem em distâncias mais variadas.
Logo nas primeiras tentativas de execução de um arpejo, fica claro para o instrumentista
que a técnica utilizada para as escalas não é suficiente para atender ao grande número de
variáveis apresentadas. Torna-se, portanto, necessário o desenvolvimento de um programa de
estudos específico para esse fim.
Na busca de um material confiável e abrangente que pudesse dar suporte para o
desenvolvimento da técnica de execução de arpejos ao violão, deparei-me com métodos de
improvisação jazzística, que, apesar de apresentarem um bom material sob o aspecto teórico, não
eram dedicados especificamente ao violão e pouco contribuíam como plataforma de exposição
de possibilidades mecânicas.
Foi quando recorri aos 12 Estudos de Villa-Lobos e dediquei-me ao Estudo de no
2, que é
dedicado ao assunto. Peça de alta dificuldade técnica, dedicada totalmente aos arpejos, o Estudo
no
2, de Villa-Lobos, explora o assunto com profundidade, desenhando sequências de notas
arpejadas por toda a extensão do braço do violão, exigindo do violonista uma profunda reflexão
sobre cada passagem, na tentativa de encontrar a melhor possibilidade interpretativa de trechos
sempre difíceis, no limite da ergonomia.
Foram muitos os ganhos técnicos provenientes do trabalho sobre o referido Estudo, mas
havia um aspecto ainda não contemplado. Os arpejos desenhados por Villa-Lobos não foram
organizados considerando uma futura utilização na improvisação jazzística; sua contribuição
restringe-se apenas ao âmbito técnico.
139
Fig. 66 – Estudo No. 2, de Villa-Lobos, compassos de 1 a 6.
Os primeiros seis compassos do Estudo no
2, de Villa-Lobos, já dão uma ideia de
diversidade dos arpejos abordados em termos de estrutura e abrangência do braço do violão.
O primeiro compasso mostra o arpejo de uma tríade de Lá Maior na extensão de três
oitavas, abrangendo desde a segunda até a décima segunda casa do braço do instrumento, ou
seja, um aproveitamento quase total da área útil do violão.
O segundo compasso apresenta um arpejo de Mi dominante com sétima menor, também na
extensão de três oitavas, mas de menor abrangência em termos de utilização do braço do
instrumento, tendo como última nota da sequência a nota Si, localizada sobre a primeira corda,
140
no sétimo traste. Ambos os arpejos mostrados nos dois primeiros compassos apresentam
regularidade em sua estrutura, que se repete em conteúdo a cada grupo de quatro notas.
O mesmo não ocorre no terceiro compasso, no qual o primeiro grupo de quatro
semicolcheias desenha uma tétrade diminuta, que ganha uma variante no segundo grupo, a nota
Si, que constitui uma 9a Maior em relação à fundamental do acorde. A abrangência, nesse caso,
também é bem menor, atingindo a nota extrema do arpejo, a nota Sol, sobre a primeira corda, na
terceira casa.
Essa irregularidade estrutural que ocorre em toda a peça torna-a pouco aplicável ao estudo
da improvisação, já que não proporciona uma dimensão organizada do conteúdo. Foi uma
consequência natural, portanto, imaginar um estudo dedicado aos arpejos que abordasse
características técnicas similares às contidas no Estudo no
2, de Villa-Lobos, mas que pudessem
ser aplicadas no contexto da improvisação jazzística.
Pode-se dizer então que o Estudo 8 abordado neste capítulo foi inspirado no Estudo nº 2 de
Villa-Lobos.
8.2. Objeto técnico
O objeto técnico do Estudo no
8 são os arpejos das tríades e tétrades na forma em que são
abordadas no estudo da improvisação.
Como as notas encontram-se, na maior parte das vezes, em cordas separadas, é necessária
uma abordagem muito diferente daquela utilizada na prática das escalas, na qual normalmente se
prioriza o uso dos dedos indicador e médio. Para a execução dos arpejos, todos os dedos da mão
direita devem ser utilizados, exceção feita para o dedo mínimo, cuja utilização é
141
tradicionalmente evitada. Nesse contexto, usa-se preferencialmente o toque sem apoio para os
dedos i m a devido à alternância constante de cordas.
A primeira parte do Estudo dedica-se aos arpejos na extensão de uma oitava, os quais
aparecem em diversas áreas do braço do violão, abrangendo regiões graves, médias e agudas, e
são substituídos de tempos em tempos por frases escalares. Tais frases foram inseridas no Estudo
com a finalidade de simular uma situação real que, durante um trecho improvisado, raramente se
atém apenas ao recurso do arpejo, que aparece normalmente inserido num contexto mais variado
no qual se pode encontrar escalas, sequências de intervalos e até acordes.
Um exemplo desse fato pode ser observado na figura abaixo.
Fig. 67 – Estudo 8, compassos de 3 a 8.
No compasso 5 do trecho acima, observa-se um arpejo de Sol menor com sétima menor
apresentado nas direções ascendente e descendente, consecutivamente. No compasso 6 há um
arpejo de Lá dominante com 5a aumentada seguido de uma escala que se estende da nota Lá
sobre a quarta corda até a nota Si bemol sobre a primeira corda. Esse é o ponto mais agudo da
frase que, ainda no mesmo compasso, inicia um movimento de retorno até a nota Ré na terceira
142
corda, primeira nota do compasso 7. Tal nota se configura como a tônica do acorde de Ré menor
arpejado ascendente e descendentemente até o final do compasso 8.
Outro aspecto importante a ser mencionado está relacionado com a digitação da mão
direita. Pode-se organizar o posicionamento das notas de um arpejo de diversas formas, e cada
uma delas resulta numa movimentação diferente dos dedos da mão direita, como mostra a figura
abaixo.
Fig. 68 – Estudo 8, compassos de 1 a 4.
Nos compassos 1 e 2, o arpejo de Ré menor com 6a Maior e 7
a menor é obtido com uma
digitação que compreende três cordas. Tal arpejo inicia-se pela fundamental, que é produzida a
partir da quinta corda sobre a quinta casa e pressionada com o dedo 4, tendo como nota mais
aguda um Dó localizado na terceira corda, pressionada com o quarto dedo.
Como descrito no compasso 1, a fundamental é disparada pelo polegar, e as duas notas
seguintes, pelos dedos indicador e médio por estarem localizadas nas quarta e terceira cordas
sucessivamente, movimento que corresponde à ergonomia básica do movimento em questão. As
143
notas Si e Dó encontram-se ainda sobre a terceira corda, o que sugere o uso dos dedos indicador
e médio, já que as notas aparecem por grau conjunto.
Já no compasso 3 a movimentação dos dedos da mão direita passa a incluir o dedo anular.
A fundamental, a nota Si bemol obtida sobre a quinta corda na primeira casa, é disparada pelo
polegar, sendo a 3a Maior, a nota Ré natural, emitida com o recurso da ligadura ascendente,
movimento que libera o dedo indicador para o disparo da 5a justa localizada sobre a quarta corda.
O dedo médio encarrega-se de produzir a 7a Maior do acorde, a nota Lá, na terceira corda sobre a
segunda casa. A última nota do arpejo, a 8a, é produzida também na terceira corda com a ajuda
do dedo anular. Em virtude da inversão do sentido do movimento do arpejo, que, a partir dessa
nota, inicia um movimento descendente em direção à fundamental, o dedo anular organiza a mão
direita de forma que os dedos anular, médio e indicador se encarreguem da terceira, quarta e
quinta cordas, respectivamente, respeitando a ergonomia da mão direita.
Pode-se observar, ainda no início do terceiro tempo do compasso 3, que a fundamental, Si
bemol, encontra-se na mesma corda que a 3a Maior, a nota Ré, última semicolcheia do grupo que
preenche o segundo tempo do compasso. Apesar de essas notas estarem localizadas sobre a
mesma corda, são disparadas com dedos diferentes. A nota Ré é disparada pelo dedo indicador,
enquanto a nota Si bemol é disparada pelo polegar. Essa digitação evita o uso repetido do
polegar, que, apesar de instintivo, deve ser evitado, pois em andamentos elevados pode gerar
uma tensão indesejada que dificultaria a fluência da execução da obra.
A partir do compasso 34, inicia-se um trecho de difícil execução, pois os arpejos passam a
ter duas oitavas de extensão e desenham-se verticalmente no braço do violão, abrangendo todas
as cordas do instrumento, evoluindo nos sentidos ascendente e descendente.
Arpejos verticais exigem uma elaboração mais complexa, já que p i m a têm de trabalhar
sobre as seis cordas, atacando pelo menos uma vez cada corda, o que gera um grande número de
possibilidades a serem elaboradas caso a caso.
144
Segue o primeiro exemplo:
Fig. 69 – Estudo 8, compassos 33 e 34.
Do grupo que compreende as primeiras cinco notas do arpejo que se inicia no compasso
34, três são produzidas pelo polegar e duas com a aplicação de ligaduras ascendentes exercidas
primeiramente pelo dedo 4 sobre a terça do arpejo, localizada ainda sobre a sexta corda, e pelo
dedo 3 sobre a oitava do arpejo, localizada sobre a quarta corda, como mostra a figura acima.
A escolha pela utilização do polegar para a execução da fase inicial do arpejo baseia-se em
dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao fato de tais notas encontrarem-se na direção
ascendente, partindo da sexta corda, o que exige do polegar um movimento natural, respeitando a
gravidade e a fisiologia do dedo. A ligadura torna-se oportuna, pois redime o polegar de
reposicionar-se para atacar duas notas seguidas com o movimento ascendente. Tal
reposicionamento consiste num movimento a mais, no sentido contrário ao da gravidade, que
colocaria o polegar novamente em condição de ataque. Com o uso da ligadura ascendente, o
polegar não se movimenta para o ataque dessa nota e permanece na posição ideal para atacar a
corda subsequente. O segundo fator é a ergonomia. Devido o encaixe natural dos dedos p i m a, é
instintivo manter o polegar responsável pelas três cordas mais graves quando a orientação da
frase é ascendente. Nesse caso, as ligaduras, a gravidade e a ergonomia associam-se
favoravelmente.
145
A sexta e a sétima notas do referido arpejo, as notas Dó# e Fá, são atacadas pelos dedos
indicador e médio, sem o uso do apoio, sobre a terceira e a segunda cordas respectivamente. A
oitava nota da sequência, um Láb, é também conseguida através de ligadura ascendente sobre a
segunda corda, o que evita a repetição do dedo médio, além de adiar o uso do dedo anular a ser
utilizado na primeira corda.
Na fase ascendente do arpejo, tal movimentação respeita o sentido do movimento do
polegar e a ergonomia da mão direita como um todo. Para a fase descendente, há a necessidade
de pequenas mudanças.
A nota extrema do arpejo, um Sib sobre a primeira corda, é atacada pelo dedo anular,
seguida pela nota Lá na segunda corda e produzida pelo dedo médio. A nota seguinte, um Fá
ainda sobre a segunda corda, é gerada com o auxílio de uma ligadura descendente executada pelo
dedo 4. Graças ao uso da ligadura, pode-se usar o dedo médio para o ataque sobre a nota
seguinte, um Dó localizado sobre a terceira corda.
Na sequência, a nota Si na quarta corda é executada pelo dedo indicador, seguida da nota
Lá sobre a mesma corda e produzida com o uso de uma ligadura descendente. Esse é um dos
pontos críticos da digitação, já que o único dedo disponível para a execução das notas restantes
passa a ser o polegar. No entanto, o uso de tal dedo na direção descendente não é indicado, pois
para cada nota seriam necessários dois movimentos: um de preparo, que ocorre no sentido
contrário ao da gravidade, e o movimento de disparo, que ocorre no sentido da gravidade. Por
esse motivo, a aplicação desse movimento em andamento acelerado tende a um resultado não
satisfatório devido à carga excessiva de trabalho para o polegar, que passaria a desempenhar o
papel equivalente ao de, pelo menos, dois dedos em movimento revezado.
Para evitar a sobrecarga do polegar, usa-se o dedo médio para o ataque da nota Fá na
quinta corda. O uso do dedo médio, nessa situação, exige um pequeno ajuste da mão direita
146
como um todo, a fim de manter o ângulo correto de ataque, preservando a uniformidade de
timbre, além de evitar que a unha enganche na corda.
A nota seguinte, a última do compasso, é produzida pelo dedo indicador, deixando livre o
polegar para o ataque da primeira nota do compasso subsequente, momento em que se inicia o
próximo arpejo.
A movimentação da mão esquerda exige menos cuidados específicos, mas merece também
uma atenção especial sobre alguns fatores. A sequência de arpejos na extensão de duas oitavas
demanda um considerável esforço muscular, tanto no sentido da movimentação alargada e rápida
dos dedos quanto no da resistência. Por esse motivo, a economia de energia é um fator relevante,
e uma estratégia específica para esse fim torna-se necessária.
No arpejo em questão, o uso da pestana poderia ser aplicado para todo o trecho, mas, como
mostra a Fig. 69, tal pestana ocorre apenas a partir da nota Dó# sobre a terceira corda. Dessa
forma, evita-se a pressão extra e desnecessária sobre todo o trecho.
Mantendo o foco sobre a economia de energia, é aconselhável que se mantenha a atenção
voltada para a dinâmica do movimento, procurando explorar a massa dos dedos, e não a força
muscular, princípio que tende a evitar a fadiga e, consequentemente, incrementar o rendimento
técnico.
Explorar a massa dos dedos constitui um princípio de valor psicológico com importantes
desdobramentos práticos. Ao mentalizar o fato de que os dedos têm massa e que essa, por si só, é
capaz de exercer a pressão suficiente sobre as cordas e os respectivos trastes para que se possa
produzir as alturas sonoras, o intérprete passa a relaxar o feixe de músculos responsáveis pelo
movimento antagônico entre o polegar e os dedos 1,2,3 e 4 da mão esquerda, sobre os quais
deposita a expectativa da pressão sobre o sistema corda/traste.
147
8.3. Plataforma musical.
O Estudo no
8 consiste numa sequência de arpejos apresentados em contexto tonal que é
interrompida de tempos em tempos por uma frase escalar. Os arpejos são geralmente tétrades
compostas por fundamental, terça, quinta e sétima, apresentando-se na forma diatônica ou com
algumas alterações.
A peça desenvolve-se na tonalidade de Ré menor, e apresenta frequentes modulações,
explorando funções harmônicas variadas que se espalham por toda a extensão do braço do
violão.
No trecho compreendido entre os compassos de 1 e 8, os arpejos formam a cadência I –
VIb – IVm – V – I, como pode ser observado na figura abaixo.
148
Fig. 70 – Estudo 8, compassos de 1 a 8
A escala se inicia no segundo tempo do compasso 8 a partir da nota Dó e desenvolve-se no
sentido descendente até o fim do compasso. Desempenha o papel de preparação para a repetição
do mesmo trecho, o qual se inicia a partir do compasso 9, estendendo-se até o final do compasso
15.
149
Fig. 71 – Estudo 8, compassos de 7 a 10.
8.4. Aplicabilidade
O Estudo 8 é dedicado aos arpejos, em sua maioria tétrades, na extensão de uma ou duas
oitavas.
O guitarrista Nelson Faria, no seu livro intitulado “Acordes, Arpejos e Escalas”, aborda
esse assunto, como o próprio título deixa claro, e a figura abaixo mostra um pequeno fragmento
desse seu trabalho, no qual o assunto é apresentado de maneira prática e objetiva. Um dos
tópicos, o arpejo sobre a tétrade Maior, consiste de uma representação na pauta das notas da
tétrade Maior seguida de cinco diagramas, um para cada região do braço do instrumento. Nos
diagramas, aparecem indicadas as digitações do referido arpejo na extensão de duas oitavas.
150
Fig. 72 – Acordes, Arpejos e Escalas, para violão e guitarra; Tétrades Maiores
Um pretendente ao domínio da arte da improvisação, ao dedicar-se ao estudo dos arpejos,
deverá conhecer ao menos todos as digitações referentes às tríades e tétrades básicas, as mesmas
utilizadas nas cifras de música popular e jazz, como demonstrado no exemplo dedicado
exclusivamente à compreensão da tétrade Maior. Esse trabalho deve ser desenvolvido para a
aquisição, memorização e posterior aplicação dos arpejos no contexto musical, o que exige muita
dedicação e disciplina por parte do estudante.
Dada a extensão do material a ser adquirido e praticado, o estudo dos arpejos pode se
tornar maçante e pouco inspirador. É na tentativa de contornar esse problema que se aplica este
Estudo.
Consistindo de arpejos em vários formatos e distribuídos pelas várias regiões do braço do
instrumento, o Estudo 8 pretende ser uma plataforma musical para a prática de arpejos,
permitindo ao músico o acesso e a prática das digitações já organizadas no contexto musical, o
151
que gera um ambiente mais lúdico e subjetivo, elementos que podem aliviar as tensões
emocional e física frequentemente associadas a esse tipo de trabalho.
Executar o Estudo 8, portanto, consiste num exercício mais completo quanto à aplicação
do assunto previamente estudado sob o aspecto teórico. Apesar de claramente dedicado à prática
da improvisação, esse Estudo é muito útil aos violonistas da área erudita, já que o conteúdo
técnico pode incrementar não só aspectos subjetivos, como a compreensão da problemática da
digitação e o exercício da dinâmica do movimento, como também se mostra muito conveniente
como ferramenta para o desenvolvimento da resistência muscular e da velocidade na execução
de arpejos.
8.5. Exequibilidade.
O Estudo 8 é provavelmente o mais desafiador da série, pois oferece obstáculos
importantes para ambas as mãos.
A mão esquerda é exigida sob vários aspectos, destacando-se em primeiro plano a
resistência muscular. O estudo está dividido em duas partes: uma, apresentando arpejos de uma
oitava de extensão, e a outra, apresentando arpejos de duas oitavas de extensão. A primeira série
de arpejos funciona como um aquecimento para a série posterior, aquela com arpejos de duas
oitavas. Mesmo mais leve, essa primeira série exige bastante destreza do estudante, pois, apesar
de mais simples, os arpejos devem ser executados em andamento ao redor de 120 bpm no
metrônomo e apresentam-se intercalados com trechos escalares, o que exige ainda mais
flexibilidade técnica por parte do instrumentista.
A segunda parte é bem mais exigente sob o aspecto muscular. Desenhando agora arpejos
na extensão de duas oitavas, o Estudo 8 passa a apresentar obstáculos referentes à resistência
152
muscular e, consequentemente, a exigir uma profunda racionalização de cada movimento no
sentido da economia de energia. Os arpejos aparecem quase sempre repetidos, apresentam-se em
grande número e, muitas vezes, são construídos com o auxílio de pestanas, o que dificulta ainda
mais o trabalho do violonista.
Fig. 73 – Estudo 8, compassos de 33 a 36.
A figura acima mostra a passagem para a segunda série de arpejos, na qual eles passam a
se apresentar na extensão de duas oitavas, o que acontece no início do compasso 34, onde podem
ser observadas indicações de digitação. As ligaduras tornam-se um recurso importante para a
movimentação de ambas as mãos, mas principalmente para a mão direita, cujos movimentos
devem manter-se o mais próximo possível da linha de conforto ergonômico. Ligaduras
representam para a mão direita pequenas pausas, momentos em que se torna possível a
realocação da mão como um todo e, consequentemente, a preparação para o próximo toque.
153
A qualidade sonora passa a ser um outro fator a ser destacado, pois, em virtude da
dificuldade na execução dos arpejos, somada ao andamento elevado, as notas tendem a ser mal
pressionadas e, por isso, soarem acompanhadas de ruídos de trastejado23
.
A mão direita não é tão sacrificada sob o aspecto muscular, mas deve respeitar uma
estratégia minuciosa de movimentação para que possa abranger toda a extensão do arpejo, que
agora passa a envolver as seis cordas do instrumento.
23 Ruído característico produzido quando a corda, ao vibrar, resvala no traste. Pode ocorrer em virtude da
regulagem do instrumento ou de uma nota mal pressionada pelo instrumentista.
154
155
9. Estudo 9
9.1. Apresentação
O Estudo 9 dedica-se a uma técnica muito peculiar utilizada por alguns importantes
violonistas brasileiros. Tendo em Baden Powell seu principal divulgador, essa técnica consiste
em atacar simultaneamente, com um único dedo da mão direita, várias cordas em movimento
contrário ao do polegar, encarregado da produção dos baixos. Os três i m a podem ser usados
alternadamente, o que proporciona uma considerável gama de possibilidades dinâmicas e
rítmicas.
A forma mais usual de se produzir uma batida de Samba ou Bossa Nova é usar o polegar
para produzir os baixos, sempre no primeiro e no segundo tempos do compasso, enquanto i m a,
em outras três cordas e respectivamente, produzem os sons mais altos, completando o acorde e a
figura rítmica, formando a base rítmico/harmônica necessária para o acompanhamento, como
mostrado na figura abaixo.
Fig. 74 – Exemplo de uma fórmula rítmico/harmônica utilizada na Bossa Nova.
156
Na técnica disseminada por Baden, cuja criação é atribuída a Meira24
(1909 – 1982), o
papel dos dedos i m a é substituído por um único dedo para cada ataque, como mostrado na
figura abaixo.
Fig. 75 – Fórmula rítmica da Bossa Nova com a utilização da técnica disseminada por Baden
Powell.
Como se pode observar na figura acima, as notas Sol, Si e Ré, na 3a, 2
a e 1
a cordas,
respectivamente, são atacadas na primeira colcheia com o dedo médio no sentido do agudo para
o grave; na segunda colcheia, com o dedo indicador, no mesmo sentido, sugerindo uma
alternância que deve prosseguir como um padrão.
O polegar utiliza-se do toque com apoio, repousando na corda adjacente e gerando,
portanto, a estabilidade necessária para o disparo dos movimentos de i m. Como resultado,
obtém-se um som mais volumoso e enérgico, bem apropriado para momentos de dinâmica mais
agressiva.
24 Jaime Florence, conhecido como Meira, violonista pernambucano que, transferindo-se para o Rio de
Janeiro em 1928, passou a integrar o cenário musical carioca, tocando com artistas como Noel Rosa e Dinho Sete
cordas. Foi professor de importantes violonistas, incluindo nomes como Baden Powell e Raphael Rabello.
157
A possibilidade da alternância dos dedos propicia também um acentuado acréscimo na
velocidade do toque, permitindo que a fórmula rítmico/harmônica possa ser executada também
em peças mais rápidas.
Na verdade, o Estudo 9 foi inspirado pelo arranjo de Baden Powell da composição de
Dorival Caymmi, a Lenda do Abaeté, na qual, na exposição da parte rítmica da música, o
violonista utiliza esse recurso.
Em virtude do andamento rápido proposto pelo arranjador, seria impossível executar a
referida parte do arranjo atacando da forma convencional, ou seja, usando um dedo para cada
corda. Daí vem a escolha pelo recurso descrito acima.
A figura abaixo mostra um trecho da parte mencionada do arranjo em questão.
158
Fig. 76 – Trecho do arranjo para violão de Baden Powell para a composição A Lenda do Abaeté,
de Dorival Caymmi.
Executado a aproximadamente 120 bpm, o trecho acima seria impossível de ser realizado
na forma mais comum, isto é, com i m a em cordas separadas tocando as semicolcheias.
A solução encontrada por Baden ao aplicar a técnica desenvolvida por Meira foi não
apenas pertinente, mas conferiu autenticidade e energia à passagem musical.
Alguns violonistas, como Raphael Rabello (1962-1995) e Toquinho (1946-), também
aplicaram esse tipo de toque em alguns de seus arranjos. No caso de Raphael Rabello, pode-se
destacar a versão de Lamentos do Morro, composição de Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955),
ou Garoto, como ficou conhecido. Nessa composição, em função do andamento rápido almejado,
o violonista aplica uma adequação do mesmo princípio técnico, como mostrado na figura abaixo.
159
Fig. 77 – Trecho do arranjo Raphael Rabello para a composição Lamentos do Morro, de Garoto.
No trecho acima, o violonista usa polegar e indicador para produzir o baixo em ostinato,
enquanto o dedo anular se encarrega de produzir os acordes no mesmo princípio descrito
anteriormente, deslizando-se sobre as três cordas e produzindo os sons quase que
simultaneamente. Dessa forma, Rabello imprimiu um ímpeto notável em sua versão da obra,
executando a peça num andamento rápido, em torno de 120 bpm, o que não seria possível se
usasse a forma tradicional, como acontece na gravação original do próprio Garoto, que foi
obrigado a executar a peça num andamento muito mais relaxado.
Antônio Pecci Filho, mais conhecido como Toquinho, também se vale desse recurso em
seus arranjos e composições. Em Regra Três, composta por ele e Vinícius de Moraes, apesar da
forte tendência do violonista à improvisação, que faz com que cada interpretação da música
160
apresente uma variação inesperada, pode-se notar claramente os dedos i m a atacando várias
cordas ao mesmo tempo, técnica desenvolvida por Meira.
Fig. 78 – Trecho da introdução da composição Regra Três, de Toquinho e Vinicius de Moraes.
A técnica introduzida por Meira tem, como se pode observar, diversas aplicações e tem se
mostrado um recurso importante em acompanhamentos e arranjos sempre que haja a necessidade
de se tocar acordes em alta velocidade.
O Estudo 9 foi concebido para exercitar tal conceito em amplo espectro, apresentando
variações de posição da mão direita, sendo aplicado nas regiões graves, médias e agudas, além
de em grupos de duas ou três cordas, propiciando o treinamento de tal recurso em todas as
opções possíveis.
161
9.2. O objeto técnico
O Estudo 9 propõe-se a trabalhar o toque característico desenvolvido por Meira e
disseminado por Baden Powell, que consiste no uso dos dedos i m a da mão direita para o ataque
de várias cordas simultaneamente.
O objetivo do referido Estudo fica claro logo nos primeiros compassos.
Fig. 79 – Estudo 9, compassos de 1 a 12.
Durante todo o período compreendido entre os compassos 1 e 7, os dedos i m a atacam três
cordas simultaneamente. Nos primeiros compassos, o dedo anular é o responsável pelo primeiro
acorde e, em seguida, os dedos i m, alternadamente, continuam a mencionar a parte alta dos
acordes.
162
O polegar deve ser sempre apoiado, pois dessa forma cria a estabilidade necessária para
que a m i possam atacar as cordas. Como o movimento dos dedos i m a é mais amplo, para poder
atacar três cordas simultaneamente sem o apoio do polegar, a mão direita tende a vibrar
demasiadamente, induzindo à tensão do antebraço e, consequentemente, ao erro.
A partir do compasso 17 começam as variações de posicionamento e de quantidade de
notas atacadas, como mostra a figura abaixo.
Fig. 80 - Estudo 9, compassos de 17 a 24.
No compasso 17, a parte alta do primeiro acorde, que se repete num grupo de três
colcheias, apresenta três notas. No compasso seguinte, as notas mais altas do acorde apresentam-
se em dois grupos de duas notas, sendo que as notas do grupo pertencente ao primeiro tempo do
compasso são produzidas na primeira e na segunda cordas, e as notas pertencentes ao segundo
grupo são produzidas na segunda e na terceira cordas. Os dedos i m, portanto, passam a atacar
duas notas simultaneamente, porém com alternância de posição, ora atacando as 1a e 2
a cordas,
ora atacando as 2a e 3
a cordas.
163
Essa alternância de posição e quantidades de notas atacadas faz parte do objetivo principal
do Estudo, que é o de propiciar o amplo domínio desse tipo de toque por meio das situações mais
variáveis e adversas.
A figura abaixo mostra, nos compassos 57 e 58, uma das situações mais extremas, na qual
o toque do polegar fica limitado pela posição das notas a serem atacadas por i m que se
encontram nas duas cordas subsequentes, impedindo, assim, o apoio do polegar.
Fig. 81 – Estudo 9, compassos de 57 a 60.
No compasso 57, o polegar ataca a nota Sol na 6a corda enquanto i m atacam as notas Si na
5a corda e D na 4
a corda solta nas primeiras três colcheias da frase. Nesse momento, torna-se
impossível o toque apoiado do polegar, já que a 5a corda será imediatamente atacada por i m.
Esse incômodo estende-se até as duas primeiras colcheias do compasso 59.
A partir do compasso 58, as duas notas atacadas por i m continuam a sequência de
intervalos de terça, que caminha ascendentemente, exigindo a constante mudança de posição de
mão direita.
164
Fig. 82 – Estudo 9, compasso de 57 a 72
Outro aspecto que vale ressaltar é a variação da posição do polegar que, em alguns
momentos, passa a atacar a 4a corda, obrigando a mão direita a trabalhar de forma contraída na
região médio/aguda, como mostra a figura abaixo.
165
Fig. 83 – Estudo 9, compassos de 73 a 88
A contração máxima da mão direita acontece no trecho compreendido entre os compassos
82 e 86, quando em vários momentos o polegar ataca a 4a corda enquanto i m atacam as 2
a e 3
a
cordas.
O Estudo 9, portanto, trabalha o conceito técnico introduzido por Meira em uma grande
gama de variações, preparando o violonista para essa aplicação em diversas situações.
166
9.3. Plataforma musical
O Estudo 9 desenvolve-se em compasso composto 6/8, sendo basicamente harmonizado
em tríades ou fragmentos de tríades nas vozes superiores. O baixo pode ser a repetição de uma
das vozes da tríade superior, mas pode também aparecer como um elemento pertencente a uma
outra função, o que nos leva a analisar a tríade nas vozes superiores como parte de acordes mais
complexos, como mostra abaixo.
Fig. 84 – Estudo 9, compassos de 1 a 12
No compasso 1, a tríade de Ré Maior, composta pelas notas Lá na 3a corda, Ré na 2
a e Fá#
na 1a, aparece acompanhada pelo baixo em Mi da 6
a corda solta, o que perfaz um acorde
suspenso, no qual Mi aparece como tônica, Lá como 4a justa, Ré como 7
a menor e Fá# como 9
a.
167
O acorde a seguir é uma tríade de Dó Maior composta pelas notas Sol na 3a corda, Dó na 2
a
e Mi na 1a. Nesse caso, o baixo em Mi faz parte da tríade, resultando num acorde de Dó Maior
com Mi no baixo.
Outro momento que apresenta uma forma um pouco mais complexa é o trecho
compreendido entre os compassos 49 e 52.
Fig. 85 – Estudo 9, compassos de 49 a 52.
No compasso 49, as notas altas localizadas nas três colcheias do 2o tempo aparecem na
forma um intervalo de 4a justa, mas que funcionalmente são uma parte da tríade de Sol Maior,
resultante da sustentação das notas Si e Ré produzidas no compasso anterior. Essas notas,
acompanhadas pela nota Sol no baixo, mostram a parte alta de uma tríade produzida em partes,
cada uma composta de duas notas, executadas em espaços rítmicos diferentes.
No compasso 50 a ideia se repete, mas o acorde resultante da tríade da parte alta em
combinação com o baixo tem um efeito um pouco mais dissonante. As notas Dó# e Fá
pertencentes ao primeiro tempo do compasso e as notas Láb e Réb do segundo tempo do
compasso formam uma tríade de Réb Maior. A junção dessa tríade com a nota Sol do baixo gera
um acorde que poderíamos encarar como um Sol dominante alterado, no qual Láb seria a 9a
menor, Réb, a 5a diminuta e Fá, a 7
a menor.
168
Nos compassos que se seguem ocorre uma situação semelhante. O acorde formado pelo
baixo em Sol e as notas superiores Si e Ré na segunda metade do compasso 51 formam a tríade
de Sol Maior, seguida no compasso seguinte pela nota Sol do baixo dando o suporte da região
grave às notas Láb e Dó, seguidas na segunda metade do compasso por Mib e Láb. Aqui, a tríade
de Láb Maior com o baixo em Sol gera um acorde que podemos encarar como uma tríade maior
com 7a Maior no baixo.
Outro aspecto constante na estrutura do estudo é o baixo pedal.
A cada modulação, o baixo tende a fixar-se numa nota pedal, dando suporte às tríades ou
aos intervalos de terça, sendo poucos os momentos onde essa regra é quebrada.
Um desses momentos ocorre quando a peça atinge a região mais aguda, e o baixo, para
gerar dramaticidade, caminha na direção ascendente. As notas altas, ao caminhar
descendentemente, não sugerem a resolução na região mais aguda, que ocorre no final do
compasso 40, como mostra a figura abaixo.
Fig. 86 – Estudo 9, compassos de 37 a 40.
No trecho que se segue, o baixo torna-se mais ativo, movimentando-se na mesma
proporção das notas altas até conduzir descendentemente a harmonia novamente para a
tonalidade de Sol Maior, o que ocorre no compasso 49, como mostra a figura abaixo.
169
Fig. 87 – Estudo 9, compassos de 41 a 52.
9.4. Aplicabilidade
A técnica de atacar várias cordas com apenas um dedo tem se mostrado muito útil para o
violonista criativo.
Os três dedos disponíveis para produzir acordes, i m a, passam a atuar de forma autônoma,
cada qual com uma capacidade praticamente irrestrita para produzir acordes, o que propicia um
considerável ganho em vários aspectos:
170
1) Velocidade - na técnica tradicional, como i m a são todos usados para produzir as notas
mais altas de um único acorde, há um limite definido em termos de velocidade de toque, já que
para cada ataque é necessária a recolocação dos três dedos antes do próximo ataque. A técnica
descrita neste capítulo permite a alternância dos dedos, o que implica possibilidade de um novo
ataque enquanto o dedo que pronunciou o primeiro ataque retorna à posição de repouso. Na
verdade, tal alternância pode ser estendida para o dedo anular, aumentando ainda mais as
possibilidades de emissão de acordes em velocidade.
2) Volume - para a aplicação consistente da técnica descrita neste capítulo, é necessário o
apoio do polegar que servirá como referência de posicionamento e elemento de estabilidade da
mão direita. Com a referência do polegar apoiado, i m a ficam livres para atacar as cordas com
vigor e energia. Nos exemplos que podemos observar em gravações de violonistas, como
Raphael Rabello, Baden Powell e Toquinho, nota-se como elementos comuns o volume e o
impacto causado quando utilizam-se de tal recurso. Não se pode negar que a qualidade sonora
fica mais debilitada se comparada ao toque tradicional, mas, nos contextos em que é aplicada
pelos violonistas citados, tal técnica torna-se essencial, até por que muito frequentemente tais
violonistas apresentavam-se, no caso de Raphael e Baden (ou ainda se apresenta, no caso de
Toquinho), acompanhados por outros músicos, como baixistas e bateristas, o que exige do violão
muito mais presença e percussividade.
3) Flexibilidade rítmica - a liberdade gerada pelo uso independente de i m a para produzir
acordes é um importante recurso para desenhar ritmos tanto em acompanhamentos quanto em
arranjos. No caso do samba, por exemplo, em que i m a tendem a imitar a figura rítmica do
tamborim, enquanto o baixo encarrega-se da imitação do surdo, marcando o tempo forte, a
independência de i m a gera uma enorme flexibilidade na pronúncia de figuras e variações
rítmicas. Não é raro, inclusive, o uso de tais dedos nos dois sentidos, ou seja, o uso do sentido
agudo-grave para gerar o som e o aproveitamento do sentido oposto, no momento da recolocação
171
do dedo na posição de ataque, para produzir um efeito percussivo complementar. Tais recursos
multiplicam as possibilidades numa proporção significativa.
Todos esses aspectos tornam a prática do Estudo 9 um importante recurso para a aquisição
do domínio dessa técnica.
9.5. Exequibilidade
O Estudo 9 apresenta um elevado nível de dificuldade para o executante.
Em primeiro lugar, o próprio objeto técnico abordado neste Estudo consiste de um
movimento muito específico, que foge aos padrões normais do comportamento da mão direita e,
portanto, precisa ser desenvolvido separadamente e depois aplicado ao contexto musical.
O processo de aquisição desse movimento pode apresentar-se como um obstáculo de difícil
transposição para aqueles que não se utilizam do apoio do polegar, elemento estabilizador do
movimento. Nesse caso, o instrumentista precisará primeiramente familiarizar-se com o toque
com apoio do polegar e só então aplicar o objeto técnico em questão.
Depois disso, faz-se necessário o trabalho de refinamento desse movimento, já que o
estudo trabalha em diferentes áreas de ataque, selecionando diferentes grupos de cordas a ser
atacadas ao mesmo tempo.
O Estudo 9 representa também um desafio para a mão esquerda, que precisa estar bem
preparada sob o aspecto da resistência muscular devido à extensão da peça que se apresenta
repleta de pestanas e acordes que demandam uma ampla abertura dos dedos, como mostra a
figura a seguir.
172
Fig. 88 – Estudo 9, compassos de 81 a 84.
No compasso 81, o um fragmento do acorde de Mib Maior é conseguido através da pressão
do dedo 4 sobre a 5a corda na 6
a casa, enquanto os dedos 2 e 1 pressionam as notas Sib sobre a 3
a
corda na 3a casa e Mib sobre a 2
a corda na 4
a casa, respectivamente, um desenho convencional e
confortável correspondente a uma tríade. A seguir, o dedo 4 permanece pressionando a nota Mib
sobre a 5a corda na 6
a casa, enquanto os dedos 2 e 1 caminham um intervalo correspondente a
um semitom, ou uma casa, preparando para a chegada do dedo 3, que agora pressiona a nota Fá#
sobre a 4a corda na 4
a casa. Essa posição pode ser considerada razoavelmente alargada, sendo
que os dedos 4 e 3 encontram-se separados por uma casa, situação que provoca certo incômodo.
No compasso 83 ocorre a situação de maior desconforto técnico, na qual o dedo 1 caminha
mais uma casa no sentido do distanciamento do dedo 4 para estabelecer uma pestana de duas
notas, pressionando de uma só vez a 3a e 2
a cordas na 1
a casa, enquanto o dedo 4 permanece
sobre a nota Mib sobre a 5a corda na 6ª casa, uma abertura extrema, no limite da das
possibilidades da mão esquerda.
173
10. Estudo 10
10.1. Apresentação
O Estudo 10 dedica-se à resistência muscular da mão esquerda.
Inúmeras peças do repertório erudito para violão oferecem grande dificuldade no aspecto
da resistência muscular, e contornar o problema requer uma série de estratégias de
posicionamento, de movimentação e mentalização.
Alguns dos estudos de Heitor Villa-Lobos apresentam passagens que exigem um bom
preparo muscular, como no caso do trecho do Estudo no 1, mostrado na figura abaixo.
Fig. 89 – Estudo 1 de Heitor Villa-Lobos, compassos de 7 a 12.
Do compasso 7 ao 8, podemos observar a indicação de uma pestana na 5ª casa que
permanece pressionada por quatro compassos, incluindo os ritornelos. A seguir, do compasso 9
174
ao 11, uma outra pestana, agora na 7ª casa, permanece pressionada por 6 compassos, o dobro do
indicado em virtude dos ritornelos. Portanto, esse trecho conta com duas pestanas completas, ou
seja, que abrangem as seis cordas do violão e que permanecem sustentando os acordes por um
período total de 10 compassos, situação que submete a mão esquerda a um grande esforço.
Um outro exemplo é também encontrado na mesma série de estudos escrita por Villa-
Lobos, agora numa passagem do Estudo no
2. A figura abaixo mostra, no trecho compreendido
entre os compassos 14 e 22, uma série de pestanas usadas para dar sustentação a arpejos com
abrangência das seis cordas do instrumento, repletos de ligaduras e executados em andamento
alegro. O trecho em questão constitui uma passagem de extrema dificuldade em uma peça já
famosa pelas dificuldades impostas aos instrumentistas.
175
Fig. 90 – Estudo No. 2, de Heitor Villa-Lobos, compassos de 13 a 22.
Passagens como essa têm representado um grande obstáculo no desenvolvimento técnico
dos violonistas, o que torna necessário um preparo com exercícios e estudos dedicados ao
assunto. Com esse objetivo foi escrito o Estudo 10.
176
10.2. Objeto técnico
O Estudo 10 foi criado para exercitar a resistência muscular da mão esquerda por meio do
uso de ligaduras duplas, ou seja, executadas simultaneamente com dois dedos.
Alguns autores dedicaram uma parte de sua obra para violão ao estudo das ligaduras, que
representam um recurso importante como elemento facilitador na execução de frases e também
de caráter interpretativo, já que proporciona um efeito auditivo diferente, com menos ataque que
a articulação normal.
Apesar de a ligadura normalmente funcionar como um agente facilitador, a aquisição do
domínio técnico para a sua execução pode ser um processo um tanto complexo e demorado. Por
esse motivo, autores de livros didáticos, como, por exemplo, Scott Tennant, dedicaram uma
atenção especial ao assunto.
As figuras a seguir mostram uma parte do trabalho intitulado Pumping Nylon, de Scott
Tennant, um trabalho sobre técnica violonística dedicado à prática das ligaduras.
Fig. 91 – Pumping Nylon, ligaduras ascendentes.
A figura acima mostra um dos exercícios propostos por Tennant, nos quais ele trabalha em
um mesmo exercício todas as combinações possíveis envolvendo dois dedos.
177
Na figura abaixo, Tennant propõe um exercício com as mesmas características do anterior,
mas agora aplicado às ligaduras descendentes.
Fig. 92 – Pumping Nylon, ligaduras descendentes.
A figura a seguir, mostra um desenho que tenta ilustrar o movimento correto a ser feito
para produzir uma ligadura descendente.
178
Fig. 93 – Pumping Nylon, ilustração de ligaduras descendentes.
Villa-Lobos também dedicou um estudo ao assunto, o Estudo no3, cujos primeiros
compassos são mostrados na figura a seguir.
179
Fig. 94 – Estudo No. 3, de Heitor Villa-Lobos, compassos de 1 a 6.
O Estudo 3 de Villa Lobos é uma peça de difícil execução não só pela quantidade de
ligaduras, mas também pelos acordes e linhas de baixos associadas às frases melódicas, aspectos
que tendem a levar rapidamente o instrumentista à fadiga.
O Estudo 10, objeto de estudo deste trabalho, no entanto, propõe uma abordagem um
pouco diferente dos exemplos citados, pois aplica a prática da ligadura ao exercício para a
resistência muscular, duplicando o trabalho dos dedos e promovendo a ligadura dupla.
180
10.3. Plataforma musical
O Estudo 10 consiste de uma peça de efeito rítmico/melódico desenvolvida em ambiente
modal, com um grande número de modulações e a utilização do baião como estrutura rítmica.
O modo inicial sobre o qual foi construída a primeira frase com ligaduras duplas é um Lá
Mixolídio, que logo evolui para um Fá Lídio, que segue para um Fá# Dórico, um Sol Lídio, até
voltar ao Lá, só que desta vez um Lídio.
181
Fig. 95 – Estudo 10, compassos de 1 a 8
Como se pode observar no compasso 1, as notas duplas que desenham a melodia
harmonizada por dois tipos de intervalos distintos, os de 4a
justa e os de 3a. A escolha dos
intervalos citados respeita a ergonomia do instrumento.
182
As cordas soltas do violão estão organizadas em intervalos de 4as
justas, com exceção da 3a
corda, que guarda da segunda corda uma distância equivalente a um intervalo de 3a Maior. A 2ª
corda, por sua vez, volta a manter a distância de 4a justa em relação à primeira corda.
A figura a seguir mostra, em forma de diagrama, a movimentação dos dedos sobre o braço
do violão.
Fig.96 – Fragmento do compasso 1 e diagramas correspondentes.
183
Os três primeiros intervalos de 4as
justas correspondentes às três primeiras semicolcheias
em movimento, mostrados no primeiro compasso, correspondem aos três primeiros diagramas. O
primeiro, mostra as notas Mi e Lá, um intervalo de 4a justa pressionado pelos dedos 2 e 3,
seguido do segundo mostrando cordas soltas, pronunciadas por ligadura descendente. A este,
segue-se o terceiro, que mostra novamente o intervalo de 4a obtido pelo posicionamento dos
dedos 2 e 3, que produzem o som agora por ligadura ascendente. O quarto diagrama mostra as 3a
e 2a cordas soltas, as notas Sol e Si, que formam um intervalo de 3
a Maior. O quinto diagrama,
representa outro intervalo de 3a Maior produzido pelo posicionamento dos 2
o e 3
o dedos sobre as
mesmas 3a e 2
a cordas.
Os movimentos feitos pelos dedos ao executarem as ligaduras ascendentes e descendentes
são mecanicamente os mesmos. No entanto, quando executados nas 4a e 3
a cordas, criam a
sonoridade correspondente a uma frase harmonizada em 4as
justas; quando executados nas 3a e 2
a
cordas, a melodia apresenta-se harmonizada em intervalos de 3as
maiores, um fato natural
resultante da estrutura física do instrumento.
O padrão estrutural exposto aqui repete-se durante toda a extensão da peça.
10.4. Aplicabilidade
O Estudo 10 não foi composto para a aplicação em um contexto musical específico, já que
foi concebido para exercitar a resistência muscular da mão esquerda. No entanto, sua estrutura
melódico/harmônica, que determina o fraseado em intervalos de fácil execução, por respeitar a
ergonomia do instrumento, pode ser utilizada em arranjos ou discursos improvisados diversos
sempre que se queira dar uma ideia de melodia harmonizada, especialmente quando as frases são
construídas sobre uma escala pentatônica.
184
Fig. 97 – Frase sobre a escala de blues em Mi.
No exemplo acima, o baixo sugere uma célula rítmica de blues, enquanto a melodia
aparece harmonizada em intervalos de 4as
justas, com exceção da terceira colcheia do primeiro
compasso, em que as notas Sol e Si formam uma 3a Maior.
Situações como a descrita acima podem ser muito frequentes na prática da improvisação, e
o Estudo 10 pode ser útil no processo preparatório muscular.
185
CONCLUSÃO
Os Dez Estudos para Violão analisados nesta Tese nasceram despretensiosamente. Não
havia, no momento em que foram compostos, uma preocupação estética engajada em alguma
corrente artística vigente ou uma tentativa de apresentar algo inovador. O objetivo era mesmo
meramente técnico; os outros aspectos musicais relacionados à estrutura da composição foram
inspirados em experiências prévias.
As melodias, os acordes, os encaminhamentos harmônicos, a rítmica etc. foram inspirados
em autores, estilos, obras ou, em alguns casos, no próprio aspecto gráfico do braço do violão,
que por si só pode gerar boas ideias temáticas.
Esse descompromisso pode ser muito útil, pois na medida em que nos libertamos de
obrigações estéticas, ficamos mais à vontade para criar. Esse estado mais relaxado pode nos
conduzir a uma criação mais autêntica, natural, na qual usamos os elementos de forma mais crua,
sem o excessivo rigor estético.
Talvez pelo fato de soarem agradáveis aos meus próprios ouvidos, ou porque
representavam uma experiência nova em meu processo criativo, apeguei-me à série e passei a
utilizá-la verdadeiramente para o fim proposto.
Ao ser incentivado por colegas e amigos a desenvolver a carreira acadêmica, senti-me
compelido a refletir mais profundamente sobre o processo de criação desses Estudos, já que
haviam brotado quase que espontaneamente logo após a determinação do foco técnico a ser
abordado.
Na verdade, dei-me conta de que a elaboração desse grupo de composições era a expressão
mais relaxada de uma conduta no ato de criar música, a qual eu sempre usava, mas não me dava
conta.
186
Quase sempre, antes de compor uma peça, parto de uma proposta formal mais ou menos
clara, assim como se quisesse retratar uma paisagem. Após delinear a imagem desejada, começo
a aplicar o material musical propriamente dito. É o que denomino “projeto musical”.
No caso dos Estudos, a imagem foi substituída pela proposta técnica. Refletir sobre os
Estudos, portanto, seria quase o mesmo que refletir sobre o meu processo de criação como um
todo.
A elaboração desta Tese foi, para mim, uma importante oportunidade de rever as etapas
envolvidas no desenvolvimento do trabalho criativo, possibilitando-me uma reflexão mais
distanciada, já que os Estudos foram publicados 15 anos antes.
Durante esse tempo, distanciei-me e reaproximei-me deles muitas vezes, sendo que apenas
em poucos momentos pude dominá-los por completo. Alguns são especialmente desafiadores, e
o sucesso parcial atingido durante o processo de aquisição das habilidades necessárias à sua
execução propõe um constante retorno à sua prática.
Agora, depois dessa análise mais aprofundada, volto a visitá-los e, como sempre acontece,
sou apresentado a novos desafios e instigado a buscar novas soluções.
Começa a ficar claro que talvez essa seja uma busca sem fim e que provavelmente, no
futuro, eu venha a revisitar esta Tese e usá-la como patamar para o desenvolvimento de um outro
trabalho que proponha uma visão ainda mais detalhada desse conteúdo.
Enfim, os Dez Estudos para Violão têm cumprido o seu papel e, pelo que pude constatar,
devem continuar cumprindo até que uma nova série seja composta.
187
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARLEVARO, Abel. Série Didáctica para Guitarra – Cuaderno N
o2. Buenos Aires: Barry
Editorial, 1967.
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GNATALLI, Radamés. Dez Estudos para Violão (Partitura). Heidelberg: Chanterelle,1988.
Violão.
GUEST, I Arranjo-Metodo Priztico. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1996.
HlNDEMITH P. Harmonia Tradicional. 1° volume. sao Paulo: Vitale,1949.
KIEFER, Bruno. História e Significado das Formas Musicais. Porto Alegre: Editora
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PERSICHETTI, Vincent. Harmonia do Século XX. São Paulo: Via Lettera, 2012
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Publishing, 1983 – 60 páginas
SCHOENBERG, A Tratado de Harmonia São Paulo: Unesp, 2001.
TENNANT, Scott. Pumping Nylon – The Classical Guitarist’s Technique Handbook.
Baltimore: Alfred, 1995.
VILLA-LOBOS, H. Douze Etudes pour guitare (Partitura). Paris: Ed. Max Eschig, 1953.
188