dimensões cotidianas, religiosas e políticas para o uso das runas na idade média
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Dimenses cotidianas, religiosas e polticas para o uso das runas na
Idade Mdia
Renan Marques Birro1
Resumo: Na Idade Mdia, a escrita no raro foi associada tanto ao mbito do cotidiano quanto do poder.
No caso da escrita rnica, preciso verificar seus desdobramentos no dia-a-dia, a utilizao para justificar
a hierarquizao da sociedade, para justificar pontos de vista religiosos ou at mesmo a supremacia rgia
num contexto de duras disputas polticas. Sendo assim, este artigo pretendeu entrever brevemente
algumas dessas dimenses a partir de alguns casos do perodo pago e seus desdobramentos j na Era
Crist escandinava.
Palavras-chave: Escandinvia Idade Mdia Runas
Abstract: The writing was frequently associated both to the daily life and the power in the Middle Ages.
When we think in runic writing is needed to expose the diary utilization, the social layers, religious point
of views, and the royal supremacy in a context of political struggles. Therefore, this article aims to show
some of those dimensions exposing cases from pagan times and the Christian Age in Scandinavia.
Keywords: Scandinavia Middle Ages Runes
Neste artigo pretendo desdobrar algumas leituras a respeito dos estudos rnicos
na Idade Mdia. Enfatizei pontualmente algumas leituras que perpassam questes
religiosas, polticas e do cotidiano, as ideias que motivavam essas leituras e brevemente
o contexto que cercava cada um desses indcios.
Vale ressaltar que no explorei profundamente a perspectiva religiosa do uso das
runas por duas razes. A primeira que, apoiado em Jrn Staecker, creio que em vez
de entender como as pessoas de um sculo atrs formavam sua prpria imaginao e sua
linguagem simblica, alguns pesquisadores ainda tentam fazer os vikings serem mais
pagos do que eles jamais foram2. Isso no significa, no entanto, que as runas no
dispunham de valores religiosos pr-cristos, como possvel constatar na abordagem
da maioria dos trabalhos publicados sobre o tema, assim como numa breve anlise das
inscries mais famosas.
Porm, boa parte das evidncias rnicas foi ressignificada pela via religiosa,
conquanto o Cristianismo se fizesse presente concomitantemente, algo que deve ser
igualmente levado em considerao. Trata-se de um ponto de vista pouco trabalhado e
motivado por inmeras razes. Cito, dentre outros problemas, o proselitismo religioso
1 Professor Assistente de Histria Medieval da Universidade Federal do Amap/Campus Binacional do Oiapoque; Professor Colaborador
do Curso de Especializao em Histria Antiga e Medieval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Doutorando pelo Programa de
Ps-Graduao em Histria Social da Universidade de So Paulo; Coordenador do NEIBRAM/UNIFAP e do GTHAM Amazon/UFPA;
Pesquisador do LATHIMM/USP, do Brathair/UEMA e do Leitorado Antiguo/UPE. [email protected]. 2 STAECKER, Jrn. Decoding Viking Art: The christian iconography of the Bamberg shrine In: HRDH, B., JEENBERT, K. &
OLAUSSON, D. (Eds.). On the Road: Studies in Honour of Lars Larsson. Acta Archaeologica Lundensia, 26. Stockholm: Stockholm
University Press, 2007, p. 301.
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e/ou ideolgico neopago/ariano, que transmite subrepticiamente ideias de
superioridade da raa e de povo eleito3.
Ademais, apoio-me tambm nas concluses de Anthony Faulkes, quando
afirmou em certa ocasio que as runas sequer devem ser associadas a poemas msticos
ou com previso da sorte, poderes supernaturais ou baboseiras similares4. A razo
simples: a prtica corrente do uso das runas em rituais msticos moderna; por sua vez,
o conhecimento do uso das runas no passado para fins rituais e mgicos fragmentrio
e escasso.
Feitas estas ressalvas, constatei que uma espcie de interesse antiqurio sobre
as runas ainda na prpria Idade Mdia. Desde Venncio Fortunato (c.530-600), bispo de
Poitiers, a escrita rnica foi associada aos povos germnicos5. Ao enviar uma carta para
um amigo com quem no mantinha contato h algum tempo, ele fez uma orientao:
deixe a runa brbara ser marcada em tbuas de freixo, em oposio ao texto
tradicional, gravado no papiro6.
Neste caso, percebe-se uma separao e at mesmo uma hierarquizao para o
uso de cada tipo de escrita. Os caracteres romanos permaneceram ligados ao papiro,
como a escrita grega e, antes dela, a egpcia, num sinal de superioridade quando
comparadas ao caso germnico.
Neste sentido, Gregrio de Tours (538-594), bispo de cidade homnima e amigo
de Venncio, ao comentar as tentativas do rei Chilperico de discutir sobre o mistrio da
Trindade e dos versos sem rima criados pelo rei, atestou que
ele [Chilperico] tambm adicionou letras ao nosso alfabeto, nomeadamente como os gregos o tem, , the e uui, que so escritos pelos caracteres a seguir:
[], [], Z [the] e [uui]. E ele escreveu para todas as cidades do seu reino para que possam ser ensinadas aos garotos essas letras e que os livros
escritos anteriormente devam ser apagados com pedras-pome e reescritos7.
Para alm do desejo de expandir o aprendizado das letras no reino, alguns
estudiosos acreditam em duas possibilidades: 1) os caracteres apontados por Gregrio
3 MOOSBURGER, Tho de Borba. Introduo In: __________. Brennu-Njls saga: projeto tradutrio e traduo para o portugus. Tese.
Florianpolis: Programa de Ps-Graduao em Estudos da Traduo/UFSC, 2015, pp. 17-36. 4 FAULKES, Anthony. A new introduction to Old Norse. Part II. Reader. 4.ed. London: Viking Society for Northern Research, 2007
[2011], p. 211. 5 LENDINARA, Patrizia. Considerazioni sulla scrittura dei Germani in Venanzio Fortunato, Annali dell'Istituto orientale di Napoli, Napoli
2, 1-3 (1992-1994), pp.28-33. 6 barbara fraxineis pingatur runa tabellis (VENANTIUS FORTUNATUS. Carmina, VI, 18).
7 Addidit autem et litteras litteris nostris id est , sicut Grci habent ae, the, uui, quarum characteres subscripsimus. Hi sunt , , Z . Et
misit epistolas in universas civitates regni sui, ut sic pueri docerentur, ac libri antiquitus scripti, planati pumice rescriberentur (GREGORIUS TURONENSIS. Historia Francorum, V, 44 [45]). O grifo meu para destacar as palavras apontadas por Gregrio. As letras uui
formariam, nesse sentido, uma nica letra.
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foram mal compreendidos e foram glifos rnicos de fato, 2) ou que os sinais, na
verdade, teriam sido emprestados do grego, ou seja, copiados e mal interpretados a
posteriori8.
impossvel saber se de fato os smbolos registrados pelo bispo seriam
realmente estes. Ademais, o desdm do historiador dos francos demonstra que o alcance
da medida foi bastante limitado, uma vez que as atitudes intelectuais de Chilperico
foram tratadas como excntricas9. Seja como for, o desdm de Venncio e Gregrio
pelo formato de redao germnica foi expresso de diferentes formas, ainda que
vinculadas de uma forma ou outra aos crculos de poder episcopais e rgios.
Apesar disso, algumas runas tambm podem ser identificadas em manuscritos
carolngios, que dispunham, em alguns casos, de representaes de variantes dos
alfabetos conhecidos10
. O famoso abade de Fulda Rbano Mauro (780-856), por
exemplo, comentou sobre as runas marcomnicas, i.e., as letras que so usadas pelos
marcomanos, que ns chamamos de homens do Norte, transcrevemos abaixo; de quem
descendem os povos que falam a lngua germnica11.
Saxo Grammaticus (c. 1150-1220), um culto clrigo dinamarqus sob os
servios de Absalo (c. 1128-1201), arcebispo de Lund, tambm registrou algumas
informaes sobre as runas na obra Gesta Danorum (c.1200), que pretendia registrar
todos os feitos dos dinamarqueses12
. Ao comentar no praefatio da Gesta sobre a regio
de Blekinge, atualmente parte da Sucia mas em poca integrada ao reino da
Dinamarca, Saxo afirmou que Viajantes podem ver uma rocha em Blekinge colorida
com estranhos smbolos13.
Ao prosseguir a narrativa, ele apontou que o grande rei Valdemar, interessado
nas informaes preservadas na rocha, teria ordenado que homens registrassem os
smbolos, mas, pelo uso do caminho por transeuntes, os glifos estavam ilegveis.
8 RICH, Pierre. Education and culture in the barbarian West: sixth through eighth centuries. Columbia: University of South Carolina
Press, 1976, pp.224-225. 9 KLEINSCHMIDT, Harald. Communication in a given present In: __________. Understanding the Middle Ages: the transformation of
ideas and attitudes in the medieval world. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2000, pp. 228. 10
DEKKER, Cornelis. The Origins of Old Germanic Studies in the Low Countries. Leiden: Brill, 1998. Para uma anlise mais
aprofundada das runas nos manuscritos medievais, ver: DEROLEZ, Ren. Runica Manuscripta: the English tradition. Bruges: De Tempel,
1954. 11
lliteras quippe quibus utuntur Marcomanni, quos nos Normannos vocamus infrascriptas habemus; a quibus originem qui Theodiscam loquuntur linguam trahunt (RABANUS MAURUS, De inventione linguarum, PL 112, col. 1582). 12
DUMZIL, Georges. Introduo In: __________. Do Mito ao Romance. So Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 1-18. 13
Verum apud Blekingiam apta meantibus rupes mirandis litterarum notis interstincta conspicitur (SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum, praefatio, 2:5).
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Muito posteriormente, no livro sete da mesma obra, o Gramtico atestou que o
rei Haraldr Hildetand, um monarca semilegendrio, mandou que gravadores (mestres
de runas) registrassem os feitos de seu pai em seu tmulo, numa rocha em Bleckinge,
como j havia sido mencionado anteriormente14
. Trata-se de uma referncia clara sobre
os smbolos citados no prefcio, alm de uma prova do conhecimento desses
monumentos por parte desse grande erudito. Como estes smbolos faziam parte da
tradio escandinava, parece natural que eruditos como Saxo enfatizassem esses
registros para engrandecer a memria e os feitos de seus antepassados.
Prosseguindo no perodo medieval e tomando como parmetro a produo de
Snorri Sturlusson (1178-1241), o mais famoso historiador, poeta e poltico islands do
perodo medieval, percebe-se um processo de evemerismo do deus inn relacionado
ao contato dos escandinavos com os gregos e romanos: conforme o autor, esta deidade
foi originalmente um lder guerreiro provindo da mtica cidade oriental, ou, no linguajar
da poca, de um lugar chamado Tria, agora chamado de Tyrkland, isto , na regio
da Turquia15
.
Os troianos foram chamados de Tyrkir, talvez seguindo a prtica latina da Eneida
de Virglio, que os chamou de Teucri. H indubitavelmente uma confuso em relao
aos turcos, mas at mesmo a Crnica de Fredegrio (ou do Pseudo-Fredegrio, sc.
VII-VIII) situa os francos e turcos como descendentes dos exilados troianos16
.
Se Snorri sabia exatamente onde era a Turquia ou no, nunca saberemos. Porm,
ele acreditava que certo grupo de deuses vinha do que entendemos como o Extremo
Leste: eles eram aqueles homens da sia, agora chamados de sir17. O islands
tambm sabia que a morada desses deuses estava prxima do Tanaqusl (Don), rio que
cai no Mar Negro e era lembrado como o limite entre a Europa e a sia desde Estrabo.
inn e os seus estavam certamente do lado asitico, como possvel notar em termos
como Asaland (terra dos deuses), Asaheim (lar dos deuses) e Asgard, possivelmente na
juno do termo ss (deus) e de asa (sia)18
.
14
SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum, VII, 30. 15
Trja, ar sem vrkllum Tyrkland (SNORRI STURLUSSON. Edda, Prologus, 3). 16
A associao entre Tyrkir e turcos no unnime. O termo tambm pode fazer referncia aos povos no nomeados do Gnesis,
demonizados na etnologia e na cartografia medieval como descendentes de Gog e Magog, situados no extremo Leste do mundo habitado e que emergiram nos scs. XII e XIII a partir do terror experimentado nas Cruzadas. Esse conceito de turcos, de um perodo
avanado, conferiu uma carga negativa Tyrkland e aos Tyrkir nos escritos lendrios em Nrdico Antigo. Alguns escritores medievais, no
entanto, forjaram laos genealgicos com povos ilustres, como no caso de Snorri (KLINGEBERG, Heinz. Odin und die Seinen:
Altislndischer Gelehrter Urgeschichte anderer Teil, Alvisml 2, 1993, p. 31-80; RIX, Robert W. Oriental Odin: Tracing the east in northern
culture and literature, History of European Ideas 36, 2010, p. 48). 17
eira Asiamanna, er sir varu kallair (SNORRI STURLUSSON. Edda, Prologus, 2). 18
SNORRI STURLUSSON. Ynglinga saga, 1-2.
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No contexto das runas, o desdobramento do grupo de inn parece mais
interessante. Aps uma invaso romana, os sir fugiram, cruzaram a Rssia e a
Germnia at se estabelecerem em Sigtuna, no Sul da atual Sucia. Snorri pode ter feito
uma aluso agresso romana no perodo de Pompeu (sc. I a.C.), alm de substituir
Mithridates IV, o maior antagonista romano no Leste, pela deidade nrdica19
.
Ao atingir a Escandinvia, inn, j ento um lder e rei, passou a manifestar
estranhas habilidades. Ele se tornou capaz de se transformar em fria, proferir
encantamentos por canes e, em uma cerimnia especfica, ensinou as runas:
inn tinha com ele a cabea de Mmir, que lhe contava muitas notcias
sobre os outros mundos; e certas vezes ele podia invocar homens mortos do
cho, ou poderia ainda sentar sobre os homens que foram enforcados. Por
esse motivo ele foi chamado de Senhor dos draugar20
ou dos enforcados. Ele
tinha dois corvos que ele havia abenoado com a ddiva do discurso. Eles
voavam muito e longe sobre as terras e contavam a ele muitas notcias. Por
esses meios ele se tornou muito sbio em sua erudio. E todas essas
habilidades ele ensinou com aquelas runas e canes que foram
chamadas galdrar21
. Por isso os sir so chamados de ferreiros do
galdr22
.
Nota-se, assim, na explicao de Snorri, uma tentativa de evemerizar os
personagens sem eliminar, contudo, os elementos mgicos ou pagos do passado
escandinavo. De fato, ao analisar a Ynglinga saga, percebe-se um aumento paulatino
dos elementos maravilhosos a partir do estabelecimento do sir nas plagas
setentrionais.
As runas fariam parte, assim, de encantamentos mgicos antigos provavelmente
provindos e aprendidos a partir dos contatos com romanos e gregos orientais por parte
19
SNORRI STURLUSSON. Ynglinga saga, 6; RIX, op. cit., p. 49, nota 16. 20
O draugr (pl. draugar) ou aptrgangr (lit. andante novamente) uma espcie de morto-vivo da literatura nrdica antiga e da cultura popular escandinava. Eles vivem em seus tmulos em formato de monte e vigiam seus tesouros morturios. Os draugar seriam corpos
animados com habilidades similares s dos viventes, conquanto dispusessem de grande fora e capacidade de tamanho. Eles tambm
tinham aparncia de mortos. Os draugar podem sofrer uma segunda morte se seus corpos apodrecessem, fossem queimados, desmembrados ou destrudos de outra forma. Por fim, seria possvel relacion-los aos temores da morte e a avareza (REMLEY, Gregg A.
Smith. The function of the living dead in medieval Norse and Celtic literature: death and desire. Lewiston: Edwin Mellen, 2007). 21
O galdr (pl. galdrar) seria a combinao de cano e ritual capaz de propiciar benesses diversas; ele poderia ser positivo (facilitar o nascimento de crianas) ou negativo (tornar algum louco). Outras habilidades so invocar tempestades, afundar navios distncia, tirar a lmina de espadas, enfraquecer armaduras ou decidir vencedores e derrotados em batalhas. (LINDOW, John. Galdrar In: __________.
Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs. Oxford: Oxford University Press, 2002, pp. 132-133). 22
inn hafi me sr hfu Mmis, ok sagi at honum mrg tindi or rum heimum. En stundum vakti hann upp daua menn or jru, ea settist undir hanga; fyrir v var hann kallar drauga drttinn ea hanga drttinn. Hann tti hrafna tv, er hann hafi tamit vi ml;
flugu eir va um lnd ok sgu honum mrg tindi. Af essum hlutum var hann strliga frr. Allar essar rttir kendi hann me
rnum ok ljum, eim er galdrar heita; fyrir v eru sir kallair galdrasmiir (SNORRI STURLUSSON. Ynglinga saga, 7). O grifo meu.
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dos escandinavos em migrao. Embora essa ideia no tenha sido expressa por Snorri,
tal argumento foi retomado por alguns eruditos do perodo moderno e contemporneo23
.
A tradio nrdica ainda oferece informaes adicionais sobre a questo. No
Hvaml (lit. Dizeres do Altssimo), presente no Codex Regius (GKS 2365 4to, c.1270,
Instituto Arni Magnsson, Islndia) e de autoria annima, h uma seo apelidada pelos
pesquisadores de Rnatal (Cano rnica). Neste excerto, o deus nrdico explica
como ele obteve o conhecimento das runas:
Eu sei que eu pendi numa rvore balanada pelo vento por nove noites
inteiras, ferido por uma lana, e dedicado a Odin, eu mesmo a mim mesmo;
naquela rvore que no sei de onde suas razes vm.
Eles no me consagraram com po nem com qualquer chifre; eu
contemplei l embaixo, eu peguei as runas, gritando as peguei e de l eu cai
[...]
Runas voc pode encontrar e letras auxiliadoras, letras muito
poderosas, letras muito fortes, as quais o sbio poderoso [fimbululr, lit.
sbio poderoso, i.e., o prprio inn] pintou e os deuses fizeram, e que
Hroptr [inn] dos deuses gravou24
.
Embora no cite nominalmente, provvel que o sacrifcio tenha ocorrido na
Yggdrasil, ou seja, na rvore que serviria como eixo da cosmogonia nrdica e ligaria os
diferentes mundos (humano, deuses, profundezas, gigantes, etc.). Graas ao ato, no
nono dia, o deus nrdico se tornou mais sbio e poderoso (Hvaml, est.142).
O modelo de sacrifcio e ressurreio semelhante ao crstico. Haveria, assim,
um paralelo arquetpico com Cristo que endossa, entre outros elementos, o aspecto de
autoridade rgia da tradio medieval exercida pela divindade no panteo escandinavo,
que poderia tambm estar vinculada diretamente a Deus: um dos eptetos odnicos
Pai de todos (Alfdr)25.
Pesquisadores como Annette Lassen vo alm e afirmam que a semelhana no
casual, o fruto de uma aproximao para facilitar a converso, hiptese corrente at
algumas dcadas. Nestes termos, seria quase impossvel entrever o inn pr-cristo,
uma vez que as principais fontes do saber da mitologia nrdica chegaram a ns pelas
23
Algumas destas leituras fazem parte da minha tese em andamento, mas infelizmente fogem ao escopo deste texto. 24
Veit ek at ek hekk | vindga meii | ntr allar nu | geiri undar | ok gefinn ni | sjlfr sjlfum mr | eim meii | er manngi veit
| hvers hann af rtum renn
Vi hleifi mik sldu | n vi hornigi | nsta ek nir | nam ek upp rnar | pandi nam | fell ek aptr aan Rnar munt finna | ok rna stafi | mjk stra stafi | mjk stinna stafi | er fi fimbululr | ok gru ginnregin | ok reist Hroptr rgna (Hvaml, est. 138-139 e 142). Texto original, traduo e comentrios disponveis em: MEDEIROS, Elton O.S. Hvaml: traduo comentada do Nrdico Antigo para o Portugus, Mirabilia 17 (2013/2), 2013, pp. 545-601. 25
MEDEIROS, op. cit., p. 589, nota 24.
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letras dos medievais dos sculos XI-XIII, naturalmente influenciada pela tradio
crist26
.
Ao prosseguir na composio, o autor do Hvaml estabeleceu limites sobre o
conhecimento das runas ao direcionar ao ouvinte algumas perguntas: ele, o possvel
gravador dos glifos, saberia como entalhar, interpretar, pintar, testar, perguntar,
sacrificar, enviar e cessar (livrar-se de algo deliberadamente) as runas (est. 144)?
O que o poeta evidenciou, em suma, que nem todos poderiam praticar as runas.
O conhecimento desta arte, assim como no caso da poesia, estaria restrito a poucos
eleitos, uma espcie de ddiva propiciada por uma centelha divina. E, de maneira geral,
a literatura nrdica antiga confere o uso das runas a propsitos mgicos27
.
Na Egils saga (c.1230), por exemplo, o personagem principal homnimo tratou,
em certa ocasio, de uma jovem doente por ter sido alvo de uma runa de amor mal
gravada num osso de baleia escondida sob seu travesseiro. Como era um poeta e
mestre das runas, Egill comps os seguintes versos:
Ningum deve gravar runas a menos que ele saiba como l-las. Isso acontece
com muitos: um homem equivocar-se sobre uma letra obscura. Eu vi dez
runas secretas gravadas no osso moldado. Isso tem causado um longo
sofrimento mulher28
.
Aps se desfazer do objeto mal gravado queimando-o, Egill substituiu o amuleto
defeituoso por outro, que dispunha de uma mensagem rnica correta, o que
possibilitou que a jovem recuperasse sua sade. Uma parfrase rnica encontrada em
Trondheim, Noruega, num basto (NIyR 829, c.1175-1275), parece corroborar com o
excerto da Egils saga e confirma a restrio do conhecimento sobre as runas Ele pode
gravar runas, aquele que conhece bem como interpret-las; muitos homens se tornaram
[ilegvel]29. Nota-se, portanto, um cuidado especial para entregar gravaes a homens
que soubessem como lidar com elas apropriadamente.
Num captulo anterior da Saga de Egill h um caso de sortilgio com uso de
runas, que deveriam ser gravadas num no corno/recipiente e embebidas no sangue do
26
LASSEN, Annette. Odin p kristent pergament: en teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2011. 27
DILLMANN, Franois-Xavier. Runorna i den fornislndska litteraturen: en versikt, Scripta Islandica 46, 1995, pp.13-28; DWEL,
Klaus. Runenkunde. Stuttgart: Metzler, 1998, p 203. 28
Skalat mar rnar rsta | nema ra vel kunni. | fiat verr mrgum manni | er um myrkvan staf villisk. | S ek telgu tlkni | tu launstafi ristna. | at hefir lauka lindi | langs oftrega fengit (Egils saga, 74). 29
S skyli rnar rsta, er ra vel kunni; at verr mrgum manni at es of [ilegvel].
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portador: caso a bebida estivesse envenenada ou amaldioada, ele se partiria, alertando
sobre o malefcio30
.
Uma possvel explicao para o conhecido restrito das runas, que ser tratada
com maior cuidado posteriormente, encontra-se em alguns poemas. O primeiro deles, o
Ffnisml (O encmio de Ffnir, c.1000), estabelece que o heri Sigurr, aps derrotar
o ano-drago (ou serpente) Ffnir o que lhe valeu o epnimo de Fafnisbni (o
matador de Ffnir) , ouviu da prpria criatura que jazia a histria de Sigrdrifa (aquela
que traz a vitria), uma valquria que desobedeceu inn e caiu em profundo sono
como castigo, guardada por uma parede de escudos impenetrvel para os covardes31
.
Sigurr no recuou e chegou at a dama. O encontro foi narrado em outro
poema, o Sigrdrfuml (O encmio de Sigdrifa, c.1000), uma composio eddica do
ciclo dos Vlsungar. Aps ser salva, a valquria alimentou um grande amor pelo seu
salvador, compartilhando com ele seus saberes: Sigrdrifa ensinou alguns tipos de runas
para Sigurr, como as amorosas, que devem ser gravadas na mo e marcadas nas
unhas para seduzir uma esposa. Outras so as runas da vitria, gravadas em espadas,
alm de runas para acalmar o mar. H ainda runas para o discurso, para a mente e para
livros32
.
Ela descreveu ainda runas voltadas para ajudar o nascimento de bebs: Runas
de ajuda voc deve saber para auxiliar a assistir e entregar crianas para mulheres. Elas
devem ser cortadas nas palmas e apertadas nas articulaes, e ento se pede ajuda s
dsir33.
Como possvel constatar, o conhecimento da gravao das runas era um
segredo para poucos. No caso de Egill no h um contato entre este personagem, a
deidade ou um de seus servidores, conquanto este singular anti-heri tenha sido
simultaneamente poeta e mestre das runas, atributos do deus inn; no caso
Volsungo, porm, Sigurr recebeu a ddiva do conhecimento diretamente da valquria,
como um reconhecimento pela sua coragem e tambm, a meu ver, por ser um rei
legtimo.
30
Egils saga, 44. 3131
Ffnirml, est. 40-44. 32
Sigrdrfuml, est. 5-8. 33
Bjargrnar skaltu kunna, | ef bjarga vilt | ok leysa kind fr konum; | lfum r skal rsta | ok of liu spenna | ok bija dsir duga (Ibid., est.9).
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Este ltimo argumento foi evidenciado num outro poema, a Rgsula (A lista de
Rg, c.1000), onde um jovem chamado Kon ungr (konungr, rei), filho do deus
Heimdallr, foi instrudo em diversas artes:
Mas o jovem Kin [Kon]
tomou conhecimento das runas;
runas de eternidade,
runas da vida.
Ele ainda aprendeu
como assistir no parto dos recm-nascidos,
embotar lminas de espada, acalmar as guas34
.
O rapaz demonstrou grande capacidade para gravar runas corretamente. Ele era
filho de Rg, nome que Heimdallr adotou aps vir para a terra sob disfarce e dividir a
sociedade em grupos (escravos, fazendeiros, jarlar e reis), num mito de diviso social35
.
Assim, deus dissimulado visitava a casa de diferentes casais e deitava-se com as
mulheres. Meses depois, uma criana nascia com habilidades ou caractersticas inatas
que descreviam o lugar na sociedade que sua prole teria na posteridade, a saber,
escravo, trabalhador livre, nobre ou rei.
De maneira curiosa, este deus ensinou as runas a Kon, habilidade que no
pertencia a Heimdallr originalmente e que no foi ensinada aos seus meio-irmos menos
prestigiados na escala social. Com efeito, a transmisso deste conhecimento acontecia
num ritual de ensino no explcito, que parece variar conforme as diferentes narrativas,
tradies culturais e indivduos.
Seja como for, o conhecimento da gravao das runas parece ter sido
inicialmente destinado, conforme a Rgsula, to somente ao rei, como uma das
caractersticas que justificavam seu lugar social e sua escolha pelos deuses. Outro
aspecto inato rgio seria dispor de lknishendr (mos que curam, Sigrdrfuml, est.
4), um indcio de poder taumatrgico dos reis escandinavos inicialmente relacionado
fertilidade, ao galdr, ao seir e possivelmente s runas. Com a cristianizao da
Escandinvia, at mesmo reis cristos, como o mrtir e santo lfr Haraldsson (c.995-
1030), foram lembrados pelas qualidades curativas das suas mos36
.
Posteriormente, como possvel constatar no caso de Egill, a restrio para o
aprendizado e uso das runas somente entre os reis parece ter cado em desuso e outros
34
En Konr ungr | kunni rnar | aevinrnar | ok aldrrnar. | Meirr kunni hann | mnnum biarga, | eggiar deyfa, | aegi laegia (Rgsula,
est. 44). O grifo meu. 35
LINDOW, John. Rgsthula In: __________. Norse Mythology: A Guide to the Gods, Heroes, Rituals, and Beliefs. Oxford: Oxford
University Press, 2001, p. 260-261. 36
NASSTROM, Britt-Mari. Healing hands and magical spells In: ROSS, Margaret Clunies; BARNES, Geraldine (Orgs.). 11th
International Saga Conference, Sidney, 2-7 July 2000. Sidney: University of Sidney, 2000, pp.356-362.
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indivduos passaram tambm a manifestar tais qualidades, sem qualquer relao com a
qualidade rgia em si. Nestes casos, ao menos nas composies que tratam do perodo
pago, algum tipo de predileo divina era necessria para justificar a habilidade
curativa, como dispor de dons poticos tambm uma ddiva odnica ou uma
simpatia sobrenatural no mbito da guerra. J no perodo cristo, a temtica dos santos,
curas e milagres parece ter sido a conexo natural de tais demandas.
De fato, a introduo das letras latinas (sculos X e XI) fez com que alguns
homens daquele tempo conectassem o alfabeto latino com a f crist. Porm, at mesmo
mensagens religiosas crists foram transliteradas para os glifos rnicos, como
invocaes a santos e oraes. A utilizao ampla de mensagens rnicas pode ser
atestada pela quantidade de objetos e a abrangncia dos indcios, presente at mesmo na
atual Groenlndia, Itlia e Jerusalm. A escrita rnica continuou a ser usada sem
grandes declnios at o sculo XIV, ainda que na provncia Sueca de Dalarna uma
tradio de escrita rnica tenha persistido at o incio do sculo XX37
.
Nesta etapa tambm possvel identificar usos de grande amplitude para fins
no religiosos. As inscries de Bryggen (em Bergen), na Noruega, so um exemplo
clssico: tratam-se de 670 gravaes rnicas em pinho e osso, produzidas ao menos
antes do sculo XIV. As mensagens variam em contedo: de etiquetas de propriedade
(Haraldr mik, i.e., Haraldr me tem), a declaraes de amor (st min, kyss mik,
minha querida, me beije), mensagens de contedo sexual (Fligr er fu sinn byrli
Fuorglbasm, Amvel a buceta; possa o caralho preench-la!) passando por
espcies de cartas de negcio e ordens enviadas (Gya segir at gakk heim,
Gya disse para voc ir para casa!) (B001; B017; B011; B149).
Algumas tambm foram usadas como amuletos e misturavam personagens
cristos (anjos, santos ou o prprio Cristo) com deuses pagos e provveis espritos da
terra (B013; B007; B005). Inscries com sentenas em latim ou palavras tambm no
eram incomuns nesse conjunto. A inscrio B145 ficou famosa por citar as nornas e
dispor um verso aliterativo de Virglio Omnia vincit amor et nos cedamus amore.
Outro caso vinculado ao legado rnico, mas sem caractersticas mgicas ou de
predileo divina, a Lei da Escnia (c.1300), uma provncia dinamarquesa, presente
no Ms. AM 28 8vo (Instituto rni Magnsson, Islndia, c.1300). Trata-se de uma das
verses mais antigas e bem preservadas desta lei, escrita inteiramente em glifos rnicos
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KNIRK, James E. Runes and runic inscriptions In: PULSIANO, Phillip & WOLF, Kirsten (eds.). Medieval Scandinavia: An
Encyclopedia. London: 1993, pp. 551.
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cuidadosamente dispostos em linhas pr-determinadas e com tintas vermelha e preta. O
Ms. apresenta ainda a Lei Eclesistica da Escnia, uma lista fragmentria de reis
dinamarqueses e uma crnica que comea com o lendrio rei dinamarqus Hadding
(filho de Frode) e termina com o rei Eric IV (1274-1319). Aps essas narrativas, h uma
antiga descrio dos limites entre Dinamarca e Sucia e, por fim, as notas e palavras da
cano Drmte mig en drm i nat (Eu sonhei um sonho na ltima noite), a mais antiga e
conhecida com a notao musical da Dinamarca e na Escandinvia38
.
Independentemente das ausncias destacadas no ltimo indcio, a escrita rnica
continuou ligada legitimidade do poder. Considerar que a associao entre um rei
lendrio, a dinastia dinamarquesa e reis reais, alm dos limites dos reinos e das regras
de convvio social foram unidas num mesmo documento por acaso seria temerrio. A
escrita rnica, portanto, manteve, sob novos tons, suas velhas caractersticas.
Seja como for, a partir dessas experincias polticas, religiosas e cotidianas, o
primeiro fragmento de trabalho runolgico foi produzido ainda na Idade Mdia, a saber,
o Mlfrinnar grundvllr, uma das duas partes do Terceiro Tratado de Gramtica
(c.1240) em islands antigo de lfr rarson (c.1210-1259). Ele recebeu bastante
ateno no sculo XVII por suas informaes sobre as runas e muito importante e
utilizado recorrentemente para entender a histria do estudo das runas ps-medievais,
principalmente graas difuso moderna do Codex Wormianus (ou Ms. W, ou ainda
AM 242, o nico que dispe Mlfrinnar grundvllr, doravante denominado MG, sc.
XIV, disponvel no Instituto rni Magnsson, Islndia).
Neste avanado estudo da teoria do som, das vogais e das letras, o autor props
comparaes entre o rnico, o latim, o grego e o hebraico. Essas aproximaes, que
englobavam os idiomas mais valorizados numa cultura que valorizava tanto o legado
judaico-cristo quanto greco-romano, visava certamente a valorizao de aspectos
culturais prprios, em oposio ao que Venncio Fortunato e Gregrio de Tours
observaram sobre as runas.
Deste modo, possvel dizer que, alm de outros aspectos, lfr rarson
valorizou a escrita rnica por sua forma laica, mas sem deslig-la das lnguas
historicamente relacionadas ao Cristianismo como forma legitimadora de seu passado e
importncia.
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KRABBE, Niels. The Earliest Evidences of Musical Activities In: MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF DENMARK.
Gyldendal Leksikon. Disponvel em http://www.denmark.dk/portal/. Acesso em 20 fev 2007.
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Tal produo encerra e inicia, em certa medida, discusses sobre ao menos a
igualdade da cultura germano-escandinava quando comparada com os vizinhos
meridionais, noes que receberam grande impulso na Era Moderna e Contempornea.
Sem dvidas, est uma das origens da ideia de superioridade da raa ariana,
desenvolvida e to discutida nos ltimos duzentos anos.
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