diniz Ética na pesquisa social

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Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero - www.anis.org.br Brasília D.F. Ética na Pesquisa Social: desafios ao modelo biomédico 1 Debora Diniz 2 e Iara Guerriero 3 Introdução Este módulo analisa os principais desafios envolvidos na revisão ética de projetos de pesquisa social com técnicas qualitativas de levantamento de dados. O sistema de revisão ética brasileiro foi idealizado tendo as ciências biomédicas como referência de campo disciplinar e técnicas de pesquisa. Por meio da discussão de cinco casos clássicos às ciências humanas e sociais, o módulo percorre alguns dos principais pontos de tensão ética na pesquisa social. Sustenta-se a possibilidade de esse tipo de pesquisa ser acolhido pelo atual sistema de revisão ética, desde que haja uma sensibilização dos comitês para as particularidades metodológicas impostas pelas técnicas qualitativas. Por fim, a necessidade de diretrizes éticas específicas para a pesquisa social também é considerada. Grandes Fronteiras da Pesquisa Social O campo das ciências sociais e humanas é vasto e diversificado. Suas fronteiras disciplinares se definem tanto pelas técnicas de pesquisa utilizadas quanto pelo conhecimento produzido. 1 Uma pesquisa sobre representações sociais conduzida por uma equipe da enfermagem pode ser entendida como um estudo tanto de sociologia ou de psicologia social quanto de saúde pública, a depender de como os autores desejam se inserir no debate acadêmico ou de como constroem a argumentação. Um estudo pode ser classificado em um campo disciplinar com base na 1 Debora Diniz foi responsável pela redação do artigo e Iara Guerriero pela revisão 2 Antropóloga, atualmente é professora adjunta da UnB e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e compõe a diretoria da International Association of Bioethics. 3 Coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo- 2002- 2008. Membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa-CONEP- 2003-2007. Professora da pós- graduação em Ciências da Saúde, na Faculdade de Medicina ABC.

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Ética na pesquisa social

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  • Anis Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero - www.anis.org.br Braslia D.F.

    tica na Pesquisa Social: desafios ao modelo biomdico1

    Debora Diniz2 e Iara Guerriero3

    Introduo

    Este mdulo analisa os principais desafios envolvidos na reviso tica de

    projetos de pesquisa social com tcnicas qualitativas de levantamento de dados. O

    sistema de reviso tica brasileiro foi idealizado tendo as cincias biomdicas como

    referncia de campo disciplinar e tcnicas de pesquisa. Por meio da discusso de

    cinco casos clssicos s cincias humanas e sociais, o mdulo percorre alguns dos

    principais pontos de tenso tica na pesquisa social. Sustenta-se a possibilidade de

    esse tipo de pesquisa ser acolhido pelo atual sistema de reviso tica, desde que haja

    uma sensibilizao dos comits para as particularidades metodolgicas impostas pelas

    tcnicas qualitativas. Por fim, a necessidade de diretrizes ticas especficas para a

    pesquisa social tambm considerada.

    Grandes Fronteiras da Pesquisa Social

    O campo das cincias sociais e humanas vasto e diversificado. Suas

    fronteiras disciplinares se definem tanto pelas tcnicas de pesquisa utilizadas quanto

    pelo conhecimento produzido.1 Uma pesquisa sobre representaes sociais conduzida

    por uma equipe da enfermagem pode ser entendida como um estudo tanto de

    sociologia ou de psicologia social quanto de sade pblica, a depender de como os

    autores desejam se inserir no debate acadmico ou de como constroem a

    argumentao. Um estudo pode ser classificado em um campo disciplinar com base na

    1 Debora Diniz foi responsvel pela redao do artigo e Iara Guerriero pela reviso 2 Antroploga, atualmente professora adjunta da UnB e pesquisadora da Anis: Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero e compe a diretoria da International Association of Bioethics. 3 Coordenadora do Comit de tica em Pesquisa da Secretaria Municipal de Sade de So Paulo- 2002-2008. Membro da Comisso Nacional de tica em Pesquisa-CONEP- 2003-2007. Professora da ps-graduao em Cincias da Sade, na Faculdade de Medicina ABC.

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    comunidade acadmica de origem dos pesquisadores, nas tcnicas de pesquisa

    adotadas para seu desenho ou nas ambies argumentativas dos autores. O resultado

    que uma pesquisa com tcnicas qualitativas de levantamento de dados pode produzir

    um artigo acadmico, uma pea literria, uma videoarte ou um relato jornalstico.

    Para fins deste artigo, pesquisa social representar essa diversidade disciplinar

    reunida por um conjunto de tcnicas qualitativas de levantamento e anlise de

    dados.2,4 Independente do campo disciplinar de origem dos investigadores ou da

    insero acadmica do projeto de pesquisa, a pesquisa social ser aqui definida como

    aquela que utiliza tcnicas qualitativas de levantamento de dados, tais como

    observao participante, observao ordinria, entrevistas abertas ou fechadas,

    etnografia, auto-etnografia e grupo focal; ou como aquela que adota procedimentos

    analticos qualitativos, tais como teoria fundamentada, perspectivas feministas,

    hermenutica de profundidade e anlise de contedo.

    A pesquisa social traz uma srie de desafios ao sistema de reviso tica vigente

    no Brasil.3-6 Com a consolidao internacional dos sistemas de reviso tica, nos anos

    1980, teve incio uma acalorada discusso entre os campos biomdicos e sociais sobre

    a transposio das regras de reviso adotadas pelos comits de tica para as

    humanidades e, mais especificamente, para as pesquisas que utilizam tcnicas

    qualitativas de levantamento de dados.2,7-12

    A antropologia em particular foi um campo que precocemente reagiu ao

    modelo biomdico de reviso tica, considerado inadequado para avaliar as

    especificidades do mtodo etnogrfico - a principal tcnica de pesquisa adotada por

    antroplogos em trabalho de campo.13-15 Houve uma intensa resistncia matriz

    dedutivista dos sistemas de regulao tica, cuja inspirao est expressa nas sees

    de um projeto de pesquisa a ser avaliado pelos comits, em particular hiptese e termo

    de consentimento livre e esclarecido por escrito antes da fase de coleta de dados.10,16,17

    4 Isso no significa que no existam pesquisas sociais com tcnicas quantitativas. O uso do conceito neste artigo instrumental para representar a diversidade de campos e mtodos que fazem uso de tcnicas qualitativas de levantamento ou anlise dos dados.

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    O modelo de reviso tica por comits sediados em instituies no surgiu

    como resultado de uma ampla discusso entre os campos disciplinares nas

    universidades ou centros de pesquisa. Ao contrrio, foi um movimento poltico que

    imps aos pesquisadores de todas as reas do conhecimento novas regras de como se

    devia fazer pesquisa com tica. O processo poltico internacional originou-se, por sua

    vez, de debates acadmicos e discusses polticas nas associaes profissionais das

    reas biomdicas, em particular da pesquisa mdica. A Declarao de Helsinque,

    documento de autoria da Associao Mdica Mundial e, hoje, referncia regulatria

    para o campo da tica em pesquisa em todas as reas do conhecimento, um desses

    exemplos.18 Foram situaes reiteradas de m-prtica cientfica desde a Segunda

    Guerra Mundial que levaram pases e associaes profissionais a deliberar sobre o

    tema.6,19,20 Nesse processo de quase meio sculo entre o surgimento das primeiras

    declaraes e o debate entre os campos biomdicos e sociais sobre as atuais

    regulamentaes, as particularidades metodolgicas e ticas da pesquisa social foram

    pouco consideradas, e os campos disciplinares que majoritariamente utilizam as

    tcnicas qualitativas raramente participaram das deliberaes normativas.

    As tcnicas qualitativas desafiam as regras de reviso dos comits de tica em

    pesquisa basicamente por duas razes. A primeira o estatuto epistemolgico da

    produo do conhecimento: subjetividade e reciprocidade so valores a serem

    considerados em um desenho de pesquisa com tcnicas qualitativas de levantamento

    de dados.21 O encontro de pesquisa envolve investigadores e participantes em relaes

    sociais, um jogo simblico muito diferente do que se estabelece em rotinas de estudos

    biomdicos. A segunda razo sobre como se produz o conhecimento na pesquisa

    social: ao contrrio das tcnicas quantitativas, da interao entre a teoria e a empiria,

    isto , do encontro entre o pesquisador e o mundo social, que se gera o

    conhecimento.22 Grande parte das pesquisas sociais no possui hipteses; ou seja,

    esses no so estudos que antecipam achados de pesquisa, mas que se aproximam da

    realidade em busca de novas idias.3

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    Este artigo analisa alguns dos desafios impostos pela pesquisa social com

    tcnicas qualitativas ao processo de reviso tica vigente no Brasil. O fato de o

    modelo de regulao ter se inspirado nas particularidades metodolgicas e

    epistemolgicas dos saberes biomdicos traz uma srie de questionamentos sobre a

    pertinncia das regras de avaliao para as tcnicas qualitativas. O pressuposto deste

    artigo o da possibilidade de o atual modelo de reviso tica incorporar as tcnicas

    qualitativas, no sendo necessria a criao de um sistema alternativo. A proposta

    ampliar o debate por meio de uma sensibilizao para as peculiaridades das tcnicas

    qualitativas e de diretrizes especficas para a reviso tica da pesquisa social. No

    entanto, a fim de que esse esprito inclusivo se traduza em prticas justas e sensveis

    diversidade disciplinar do conhecimento, preciso que os comits estabeleam novas

    prticas de reviso tica. Se, por um lado, os princpios ticos so universais no

    cenrio da pesquisa, por outro, sua traduo em regras de procedimento para o

    trabalho dos comits deve ser diversa. Gira em torno desse exerccio de traduo de

    princpios universais em regras ticas sensveis diversidade disciplinar o tema deste

    artigo.

    Um Pouco da Histria entre tica e Pesquisa Social

    O debate brasileiro sobre as fronteiras entre tica em pesquisa e tcnicas

    qualitativas recente. As primeiras publicaes datam dos anos 2000 e so

    marcadamente de resistncia incorporao da pesquisa social ao sistema de reviso

    tica institudo pela Resoluo CNS 196/1996.4,5,23-25 Internacionalmente, em

    particular em pases como os Estados Unidos e o Canad, a discusso teve incio nos

    anos 1980, quando autores de referncia para o debate biomdico se aproximaram das

    questes ticas lanadas pela pesquisa social. Os principais temas em questo dessa

    primeira fase da tica na pesquisa social foram o modelo de termo de consentimento

    livre e esclarecido como um contrato, os desafios da tcnica de dissimulao para a

    coleta de dados, especialmente utilizada pela psicologia social, e as noes de riscos e

    benefcios das pesquisas sociais quando comparadas s pesquisas biomdicas.26,27

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    A obra Ethical issues in social science research pode ser considerada um

    marco inicial para o debate sobre a avaliao tica da pesquisa social.26 Composto por

    dezenove captulos, o livro, cujo sumrio antecipa as principais questes de trinta

    anos de futuro debate, resultou de um trabalho coletivo, em que a vasta maioria dos

    autores era de cientistas sociais, juristas ou filsofos. Todos assumiram para si o

    compromisso no apenas de reconhecer a importncia da tica na prtica cientfica,

    mas tambm de desafiar o modelo biomdico vigente aps o Relatrio Belmont, a

    teoria principialista e o surgimento do modelo de reviso tica por comits

    institucionais. Apesar da diversidade de argumentos e de posies entre os autores, a

    tendncia da obra foi a de assinalar que a pesquisa social deveria ser submetida aos

    sistemas de reviso tica: reafirmou-se a diversidade disciplinar e metodolgica entre

    os campos, mas tambm se registrou a centralidade da reviso tica para a promoo

    da pesquisa cientfica.

    Mas essa tentativa de incluso da pesquisa social no sistema de reviso tica

    no se deu sem dvidas sobre quais regras seriam justas para a avaliao. Foi quase

    que simultaneamente que os Institutos Nacionais de Sade (NIH) dos Estados Unidos,

    principais rgos apoiadores da consolidao do sistema de reviso tica naquele pas,

    promoveram um grande debate sobre o tema da tica na pesquisa social e

    comportamental. Diferentemente de Ethical issues in social science research, cujos

    autores eram das humanidades e que tinha como uma das pautas centrais de

    discusses a operacionalizao do mtodo etnogrfico diante das novas regras de

    reviso tica, NIH readings on the protection of human subjects in behavioral and

    social science research assumiu outro tom.26,27 A agenda eram as pesquisas

    comportamentais da psicologia, em especial os estudos com tcnicas de dissimulao

    para a coleta de dados. Enquanto a primeira obra buscava provocar os limites do

    modelo de reviso tica luz das particularidades da pesquisa social, a segunda era

    um quase-guia para o trabalho de reviso nos comits, muito embora pouco sensvel

    profundidade do debate epistemolgico e poltico entre os campos biomdicos e

    sociais.

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    Essas duas obras so exemplares para indicar a polarizao do campo da tica

    em pesquisa nos ltimos trinta anos. De um lado, esto autores e pesquisadores que

    desconfiam do modelo de reviso tica inspirado na pesquisa biomdica como vlido

    para todos os campos disciplinares. De outro lado, esto aqueles que ignoram as

    particularidades da pesquisa social e sustentam que as regras adotadas pelos comits

    de tica traduzem os princpios que devem conduzir a pesquisa cientfica em qualquer

    rea do conhecimento. Essa tenso entre as teses tanto estimulante para a reflexo,

    pois questiona postulados considerados universais, quanto desafiante para a

    consolidao do campo da tica em pesquisa social, uma vez que dificulta aes de

    reviso do atual sistema, pois no h consenso de que a pesquisa social deva se

    submeter aos comits para reviso.

    De uma maneira geral, o tema da tica na pesquisa social no ocupou a agenda

    de debates dos investigadores sociais. Mesmo em eventos internacionais sobre tica

    em pesquisa e biotica, os desafios da pesquisa social tangenciam as discusses. No

    Brasil, essa ainda uma questo de pesquisadores sociais liminares entre as

    humanidades e os saberes biomdicos, em particular daqueles que tm como objeto de

    estudo o mundo da sade e da doena. Foi, na verdade, a imposio do sistema de

    reviso por meio das agncias de fomento pesquisa, das instituies de sade onde

    os dados seriam coletados ou dos peridicos na interface entre a biomedicina e as

    humanidades o que levou os primeiros pesquisadores sociais a seriamente enfrentarem

    o tema da tica em pesquisa.

    Campos Discursivos

    A tica em pesquisa organiza-se em torno de trs campos discursivos. O

    primeiro o das normas e regulamentaes nacionais e internacionais. No Brasil, os

    comits de tica revisam os projetos de pesquisa de acordo com a Resoluo CNS

    196/1996 e outras resolues complementares do Conselho Nacional de Sade, que,

    por sua vez, dialogam com documentos internacionais, tais como o Cdigo de

    Nurembergue, a Declarao de Helsinque ou as Diretrizes CIOMS/OMS.28 H um

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    esforo argumentativo em torno das revises e adequaes desses documentos para

    regular a pesquisa em cada pas e os estudos multicntricos internacionais.

    O segundo campo o da construo argumentativa sobre quais princpios

    ticos devem fundamentar as regras e os procedimentos de reviso pelos comits. H

    um extenso debate, na fronteira da filosofia moral e da tica aplicada, sobre

    confidencialidade, privacidade, sigilo, vulnerabilidade, proteo e responsabilidade,

    em uma ampla agenda terica na biotica. Esse o campo que mais aproxima a tica

    em pesquisa dos fruns nacionais e internacionais de biotica. O terceiro campo o

    dos estudos de caso e relatos de pesquisas e experimentos. A construo genealgica

    da tica em pesquisa traada por meio de casos paradigmticos que desafiaram a

    tranqilidade da pesquisa biomdica: os experimentos nazistas, os artigos resenhados

    por Henry Beecher e as denncias do Estudo Tuskegee so alguns dos mais

    conhecidos.19,28

    Um processo de reconstruo genealgica do campo da tica na pesquisa

    social vem sendo desenhado de maneira semelhante, com alguns casos j fazendo

    parte da literatura de anlise. Poucos estudos sociais foram objeto de controvrsia

    tica durante a fase de coleta de dados, pois na maioria dos casos o dilema surgiu aps

    a divulgao dos resultados.8,29 Esse fenmeno aponta para uma das particularidades

    ticas na pesquisa social: diferentemente da pesquisa biomdica, seus principais

    desafios no esto na proteo dos direitos e interesses dos participantes durante a

    fase de coleta de dados. Como regra geral, grande parcela das pesquisas sociais

    envolvem risco mnimo aos participantes, ou seja, risco semelhante ao de qualquer

    relao social fora do contexto de pesquisa.30 na fase de divulgao dos resultados

    que esto os maiores desafios ticos, tais como garantia de anonimato e sigilo, idias

    sobre representao justa, compartilhamento dos benefcios da pesquisa, devoluo

    dos resultados, etc.

    exatamente por essa particularidade das pesquisas sociais a existncia de

    risco mnimo na coleta de dados, seguida, porm, de questionamentos ticos sobre a

    divulgao dos resultados que cinco estudos ascenderam ao patamar de casos

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    clssicos da tica nos estudos sociais: a pesquisa de Willian Foot Whyte sobre a vida

    social em um subrbio nos Estados Unidos;31,32 a pesquisa sobre parentesco e gentica

    entre os Yanomami, de Napoleon Chagnon;33,34 a pesquisa sobre prticas

    homossexuais no espao pblico, de Laud Humphreys;35 a pesquisa sobre

    aconselhamento gentico e equipe de sade, de Charles Bosk;29,36 e a pesquisa sobre

    movimentos sociais de direitos dos animais, de Rik Scarce.37,38 Alguns desses estudos

    foram conduzidos muitos anos antes de o debate tico ter se travado, levando a uma

    discusso retroativa sobre prticas e condutas durante o trabalho de campo, como foi

    o caso de Whyte e Chagnon; em outros, a controvrsia tica deu-se em uma fase

    pouco usual, isto , antes da divulgao oficial dos resultados, com o acesso dos

    participantes aos relatrios de pesquisa, como ocorreu com Bosk; e, no caso de

    Scarce, a polmica surgiu por meio de aes judiciais.

    Esses estudos foram casos isolados no universo das pesquisas sociais. Grande

    parte das tcnicas qualitativas de levantamento de dados consiste em observaes e

    entrevistas. Em ambas, o risco de dano aos participantes mnimo, o que no presume

    que risco mnimo o mesmo que inexistncia de questionamentos ticos. No entanto,

    o carter singular desses cinco casos o que facilita a identificao de alguns dos

    principais desafios ticos na pesquisa social. Foram situaes-limites as lanadas por

    esses estudos: uma combinao entre motivaes dos pesquisadores, objetivo de

    pesquisa e construo da narrativa. A excepcionalidade dos casos permite o raciocnio

    sobre os desafios ticos da pesquisa social.

    Os Casos da Pesquisa Social

    1. Sociedade da Esquina

    O estudo de Whyte foi conduzido em um subrbio pobre de Boston em final

    dos anos 1930. Esse era um momento de descoberta da etnografia como mtodo de

    pesquisa social qualitativa em grupos urbanos. Era ainda uma fase de grande avano

    da etnografia antropolgica em comunidades indgenas ou aborgenes, sendo um

    marco desse perodo o relato de campo de Bronislaw Malinowski.39 O livro Sociedade

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    da esquina foi publicado pela primeira vez em 1943 e ainda hoje uma pea exemplar

    de etnografia densa em sociedades urbanas.32 Whyte vivera no subrbio entre 1936 e

    1940, e a obra um relato da vida de jovens rapazes que se organizavam em grupos

    conhecidos como gangues de rua. O informante-chave de Whyte foi Doc, um

    pseudnimo para um talo-americano que no apenas o apresentou vida comunitria

    dos imigrantes, mas tambm o disciplinou sobre regras bsicas de sobrevivncia e

    relao social.

    Doc teve um papel central na etnografia de Whyte. Foi ele quem traduziu para

    os membros da comunidade as razes de um pesquisador universitrio pertencente a

    outra classe social viver entre eles e fazer perguntas sobre seus comportamentos e

    crenas. Em muitos estudos etnogrficos de longa permanncia no campo, no h

    aceitao institucional inicial, mas contatos prvios com informantes-chaves, os quais

    garantiro a entrada fraterna na sociedade ou no grupo a ser estudado. Em uma

    analogia com as pesquisas biomdicas, Doc representou o papel do diretor de um

    hospital que consente com a entrada dos investigadores na instituio. Mas,

    contrariamente a essa analogia, no h como apresentar um termo formal a Doc, assim

    como se exige de diretores de hospitais, chefes de presdios ou diretoras de escolas.

    Doc no representava os interesses da comunidade, era apenas um informante-chave

    de Whyte. Mas foi algum que, ao mesmo tempo, assegurou a entrada do etngrafo no

    campo e o protegeu das suspeitas da comunidade. Whyte estudava uma prtica ilegal,

    a formao de grupos em gangues.

    Em edies posteriores da obra, Whyte introduziu anexos em que discutiu

    alguns dos desafios metodolgicos e ticos enfrentados durante o trabalho de campo.

    Talvez o carter mais original de sua obra esteja exatamente nessas novas peas, um

    espao onde ele exps alguns dos impasses com que se deparou pelas contingncias

    da pesquisa qualitativa com longa permanncia no campo. O tema de um nmero

    especial da revista Journal of Contemporary Etnography em 1992 foi o Anexo A da

    obra. Nele, Whyte revelou algumas de suas infraes de conduta no campo e contou

    como foi seu retorno ao subrbio quase 30 anos depois.40 O relato coloquial e

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    assume um tom quase literrio pela leveza das histrias vividas pelo jovem etngrafo.

    A voz, porm, a de um socilogo maduro falando sobre o seu passado como

    pesquisador: ele conta como se viu compelido a burlar as eleies comunitrias

    votando mais de uma vez no candidato do seu grupo; como aprendeu a ouvir mais do

    que fazer perguntas; e os erros que cometeu na definio de seu tema de pesquisa.31

    Do ponto de vista tico, entretanto, alguns comentaristas da obra provocaram o

    autor em duas frentes. A primeira foi o fato de ter burlado as eleies, pois violei

    uma regra fundamental da observao participante: busquei influenciar os

    eventos.32:231 Whyte justificou essa infrao de conduta como um ato no planejado

    de sua parte, um mpeto ingnuo provocado pelas relaes fraternas que havia

    estabelecido com seus informantes. Votar inmeras vezes em um mesmo candidato

    era uma prtica compartilhada entre os rapazes da esquina, o que o fez imaginar ser

    esse tambm o seu dever como um observador participante do grupo. A enunciao

    pblica desse incidente abriu espao para uma discusso importante entre os

    etngrafos sobre at onde se inserir na vida social durante um trabalho de campo com

    tcnica de observao participante. Como estabelecer limites sem romper com as

    relaes de confiana e solidariedade entre etngrafo e informantes? Por outro lado,

    como se manter no lugar de pesquisador para no criar falsas impresses de que se

    mais um na comunidade?

    O objetivo de Whyte com essa confisso pblica foi antes o de abrir o debate

    sobre os tnues limites afetivos e ticos que se estabelecem entre pesquisadores e

    informantes em um trabalho de campo do que propriamente apresentar teses

    definitivas sobre como um etngrafo deve construir sua relao com os informantes.

    No h respostas absolutas para esse dilema, mas a enunciao do desafio foi um

    grande passo para o debate. Uma possvel regra de conduta sugerida por Whyte seria a

    de que tive que aprender que, para ser aceito pelas pessoas num distrito, voc no

    precisa fazer tudo exatamente como elas fazem, uma crtica j extensamente

    enunciada pela antropologia sobre a falsa pretenso de tornar-se um nativo.32:314-5 A

    riqueza da tcnica da observao participante em um trabalho de campo exatamente

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    a negociao permanente dessa ambigidade relativa ao lugar ocupado pelo

    pesquisador: como algum externo comunidade, mas que nela vive, querendo

    entend-la, que se coletam os dados.

    O segundo tema de controvrsia tica foi o fato de Whyte ter rompido o

    anonimato de Doc na edio de 1981 da obra e de no ter dividido os benefcios do

    livro com ele. Em razo de Doc j haver falecido, Whyte se sentiu tranqilo para

    explicitar detalhes etnogrficos, tais como o nome verdadeiro de seu personagem

    central. No h evidncias de quais danos essa quebra de anonimato teria causado a

    Doc ou seus familiares, muito embora o livro seja um relato de como gangues de

    rapazes atuavam, ou seja, em certa medida, prticas ilegais estavam envolvidas. A tal

    ponto o tema do anonimato est ligado a expectativas sobre representaes do grupo

    que um dos informantes de Whyte, em conversa com ele aps ter lido o livro, o

    questionou: Tudo o que voc descreveu sobre o que ns fizemos totalmente

    verdadeiro, mas devia ter destacado que ramos apenas jovens naquela poca. Aquilo

    era uma fase que estvamos atravessando. Mudei um bocado desde aquele

    tempo.32:343

    Whyte conta que, durante quase trinta anos, a obra somente lhe deu prejuzos

    financeiros. No apenas porque ele teve que pagar para public-la, mas tambm pelo

    carter irrisrio das vendas. Se o livro lhe rendeu algum benefcio financeiro, foi

    tardiamente e aps largos investimentos de tempo e recursos. No entanto, um dos

    comentaristas de Whyte lanou a questo se Doc, por ter sido o informante-chave e

    quase-tradutor da vida social, no mereceria o status de co-pesquisador para a diviso

    dos benefcios da obra.40 Essa , na verdade, uma pergunta que levanta dvidas sobre

    qual deve ser o status de um informante-chave em uma etnografia o de participante,

    o de co-pesquisador ou de co-autor? H quase que um consenso em reconhec-lo

    como um participante, mas, a depender de como se entenda essa relao de

    reciprocidade estabelecida durante o trabalho de campo, possvel imputar desvios

    ticos do etngrafo-autor aps sua sada do campo. O desafio da pesquisa etnogrfica

    est exatamente nessa ambigidade entre os laos afetivos que genuinamente se

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    formam durante o trabalho de campo e a autoridade narrativa do autor, um novo

    personagem que surge aps a sada do pesquisador do campo.

    2. Yanomami: um povo feroz?

    O caso da pesquisa sobre o sangue yanomami ficou internacionalmente

    conhecido aps a publicao de uma obra do jornalista Patrick Tierney, Trevas no

    Eldorado: como cientistas e jornalistas devastaram a Amaznia e violentaram a

    cultura ianomami.41,5 A histria data dos anos 1960, quando um grupo de

    pesquisadores estadunidenses iniciou um extenso estudo gentico, epidemiolgico e

    antropolgico com diferentes comunidades yanomamis no Brasil e na Venezuela.

    Nessa ocasio, pelo menos 12.000 amostras de sangue yanomami foram coletadas e,

    at hoje, parte delas ainda se encontra estocada em diferentes universidades nos

    Estados Unidos. Outras amostras foram recentemente devolvidas s lideranas

    yanomamis para destruio.42

    O livro de Tierney apresentou srias acusaes contra dois conhecidos

    cientistas: James Neel, geneticista, e Napoleon Chagnon, antroplogo, cujas obras e

    filmes etnogrficos formaram uma gerao de antroplogos. Neel e Chagnon

    compunham uma equipe de sociobiologistas cujo principal objetivo de pesquisa era

    investigar as bases genticas da violncia e sua relao com as prticas reprodutivas.

    Os yanomami eram a populao ideal para esse tipo de pesquisa, dada a sua descrio

    como um povo violento e selvagem e a sua situao de profundo isolamento, o que

    garantia uma homogeneidade gentica do grupo. A construo social dos yanomami

    como um povo primitivo era um atrativo adicional para testar as fronteiras entre

    biologia e cultura nas sociedades humanas: a busca do gene da violncia e suas

    relaes com o comportamento reprodutivo poderia ser uma hiptese pela primeira

    vez testada em um grupo populacional especfico.

    Chagnon o autor de um dos livros mais conhecidos e populares sobre os

    yanomami, Yanomam: the fierce people.34 O argumento do livro, que vendeu mais 5 Esse caso foi originalmente apresentado em uma verso mais detalhada em Diniz, 2007.

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    de trs milhes de exemplares, uma cifra considervel para obras de antropologia,

    de que a violncia ocupa um papel central nas sociedades yanomamis.33 Em parceria

    com Neel, Chagnon defendeu a tese de que a violncia teria um fundamento gentico:

    os yanomami seriam geneticamente propensos violncia.43,44 Essa caracterizao do

    povo yanomami como violento tinha um duplo apelo: por um lado, era uma referncia

    idia ainda vigente na poca de que as sociedades indgenas eram grupos primitivos

    que representariam parte de um processo evolutivo da humanidade; por outro, era uma

    manifestao da crena de que os yanomami eram selvagens por causa da violncia

    estrutural. A selvageria seria, portanto, o resultado de uma propenso gentica ao uso

    da fora fsica, e tambm uma expresso do processo evolutivo das sociedades

    indgenas.

    Um trao cultural dos povos yanomamis que o nome pessoal no revelado

    em pblico.45 Referir-se a algum enunciando seu nome um grave insulto. Em geral,

    a resposta de um yanomami pergunta qual o seu nome? uma mentira. A

    descortesia no est em mentir, mas sim na insistncia de um no-yanomami em saber

    uma informao que socialmente considerada secreta. Um insulto ainda mais grave

    perguntar o nome de uma pessoa j morta. Os nomes prprios so espcies de

    codinomes, altamente pejorativos, que descrevem marcas, leses ou mesmo estigmas

    corporais. possvel, por exemplo, que o nome de uma criana yanomami com lbio

    leporino faa referncia a essa marca corporal. Mas o nome no apenas uma

    descrio de sua condio fsica: tambm uma enunciao depreciativa do

    indivduo. Por isso, os nomes so secretos e sua explicitao considerada um

    insulto.45

    Nesse contexto social e cultural de nomes prprios como insultos, fcil

    imaginar os desafios de uma pesquisa gentica em que a reconstituio das

    genealogias familiares pressupunha a identificao de cada pessoa em um dado

    ordenamento familiar. Era preciso coletar informaes no apenas dos indivduos,

    mas de colaterais, de ascendentes, de descendentes e da famlia extensa. Uma vez que,

    tradicionalmente, a pesquisa gentica realiza esse levantamento por meio dos nomes

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    prprios, o fato de os nomes serem um tabu cultural exigia de Neel e Chagnon ou a

    interrupo da pesquisa ou estratgias culturalmente sensveis para a coleta das

    informaes sobre parentesco e filiao dos yanomami. A escolha de Chagnon,

    contudo, foi por ignorar os valores yanomamis e manter os parmetros tradicionais da

    pesquisa gentica entre grupos urbanos: as genealogias foram montadas recuperando-

    se os nomes individuais e sua rede de parentesco, inclusive dos yanomamis j mortos.

    Chagnon era o pesquisador responsvel pelo levantamento dessas informaes.

    [...] Uma de minhas tarefas fornecer aos meus colegas genealogias mnimas para

    uso nos estudos familiares sobre genes hereditrios [...], escreveu Chagnon em um de

    seus livros.34:8 Mas, em vez de utilizar sua sensibilidade etnogrfica para identificar

    possveis estratgias de levantamento dos dados sem provocar ofensas aos valores

    locais, Chagnon optou por duas tcnicas de pesquisa: 1. oferecer presentes s crianas

    para que elas revelassem os seus nomes e os nomes de seus familiares; e 2. oferecer

    presentes aos inimigos dos yanomamis para que eles informassem os nomes dos

    yanomamis.34,41 O teste de veracidade da informao era feito enunciando o nome da

    pessoa e avaliando a intensidade da indignao provocada. Nas palavras de Chagnon,

    [...] eu fiz uso das brigas e animosidades locais para selecionar meus informantes

    [...].34:12 Com essa dupla estratgia, o antroplogo recuperou grande parte das

    genealogias yanomamis.

    Os dados apresentados diziam respeito a informaes secretas e tabus

    culturais, como o caso dos nomes prprios. Chagnon no apenas reuniu esses dados

    por meio de estratgias consideradas controversas, mas principalmente os tornou

    internacionalmente pblicos por meio de livros e filmes. preciso lembrar que um

    dos mtodos de Chagnon era recrutar crianas em troca de presentes, situao que

    permite inclusive questionar a validade dos dados coletados, uma vez que as crianas,

    querendo presentes, poderiam mentir para obt-los. Com os nomes prprios

    levantados e as genealogias recuperadas, a equipe de Neel iniciou a coleta das

    amostras de sangue para fins de pesquisa, mas, ao que tudo indica, sob o argumento

    de que a coleta era parte de um procedimento preventivo de sade pblica.

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    Por fim, uma das perguntas mais atuais sobre o caso do sangue yanomami diz

    respeito ao tema dos benefcios compartilhados ps-pesquisa. Regra geral, as

    pesquisas em cincias sociais no so lucrativas como as pesquisas biomdicas

    financiadas por laboratrios ou que envolvem patentes de medicamentos, por

    exemplo. No entanto, em situaes excepcionais, possvel ganhar dinheiro,

    benefcios e prestgio por meio das pesquisas. Chagnon um exemplo de pesquisador

    social que ganhou muito dinheiro, pois seus livros e filmes foram extensamente lidos

    e assistidos em vrios pases do mundo estima-se que ele j recebeu mais de 1

    milho de dlares em direitos autorais de suas obras.33 H um dever moral de dividir

    esses ganhos financeiros e simblicos com os grupos pesquisados? Se sim, como

    proceder? As obrigaes ps-pesquisa devem tambm estar na pauta das discusses

    nas cincias humanas ou esse deve ser um tema restrito s cincias biomdicas?

    3. Prticas homossexuais no espao pblico

    Minha pesquisa em banheiros pblicos sobre prticas homossexuais exigia a

    dissimulao. Isso constitui uma violao da tica profissional?.46:167 Humphreys

    tinha conscincia do desafio tico de suas estratgias metodolgicas durante o

    trabalho de campo: dissimulao e disfarce. Sua pesquisa foi conduzida em banheiros

    pblicos nos Estados Unidos com homens annimos que se encontravam para prticas

    fortuitas de sexo com outros homens. Humphreys ganhou a confiana dos

    freqentadores dos banheiros assumindo o lugar de voyeur no jogo ertico, cujo papel

    na observao tambm era, porm, o de anunciar a chegada de estranhos ou da

    polcia. Durante meses, registrou em seu dirio de campo histrias, prticas, hbitos e

    rotinas dos homens nos banheiros pblicos em prtica de felao. A segunda parte do

    trabalho de campo consistia em entrevistar 134 homens em suas casas. Para tanto,

    registrou suas placas de carro e, com a ajuda de um policial, teve acesso aos seus

    endereos. Com uma amostra de 100 homens nas mos dos quais conseguiu o registro

    do domiclio, cadastrou-se como voluntrio no servio de sade pblica da regio e

    participou de um grande survey sobre sade masculina. Com a autorizao do

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    coordenador da pesquisa, incluiu suas perguntas e pessoalmente entrevistou 50

    homens dos banheiros pblicos e 50 homens como grupo-controle.

    Humphreys era um jovem socilogo cujo trabalho de doutoramento resultou

    na publicao de Tearoom trade: impersonal sex in public spaces em 1970.35,6 Sua

    dupla formao padre e socilogo e sua contnua afirmao de que no participava

    das cenas homoerticas abriram espao para uma enxurrada de discusses ticas sobre

    suas tcnicas de pesquisa. A primeira fase do trabalho de campo exigiu dissimulao.

    Humphreys assumiu o lugar de um dos personagens dos encontros secretos dos

    banheiros: o de voyeur. Como voyeur, considerou-se um observador participante das

    cenas sexuais. Na segunda fase do trabalho de campo, para proteger-se de ser

    reconhecido pelos homens annimos, o pesquisador fez uso de disfarces: Modifiquei

    meu corte de cabelo, minha barba e troquei de carro. Mesmo sob o risco de perder

    alguns informantes, esperei um ano entre a observao nos banheiros e as

    entrevistas.35:179 Se a primeira parte da pesquisa ocorreu em banheiros pblicos, a

    segunda foi na casa dos homens. A defesa de Humphreys para o uso dessas tcnicas

    de pesquisa foi a alegao de que somente com dissimulao teria acesso ao mundo

    secreto das prticas homossexuais em espaos pblicos, e de que somente com o

    disfarce teria acesso vida domstica dos homens para as entrevistas. Juntas, essas

    duas tcnicas ofereceriam dados suficientes para suas anlises, cujas motivaes

    polticas eram romper com a homofobia.

    H quem considere que as motivaes de pesquisa de Humphreys justificavam

    o uso das tcnicas de dissimulao e disfarce. Outros defendem suas tcnicas pelo fato

    de que a identificao dos homens se deu em um espao pblico; no teria havido,

    portanto, uma violao de privacidade. No entanto, grande parte do debate em torno

    da obra deu-se em relao a como as tcnicas de dissimulao e disfarce na pesquisa

    social restringem liberdades e podem violar a privacidade e a intimidade dos

    participantes.46-50 No campo da psicologia social, as tcnicas de dissimulao ainda

    6 Tearoom a expresso coloquial em lngua inglesa para os encontros homossexuais em banheiros pblicos.

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    so estratgias recorrentes para simular situaes sociais cotidianas ou privadas, com

    o intuito de compilar dados que no teriam como ser coletados a partir de observaes

    ordinrias. Nos anos 1990, James Korn estimou que 50% das pesquisas nesse campo

    utilizavam tcnicas de dissimulao.51 Em outras reas da pesquisa social, no entanto,

    essas tcnicas provocam extensas controvrsias ticas h dcadas.10,52,53

    Grande parte dos comentaristas de Humphreys organizou as controvrsias

    ticas de acordo com as fases da pesquisa. Se, na primeira etapa do trabalho de

    campo, o fato de o objeto em observao serem encontros annimos em espao

    pblico protegeu Humphreys de acusaes de violao de intimidade, a mesma

    explicao no foi suficiente para justificar a segunda fase. Humphreys entrou na casa

    dos homens, conheceu suas intimidades, fez perguntas sobre suas vidas conjugais,

    familiares e afetivas. A tal ponto alguns comentaristas consideram ter havido violao

    da intimidade que, imediatamente aps a divulgao da pesquisa pela mdia e a

    abertura do processo disciplinar contra Humphreys, vrios homens procuraram a

    universidade sentindo-se ameaados por uma possvel divulgao de seus nomes e

    histrias.50 Humphreys defendeu-se descrevendo minuciosamente como planejou cada

    etapa da pesquisa, como queimou os originais do dirio de campo, como retirou

    registros de identificao das entrevistas, enfim, explicando como teria planejado cada

    fase do trabalho de campo de forma a resguardar o anonimato e o sigilo de seus

    informantes.46 Nenhum homem foi identificado, mesmo aps a intensa contestao

    pblica que o livro provocou.

    Uma das perguntas centrais instigadas pela obra foi sobre at onde a

    curiosidade cientfica pode avanar em temas da vida privada das pessoas.

    Humphreys fazia parte de uma gerao de socilogos que acreditava na importncia

    de se investigar todas as esferas da vida social, em particular o que se conhecia como

    comportamentos desviantes, nos anos 1960. O mundo gay era um desses aspectos

    desconhecidos e secretos da sociedade. Nesse contexto, Humphreys foi um heri,

    tendo recebido o Prmio C. Wright Mills de Sociologia pelo rigor acadmico, pela

    forma como protegeu seus informantes e pela ousadia da obra. Contudo, outros

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    socilogos crem que certas esferas da vida humana somente podem ser

    compartilhadas pelo escrutnio cientfico se houver o explcito consentimento dos

    participantes. Isso no significa que devem existir segredos para a curiosidade

    cientfica, mas sim que os segredos apenas podem ser desvelados com a cumplicidade

    de seus detentores.

    4. Aconselhamento gentico e equipes de sade

    Charles Bosk seguiu a tradio de tons confessionais iniciada por Whyte no

    apndice de All Gods mistakes: genetic counseling in a pediatric hospital, uma

    etnografia sobre o trabalho mdico de aconselhamento gentico em uma unidade

    peditrica de terapia intensiva nos Estados Unidos.36 A obra foi escrita dez anos

    depois da pesquisa, por isso uma combinao de memrias com relatos de campo. A

    dcada de 1980 marcou o ressurgimento da gentica clnica como uma especialidade

    mdica pautada no princpio do respeito autonomia, um divisor de guas para o

    passado eugnico do nazismo. Mas, diferentemente de grande parte da tradio

    etnogrfica na antropologia mdica, Bosk optou por ter a equipe mdica como

    participante da pesquisa. Incluir os mdicos como informantes do estudo significou

    desloc-los de detentores do saber para o espao social de que, tradicionalmente,

    haviam se distanciado: o de participantes de uma pesquisa. Esse deslocamento trouxe

    uma srie de desafios ticos fase de divulgao dos resultados, algo recorrente na

    pesquisa com grupos urbanos de elite que tm acesso aos relatos etnogrficos.29,54

    A entrada no hospital se deu de uma maneira inusitada um convite da equipe

    mdica para que o pesquisador acompanhasse e entendesse o trabalho dos mdicos no

    aconselhamento gentico. Em outras palavras, Bosk foi convidado para ser um

    etngrafo do aconselhamento gentico. Algumas regras foram acordadas nesse

    convite: seria garantida a confidencialidade dos participantes, no haveria

    identificao do hospital, e o foco das atenes seriam os profissionais e no os

    pacientes. O hospital foi descrito como um centro de referncia para o

    aconselhamento gentico e chamado de Nightingale, o que comprova a preocupao

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    de Bosk em estabelecer um conjunto de descritores que se aproximassem do real

    etnogrfico, mas que preservassem o anonimato dos informantes e da instituio.

    Se, para outros etngrafos, a distncia social e cultural entre pesquisador e

    grupo social permanentemente anunciada por marcadores raciais, lingsticos ou de

    gnero, no caso de Bosk, eu era apenas outro homem branco, um mdico

    engravatado fazendo perguntas e tomando notas.36:173 A proximidade simblica entre

    etngrafo e participantes, associada entrada no campo por um convite da equipe

    mdica, fortaleceu expectativas de cumplicidade na narrativa etnogrfica: a etnografia

    no deveria causar surpresas para o ponto de vista da equipe sobre si mesma, mas

    seria um fortalecimento de seu senso de identidade e de pertencimento ao carter

    quase-sagrado do ofcio.

    No foi isso o que aconteceu. Inspirado na idia de que uma boa etnografia

    aquela que descortina o no-dito pela ordem social vivida, tornando manifesto o

    latente,29:209 Bosk foi fiel ao seu compromisso etnogrfico: a equipe mdica era o seu

    grupo de pesquisa, por isso suas rotinas, jarges, ironias e disputas foram descritas.

    Uma verso impressa do livro foi apresentada ao diretor do hospital, o informante-

    chave na pesquisa, antes de sua divulgao. A reao foi imediata: Servio de

    limpeza, zeladores, amortecedores... no, Bosk, voc no contou isso, disse Bill. A

    mdica assistente ao seu lado perguntou: Mas por que no? Voc diz isso todos os

    dias. Bill respondeu: Mas isso diferente. Eu digo isso para vocs, dentro das

    paredes de meu consultrio. Uma coisa dizer isso para vocs, que sabem o que eu

    penso. Outra coisa colocar isso para o mundo. Como irei continuar trabalhando com

    essas pessoas?.29:208 Bill, pseudnimo para o diretor do hospital, passou a questionar

    Bosk sobre as fronteiras entre um membro da equipe e um observador externo. Onde

    estava o termo de consentimento livre e esclarecido para cada dilogo, cada encontro,

    cada passagem do dirio de campo? A pertinncia dessa questo, entretanto,

    discutvel. Nem na pesquisa biomdica o termo de consentimento solicitado antes de

    cada procedimento, havendo apenas uma autorizao para a incluso no estudo.

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    Bosk iniciou, ento, uma grande disputa com a equipe do hospital. O projeto

    de pesquisa havia sido aprovado por um comit de tica de sua universidade e contava

    com o consentimento livre e esclarecido de toda a equipe de geneticistas. Era um

    consentimento inicial para a entrada no hospital, com esclarecimentos sobre os

    objetivos do estudo e a longa permanncia do pesquisador no servio de terapia

    intensiva, mas no para cada cena social registrada no dirio de campo. Durante a

    disputa pela no-publicao dos originais, uma das estratgias argumentativas

    lanadas pelo diretor do hospital foi a de tentar traduzir o consentimento para a

    etnografia em termos do consentimento para as pesquisas biomdicas: o

    consentimento teria que ter sido para um conjunto especfico de procedimentos

    tcnicos, tais como exames de sangue, testes de medicamentos ou outros

    procedimentos clnicos, o que significaria para a etnografia que no h consentimento

    geral, sendo preciso consentimento para cenas sociais pr-determinadas. Esse

    raciocnio analgico significaria a prpria impossibilidade da pesquisa etnogrfica,

    pois uma rotina de rupturas contnuas para anncio do termo de consentimento

    modificaria a ordem social e impediria a fluidez dos fenmenos sociais.

    Essa controvrsia levou Bosk e o diretor do hospital a um acordo: detalhes que

    permitissem identificao seriam substitudos; erros que porventura houvesse na

    descrio de doenas ou diagnsticos seriam corrigidos; no entanto, a interpretao

    seria exclusiva do pesquisador-autor e no compartilhada com a equipe de

    participantes.29 A polmica com a pesquisa etnogrfica no se deu durante a pesquisa

    de campo, pois as perguntas no foram incmodas; a presena diuturna do etngrafo

    no causou estranhamento; e seus hbitos de anotar dilogos, rotinas ou surpresas no

    foram objeto de maiores questionamentos. O tema da controvrsia foi a quem cabia o

    direito interpretao dos dados, que Bosk assumiu como de sua exclusividade. Foi a

    partir da que a equipe passou a rever a concepo de zona de pesquisa em que o

    etngrafo vivia. Para os participantes, aquilo era sua vida privada no trabalho; para o

    etngrafo, era uma situao de pesquisa. A equipe de sade no identificou erros na

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    descrio etnogrfica, mas se sentiu incomodada, e at mesmo humilhada, com os

    precisos relatos de Bosk.

    Esse incidente fez com que Bosk se aproximasse da biotica e passasse a

    escrever sobre os desafios ticos do mtodo biomdico para a etnografia, mas tambm

    sobre as prprias particularidades ticas da etnografia.7,8 Se as regras de reviso tica

    forem consideradas as mesmas para todos os campos, no h como se manter o

    mtodo etnogrfico como uma tcnica de pesquisa vlida. A pergunta de Bosk sobre

    como ns poderemos esperar que nossos sujeitos intuam nossos objetivos, que vejam

    o mundo claramente a partir de nosso ponto de vista?29:214 ainda inquietante, caso a

    tica na pesquisa social seja considerada pelo grau de satisfao dos participantes com

    o relato etnogrfico. Isso, em geral, no ir ocorrer. Por isso, grande parte das

    controvrsias ticas na pesquisa social reside na fase de divulgao dos dados, em

    especial quando a pesquisa se desenvolve com grupos que tm acesso aos resultados

    do estudo, como ocorreu com Bosk.2,53 Certamente, esse tema foi um desafio tico

    que acompanhou a prpria gnese do mtodo etnogrfico; porm, como as primeiras

    pesquisas foram conduzidas com grupos sem acesso aos relatos etnogrficos, essa

    pergunta no fez parte das primeiras geraes de etngrafos.

    5. Movimentos sociais de direitos dos animais

    A histria de Rik Scarce singular no campo da tica em pesquisa social e da

    liberdade de pesquisa. Ainda como um estudante de doutoramento, em 1993, Scarce

    foi preso por 159 dias por no entregar suas fitas e dirios de campo polcia.37,38

    Como no aceitou colaborar com investigaes policiais e judiciais contra um de seus

    informantes, o pesquisador foi considerado suspeito de ter informaes privilegiadas

    sobre um caso que ocorrera em sua universidade. Jornalista de formao, Scarce foi

    autor de um livro sobre movimentos ambientalistas que promoviam a desobedincia

    civil e a destruio de propriedades para a liberao de animais em cativeiro. Ele j

    era um especialista em movimentos sociais de defesa dos direitos dos animais quando

    decidiu dedicar seu doutoramento em sociologia s questes tericas relacionadas aos

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    movimentos. Por coincidncia, durante o seu trabalho de campo, um ataque de

    resgate foi realizado no campus de sua universidade, a Washington State University.

    Coiotes, ratos e arminhos foram liberados em uma investida noturna dos grupos. O

    caso foi amplamente noticiado pelos jornais.

    Scarce foi indicado como um especialista para colaborar com as investigaes

    policiais, no apenas por causa do livro que havia publicado como jornalista, mas

    tambm por ter entrevistado as lideranas dos movimentos polticos durante a

    pesquisa de doutoramento. Mesmo notificado de que deveria compulsoriamente

    informar justia e polcia o que soubesse sobre o ataque de resgate

    universidade e sobre os suspeitos, Scarce no violou o pacto de confidencialidade e

    sigilo estabelecido com seus informantes antes das entrevistas. Em todos os inquritos

    judiciais, respondeu somente s perguntas cujas informaes haviam sido obtidas por

    outros intermdios que no as entrevistas sob promessa de sigilo.

    Aps um longo processo, Scarce foi indiciado como testemunha

    recalcitrante, cuja pena era de at 18 meses de deteno. Viveu em uma priso

    durante cinco meses por se recusar a testemunhar contra seus informantes. Na

    verdade, tamanha foi a resistncia de Scarce nos depoimentos que sequer h

    informaes sobre o que de fato ele poderia ou no saber sobre o caso do ataque de

    resgate universidade.37 Sua posio foi de total silncio diante das perguntas sobre

    as lideranas polticas do movimento ou sobre os eventos investigados. Por

    desconhecimento de que pesquisas sociais deveriam ser revisadas por comits de

    tica, o estudo de Scarce no foi submetido ao comit de sua universidade antes do

    incio das entrevistas.

    O caso abriu uma imensa discusso na sociologia estadunidense sobre

    liberdade de pesquisa, tica na pesquisa social e confidencialidade.55-58 Como

    jornalista, Scarce teria direito proteo das fontes, portanto, teria garantido o sigilo

    sobre a origem de seus dados contra a investida policial. Mas, como estudante de

    sociologia, no havia proteo de confidencialidade para a pesquisa. Jornalistas e

    socilogos podem usar as mesmas tcnicas de pesquisa entrevista e observao ,

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    no entanto, apenas jornalistas tm direito ao sigilo e proteo de suas fontes de

    pesquisa. No modelo de reviso tica nos Estados Unidos, h um dispositivo

    conhecido como certificado de confidencialidade, que pesquisadores solicitam para

    garantir a proteo de seus participantes e no se verem forados a apresentar os

    dados em investigaes policiais.57,59,60 Scarce no havia solicitado o certificado de

    confidencialidade e no atuava na pesquisa como jornalista, apesar de sua habilitao

    na profisso. Ou entregava os dados, ou seria considerado um oponente da

    investigao. Por isso, foi preso.

    Em quase todos os pases, no h garantia de sigilo para os investigadores

    sociais. Assim tambm ocorre no Brasil. No importa a delicadeza do tema, em casos

    de investigaes judiciais ou policiais, o pesquisador pode ser obrigado a entregar

    suas fontes. H poucos relatos metodolgicos de como os pesquisadores se protegem

    de possveis riscos de violao do sigilo, mas precaues metodolgicas, como as

    explicitadas por Humphreys, so estabelecidas caso a caso.35 Em muitas ocasies, a

    garantia de confidencialidade a condio de possibilidade para a conduo da

    pesquisa, pois, caso contrrio, os informantes no se disporo a participar do estudo

    sob risco de priso ou violao de sua intimidade. Temas importantes para a

    segurana pblica, como o trfico de drogas ilcitas, para a sade pblica, como o

    aborto, ou para a proteo da infncia, como a pedofilia, precisam ser estudados por

    observao ou entrevista, mas como conduzir essas pesquisas sem impor riscos aos

    participantes?

    A fronteira entre a pesquisa social e o jornalismo estabelecida no apenas por

    suas diferentes protees no exerccio da profisso, mas por suas ambies quanto aos

    resultados. Da mesma forma, pesquisa social no se confunde com investigao

    policial: possvel conduzir estudos sobre temas ilegais sem pr em risco os

    participantes? Os pesquisadores tm o direito de estudar temas ilegais? Se sim, que

    garantias os comits podem oferecer aos pesquisadores? E que garantias de proteo

    os pesquisadores oferecem aos participantes? Hoje, essas so garantias de cuidados

    metodolgicos, tais como destruio das fitas, uso de pseudnimos ou promessa de

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    que, em caso de litgio, os dados no sero entregues polcia ou justia. Outra

    possibilidade seria a retirada de qualquer informao que identificasse os participantes

    do material arquivado. Assim, o que poderia ser solicitado pela justia seria sempre

    annimo.

    Os Principais Desafios

    Assim como no debate sobre a pesquisa biomdica, os casos assumem o papel

    privilegiado de potencializar os limites do raciocnio tico. A vasta maioria das

    pesquisas sociais no ameaa a integridade ou a segurana dos participantes, como

    poderia ter ocorrido com o estudo de Humphreys; no impe sentimentos de

    humilhao aos entrevistados, como provocou o relato de Bosk; no lida com temas

    ilegais, como a pesquisa de Scarce; ou no viola preceitos bsicos da vida social,

    como fez Chagnon. Isso no significa que os comits devam impedir pesquisas com

    riscos ou cujos relatos etnogrficos possam provocar sentimentos ambguos nos

    participantes. Ao contrrio, o que os casos nos mostram a importncia de se analisar

    cada projeto a partir das particularidades fenomenolgicas envolvidas. A mesma

    pesquisa de Humphreys, por exemplo, poderia ter sido conduzida por um etngrafo

    gay, cuja relao de proximidade com os participantes ofereceria segurana e no

    ameaaria a privacidade. J a pesquisa de Whyte no teria sido objeto de maiores

    controvrsias se no houvesse a quebra do anonimato do informante-chave,

    independente de quanto tempo tivesse transcorrido desde a finalizao do trabalho de

    campo.

    Mas os casos aqui explicitados tm o papel de implodir a segurana tica da

    pesquisa social: como os riscos so menores que os envolvidos nas pesquisas

    biomdicas; como as tcnicas de pesquisa social mimetizam as relaes sociais

    cotidianas, tais como fazem as entrevistas; ou mesmo como algumas tcnicas no

    impem alteraes nas cenas cotidianas, como o caso da observao ordinria,

    acredita-se que o tema da tica em pesquisa no deva alcanar as pesquisas sociais.

    Mas a resistncia no deve estar em aproximar pesquisa social de reviso tica, e sim

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    em considerar como vlidas e legtimas as normas e prticas dos saberes biomdicos

    para a pesquisa social. Grande parte do debate internacional sobre pesquisa social e

    tica em pesquisa resiste ao enquadramento da pesquisa social nos moldes biomdicos

    de mtodos, tcnicas e resultados.2,4,7-11,16,17,57,61-64 Os campos so diferentes, e a

    riqueza da reflexo tica somente ser seriamente considerada quando as

    particularidades disciplinares e metodolgicas forem igualmente reconhecidas.

    Entre os desafios enfrentados pelos comits, dois sumarizam os rumores e as

    tenses compartilhados pelos pesquisadores sociais ao submeterem seus projetos

    reviso tica. O primeiro deles o modelo de raciocnio dedutivo esperado de um

    projeto de pesquisa. Nem todos os projetos de estudos sociais apresentam as mesmas

    sees de um projeto biomdico, com especificaes sobre pergunta, problema,

    hiptese, amostra, critrios de incluso e excluso de participantes, riscos ou

    benefcios pr-estabelecidos. H muitos protocolos de pesquisa social que partem de

    um tpico, e da interao entre teoria e empiria que se delineia a pergunta de

    pesquisa. Grande parte das narrativas etnogrficas visuais, por exemplo, se enquadram

    nesse formato.3 Para esses formatos de investigao, particularmente desafiante o

    exerccio de interpretao das regulamentaes da Resoluo CNS 196/1996. O

    resultado ou a total rejeio por parte dos pesquisadores sociais aos comits de tica

    ou a apresentao de projetos-para-a-aprovao, dissociados das prticas cotidianas

    dos campos de origem dos pesquisadores. Esses poderiam ser projetos avaliados sob o

    critrio da avaliao simplificada, tal como j foi institudo por vrios sistemas

    internacionais de reviso tica.30

    O segundo desafio a exigncia do termo de consentimento livre e esclarecido

    por escrito e anterior fase de coleta de dados. Muitas pesquisas sociais utilizam

    tcnicas de entrevista, cuja cena de pesquisa formalmente definida, o que permite a

    apresentao do termo antes do incio da interao social entre pesquisador e

    participante. nesse estilo de trabalho de campo que se enquadra grande parte das

    pesquisas realizadas na interface das humanidades e da sade, em particular por

    pesquisadores sociais oriundos dos campos biomdicos. No entanto, a mesma

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    exigncia inviabiliza a pesquisa etnogrfica com outros grupos culturais, com

    populaes iletradas ou mesmo com comunidades em que o rapport a condio para

    a aproximao do pesquisador.2,12,17,65,66 Sem o rapport, no h confiana, e sem

    confiana, no h reciprocidade para a pesquisa. Alm disso, sem o rapport, no h

    como se apresentar o termo de consentimento livre e esclarecido, que se assemelha a

    um contrato entre pessoas com interesses em disputa, no qual se definem riscos,

    benefcios, prejuzos e protees. Grande parcela das pesquisas sociais de risco

    mnimo, e para elas um termo de consentimento oral suficiente para garantir que o

    encontro entre as partes genuno e voluntrio. Outra possibilidade apresentar o

    termo de consentimento livre e esclarecido ao final do trabalho de campo.

    Se a inteno for assumir que as pesquisas sociais devero ser avaliadas por

    comits de tica, esse movimento exigir dos membros novas prticas de reviso. A

    primeira mudana ser uma guinada de olhar, uma ampliao de o que se entende por

    pesquisa. O desafio no ser incluir todos os campos sob a rubrica de pesquisa, tal

    como definida pela Resoluo CNS 196/1996, mas seriamente iniciar um debate entre

    os campos sobre como eles desejam ser entendidos para fins de reviso tica. Uma

    pea de teatro, um documentrio ou uma matria jornalstica que exijam entrevistas

    ou observaes, devero todos ser avaliados por um comit? Se sim, sob que

    critrios? Se no, como sero protegidos os interesses e direitos dos participantes para

    essas iniciativas de pesquisa? A afirmao de que qualquer pesquisa com participantes

    pressupe a reviso por comits no resposta suficiente para subordinar todos os

    campos e tcnicas aos comits de inspirao biomdica.

    A segunda mudana pressupe uma extensa sensibilizao dos membros dos

    comits para as pesquisas sociais. No basta a disposio para o olhar interdisciplinar;

    os comits necessitam de especialistas na diversidade de tcnicas e mtodos que

    chegam a eles. A criao de comits especializados em pesquisa social uma dessas

    sadas, tal como foi proposto pela Universidade de Braslia em 2007. A elaborao de

    diretrizes especficas sobre tica em pesquisa em cincias humanas e sociais, que

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    poderia auxiliar tanto pesquisadores sociais quanto membros de comits de tica em

    pesquisa, outra estratgia.

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