dinossauros: novas técnicas, velhos mitos

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Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos Mitos Luís Azevedo Rodriques' o presente texto decorre da palestra proferida no dia 31 de Outubro de 2009, no Museu de Arqueologia da Amadora. Como tal, não pretende ser uma cópia integral e fidedigna do que foi apresentado, antes sim uma breve súmula das questões abordadas, tanto mais que muito do material audiovisual exposto não é aqui apresentado. Este artigo tem como objectivo, mais do que responder a muitas questões que surgem no âmbito da Paleobiologia de Dinossauros, ser uma breve resenha de dois pontos distintos do conhecimento em dinossauros, servindo de introdução quer aos mais recentes avanços científicos e tecnológicos no estudo dos dinossauros, quer ao entendimento da sua importância social. A primeira parte abordará sobretudo questões científicas do campo de conhecimento que é a Paleobiologia de Dinossauros, com particular atenção às técnicas mais recentes de investigação nesta área do conhecimento. A segunda parte deste texto lidará com o papel que os dinossauros desempenham na cultura popular, em campos tão distintos como o cinema, a música ou a mitologia. ~ 1 NOVAS TÉCNICAS 101 Antes de se exemplificarem as mais modernas técnicas de estudo destes animais extintos é importante responder à seguinte pergunta: o que são dinossauros? Os dinossauros são um grande grupo de animais, quer em termos de diversidade (número de espécies), quer em disparidade morfológica (tamanhos e formas corporais), que ocuparam praticamente todos os ecossistemas terrestres durante o Mesozóico (aproximadamente entre os 250 e os 65 milhões de anos). Estes animais apresentaram um grande número de modos de vida - havia-os carnívoros, como o famoso Tyrannosaurus, ou herbívoros, como o Iguanodon; os que viviam em grupo, como alguns saurópodes, ou os que, aparentemente, viviam de forma solitária; os que se movimentavam de forma bípede, como o Oeinonychus, ou os que eram quadrúpedes, como o Tríceratops. Se uma das características mais referidas quando se fala de dinossauros é o seu enorme tamanho, pois existiam dinossauros com mais de 30 metros de comprimento e centenas de toneladas, como o Argentinosaurus [1], também é certo que existiram vários dinossauros de tamanho muito mais reduzido, como o Mícroraptor, com poucas dezenas de centímetros de comprimento [2]. 1 Paleontólogo (Ph.D.), professor Ciência Ao Natural (blog) - http://cienciaaonatural.net [email protected]

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Este texto decorre da palestra proferida no dia 31 de Outubro de 2009, no Museu de Arqueologia da Amadora. Este artigo tem como objectivo, mais do que responder a muitas questões que surgem no âmbito da Paleobiologia de Dinossauros, ser uma breve resenha de dois pontos distintos do conhecimento em dinossauros, servindo de introdução quer aos mais recentes avanços científicos e tecnológicos no estudo dos dinossauros, quer ao entendimento da sua importância social. A primeira parte abordará sobretudo questões científicas do campo de conhecimento que é a Paleobiologia de Dinossauros, com particular atenção às técnicas mais recentes de investigação nesta área do conhecimento. A segunda parte deste texto lidará com o papel que os dinossauros desempenham na cultura popular, em campos tão distintos como o cinema, a música ou a mitologia.

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Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos MitosLuís Azevedo Rodriques'

o presente texto decorre da palestra proferida no dia 31 de Outubro de 2009, noMuseu de Arqueologia da Amadora. Como tal, não pretende ser uma cópiaintegral e fidedigna do que foi apresentado, antes sim uma breve súmula dasquestões abordadas, tanto mais que muito do material audiovisual exposto não éaqui apresentado.Este artigo tem como objectivo, mais do que responder a muitas questões quesurgem no âmbito da Paleobiologia de Dinossauros, ser uma breve resenha dedois pontos distintos do conhecimento em dinossauros, servindo de introduçãoquer aos mais recentes avanços científicos e tecnológicos no estudo dosdinossauros, quer ao entendimento da sua importância social.A primeira parte abordará sobretudo questões científicas do campo deconhecimento que é a Paleobiologia de Dinossauros, com particular atenção àstécnicas mais recentes de investigação nesta área do conhecimento.A segunda parte deste texto lidará com o papel que os dinossauros desempenhamna cultura popular, em campos tão distintos como o cinema, a música ou amitologia. ~

1 NOVAS TÉCNICAS 101

Antes de se exemplificarem as mais modernas técnicas de estudo destes animaisextintos é importante responder à seguinte pergunta: o que são dinossauros?Os dinossauros são um grande grupo de animais, quer em termos de diversidade(número de espécies), quer em disparidade morfológica (tamanhos e formascorporais), que ocuparam praticamente todos os ecossistemas terrestres duranteo Mesozóico (aproximadamente entre os 250 e os 65 milhões de anos). Estesanimais apresentaram um grande número de modos de vida - havia-oscarnívoros, como o famoso Tyrannosaurus, ou herbívoros, como o Iguanodon; osque viviam em grupo, como alguns saurópodes, ou os que, aparentemente, viviamde forma solitária; os que se movimentavam de forma bípede, como oOeinonychus, ou os que eram quadrúpedes, como o Tríceratops. Se uma dascaracterísticas mais referidas quando se fala de dinossauros é o seu enormetamanho, pois existiam dinossauros com mais de 30 metros de comprimento ecentenas de toneladas, como o Argentinosaurus [1], também é certo que existiramvários dinossauros de tamanho muito mais reduzido, como o Mícroraptor, compoucas dezenas de centímetros de comprimento [2].

1 Paleontólogo (Ph.D.), professor

Ciência Ao Natural (blog) - http://cienciaaonatural.net

[email protected]

Paleo
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Rodrigues, L.A. (2011) Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos Mitos. Escola Aberta do Património. Comunicações Janeiro de 2009 a Novembro de 2010. Câmara Municipal da Amadora. ISBN 978-972-8284-70-1.
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Figura 1a) Úmero de Brachiosaurus brancai(Museu de História Natural de Berlim,Alemanha) comparado com úmero do autor.

b) Úmero de Gyposaurus sinensis (Instituto dePaleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia,Pequim, China). Imagens - Luís Azevedo Rodrigues

De hábitos exclusivamente terrestres, à excepção dos grupos que foramantepassados das actuais aves, os dinossauros são muitas vezes confundidoscom outros animais seus contemporâneos, como os pterossauros - répteisvoadores e os ictiossauros, plesiossauros ou mosassuros - estes três últimosgrupos répteis aquáticos. Ao nível do parentesco biológico, os dinossauros fazemparte de um grupo de animais amniotas designado de Archosauria, que inclui,para além dos referidos pterossauros, ictiossauros ou mosassauros, também oscrocodilos e as aves.O sucesso evolutivo dos dinossauros, que se estendeu por quase 200 milhões deanos, pode ser explicado por vários factores, entre os quais e apenas a título deexemplo, a locomoção mais eficiente do que a de outros grupos contemporâneose o desenvolvimento de tamanhos gigantescos. Este enorme sucesso biológicopode ser igualmente atestado pela vasta' diversidade de espécies e géneros que aPaleontologia já identificou'.Desde que, em 1824, foi proposto o nome do primeiro dinossauro, Mega/osaurusbucklandí, por William Buckland (1784 - 1856), os últimos quase 200 anos foram

2 Alguns autores, utilizando modelos matemáticos, estimam que a totalidade de géneros de dinossauros não-avianos, descobertos e por descobrir, deverá aproximar-se dos 1800 [4].

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de constante descoberta, descrição e aprofundamento de conhecimento, quer daanatomia, comportamento, alimentação ou mesmo da locomoção destes animais.Em seguida, apresentarei alguns exemplos de investigações recentes que têmcontribuído para um maior conhecimento, quer da biologia, quer doscomportamentos, de um dos grupos animais que mais fascínio exerce sobre o serhumano: os dinossauros.Para além do cada vez maior número de espécies que todos os anos sãodescritas e publicadas, existem áreas da Paleontologia de dinossauros que nãolidam directamente com a classificação e descrição de novas espécies. Essegrupo de conhecimentos resulta, por vezes, de campos do conhecimentodirectamente relacionados com o ser humano, como a Medicina, e envolvemcientistas que nunca antes imaginaram poder investigar restos fossilizados.O enorme fascínio que a maioria das pessoas tem pelos dinossauros, bem como ofacto de sermos animais essencialmente visuais, originaram que uma das áreascientíficas que tivesse nos últimos anos uma grande aplicação na Paleontologiafosse a Imagiologia.

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ARCHOSAU

AMNIOTA

Figura 2 Relações filogenéticas de Amniota (cladograma sim e odri ues 2009.

Recriar, reconstituir e simular quase todos os aspectos oparece ser a grande "moda" entre os dinossaurólogos. A ca ao menor custo dos equipamentos que permitem virtualizar edetalhe os restos fossilizados têm contribuído para esta tendên

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Um conjunto de técnicas de análise de resistência de materiais, inicialmenteutilizadas na engenharia e genericamente denominadas Análise de ElementosFinitos, tem sido aplicada em fósseis de dinossauro. Os trabalhos de EmilyRayfield [3] têm permitido, por exemplo, conhecer que áreas da mandíbula doAllosaurus estariam sujeitas a maiores tensões quando este carnívoro atacasseuma presa. Esse conhecimento sobre as forças associadas a uma mordidelapermitem que os paleontólogos infiram padrões de comportamento de ataque,contribuindo, por exemplo, para que o modo de vida destes animais seja melhorcompreendido.Uma outra área em que a imagem tridimensional dos fósseis tem sido utilizada é ada reconstituição de áreas de tecido que não ficaram preservadas. Zonas docérebro ou do ouvido interno dos dinossauros têm sido profusamente analisadaspela equipa de Larry Witmer [5]. Este investigador tem utilizado a ressonânciamagnética como metodologia de visualização e posterior análise funcional,procurando, por comparação e analogia com grupos de animais actuais efilogeneticamente próximos, reconstituir áreas do sistema nervoso destes animais.Incógnitas como o tamanho e funções cerebrais de vários dinossauros, ou mesmoa sua capacidade olfactiva, a postura do crâneo ou mesmo a capacidade deequilíbrio, têm sido estudadas pela equipa deste investigador da Universidade doOhio. Todas as informações neurológicas, até há poucos anos absolutamenteinacessíveis sem as técnicas imagiológicas descritas, contribuem para adiversificação do conhecimento sobre os dinossauros, bem como para a inferênciade padrões de comportamento nestes animais até aqui desconhecidos.104

Figura 3 a) Representações do esqueletocraneal e estruturas cerebrais de váriosexemplares de Amniota - dados obtidos apartir tomografia axial computadorizada(TAC). Imagem do Laboratório de LarryWitmer, Universidade do Ohio

b) Modelo tridimensional de Análise de ElementosFinitos de Alloseurus. Adaptado de Rayfield 2007 [3].

Sendo a capacidade de se movimentar um dos factores de sucesso evolutivo damaioria dos animais, compreender a locomoção é fundamental para se perceber

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como é que os dinossauros ocuparam a maioria dos ecossistemas terrestresdurante centenas de milhões de anos.A verdadeira capacidade física de músculos e tendões é uma das questõesbiológicas que tem sido explorada pelo Laboratório de Locomoção Animal daFaculdade de Medicina Veterinária de Londres. Para além da compreensão domodo como os animais actuais se movimentam, John Hutchison e a sua equipatêm liderado estudos de locomoção em vários grupos de dinossauros [6]. Areconstituição e simulação da anatomia locomotora destes animais têm sofrido umestudo aprofundado por parte desta equipa, contribuindo para, por exemplo, seespecular se o T. rex teria ou não a capacidade de corrida que os filmes de StevenSpielberg vulgarizaram. Segundo estes autores, parece que a corrida do grandedinossauro terá sido bastante ampliada por Hollywood [7].Para além das novas tecnologias ao serviço de uma ciência que lida com serescom milhões de anos, têm sido igualmente importantes as novas descobertas defósseis de uma das linhas evolutivas dos dinossauros: as aves.Desde a descoberta, em 1861, do Archaeopteryx lithographica, animal queapresentava características comuns às aves e aos répteis, os paleontólogospercorreram uma verdadeira cruzada científica para provar que as avesdescendiam dos dinossauros. O Archaeopteryx apresentava verdadeiras asas epenas, o que o classificava como ave, mas, simultaneamente, podia-se observarque as suas asas apresentavam garras e o seu bico tinha uma série de dentes.A partir de meados da década de 80 do século passado, várias descobertas têmcompletado o trajecto de parentesco entre aves e dinossauros. A maioria dessasdescobertas foi feita em jazidas chinesas, mas não só. Contudo, antes deapresentar estas novas "contratações" é importante referir que tanto oArchaeopteryx, como a maioria dos exemplares chineses, procedem de um tipoespecial de jazida designada, a partir do alemão, de Konservat-Lagerstatten.Estas jazidas, pelas suas características geológicas, apresentam a propriedade depreservar em detalhe estruturas frágeis como, por exemplo, asas de insecto, pêlosde mamíferos e, importante para se perceber a evolução das aves, também aspenas e os seus ossos frágeis. Se o Archaeopteryx procedia de um Konservat-Lagerstatten da Baviera alemã, a maioria das preciosidades paleontológicasdescobertas a partir de 1984, são oriundas das jazidas de Liaoning, no nordesteda China [8]. Os paleontólogos de vertebrados costumam afimar, em jeito debrincadeira, que podemos esperar quase tudo de Liaoning. A inveja salutarsubjacente a este comentário não minimiza, contudo, a realidade científicaexcepcional que os achados de Liaoning representam, tendo servido estes paracomprovar quase todas as etapas evolutivas dos dinossauros para as aves, numarealidade científica sem precedentes.Confuciusornis, Changchengornis, Eoconfuciusornis ou Sinornis são algumas dasespécies de aves primitivas que foram descobertas nas jazidas chinesas, podendoas morfologias corporais das aves actuais ser observadas nestes exemplaresfósseis. Para além das penas, outras características anatómicas, como um bicocórneo, banal nas aves da actualidade, pode ser observada pela primeira vez nogrupo de aves primitivas a que pertencem Confuciusornis ou Eoconfuciusornis,

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espécies que viveram num intervalo temporal que se estendeu entre os 120 e os131 milhões de anos. A presença de penas assimétricas, características de umvoo activo, pode já ser observada nalgumas aves primitivas de Liaoning. Apesarda enorme diversidade de aves primitivas provenientes da China, outros paísestêm contribuído para esta saga de conhecimento da transição evolutivadinossauros-aves. Na jazida de Las Hoyas, em Cuenca, Espanha, foramdescobertos os vestígios que permitiram classificar outra ave primitiva -Iberomesomís romeralí [9]. Esta espécie contribuiu para a compreensão dosmecanismos de voo das primeiras aves, já que apresenta o que se designa porfúrcula, estrutura óssea que permite que os membros anteriores das avesexecutem os movimentos de voo semelhantes aos das aves modernas.Iberomesomís apresentava também as vértebras caudais distais fundidas, talcomo as aves modernas. Mas outros exemplares de aves primitivas foramdescobertos e descritos pela equipa de paleontólogos da Universidad Autónomade Madrid, como Concomís lacustrís e Eoalulavís hoyasí. Recentemente, LasHoyas revelou outra das etapas evolutivas, desta vez não das aves, mas aindados dinossauros não-avia nos, com a apresentação de Concavenator, o maisantigo dinossauro com evidências de penas na sua anatomia [10].

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Figura 4 a) Esqueleto de Confuciusomissanctus, reconstituição (canto inferioresquerdo) e detalhe de pena caudal (cantosuperior direito). Imagem compósitaadaotada de Chiaooe et aI. 1999.

b) Crâneo e mandíbula de Eoconfuciusomis zhengi.Imagem de Zhang et aI. 2008.

Se os exemplos de aves primitivas apresentados e respectiva sequência decaracterísticas anatómicas próximas às modernas atestam parte do percurso

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evolutivo destes animais, também é possível verificar nos dinossauros ditos não-avianos algumas particularidades anatómicas comuns à linhagem aviana, dasquais saliento a presença de penas em várias espécies de dinossauros. A maioriados não-especialistas apontaria a presença de penas como condição suficientepara a classificação de um animal como ave, já que esta estrutura não éencontrada actualmente em mais nenhum grupo zoológico. Contudo, o registofóssil de penas em grupos de dinossauros não-avia nos tem vindo a crescer, querna quantidade de dinossauros descritos, quer na sua antiguidade. Dinossauroscomo Sinosauropteryx, Shuvuuia, Beipiaosaurus, Caudipteryx, Sinornithosaurusou Microraptor apresentavam penas, de diversos tipos e em zonas corporaisdistintas. Microraptor, dinossauro datado de há 128 milhões de anos, revelavapenas não só nos membros anteriores, mas também nos membros posteriores,avançando alguns paleontólogos que este dinossauro poderia ter apresentado umpadrão de voo planado semelhante ao observado em alguns mamíferosplanadores actuais.Tanto o registo paleontológico das aves primitivas, como o dos dinossauros compenas, contribuíram para que o processo de evolução das penas fosse melhorconhecido. Os investigadores Richard Prum e Alan Brush, da análise dodesenvolvimento embrionário das penas em aves actuais, foram capazes deidentificar quatro etapas da formação daquelas estruturas, desde os precursoresdas penas até às penas propriamente ditas [11l. Estes investigadores foramcapazes de reconhecer cada uma dessas etapas do desenvolvimento embrionáriodas penas e atribui-lo a um tipo particular de dinossauro emplumado. Assim, odesenvolvimento embrionário das penas actuais parece, de algum modo,reconstituir o percurso evolutivo dos dinossauros não-avia nos e do aparecimentode estruturas tão importantes como as penas.Outra das questões paleontológicas ainda por esclarecer cabalmente é o doaparecimento do voo. Esta capacidade das aves, que, como vimos, não são maisdo que dinossauros actuais, permitiu-lhes serem o grupo de vertebrados maisdiversificado que existe hoje em dia, à excepção dos peixes. Actualmente existemduas teorias que procuram explicar de que forma os dinossauros iniciaram o seupercurso pelos ares - assumindo que o voo apareceu neste grupo e não já nasaves. A primeira hipótese é a teoria do dinossauro corredor, ou seja, o dinossaurojá com penas ou plumas que, na perseguição de uma presa ou em plena fuga deum perseguidor, efectuaria pequenas distâncias a planar. Estes períodosafastados do solo ofereceriam aos dinossauros uma vantagem evolutiva, quersobre as eventuais presas, quer sobre os predadores. A outra explicação, a dodinossauro trepador, justifica o aparecimento do voo pelo planamento de umdinossauro a partir de um topo de árvore, para onde teria perseguido uma presaou, simplesmente se escondera de um predador. Desta forma, os dinossaurosutilizariam esse ponto alto como local de partida para as suas primeirasexperiências aéreas. Ambas as explicações têm apoiantes e detractores e, paraoutros paleontólogos, as duas teorias não são mutuamente exclusivas. O estudoque apresento em seguida apoia uma delas e foi efectuado utilizando avesactuais.

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TianyulongPsittacosaurus

SinomithosaurusAnchiomisSinosauropteryxBeipiaosaurus

A B

Epidexipteryx

CaudipteryxProtarchaeopteryxMicroraptorAnchiomis

rE F

SinomithosaurusBeipiaosaurus

rc

ProtarchaeopteryxSinomithosaurusCaudipteryxAnchiomisDilong

D

Epidexipteryx

H

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Figura 5 Morfotipos de penas conhecidos em dinossauros não-avianos. Imagem adaptada de Xu & Guo 2009.

o grupo de investigação de Kenneth Dial avaliou uma espécie de perdiz (Alectorischukar) a fim de compreender de que forma o voo dessas aves actuais sedesenvolveria, desde a fase cria até ao adulto [12]. Estas aves, desde fases muitoprecoces do seu desenvolvimento, utilizam o que se classificou como "vooassistido", ou seja, a propulsão gerada pelas suas asas é utilizada para aumentara tracção em troncos de árvores, por exemplo. Assim, Dial e a sua equipainferiram que este tipo de comportamento justifica uma das teorias para oaparecimento do voo: a teoria do dinossauro planador.Apesar de o que se sabia sobre dinossauros no século XIX ser uma ínfima partedo que qualquer leigo conhece actualmente, podemos também assegurar que hámuito por ser feito, seja ao nível da reconstituição de hábitos e comportamentos,seja ao nível das relações de parentesco entre alguns grupos de dinossauros, apar de muitas outras questões científicas que surgem na Paleontologia deDinossauros.

2 VELHOS MITOSUm dos motivos pelos quais a paleontologia de dinossauros parece exercer umatão grande atracção quer sobre os adultos, quer sobre os mais novos, pareceestar associado ao fascínio pelo "Aventureiro Explorador". Explico: a maioria dasdescobertas paleontológicas remete para um imaginário de zonas inóspitas edesérticas, onde a civilização parece não ter querido chegar e sítio no qualaventureiros destemidos enfrentam as adversidades da Natureza, como os

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contratempos humanos. Há, assim, associado aos dinossauros, um lado deaventura e descoberta, de perigo e de revelação de mundos desaparecidos oudesconhecidos.A faceta Indiana Jones a que o paleontólogo de dinossauros é associado,voluntária ou involuntariamente, não é de todo indevida, já que na origem dessapersonagem esteve um investigador que descobriu dinossauros. Nos anos 20 doséculo passado, e ao serviço do Museu Americano de História Natural, RoyChapman Andrews (1884-1960) organizou a primeira de várias expediçõesamericanas ao deserto de Gobi, na Mongólia. Andrews tinha inicialmente oobjectivo de explorar áreas geográficas que pudessem ter sido berço dahumanidade, suspeitando da importância da Mongólia para esta questão. Asquatro expedições, iniciadas em 1922, integravam, para além dos camelosautóctones das planícies mongóis, vários Ford's T que permitiram a pesquisa dasvastidões de um dos desertos mais inóspitos do mundo. Numa das suasfotografias mais emblemáticas, Andrews apresenta-se de chapéu e carabina,contemplando a vastidão do deserto. Roy Chapman Andrews poderia ser aprincipal fonte de inspiração dos criadores da personagem Indiana Jones - amboseram arqueólogos, aventureiros de espaços longínquos e tinham um chapéucaracterístico. A principal diferença entre a personagem Jones e o homemAndrews é que este último descobriu vários dinossauros, entre os quais oVe/ociraptor e o Protoceratops, bem como ovos e ninhos de dinossauro.

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Figura 6 Roy Chapman Andrews (1884-1960). Imagem adaptada de Fastovsky & Weishampel 2009.

Ao Protoceratops, descoberto pelas expedições de Chapman Andrews naMongólia, está associada uma teoria que une os dinossauros e a mitologia grega.Adrienne Mayor, historiadora e antropóloga americana, propõe, no seu livro "TheFirst Fossil Hunters", que na origem da figura mitológica Grifo terão estado osdinossauros. Como? No séc. VII A.C., os gregos estabelecem contactos com

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nómadas Citas, exploradores de ouro no deserto de Gobi. Estes povos da Ásiacentral relatavam aos estrangeiros a existência de um monstro protector dasreservas do metal dourado, com cabeça e asas de águia num corpo de leão - é onascimento da lenda do grifo na cultura grega [13]. É enorme a semelhançamorfológica entre os restos de Protoceratops, muito abundantes no deserto deGobi, e a figura mitológica do grifo o que poderá explicar, segundo Mayor, que osprimeiros gregos (desconhecedores dos dinossauros) tenham tomadoconhecimento dos seres do Mesozóico muito antes de Richard Owen osformalmente propor no século XIX.O imaginário de aventura expedicionária tem sido perpetuado desde que o grandepúblico tem conhecimento dos dinossauros, com várias expedições depaleontólogos a locais tão inóspitos e desconhecidos como a Patagónia, África eíndia, entre muitos outros. Todos esses lugares apresentam característicascomuns: desconhecidos, desabitados e com condições de vida muito difíceis parao comum dos mortais. Ainda assim não tão difíceis como aquelas enfrentadas pordois dos "pais" da paleontologia de dinossauros: Othniel Charles Marsh (1831-1899) e Edward Orinker Cope (1840-1897).Cope e Marsh lutaram científica e (quase) literalmente durante vários anos pelopódio de quem encontraria e descreveria o maior número de espécies dedinossauros, numa batalha paleontológica que se designou de " As Guerras dosOssos". Entre os resultados desta contenda, o mundo pôde contar com centenasde novas espécies de dinossauros e mamíferos. Curioso é o facto de, após seterem conhecido em Berlim, Cope e Marsh terem organizado em 1868 umaexpedição conjunta de prospecção de dinossauros. Há quem afirme que, depoisdo regresso das jazidas, Cope viria a descobrir que Marsh havia subornadotrabalhadores da expedição para que estes lhe enviassem os restos fossilizadospara Yale [14]. A luta entre os dois paleontólogos acabava de nascer.A rivalidade entre estes dois vultos da paleontologia parece ser justificada não sópela sua enorme diferença de personalidades, mas também pelos seus percursosde vida. Marsh, originário de famílias ricas, pertencia à elitista Universidade deYale e era dotado de um carácter metódico, calmo e conservador. Cope, pelocontrário, tinha origens humildes, trabalhava para a Academia de Ciências deFiladélfia e era absolutamente impulsivo e emotivo, tendo, por exemplo, publicadoo seu primeiro artigo científico, sobre salamandras, aos 18 anos.Como qualquer cientista famoso, também Cope e Marsh têm as suas LeisPaleontológicas. A Lei de Marsh atesta que, em média, se verifica um aumento dotamanho cerebral ao longo de uma linhagem de aves ou mamíferos [15]. Porexemplo, se uma determinada espécie actual de mamífero ou ave apresentar umcerto volume cerebral o seu antepassado apresentaria um volume menor, emmédia. A Lei de Cope atesta que se pode observar um aumento do tamanhocorporal ao longo de uma linhagem de um grupo animal [16]. Esta lei, formuladaem 1896, não é consensual nos dias que correm.Entre as técnicas de confronto adoptadas pelas duas equipas contam-seexplosões em jazidas acabadas de prospectar, a fim de que os adversários não aspudessem já trabalhar; acordos com as tribos de índios da região, para facilitar a

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prospecção nas suas terras e também evitar que os adversários o pudessemfazer.

Figura 7 Edward Drinker Cope (1840-1897) e Othniel Charles Marsh (1831-1899).Imagem adaptada de Fastovsky & Weishampel 2009.

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Toda esta sene de eventos contribuiu ainda mais para que as expedições edescobertas de dinossauros estejam envoltas numa aura de fascínio e aventura.A primeira vez que um dinossauro fez a sua estreia no mundo do cinema ocorreumuito antes de Spielberg ter estreado Parque Jurássico, em 1993. Um dosprimeiros filmes de animação tinha como principal intérprete um dinossauro, decauda e pescoço compridos, que se chamava Gertie. Esta dinossauro saurópededesfilou nos ecrãs a preto-e-branco pela mão de Winsor McCay, em 1914, sendoesta a estreia dos dinossauros no mundo do cinema. "The Valley of Gwangi"(1969) ou "When Dinosaurs Ruled the Earth" (1970), são dois exemplos em que sepode verificar tanto a sincronia existencial de homens e dinossauros, como,sobretudo, a ruptura da estabilidade social que o dinossauro vem trazer. Se nacinematografia ocidental o dinossauro é representado, de forma fiel, a culturacinematográfica oriental, nomeadamente a japonesa, altera a anatomia dodinossauro, transformando-o numa entidade diferente. Um monstro pós-nuclear écriado e vem destruir cidades e culturas. Vários autores apontam que o monstro,Godzilla, não é mais do que um fenómeno catártico colectivo da sociedadejaponesa às explosões de Hiroshima e Nagasaki. A morfologia do dinossauro éalterada, quase como um efeito de mutação de origem nuclear.

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112 Figura 8 a) Cartaz do filme de animação "Gertie,the Dinosaur" (1914), de Winsor McCay. Imagemde autor desconhecido.Fonte: http://bit.ly/7ZusdN.

b) Cartaz do filme "When Dinosaurs Ruled theEarth" (1970), de Vai Guest. Imagem de TomChantrell. Fonte: http://bit.ly/g2785g.

o dinossauro desempenha assim, pelo menos no ocidente, um papel que eratradicionalmente representado pelo dragão, monstro que encarnava todo o tipo demal nas culturas judaico-cristãs. A actualização iconográfica, com a substituiçãodo dragão pelo dinossauro, não é consensual para a maioria dos investigadores,embora seja sem dúvida apelativa, encontrando-se facilmente inúmeros exemplosdeste fenómeno.A influência dos dinossauros na literatura surgiu pela mão de Arthur Conan Doyle,o criador de Sherlock Holmes. A descoberta de uma pegada de Iguanodonfossilizada, em 1909, impressionou de tal forma Conan Doyle que o inspirou nacriação de um mundo fantástico, cheio de criaturas extintas e gigantescas, naAmérica do Sul, no seu livro de 1912" O Mundo Perdido" [17]."O político X é um dinossauro", já todos lemos por mais do que uma vez. Estebaptismo pejorativo, na maioria dos casos, pretende sublinhar o carácterultrapassado e decadente do nomeado. Há, assim, a associação do termodinossauro a todo o tipo de pessoas e realidades que há muito deveriam estarreformadas ou apenas desaparecidas. Incorpora-se a realidade da extinçãobiológica na dimensão humana, conotando-se o dinossauro com o arcaico eultrapassado humano. Os dinossauros diversificaram-se e sobreviveram durantequase 200 milhões de anos, mas a sobranceria de um grupo de mamíferos queescreve há poucos milhares de anos, para além de biologicamente embaraçosa, é

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injusta. O ser humano apenas caminha sobre a Terra há uma pequena fracção dotempo em que os dinossauros percorreram todos os ambientes terrestres.

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Referências imagens

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