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Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia do editor. Exceptuam-se as transcrições de curtas passagens para efeitos de apresentação, crítica ou discussão das ideias e opiniões contidas no livro. Esta excepção não pode, no entanto, ser interpretada como permitindo a transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares, da qual possa resultar prejuízo para o interesse pela obra. Os infractores são passíveis de procedimento judicial, nos termos da lei. Carla Amado Gomes Direito(s) dos riscos tecnológicos Lisboa 2014

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Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia do editor.Exceptuam-se as transcrições de curtas passagens para efeitos de apresentação, crítica ou discussão das ideias e opiniões contidas no livro. Esta excepção não pode, no entanto, ser interpretada como permitindo a transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares, da qual possa resultar prejuízo para o interesse pela obra.Os infractores são passíveis de procedimento judicial, nos termos da lei.

Carla Amado Gomes

Direito(s) dos riscos tecnológicos

Lisboa2014

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Ficha Técnica

Título:Direito(s) dos riscos tecnológicosAAFDL – 2014

Autor:Carla Amado Gomes

Fotografia de capa:Carla Amado Gomes

Edição:AAFDLAlameda da Universidade – 1649-014 Lisboa

Impressão:AAFDL

Outubro / 2014

DIREITO(S) DOS RISCOS TECNOLÓGICOS

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Índice

Introdução: Risco tecnológico, comunicação do risco e direito

a saber

Carla Amado Gomes .......................................................................... 17

Capítulo I: Riscos associados a medicamentos

Aquilino Paulo Antunes ..................................................................... 39

Capítulo II: Acidentes com operações de extracção de petróleo

João Verne Oliveira ............................................................................ 103

Capítulo III: Crises alimentares: quando o direito e a ciência se

cruzam

Maria Inês Gameiro ........................................................................... 147

Capítulo IV: Acidentes nucleares

Miguel Sousa Ferro ............................................................................ 197

Capítulo V: Poluição marinha por hidrocarbonetos: a resolução

jurisdicional de confl itos envolvendo incidentes com petroleiros

no Direito Internacional

Orlindo Francisco Borges .................................................................. 245

Capítulo VI: Actos de guerra contra a população civil: uma

catástrofe tecnológica?

Rita Madeira ....................................................................................... 311

Capítulo VII: Acidentes industriais e outros regimes internacionais

de prevenção, preparação e resposta

Rui Tavares Lanceiro ......................................................................... 375

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Capítulo VIII: “Memórias de um Átomo”: nanotecnologia, percepção

percepção do risco e regulação

Rute Saraiva ....................................................................................... 495

Capítulo IX: “Frankenorganismos”: os organismos geneticamente

modifi cados (OGM) no Direito Internacional, entre a precaução

e o desenvolvimento sustentado

Rute Saraiva ....................................................................................... 545

Capítulo X: Saúde pública, direito penal e “novos riscos”: um

triângulo com lados desiguais

Susana Aires de Sousa ....................................................................... 601

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Apresentação

Desde que o Homem, com a sua criatividade, introduz alterações no ambiente em que se insere, podemos falar de riscos tecnológicos. Numa primeira fase, o risco tecnológico resultou do engenho humano aplicado a realidades cujo controlo, acidentalmente, lhe fugia: por exemplo, acender uma fogueira para se aquecer e provocar um incêndio de grandes dimensões; alterar o ciclo de culturas e gerar erosão do solo; fabricar carvão vegetal e conduzir ao desmatamento. Numa segunda fase, após a revolução industrial, o risco tecnológico sofi stica-se e prende-se com a introdução voluntária de equipamentos técnicos no meio que provocam profundas alterações dos processos naturais, dos componentes ambientais e de processos fi siológicos dos seres humanos, instalando a incerteza quanto ao seu funcionamento.Quando se pensa em riscos tecnológicos, as primeiras imagens que se materializam são fugas em centrais nucleares, explosões em refi narias, derrames de petroleiros; porém, a epidemia do HIV que grassa no planeta desde os anos 1980, a paralisia do sistema de transporte aéreo provocada pela erupção do vulcão Eyjafjallajökull em 2010, o aquecimento global, são também exemplos de riscos daquele teor, embora de contornos mais difusos e de natureza mista, entrelaçando causas humanas e causas naturais.

Elaborar uma tipologia de riscos tecnológicos é impossível – porque impossível é delimitar o potencial de criatividade humana. Além disso, seria também um exercício estéril, tamanha é a variabilidade dos riscos e dos seus efeitos (sobre as pessoas e/ou sobre o meio natural; concentrados ou difusos; duradouros ou instantâneos; letais ou incapacitantes; reversíveis ou irreversíveis...). Não surpreende, assim, que o teor das listagens de acidentes provocados por riscos tecnológicos seja consideravelmente diverso. Veja-se, por um lado, um ranking dos cinco mais caros desastres tecnológicos de sempre, que engloba a explosão do Challenger (1986, 5,5 biliões de dólares: 5º lugar), o derrame de petróleo do Prestige (2002, 12 biliões de dólares:

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4º lugar), a desintegração do Space Shuttle (2003, 13 biliões de dólares: 3º lugar), a explosão da plataforma Deepwater Horizon, no Golfo do México (2010, 42 biliões de dólares: 2º lugar), e a fuga no reactor 4 da central nuclear de Chernobyl (1986, 235 biliões de dólares: 1º lugar)1 – sublinhe-se que esta listagem data de 2013, e não tem ainda em consideração as contas fi nais da catástrofe sísmico-nuclear de Fukushima (2011), que se estima poder ter custos acima dos 300 biliões de dólares (só as operações de limpeza terão ascendido a 58 biliões).

Por outro lado, descurando o aspecto fi nanceiro e focando a atençãona magnitude dos efeitos, um outro ranking selecciona os dez piores desastres tecnológicos de sempre2: 1. nuvem tóxica que se formou em Londres, em 1952, levando à morte de mais de 10.000 pessoas; 2. incêndio de Al-Mishraq, em 2003, numa fábrica de dióxido de sulfúrio no Iraque, provocando milhares de hospitalizações, mortede fauna e fl ora e perda de colheitas; 3. explosão do reactor 4 de Chernobyl, já mencionado, que libertou radioactividade que se calcula ter sido a causa de mais de 100.000 cancros e de ter contaminado um perímetro de 100 kms em redor por mais de 200 anos; 4. incêndio de cerca de 600 poços de petróleo no Koweit, em 1991, ordenado por Saddam Hussein, que arderam durante sete meses e causaram danos ecológicos e ambientais incalculáveis; 5. desvio de rios que alimentavam o Mar de Aral pela União Soviética, na década de 1960, que reduziu o lago em 90% da sua dimensão, o que gerou salinização e tempestades de areia com consequências irreversivelmente nefastas para a biodiversidade de milhares de quilómetros em redor; 6. naufrágio do petroleiro Exxon Valdez, em 1989, no Alaska, com

1 The Five Costliest Man-Made Disasters In History, 2013, disponível em http://www.therichest.com/business/economy/the-fi ve-costliest-man-made-disasters-in-history/ (acesso em Julho de 2014).

2 Cfr. http://www.disasterium.com/10-worst-man-made-disasters-of-all-time/ (acesso em Julho de 2014).

danos massivos para a biodiversidade da região; 7. explosão de um reactor na fábrica química de Meda, em Itália, em 1976, afectando centenas de crianças com doenças de pele na sequência da exposição à nuvem tóxica de dioxina; 81. contaminação da cidade de Love Canal, nos EUA, nos anos 1940, por lixo industrial depositado pela empresa Hooker Chemical, com resultados imediatos e a longo prazo na saúde dos seus habitantes; 9. fuga de cianeto e outros gases altamente tóxicos da fábrica de pesticidas da Union Carbide, em Bhopal, na Índia, em 1984, responsável pela morte imediata de 3000 pessoas e de mais de 10.000 na sequência do acidente, além de sérias sequelas na população de áreas vizinhas até hoje e de danos ecológicos irreversíveis (a catástrofe de Bhopal é ainda considerada o mais lesivo acidente industrial ocorrido até hoje); 10. explosão de um reactor na central nuclear de Three Mile Island, nos EUA, em 1979, com fuga radioactiva (mínima) que se traduziu em perda de colheitas, mortes prematuras e nascimentos de crianças defeituosas.

Perante este quadro amplíssimo, e à semelhança do que se fez num primeiro momento, a propósito dos riscos naturais3, o objectivo deste livro não é esgotar a “gama” de riscos tecnológicos mas antes identifi car alguns, mais e menos divulgados, mais ou menos óbvios, e estudar os esquemas regulatórios que os envolvem, no sentido da sua identifi cação, prevenção e minimização. Um dos aspectos mais candentes no que toca a riscos tecnológicos é a sua percepção pela população – ora empolada, ora descurada, em razão de lapsos comunicacionais e défi ces informativos. A Introdução deste livro é dedicada a um direito crescentemente reclamado no âmbito da prevenção de riscos tecnológicos: o direito a saber.

3 No livro Direito(s) das catástrofes naturais, coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra, 2012.

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No Capítulo I dá-se uma perspectiva das questões de segurançado medicamento e do modo como a mesma é garantida no direitovigente. O medicamento é um produto que comporta riscos e cuja introdução e manutenção no mercado depende do facto de os benefícios superarem os riscos. É abordado o ciclo de vida do medicamento e caracterizada a segurança como um dos três pilares essenciais em que assenta a autorização da sua comercialização. São enunciados os momentos mais relevantes para a garantia da segurança: os ensaios clínicos, o procedimento de autorização de introdução no mercado e a utilização. A propósito deste último momento, são abordadas as responsabilidades dos diferentes agentes, durante o referido ciclo de vida e identifi cados aspectos que importa melhorar.

No Capítulo II, tentamos descrever os processos tecnológicos que permitem a exploração de hidrocarbonetos (tanto em estado líquido como gasoso) offshore, bem como os mecanismos legaisinternacionais que permitem enquadrar estas operações e dar resposta aos acidentes ocorridos. A indústria petrolífera offshore representa, aproximadamente, um terço da produção de petróleo mundial e, dadas as condições em que opera, é inevitável a exposição à ocorrência de riscos tecnológicos. Em razão da complexidade e do cariz internacional da indústria petrolífera offshore, foi necessário desenvolver métodos de prevenção adequados e criar mecanismos legais de responsabilização das companhias aquando de um acidente de grandes proporções.

As crises alimentares e as reacções que desencadeiam são ilustrações precisas de algumas das inquietações que assolam as sociedades hodiernas. No Capítulo III, procuraremos descreverbrevemente a evolução das últimas décadas neste domínio e a sua infl uência no desenvolvimento da estrutura político-institucionaleuropeia. Para tanto, examinar-se-á o Regulamento (CE) nº 178/2002, considerado o pilar da legislação alimentar. Além disso, olhar-se-á identicamente para o panorama internacional neste âmbito, com principal incidência no Codex Alimentarius. Por último, atentaremos em alguns aspectos que caracterizam estes regimes, como a regulação

do risco e o fenómeno do crescimento da auto-regulação, tendo como pano de fundo ao longo de todo o capítulo, o aprofundamentoda relação entre ciência e direito, marca transversal dos nossos tempos.

O Capítulo IV deste livro debruça-se sobre as normas de direito internacional e de direito da União Europeia que regulam os “acidentes nucleares”, entendidos como qualquer acidente com consequências especialmente alargadas e gravosas, para a população e para o meio ambiente, resultantes de actos humanos pacífi cos que conduzam à libertação de energia do núcleo atómico ou, mais genericamente, de radiações ionizantes. Os eventos de Fukushima, em Março de 2011, vieram provar que os acidentes nucleares não são um mero fantasma do passado. Curiosamente, ao contrário do que aconteceu após Chernobil, o direito internacional e europeu não evoluiu em reação a este mais recente acidente, possivelmente devido à falta de consequências transfronteiriças.

O estudo dos riscos decorrentes de poluição marinha porhidrocarbonetos provenientes de navios/petroleiros, e os métodos de resolução judicial destes confl itos de alta complexidade, constitui o alvo do Capítulo V. Assim, procurou-se analisar não apenas os aspectosmateriais, mas também processuais do contencioso internacional/transnacional no que diz respeito a esses eventos de poluição, abordandoa problemática da fragmentação do contencioso internacional ambiental e a congestão de instrumentos normativos internacionais que regulam a matéria, cujos efeitos têm redundado em questões adjetivas sensíveis ao Direito Internacional, como o forum shopping, a litispendência e os sucessivos processus.

O Capítulo VI debruça-se sobre o possível enquadramento de actos armados contra populações civis enquanto tipo de risco tecnológico, através do estudo de três grandes núcleos temáticos: delimitação da noção de “catástrofe tecnológica”, análise das características da guerra contemporânea e questionamento sobre se a utilização massiva de armas contra civis no âmbito de um confl ito armado poderá ser classifi cada como uma catástrofe tecnológica e qual o impacto dessa eventual classifi cação.

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O Capítulo VII é dedicado à análise dos regimes jurídicos internacionais que visam a prevenção de acidentes industriais – em especial os que envolvem substâncias químicas –, a preparação para os seus efeitos e a sua minimização. Nesse âmbito, dá-se especial atenção ao regime Seveso, mas também a outros regimes aplicáveis no espaço da União Europeia, relacionados com a regulação da prevenção e assistência em caso de acidentes industriais graves – como o Regulamento REACH e o Regulamento CLP. Tratar-se-á ainda de outros regimes internacionais, em especial da Convenção sobre os Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais (CETAI), entre outros.

A nanotecnologia encontra-se presente no quotidiano através de uma indústria de milhares de milhões de euros, expondo a população e o ambiente a nanopartículas e compostos com repercussões desconhecidas. Com múltiplas e crescentes aplicações e desenvolvimentos inovadores, as interrogações ao seu redor aumentam esbarrando, porém, em muita falta de informação e numa regulação naturalmente incipiente e impreparada para os desafi os colocados por esta revolução tecnológicasilenciosa. O Capítulo VIII pretende deixar algumas refl exões e contributos para a abordagem desta temática, desde dúvidas epistemológicas fundamentais para enquadrar a problemática dos riscos da nanotecnologia até ao questionamento da oportunidade regulatória e das soluções jurídicas possíveis para lidar com o actual conhecimento científi co.

No Capítulo IX, analisa-se a problemática dos OGM na perspectiva dos três principais ramos de Direito internacional invocados, nas instituições internacionais, pelos stakeholders e ainda pela doutrina, a saber: Direito internacional do ambiente, Direito Internacional Económico e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Como fi o condutor, surgem dois princípios omnipresentes no debate – a precaução e o desenvolvimento sustentado –, umas vezes com sentidos convergentes, em que o primeiro é condição do segundo, outras divergentes, em que a precaução se oporia ao desenvolvimento sustentado. Mais do que defi ni-los e recortá-los em abstracto,

procura-se compreender o seu papel na polémica sobre a biotecnologia. Finalmente, o Capítulo X procura relacionar três realidades muitodiversas entre si: saúde pública, direito penal e os novos riscos próprios de uma sociedade científi ca e tecnologicamente avançada. De um primeiro ângulo, atende-se à ligação entre saúde pública e direito penal; num segundo ângulo, refl ecte-se sobre a relação entre a saúde pública e os “novos riscos” afi rmados naquela sociedade contemporânea, também chamada de “segunda modernidade” ou “modernidade refl exiva”; e, num terceiro momento, atende-se às soluções jurídicas que têm vindo a ser propostas neste cenário de incerteza, característico desta sociedade do risco.

Os Autores,

Carla Amado GomesAquilino Paulo Antunes

João Verne OliveiraMaria Inês GameiroMiguel Sousa Ferro

Orlindo Francisco BorgesRita Madeira

Rui Tavares LanceiroRute Saraiva

Susana Aires de Sousa

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Introdução

Risco tecnológico, comunicação do risco e direito a saber

Carla Amado Gomes

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Centro de Investigação de Direito Público da Faculdade de

Direito da Universidade de Lisboa

“Risk comes from not knowing what you’re doing”

Warren Buffett

1. A crescente complexidade tecnológica dá, hoje, sustentação a uma sociedade multiriscos, na qual o incremento de bem estar é directamente proporcional ao crescendo de incerteza sobre as consequências das alterações introduzidas. O Homem comporta-se como um “aprendiz de feiticeiro”, semeando ventos de mudança que se agigantam em tempestades de consequências imprevisíveis. A técnica e os seus riscos são, simultaneamente, soluções e problemas.

O risco tecnológico – o man made risk – constitui o preço a pagar pela imparável criatividade humana, pela incessante busca de conforto e pela necessária manutenção do crescimento económico. A sua penetraçãonos mais variados sectores da vida social força o Estado, primeiro responsável pela vida e segurança dos cidadãos, a adoptar tarefas tentaculares no sentido da sua avaliação, gestão e eventual erradicação (pensemos nos casos do amianto, dos organismos geneticamente modifi cados, no sangue contaminado com vírus HIV – ou no tabaco, na comida processada, na vacina da gripe...).

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2. O relatório On Science and Precaution in the Management of Technological Risk, preparado para a Comissão Europeia pelo Institute for Prospective Technological Studies, de Sevilha1, distingue seis classes de risco (mormente) tecnológico com base em analogias mitológicas:

Classe de risco 1: Espada de Damocles

Esta classe de risco relaciona-se com fontes de risco com alto potencial lesivo e ao mesmo tempo muito baixa probabilidade de ocorrência. São exemplos os riscos ligados à produção de energia nuclear, a instalações químicas de grande escala e a barragens.

Classe de risco 2: Cíclopes

Esta classe de risco prende-se com riscos em que a probabilidade de ocorrência é incerta mas o potencial lesivo é aferível e surge como muito alto. São exemplos os riscos de inundações, terremotos e erupções vulcânicas, mas também epidemias como a SIDA.

Classe de risco 3: Pythia

Esta classe de risco traduz a ambiguidade da profetisa Pythia, do oráculo de Delfos. A lesão potencial destes riscos é imensa, mas a probabilidade de ocorrência, a magnitude do dano, a sua localização e o seu modo de eclosão, são desconhecidos. São exemplos as intervenções humanas nos ecossistemas, a biotecnologia e o efeito de estufa, cujo efeitos transformativos não são conhecidos.

1 Ortwin RENN e Andreas KLINKE, Risk Evaluation and Risk Management for Institutional and Regulatory Polic, in On Science and Precaution in the Management of Technological Risk, II, ESTO Project Report prepared for the European Commission, Institute Prospective Technological Studies, Seville, ed. Andrew Stirling (SPRU University of Sussex), 2001, pp. 13 segs, 16-17.

Classe de risco 4: Caixa de Pandora

Este tipo de riscos caracteriza-se pelas suas irreversibilidade e persistência, bem como em função da incerteza quanto à probabi-lidade e extensão dos danos. São exemplos os poluentes orgânicos persistentes e disrupções endócrinas.

Classe de risco 5: Cassandra

Esta classe de risco caracteriza-se pelo seu elevado potencial lesivo e elevada probabilidade de ocorrência, o que o acantona na zona de risco intolerável. Trata-se de riscos cumulativos, cujo efeito lesivo se denuncia muito tempo depois do evento que o desencadeou. Exemplo paradigmático são as alterações climáticas.

Classe de risco 6: Medusa

Esta classe de riscos envolve inovações tecnológicas que, intuitiva-mente, causam temor, sem que sejam avaliadas como ameaças do ponto de vista científi co. São riscos que geram uma reacção negativairracional e que podem ser neutralizados através de explicação, pesquisa e comunicação entre peritos e público. Exemplo típico é o dos campos electromagnéticos.

3. Como se vê, a polifacetação do risco tecnológico é vasta e convoca diferentes estratégias de minimização. Já em outras ocasiões nos debruçámos sobre a gestão destes riscos2, identifi cando três eixos

2 Vejam-se os nossos: Dar o duvidoso pelo (in)certo? Refl exões sobre o “princípio da precaução”, in RJUA, 2001, nºs 15/16, pp. 9 segs; Risco e modifi cação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do Ambiente, Coimbra, 2007, esp. Parte II, Cap. II; Quatro estratégias para uma incógnita: o risco global

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fundamentais desta problemática: avaliação – comunicação – adaptação.Estas vertentes fi cam particularmente bem demonstradas em dois regimes abordados neste livro, que se tomam exemplifi cativamente: por um lado, o quadro de gestão partilhada de riscos de acidentes graves, ínsito na directiva 2012/18/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, que altera e subsequentemente revoga a Diretiva 96/82/CE, do Conselho – Directiva Seveso III (a transpor até 31 de Maio de 2015; presentemente, rege ainda a sua antecessora, transposta para o Direito pátrio pelo DL 254/2007, de 12 de Julho); por outro lado, a moldura legislativa sobre introdução no mercado de organismos geneticamente modifi cados, regulada pela directiva 2001/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Março, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modifi cados e que revoga a directiva 90/220/CEE, do Conselho – transposta para o Direito nacional pelo DL 160/2005, de 21 de Setembro3).

no seu labirinto, in RFDUL, 2011/1-2, pp. 81 segs. Sobre responsabilidade por défi ce de comunicação de riscos evolutivos, ver ainda Carla AMADO GOMES, Risco(s) de civilização, responsabilidades comunicacionais e irresponsabilidades residuais, in Actas do Colóquio Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no dia 5 de Dezembro de 2012, no âmbito do ICJP, Lisboa, 2013 (coord. com Miguel Assis Raimundo), livro digital disponível em http://www.icjp.pt/publicacoes/ 1/4082 (também publicado na Julgar, nº 20, 2013, pp. 225 segs).

3 Ver também: a Portaria 904/2006, de 4 de Setembro (estabelece as condições e o procedimento para o estabelecimento de zonas livres de cultivo de variedades geneticamente modifi cadas); o DL 387/2007, de 28 de Novembro (cria o Fundo de Compensação destinado a suportar eventuais danos, de natureza económica, derivados da contaminação acidental do cultivo de variedades geneticamente modifi cadas); a Portaria 1611/2007, de 20 de Dezembro, que altera a Portaria 904/2006, de 4 de Setembro (estabelece as condições e o procedimento para o estabelecimento de zonas livres de cultivo de variedades geneticamente modifi cadas).

Em ambos os regimes, e embora incidam sobre riscos diversos, detectamos os passos fundamentais da gestão do risco: a avaliação prévia, através da fi gura da autorização (anterior à emissão de licençaambiental; à introdução no mercado); a comunicação (ao público, antes da emissão do acto autorizativo, após a sua emissão e durante a sua vigência, através da publicitação de relatórios de monitorização); a adaptação (a novos dados resultantes da pesquisa científi ca, através da revisão da autorização e da sua renovação ao cabo do termo de validade). A dinâmica destes procedimentos levanta problemas agudos de controlo das actualizações a que os títulos autorizativos se encontram permanentemente expostos, quer da parte do operador, quer da parte das entidades com competência de fi scalização.

4. Nesta Introdução, o ponto que gostaríamos de ressaltar é o da comunicação do risco tecnológico. No plano internacional, a responsabilidade dos Estados por danos causados em territórios de Estados terceiros resultantes de fontes de risco sob sua jurisdição (cfr. os princípios 21 da Declaração de Estocolmo e 2 da Declaração do Rio 92; os Draft articles on prevention of transboundary harm from hazardous activities4; e ainda o considerando 8 do Preâmbulo e o artigo 4 da Convenção sobre os efeitos transfronteiriços de acidentes industriais, de 1992) envolve a adopção de um conjunto de deveres que poderíamos reunir sob a égide da fórmula de cooperação preventiva5, nos quais se incluem a informação, a consulta, a participação pública, a

4 Disponível em http://untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/commentaries/9_7_2001.pdf.

5 Cfr. o nosso A gestão do risco de catástrofe natural – Uma introdução na perspectiva do Direito Internacional, Capítulo I da obra colectiva Direito(s) das catástrofes naturais, coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra, 2012, pp. 15 segs, e também Barbara NICOLETTI, The prevention of natural and man-made disasters: what duties for States?, in International disaster response law, A. de Guttry et al. ed., The Hague, 2012, pp. 177 segs

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avaliação de impacto ambiental, a notifi cação de acidentes e a aprovação de planos de emergência; no plano interno, o Estado deve promover a divulgação de informação sobre a introdução de riscos tecnológicos, fomentando momentos de contraditório público epublicitando os resultados dos procedimentos autorizativos, assegurando uma pós-avaliação inclusiva6.

A informação sobre o risco é essencial (pelo menos) a dois títulos: de uma banda, no plano interno, para gerar abordagens de lucidez – uma vez que a população tem, em geral, uma percepção pouco racional dos riscos tecnológicos – e, no plano internacional, para fortalecer a lógica de confi ança e responsabilidade entre os Estados; de outra banda, no plano interno, para promover “culturas de segurança” que facilitem a prontidão na resposta à eclosão dos riscos – sobretudo nos países latinos, em que a prevenção surge sempre em segundo plano, uma vez que existe um sentimento de que as desgraças só acontecem aos outros... – e, no plano internacional, a fi m de viabilizar respostas tanto quanto possível antecipativas ou, pelo menos, rápidas, na minimização dos efeitos lesivos.

5. RECCHIA enumera os grupos de actores (stakeholders) cujapercepção do risco tecnológico infl uencia a tomada de decisão7: 1)público em geral; 2) autoridades públicas; 3) profi ssionais da indústria; 4) trabalhadores; 5) peritos; 6) Organizações não Governamentais do Ambiente (ONGAs); 7) meios de comunicação8. A complexidade

6 Para uma amostragem de instrumentos internacionais que estabelecem estratégias de redução de riscos naturais e tecnológicos, Alessandra LA VACCARA, An enabling environment for disaster risk reduction, in International disaster response law, A. de Guttry et al. ed., The Hague, 2012, pp. 199 segs (com particular incidência na Estratégia de Hyogo e em algumas concretizações nacionais dos seus princípios).

7 Cfr. Virginia RECCHIA, Risk communication..., cit., p. 15.8 Note-se o alargamento deste universo comunicacional desde fi nais da década

de 1990, quando Michael BARAM (Corporate risk management and risk

da aferição do se, quando e como, convoca sobretudo os peritos, cientistas e técnicos, para elucidarem as autoridades públicas, fornecendo-lhes guiões de leitura que permitam tornar os pressupostos de facto mais inteligíveis – mesmo que não exista unanimidade naapreciação. Em face da incerteza e quanto maior ela for, mais prevalecea dimensão política, de escolha, sobre a dimensão técnico-científi ca, de caracterização, da gestão do risco. Assim, pode dizer-se que os peritos respondem à questão: Que risco envolve esta situação? (How risky is this situation?), enquanto os políticos devem resolver as equações: O que devemos aceitar? e O que devemos fazer? (What are we willing to accept; What shall we do about that?)9.

6. Em razão da incerteza que envolve a avaliação do risco – maximequanto ao se mas também quanto ao como –, os peritos são actores privilegiados neste domínio (com toda a falta de sustentaçãodemocrática que rodeia o seu estatuto). A avaliação e comunicação do risco assentam na experiência e na análise científi ca, constituindo, portanto, zonas alheias a juízos de valor e a responsabilização política – aquilo a que ESTEVE PARDO designa por “tecnocracia e expertocracia organizadas”10. A independência e o conhecimento especializado dos peritos conferem-lhes, no entanto, uma especial credibilidade junto do público, razão porque são elementos indissociáveis dos procedimentos de avaliação e comunicação do risco.

communication in the European Community and the United States, in Harvard Journal of Law and Technology, 1989, Spring issue, pp. 85 segs, 102 segs – disponível em http://jolt.law.harvard.edu/articles/pdf/v02/02HarvJLTech085.pdf) apontava apenas para uma relação triangular envolvendo público/autoridades públicas/indústria.

9 Cfr. Virginia RECCHIA, Risk communication..., cit., p. 13.10 José ESTEVE PARDO, El desconcierto del Leviatán. Política y Derecho

ante las incertidumbres de la ciencia, Madrid/Barcelona/Buenos Aires, 2009, pp. 100 segs.

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CHAKRABORTY avança sete fases de desenvolvimento da comunicação do risco ao público pelos peritos11:1. Avaliação do risco;2. Caracterização do risco, através da transmissão de dados ao

público;3. Explicação dos dados;4. Neutralização do risco, através da comparação com riscos similares

aceites no passado;5. Explicação das vantagens que o risco pode trazer quer em face

das soluções existentes, quer da sua inexistência;6. Manutenção de um diálogo em níveis de afabilidade e respeitabilidade

das dúvidas e posições expressas durante o procedimento; 7. Associação do público à decisão fi nal de gestão do risco, através

da sua publicitação e monitorização subsequente.

6.1. O contexto emergencial em que eclodem certos riscos pode perturbar esta sequência, não tanto no sentido de suprimir fases, mas de atenuar a completude e objectividade das comunicações. Pensando concretamente nas particularidades que a urgência traz à comunicação do risco, CHAKRABORTY, louvando-se em Fischoff, enumera uma lista de boas práticas nas comunicações emergenciais de risco12:As pessoas querem ouvir a verdade, mesmo que preocupante;As pessoas absorvem apenas pequenas quantidades de informação

de cada vez;As pessoas têm mais difi culdade de assimilar o risco cumulativo

do que o risco súbito;

11 Sweta CHAKRABORTY, The challenge of emergence risk communication: lessons learned in trust and risk communication from the volcanic ash crisis, in Governing disasters. The challenges of emergency risk regulation, ed. Alberto Alemanno, Cheltenham/Northampton, 2011, pp. 80 segs.

12 Sweta CHAKRABORTY, The challenge..., cit., pp. 82-83.

As pessoas iradas perdem a lucidez, por isso o comunicador do risco deve ser afável para encorajar contributos objectivos e desincentivar comportamentos de pânico;

Mesmo os melhores comunicadores podem ser surpreendidos pela reacção do público, especialmente quando o risco é novo – por isso, convém trabalhar antecipadamente num protótipo de mensagem;

As pessoas exageram a sua capacidade de prever comportamentos de terceiros – por isso os cientistas sociais devem ser parte do planeamento, devem ter a percepção de como o público vai receber os avisos;

As pessoas normalmente fazem escolhas sensatas, se estiverem cientes das circunstâncias e dos seus objectivos. Mas para tanto necessitam de informação – logo, os comunicadores devem assumir a responsabilidade de fornecer boa informação em tempo útil.

7. Num quadro apresentado por RECCHIA13, podemos observar alguns dos factores que determinam – e perturbam – a percepção do risco pela população14:

13 Virginia RECCHIA, Risk communication and public perception of techno-logical hazards, p. 16 – disponível em http://scholar.google.pt/scholar_url?hl=pt-PT&q=http://www.researchgate.net/publication/228140395_Risk_Communication _and_Public_Perception_of_Technological_Hazards_(Part_One)/fi le/9fcfd50b 35093982bf.pdf&sa=X&scisig=AAGBfm211EBjJOt21XYOrIRiz-D 77Ir5qw&oi=scholarr&ei=w2j_UqmXGITxhQfHx4GYBA&ved=0CCoQgAMoADAA.

14 Conforme explica Virginia RECCHIA, o termo “percepção do risco” denota imediatamente subjectividade uma vez que se reporta a um sentimento, não a uma análise puramente intelectual (“...the term risk perception emerged to describe people’s feelings about risks”) – Risk communication..., cit., p. 9.

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Percepção do risco

Menos arriscado Mais arriscado

Voluntário Involuntário Familiar Não familiar Controlado pelo próprio Controlado por terceiros Crónico Agudo Natural Artifi cial Justo Injusto Detectável Não detectável

Não memorável Memorável

Da análise rápida deste quadro, logo se apreende que as pessoas temem menos/aceitam mais facilmente:

Os riscos que assumem (em contrapartida, receiam os que lhe são impostos)15;

Os riscos com que convivem diariamente (em contrapartida, receiam o desconhecido)16;

Os riscos que pensam controlar (em contrapartida, receiam os que são dominados por terceiros)17;

Os riscos que obedecem a uma cadência repetitiva (em contrapartida, receiam os que irrompem inesperadamente)18;

Os riscos de origem natural (em contrapartida, receiam o risco que advém de uma acção humana)19;

Os riscos que atingem todos por igual (em contrapartida, receiam o risco socialmente discriminatório)20;

15 Contraponha-se: Fumar/ter um aterro sanitário ao lado de casa.16 Contraponha-se: Cheias sazonais na sua região/um tornado numa cidade

afastada.17 Contraponha-se: Conduzir um automóvel/andar de avião.18 Contraponha-se: Ondas de calor em determinada época do ano/um sismo.19 Contraponha-se: Erupções vulcânicas/acidente nuclear.20 Contraponha-se: Acidente industrial/fome.

Os riscos apreensíveis (em contrapartida, receiam o risco subliminar)21;

Os riscos dos quais se esquecem (em contrapartida, receiam aqueles que lhes provocaram um mais duradouro impacto).

8. A sensibilização dos cidadãos para o teor real do risco é um dos objectivos da gestão democrática do risco – ou da governança social do risco. Os métodos podem variar muito consoante o tipo de riscos, o universo dos potenciais afectados, a magnitude projectada (no espaço e no tempo), a sua erupção (cumulativa ou súbita) a ponderação de interesses entrecruzados envolvidos na aceitação do risco em concreto... Por exemplo, no âmbito da gestão do risco de acidente industrial, não só a informação à população próxima da instalação deve promover-se no momento de participação pública que antecede a aprovação do plano de segurança externo, como as autoridades devem periodicamente realizar simulacros para testar a assimilação de práticas de segurança a adoptar em caso de acidente. Já em caso de gestão do risco de introdução de OGMs no mercado, a gestão democrática do risco envolverá a participação em momentos de contraditório público prévios à concessão da autorização de colocação no mercado, bem assim como a rotulagem dos produtos que eventualmente venham a conter OGMs, permitindo ao consumidor fazer escolhas de consumo conscientes.

A irracionalidade da percepção do risco pode ser “domesticada” através da informação, fornecida por interlocutores claros e socialmentecredíveis, ao público interessado – em contrapartida, pode ser “incendiada” pela via da comunicação social, que tem tendência a empolar os acontecimentos trágicos, causando um maior alarme

21 Contraponha-se: Virus da gripe/amianto.

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social22. Como refere LIENHARD23, numa sociedade fortemente mediatizada como aquela em que vivemos, é frequente o baptismo de um evento anormal como catastrófi co ser levado a cabo pelos meios de comunicação social. Tal realidade torna imprescindível integrar a comunicação de riscos, prévia e posterior à eclosão dos mesmos, na política de gestão do risco, a fi m de assegurar aquilo a que o Autor denomina como um “direito à verdade”24.

8.1. Para racionalizar a comunicação do risco e minimizar os impactos na população, maxime em contextos emergenciais, as estratégias de comunicação do risco no ciclo comunicacional de crise (crisis communication cycle) devem pautar-se por um padrão evolutivo que evolui da seguinte forma25:

22 Sobre a amplifi cação social do risco pela comunicação social, veja-se Adam BURGESS, Representing emergency risks, in Governing disasters. The challenges of emergency risk regulation, ed. Alberto Alemanno, Cheltenham/Northampton, 2011, pp. 65 segs. Anotando, em contrapartida, alguns aspectos positivos da acção dos media na comunicação do risco, o relatório das Nações Unidas Global Assessment Report on Disaster Risk Reduction 2011 – Revealing Risk, Redefi ning Development, Cap. VII, p. 8. Disponível em http://www.preventionweb.net/english/hyogo/gar/2011/en/home/index/html (enunciando, com base em OLSON, quatro frentes de actuação na fase pós-desastre: registando o número de vítimas, máxime índice de mortalidade e a efi cácia da assistência; descrevendo a resposta de Governos e instâncias humanitárias; analisando as causas do desastre; despertando o público para medidas a adoptar para incrementar a reacção em futuros desastres. O relatório frisa ainda que a publicitação de um desastre pode ter um efeito pedagógico junto da população de Estados em que a potencialidade de eclosão de riscos semelhantes é idêntica).

23 Claude LIENHARD, Pour un Droit des catastrophes, in Ch. Dalloz, 1995/13, 91 segs, 94.

24 Claude LIENHARD, Pour un Droit des catastrophes, cit., p. 98.25 Sweta CHAKRABORTY, The challenge..., cit., pp. 86-87.

1. Pré-crise = antecipação dos problemas: os peritos devem, no momento crítico, falar a uma só voz; por isso, as alianças a estabelecer com as autoridades públicas devem começar a urdir-se neste ponto;

2. Inicial = comunicação do evento lesivo: deve fazer-se com simplicidade, credibilidade, verifi cabilidade, consistência e celeridade; o porta-voz deve demonstrar autenticidade, simpatia e inspirar confi ança; deve revelar a informação disponível, explicar o estádio de investigação e anunciar, se possível, quando será disponibilizada mais informação (que deve ser triada antes de ser veiculada);

3. Actualização durante a emergência = em comunicação com os meios de comunicação, a fi m de sustar a emissão de informações contraditórias e alarmistas;

4. Resolução = lançamento de campanhas educacionais a fi m de incrementar a prontidão de resposta em futuras crises; criação de páginas na WEB para acompanhamento das medidas de recuperação;

5. Avaliação = análise cuidada das circunstâncias que deram origem à eclosão do risco e processamento das lições aprendidas.

9. Nos últimos anos, em razão do imperativo democrático da comunicação de riscos vivenciais, começa a impor-se, no contexto da gestão do risco, sobretudo tecnológico, um “direito a saber” (right to know). A primeira directiva Seveso (directiva 82/501/CEE, do Conselho,de 24 de Junho) estabelece o direito do público potencialmenteafectado pelo risco criado pela instalação perigosa a conhecer toda a informação relevante no sentido da adopção de comportamentos de autoprotecção (bem assim como dos funcionários da instalação)26.

26 Cfr. os artigos 8 e 4 da directiva.

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O Emergency Planning and Community Right-to-Know Act norte--americano, de 1986, incorpora mesmo no seu título a formulação do “direito a saber”27. Este diploma reage ao desastre de Bhopal, na India, originado na fuga de 40 toneladas de gases tóxicos da fábricade pesticidas da empresa Union Carbide, em 1984, que gerou milhares de mortes, imediatas e protraídas no tempo, e para cujo balanço letal muito contribuiu a total ignorância da população e das autoridades (de saúde, de segurança) sobre o risco a que estavam expostos28.

9.1. Este direito vem sendo progressivamente reconhecido pelo Tribunal de Estrasburgo, no âmbito das obrigações positivas (para o Estado) que extrai do direito à privacidade e à vida familiar (artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem). A vis expansivadesta posição jurídica permite a confi guração de um direito a conhecer os riscos a que o cidadão está exposto quando tem na sua vizinhançauma instalação perigosa ou pratica actividades profi ssionais de risco. Recorde-se, desde logo, o clássico caso Ana Maria Guerra e outros vs. Itália (1998), no qual o Tribunal condenou Itália por violação do direito dos autores a receber informação sobre o risco de contaminação do ar decorrente do funcionamento de uma fábricade produtos químicos na localidade de Manfredonia (estabelecimento considerado de risco pela directiva Seveso), a cerca de 1 km das suas residências, na sequência de um acidente ocorrido em 1985.

27 Cfr. a Secção 342 do Emergency Planning and Community Right-to-Know Act (aprovado em 1986 como Título III do Superfund Amendments and Reauthorization Act).

28 Por isso Sheila JASANOFF afi rma que “The tragedy in Bhopal can be seen not merely as a failure of technology, but as a failure of knowledge” – The Bhopal disaster and the right to know, in Social Science and Medicine, vol. 27, 1988, pp. 1113 segs, disponível em http://bhopal.net/document_library/medical_documents/ 1988%20-%20Social%20Science%20Medicine%20Jasanoff.pdf.

Recorde-se um dos passos fundamentais da retórica argumentativa do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (consid. 60):

“The Court reiterates that severe environmental pollution may affect individuals’ well-being and prevent them from enjoying their homes in such a way as to affect their private and family life adversely (...). In the instant case the applicants waited, right up until the production of fertilizers ceased in 1994, for essential information that would have enabled them to assess the risks they and their families might run if they continued to live at Manfredonia, a town particularly exposed to danger in the event of an accident at the factory.

The Court holds, therefore, that the respondent State did not fulfi ll its obligation to secure the applicants’ right to respect for their private and family life, in breach of Article 8 of the Convention”.

Uma década mais tarde, o Tribunal Europeu dos Direitos doHomem prolataria uma decisão identicamente célebre, na qual procedeu a uma recensão de instrumentos que consagram o direito à informação como instrumento de protecção do ambiente e da saúde (além de remeter para alguns outros casos próximos, decididos no interim)29. Foi no caso Tatar vs. Roménia (2009), onde se apreciou a responsabilidade do Estado romeno por défi ce de informação à população sobre os riscos associados a uma fábrica de extracção de cianeto de sódio em Baia Mare. Um acidente no ano 2000 levou à fuga de 100.000 m3 de água contaminada, a cuja exposição os residentes em Baia Mare e concretamente, o autor, foram especialmente sujeitos e que terá agravado signifi cativamente a doença respiratória deste último. A Corte sublinhou que este acidente era previsível, em face de

29 Muito particularmente os casos Öneryildiz c. Turquia (2002) e Giacomeli contra Itália (2006) – por nós analisados em Escrever verde por linhas tortas: o direito ao ambiente na jurisprudência do Tribunal Europeu do Direitos do Homem, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, III, lisboa, 2010, pp. 163 segs, 186 segs e 195 segs.

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estudos de impacto ambiental de 1993, não devidamente publicitados e, ademais, negligenciados nas suas conclusões relativas a obrigações de prevenção (cfr. o consid. 112). Os Juízes de Estrasburgo realçaram ainda que:

“Étant donné les conséquences sanitaires et environnementales de l’accident écologique, telles que constatées par des études et rapports internationaux, la Cour estime que la population de la ville de Baia Mare, y inclus les requérants, a dû vivre dans un état d’angoisse et d’incertitude accentuées par la passivité des autorités nationales, qui avaient le devoir de fournir des informations suffi santes et détaillées quant aux conséquences passées, présentes et futures de l’accident écologique sur leur santé et l’environnement et aux mesures de prévention et recommandations pour la prise en charge de populations qui seraient soumises à des événements comparables à l’avenir. A cela s’ajoute la crainte due à la continuation de l’activité et à la possible reproduction, dans le futur, du même accident” (consid. 122).

Recentemente, têm-se sucedido os casos de condenação do Estado por violação de deveres – materiais e comunicacionais – de prevenção de riscos, ex vi artigo 8 da Convenção e eventualmente também artigo 2 (direito à vida). Um caso relevante para a matéria da gestão do risco tecnológico e do correlativo dever de informação sobre este foi analisado pelo Tribunal de Estrasburgo na decisão Kolyadenko e outros vs Russia (2012), que condenou o Estado russo por défi ce de prevenção de inundações provocadas por descarga de um reservatório em Agosto de 2001 (houve avisos de sobrecarga do reservatório e de necessidade de limpeza desde 1999). O Tribunal reconheceu que as condições meteorológicas foram anormalmente adversas e que os danos eram porventura (embora em menor medida, em caso de prevenção adequada e atempada) minimizáveis; todavia, cabendo a gestão do reservatório no domínio das actividades técnicas de risco, os deveres de prevenção eram acrescidos e foram gravemente negligenciados. A Corte destacou particularmente que:

“Under the circumstances, the authorities could reasonably have been expected to acknowledge the increased risk of grave consequences in the event of fl ooding following the urgent evacuation of water from the Pionerskoye reservoir, and to show all possible diligence in alerting the residents of the area downstream of the reservoir. In any event, informing the public of the inherent risks was one of the essential practical measures needed to ensure effective protection of the citizens concerned (...). In this connection, the Court notes that in a letter of 16 June 2000 the Administration of the Sovetskiy District of Vladivostok stated that the population living in the fl oodplain of the Pionerskaya river had been told what to do in the event of serious inundation (...). However, the Court is skeptical about that statement, given that the letter provided no further details, for example, as to the form in which the information concerned had been provided to the population, or what the contents of that information were. At the same time, the Court notes that the applicants consistently maintained that, even though by 7 August 2001, when the fl ood occurred, they had been living near the Pionerskoye reservoir for many years, they had never been warned by the authorities that they lived in a fl ood-prone area” (consid. 181, realçado nosso).

Este acórdão remete para o caso Boudaïeva e outros vs Rússia (2008)30, no qual o Tribunal afi rmou a necessidade de observância de deveres de prevenção do risco natural (no caso, relativamente à população de uma localidade situada no sopé de uma encosta sazonalmente exposta a enxurradas), tendo condenado o Estado russo por omissão grave de condutas materiais de minimização do risco e por grave défi ce de cumprimento de deveres de informação à população.

30 Por nós analisado em Carla AMADO GOMES, A gestão do risco de catástrofe natural..., cit., p.

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Acresce a esta lista um aresto de 2013, no qual o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu mais um passo no fortalecimento do direito a saber, ao condenar o Estado norueguês por não ter assegurado devidamente o dever de as empresas petrolíferas actuando no Mar do Norte fornecerem aos seus mergulhadores as tábuas de descompressão que lhes permitiriam apreender os riscos profi ssionais a que fi cavam sujeitos. No caso Vilnius vs Noruega (2013), o autor argumentava ter sofrido sérios danos neurológicos, auditivos e ósseos em virtude da sua actividade de mergulhador, exercida em várias empresas norueguesas durante a “era pioneira” da exploração de petróleo (1965-1990).

O Tribunal, através da análise dos documentos carreados para os autos, concluiu que as autoridades públicas estavam perfeitamente cientes de que a actividade de mergulho e a metodologia de descompressão envolvia graves riscos para a saúde dos mergulhadores, mesmo em condições normais (ou seja, sem acidentes). Daí que devessem velar porque as empresas partilhassem a informação disponível com os seus funcionários através de actividades inspectivas periódicas, sobretudo quando as dúvidas sobre o impacto da actividade na saúde dos mergulhadores, mesmo sem acidentes, começaram a surgir.

Destarte, o Tribunal confi rma a responsabilidade do Estado, ainda que em posição subsidiária ou de garante das empresas petrolíferas, pela omissão destas, uma vez que, autorizando as operações de mergulho, tem deveres de fi scalização inerentes ao bom cumprimento das obrigações decorrentes dos actos autorizativos (nomeadamente, a segurança e saúde dos trabalhadores nelas envolvidos)31. Deu, assim, por verifi cada a violação do artigo 8 da Convenção:

31 Sublinhe-se que a decisão mereceu dois votos dissidentes quanto à violação do artigo 8, sendo o mais desenvolvido o do Juiz Nordén (à qual aderiu o Juiz Lorenzen). O Juiz considerou que as incertezas que rodeavam a existência de riscos advenientes das operações de descompressão, sobre as quais nem os peritos estavam de acordo à época, eximiam o Estado de exigir a prestação de maior

“Having regard to all of the above-mentioned considerations, in particular the authorities’ role in authorising diving operations and in protecting the safety of such operations as well as the lack of scientifi c consensus at the time regarding the long-term effects of decompression sickness and the uncertainty about these matters which existed at the time (...), in order to minimise the possibility of damage a very cautious approach was called for (...). In the Court’s view it would therefore have been reasonable for the authorities to take the precaution of ensuring that the companies observe full transparency about the diving tables used and that the applicants, and other divers like them, receive information on the differences between tables, as well as on their concerns for the divers’ safety and health, which constituted essential information that they needed to be able to assess the risk to their health and to give informed consent to the risks involved. This the authorities could have done when, for example, granting authorisation of diving operations and upon inspections. Had they done so they might conceivably have helped to eliminate sooner the use of rapid tables as a means for companies to promote their own commercial interests, potentially adding to the risks to divers’ health and safety. By failing to do so the respondent State did not fulfi ll its obligation to secure the applicants’ right to respect for their private life, in violation of Article 8 of the Convention. There has accordingly been a violation of this provision” (consid. 244, realçado nosso).

Este aresto é particularmente ilustrativo da multilateralização das questões da governança na gestão do risco, tanto do ponto de vista da sua avaliação, como da sua comunicação. A democratização do risco força o alargamento do universo do contraditório público, em

informação do que a que era efectivamente veiculada (e que não incluia o acesso às tabuas de descompressão). O juiz considera que a decisão do Tribunal pressupõe “an unrealistic burden” sobre as autoridades públicas e realça a injustiça de avaliação da adequação da sua conduta num momento em que, ao contrário do que sucedia na altura dos factos, já há certezas sobre os riscos inerentes às operações de descompressão.

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ordem à legitimação das decisões tomadas em contextos de incerteza,quer quanto à escolha dos riscos (toleráveis/intoleráveis), quer quanto à minimização da sua eventualidade e/ou efeitos32.

9.2. Se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem não alberga uma sede especifi camente dedicada ao direito à informação sobre riscos para a saúde e para o ambiente, o mesmo não pode dizer-se do Direito da União Europeia, que lhe dedicou a directiva 90/313/CEE, do Conselho, de 7 de Junho, alterada na sequência da ratifi cação da Convenção de Aarhus pela directiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro33. O artigo 3/1 desta directiva estabelece, com efeito, que ”Os Estados-Membros asseguram que as autoridades públicas sejam, nos termos da presente Directiva, obrigadas a disponibilizar a qualquer requerente informação sobre ambiente na sua posse ou detida em seu nome, sem que o requerente tenha de justifi car o seu interesse”.

9.3. Nos Estados Unidos, o direito a saber é igualmente reconhecido de forma expressa, constituindo um mecanismo de governação do risco ambiental e sanitário. O Emergency Planning and CommunityRight-to-Know Act a que aludimos supra, coloca uma especial enfâse na vertente educacional, formacional e informacional das estruturas de contraditório público34, quando estabelece a necessidade de criação

32 Como sublinha Virginia RECCHIA (Risk communication..., cit., p. 17), “The question of acceptability of risk involves freedom as well as justice”.

33 Em Portugal, o direito de acesso à informação ambiental está regulado na Lei 19/2006, de 12 de Junho. Sobre este diploma, veja-se Carla AMADO GOMES, O direito à informação ambiental: velho direito, novo regime. Breve notícia sobre a Lei 19/2006, de 12 de Junho, in RMP, nº 109, 2007, pp. 5 segs.

34 Cfr. Bernardo H. MOTTA e Michael J. PALENCHAR, Bernardo H. MOTTA e Michael J. PALENCHAR, Awareness, Attitudes and Utilization of Community

dos Comités locais de planeamento de emergência (Local Emergency Planning Committees, LEPC), onde se reúnem mensalmente vizinhos, representantes do Governo estadual, representantes da indústria, autoridades de saúde e de segurança e quaisquer outros cidadãos e organizações interessados nas questões em debate, mais concretamente sobre planos de emergência, notifi cações de emergência, relatórios sobre armazenamento de substâncias perigosas e publicitação de acidentes. A convicção de que a informação pode salvar vidas torna a comunicação do risco, mais do que uma exigência legal, um verdadeiro imperativo moral35.

Para além de salvar vidas, a informação é um importante factor de empowerment das populações em face das grandes empresas, uma vez que lhes permite fazer escolhas conscientes, evitar manipulações e prevenir a tomada de decisões lesivas para o ambiente e para a saúde – ou seja, torna a comunicação do risco num procedimento mais equitativo36. O direito a saber, cuja afi rmação de cidadaniaespecifi camente política já vinha de longe, ganha com o Emergency Planning and Community Right-to-Know Act uma dimensão de defesa de interesses colectivos das e pelas comunidades, o que leva HADDEN a concluir que existe, na verdade, um continuum de direitos a saber: 1) um básico direito a saber; 2) um direito a saber com vista à redução do risco; 3) um direito participativo a saber (no contexto da tomada de decisão pública); e 4) um direito a saber para reformular o jogo de poder (changing the balance of power)37.

Right to Know: Public Relations Practitioners and Environmental Risk Communication, University of Tenessee, s/data, pp. 11 segs – disponível em http://web.cci.utk.edu/fi lesd/mottapalenchar08.pdf.

35 Cfr. Bernardo H. MOTTA e Michael J. PALENCHAR, Awareness..., cit., p. 5; Michael BARAM, Corporate risk.., cit., p. 98.

36 Cfr. Bernardo H. MOTTA e Michael J. PALENCHAR, Awareness..., cit., p. 8.

37 Citado por Bernardo H. MOTTA e Michael J. PALENCHAR, Awareness..., cit., p. 8.

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10. O direito a saber é hoje – pelo menos nos Estados desenvolvidos38 – uma conquista de cidadania, embora as preocupações securitárias o queiram descartar, em nome de um pretenso sobrevalor da segurança (sobretudo em face dos receios de aproveitamento da informação sobre instalações perigosas por terroristas para perpetração de atentados). Antes pelo contrário, a percepção (awareness) do risco pela comunidade reforça o sentimento de alerta comunitário e diminui a vulnerabilidade39. Já se tornou um chavão a expressão “Informação é poder” – poder, sobretudo, escolher entre estar sujeito a que riscos e com que salvaguardas. A informação e a educação para o risco reduz a vulnerabilidade das comunidades e reforça a sua legitimidade na gestão democrática de aspectos existenciais vitais. O direito a conhecer o risco a que se está exposto é actualmente um imperativo moral, jurídico e político.

38 Sobre alguns dos problemas que entorpecem a implementação das metodologias de governação do do risco em Estados menos desenvolvidos, veja-se o Global Assessment Report on Disaster Risk Reduction 2011, cit., ponto 7.1..

39 Bernardo H. MOTTA e Michael J. PALENCHAR, Awareness..., cit., p. 17.

Capítulo I

Riscos associados a medicamentos

Aquilino Paulo Antunes

Advogado

Mestre em Direito e Doutorando na Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa

Sumário: 1. Introdução; 2. Breve panorama do ciclo de vida do medicamento;

2.1. O princípio da protecção da saúde; 2.2. Aspectos do ciclo de vida do

medicamento; 3. A segurança do medicamento como um dos três pilares

essenciais em que assenta o licenciamento da sua comercialização; 3.1. Momentos fundamentais da garantia da segurança do medicamento;

3.1.1. Os ensaios pré-clínicos e clínicos; 3.1.2. O procedimento de

autorização de introdução no mercado; 3.1.3. A utilização; 3.2. As

responsabilidades de farmacovigilância e de segurança pós-autorização;

3.2.1. As responsabilidades dos titulares de AIM em matéria de segurança;

3.2.2. As responsabilidades dos profi ssionais de saúde e a necessidade

de colaboração dos doentes; 3.2.3. A actividade de farmacovigilância

por parte das autoridades; 4. Contributos para a melhoria do sistema;

5. Conclusões.

1. Introdução

É corrente afi rmar-se que o medicamento é um produto que comporta riscos. Por isso, a sua introdução e manutenção no mercado depende, designadamente, da existência de uma relação benefício-risco favorável; ou seja, depende do facto de os benefícios superarem os riscos. Estes riscos poderão resultar tanto de questões de segurança,como é o caso da toxicidade do produto, como de questões de qualidade, decorrentes, por exemplo, do facto de o produto não ser fabricado de acordo com as especifi cações autorizadas, ou de má utilização

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do medicamento, como acontece com a sobredosagem ou outra forma de inadequação terapêutica1.

O objectivo do presente trabalho é dar uma perspectiva não exaustiva das questões e do modo como se procura garantir a segurança dos medicamentos. Não nos debruçaremos, por isso, sobre as referidas questões de qualidade nem da má utilização, sem prejuízo de incidentalmente a elas aludirmos2.

Começaremos por uma abordagem ao ciclo de vida do medicamento, após o que caracterizaremos a segurança como um dos três pilares essenciais em que assenta a autorização de introdução no mercado do medicamento (AIM). Neste contexto, aludiremos àqueles que são os momentos mais relevantes para a garantia da segurança do medicamento, ou seja, os ensaios clínicos, o procedimento de autorização de introdução no mercado e a utilização.

No que respeita à fase da utilização do medicamento, aludiremos à actividade de farmacovigilância e às responsabilidades que nessa sede recaem sobre os titulares de autorização de introdução no mercadodo medicamento, sobre os profi ssionais de saúde e os doentes, bem como sobre as entidades públicas, a nível nacional e da União Europeia. Abordaremos também outras obrigações em matéria de segurança impostas no momento da concessão da AIM ou mesmo após esta concessão.

1 Sobre a aplicação da Directiva nº 85/374/CEE, relativa à responsabilidade dofabricante, aplicada ao medicamento, cfr. Anne WARE (2009), 20 Years On – The Product Liability Directive Applied to the Pharmaceutical Sector, in European Journal of Consumer Law, 2-3. Geneviève Michaux (ed.), Brussels, Larcier; Diana MONTENEGRO (2010), Responsabilidade Civil por Danos Causados por Medicamentos Defeituosos, Centro de Direito Biomédico, 18, Coimbra, Coimbra Editora.

2 Também não colocaremos neste trabalho a questão da legitimidade do padrão de segurança máxima adoptado para os medicamentos, tanto a nível da EU como dos Estados Unidos da América e do Japão. A ela dedicaremos outra oportunidade.

Procuraremos ainda dar alguns contributos para a melhoria do sistema e terminaremos com as conclusões a que nos tiver conduzido o excurso que nos propomos.

2. Breve panorama do ciclo de vida do medicamento

Para enquadramento do leitor na problemática a abordar neste trabalho, é útil proceder a uma visão esquemática e necessariamente lacunar do enquadramento e de alguns aspectos daquilo que chamaremos de ciclo de vida do medicamento.

A noção de medicamento a que recorremos neste trabalho é a que nos é dada pela alínea dd) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto. A mesma noção assume uma dupla vertente: medicamento por apresentação, que é “toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças em seres humanos ou dos seus sintomas” e medicamento por função, que é toda a substância “que possa ser utilizada ou administrada no ser humano com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou, exercendo uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica, a restaurar, corrigir ou modifi car funções fi siológicas”3. Em termos simplistas, se o produtoé apresentado como sendo um medicamento – designadamente,

3 Cfr. sobre a noção de medicamento e a respectiva construção jurisprudencial, Nathalie de GROVE-VALDEYRON (2009), Vers un marché unique des médicaments: acquis et nouvelles orientations communautaires, in Cahiers de droit européen, Bruxelles, pp. 340-341; Marjorie GOBERT, Les autorisations de mise sur le marché des médicaments – Médicamens à usage humain, in Cahiers de droit européen, Bruxelles, pp. 240-241; Paulo PINHEIRO, & M. GORJÃO-HENRIQUES (2006), Direito do Medicamento, Centro de Direito Biomédico, 16, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 35 segs. Cfr. também, sobre a mesma noção, Diana Montenegro SILVEIRA, (2010), Responsabilidade..., cit., pp. 23 segs.

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invocando propriedades terapêuticas ou sendo embalado e apresentado com a aparência de medicamento – ou se o medicamento apresenta composição idêntica, em dosagem igual ou superior, à de medicamento autorizado, deve como tal ser considerado e obedecer ao regime jurídico dos medicamentos4.

2.1. O princípio da protecção da saúde

O ciclo de vida do medicamento encontra-se fortemente condicionado,a nível jurídico, pelo princípio, de direito da União Europeia e de direito nacional, da protecção da saúde. Este princípio norteia toda a legislação farmacêutica e assume tanto a vertente da protecção da saúde individual como a vertente da protecção da saúde pública. É nele que se fundamenta a forte regulamentação da actividade farmacêutica, e se justifi ca que, neste contexto, seja dada menor importância a outras preocupações como sejam a efi ciência dos mercados, as liberdades de circulação de mercadorias e serviços ou a livre concorrência5. A preocupação de protecção da saúde é, em regra, transversal aos diversos sistemas jurídicos no que respeita à actividade farmacêutica6.

4 Não cabe aqui falar da extensão do regime jurídico dos medicamentos aos produtos-fronteira (nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto).

5 Mas não só. A regulamentação em vigor refl ecte ainda um equilíbrio, instável, entre aspectos técnicos e científi cos dos produtos, por um lado, e interesses confl ituantes, por outro. Cfr. Geneviève MICHAUX, Introduction, Medicaments et Industrie Pharmaceutique, in Cahiers de droit européen, Bruxelles, pp. 229 e 233.

6 Veja-se, a propósito do sistema dos Estados Unidos da América, Philip ASPDEN, Julie WOLCOTT, J. Lyle BOOTMAN & Linda R. CRONENWETT (eds.) (2007), Preventing Medication Errors: Quality Chasm Series, Committee on Identifying and Preventing Medication Errors, Washigton D.C., National Academies Press, p. 7.

No quadro do direito da União Europeia, relevam primordialmente os artigos 9º e 168º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, doravante TFUE ou Tratado. Estes preceitos impõem que a defi nição de todas as políticas e acções da União assegure “um elevado nível de protecção da saúde”. Releva igualmente o artigo 35º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que confere a “Todas as pessoas [...] o direito de aceder à prevenção em matéria de saúde e cuidados médicos, de acordo com as legislações e práticas nacionais” e reitera o que já resulta do Tratado “Na defi nição e execução de todas as políticas e acções da União, será assegurado um elevado nível de protecção da saúde humana”.

Este objectivo é prosseguido pelas disposições de direito derivado da União Europeia em matéria de medicamentos, como é o caso da Directiva nº 2001/83/CE, na sua redacção actual, transposta para o direito nacional pelo Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, na sua redacção actual, doravante Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto7, bem como pelo Regulamento (UE) nº 536/2014, de 16 de Abril de 2014, que revogou a Directiva nº 2001/20/CE, sobre ensaios clínicos, inicialmente transposta para o direito nacional pela Leinº 46/2004, de 24 de Agosto, recentemente revogada pela Lei nº 21/2014, de 16 de Abril8.

7 As referências a preceitos legais ao longo deste trabalho sem indicação do diploma a que pertencem consideram-se feitas ao Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, na sua redacção actual.

8 Refi ra-se, desde logo, que a oportunidade de aprovação desta lei, num momento em que estava praticamente concluído o processo legislativo do novo regulamento da União Europeia sobre ensaios clínicos, parece discutível, pese embora o facto de aquele diploma não tratar apenas de ensaios com medicamentos, mas também com dispositivos médicos e produtos cosméticos. Curioso ainda o facto de, tanto o Regulamento como a Lei, terem sido publicados no mesmo dia. No entanto e como é sabido, o Regulamento goza de efeito directo e aplicabilidade imediata na nossa ordem jurídica interna.

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No quadro do direito nacional, o princípio encontra-se consagrado no nº 1 do artigo 60º e no nº 1 do artigo 64º da Constituição da República Portuguesa (CRP), respectivamente sobre os direitos dos consumidores e sobre o direito à saúde9. Com interesse para o que ora nos ocupa, a alínea d) do nº 3 do artigo 64º da CRP faz recair sobre o Estado, entre outras incumbências prioritárias, a de disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico.

Esta incumbência e o mesmo princípio são retomados na Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90, de 24 de Agosto), cujo nº 2 da Base XXI dispõe que “A actividade farmacêutica tem legislação especial e fi ca submetida à disciplina e fi scalização conjuntas dos ministérios competentes, de forma a garantir a defesa e a protecção da saúde, a satisfação das necessidades da população e a racionalização do consumo de medicamentos e produtos medicamentosos”.

Por último, o princípio mostra-se igualmente afl orado em vários preceitos do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, destacando-se apenas o nº 1 do seu artigo 4º, segundo o qual “As disposições do presente decreto-lei devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com o princípio do primado da protecção da saúde pública”.

O princípio em causa, nos termos resultantes, desde logo, da Constituição, comporta, por conseguinte, entre outras dimensões relevantes para o regime jurídico dos medicamentos, a da disciplina e controlo do chamado circuito do medicamento ou, se quisermos, do ciclo de vida do medicamento.

9 Sobre o artigo 64º da CRP, cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, & VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada: Artigos 1º a 107º, vol. I, 4ª edição, revista, Coimbra, Coimbra Editora, 824 segs.

2.2. Aspectos do ciclo de vida do medicamento

O ciclo de vida do medicamento encerra quatro fases essenciais: a da investigação e desenvolvimento; a da autorização administrativa de comercialização; a do fabrico, distribuição e venda a retalho e a da utilização10.

A disciplina jurídica da actividade farmacêutica inicia-se na primeira daquelas fases, ou seja, na fase de investigação e desenvolvimento do novo fármaco. Com efeito, para que o fármaco possa ser investigado e desenvolvido e possa vir a obter uma AIM como medicamento, releva, em primeiro lugar, o regime da autorização, disciplina e controlo dos ensaios clínicos, norteado por preocupações éticas e de protecçãodo participante no ensaio e, de entre estas, a de obtenção do seu consentimento livre e esclarecido [cfr. Regulamento (UE) 536/2014 e Lei nº 21/2014, de 16 de Abril]11.

De modo a permitir o retorno do elevado investimento em tempo e dinheiro que, para as empresas ditas “de inovação”, representam a investigação e o desenvolvimento de novos fármacos, a legislação do medicamento prevê prazos de protecção de dados, no decurso dos quais o INFARMED-Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., doravante INFARMED, I.P., não pode, sem o consentimento do respectivo proprietário, utilizar os resultados desses ensaios para aprovar medicamentos concorrentes (cfr. artigo 19º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto)12.

10 Philip ASPDEN, Julie WOLCOTT, J. Lyle BOOTMAN & Linda R. CRONENWETT (eds.) (2007), Preventing..., cit., pp. 51 segs.

11 Sobre o consentimento, cfr. João Vaz RODRIGUES, (2001), O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português: Elementos para o Estudo da Manifestação da Vontade do Paciente, Centro de Direito Biomédico, 3, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 158 segs.

12 Não obstante, o mecanismo por excelência de apoio estatal à investigação e desenvolvimento de novos fármacos é, como se sabe, o das patentes e dos certifi cados complementares de protecção, que escapam ao âmbito deste trabalho.

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Numa segunda fase, naturalmente que o medicamento só pode ser comercializado no mercado nacional se dispuser de uma AIM. Esta licença administrativa, que permite a comercialização canónica do medicamento, garante que o medicamento autorizado cumpre as exigências de qualidade, segurança e efi cácia estabelecidas na legislação em vigor e à luz dos mais recentes conhecimentos científi cos. Este tipo de autorização pode ser obtida por uma de quatro vias procedimentais: o procedimento nacional, cuja competência instrutória e decisória pertence ao INFARMED, I.P. (cfr. artigos 14º e seguintes);os procedimentos de reconhecimento mútuo e descentralizado em que, no fundo, a AIM é concedida por um Estado membro da União Europeia – Estado membro de referência – e é reconhecida noutros Estados membros – Estados membros envolvidos – diferindo estes procedimentos apenas no facto de o pedido de AIM para os Estados membros envolvidos ser, respectivamente, subsequente ou simultânea com o pedido formulado junto do Estado membro de referência (cfr. artigos 40º a 45º e 47º a 52º)13; o procedimento centralizado, cuja instrução compete à Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e cuja decisão cabe à Comissão Europeia [cfr. artigos 3º e seguintes do Regulamento (CE) nº 726/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, já por diversas vezes alterado]14.

Um medicamento sem AIM, ou com AIM mas ainda não efectivamente comercializado, pode, em certos casos, ser utilizado pelos hospitais ao abrigo de uma autorização de utilização excepcional,

13 O princípio do reconhecimento mútuo foi desenvolvido a partir do Acórdão “Cassis de Dijon” e surgiu, como tal, preconizado pela Comissão da União Europeia no Livro Branco de 1985 [cfr. Miguel Poiares MADURO, (2006), A Constituição Plural: Constitucionalismo e União Europeia, Cascais, Principia, p. 132].

14 Sobre os diversos tipos de procedimentos de obtenção da AIM, cfr. Marjorie GOBERT, Les autorisations..., cit., pp. 242 segs.

que, em regra, é uma autorização intuitu hospitalis e, em alguns casos, também intuitu personae15.

A par da AIM, pode ainda o medicamento ser comercializado ao abrigo de uma autorização de importação paralela (AIP), a qual pressupõe que o medicamento (objecto de importação paralela) é o mesmo – ou um medicamento similar, cuja diferença não revista incidência terapêutica – que o medicamento (“considerado”) possuidor de AIM em Portugal e noutro Estado membro da União Europeia16. O medicamento objecto de AIP é importado deste Estado para ser comercializado no nosso país, desde que sejam respeitados os direitos do titular da marca e desde que apresente preço 5% inferior a todos os medicamentos idênticos ou similares com AIM em Portugal (cfr. artigos 80º e seguintes do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e nº 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 112/2011, de 29 de Novembro, na sua redacção actual).

Os medicamentos sujeitos a receita médica e os medicamentos comparticipados pelo Estado carecem de prévia autorização do seu preço de venda ao público (PVP) – preço máximo – por parte do INFARMED, I.P. (cfr. artigos 3º e 4º do Decreto-Lei nº 112/2011)17. Os medicamentos não sujeitos a receita médica não comparticipados encontram-se em regime de preço livre (cfr. nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 134/2005, de 16 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 238/2009, de 19 de Junho). Os medicamentos sujeitos a receita médica restrita, quando destinados à utilização meramente hospitalar e à aquisição pelos hospitais do Serviço Nacional de

15 Cfr. artigos 92º e 93º do Decreto-Lei nº 176/2006 e Deliberação nº 105/CA/2007, do INFARMED, I.P..

16 Nathalie de GROVE-VALDEYRON (2009), “Vers ...”, cit., pp. 346 segs.17 Sobre a classifi cação dos medicamentos quanto à dispensa ao público – não

sujeitos a receita médica, bem como sujeitos a receita médica stricto sensu, restrita, renovável ou especial, cfr. artigos 113º segs, do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto.

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Saúde, fi cam sujeitos a uma avaliação prévia favorável por parte do INFARMED, I.P18.

Ainda sob o ponto de vista do fi nanciamento pelo Estado, os medicamentos podem também ser objecto de autorização de comparticipação, quando destinados a venda nas farmácias e se lhes reconheça valor terapêutico acrescentado ou vantagem económica, ou ambas, relativamente ao arsenal terapêutico disponível. A autorização é da competência do membro do Governo responsável pela área da saúde, sem prejuízo da faculdade de delegação no INFARMED, I.P., da decisão quanto à comparticipação de medicamentos genéricos (cfr. artigos 2º e 4º do Regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 48-A/2010, de 13 de Maio, já por diversas vezes alterado). A comparticipação do Estado corresponde a uma determinada percentagem que incide sobre o PVP, cabendo ao utente suportar o remanescente19. Quando existam no mercado, pelo menos, um medicamento genérico de determinada substância activa e ummedicamento de referência, é criado um grupo homogéneo e aplica-se o sistema de preços de referência; neste caso, a percentagem de comparticipação do Estado, tanto para a aquisição do medicamentogenérico como para a aquisição do medicamento de referência, passa a incidir sobre o preço de referência e não sobre o PVP (cfr. artigos 24º e seguintes do mesmo Regime geral).

Na terceira fase já referida, cabe salientar que as matérias-primas a utilizar no fabrico de medicamentos estão sujeitas a regulamentação,de modo a garantir a sua conformidade com as especifi cações do

18 Não obstante, na pendência da avaliação prévia, os hospitais do Serviço Nacional de Saúde podem, mediante autorização casuística do INFARMED, I.P., adquirir estes medicamentos para ocorrer a casos excepcionais de comprovada necessidade por parte do doente.

19 Existem, no entanto, casos em que a “comparticipação” do Estado é de 100% (cfr. nº 5 do artigo 20º do Regime geral das comparticipações do Estado no preços dos medicamentos e Despacho nº 19650-A/2005, de 1 de Setembro).

medicamento autorizado20. Nesta medida, o Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, estabelece um conjunto de regras tendo em vista: a comprovação da sua qualidade [que recaem sobre o titular da AIM, no caso do nº 1 do artigo 17º e da alínea c) do nº 1 do artigo 29º, e que recaem sobre o director técnico do fabricante e sobre o fabricante, no caso da alínea f) do nº 1 do artigo 61º e do nº 4 do artigo 62º]; a garantia de boas condições de armazenamento e acondicionamento[obrigações que igualmente recaem sobre o director técnico do fabricante, de acordo com a alínea g) do nº 1 do artigo 61º]; a conservação das amostras utilizadas no processo de fabrico (nºs 3 a 7 do artigo 63º); a sujeição a inspecções por parte do INFARMED, I.P., a pedido de outro Estado membro, da Comissão Europeia, da Agência Europeia do Medicamento ou do fabricante do medicamento (nº 3 do artigo 176º); o registo na base de dados da União Europeia das situações de incumprimento das normas, princípios e directrizes sobre boas práticas de fabrico ou distribuição; e a publicitação pelo INFARMED, I.P., da identifi cação dos fabricantes de matérias-primas por si autorizados (nº 3 do artigo 198º).

O fabrico de medicamentos – tal como a sua importação e exportação – está sujeito a um conjunto de exigências legais, deque se destacam a necessidade de autorização a conceder pelo INFARMED, I.P., no caso de fabricantes em Portugal, sendo que esta autorização é concedida para certo(s) local(is) e para determinado(s) medicamento(s) ou forma(s) farmacêutica(s) (artigos 55º a 58º)21;

20 A defi nição de matéria-prima consta da alínea cc) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto. Cfr. EUDRALEX –Volume 4 – GMP – Part II: Basic requirements for active substances used as starting materials e EDQM – Certifi cates of Suitability (CEP).

21 O que, de resto, se compreende, porque, se a autorização é concedida, após vistoria, para um local onde estão instaladas máquinas de fabrico de comprimidos, não poderá considerar-se o mesmo local autorizado a fabricar injectáveis. Do mesmo modo, o facto de certa entidade dispor de autorização de fabrico de comprimidos no local A não implica que, com a mesma autorização, possa fabricar comprimidos no local B, que não fi gura nessa licença.

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a sujeição a um conjunto de obrigações, entre as quais a de possuir um director técnico e de fazer cumprir as Boas Práticas de Fabrico (artigos 59º a 61º); o controlo da origem das matérias-primas já referido (nº 4 do artigo 62º); e a inclusão de dispositivos de segurança destinados a prevenir falsifi cações [alínea u) do nº 1 do artigo 105º].

A distribuição por grosso de medicamentos, quando não seja feita pelo próprio fabricante, está sujeita a autorização por parte do INFARMED, I.P., e depende, nomeadamente, da existência de instalações adequadas, bem como de direcção técnica (artigos 94º, 95º, 97º e 98º). O titular da autorização fi ca sujeito a um conjunto de obrigações, de entre as quais avultam a do cumprimento das Boas Práticas de Distribuição; a de abastecimento regular e contínuo do mercado; a de assegurar-se de que os medicamentos adquiridos não são falsifi cados e a de dispor de um plano de emergência que permita a imediata e efectiva retirada do medicamento do mercado [cfr. alíneas a), c) e h) do nº 1 e nº 6 do artigo 100º].

Também a intermediação de medicamentos está sujeita a registo prévio no INFARMED, I.P., e implica o cumprimento de várias das obrigações idênticas àquelas a que está sujeito o distribuidor por grosso, designadamente as referidas no parágrafo anterior, à excepção da obrigação de abastecimento regular e contínuo.

A venda a retalho, ou a dispensa, de medicamentos é feita: nas farmácias de ofi cina cujo regime jurídico se encontra aprovado pelo Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, já por diversas vezes alterado; nos locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, regulados pelo Decreto-Lei nº 134/2005, de 16 de Agosto, alterado; nos serviços de dispensa de medicamentos ao público dos hospitais do SNS, cujo regime jurídico consta do Decreto-Lei nº 241/2009, de 16 de Setembro; e, de um modo geral, nos serviços farmacêuticos hospitalares e de outras entidades autorizadas pelo INFARMED, I.P., à aquisição directa de medicamentos [alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 79º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

A última fase é a da utilização do medicamento, em que releva a actuação dos profi ssionais de saúde e dos doentes. Aliás, a informação do medicamento, como é o caso do resumo das características do medicamento, do folheto informativo e da rotulagem, tem como destinatários estes dois grupos de sujeitos (cfr. artigos 18º, 104º, 105º, 106º e 107º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto). Mas não só: desde a revisão do sistema europeu de avaliação de medicamentos, concluída com a publicação da legislação comunitária de 2004, tem vindo a ser dada cada vez maior ênfase à prescrição e utilização o mais informadas possível do medicamento, como formasde garantir o seu uso racional. Por isso, tornou-se obrigatória a divulgação precoce pelo INFARMED, I.P., de outros documentos einformações como acontece, por exemplo, com os relatórios de avaliação(cfr. artigo 30º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto). Esta divulgação tem por objectivo fazer chegar aos profi ssionais de saúde e aos doentes a melhor – de qualidade, cientifi camente comprovável e isenta – informação disponível sobre cada medicamento. Nesta fase, a AIM do medicamento pode ser suspensa ou revogada – e o medicamento retirado do mercado22 – caso se verifi que, para o que ora nos interessa e nomeadamente, que o medicamento é nocivo, que a relação benefício-risco é desfavorável ou caso não sejam requeridas alterações consideradas necessárias por razões de segurança [cfr. alíneas a), b), c) e f) do nº 1 e nºs 4 a 7 do artigo 179º]23. Além disso, se a informação sobre farmacovigilância não for satisfatória no momento da renovação quinquenal mas, ainda assim, a relação benefício-risco se mantiver favorável, a AIM, em lugar de ser renovada ilimitadamente, pode ser sujeita a novo prazo de cinco anos de vigência (nº 2 do artigo 27º e nº 1 do artigo 28º).

22 Paulo PINHEIRO, & M. GORJÃO-HENRIQUES (2006), Direito..., cit., pp. 266-269.

23 As alterações dos termos das AIM obedecem ao disposto no Regulamento (CE) nº 1234/2008, alterado pelo Regulamento (UE) nº 712/2012.

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Sob a perspectiva dos principais intervenientes, o ciclo de vida do medicamento inclui, na primeira das referidas fases, concretamente nos ensaios clínicos, o promotor, o(s) investigador(es), o(s) centro(s) de ensaio e os participantes; na segunda fase, o titular da AIM, da AIP ou da AUE; na terceira fase e ainda previamente ao fabrico domedicamento, os fabricantes e distribuidores de matérias-primas; depois, os fabricantes; os intermediários; os distribuidores por grosso; as farmácias, os locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica; os serviços de dispensa ao público de medicamentos nos hospitais do SNS; os serviços farmacêuticos hospitalares e outras entidades autorizadas à aquisição directa de medicamentos e, na fase da utilização, os profi ssionais de saúde e os doentes, todos já referidos anteriormente.

Por último, sob a perspectiva dos procedimentos autorizativos, o ciclo de vida do medicamento inclui a autorização para a condução de ensaios clínicos, o registo de distribuição de matérias-primas, a autorização de introdução no mercado – ou a autorização de utilização excepcional ou a autorização de importação paralela –; a autorização de preço de venda ao público, a autorização decomparticipação – ou de avaliação prévia para aquisição peloshospitais do Serviço Nacional de Saúde24 –; a autorização de fabrico de medicamentos, o registo prévio como intermediário, a autorização de distribuição por grosso, o alvará de farmácia, a autorização de aquisição directa de medicamentos e o registo prévio de local de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica, todos já referidos anteriormente.

24 Em certos casos, na pendência do procedimento de avaliação prévia, é possível a concessão, pelo INFARMED, I.P., de uma autorização excepcional, para doente específi co (cfr. parte fi nal do nº 1 do artigo 92º do Decreto-Lei nº 176/2006, do 30 de Agosto).

3. A segurança do medicamento como um dos três pilares essenciais em que assenta o licenciamento da sua comercialização

É comum dizer-se que o procedimento administrativo tendente à obtenção de uma AIM tem por objecto avaliar a sua qualidade, segurança e efi cácia. Esta é uma afi rmação que consta da lei (nº 2 do artigo 14º e nº 1 do artigo 23º-A do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto), mas que consideramos redutora, pois que o mesmo procedimento tem outros objectivos, como sejam, para indicarmos apenas um exemplo, a determinação dos impactos do medicamento no ambiente [cfr. alínea q) do nº 2 do artigo 15º e nº 3 do artigo 178º do mesmo diploma].

Não obstante, é verdade que a avaliação da qualidade, segurança e efi cácia do medicamento são os três pilares essenciais do procedimento, dada a importância que os legisladores da União Europeia e nacional lhes atribuem.

Como referimos na introdução, o medicamento é um produto que comporta riscos e que, por isso e à luz do já referido princípio da protecção da saúde, deve ser permanentemente avaliado sob o prisma de saber se os benefícios que o mesmo representa superam os riscos que são conhecidos e esperados, bem como daqueles que vão sendo conhecidos à medida que o medicamento vai sendo utilizado25.

Nesse quadro, a avaliação e garantia da segurança do medicamento é um dos requisitos essenciais de que depende a concessão e a vigência daautorização da introdução no mercado de um medicamento. De seguida, veremos que essa avaliação e garantia é feita durante todo o ciclo de vidado medicamento, desde a investigação e desenvolvimento do fármaco, indicando-se alguns dos respectivos momentos fundamentais.

25 Frederico TEIXEIRA (2003), Aspectos Históricos da Farmacovigilância, in Farmacovigilância em Portugal, Vasco A. MARIA (coord.), Lisboa, INFARMED, pp. 19 segs; Vasco A. MARIA, & Regina CARMONA (2003), Organização do Sistema Nacional de Farmacovigilância, in Farmacovigilância em Portugal, Vasco A. Maria (coord.), Lisboa, INFARMED, p. 64.

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3.1. Momentos fundamentais da garantia da segurança do medicamento

Ao longo do ciclo de vida do medicamento, existem diversos momentos tendentes à avaliação e garantia da segurança, de modo a permitir uma adequada gestão dos riscos associados ao medicamento26.

Esta permanente avaliação e seguimento tornaram-se necessários, não só pelo facto de a experiência o ter exigido, como também pelofacto de os mais avançados sistemas de gestão do risco o aconselharem. Quanto à experiência – ou antes más experiências – pode referir-se, porum lado, o caso das 107 mortes, ocorrido em 1937, por insufi ciência renal causadas pelo uso de dietilenoglicol como solvente no elixir de sulfanilamida, que esteve na génese da exigência dos ensaios clínicos de fase I, pois o legislador dos Estados Unidos da América passou, logo em 1938, a exigir que o produtor do medicamento provasse a segurança da nova substância, antes de ser autorizado a comercializá-la; por outro, o facto de, no início da década de 50 do mesmo século, na sequência de se ter constatado que o cloranfenicol podia causar anemia, se ter adquirido a noção da existência de reacções adversas medicamentosas, pelo que o legislador americano passou, em 1951, a distinguir os medicamentos sujeitos e os não sujeitos a receita médica; no ano seguinte foi criado o primeiro registo ofi cialde efeitos adversos de medicamentos e publicado o primeiro tratado sobre a mesma matéria; por último, no início da década de 60, o caso da talidomida demonstrou da pior forma a necessidade de acompanhamento sistemático da utilização dos medicamentos

26 Embora o considerando (2) do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012 refi ra que “as actividades de farmacovigilância abrangem a gestão de todo do ciclo de vida dos medicamentos de uso humano no que diz respeito à segurança”, parece-nos que, pelo contrário, o que se pretende dizer é que as preocupações de segurança estão presentes ao longo do ciclo de vida do medicamento, o que é uma situação bastante diversa.

autorizados, tendo estado na génese dos modernos sistemas de avaliação e autorização de medicamentos, designadamente o da actual União Europeia, que remonta à Directiva 65/65/CE27.

Ainda assim nota-se que a legislação europeia em matéria de farmacovigilância tem vindo a ser criada de uma forma reactiva, sendo de algum modo impulsionada pela ocorrência de casos que demonstram, pelo menos na óptica do legislador, a ausência ou a insufi ciência de regulamentação. Assim, na sequência do caso da talidomida, surgiu, como se disse, a Directiva nº 65/65/CE; na sequência do caso Vioxx, surgiu a Directiva nº 2010/84/UE28; e, por fi m, após o recente caso Mediator em França, que igualmente provocou uma profunda remodelação da agência do medicamento francesa e a responsabilização de alguns dos seus dirigentes, surgiu a Directiva nº 2012/26/UE29.

Actualmente é pacífi co o entendimento de que, em geral, a gestão de riscos será tanto mais efi caz quanto esses riscos forem bem conhecidos por quem produz e por quem utiliza. De facto, se os riscos forem conhecidos na fase de produção, é sempre possível procurar introduzir melhorias que os possam minimizar; aqueles que não possam ser minimizados na fase de produção, poderão, porventura, sê-lo na utilização, desde que o utilizador esteja para eles alertado

27 Frederico TEIXEIRA (2003), Aspectos..., cit., 24-25. De salientar, apesar de tudo que o “discurso” da segurança e, nomeadamente, a exigência de receita médica também serviu às companhias farmacêuticas para, por um lado, promoverem os seus produtos em detrimento da concorrência (os que tinham provas de segurança – os originais – e os que não as tinham – genéricos e cópias) e para impedirem a substituição de medicamentos pelo farmacêutico.

28 Joana SAGRADAS (2012), A farmacovigilância e a nova legislação da União Europeia, in Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, p. 93.

29 Sobre a proposta de Directiva nº 2010/84/CE, cfr. Nathalie de GROVE- -VALDEYRON (2009), Vers..., cit., pp. 371 segs; e Joana SAGRADAS (2012), A farmacovigilância..., cit., pp. 89 segs.

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e lhe seja indicado o procedimento de utilização mais seguro. Para tanto, é necessário um aturado trabalho de recolha e tratamento de informação relativa, quer a incidentes quer a acidentes, com o produto, de modo a permitir uma cada vez mais precoce detecção de sinais que permitam uma actuação que previna os acidentes ou minimize as suas consequências30. Esta informação de segurança do medicamento consiste, em geral, nas designadas reacções adversas, também conhecidas como efeitos indesejáveis, efeitos adversos, efeitos secundários31. A defi nição legal de reacção adversa é “uma reacção nociva e não intencional a um medicamento” e consta da alínea eee) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto. As alíneas seguintes do mesmo número dão ainda as noções de reacção adversa grave e de reacção adversa inesperada.

A noção de reacção adversa, resultante da transposição das Directivas nºs 2010/84/UE e 2012/26/UE, é actualmente mais abrangente do que a anteriormente vigente. Este alargamento visa abarcar todas as reacções adversas com o medicamento, independentemente de o mesmo ter, ou não, sido utilizado nos termos previstos na AIM, designadamente as reacções resultantes da denominada utilização off label, bem como os resultantes de utilização inadequada ou de exposição ocupacional32.

No caso dos medicamentos, o procedimento obedece ao esquema anteriormente referido de gestão do risco. Com efeito, na fase de investigação e desenvolvimento, procura recolher-se um conjunto de resultados de ensaios que demonstre que o produto é seguro; esses

30 James R. PHIMISTER, Vicki M. BIER & Howard C. KUNREUTHER (eds.) (2004), Accident Precursor Analysis and Management: Reducing Technological Risk Through Diligence, National Acadmy of Engineering, Washigton D.C., National Academies Press, pp. 37 segs.

31 Sobre as várias designações de reacção adversa, cfr., Frederico TEIXEIRA (2003), Aspectos..., cit., p. 25.

32 Joana SAGRADAS (2012), A farmacovigilância..., cit., p. 93.

dados são avaliados na fase de obtenção da licença administrativa de comercialização e, se demonstrarem uma relação benefício-risco favorável, a licença é concedida, sendo incluídos os resultados dos ensaios na informação do medicamento; na fase da utilização, são recolhidos, tratados e avaliados os dados de utilização e, se for o caso,são adoptadas medidas destinadas a prevenir ou minimizar os novos riscos e a manter a relação benefício-risco favorável, designadamente através de alterações à informação sobre o medicamento, de restrições às indicações terapêuticas autorizadas ou outras alterações dos termos da AIM e, no limite, através da suspensão ou revogação da autorização e retirada medicamento do mercado.

Não obstante, a recente legislação da União Europeia nesta matéria tem vindo a ser moldada no sentido de, a par da reactiva recolha, registo e tratamento de informação de segurança, passar também a actuar-se proactivamente no sentido da prevenção e minimização dos riscos, através da exigência ao titular da AIM de elaboração de planos de gestão dos riscos, onde o mesmo deve à partida identifi car exaustivamente os possíveis riscos e propor as medidas para a sua prevenção ou minimização33.

Veremos esses momentos de seguida.

3.1.1. Os ensaios pré-clínicos e clínicos

Os trabalhos tendo em vista a garantia da segurança do medicamentoiniciam-se logo na fase da sua investigação e desenvolvimento (I&D). Com efeito, nesta fase existe um primeiro período, que dura um a dois anos, designado de desenvolvimento não clínico, em que são realizados os ensaios pré-clínicos de farmacologia de segurança, genotoxicidade, farmacocinética, toxicidade, de dose repetida e

33 Grant CASTLE & Robin BLANEY (2009), EC Pharmacovigilance Regulation, in Cahiers de droit européen, Bruxelles, p. 306.

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reprodutiva, e carcinogenicidade. Estes ensaios consistem em estudos laboratoriais e em modelos animais e visam determinar a segurança e a actividade biológica do fármaco.

O segundo período da I&D é o do desenvolvimento clínico, durante o qual se realizam três fases de ensaios clínicos34. Estes ensaios são defi nidos pelo legislador como “qualquer investigação conduzida no ser humano, destinada a descobrir ou a verifi car os efeitos clínicos, farmacológicos ou outros efeitos farmacodinâmicos de um ou mais medicamentos experimentais, ou a identifi car os efeitos indesejáveis deum ou mais medicamentos experimentais, ou a analisar a absorção, adistribuição, o metabolismo e a eliminação de um ou mais medicamentos experimentais, a fi m de apurar a respetiva segurança ou efi cácia” [alínea l) do artigo 2º da Lei nº 21/2014, de 16 de Abril].

Na fase I, que dura até um ano, os ensaios clínicos visam determinar a segurança em seres humanos segundo certa dosagem e são realizados em 20 a 100 participantes saudáveis; na fase II, que dura um a dois anos, os ensaios visam determinar a efi cácia e o perfi l de segurança do fármaco e são realizados em algumas centenas de participantes doentes; na fase III, que dura dois a quatro anos, os ensaios visam determinar a efi cácia e segurança do fármaco a longo prazo e são realizados em centenas a milhares de participantes doentes.

Os ensaios clínicos dependem da prévia obtenção de parecer favorável da Comissão de Ética para a Investigação Clínica, ou de uma Comissão de Ética para a Saúde por aquela designada, e de autorização do INFARMED, I.P. (cfr. nº 2 do artigo 16º e artigo 26º da Lei nº 21/2014, de 16 de Abril).

No que se refere ao regime a que se encontram sujeitos os ensaios clínicos, cabe referir que, além da mencionada Lei nº 21/2014, de 16 de Abril, e do citado Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto,

34 Sobre os ensaios clínicos e os problemas éticos a eles associados, cfr. Jeovanna Viana ALVES (2003), Ensaios Clínicos, Centro de Direito Biomédico, 8, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 49 segs.

sob o ponto de vista ético, é aplicável, a Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial, aprovada em 1964 e já por diversas vezes revista35; sob o ponto de vista regulamentar, são aplicáveis as directrizes da International Conference on Harmonization ofTechnical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use (ICH) e as da EMA36; são ainda aplicáveis as designadas Boas Práticas Clínicas, aprovadas pelo Decreto-Lei nº 102/2007, de 2 de Abril.

Tanto a legislação como a regulamentação, bem como as directrizes,referidas norteiam-se pelos princípios (i) do primado da pessoahumana; (ii) da protecção dos participantes, designadamente através da obtenção do seu consentimento livre e esclarecido, ou dos seus representantes, e da garantia da sua privacidade; e (iii) da avaliação dos riscos e dos benefícios da participação no ensaio (cfr. artigos 3º, 5º e 6º a 8º da Lei nº 21/2014, de 16 de Abril, e nºs 4, 7 a 9, 14 a 17 e 24 a 32 da Declaração de Helsínquia).

Os resultados destes ensaios são elementos de prova quanto à segurança e efi cácia do medicamento, para efeitos da obtenção de uma AIM.

Não obstante, embora os resultados dos ensaios clínicos sejam determinantes para a obtenção de AIM, não são defi nitivos. Desde logo, porque os ensaios e os seus resultados sofrem geralmente limitações metodológicas, decorrentes do seu desenho, do protocolo,das condições de inclusão e exclusão de doentes, dos próprios número e categorias de participantes, da exclusão de terapêutica

35 Disponível em http://www.wma.net/en/30publications/10policies/b3/. Para maiores desenvolvimentos sobre o quadro ético supranacional dos ensaios clínicos e a sua evolução histórica desde os crimes cometidos durante a Segunda Guerra mundial sob pretexto de experimentação científi ca e seres humanos, cfr. Jeovanna Viana ALVES (2003), Ensaios..., cit., pp. 135 segs.

36 Disponíveis, respectivamente, em http://www.ich.org/products/guidelines.html e em http://www.ema.europa.eu/ema/index.jsp?curl=pages/special_topics/general/general_content_000489.isp&mid=WC0b01ac058060676f.

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concomitante, etc., razão pela qual é, como veremos adiante, também necessária actividade de garantia da segurança após o início de comercialização37. Esta actividade é, em regra, a farmacovigilância, mas também passa pela imposição de condições à AIM no momento da sua concessão ou de injunções em momento posterior.

3.1.2. O procedimento de autorização de introdução no mercado

Outro momento relevante, sob a perspectiva da garantia da segurança do medicamento, é o do procedimento administrativo tendente à concessão de uma AIM. Com efeito, aquando da apresentação do respectivo pedido, o requerente, além dos já referidos resultados dos ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos, deve instruí-lo com um conjunto de elementos probatórios desse pilar em que assenta aquela concessão38.

Assim, o requerente deve: descrever as contra-indicações e as reacções adversas do medicamento; incluir um resumo do sistema de farmacovigilância; incluir um plano de gestão de risco, proporcional aos riscos identifi cados e potenciais, bem como à necessidade de dados de segurança pós-autorização, e incluir o resumo daquele plano39; juntar cópias das decisões, e dos seus fundamentos, de recusa de AIM para o mesmo medicamento noutros países, bem como o resumo dos dados de segurança do medicamento – incluindo

37 Cfr. Vasco. A. MARIA & Regina CARMONA (2003), Organização..., cit., p. 64; Diana Montenegro SILVEIRA (2010), Responsabilidade..., cit., pp. 46 segs.

38 As exigências legais em matéria de segurança do medicamento foram signifi cativamente reforçadas com a transposição para o direito das duas recentes directivas da União Europeia sobre farmacovigilância – Directivas nºs 2010/84/UE e 2012/26/UE – através dos Decretos-Leis nºs 20/2013, de 14 de Fevereiro, e 128/2013, de 5 de Setembro.

39 Sobre o conteúdo, resumo, actualizações e formato do plano de gestão do risco, cfr. artigos 30º a 33º do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012.

os constantes dos relatórios periódicos de segurança (RPS) e as notifi cações de suspeitas de reacções adversas [cfr. alíneas b), j), k), l), n) e o) do nº 2, bem como o nº 8, do artigo 15º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto]. Adicionalmente, deve ser incluídatoda a informação relevante para a avaliação do medicamento, mesmo que desfavorável ao requerente, bem como de todos os elementos referentes a qualquer ensaio farmacêutico, pré-clínico ou clínico, mesmo que incompleto ou interrompido (cfr. nº 3 do mesmo artigo). Além disso, são igualmente apresentados projectos de resumo das características do medicamento, de acondicionamentos primário e secundário e de folheto informativo [alínea e) do nº 2 do artigo 15º citado]. A informação que consta destes elementos é extremamente relevante em termos de segurança, na medida em que se destina aos profi ssionais de saúde e aos utentes.

No fundo, pretende conhecer-se todos os elementos que possam indiciar qualquer problema de segurança com o medicamento, principalmente quando se exige a apresentação das decisões de recusa de AIM noutros países, bem como de outros dados desfavoráveis ao requerente.

Os referidos aspectos são objecto de apreciação no âmbito do procedimento, designadamente pelos peritos da Comissão de Avaliação de Medicamentos, órgão consultivo do INFARMED, I.P., para esta área [cfr. alínea a) do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 46/2014, de 24 de Fevereiro, e o regulamento da Comissão, aprovado pela Deliberação nº 1126/2010, de 16 de março, publicada no Diário da República, 2ª Série, nº 121, de 24 de Junho de 2010].

Dessa apreciação pode, em última análise, resultar o indeferimentodo pedido por razões relacionadas com a segurança: nocividade em condições normais de utilização; relação benefício-risco desfavorável nas condições de utilização propostas ou susceptibilidade de apresentar risco para a saúde pública por qualquer outra razão relevante [alíneas c), f) e g) do nº 1 do artigo 25º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto]. Não obstante, o pedido pode ser modifi cado, de modo a ser conformado com as exigências legais e a permitir o deferimento,

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nomeadamente, suprimindo uma ou mais indicações terapêuticas; incluindo informação adicional sobre reacções adversas no folheto informativo e no resumo das características do medicamento. Pode, ainda por razões de segurança, sujeitar-se o medicamento a monitorização adicional durante algum tempo ou condicionar-se aconcessão da AIM a obrigações adicionais, como seja, nomeadamente,a realização de estudos de segurança pós-autorização (PASS), como veremos adiante (cfr. nº 6 do artigo 16º e artigos 18º, 24º e 26º-A do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto).

No fundo, a avaliação da segurança do medicamento em sede do procedimento de AIM tem em consideração todo o conhecimento técnico-científi co – designadamente, de reacções adversas medica-mentosas – existente à data da respectiva decisão por parte da autoridade competente – nomeadamente e segundo o tipo de procedimento, o INFARMED, I.P., uma autoridade nacional competente de outro Estado membro ou a EMA e a Comissão Europeia.

Porém, a garantia da segurança do medicamento não se queda por aqui; ou seja, embora extremamente importante, não é sufi cientea avaliação efectuada em sede do procedimento conducente à concessão da AIM, nomeadamente, por motivo das supra referidas limitações metodológicas dos ensaios clínicos. Bem pelo contrário e como veremos de seguida, a concessão da AIM é apenas o ponto de partida para a principal actividade de avaliação e garantia da segurança do medicamento.

3.1.3. A utilização

Motivada, quer pelas limitações metodológicas referidas quer pelas exigências de célere acesso dos doentes ao medicamento, que implicam decisões de autorização tomadas em mais curto espaço de tempo e com menos prova produzida, quer ainda pelo comportamento do medicamento aquando da sua utilização – independentemente de esta ser, ou não, conforme com os termos da AIM, insiste-se – e

nomeadamente pela sua exposição a maiores e mais diversifi cados grupos de doentes, é cada vez mais importante a garantia da segurança do medicamento na fase da sua utilização. É este o terceiro momento que consideramos relevante para essa garantia.

Na fase da utilização, desenvolve-se, em geral, a actividade designada de farmacovigilância. A legislação em vigor não nos dá actualmente uma noção do que se entende por farmacovigilância, mas, anteriormente, o regulamento do Sistema Nacional de Farmacovigilânciaaprovado pela Portaria nº 605/99, de 5 de Agosto, já referia no nº 1do seu artigo 1º, que se tratava de um “conjunto articulado deregras e meios materiais e humanos tendentes à recolha sistemáticade informação de reacções adversas no homem pela utilizaçãode medicamentos de uso humano e à avaliação científi ca dessa informação”. Por seu turno, a Organização Mundial de Saúde defi ne-a como a “a ciência e as actividades de detecção, avaliação, interpretação e prevenção de reacções adversas, ou qualquer outro problema relacionado com medicamentos”40. Parece-nos mais ampla esta defi nição, pois parece incluir os já referidos problemas de qualidade ou de má utilização.

No essencial, do que se trata é de um processo de melhoria contínua da segurança do medicamento autorizado, através do estudo do seu comportamento face à sua utilização pelo profi ssional de saúde ou pelo utente. Nesse contexto, são designadamente recolhidos elementos quanto às reacções adversas imputáveis ao medicamento, sejam elas, graves ou não, conhecidas e esperadas – as que já se encontram descritas no resumo das características do medicamento – ou desconhecidas e inesperadas, e efectuada a sua avaliação científi ca, de modo a verifi car se existe nexo de causalidade entre a utilização

40 “Pharmacovigilance (PV) is defi ned as the science and activities relating to the detection, assessment, understanding and prevention of adverse effects or any other drug-related problem”.

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do medicamento em condições normais, tal como autorizadas em sede de AIM, e a reacção adversa verifi cada41.

Embora possa atribuir-se preocupações de segurança dosmedicamentos já ao vetusto Decreto nº 41448, de 18 de Dezembrode 1957, cujo artigo 5º já fazia depender a autorização administrativa a conceder pela Direcção-Geral da Saúde, da “entrega de notícia”, entre outros aspectos, da “toxicidade do medicamento”, a actividade de farmacovigilância propriamente dita em Portugal é consequência da adesão às Comunidades Europeias e tem o seu alicerce legislativoinicial no artigo 94º do Decreto-Lei nº 72/91, de 8 de Fevereiro, regulamentado inicialmente pelo Despacho Normativo nº 107/92, de 11 de Maio, que criou o Serviço Nacional de Farmacovigilância, posteriormente revogado e substituído pela Portaria nº 605/99, de 5 de Agosto, e, mais tarde, pelo Decreto-Lei nº 242/2002, de 5 de Novembro42.

Quer a nível da União Europeia quer a nível nacional, a actividade de farmacovigilância foi, como se referiu supra, incrementada com a revisão do quadro legislativo, promovida pelos Regulamentos (UE) nºs 1235/2010 e 1027/2012, que alteraram o Regulamento (CE) nº 726/2004 no que respeita à farmacovigilância, e pelas Directivas nºs 2010/84/UE e 2012/26/UE, que, sobre a mesma matéria,

41 Frederico TEIXEIRA (2003), Aspectos..., cit., pp. 19 segs; Vasco. A. MARIA & Regina Carmona (2003), Organização..., cit., p. 64; Diana Montenegro SILVEIRA (2010), Responsabilidade.., cit., 29 segs. Estes autores referiam-se ainda às “condições normais” autorizadas em sede de AIM; a legislação actual prevê toda e qualquer utilização do medicamento [Joana SAGRADAS (2012), A farmacovigilância..., cit., p. 93].

42 Frederico TEIXEIRA (2003), Aspectos..., cit., pp. 32 segs; Rui SantosIVO & Sara MACEDO (2003), Enquadramento Legal e Regulamentar, inFarmacovigilância em Portugal, Vasco A. MARIA (coord.), Lisboa, INFARMED, pp. 44 segs; Vasco. A. MARIA & Regina CARMONA (2003), Organização..., cit., pp. 65 segs; Ana M. CORRÊA-NUNES (1998), O sistema de farmacovigilância em Portugal (sua criação e desenvolvimento), in Cadernos de Saúde Pública, 14(4), 725-733, out-dez, Rio de Janeiro, 726.

alteraram a Directiva nº 2001/83/CE, as quais foram transpostas para o direito nacional através dos Decretos-Leis nºs 20/2013, de 14 de Fevereiro, e 128/2013, de 5 de Setembro.

Esta actividade, face à legislação em vigor, implica um conjunto de deveres para os titulares das AIM, bem como para os profi ssionais de saúde, e promove a participação dos doentes; implica igualmente um maior grau de intervenção das autoridades competentes.

De seguida, procuraremos detalhar um pouco mais esses deveres e a intervenção das autoridades públicas.

Além da actividade de farmacovigilância, poderão, em certos casos que assim o exijam, existir alguns deveres adicionais do titular da AIM em matéria de segurança, a que daremos a designação de outras responsabilidades de segurança pós-autorização. Estas responsabilidades poderão resultar de condições impostas aquando da concessão da AIM ou de injunções pós-autorização. Também lhes faremos referência de seguida.

3.2. As responsabilidades de farmacovigilância e de segurança pós-autorização

A comercialização efectiva do medicamento e a sua utilização na prática clínica pelos profi ssionais de saúde, bem como a sua administração nos doentes ou pelos doentes, são o teste derradeiro à segurança do medicamento. Com efeito, por muito exaustivos e rigorosos que sejam os ensaios e os estudos realizados antes daobtenção da AIM, há sempre uma maior ou menor margem de incerteza, decorrente quer das limitações dos ensaios, já referidas, quer de riscos imprevisíveis, e que, de um modo geral, resultam do facto de a realidade ser mais rica e multifacetada do que a imaginação e a previsão humanas.

Assim e numa perspectiva de melhoria contínua da segurança do medicamento, a farmacovigilância procura recolher dados da utilização do medicamento que permitam paulatinamente reduzir

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o mais possível aquela margem de incerteza ao longo do ciclo de vida do medicamento. Neste contexto, é normal a actualização da informação sobre o medicamento – resumo das características do medicamento e folheto informativo – designadamente quanto a novas reacções adversas entretanto documentadas ou a interacções medicamentosas. Deste modo, vai-se tornando certo, conhecido e previsível, por parte dos profi ssionais de saúde e dos doentes aquilo que, à data da concessão da AIM, era incerto, desconhecido e imprevisível, permitindo que a decisão clínica seja o mais informada possível quanto aos riscos associados ao medicamento.

É também corrente a restrição de uma ou mais indicações terapêuticasem que o medicamento revelou menor segurança, evitando-se assim a utilização do medicamento em indicação em que o mesmo não é sufi cientemente seguro.

Para que tal possa acontecer, existe um conjunto de responsabilidadesde farmacovigilância que recaem, em primeira linha, sobre os titulares de AIM, mas também, em menor escala mas não menos importante, sobre os profi ssionais de saúde. Também os doentes são chamados a participar no sistema, designadamente através da notifi cação de reacções adversas.

Além disso, nalguns casos e ainda sob a perspectiva da garantiada segurança, acontece a necessidade de apresentação de dados complementares, bem como de adopção de medidas especiais, ou de realização de estudos adicionais no contexto da utilização do medicamento.

Assim, veremos de seguida os deveres que recaem sobre os titulares de AIM em matéria de segurança do medicamento, por um lado, e os deveres que recaem sobre os profi ssionais de saúde, por outro, bem como a participação que se espera dos doentes.

Existem, não obstante e como veremos adiante, obrigações de farmacovigilância aplicáveis após a concessão da AIM e independente-mente da comercialização efectiva do medicamento.

3.2.1. As responsabilidades dos titulares de AIM em matéria de segurança

Dada a responsabilidade legal que recai sobre o titular de AIM [cfr. nº 5 do artigo 14º e alíneas a) e o) do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto], é sobre ele que igualmente recai a parte mais importante dos deveres em matéria de segurança do medicamento43.

As referidas obrigações em matéria de segurança poderão ser subdivididas em (i) deveres de farmacovigilância, que devem ser cumpridos em qualquer caso, por um lado; e, por outro, (ii) condições da concessão da AIM; e (iii) injunções pós-autorização, que só podem ter lugar em determinados casos previstos na lei.

a) Deveres de farmacovigilância

No que se refere aos deveres de farmacovigilância que incumbem ao titular da AIM, eles resultam, desde logo e genericamente, do artigo 29º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto.

Estes deveres prendem-se essencialmente com as necessidades de actualização permanente do dossier do medicamento aprovado pelo INFARMED, I.P., bem como de dar-lhe a conhecer qualquer aspecto que possa indiciar uma alteração da informação de que a mesma autoridade dispõe, e com base na qual foi concedida a AIM, ou indiciar um risco acrescido.

Assim, o titular da AIM deve genericamente cumprir as obrigações de farmacovigilância e garantir que a pessoa qualifi cada em matéria de farmacovigilância as cumpre, conforme adiante aludiremos mais

43 O que aqui se deixa dito para o titular da AIM é igualmente válido para o titular de uma AIP, atento o disposto no nº 1 do artigo 85º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto.

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detalhadamente [alínea k) do nº 1 do artigo 29º]. Deve também comunicar ao INFARMED, I.P., dados actualizados quanto à segurança do medicamento, bem como as informações que possam modifi caras informações, elementos e documentos com base nos quais foi concedida a AIM e as informações actualizadas à luz dos conhecimentos científi cos mais recentes, incluindo as conclusões e recomendações que constam do portal europeu do medicamento [alíneas f), i) e m) do nº 1 e nºs 4 e 5 do artigo 29º]44.

Mediante pedido expresso do INFARMED, I.P., devem ainda ser transmitidos dados de farmacovigilância que permitam apreciar se a relação benefício-risco do medicamento permanece favorável, bem como apresentada, em sete dias, cópia do dossier principal do sistema de farmacovigilância [alíneas j) e n) do nº 1 do artigo 29º]45. Deve, ainda, ser notifi cada à mesma entidade pública qualquer decisão ou acção, e respectivos fundamentos, de suspensão da comercialização ou de retirada do medicamento do mercado, quando esteja em causa a protecção da saúde pública, na medida em que essa decisão ou acção pode indiciar a existência de um problema com o medicamento, detectado pelo titular da AIM [alínea e) do nº 1 do artigo 29º].

Não obstante estes deveres genéricos, as obrigações do titular da AIM em matéria de farmacovigilância encontram-se consagradas com maior detalhe – e em alguns casos de modo redundante – no capítulo X do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto. Podemos distingui-las entre obrigações genéricas, que podemos subdividir em estruturais e operativas, e obrigações específi cas, entre as quais avultam as de recolha sistemática de suspeitas de reacções adversas,

44 O portal europeu encontra-se previsto no artigo 26º do Regulamento (CE) nº 726/2004, na sua redacção actual.

45 Sobre a estrutura, conteúdo, manutenção, formato dos documentos e local de disponibilização do dossier principal de farmacovigilância, bem como sobre a responsabilidade do titular da AIM relativamente a subcontratados, cfr. artigos 1º a 7º do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012.

por um lado, e as de avaliação e tratamento dessas suspeitas, bem como de relato periódico e estruturado às autoridades dos dados de segurança do medicamento, por outro.

Assim, no que respeita às obrigações genéricas em matéria de farmacovigilância, avultam desde logo aquelas que poderemos designar como estruturais. Com efeito, o titular da AIM é obrigado adispor de um sistema de farmacovigilância, permanentemente auditado, bem como, de modo permanente e contínuo, de uma pessoa qualifi cada em matéria de farmacovigilância residente na União Europeia e de uma pessoa de contacto em Portugal para a mesma área de actividade [cfr. nºs 1 a 3, alínea a) do nº 4 e nºs 5 e 6 do artigo 170º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, bem como os artigos 8º a 13º do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012].

O sistema de farmacovigilância tem por objectivos: a recolha de informação sobre riscos do medicamento, designadamente de reacçõesadversas, a sua avaliação científi ca, a ponderação das medidas de segurança visando a prevenção ou minimização dos riscos, por um lado; a adopção das medidas regulamentares necessárias no que serefere à AIM, por outro; e, por último, o tratamento e processamento da informação e a respectiva comunicação às autoridades competentes e, se for o caso, a comunicação e divulgação junto dos profi ssionais de saúde, dos doentes e do público em geral [cfr. nº 1 do artigo 166º, por força do nº 1 do artigo 170º, do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e artigos 27º a 29º do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012].

O sistema de farmacovigilância deve ainda incentivar os profi ssionaisde saúde e os doentes a notifi car reacções adversas e disponibilizar-lhes meios de notifi cação electrónica. Neste âmbito, o sistema deve possibilitar a obtenção de dados precisos e verifi cáveis, de modo a permitir a sua avaliação científi ca, bem como garantir que as notifi cações de suspeitas de reacções adversas incluem o nome e o número de lote do medicamento [cfr. alíneas a) a c) e e) do nº 2 do artigo 167º, por força do nº 1 do artigo 170º, do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

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Em termos de obrigações mais operativas e no quadro da auditoria ao sistema de farmacovigilância, devem ser registadas no dossier principal do sistema de farmacovigilância as conclusões principais daquela; elaboradas e aplicadas as medidas correctivas assentes nessas conclusões, bem como eliminadas as menções registadas, depois de adoptadas as medidas (nº 1 do artigo 170º, do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto).

O titular da AIM deve, igualmente no quadro do sistema de farmacovigilância, assegurar a gestão do dossier principal de farmacovigilância e, a pedido, disponibilizá-lo ao INFARMED, I.P., bem como deve aplicar um sistema de gestão de risco para cada medicamento [alíneas b) e c) do nº 4 do artigo 170º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto]46. Além disso, o titular deve actualizar o sistema de gestão de risco e monitorizar os dados de farmacovigilância, de modo a apurar da existência de novos riscos ou de alteração dos já identifi cados, bem como para apurar da existência de alterações à relação benefício-risco [alínea e) do nº 4 do artigo 170º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto]47.

No que se refere às obrigações específi cas que, em matéria de farmacovigilância, recaem sobre o titular da AIM, as mesmas consistem, em suma, na recolha sistemática e disponibilização de informação sobre suspeitas de reacções adversas e na avaliação e tratamento dessa informação, bem como no relato periódico e estruturado às autoridades dos dados de segurança do medicamento, entre outros deveres de informação.

Quanto à recolha sistemática e disponibilização de informação sobre suspeitas de reacções adversas medicamentosas, trata-se de obter e registar todas as notifi cações, que podem resultar de iniciativa dos profi ssionais de saúde, dos doentes ou das respectivas associações

46 Cfr. Grant CASTLE & Robin BLANEY (2009), EC..., cit., pp. 322-325.47 Cfr. Grant CASTLE & Robin BLANEY (2009), EC..., cit., p. 319.

ou que podem resultar da realização de estudos de segurança pós-autorização, sobre os quais nos deteremos mais adiante. Essas notifi cações podem ter origem no nosso país, em qualquer outro Estado membro da União Europeia ou num país terceiro [alínea a) do nº 1 do artigo 171º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

Neste contexto e à excepção dos medicamentos que constam da literatura médica inventariada a que respeita o artigo 23º do Regulamento (CE) nº 726/2004, bem como dos dados de reacções adversas em sede de ensaios clínicos estão excluídos, por disporem de um mecanismo próprio, o titular da AIM fi ca ainda obrigado: adisponibilizar todas as notifi cações num único ponto da União Europeia; a transmitir por via electrónica à base de dados Eudravigilancetodas as suspeitas de reacções adversas graves no prazo de 15 dias, após o conhecimento, e as não graves no prazo de 90 dias; a recolher informação de seguimento e a actualizar a mesma base de dados europeia, bem como a colaborar com a EMA e com o INFARMED, I.P. [cfr. alíneas b) a d), f) e g) do nº 1 e nºs 2 e 3 do artigo 171º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e artigo 22º da Leinº 21/2014, de 16 de Abril].

Procura-se, com a referida base de dados, proteger a saúde pública através da monitorização da segurança dos medicamentos; criar condições para a deteção de sinais decorrentes de notifi cações espontâneas de suspeitas de reacções adversas; facultar aos profi ssionais de saúde e ao público em geral informações relacionadas com notifi cações espontâneas de suspeitas de reacções adversas e permitir a utilização dos dados para efeitos de investigação.

Assim, podem aceder à mesma base de dados todas as autoridades competentes a nível da União Europeia e do Espaço Económico Europeu, de modo a terem imediato acesso à informação de segurança do medicamento. Mas não só: a referida base de dados pode ser também acedida: por titulares de AIM e promotores de ensaios clínicos; pelo público em geral – designadamente, profi ssionais de saúde,

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doentes e consumidores – e pelas organizações de investigação, variando a política de acesso consoante os referidos grupos48.

Os titulares de AIM podem divulgar informação junto dos profi ssionais de saúde (as chamadas dear doctor letters) ou fazer anúncios públicos em matéria de segurança do medicamento, mas, neste caso, apenas podem fornecer informações objectivas e não enganosas e devem avisar o INFARMED, I.P., a EMA e a ComissãoEuropeia em momento anterior à, ou simultaneamente com a, divulgação (nº 1 do artigo 170º-B).

Quanto à avaliação e tratamento da informação recolhida sobre suspeitas de reacções adversas, bem como ao relato periódico e estruturado às autoridades dos dados de segurança do medicamento, regem o nº 2 do artigo 170º e os artigos 173º e 173º-A do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto.

Com efeito e como vimos supra, os titulares de AIM devem avaliar cientifi camente todas as informações relativas à segurança do medicamento e ponderar, bem como, se for o caso, adoptar, as medidas, regulamentares ou não, de minimização ou prevenção dos riscos.

Mas, além disso, os mesmos titulares têm um dever de relato, nos termos do qual devem fornecer às autoridades – em regra, a EMA; em alguns casos, o INFARMED, I.P.49 – relatórios periódicos de segurança (RPS)50. Em suma, estes relatórios proporcionam periodicamente às entidades destinatárias a avaliação da relação benefício-risco do medicamento, resumindo os dados sobre benefíciose riscos e os resultados dos ensaios e outros estudos entretanto

48 http://www.adrreports.eu/PT/acess_policy.html.49 Cfr. alínea b) do nº 3 do artigo 173º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de

Agosto.50 Sobre o conteúdo e formato dos relatórios periódicos de segurança, cfr. artigos

34º e 35º do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012. Cfr. Grant CASTLE & Robin BLANEY (2009), EC..., cit., pp. 320-322.

realizados com o medicamento, quer para utilizações autorizadas quer para utilizações não autorizadas, e incluindo dados sobre consumos e prescrições, de modo a compreender o grau de exposição ao medicamento, bem como a maior ou menor racionalidade da utilização que dele se vai fazendo [alíneas a) a c) do nº 1 e nº 2 do artigo 173ºdo citado diploma]. Estão, em regra, excluídos da obrigação de apresentação de RPS os titulares de AIM de medicamentos genéricos, de medicamentos aprovados com base no uso bem estabelecido de uma substância na União Europeia há mais de 10 anos, bem como de medicamentos homeopáticos de registo simplifi cado e de medicamentostradicionais à base de plantas, salvo se a apresentação de RPS constituir uma condição da concessão da AIM ou se o INFARMED, I.P., o solicitar (nº 3 do artigo 173º).

No que respeita à periodicidade da apresentação dos RPS, a regra é a da sua defi nição em sede da AIM e da contagem em função da data da concessão desta autorização (nº 1 do artigo 173º-A). No entanto, poderão ocorrer duas excepções: por um lado, no caso de medicamentos com uma única AIM e apenas em Portugal, o INFARMED, I.P., pode defi nir a periodicidade, que não pode ser inferior à apresentação semestral desde a autorização até dois anos após o início da comercialização efectiva do medicamento; anual, nos dois anos subsequentes e, decorridos estes, trienal (nº 2 do artigo 173º-A).

Por outro lado, no caso de medicamentos da mesma substância activa, ou combinação de substâncias activas, para os quais existam duas ou mais AIM, podem a periodicidade e as datas de apresentaçãoser objecto de alteração e harmonização, de modo a permitir a avaliação única dos respectivos RPS, permitindo-se, assim, a economia de recursos avaliativos ditada por razões de efi ciência, comummente designada de worksharing (nºs 3 e 4 do artigo 173º-A).

Ao abrigo da alínea a) do artigo 108º-A da Directiva nº 2001/83/CE, a EMA tem vindo, em colaboração com as autoridades competentes e com outras partes interessadas, a adoptar um conjunto de orientaçõessobre boas práticas de farmacovigilância para as autoridades competentes

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e para os titulares das AIM, que, de algum modo, permitem a aplicação prática do regime que vimos referindo51.

Além dos três conjuntos de deveres específi cos que enunciámos, surgiu ainda um outro dever de informação cuja necessidade foi identifi cada a partir do já referido caso Mediator. Com efeito e como se sabe, o titular da AIM pode, por sua exclusiva iniciativa, requerer a revogação da AIM. Até há pouco tempo, um tal pedido não carecia de ser fundamentado nem de ser acompanhado de informações adicionais, assumindo-se que, geralmente, se trataria de mera estratégia comercial da empresa.

Porém, o referido caso, veio demonstrar que a revogação da AIM também poderia ser requerida para ocultar questões de segurança com o medicamento e, simultaneamente, evitar a publicidade negativa daí decorrente para a empresa produtora. Só que essa ocultação dos verdadeiros motivos do pedido de revogação pode ser problemática, nomeadamente no caso de existirem no mercado medicamentos similares, relativamente aos quais ainda não foi identifi cada a mesma questão de segurança.

Por este motivo e nos termos do nº 3 do artigo 78º, qualquer decisão do titular da AIM no sentido da suspensão ou cessação da comercialização efectiva do medicamento, bem como a sua recolha do mercado, e seus fundamentos, deve ser comunicada ao INFARMED, I.P. Esta comunicação deve, em especial, mencionar se a decisão foi tomada por qualquer das razões que poderiam fundamentar a suspensão ou revogação da AIM por parte do INFARMED, I.P. Idêntica obrigação de comunicação ao INFARMED, I.P., ocorre quando o titular da AIM tenha decidido a suspensão ou cessação da comercialização efectiva do medicamento, bem como a sua recolha do mercado, em

51 As Boas Práticas de Farmacovigilância encontram-se disponíveis em: http://www.ema.europa.eu/ema/index.jsp?curl=pages/regulation/document_listing/document_listing_000345.jsp&mid=&jsenabled=true#section4.

país terceiro por qualquer das razões que poderiam fundamentar a suspensão ou revogação da AIM por parte do INFARMED, I.P. (nº 4 do mesmo artigo 78º).

b) Condições da concessão da AIM

As AIM, como actos administrativos que são, podem ser concedidas sob condição. No entanto, só existem, neste caso, condições resolutivas e, no fundo, a sua admissibilidade resume-se às situações em que a autoridade competente considere dispor dos elementos mínimos que lhe permitem o deferimento da AIM, mas ainda lhe subsistam algumas dúvidas em termos de efi cácia ou de segurança do medicamento, que carecem de melhor prova. Assim e em regra, as AIM podem ser condicionadas à realização, numa ou ambas daquelas áreas, de estudos complementares dos apresentados no procedimento ou outras obrigações específi cas (a lei chama-lhes regras especiais) (nº 1 do artigo 24º).

Existem ainda outros dois grupos de casos em que a AIM pode ser sujeita a condição resolutiva. Por um lado, as situações excepcionaisem que o requerente ainda não pode, por razões objectivas e verifi cáveis, apresentar dados completos sobre, designadamente, a segurança do medicamento no contexto normal de utilização. Nesta hipótese, as condições são impostas após audiência do requerente e dizem respeito à segurança em geral, à notifi cação de todos os incidentes relacionados com a utilização do medicamento e às medidas a adoptar (nº 1 do artigo 24º). A AIM assim condicionada é válida pelo prazo de um ano, podendo ser reavaliada e renovada mediante pedido do titular, devidamente instruído, a apresentar com 90 dias de antecedência do termo do prazo, sob pena de caducidade.

O legislador não o diz, mas parece legítimo admitir que as condições devem, neste caso, ser fi xadas para o período de vigência de um ano da AIM. No fi nal desse período e caso seja atempadamente requerida areavaliação, uma de três situações poderá ocorrer: ou (i) a autoridade se

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encontra satisfeita com os resultados do cumprimento das condições impostas e, nesse caso, a AIM é renovada sem condições adicionais e passa a vigorar por um período de cinco anos; ou (ii) a autoridade considera insufi cientes os resultados e renova por mais um ano sujeito a novas condições – semelhantes, diferentes ou complementares das anteriores; ou (iii) suspende ou revoga a AIM, caso os resultados apontem para o preenchimento de um dos fundamentos previstos no nº 1 do artigo 179º citado.

Por outro lado, quando o INFARMED, I.P., (i) nos termos do nº 6 do artigo 16º, solicite ao requerente informações, elementos ou documentos adicionais, sob pena de indeferimento; (ii) nos termos do artigo 17º, submeta ou exija que o requerente submeta, designadamente o medicamento, a controlo laboratorial; ou, (iii) nos termos do nº 2 do artigo 23º, solicite ao requerente a correcção de defi ciências do requerimento, pode complementarmente conceder a AIM sujeita a condição e fi xar prazos para o seu cumprimento. Neste caso, a condição pode ser uma de três pré-defi nidas: realizar estudo de segurança, ou de efi cácia, pós-autorização ou dispor de um sistema de farmacovigilância adequado; pode também ser uma de outro grupo de três condições, a fi xar pelo INFARMED, I.P., segundo critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, como sejam (i) a inclusão de certas medidas no sistema de gestão do risco, (ii) certas obrigações, mais exigentes do que as mencionadas supra a propósitodos deveres de farmacovigilância, de registo ou notifi cação de suspeitas de reacções adversas ou (iii), residualmente, quaisquer outras obrigações ou restrições (nºs 5 e 6 do artigo 24º).

Estamos, pois, perante situações em que a autoridade competente não se considera satisfeita com a prova de segurança produzida no procedimento administrativo e entende impor obrigações adicionaispara a concessão da AIM. Dada, no entanto, a ampla margem de discricionariedade técnica concedida à autoridade competente, o legislador estabelece os limites da necessidade, adequação eproporcionalidade, de modo a balizá-la e a permitir a sindicabilidade das decisões.

O estudo de segurança pós-autorização é defi nido pela alínea q) do nº 1 do artigo 3º como “um estudo sobre um medicamento autorizado destinado a identifi car, caracterizar ou quantifi car um risco de segurança, a confi rmar o perfi l de segurança do medicamento ou a medir a efi cácia das medidas de gestão dos riscos”52. De salientar que a defi nição destes estudos foi alargada no âmbito da transposição da Directiva nº 2010/84/UE, no sentido de não se restringir apenas à utilização do medicamento em conformidade com os termos da AIM53.

Quando este tipo de estudos (i) tenha carácter não intervencional, (ii) implique a recolha de dados de segurança transmitidos por profi ssionais de saúde ou doentes e (iii) seja iniciado, gerido ou fi nanciado pelo titular da AIM, por iniciativa deste ou no cumprimento de uma condição imposta pela autoridade competente, fi ca sujeito ao disposto nos artigos 175-º-C a 175º-H.

Assim e em geral, os mencionados estudos, além de deverem respeitar os requisitos, aplicáveis aos ensaios clínicos, que visam a garantia do bem-estar e os direitos dos participantes, não podem ter carácter publicitário (nºs 2 e 3 do artigo 175º-C). Os profi ssionais de saúde integrados na equipa de investigação apenas podem ser compensados pelo tempo despendido e pelas despesas efectuadas (nº 4 do artigo 175º-C).

52 A falta de rigor terminológico desta noção (“estudo de segurança pós-autorização”ou “estudo de segurança após autorização”, para abranger tanto os estudos de segurança como de efi cácia) já resultava da alínea c) do nº 1 do artigo 1º da Directiva nº 2010/84/UE. Neste trabalho, apenas usaremos o acrónimo PASS para designar os estudos de segurança e não os de efi cácia.

Sobre o âmbito de aplicação e o formato dos protocolos, resumos e relatórios fi nais dos PASS, cfr. artigos 36º a 38º do Regulamento de Execução (UE) nº 520/2012.

53 Cfr. Grant CASTLE & Robin BLANEY (2009), EC..., cit., pp. 319-320; Joana SAGRADAS (2012), A farmacovigilância..., cit., pp. 96-97.

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No âmbito do estudo, o titular da AIM deve (i) avaliar os dados recolhidos e as suas implicações para a relação benefício-risco do medicamento, (ii) comunicar às autoridades competentes onde esteja a decorrer o estudo qualquer nova informação que possa infl uenciar a mesma relação e (iii) incluir os resultados do estudo nos RPS (nº 7 do artigo 175º-C). O relatório fi nal do estudo deve ser apresentado às referidas autoridades no prazo de 12 meses a contar da recolha dos dados, sem prejuízo de, a pedido do INFARMED, I.P., lhes fornecer também o protocolo e os relatórios intercalares (nºs 5 e 6 do artigo 175º-C).

Em especial, quando a realização do PASS resulte de condição imposta à AIM e o mesmo apenas se realize em Portugal, apenas poderá iniciar-se após a aprovação do projecto de protocolo pelo INFARMED. A decisão é tomada no prazo de 60 dias após a apresentação do referido projecto e pode ser de oposição, com fundamento (i) no carácter publicitário do estudo, (ii) na inaptidão do desenho tendo em vista os objectivos do estudo ou (iii) no facto de se tratar de um ensaio clínico e não de um PASS (artigos 175º-D e E). O mesmo regime seguem as alterações ao estudo (artigo 175º-F).

O titular da AIM pode ser expressamente dispensado pelo INFARMED da obrigação de apresentação do relatório fi nal (nº 1 do artigo 175º-H). Se não for dispensado, deve, além do relatório, apresentar ao INFARMED também um resumo dos resultados do PASS (nº 3 do artigo 175º-H). Em qualquer caso, o titular da AIM deve avaliar os impactos que os resultados do PASS têm na AIM e, sendo caso disso, requerer a alteração dos respectivos termos (nº 2 do artigo 175º-H).

No essencial, o PASS visa recolher e avaliar informação adicional de segurança, no contexto do aumento da exposição dos doentes ao medicamento, que permita afastar as dúvidas, designadamente quanto à favorabilidade da relação benefício-risco, que motivaram a imposição da condição da sua realização.

c) Injunções pós autorização

Por último e ainda por razões de segurança, a AIM pode ser condicionada, já após a sua concessão, à realização de um PASS, quando existam dúvidas sobre os riscos do medicamento. Esta condição é designada de “injunção pós autorização” [alínea a) do nº 1 do artigo 26º-A]. Dada a amplitude da previsão normativa, certamente justifi cada pelo propósito de abarcar toda e qualquer situação em que, por razões de segurança do medicamento, se justifi que a imposição da injunção, afi gura-se-nos recair sobre a autoridade competente um acrescido dever de fundamentação, de facto e de direito, da decisão.

A realização do PASS observa o que dissemos supra, sem prejuízo das especifi cidades seguintes.

A injunção deve fi xar os objectivos e os prazos de realização do estudo e de apresentação dos seus resultados (nº 2 do artigo 26º-A). A imposição da injunção obedece a um procedimento sui generis, porque a audiência do titular da AIM só ocorre após a notifi cação da decisão e mediante requerimento do interessado, a apresentar no prazo de 30 dias. Caso ocorra esta manifestação de vontade, o INFARMED, I.P., fi xa prazo para a audiência escrita e, em função do alegado, poderá revogar ou confi rmar a injunção (nºs 3 e 4 do artigo 26º-A). Pelo argumento ad maius, parece-nos que, em vez de confi rmar, o INFARMED, I.P., igualmente poderá alterar, em sentido mais favorável ao titular da AIM, a injunção inicialmente comunicada. No caso de ser confi rmada a injunção – ou, dizemos nós, de esta ser alterada nos moldes referidos – são alterados a AIM, de modo a nela se incluir a mencionada condição, e o sistema de gestão do risco (nº 5 do artigo 26º-A). Se as razões que motivam a imposição desta injunção disserem respeito a dois ou mais medicamentos da mesma substância activa, ou composição de substâncias activas, o INFARMED, I.P., procurará encorajar os respectivos titulares a realizarem um PASS conjunto, promovendo deste modo a economia de custos dos interessados e das autoridades (nº 6 do artigo 26º-A).

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3.2.2. As responsabilidades dos profissionais de saúde e a necessidade de colaboração dos doentes

O sistema de segurança dos medicamentos assenta em grande medida, como se disse, na recolha de informação sobre o comportamento do medicamento na sua utilização.

Ora, quem utiliza o medicamento são os profi ssionais de saúde e os doentes. Não obstante, de acordo com números publicados pelo INFARMED, I.P., a principal fonte de notifi cação à mesma autoridade são os titulares das AIM, seguidos dos profi ssionais de saúde – médicos, farmacêuticos e enfermeiros54. As notifi cações pelos doentes têm reduzida expressão. Embora a lei preveja a notifi cação de reacções adversas por parte de outras entidades (nº 9 do artigo172º), julga-se que serão praticamente nulos os casos em que tal ocorre. O que fi ca dito não exclui que parte signifi cativa das notifi cações realizadas pelos titulares de AIM tenham origem nos profi ssionais de saúde ou nos doentes, atento o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 171º.

Pelo que acaba de referir-se, é crucial que se incentive, pelo menos, os profi ssionais de saúde e os doentes a notifi carem reacções adversas, bem como as suspeitas de reacções adversas graves ou inesperadas, com medicamentos.

Basta atender aos números publicados pelo INFARMED, I.P., para se concluir pela grande probabilidade de estarmos perante um problema de subnotifi cação de reacções adversas. Com efeito, no ano de 2013, venderam-se em ambulatório – sem, por isso, considerar o mercado hospitalar – 238.258.332 embalagens de medicamentos, enquanto o total de notifi cações de reacções adversas foi de 3.461

54 Dados disponíveis em: http://www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MEDICAMENTOS_USO_HUMANO/FARMACOVIGILANCIA/NOTIFICACAO_DE_RAM/EVOLUCAO_1992_2011/Notifi cacoes_de_RAM_por_origem.pdf.

para todo o mercado (ambulatório e hospitalar) no mesmo período de tempo55. Ou seja, uma notifi cação por cada 68.840 embalagens vendidas.

Não obstante, importa reconhecer que existem outras ordens de preocupações para os profi ssionais de saúde, que não são despiciendas e que, de algum modo, inibem a notifi cação.

É, desde logo, o caso das preocupações de confi dencialidade dos doentes, visto que esta nem sempre se encontra assegurada, apesar do esforço de anonimização dos dados, patente na fi cha de notifi cação. Depois, as questões de responsabilidade penal, civil e disciplinar. Na realidade, se se tratar de uma situação de defi ciente utilização do medicamento e esse facto for imputável ao profi ssional de saúde, o mesmo debater-se-á entre o dever de notifi car a reacção adversa e o possível benefício que para si resultará da não revelação do facto, por contraponto a uma possível responsabilização. Se se tratar de um profi ssional de saúde trabalhador por conta de outrem, poderá, a par da responsabilidade disciplinar corporativa – junto de uma associação pública de base profi ssional – existir a responsabilidade disciplinar laboral e, além disso, a eventual responsabilidade civil da sua entidade patronal, enquanto comitente.

É por isso que, de um cenário antecedente, em que, apesar de os profi ssionais de saúde terem o dever de notifi car as reacçõesadversas, não eram contra-ordenacionalmente punidos no caso de incumprimento (cfr. artigo 10º do Regulamento do Sistema Nacional de Farmacovigilância aprovado pelo Decreto-Lei nº 242/2002, de 5

55 Notifi cações de reacções adversas disponíveis em: http://www.infarmedpt/portal/page/portal/INFARMED/MEDICAMENTOS_USO_HUMANO/FARMACOVIGILANCIA/NOTIFICACAO_DE_RAM/EVOLUCAO_1992_2011/Notifi cacoes_de_RAM_recebidas_SNF.pdf. Análise do mercado de medicamentos disponível em http://www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFRAMED/MONITORIZACAODO_MERCADO/OBSERVATORIO/ANALISE_MENSAL_MERCADO/MEDICAMENTOS_AMBULATORIO_2/2014/GEP_MonitMercado_201401_0.pdf.

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de Novembro, e redacções iniciais do artigo 169º e do nº 2 do artigo181º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto), se evolui para asujeição dos mesmos profi ssionais a uma coima que pode corresponder a um máximo de 15% do rendimento anual do profi ssional de saúdeou € 180000, consoante o que for inferior [artigo 169º e alínea i) do nº 2 do artigo 181º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, na redacção resultante, por último, da Lei nº 51/2014, de 25 de Agosto]56. De salientar, o entanto, que, se esta solução não tiver efeitos do ponto de vista preventivo – isto é, no sentido de o profi ssional de saúde se sentir compelido a cumprir o seu dever de notifi cação – poderá ser pouco efi caz e até contraproducente, sob o ponto de vistarepressivo. Na realidade, se o profi ssional de saúde se mantiver quedo e mudo, o mais provável é difi cilmente se chegar a ter conhecimento do incumprimento do dever de notifi cação e, consequentemente, sancionar essa omissão.

Julga-se, por conseguinte, que mais do que a criação de deveres jurídicos dotados de reduzida coercividade, será preferível a criação, logo nos bancos das universidades, de uma cultura de responsabilização e de dever moral e profi ssional de notifi cação de reacções adversas.

Além disso, deve ser desburocratizada e reduzida ao mínimoessencial a procedimentalização da notifi cação de reacções de adversas com medicamentos, porque, quanto mais difícil for, na prática, a sua realização, maior o incentivo à inércia.

Actualmente e em resumo, o artigo 169º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, faz recair sobre os profi ssionais de saúde, do SNS ou não, o dever de, “tão rápido quanto possível”, comunicarem àsUnidades de Farmacovigilância ou, na falta destas, ao INFARMED,

56 As farmácias e os locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica têm deveres especiais de farmacovigilância, nos termos, respectivamente do artigo 7º e da alínea b) do nº 1 do artigo 47º do Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, e do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 134/2005, de 16 de Agosto, nas suas redacções actuais.

I.P., as reacções adversas e as suspeitas de reacções adversas graves ou inesperadas com a utilização de medicamentos, de que tenham conhecimento. Se estiver em causa medicamento biológico, a notifi cação deve incluir os respectivos nome e número de lote. A notifi cação é feita através do Portal Nacional do Medicamento ou por qualquer outro meio, designadamente correio ou correio electrónico (cfr. nº 1 do artigo 170º-A e nº 3 do artigo 172º).

O regime que acabamos de referir é, em nossa opinião, desincentivador da notifi cação. Com efeito, o preenchimento da fi cha é complicado, face à quantidade e complexidade da informação exigida57. Ainda que se note, do modelo de fi cha anterior para o actual, alguma redução da informação solicitada, essa redução parece insufi ciente, sendo certo que, para ser considerada válida, a fi cha tem de incluir “no mínimo: a informação do profi ssional de saúde com o meio de contacto; a identifi cação do doente por iniciais, data de nascimento, idade, grupo etário ou sexo; pelo menos um fármaco/medicamento suspeito e pelo menos uma reação adversa suspeita”58.

Temos para nós que, se esta é a informação mínima – ou seja, a verdadeiramente necessária – poderá não se justifi car a solicitação de todo um manancial de informação, de cuja utilidade não se duvida, mas que é desincentivadora da notifi cação. Além disso, afi gura-se-nos possível reduzir ao mínimo indispensável a informação do profi ssional de saúde, por exemplo, o nome, telefone e endereço de correio electrónico.

Assim, parece necessário estabelecer um adequado equilíbrio entre o interesse na recepção de notifi cações de reacções adversas e o interesse de obter a informação óptima. Neste sentido, parece-nos

57 Disponível em http://www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MEDICAMENTOS_USO_HUMANO/FARMACOVIGILANCIA/NOTIFICACAO_DE_RAM/Ficha%20de%20notifi cacao%20PS_setembro%202014.pdf.

58 Cfr. fi cha de notifi cação. A “informação do profi ssional de saúde” é o nome, profi ssão, especialidade, local de trabalho, telefones, email, data e assinatura.

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possível proceder a uma pequena alteração do paradigma, reduzindo-sea quantidade de informação solicitada na fi cha de notifi cação e passando as entidades receptoras da notifi cação a obter junto do profi ssional de saúde, telefonicamente ou por correio electrónico, os elementos que forem considerados indispensáveis.

Já no que respeita aos doentes, não existe na lei um dever jurídico de notifi cação, antes existem comandos legais no sentido de o INFARMED, I.P., registar as suspeitas que os mesmos notifi quem e de incentivá-los a procederem às notifi cações [cfr. alínea a) do nº 2 do artigo 167º e nº 1 do artigo 172º].

Tal como acontece com a fi cha de notifi cação dos profi ssionais de saúde, também a fi cha de notifi cação dos utentes é de complexo preenchimento e exige muita informação59. Comparativamente, atendendo à diversidade de conhecimento e meios que possuem os profi ssionais de saúde comparativamente com os utentes, julga-se que a fi cha a estes destinada é ainda mais complexa do que a aplicável àqueles profi ssionais.

Afi gura-se-nos por isso que a notifi cação dever ser incentivada, desde logo tornando a fi cha mais acessível e contendo apenas o mínimo indispensável de informação, passando para as Unidades de Farmacovigilância e para o INFARMED, I.P., o dever de obtenção de informação adicional na medida do necessário. Além disso, devem ser realizadas campanhas de informação, designadamente nos meios de comunicação social, incentivando à notifi cação.

Se algumas medidas no sentido que preconizamos não foremtomadas, continuaremos a assistir aos reduzidos números de notifi cações,embora se reconheça que, apesar de tudo, os mesmos têm vindo a subir. Mas permanecem muito insufi cientes, quando comparados com a quantidade de embalagens de medicamentos vendidas.

59 Disponível em http://www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MEDICAMENTOS_USO_HUMANO/FARMACOVIGILANCIA/NOTIFICACAO_DE_RAM/Ficha_notifi cacao_utentes_setembro2014.pdf.

3.2.3. A actividade de farmacovigilância por parte das autoridades

Atendendo a que está em causa a protecção da saúde e, neste caso, a garantia da segurança dos medicamentos, não só existe uma agêncianacional como também uma agência europeia. Junto da EMA funcionam ainda o Comité de Avaliação do Risco em Farmacovigilância (PRAC), o Comité dos Medicamentos para Uso Humano (CHMP) e o Comité de Coordenação (CMDh).

a) O INFARMED, I.P.

As atribuições e competências do INFARMED, I.P., nesta matéria, encontram-se consagradas, entre outros, na lei orgânica do Ministério da Saúde, na sua própria lei orgânica e no já citado Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto60.

Assim e além das competências que lhe assistem ao nível da autorização dos ensaios clínicos e da autorização de introdução no mercado, é ao INFARMED, I.P., que se encontra cometida a competência em matéria de garantia da segurança do medicamento ao longo do seu ciclo de vida61.

Desde logo, o INFARMED, I.P., tem a responsabilidade de gestão e supervisão do Sistema Nacional de Farmacovigilância (SNF) (cfr. nº 2 do artigo 166º). O SNF é composto pela Direcção de Gestão do Risco de Medicamentos, pelas unidades de farmacovigilância, pelos delegados de farmacovigilância, pelos serviços de saúde, os

60 Cfr. nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 124/2011, de 29 de Dezembro, e, entre outros, o nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 46/2012, de 24 de Fevereiro.

61 No fundo, as competências em matéria de autorização de ensaios clínicos e de autorização e introdução no mercado são a outra face da moeda procedimental: apreciação e decisão dos pedidos apresentados pelos requerentes.

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titulares de AIM e os doentes (nº 3 do artigo 166º, artigo 168º e nº 1 do Anexo II ao Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto)62.

No essencial, o SNF faz, à escala nacional e para todos os medicamentos disponíveis em Portugal, aquilo que cada titular de AIM tem de fazer para os seus medicamentos: recolha de informaçãosobre os riscos dos medicamentos, principalmente de reacçõesadversas, decorrente de toda a utilização do medicamento, incluindo fora dos termos da AIM, e as associadas a exposição ocupacional; avaliação científi ca da mesma informação; ponderação das medidas de segurança aptas a prevenir ou minimizar os riscos; adopção das medidas regulamentares necessárias em sede de AIM; tratamento e processamento da informação; comunicação e divulgação de informação junto dos profi ssionais de saúde, dos doentes e do público em geral (nº 1 do artigo 166º).

O INFARMED, I.P., além de dever auditar periodicamente o sistema(nº 1 do artigo 167º), está incumbido de: incentivar a notifi cação de reacções adversas por parte dos doentes e dos profi ssionais de saúde, directamente ou por intermédio de associações de doentes,consumidores ou de profi ssionais de saúde; disponibilizar aos doentes meios de notifi cação electrónica de reacções adversas; providenciar pela obtenção de dados precisos e verifi cáveis para avaliação científi ca de suspeitas de reacções adversas; publicar atempadamente informação relevante sobre a utilização de certo medicamento; promover a indicação do nome e número de lote dos medicamentos biológicos nas notifi cações de reacções adversas (nº 2 do artigo 167º).

62 Nota-se que os profi ssionais de saúde em geral não fazem parte do sistema nacional de farmacovigilância, tal como gizado no nº 1 do Anexo II do Decreto-Leinº 176/2006, de 30 de Agosto, embora os profi ssionais de saúde que são delegados de farmacovigilância devam divulgar o Sistema junto dos demais profi ssionais de saúde e promover a notifi cação de reacções adversas (nº 5 do mesmo Anexo).

De acordo com os standards defi nidos em 2010 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), um sistema nacional de farmacovigilânciadeve cumprir os seguintes requisitos mínimos: (i) promover a farmacovigilância e, em particular, recolher e gerir notifi cações de reacções adversas com medicamentos, erros de medicação e problemas de qualidade; (ii) detectar sinais, (iii) avaliar e gerir os riscos com medicamentos; (iv) identifi car problemas de qualidade com medicamentos; (v) divulgar informação sobre segurança de medicamentos; (vi) aplicar os resultados da actividade de farmaco-vigilância em prol de programas de saúde pública, dos doentes, da política do medicamento e das orientações de tratamento; (vii) desenvolver e manter informação sobre a utilização e medicamentos e (viii) identifi car questões relacionadas com prescrição e dispensa não regulamentada de medicamentos63.

Apesar de o nosso sistema ser defi nido à luz do direito da União Europeia, que se norteia por um elevado padrão de protecção da saúde pública, nota-se que da legislação em vigor em Portugal não resulta claro que o SNF cumpra todos os requisitos mínimos defi nidos pela OMS.

Veremos de seguida cada um dos referidos requisitos e o modo como o legislador nacional os consagrou, ou não.

(i) Promover a farmacovigilância e, em particular, recolher e gerir notifi cações de reacções adversas com medicamentos, erros de medicação e problemas de qualidade – este primeiro requisito encontra-se, quando a nós, cumprido, na medida em que a dimensão de recolha de informação sobre reacções adversas, inclui as decorrentes de erros de medicação. É o que resulta do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 166º e no nº 1 do artigo 172º, bem como na alínea a) do nº 2 e na alínea a) do nº 4.2. do Anexo II do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto.

63 Disponíveis em: http://www.who.int/medicines/areas/quality_safety/safety_effi cacy/PV_Minimum_Requirements_2010_2.pdf.

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(ii) Detectar sinais – também este requisito se mostra preenchido, na medida em que o artigo 173º-E prevê a actuação do INFARMED, I.P., em matéria de detecção de sinais64.

(iii) Avaliar e gerir os riscos com medicamentos – este requisito encontra-se preenchido, designadamente na alínea c) do nº 1 do artigo 166º citado, que prevê a ponderação das medidas de segurança adequadas à prevenção ou minimização dos riscos.

(iv) Identifi car problemas de qualidade com medicamentos – quer no Capítulo X quer na parte restante do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, não se vislumbra nenhuma norma que preveja a identifi cação de problemas de qualidade com medicamentos

em sede de farmacovigilância. Este é, por conseguinte, um aspecto em que o regime jurídico vigente não cumpre os requisitos mínimos da OMS. Não obstante, o regime jurídico em vigor prevê diversas disposições que visam a garantia da qualidade dos medicamentos, mas ligadas à garantia da qualidade das matérias-primas, do fabrico e do controlo do produto acabado.

(v) Divulgar informação sobre segurança de medicamentos – este requisito encontra-se preenchido no direito nacional, designadamente na alínea f) do nº 1 do artigo 166º e na alínea d) do nº 2 do artigo 167º

(vi) Aplicar os resultados da actividade de farmacovigilância em prol de programas de saúde pública, dos doentes, da política do medicamento e das orientações de tratamento – quanto a este requisito, parece-nos que o mesmo encontra-se descrito em termos algo redundantes, porque, por exemplo, aplicar resultados de farmacovigilância na actualização da informação do

64 A epígrafe da Subsecção III do Capítulo X surge antes do artigo 173º-A, mas o seu lugar correcto é antes do artigo 173º-E, que corresponde ao artigo 107º-H da Directiva nº 2001/83/CE alterada.

medicamento é, pelo menos, actuar em prol das orientações e dos doentes. Apesar disso e embora o mesmo requisito não resulte directamente preenchido de uma norma legal que o preveja nestes precisos termos, parece-nos que, pelo menos em parte, poderá mostrar-se cumprido a partir de um conjunto de preceitos, a saber: alínea d) do nº 1 do artigo 166º, sobre a adopção de medidas regulamentares necessárias respeitantes à AIM; nº 3 do artigo 18º sobre a actualização do resumo das características do medicamento; alínea m) do nº 1 do artigo 29º, quando impõe ao titular da AIM a obrigação de actualização da informação do medicamento. Estas medidas conduzem à utilização segura do medicamento e, nessa medida, constituem aplicações dos resultados de farmacovigilância em prol dos doentes e das orientações de tratamento. Também o tratamento e processamento da informação, de acordo com as normas nacionais e da União Europeia, bem como a participação na harmonização e normalização, previstos na alínea e) do nº 1 do artigo 166º, pode, de algum modo, contribuir para programas de saúde pública e para a defi nição de políticas do medicamento.

(vii) Desenvolver e manter informação sobre a utilização e medicamentos – o preenchimento deste requisito decorre da criação do portal nacional de medicamentos, bem como da base europeia Eudravigilance, previstos respectivamente no nº 1 do artigo 170º-A do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e no artigo 24º do Regulamento (CE) nº 726/2004.

(viii) Identifi car questões relacionadas com prescrição e dispensa não regulamentada de medicamentos – quanto a este requisito, julga-se que só indirectamente poderá o mesmo considerar-se preenchido. Com efeito, os dados de farmacovigilância poderão conduzir a uma alteração da classifi cação do medicamento quanto à dispensa ao público. Esta alteração pode ocorrer em sede de renovação, nos termos do nº 2 do artigo 119º, bem

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como a todo o tempo, por iniciativa do INFARMED, I.P., ao abrigo do nº 1 do mesmo artigo. Aliás, se se confrontar os artigos 114º, 115º e 118º conclui-se pela possibilidade de alteração dessa classifi cação, com fundamento no aumento da percepção do risco, de medicamento não sujeito a receita. médica para medicamento sujeito a receita médica ou deste para medicamento sujeito a receita médica restrita.

Parece, por conseguinte, que, tal como se mostra gizado, o SNF, embora decalcado – repete-se – no modelo defi nido pela União Europeia, parece não cumprir – ou, pelo menos, não cumprir de um modo inequívoco – os requisitos mínimos de um serviço nacional de farmacovigilância defi nidos pela OMS.

Apesar de tudo, o regime em vigor cumpre a maioria desses requisitos e revela ainda outras preocupações que vão além daqueles requisitos mínimos. Uma destas preocupações, que perpassa os sistemas nacional e europeu é a da efi ciência. Neste sentido, procura-se economizar recursos e reduzir custos, através da avaliação única, quando estejam em causa dois ou mais medicamentos similares, bem como quando estejam em causa dois ou mais Estados membros (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 173º-C e nº 2 do artigo 173º-D, por exemplo).

Outro exemplo desta preocupação é o da fi gura da delegação pelo INFARMED, I.P., na “autoridade nacional competente de outro Estado membro” das “competências em matéria de farmacovigilância” prevista no nº 3 do artigo 167º. Todavia e embora se compreenda a lógica subjacente, afi gura-se-nos que a referida norma poderá ser problemática do ponto de vista do nosso direito interno.

No fundo, a delegação pelo INFARMED, I.P., das suas competências em matéria de farmacovigilância previstas no Capítulo X, poderá corresponder a um esvaziamento da actividade de farmacovigilãncia cometida a este instituto público. A ser assim, um instrumento escrito através do qual fossem delegadas essas competências, poderia, no limite, corresponder a uma alienação da competência, proibida pelo nº 1 do artigo 29º do Código do Procedimento Administrativo

e fulminada com a nulidade pelo nº 2 do mesmo artigo65. Note-se que nem se tratará de uma verdadeira delegação de competências, porque a mesma não só não é conferida dentro da mesma pessoa colectiva pública como também, o que é mais grave, seria conferida para uma pessoa colectiva pública de uma ordem jurídica diversa da portuguesa, com o que colidiria, ainda, com o nº 1 do artigo 35º do mesmo Código66. A referida norma do nº 3 do artigo 167º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, poderá ainda colidir frontalmente com o disposto nos artigos 266º, nºs 1 e 2, e 267º, nºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que difi cilmente a autoridade nacional competente de outro Estado membro visaria “a prossecução do interesse público” nacional “no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” portugueses, bem como difi cilmente estará, por exemplo, sujeita “à Constituição e à lei” portuguesas.

Admite-se, no entanto, que os responsáveis pelo INFARMED, I.P., não estejam interessados em utilizar a faculdade conferida pelo referido nº 3 do artigo 167º, pelo que a questão que enunciámos se manterá, na prática, meramente académica, apesar da subsistência formal da norma na ordem jurídica.

Voltando às competências do INFARMED, I.P., em matéria de farmacovigilância, poderemos agrupar as que consideramos principais nos seguintes conjuntos: manutenção e coordenação da estrutura; avaliação dos riscos dos medicamentos; gestão dos riscos com medicamentos; participação no sistema europeu; supervisão e fi scalização.

65 Mário Esteves OLIVEIRA, Pedro Costa GONÇALVES & J. Pacheco de AMORIM (1999), Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª ed., Coimbra, Almedina, pp. 192-194.

66 Mário Esteves OLIVEIRA, Pedro Costa GONÇALVES & J. Pacheco de AMORIM (1999), Código..., cit., pp. 210-212.

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No que se refere às competências em matéria de manutenção e coordenação da estrutura, as mesmas reconduzem-se aos aspectos a que aludimos nos parágrafos anteriores e consistem na montagem do sistema, em termos de meios humanos e técnicos, na promoção da notifi cação de reacções adversas e na recolha e registo de notifi cações [cfr. alínea a) do nº 1 e nºs 2 e 3 do artigo 166º, alíneas a) a c) e e) do nº 2 do artigo 167º, artigo 168º, nº 1 do artigo 172º e Anexo II do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

As competências em matéria de avaliação dos riscos dosmedicamentos, compreendem, quanto a nós, toda a avaliação científi ca das suspeitas de reacções adversas notifi cadas, a imputaçãode nexo de causalidade entre a reacção e o medicamento, a avaliação dos relatórios periódicos de segurança e a avaliação dos pedidos de renovação das autorizações de introdução no mercado [cfr. alínea b) do nº 1 do artigo 166º e artigos 173º-B e 173º-C do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

A participação no sistema europeu implica: a comunicação de informações aos outros Estados membros, à EMA e à Comissão; a ligação do portal nacional de medicamentos à base de dados Eudravigilance; o aviso prévio ou simultâneo à EMA e à Comissão Europeia da intenção de divulgação de informações sobre farmaco-vigilância; a sujeição à coordenação da EMA no que respeita à divulgação de comunicados de segurança, quando estejam em causa substâncias activas contidas em medicamentos autorizados em mais de um Estado membro; a colaboração com a EMA na detecção de duplicações de notifi cações de suspeitas de reacções adversas; o envio à base de dados Eudravigilance de suspeitas de reacções adversas graves e não graves, respectivamente nos prazos de 15 e 90 dias; a avaliação dos relatórios periódicos de segurança de medicamentos autorizados em mais de um Estado membro, quando designado pelo CMDh ou a apresentação de observações ao relatório de avaliação elaborado pelo Estado membro designado; desencadear o procedimento urgente da União Europeia ou o procedimento de arbitragem [alínea e) do nº 1 do artigo 166º, artigo 170º-A, nºs 3

e 4 do artigo 170º-B, nºs 6 e 7 do artigo 172º, nºs 2 e 4 do artigo 173º-C e artigos 174º, 45º e 52º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

Quanto à gestão dos riscos com medicamentos, está em causa a ponderação e adopção de medidas de prevenção ou minimizaçãodos riscos. Estas medidas tanto podem resultar da actividade desenvolvida a nível nacional como da participação no sistemaeuropeu, designadamente em execução de acordos obtidos ao nível do CMDh, como veremos infra, ou ao nível dos procedimentos dearbitragem previstos nos artigos 45º e 52º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto. Tais medidas podem passar: pela introdução de alterações aos termos das AIM e da informação do medicamento; pela não renovação da AIM ou pela sujeição a nova renovação quinquenal; pela fi xação de injunções pós-AIM ou pela suspensão – ainda que provisória ou temporária – ou revogação da AIM; pela divulgação de informações no portal nacional de medicamentos e junto dos profi ssionais de saúde, dos doentes ou do público em geral; pela inclusão de medicamentos na lista de medicamentos sujeitos a monitorização adicional [nº 1 do artigo 18º, artigos 26º-A a 28º, nº 7 do artigo 106º, alíneas c), d) e f) do nº 1 do artigo 166º, alínea d) do nº 2 do artigo 167º, artigo 170º-A, nºs 3 a 5 do artigo 170º-B, artigos 173º-D e 175º, nºs 1 e 2 do artigo 175º-B, nºs 1 a 3 do artigo 175º-H e artigo 179º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e artigo 23º do Regulamento (CE) nº 726/2004; vide ainda artigo 7º e alínea b) do nº 1 do artigo 47º do Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, e o nº 1 do artigo 3º do Decreto-lei nº 134/2005, de 16 de Agosto, nas suas redacções actuais, respectivamente para as farmácias e para os locais de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica].

Por último, em matéria de supervisão e fi scalização, cabe ao INFARMED, I.P., auditar o SNF; detectar novos riscos ou alterações dos riscos previstos, bem como detectar alterações da relação benefício-risco, designadamente através da fi scalização dos resultados dos planos de minimização de riscos previstos no plano de gestão

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de riscos e das condições impostas à AIM no momento da sua concessão ou em sede de injunção pós-autorização; solicitar ao titular da AIM os relatórios intercalares pela realização de estudos de segurança pós-autorização; aprovar os projectos de protocolo dos mesmos estudos e respectivas alterações substanciais; instaurar processos de contra-ordenação e aplicar coimas pelo incumprimento das obrigações em matéria de farmacovigilância [nº 1 do artigo 167º, artigos 173º-E, 175º-E, 175º-F e nºs 2 e 3 do artigo 181º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto].

b) As entidades da União Europeia com responsabilidades em matéria de farmacovigilãncia

Ao nível da União Europeia, a actividade de farmacovigilânciaencontra-se dispersa por cinco entidades. Assim, no caso demedicamentos não autorizados pelo procedimento centralizado, relevam o PRAC e o CMDh; no caso de medicamentos autorizados por aquele procedimento, relevam o PRAC, o CHMP, a EMA e a Comissão Europeia.

O recém-criado PRAC é o comité especializado a nível da União Europeia, ao qual cabe emitir recomendações para o CHMP e o CMDh, em matéria de farmacovigilância e de sistemas de gestão dos riscos, bem como monitorizar a efi cácia desses sistemas [alínea a-A) do nº 1 do artigo 56º do Regulamento (CE) nº 726/2004]67. O mesmo comité resultou do reconhecido crescimento de importância do

67 O mandato do PRAC inclui “todos os aspectos da gestão dos riscos colocados pela utilização de medicamentos para uso humano, incluindo a detecção, avaliação, minimização e comunicação relacionadas com os riscos de reacções adversas, tendo na devida consideração os efeitos terapêuticos do medicamento para uso humano, a concepção e a avaliação dos estudos de segurança após autorização e as auditorias de farmacovigilância” [nº 6 do artigo 61º-A do Regulamento (CE) nº 726/2004].

anterior Grupo de Trabalho da Farmacovigilância (PhVWP), para a obtenção de consensos em matéria de farmacovigilância, e das preocupações que esse crescimento suscitaram para quem começou a divisar uma invasão das competências do CHMP pelo mesmo grupo de trabalho68. Assim, temos para nós, que a criação do PRAC resultou mais de uma gestão de tensões políticas e de competências do que de uma verdadeira necessidade.

O PRAC é composto por um membro nomeado por cada Estado membro, seis membros nomeados pela Comissão e dois membros nomeados pela Comissão, ouvido o Parlamento, em representação, respectivamente, dos profi ssionais de saúde e das organizações de doentes [nº 1 do artigo 61º-A do Regulamento (CE) nº 726/2004]. Compete-lhe, designadamente, pronunciar-se sobre a harmonização de datas de apresentação dos relatórios periódicos de segurança, bem como sobre os efeitos regulamentares na AIM, decorrentes da avaliação dos relatórios periódicos de segurança, do procedimentourgente da União ou da realização de estudos de segurançapós-autorização [artigos 107º-C, 107º-E, 107ºG, 107º-K e 107º-Q da Directiva nº 2001/83/CE]. Estas competências são exercidas, quer se trate de medicamentos autorizados pelo procedimento centralizado quer não, sendo certo que este Comité é igualmente ouvido pela EMA: no caso de inclusão na lista de medicamentos sujeitos a monitorização adicional; nos casos de pleno funcionamento e de alterações substanciais, tanto à base de dados Eudravigilance como ao repositório de relatórios periódicos de segurança [artigos 23º, 24º e 25º-A do Regulamento (CE) nº 726/2004]. Ao PRAC compete designar o relator que, em colaboração com o relator designado pelo CHMP, avalia os relatórios periódicos de segurança dos medicamentos autorizados pelo procedimento centralizado, bem como compete aprovar o mesmo relatório de avaliação (artigo 28º do mesmo Regulamento).

68 Grant CASTLE & Robin BLANEY (2009), EC..., cit., pp. 309-310.

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Além disso, é o PRAC que avalia a relação benefício-risco dos medicamentos autorizados pelo procedimento centralizado (artigo 28º-A do Regulamento citado).

O CMDh é a estrutura, composta por um representante de cada Estado membro, criada nos termos do artigo 27º da Directiva nº 2001/83/CE, à qual, para o que ora nos interessa, compete, guiando-se pela avaliação científi ca e pelas recomendações do PRAC, examinar as questões de farmacovigilância. Nomeadamente e desde que não esteja em causa uma AIM concedida pelo procedimento centralizado, compete ao CMDh fi xar, ouvido o PRAC, a frequência harmonizada dos relatórios periódicos de segurança e proceder à sua avaliação única, bem como analisar as recomendações do PRAC sobre os efeitos regulamentares na AIM, decorrentes da avaliação dos relatórios periódicos de segurança, do procedimento urgente da União ou da realização de estudos de segurança pós-autorização [artigos 107º-C, 107º-E, 107ºG, 107º-K e 107º-Q da Directiva nº 2001/83/CE].

O CHMP é o comité consultivo em matéria dos medicamentos autorizados pelo mesmo procedimento, cabendo-lhe elaborar o parecer da EMA sobre qualquer questão relativa à avaliação dos medicamentos para uso humano [alínea a) do nº 1 do artigo 56º do Regulamento (CE) nº 726/2004] e que, em matéria de farmacovigilância,são sobreponíveis às do CMDh.

A EMA e a Comissão Europeia desenvolvem actividades, respeitantes aos medicamentos autorizados pelo procedimento centralizado, sobreponíveis, respectivamente na vertente instrutória e na vertente decisória, àquelas que a nível do procedimento nacional se encontram cometidas ao INFARMED, I.P.

A questão que se coloca é a da necessidade da existência de todo este conjunto de estruturas, numa época em que, cada vez mais, ocorrem preocupações de efi ciência, que em termos de celeridade procedimental quer em termos de custos. Numa óptica de celeridade, a criação do PRAC cria inefi ciência, na medida em que será mais uma entidade a ser ouvida antes da decisão e que carece de tempo de análise, que se soma ao tempo de análise por parte do CHMP ou do

CMDh, consoante o caso, além de que os referidos comités poderão não estar de acordo, o que exigirá uma posição fundamentada do CHMP ou do CMDh.

Numa óptica de custos, julga-se que um único comité, com competências em toda a matéria do medicamento, independentementede se tratar ou não de farmacovigilância e do procedimento de aprovação do medicamento, que no fundo aglutinasse os três comités, poderia obter o mesmo resultado (em Portugal, a Comissão de Avaliação do Medicamento inclui desde 2004 também a valência em matéria de farmacovigilância).

4. Contributos para a melhoria do sistema

Julgamos que o sistema, tal como existe pode ser melhorado. Nessesentido, considera-se oportuno fazer aqui algumas sugestões de melhoria, embora não se ignore que alguns não estarão exclusivamente ao alcance de Portugal, antes implicando alterações ao sistema em vigor na União Europeia.

a) Cumprimento dos requisitos mínimos definidos pela OMS

A primeira sugestão de melhoria que aqui deixamos, diz respeito à necessidade de alinhamento do sistema em vigor com os requisitos mínimos defi nidos pela OMS. Com efeito, não parece fazer sentido que um sistema, que deve pautar-se pelos mais elevados padrões de protecção da saúde pública, não observe aqueles que são os requisitosmínimos defi nidos pela entidade mundial de referência nesta matéria.

Considera-se, por isso, que, sem prejuízo dos mecanismos já existentes de controlo da qualidade dos medicamentos, é necessária a adopção de medidas que permitam aproveitar os dados obtidos em sede de farmacovigilância para identifi car problemas de qualidade com medicamentos.

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Por outro lado, importaria tornar clara a importância do aproveitamentodos resultados da actividade de farmacovigilância, nomeadamente para a defi nição de campanhas de saúde pública, bem como para a defi nição da política do medicamento.

Por último, seria importante a clarifi cação do impacto dos resultados da actividade de farmacovigilância designadamente na classifi cação do medicamento quanto à dispensa ao público.

b) Fusão do PRAC, CHMP e CMDh

Apesar de este contributo contar certamente com muitas resistências, não parece impossível que as atribuições do PRAC, CHMP e CMDh sejam aglutinadas num novo comité com todas essas valências e que, através de um diverso modo de funcionamento e composição variável consoante as matérias, assegure um aumento de efi ciência, por um lado, através de uma mais célere resposta procedimental, numa matéria em que a celeridade pode salvar vidas, e por outro, através da redução de custos de estrutura. De salientar que estes custos são pagos através das taxas cobradas aos titulares de AIM, que, por sua vez, são repercutidas no preço a que o medicamento é comercializado, sendo certo que este preço é suportado, pelo menos em parte, pelos Estados membros e pode infl uir decisivamente no acesso dos doentes ao medicamento69.

69 Veja-se o que tem sucedido no recente caso do preço do sofosbuvir para o tratamento da hepatite C.

c) Minimização do problema da subnotificação de reacções adversas em Portugal

Sob uma outra perspectiva, considera-se que o sistema vigente no nosso país poderá também ser incrementado. Com efeito, a aplicação do regime jurídico a que vimos aludindo, e inclusivamente os apelos à notifi cação inseridos no resumo das características do medicamento, para os profi ssionais de saúde, e no folheto informativo, para os doentes (nº 6 do artigo 18º e nº 8 do artigo 106º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto), têm estado a dar resultados práticos que, apesar de tudo, poderão não ser os mais animadores.

Como vimos supra, apesar do crescimento do número de notifi caçõesde reacções adversas que tem vindo a registar-se nos últimos anos, o certo é que ainda existe uma desproporção signifi cativa entre o número de embalagens vendidas em Portugal e o número de notifi cações de reacções adversas.

Julga-se, por conseguinte, que deverá ser desenvolvido um maior esforço por parte das autoridades no sentido de incentivar os profi ssionais de saúde e os doentes a reportarem reacções adversascom medicamentos. Os resultados até agora obtidos parecem demonstrar que a actividade desenvolvida pelos delegados de farmacovigilância não tem sido sufi cientemente efi caz, apesar de os profi ssionais de saúde serem o segundo grupo mais notifi cador a seguir aos titulares de AIM.

Quando falamos em autoridades no plano nacional, estamos a pensar no INFARMED, I.P., que tem a responsabilidade, legalmente atribuída, de o fazer, mas não só. Julgamos que, junto dos profi ssionais de saúde, também os hospitais públicos, as ordens profi ssionais e as administrações regionais de saúde deveriam adoptar políticas de criação de uma cultura profi ssional favorável à notifi cação. Aliás e a atentar no que dispõe no nº 1 do artigo 168º, este envolvimento deveria abranger também as unidades e estabelecimentos privados de prestação de cuidados de saúde.

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No que se refere aos doentes, além de o incentivo à notifi cação pelo doente dever passar a fazer parte da rotina das consultas médicas e de outros profi ssionais de saúde, julgamos que seria importante a realização cíclica junto do público de campanhas de incentivo, designadamente na comunicação social e nas redes sociais. Estas campanhas permitiriam alertar os cidadãos para a importância de notifi car estes acontecimentos e para os benefícios que daí resultam para a segurança dos medicamentos e para a protecção da saúde.

5. Conclusões

Em face de quanto fi ca dito, podemos concluir que a garantia da segurança do medicamento, assenta essencialmente na recolha e análise de informação sobre os riscos do medicamento e na adopção de medidas regulamentares de prevenção ou de minimização dos mesmos. Grande parte das responsabilidades nesta matéria recaem em primeira linha sobre os titulares das AIM, dos quais se exigem agora actuações no sentido da gestão apriorística dos riscos, de que se destaca, por exemplo, o sistema de gestão dos riscos, que deve ser apresentado com o pedido de AIM. O sistema vigente assenta ainda na imposição de algumas condições. Em matéria de segurança, aquando da concessão da AIM e mesmo após esta concessão.

O sistema em vigor, de raiz europeia, tem tido uma evolução reactiva, na sequência de problemas graves que foram surgindo ao longo do tempo. Seria desejável uma actuação mais proactiva e planeada do legislador.

O mesmo sistema está agora mais robusto do que aquele que tínhamos até à entrada em vigor das Directivas nºs 2010/84/UE e 2012/26/UE. No entanto, o sistema apresenta agora um a estrutura mais pesada e complexa, com mais um comité (o PRAC), cuja existência implica a necessidade da sua articulação com o CHMP ou com o CMDh, que é geradora de inefi ciências. Deveria, por isso, ser equacionada a hipótese de fusão destes três comités num único

comité que, com competências em toda a matéria do medicamento, independentemente de se tratar ou não de farmacovigilância e independentemente do procedimento de aprovação do medicamento. Novo comité esse que, através de um diverso modo de funcionamento e composição variável consoante as matérias, assegurasse efi ciência procedimental, nesta vertente da segurança, em que a celeridade pode salvar vidas, e permitisse alguma redução de custos de estrutura. Em última análise, esta redução de custos poderá contribuir para a melhoria do acesso aos medicamentos por parte dos cidadãos.

Constata-se também que, pelo menos a nível nacional, o sistema de farmacovigilância vigente não cumpre alguns dos requisitos mínimos defi nidos pela OMS. O sistema regista ainda um evidente problema de subnotifi cação de reacções adversas, pelo que importa adoptar novos mecanismos de incentivo à notifi cação.

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Capítulo II

Acidentes com operações de extracção de petróleo

João Verne Oliveira

Advogado

“Without ambition one starts nothing. Without work

one fi nishes nothing.

The prize will not be sent to you. You have to win it”

Ralph Waldo Emerson

Sumário: 0. Introdução: a corrida ao ouro... negro; 1. Evolução das actividades de pesquisa e produção de petróleo e gás offshore; 2. Plataformas petrolíferas; 3. Catástrofes: 3.1. Ixtoc-I; 3.2. Deepwater Horizon; 3.3. Montara; 4. Enquadramento jurídico: 4.1. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; 4.2. Código para a Construção e Operação de Unidades de Perfuração Offshore Móveis; 4.3. Convenção para a prevenção de Poluição de Navios; 4.4. Convenção Internacional sobre a Preparação, Intervenção e Cooperação em Caso de Poluição por Petróleo; 4.5. Directiva 2013/30/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Junho; 5. O

futuro das operações petrolíferas offshore.

0. Introdução: a corrida ao ouro... negro

Para a História da corrida ao ouro negro fi ca, desde logo, o dia 27 de Agosto de 1859. Nesse dia, em Titusville (EUA), após várias tentativas falhadas, Edwin Laurentine Drake (também conhecido como “Coronel Drake”, pese nunca ter tido nenhuma patente militar) conseguiu, fi nalmente, perfurar o primeiro poço de petróleo de sempre. A técnica utilizada por Edwin Drake foi desenvolvida a partir das técnicas de exploração das minas de sal e, grosso modo, consistia em abrir um furo batendo no solo com uma ferramenta suspensa da extremidade de um cabo, criando assim um “poço”. À medida que se ia aprofundando o “poço”, vários tubos iam sendo introduzidos

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por forma a evitar que entrasse àgua para dentro do “poço” e que o mesmo colapsasse. Quando a profundidade do “poço” atingiu os 21 metros, Edwin Drake atingiu um reservatório e começou a produzir cerca de dez barris de petróleo por dia.

Visto que nem Edwin Drake nem os seus colaboradores estavam preparados para armazenar “tanto” petróleo, foi necessário utilizarbarris de whiskey e até mesmo, reza a lenda, uma banheira, para não se desperdiçar o petróleo obtido... Este episódio constitui o momento seminal da exploração de hidrocarbonetos (petróleo e gás) pelo método de perfuração, e deu um forte contributo (talvez o maior) para a criação daquilo que pode ser chamado como a “indústria petrolífera moderna”. O poço de Edwin Drake, apesar de traduzir uma produção de apenas dez barris por dia, representou o marco tecnológico que permitiu o início da extracção de petróleo em escala industrial1.

Um segundo momento especialmente marcante ocorreu emOutubro de 1947, no Golfo do México. A empresa Kerr-MacGee Industries, na qualidade de operadora do Bloco 32 (Ship Shoal Block), perfurou o primeiro poço de petróleo “offshore”2, utilizando uma lâmina de àgua de cerca de 6 metros de profundidade, demonstrando assim a possibilidade de perfurar e extrair petróleo a partir de plataformas instaladas no mar3.

Finalmente, um terceiro momento por nós seleccionado para ilustrar esta evolução reside na descoberta de petróleo leve e gás natural no bloco BM-S-11–Tupi, na Bacia de Santos (São Paulo, Brasil), pela Petrobrás, em Julho de 2006. Este bloco revelou um

1 Daniel YERGIN, The Prize: The Epic Quest for Oil, Money and Power, Simon & Schuster, 1991, pp. 26-29.

2 Quando aplicada à indústria petrolífera, a palavra “offshore” compreende a prospecção, a perfuração e a exploração de jazigos de hidrocarbonetos situados ao largo da costa.

3 Clyde W. BURLESON, Deep Challenge: Our Quest for Energy Beneath the Sea: Our Quest for Energy, Gulf Professional Publishing, 1998, pp. 70-73.

enorme potencial de reservas e boas perspectivas de recuperação nos sedimentos situados abaixo de uma espessa camada de sal, região esta denominada pré-sal4.

Por forma a conseguir descobrir os indicios de hidrocarbonetos contidos em rochas localizadas no pré-sal, a Petrobrás recorreu a tecnologia de ponta como sistemas de vizualização 4D, ressonâncias sísmicas, tecnologia de controlo de temperatura no poço, aplicação de produtos para evitar a corrosão dos materiais utilizados em àguas ultra-profundas, entre outras inovações tecnológicas.Comparando os três momentos descritos, rapidamente se chegaà conclusão de que a tecnologia de exploração e produção dehidrocarbonetos sofreu decisivos avanços desde o método rudimentar utilizado pelo Coronel Edwin Drake até aos modernos métodos de exploração utilizados pela Petrobrás. Estes avanços tecnológicos permitiram, nomeadamente, que se deixasse de explorar e produzir petróleo e gás exclusivamente em terra fi rme e se avançasse para a exploração e produção offshore5.

A vertiginosa evolução tecnológica pode, no entanto, conduzir a que se descurem os factores externos (os quais, no caso das operaçõesoffshore incluem, naturalmente, algo tão volátil e imprevisível como a natureza), em nome de uma confi ança cega na última tecnologia disponível. Este excesso de confi ança, juntamente com um certo desconhecimento do ambiente em que se está a operar e com a

4 O termo “pré-sal” equivale a um conjunto de rochas localizadas em águas ultraprofundas, com potencial para a geração e acumulação de hidrocarbonetos. Convencionou-se chamar “pré-sal” a estas rochas uma vez que estas se encontram por baixo de uma extensa camada de sal, que pode atingir espessuras de até 2.000 metros. A profundidade total destas rochas, i.e. a distância entre a superfície do mar e os reservatórios de petróleo abaixo da camada de sal, pode chegar a mais de 7 mil metros – in www.petrobras.com.br.

5 A exploração e produção de petróleo e gás offshore representa, hoje em dia, aproximadamente, um terço da produção de petróleo mundial – in http://www.ogj.com/articles/print/volume-108/issue-41/exploration-development/deepwater-crude-oil-output-how-large.html.

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volatilidade inerente aos fenómenos naturais, pode gerar acidentes com dimensões catastrófi cas.

Com efeito, a exploração petrolífera offshore representa, por si só, um grande potencial de risco, o qual é apenas minimizável, nunca eliminável, pelo uso de tecnologia de ponta. Condições adversas, sistemas complexos, profundidades e pressões elevadas (toneladas de pressão por metro cúbico), baixas temperaturas, operações realizadas a uma grande distância e com recurso a tecnologia de ponta, um ambiente de trabalho sobre o qual ainda se conhece muito pouco, extracção de hidrocarbonetos voláteis e que se encontram sob pressão,são factores que contribuem para que os riscos da exploração offshore sejam muito elevados.

Considerando a perigosidade e a complexidade das operações offshore, se algo corre menos bem, o risco de uma catástrofe é muito grande. Em casos extremos, quando uma fuga de hidrocarbonetos descontrolada acontece, torna-se árduo, mesmo com recurso a tecnologia de ponta, conter esse fl uxo. Na verdade, e de acordo com a descrição de um executivo de topo da indústria petrolífera, efectuar reparações ou tentar travar o fl uxo descontrolado de hidrocarbonetos em poços offshore é equiparável a realizar “uma operação de coração aberto, no escuro, a 1500 metros de profundidade”6.

Quando um acidente deste tipo acontece, dada a natureza das próprias operações, o risco de uma catástrofe ambiental torna-se brutalmente real. Um fl uxo de hidrocarbonetos a jorrar descontroladamente representa um potencial destrutivo para o ambiente marinho que se refl ecte não só em danos para a fauna e fl ora marítima, como em danos para comunidades costeiras que vivam e retirem o seu sustentoeconómico do mar. Torna-se, assim, evidente a necessidade de exigir uma cultura de segurança e de reclamar um enquadramento legal

6 Mike SORAGHAN, Industry Claims of Proven Technology Went Unchallenged at MMS, disponivel em http://www.nytimes.com/gwire/2010/06/02/02greenwire-industry-claims-of-proven-technology-went-unch-55514.html?pagewanted=all.

que permita a realização de operações de exploração e produção petrolífera offshore de forma segura e que, ao mesmo tempo, crie mecanismos para responsabilizar as companhias que causem desastres ambientais resultantes de tais operações.

Apesar de existir, actualmente, um quadro jurídico internacional para lidar com as questões ligadas à exploração petrolífera offshore, existem ainda muitas questões por resolver. Vejamos.

1. Evolução das actividades de pesquisa e produção de petroléo e gás offshore

Em termos históricos, foi na década de 1890 que surgiram os primeiros poços offshore, no canal de Santa Barbara (Califórnia, EUA). Estes poços eram perfurados a partir de pontões que se estendiam a partir da costa. Em razão da falta de tecnologia disponível, estes poços não produziam mais de um a dois barris de petróleo por dia7.

Em 1911, a companhia Gulf Refi ning Co. perfurou o poço Ferry Lake nº 1, no lago Caddo, na Louisiana. A novidade na perfuração deste poço foi o abandono da técnica dos pontões e o início do uso de barcos e pilares fl utuantes. Assim que o poço começou a produzir acima de 450 barris de petróleo por dia, a Gulf Refi ning Co. decidiu construir plataformas semelhantes, uma vez que tinha provado que a exploração offshore poderia ser rentável de um ponto de vista económico8.

Dado o sucesso alcançado, durante as primeiras três décadas do século XX assistiu-se ao progressivo afastamento das margens costeiras e ao início da exploração offshore a partir de plataformas fi xas, especialmente no Louisiana, no Texas, e na Venezuela9.

7 Idem, nota 3, p. 429.8 American Oil & Gas Historical Society – Offshore Petroleum History,

disponível em http://aoghs.org/offshore-exploration/offshore-oil-history/.9 Idem.

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Na década de 1940 assistiu-se ao nascimento da moderna indústria petrolífera offshore. Para este momento, foi decisiva a descoberta de petróleo pela Kerr-Mcgee Industries, uma pequena empresa oriunda da região de Oklahoma, a partir do seu histórico bloco Ship Shoal 32.

A Kerr-Mcgee, pela sua dimensão, tinha algumas difi culdades em obter blocos onshore de relevo, vendo-os sistematicamente ser atribuídos a companhias de maior dimensão10. A fi m de garantir reservas de petróleo para a companhia, a Kerr-Mcgee decidiu investir na extracção offshore e tentar provar que era possível perfurar e produzir petróleo em áreas não visíveis a partir da costa.

Apesar de não ter sido a primeira empresa a dar início à exploração petrolífera no mar, a Kerr-Mcgee, utilizando uma inovadora plataforma construída pela Brown and Root Construction Company (“Kermac-16”), foi a primeira empresa a conseguir extrair petróleoa partir de uma plataforma verdadeiramente offshore. Para alcançar esta proeza, a Kerr-Mcgee recorreu a uma série de meios inovadores, incluindo uma plataforma especifi camente desenhada e construída para responder aos desafi os específi cos do Bloco 32, mostrando assim que a inovação tecnológica poderia, certamente, elevar as fronteiras da exploração petrolífera11.

Quando as actividades offshore passaram a ter lugar em águas mais profundas, foi necessário desenvolver plataformas especifi camentedesenhadas para o efeito. A primeira unidade de perfuração offshore móvel foi a “Mr. Charlie”, construída pela empresa Ocean Drilling and Exploration Co. (ODECO). A “Mr. Charlie” era uma plataforma submersível desenhada especifi camente para perfuração offshore em profundidades de cerca de 20 metros. Aquando da sua primeira operação, em 1954, a “Mr. Charlie” gerou tanta curiosidade que até a revista “Life” dedicou um artigo à exploração petrolífera offshore12.

10 Idem.11 Idem.12 Society of Petroleum Engineers – History of Offshore Drilling Units,

disponivel em http://petrowiki.org/History_of_offshore_drilling_units.

Relativamente a plataformas auto-eleváveis, a primeira a aparecer foi projectada por Leon B. Delong, com base numa ideia simples: segundo Delong, seria possível instalar cilindros à volta do perímetro exterior de uma espécie de “plataforma”, rebocar a “plataforma” até ao local de perfuração e aí deixar cair os tais cilindros até ao fundo do mar. Assim que os cilindros atingissem o fundo do mar, utilizando um sistema de elevação, erguia-se a “plataforma” acima do nível do mar. A Magnolia Petroleum decidiu, em 1950, instalar a primeira plataforma deste tipo, dando assim início à indústria das plataformas auto-eleváveis13.

O primeiro navio de perfuração offshore foi o CUSS 1, desenvolvido pelo consórcio de companhias Continental, Union, Shell e Superior Oil, em 1961. O CUSS 1, apesar de ser um navio, não tinha sistema de locomoção próprio e, como tal, tinha de ser rebocado por outros navios até ao local de perfuração. Este navio provou ser muito efi caz a perfurar a profundidades de sensivelmente 100 metros14.

Após estes avanços tecnológicos, nas décadas seguintes a exploração petrolífera offshore desenvolveu-se extraordinariamente tanto ao nível de profundidades, como ao nível de volumes de produção. Hoje em dia, existem cerca de 761 unidades offshore disponíveis (fi xas, auto-eleváveis, navios-sonda, semisubmersíveis), sendo que 611 estão actualmente em utilização. Segundo dados estatísticos, o Brasil, o Golfo do México e o Golfo Pérsico são as zonas do mundo nas quais, neste momento, mais plataformas offshore existem em operação15.

13 LEFFLER, PATTAROZZI, STERLING, Deepwater Petroleum Exploration & Production – A Nontechnical Guide, 2ª ed, PennWell Corporation, 2011, pp. 12-13.

14 Idem.15 Dados actualizados a 21 de Fevereiro de 2014 e disponibilizados pela RigZone,

disponíveis em http://www.rigzone.com/data/utilization_trends.asp.

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2. Plataformas petrolíferas

Tal como se vem explicando, para explorar e produzir petróleo e gás offshore, são necessárias plataformas que permitam perfurar, extrair, produzir e processar petróleo a partir do leito marítimo. Em termos muito gerais, independentemente do tipo de plataforma16, todas as plataformas offshore contêm os seguintes componentes: torre de perfuração, sistemas de elevação, equipamento de sondagem/perfuração/produção, suportes de tubagens, equipamento para lamas de perfuração, sistemas de protecção contra explosões (daqui em diante referido como Blowout Preventer = BOP) e sistemas de segurança17.

Apesar de partilharem estes componentes, nem todas as plataformas foram criadas para o mesmo efeito. Existem algumas plataformas que se limitam a pesquisar e perfurar determinados poços, dando depois lugar (no caso de uma descoberta bem sucedida) a uma plataforma de produção. A escolha do tipo de plataforma a utilizar dependerá, naturalmente, da lógica económica do projecto, da profundidade a que se está a perfurar e mesmo das condições climatéricas do local onde se está a efectuar a perfuração. As plataformas offshore podem, assim, ser divididas de acordo com a sua função, permanência e tipo.

Se qualifi camos uma plataforma quanto à sua função, existem plataformas de perfuração, de produção e mistas. Se a analisamos quanto à sua permanência, existem plataformas provisórias ou permanentes. Finalmente, se estivermos a dividir as plataformas por tipos, encontramos plataformas fi xas e plataformas fl utuantes18.

Uma breve descrição de cada tipo de plataforma e dos factores que normalmente determinam a sua escolha leva a concluir que, em termos genéricos, os principais tipos de plataformas existentes são: plataformas fi xas, plataformas auto-eleváveis, semissubmersíveis, navios-sondas, FPSO, TLP e Spars. Assim:

16 Ver infra, neste mesmo ponto do texto, os tipos de plataforma existentes.17 Idem, nota 16, p. 99.18 Idem, nota 16, pp. 151-212.

i. Plataformas fixas: equipamentos (normalmente quadrangulares) que se elevam acima da superfície do mar, agarradas ao leito marinho através de uma estrutura de metal (comummente designado de “Jacket”, fi xa através de fi xadores), ou de betão (fi xada ao leito marinho apenas pelo uso do seu próprio peso). Estas estruturas (metalou betão) são a base que suporta a plataforma onde se encontra toda a maquinaria de perfuração e funcionam como “canal” por ondepassam todas as tubagens que ligam a plataforma ao leito marinho19. Este tipo de plataformas, por força do seu carácter fi xo, oferece umelevado grau de estabilidade mas pouca ou nenhuma mobilidade. Por essa razão, as plataformas fi xas são normalmente utilizadas em águas rasas, com uma profundidade máxima de cerca de 500 metros20. Estas plataformas são projectadas para a perfuração e produção de petróleo, não sendo possível, em regra, o armazenamento – por isso, a existência de embarcações que procedam ao descarregamento e armazenamento do petróleo produzido se torna indispensável.

ii. Plataformas auto-eleváveis (jack-up rigs): para profundidades menores, de cerca de 130 metros, são por norma utlizadas aquilo a que se convencionou chamar “plataformas auto-eleváveis”. Estasplataformas são constituídas por uma estrutura fl utuante (que é, normalmente, rebocada por barcos rebocadores até à localização pretendida) que depois desce a sua estrutura de apoio até ao leito marítimo e se eleva acima da superfície do mar. Este tipo de plataformas é utilizado, tipicamente, na perfuração de poços exploratórios e o facto de se elevar acima do nivel do mar confere uma maior protecção contra a acção das ondas21.

19 Idem, nota 16, pp. 151-153.20 http://maritime-connector.com/wiki/platforms/21 http://www.petrobras.com.br/pt/quem-somos/perfi l/atividades/exploracao-

producao-petroleo-gas/.

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iii. Plataformas semi-submersíveis: Este tipo específi co de plataformas é construído sobre fl utuadores que submergem, permitindo que a plataforma de perfuração se mantenha acima da superfície do mar. Estas plataformas, porque não estão assentes no leito marítimo, oferecem grande mobilidade.

Porém, precisamente por não estarem fi xadas ao leito marítimo, foi necessário desenvolver dois sistemas para garantir que estas plataformas não estão demasiado sujeitas a correntes marítimas, ondas ou ventos, que as possam desviar do local de perfuração. Os dois sistemas desenvolvidos foram o sistema de ancoragem e o sistema de posicionamento dinâmico.

O sistema de ancoragem é composto por 8 a 12 âncoras que contribuem para que a plataforma volte à sua posição inicial quando, por algum dos motivos mencionados acima, se desvie da sua localização original.22 Já o sistema de posicionamento dinâmico é composto por sinais geo-sincronizados que enviam dados de localização, em tempo real, para uma série de computadores que controlam a acção de propulsores. Estes propulsores mantêm a plataforma no mesmo local, compensando os factores que estejam a desviar a plataforma da sua localização original23.

Este tipo de plataforma pode perfurar, actualmente, em profundidades de cerca de 3.000 metros24.

iv. Navios-sonda: são tipicamente embarcações adaptadas à perfuração submarina. Estas embarcações possuem uma torre de perfuração e uma abertura no convés por onde passa toda a tubagem de perfuração. Em termos de funcionamento, os navios-sonda não são muito diferentes das plataformas semi-submersíveis, utilizando

22 Idem, nota16, pp. 105-106.23 Idem, nota 24.24 Idem, nota 16, p. 106.

sistemas de posicionamento dinâmico para se manterem na localização correcta (embora ofereçam maior mobilidade, dado tratar-se, basicamente, de navios adaptados). Para dar apenas um exemplo da sua enorme mobilidade, um navio sonda necessita de cerca de 20 dias para se deslocar do Golfo do México até ao offshore de Angola; por seu turno, uma plataforma semi-submersível, para fazer o mesmo trajecto necessita de cerca de 70 dias25.

Estes navios, hoje em dia, são normalmente utilizados em profundidades de até 3600 metros26.

v. FPSO (Floating Production Storage Offloading): As FPSO são, fundamentalmente, embarcações capazes de produzir, armazenar e transferir petróleo para navios petroleiros que depois carregam o petróleo e o levam até ao seu destino. Estas plataformas são utilizadas em águas profundas e ultra-profundas e são utilizadas para produzir petróleo a partir de vários poços e campos ao mesmo tempo. Este tipo de plataforma utiliza sistemas de amarração para se manter estável e na localização correcta27.

As FPSO são utilizadas devido à sua grande capacidade de produção e armazenamento de petróleo28, podendo actuar em profundidades de até cerca de 2.000 metros.

Tipicamente, este tipo de plataformas não é utilizado para a perfuração de poços submarinos, sendo mais indicado para a produção e armazenamento de petróleo e gás. Porém, existem algumas derivações de FPSO, tais como:

25 Idem, nota16, pp.107-108.26 Idem, nota 16, p. 108.27 Idem, nota 16, pp. 190-197.28 As maiores FPSO têm capacidade para produzir cerca de 200.000 barris de

petróleo por dia e armazenar cerca de 2 milhões de barris.

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• Floating Drilling Production Storage and Offl oading (FDPSO): estes equipamentos viabilizam, além das funções tradicionais das FPSO, perfurar poços no leito marinho e oferecem uma capacidade de produção de cerca de 40.000 barris de petróleo por dia29;

• Floating Storage and Offl oading Units (FSO): este equipamento apenas armazena petróleo e é utilizado juntamente com uma plataforma de produção, em casos onde não haja um sistema de tubagens que permita transportar o petróleo da plataforma de produção até ao seu destino fi nal30;

• Floating Production System (FPS): trata-se de uma variação de FPSO que simplesmente produz petróleo a partir de poços localizados no leito marítimo e transfere esse petróleo a partir de sistemas de tubangens ou através do recurso a um FSO31;

vi. TLP – Tension Leg Platform: este tipo de plataforma é bastantesemelhante às plataformas semi-submersíveis, embora o tipo de ancoragem seja muito diferente. Em termos muito gerais, este equipamento utiliza uma estrutura tubular (“Tension Legs”) que está ligada a cada canto da plataforma e que fi xa a mesma ao leito marítimo. Este tipo de estrutura mantém-se sempre rígido, impedindofl utuações na própria plataforma32. Trata-se de uma opção muitopopular entre as companhias petrolíferas, uma vez que garante muitaestabilidade e pode operar em profundidades de cerca de 1.500 metros33.

29 Idem, nota 16, p. 198.30 Idem, nota 16, p. 199.31 Idem. 32 Idem, nota 16, pp. 182-183.33 Idem.

vii. SPAR: este tipo de plataforma utiliza uma enorme estrutura cilíndrica (que pode chegar aos 240 metros de comprimento e aos 45 metros de diâmetro), a qual suporta uma plataforma de produção/perfuração acima da superfície do mar.

Esta plataforma, dado ser suportada por uma estrutura cilíndrica, fl utua quase como um “iceberg” no mar. Este equipamento é muito utilizado em operações em águas profundas, uma vez que a estrutura cilíndrica que suporta a plataforma protege toda a tubagem de perfuração e produção que liga a plataforma (acima da superfície do mar) à boca do poço (localizada no leito marítimo). Uma das características mais interessantes, e um dos seus sinais distintivos, são as enormes “espirais” que circulam a estrutura cilíndrica (em espiral descendente) e que actuam como proteção contra correntes34.

As plataformas SPAR podem ser utilizadas em profundidades de cerca de 1.000 metros embora, hoje em dia, a tecnologia já permita utilizá-las a profundidades de cerca de 3.000 metros35.

3. Catástrofes – “Complex systems almost always fail in complex ways”36

Atentas à complexidade das operações de extracção de petróleo e ao alto risco envolvido, por um lado, e considerando que o retorno de uma operação bem-sucedida pode ser muito elevado, por outro lado, as companhias petrolíferas investem somas avultadíssimas na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de ponta para conseguirem, de forma razoavelmente segura, encontrar hidrocarbonetos offshore. Porém, apesar dos elevados investimentos em tecnologia, as

34 Idem, nota16, pp. 200-201.35 http://www.mnn.com/earth-matters/energy/stories/types-of-offshore-oil-rigs.36 Relatório da comissão investigativa do acidente com o vaivém Columbia,

disponivel em http://spacefl ightnow.com/columbia/report/006boardstatement.html.

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companhias petrolíferas não podem descurar os elevados custos económicos de cada projecto e a pressão exercida para que a viabilidade económica deste seja alcançada.

Este “balanceamento” entre a lógica económica do projecto (i.e. custos vs. recompensa) e os riscos associados à própria actividade acaba por, muitas vezes, infl uenciar o resultado fi nal da exploração e levar, em alguns casos, a resultados catastrófi cos. Por forma a ilustrar este “balanceamento”, passamos a descrever três casos em que uma menor atenção dada aos riscos associados ao projecto conduziu a resultados catastrófi cos.

3.1. Ixtoc I (1979, Golfo do México)

Ixtoc I era o nome de um poço exploratório que estava a ser perfurado por uma sonda semi-submersível (baptizada com o nome Sedco 135-F) na baía da Campeche, no Golfo do México, em águas de cerca de 50 metros de profundidade. A 3 de Junho de 1979, o poço sofreu uma explosão que resultou num dos maiores derrames de petróleo da história. A companhia a quem o poço exploratório pertencia era a companhia estatal do México37.

De acordo com os métodos modernos, enquanto se procede à perfuração de um poço (utilizando, normalmente, técnicas de perfuração rotativa) introduzem-se lamas de perfuração no tubo de perfuração para que estas lamas circulem a toda a extensão do tubo de perfuração e voltem à superfície, sendo depois “limpas” e re-injectadas, procedimento ao qual se dá o nome de “sistema circular”38. O objectivo desta circulação é: i) igualar a pressão contrária

37 http://www.eoearth.org/view/article/157319/.38 Norman J. HYNE, Petroleum Geology, Exploration, Drilling, and

Production, 2ª ed., PennWell Corporation, 2001, pp. 262-266.

exercida pela geologia do poço39; ii) verifi car se a lama que volta à superfície tem vestígios de hidrocarbonetos; e, iii) trazer até à superfície os pedaços de rocha que se vão libertando pela acção da broca e que, de outra maneira, poderiam entupir o poço e impedir a broca de perfurar40. No caso da “Ixtoc I”, devido a uma falha neste procedimento de circulação, os hidrocarbonetos conseguiram escapar do poço, incendiando e destruindo por completo a sonda.

Aquando do acidente, a Sedco 135-F encontrava-se a perfurar a uma elevada profundidade e, segundo os relatórios técnicos, a broca de perfuração atingiu uma camada de rochas porosas, o que resultou numa perda de pressão hidroestática. Esta perda de pressão resultou na fuga das lamas de perfuração para fracturas existentes na camada de rochas porosas, o que fez com que as lamas não voltassem superfície. Apercebendo-se deste facto, a operadora da sonda (juntamente com a companhia estatal do México) tomaram a decisão de remover a broca de perfuração, voltar a colocar o tubo de perfuração no poço e injectar materiais selantes como forma de selar as fracturas que estavam a causar a perda da circulação41.

Enquanto ambas as companhias discutiam o que fazer, a pressão dentro do poço foi-se acumulando devido à entrada de hidrocarbonetos e, em consequência, as lamas de perfuração iniciaram um fl uxo

39 No fundo de um poço que esteja a ser perfurado, existem dois tipos de pressão. O primeiro tipo de pressão é a pressão dos fl uidos que se encontram nos poros da formação rochosa (pressão do reservatório) e que exercem pressão para que estes mesmos fl uidos (normalmente hidrocarbonetos e água) entrem para dentro do “poço” e subam até à superfície descontroladamente. A segunda pressão é a pressão exercida pelas lamas de perfuração para conter o fl uxo de hidrocarbonetos e não deixar que os mesmos entrem dentro do poço. Conforme se depreende, é necessário um cuidado extremo para balancear a quantidade de pressão exercida pelas lamas de perfuração e a pressão exercida pelo reservatório. Caso a pressão exercida pelas lamas de perfuração não seja sufi ciente, pode dar-se o caso de os hidrocarbonetos/água fl uirem para dentro do poço. Caso a pressão seja demasiada, pode ocorrer um desabamento que pode levar à perda do próprio poço.

40 Norman J. HYNE, Petroleum Geology..., cit., pp. 266-267, nota 42.41 https://sites.google.com/a/asu.edu/ixtoc-oil-spill/home/causes.

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ascendente no sentido da superfície. Normalmente, esta ascensão de hidrocarbonetos é travada pela activação de um BOP. Ao activar oBOP, enormes lâminas selantes cortam todos os cabos e tubagens ligadas à plataforma, selando assim o poço. Porém, neste caso, as tubagens cruzaram-se, devido à acção ascendente das lamas de perfuração, e aslâminas do BOP não foram capazes de as cortar – o que impediu que se conseguisse selar o poço antes de os hidrocarbonetos conseguirem escapar42. Esta fuga produziu a explosão e incêndio dos motores da sonda43.

Após a explosão, foram iniciados os procedimentos para “fechar” o poço. Porém, com a sonda a arder e a colapsar, não foi possível pôr em prática todas as medidas reactivas disponíveis. Durante os nove meses que mediaram a explosão e o fecho do poço, vários métodos foram experimentados, sendo que a maior parte deles apenas contribuiu para diminuir o fl uxo de petróleo derramado. Salienta-se que, logo após a explosão, o poço começou a derramar cerca de 30 mil barris de petróleo por dia. Passado um mês, com a injecção de lamas directamente no poço, foi possível baixar o derrame para 20 mil barris por dia, tendo-se subsequentemente reduzido esse número para 10 mil quando se injectaram outros materiais, tais como ferro e aço, para dentro do poço.

Apenas após nove longos meses foi possível fechar completamente o poço, acabando assim com um dos maiores derrames de petróleo da história da indústria44.

42 Idem.43 Idem.44 Idem.

3.2. Deepwater Horizon (2010, Golfo do México)

A 20 de Abril de 2010, uma explosão na sonda “Deepwater Horizon” ceifou a vida a onze trabalhadores e deu início a um derramamento de petróleo que durou cerca de 87 dias (até à contenção do derrame) e derramou cerca de 4,9 milhões de barris de petróleo no Golfo do México45.

Para perceber este acidente, é importante integrar o contexto em que se realizavam as operações petrolíferas no Golfo do México. Entre 2001 e 2010, registaram-se cerca de 948 explosões, 60 mortes e cerca de 1.550 acidentes com trabalhadores reportados em plataformas offshore a operar no Golfo do México46. Estes números indicam que a exploração petrolífera offshore é uma actividade inerentemente perigosa, que reeclama medidas de segurança apertadas.

Em Abril de 2010, a sonda Deepwater Horizon encontrava-se a trabalhar no bloco 252, com cerca de 126 trabalhadores a bordo. Encontrava-se em fase fi nal de perfuração de um novo poço (ao qual tinha sido atribuído o nome de “Macondo”) e preparava-se para dar início aos procedimentos de “abandono temporário”47 do poço48. Porém, antes de dar início a estes procedimentos, seria necessário, entre outras coisas, realizar um teste de pressão positiva

45 Relatório elaborado a pedido do Presidente dos Estados Unidos da América pela “National Commission on the BP Deepwater Horizon Oil Spill and Offshore Drilling”, disponível em http://www.gpo.gov/fdsys/pkg/GPO-OILCOMMISSION/content-detail.html.

46 Idem, p. 3 (números contabilizados antes do acidente com a plataforma Deepwater Horizon).

47 A expressão “abandono temporário” refere-se aos procedimentos que são efectuados, após a conclusão, com sucesso, da perfuração de um determinado poço, consistindo em estabilizar e fechar o poço (temporariamente) até que uma plataforma de produção possa ser trazida para o mesmo local, substituindo a sonda de perfuração existente no local com o intuito de dar início à extracção de hidrocarbonetos nesse mesmo poço.

48 Idem, nota 49, p. 4.

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e um teste de pressão negativa, como forma de garantir que o poço estava selado, que se encontrava estanque, e imune à entrada indesejada de hidrocarbonetos dentro do poço49.

De acordo com um relatório técnico preparado a pedido do Presidente dos Estados Unidos, ambos os testes foram levados a cabo a bordo da Deepwater Horizon, mas a equipa que estava a realizar os referidos testes apenas conseguiu resultados satisfatórios no teste de pressão positiva. Nos termos do mesmo relatório técnico, o teste de pressão negativa apresentou resultados negativos. Normalmente,estes resultados negativos seriam interpretados como sendo um sinal de que o poço não estava completamente isolado e, como tal, não estava pronto para ser temporariamente abandonado. Porém, neste caso, estes resultados foram interpretados como sendo resultantes da pressão exercida por tubagens auxiliares, dando assim aso a um erro na leitura da pressão.

Após confi rmação de que ambos os testes teriam sido considerados positivos, a equipa a bordo da Deepwater Horizon iniciou os trabalhos de substituição da lama de perfuração por água do mar, aliviando assim a pressão sobre os hidrocarbonetos que estavam a fl uir para dentro do poço. Ao aliviar esta pressão, os hidrocarbonetos gasosos

49 O teste de pressão positiva pode ser descrito, em termos gerais como a “injecção” de pressão para dentro do poço e o subsequente fecho do mesmo. Caso a pressão se mantenha estável, isso signifi ca que o poço manteve a sua integridade, não permitindo fugas, e que está selado e homogéneo. Relativamente ao teste de pressão negativa, o mesmo pode ser descrito como a redução de pressão dentro do poço (basicamente, retira-se pressão dentro do poço e, em seguida, monitoriza-se o poço por forma a verifi car se existe algum aumento de pressão ou se existem fl uídos que estejam a entrar para dentro daquele).

Caso haja um aumento de pressão ou se estiverem a entrar fl uídos (hidrocarbonetos ou outros) para dentro do poço, signifi ca que a integridade do poço está comprometida. Normalmente, se falhar o resultado do teste de pressão negativa, tal signifi ca que algures entre o poço e o cimento existem algumas falhas que estão a permitir a entrada indesejada de hidrocarbonetos. Na hipótese de algum destes testes falhar, torna-se necessário proceder a trabalhos adicionais para conseguir isolar completamente o poço.

que começavam a entrar dentro do poço (como já indicava o teste de pressão negativa inicial) expandiram-se e subiram a uma velocidade cada vez maior. À medida que o gás se foi expandindo, foi empurrandoos fl uidos de perfuração num sentido ascendente cada vez maisdepressa, o que resultou num embate violento na sonda e a consequente explosão. Esta explosão foi depois alimentada pelo petróleo que começa a fl uir, tornando-se muito difícil conter as chamas subsequentes. Fundamentalmente, a isto se resumiu o acidente com a Deepwater Horizon.

Tipicamente, quando existe uma fuga descontrolada de hidro-carbonetos, a tripulação da sonda, tal como referido no caso “Ixtoc-I”, activa o BOP. No caso da Deepwater Horizon, o BOP não funcionou, existindo algumas teorias sobre essa falha. A tese que parece recolher maior consenso é a de que, à altura da activação do BOP, o fl uxo de hidrocarbonetos já era demasiado grande para se conseguisse selar totalmente o poço e que, para além disso, a explosão inicial já teria danifi cado os sistemas de emergência do BOP – donde, o sistema informático do BOP não terá podido ser activado.

Em termos gerais, segundo o relatório ofi cial, as causas apontadas para o desastre resumem-se a: (i) um trabalho de cimentação do poço defi ciente; (ii) a pouca relevância dada aos resultados do teste de pressão negativa; (iii) procedimentos de abandono temporário que não levaram em conta as especifi cidades do poço; (iv) a não detecção atempada da explosão eminente; e, (v) não activação do BOP50.

Todos estes factores contribuíram para o desastre da Deepwater Horizon. Por aqui se vê que os processos tecnológicos empregues na perfuração offshore não são totalmente imunes a problemas e apresentam falhas que, conjugadas com condições adversas, podem gerar resultados catastrófi cos.

50 Idem, nota 49, pp. 115-122.

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3.3. Montara (2009, Timor-Leste)

A 21 de Agosto de 2009, uma plataforma a operar no mar de Timor-Leste, no poço H1, sofreu uma explosão e, em consequência, derramou uma grande quantidade de petróleo e gás no mar de Timor (a aproximadamente 250 quilómetros da costa australiana). A comissão de investigação concluiu que, durante um período de 74 dias, o fl uxo de petróleo derramado situava-se entre os 400 e os 1.500 barris de petróleo por dia, perfazendo no total cerca de 30.000 barris de petróleo derramados51. Felizmente, ao contrário do que tantas vezes acontece, não houve nenhuma morte associada a este acidente.

A investigação das causas do acidente levada a cabo pelas autoridades competentes aponta para que a explosão tenha sido causada pela fuga descontrolada de hidrocarbonetos que começaram a sua ascensão até à plataforma, tendo-se incendiado aquando do embate contra esta. O poço foi selado a 3 de Novembro de 2009, através da injecção de “lamas pesadas” que empurraram os hidrocarbonetos que estavam a jorrar do poço de volta para o reservatório52.

O relatório ofi cial publicado pela comissão de inquérito denunciou as principais causas do desastre: a falha na instalação de alguns componentes no poço, bem como a instalação de alguns componentes que não seriam os mais adequados às características do poço. Sintomáticoé que as próprias barreiras de segurança instaladas no poço não cumpriam as normas mínimas de segurança de construção da companhia53. Assim, de acordo com o relatório ofi cial, estes factores terão contribuído para um trabalho de cimentação defi ciente, facilitando a entrada indesejada de hidrocarbonetos no poço antes do tempo54.

51 Phil HART, Montara Oil Spill: “A failure of sensible oilfi eld practice”, disponível em http://www.theoildrum.com/node/7193.

52 Idem.53 Idem.54 Idem.

Em suma, o relatório ofi cial revela que o acidente se deveu, essencialmente, a não terem sido seguidas regras de segurança básicas e essenciais aquando da realização das operações offshore55. Da leitura do relatório ofi cial resulta, de facto e de forma evidente, que caso os procedimentos de segurança tivessem sido levados a cabo diligentemente, o desastre teria sido evitado. Como exemplo, o relatório ofi cial refere que a companhia não seguiu as directizes contidas nos documentos que submeteu a aprovação por parte das autoridades a fi m de obter o licenciamento das operações offshore naquela determinada zona do mar de Timor-Leste.

4. Enquadramento jurídico

Conforme facilmente se apreende, as questões jurídicas que emergem da exploração petrolífera offshore são, naturalmente, muito complexas. Desde logo em razão da possibilidade, muitas vezes real, de um acidente resultar num derrame de petróleo e gás que pode afectar águas territoriais de mais do que um estado soberano. Depois, em virtude da complexidade e especifi cidade da própria indústria, é necessário encontrar mecanismos legais que, por um lado, enquadrem fi rmemente as operações petrolíferas offshore e, por outro lado, não tornem o quadro jurídico demasiado pesado e difícil de harmonizar com o direito nacional dos Estados onde decorram estas operações.

Conforme melhor se detalha em seguida, não existe um“regulamento” mundial que englobe todas as operações petrolíferas offshore. O que temos resume-se a uma série de instrumentos jurídicos os quais, em conjunto com o direito nacional de cada Estado, tentam enquadrar da melhor forma as questões jurídicas relacionadas com o licenciamento e funcionamento destas operações, bem como

55 Idem.

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respeitantes à responsabilidade por danos ambientais em caso de acidente.

Poder-se-á legitimamente perguntar porque não existe um enquadramento global para todas estas questões. Uma das respostas poderá ser a de que a indústria petrolífera offshore é, em bom rigor, apenas responsável por cerca de dois por cento da poluição marítima56. Outra hipótese reside na difi culdade de elaboração de um “regime” comum, visto que a exploração petrolífera offshore depende muito das condições do local onde se está a operar, com grande diversidade de factores naturais condicionantes.

Na nossa opinião, a existir uma resposta correcta, será a segunda. Esta tese poderá ser corroborada pelo facto de que existe um conjunto de tratados regionais57 que se aplicam a regiões tão distintas como o Atlântico Norte ou o Mediterrâneo. Na verdade, apesar da ausência de um “regime” comum a todas as operações petrolíferas offshore, podemos identifi car diversos instrumentos internacionais que, a par das legislações nacionais, fornecem a base legal para a realização de actividades de pesquisa e produção de petróleo e gás offshore.

4.1. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar58

Como se sabe, a primeira Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (referida habitualmente pela sigla inglesa “UNCLOS I”), deu azo à celebração de quatro tratados diferentes: a Convenção da Plataforma Continental, a Convenção da Pesca e Conservação dos

56 Mikhail KASHUBSKY, Marine Pollution from the Offshore Oil and Gas Industry: Review of Major Conventions and Russian Law, 2006, disponível em http://newcustomscentre.fi les.wordpress.com/2012/09/marine_pollution_part1.pdf.

57 Tais como a Convenção OSPAR, a Convenção de Barcelona, a Convenção de Helsinquia, entre outras.

58 Disponível em http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf.

Recursos Biológicos de Alto-mar, a Convenção sobre o Mar Territorial e Zonas Contíguas, e a Convenção do Alto-mar.

A segunda Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS II), foi assinada em 1960, em Genebra, não tendo sido especialmente relevante na evolução do Direito do Mar. Porém, em 1967, após uma conferência da Assembleia Geral da ONU, este mesmo órgão criou um grupo de estudo para tratar das questões de Direito do Mar, reconhecendo que, até à data, pouco havia sido feito nesse domínio.

A terceira Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS III) foi decisiva para fi xar o quadro jurídico aplicável às actividades desenvolvidas no mar. A Convenção foi assinada a 10 de Dezembro de 1982, em Montego Bay, na Jamaica, tendo entrado em vigor (de acordo com o seu artigo 308º) no dia 16 de Novembrode 1994, após um ano decorrido sobre a sua ratifi cação pelo sexagésimo Estado (Guiana). No entanto, até àquela data, vários países industrializados (tais como o Canadá, EUA, Federação Russa, França, Holanda, Itália, Japão, Noruega, Reino Unido e Suécia) não haviam ratifi cado a Convenção, uma vez que discordavam das medidas nela previstas relativas à exploração de recursos naturais marinhos.

Por forma a ultrapassar este estado de coisas, foi ratifi cado um Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da mesma Convenção, que “visava corrigir certos defeitos na Convenção por forma a permitir que os Estados Unidos e outras nações industrializadas se tornassem signatários da UNCLOS”59. Caso singular é o dos Estados Unidos que, ressalvada a Parte XI, não ratifi caram a Convenção mas reconhecem-na como fazendo parte da Lei Costumeira internacional60.

59 Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da Convenção.60 Yee HUANG, International Law Implications of the BP Oil Spill, CENTRE

FOR PROGRESSIVE REFORM (June 8, 2010), http://www.cprblog.org/CPRBlog.cfm?idBlog=FBF393AA-EE0A-FF0C-695B9BA163B50BDB.

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Antes do surgimento das várias Convenções, os Estados costeiros desejavam estender a sua jurisdição territorial para além do limite de três milhas internacionalmente aceite por forma a poder, entre outras coisas, explorar hidrocarbonetos e outros minerais contidos no leito marinho, regular questões relativas a poluição marinha, bem como defender a sua soberania nacional61. Sob a égide da UNCLOS, o mar foi dividido por zonas, cada uma sujeita a um regime legal diferente, tendo sido defi nido que o mar territorial de um Estado se estende por 12 milhas marítimas a contar a partir da linha de costa desse mesmo estado. Após o limite do mar territorial, existe ainda a zona contígua, que se estende por 24 milhas marítimas contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial.

Dentro do mar territorial, os Estados exercem um controlo forte, de carácter soberano, por forma a prevenir a infracção das suas leis e regulamentos aduaneiros, fi scais, de imigração ou sanitários.

Já na plataforma continental, os Estados têm “direitos de soberania (...) para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursosnaturais”62. Caso os Estados decidam não explorar os recursos naturais aí presentes, nenhum outro Estado ou entidade os pode desenvolver sem o expresso consentimento do Estado a quem pertença a plataforma continental63.

Um outro conceito criado pela UNCLOS foi o de Zona Económica Exclusiva (“ZEE”). A ZEE é uma zona situada além do mar territorial e a este adjacente, sujeita a um regime jurídico específi co que concede aos Estados direitos de jurisdição para fi ns de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais que se encontram no mar ou no seu subsolo. A ZEE estende-se por 200

61 Scott J. SHACKELFORD, Was Selden Right?: The Expansion of Closed Seas and Its Consequences, 47 STAN. J. INT’L L. 1, 7 (2011).

62 Artigo 77 (1) da UNCLOS.63 Artigo 77 (2) da UNCLOS.

milhas marítimas contadas a partir das linhas de base que defi nem a largura do mar territorial. A maior parte da exploração de petróleo e gás offshore acontece na ZEE de cada Estado, no leito marítimo da zona continental e no seu subsolo64. Assim que um Estado reclama a sua ZEE pode, naturalmente, licenciar a utilização de plataformas de exploração petrolífera offshore aí incluidas65.

Porém, apesar da sua importância, a UNCLOS não regula, especifi camente, as actividades de exploração petrolífera offshore,referindo apenas princípios que impõem obrigações genéricas aos Estados. Entre estas obrigações, podemos encontrar normas que impõem aos Estados a regulação da construção de plataformas offshore, bem como o enquadramento legal de questões relacionadas com a limpeza e prevenção de poluição que advenha de actividades offshore – embora não sugerindo quaisquer normas “técnicas” para a execução destas mesmas obrigações (vide, por exemplo, o artigo 208º/1 da UNCLOS).

4.2. Código para a Construção e Operação de Unidades de Perfuração Offshore Móveis66

A Organização Marítima Internacional (“IMO”) é uma agência especializada das Nações Unidas com competência relativamente à adopção de regras internacionais de navegação e de standards de segurança marítima, bem como quanto à prevenção e controlo de poluição marítima por parte de navios67. No exercício das suas

64 Eric A. POSNER & Alan O. SYKES, Economic Foundations of the Law of the Sea, 104 AM. J. INT’L L. 569, 585 (2010).

65 Idem.66 Disponível em http://www.uscg.mil/imo/de/docs/de52-report-add-1.pdf.67 Agustín BLANCO-BAZÁN, IMO interface with the Law of the Sea

Convention, 2000, Artigo dísponivel em http://www.imo.org/blast/mainframe.asp? topic_id=406&doc_id=1077.

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competências, a IMO criou o Código para a Construção e Operação de Unidades de Perfuração Offshore Móveis (CMODU)68.

O intuito do CMODU, de acordo com o artigo 1º, é o de:

“(...) recomendar critérios de design, standards de construção e outras medidas de segurança para unidade de perfuração offshore móveis por forma a minimizar o risco para essas mesmas unidades bem como para as tripulações dessas mesmas unidades e para o ambiente.”

Considerando o propósito do CMODU, é evidente que este documento não fornece “standards de segurança para a exploração petrolífera offshore”, mas sim “standards de segurança para a construção e operação das unidades de perfuração móveis”. Apesar de o CMODU não estar focado em standards de segurança para aexploração petrolífera offshore, o facto de se encontrarem codifi cados standards e directrizes para a construção de unidades de perfuração móveis acaba por conferir uma segurança adicional às operações offshore. Analisemos três exemplos:

“2.16. Drenagem e controlo de sedimentos

Todos os tanques de lastro e sistemas de tubagens devem ser projectados por forma a facilitar uma efectiva drenagem e remoção de sedimentos. Revestimentos que possam facilitar ou reter sedimentos ou outros organismos aquáticos nocivos devem ser evitados”.

“4.14. Sistemas de elevação para unidade auto-eleváveis

Maquinaria.

68 http://www.safety4sea.com/images/media/pdf/A.1023(26)%20MODU%2Code.pdf.

4.14.1. Sistemas auto-eleváveis devem ser:

1. Projectados de forma a que uma falha em qualquer dos componentes não cause uma queda descontrolada da unidade;

2. Projectados e construidos de acordo com as cargas máximas de subida e descida da unidade tal como especifi cado no livro de operações da unidade e de acordo com o Artigo 14.1.2.8;

(...)4. Construidas por forma a que a elevação da estrutura de apoio

possa ser mantida em segurança em caso de falha de energia (e.g., falha de energia eléctrica, hidráulica ou pneumática”.

“14.5. Prevenção de poluição

“Deverá ter-se em atenção que a construção da unidade deverá ser tal que a mesma cumpra com os requerimentos de convenções internacionais aplicáveis”.

Conforme se depreende dos exemplos acima explicitados, o CMODU fornece algumas linhas orientadoras que, sendo seguidas, acabarão por se refl ectir numa maior segurança das operações de exploração petrolífera offshore. Com efeito, o CMODU tenta garantir que as instalações sejam construídas observando critérios de efi ciência técnica e de segurança com vista a evitar desastres tecnológicos. Reitera-se que, embora inexista no CMODU uma previsão especifi camente direccionada à segurança de operações de exploração petrolífera offshore, ao criar uma base de regras gerais para a segurança na construção de plataformas de exploração, o CMODU tornou-se, afi nal, um importante documento no combate a desastres em plataformas offshore.

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4.3. Convenção para a prevenção de Poluição de Navios69

A Convenção Internacional para a prevenção de poluição por navios (“MARPOL 73/78”) regula as descargas de substâncias perigosas no meio ambiente geradas por operações de navios70. Em termos de importância, a MARPOL 73/78 é, provavelmente, a Convenção mais relevante no que concerne à prevenção da poluição marinha causada por acidentes ou normal operação de navios.

Apesar de, aparentemente, a Convenção não regular as operações offshore, a defi nição de “navio” da MARPOL 73/78 inclui plataformas de perfuração offshore quer sejam “fi xas ou fl utuantes”71. Porém, apesar de incluir “plataformas offshore” na sua defi nição de navio,a defi nição de “descarga” contida na MARPOL 73/78 exclui a “descarga de substâncias perigosas resultantes da pesquisa,exploração e quaisquer outras actividades offshore associadas com o processamento de recursos minerais que se encontrem no leito marítmo”72. Parece, assim, existir alguma contradição entre o âmbito de “descarga”, tal como defi nido pela MARPOL, e a inclusão de plataformas offshore na defi nição do conceito de “navio”. Veja-se que, de acordo com o Anexo I da MARPOL 73/78, plataformas offshore, quer sejam fi xas ou fl utuantes, não podem efectuar descargas de petróleo ou substâncias que contenham petróleo no mar a não ser “quando o petróleo contido na descarga, sem diluição, não exceda as 15 partes por milhão”73.

De acordo com as Interpretações Unifi cadas da MARPOL (que vieram clarifi car o âmbito e os limites da aplicação da Convenção no caso de poluição a partir de plataformas offshore), das quatrocategorias de descarga possíveis que resultam de operações de pesquisa,

69 Disponível em http://library.arcticportal.org/1699/.70 Artigo 1º da MARPOL.71 Artigo 2º (4) da MARPOL72 Artigo 2º (3) (ii) da MARPOL.73 Anexo I, artigo 9º (4) da MARPOL.

prospecção e exploração de petróleo e gás a partir de plataformas offshore – a saber, “drenagem de espaçamento de máquinas”, “drenagem de plataformas offshore”, “descargas de águas produzidas” e ”drenagem de águas de espaçamento” –, o Anexo I apenas se aplica a “drenagem de espaçamento de máquinas”.

Resulta, assim, das Interpretações Unifi cadas que o Anexo I da MARPOL 73/78 não regula todos os vários tipos de descarga que resultam, naturalmente, das actividades de plataformas offshore,limitando desta feita o seu âmbito e raio de acção sobre as actividades levadas a cabo nessas plataformas.

4.4. Convenção Internacional sobre a Preparação, Intervenção e Cooperação em Caso de Poluição por Petróleo – OPRC (1990)

A missão principal da OPRC74, conforme explanada no seu preâmbulo, é o de criar um mecanismo que permita aos Estados signatários combater acidentes e ameaças de poluição marinha em grande escala, que advenham de derramamentos de petróleo.

A OPRC sustenta um enquadramento que visa permitir, por um lado, facilitar a cooperação internacional e a entreajuda entre diferentesEstados em caso de acidentes em grande escala que constituam uma fonte de poluição marinha e, por outro lado, encorajar os Estados aderentes a desenvolver uma capacidade de resposta adequada para lidar com emergências que advenham de poluição por petróleo75.

74 Disponivel em http://www.admiraltylawguide.com/conven/oilpolresponse 1990.html.

75 Poluição por petróleo signifi ca, de acordo com a OPRC, uma ocorrência ou série de ocorrências que tenham a mesma origem e que resultem, ou possam resultar, numa descarga de petróleo, a qual constitua ou possa constituir uma ameaça ao ambiente marinho ou para a costa ou interesses relacionados de mais do que um Estado; e que requeira medidas urgentes ou quaisquer outros procedimentos imediatos.

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Conforme explicitado no artigo 2º, nº 4, da Convenção, esta aplica-se, além de navios, a plataformas offshore:

“(4) “Unidades Offshore” significa quaisquer instalações ou estruturas, fi xas ou fl utuantes, que estejam envolvidas na pesquisa, exploração e produção ou ainda que procedam ao carregamento ou descarregamento de petróleo.”

Desta forma, todas as previsões contidas na OPRC são aplicáveis a plataformas offshore, independentemente do seu tipo. De acordo com a Convenção, os Estados signatários obrigam-se a garantir que todos os operadores de plataformas offshore sob sua jurisdição tenham planos de emergência preparados para o caso de se verifi car algum acidente com essas mesmas plataformas76. Para além destes planos de emergência, os Estados signatários devem estabelecer mecanismos próprios para lidar com emergências e que devem ter um âmbito nacional, regional e internacional77.

Para além da obrigatoriedade de criação de planos de emergência, a OPRC detalha ainda, com grande especifi cidade, os procedimentos que devem ser seguidos pelos Estados signatários por forma a reportar uma emergência78, bem como os passos a adoptar quando sejam notifi cados de um acidente.

Entre outras previsões, a OPRC estabelece ainda: que os Estados signatários devem investir em investigação de métodos de resposta a situações de emergência que resultem de derramamento de petróleo; que os Estados signatários devem esforçar-se por instituir tratados multilaterais que prevejam a criação de sinergias para o combate a emergências ambientais; e, ainda, que os Estados signatários cooperem com outros Estados signatários em questões técnicas e de formação

76 Artigo 3º, nº 2 da OPRC.77 Artigos 6º e 7º da OPRC.78 Artigo 4º da OPRC.

de pessoas para melhor responder a emergências relacionadas com o derramamento de petróleo79.

A OPRC, ainda que não contenha regras de segurança técnicas quanto à operação de plataformas offshore, tornou-se um dos mais importantes instrumentos de combate a potenciais acidentes decorrentes de derramamento de petróleo aquando da operação daquelas plataformas.

4.5. Directiva 2013/30/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Junho80

Em Junho de 2013, foi adoptada, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, uma nova Directiva relativa à segurança das operações de exploração petrolífera offshore. Esta Directiva 2013/30/UE foi publicada no Jornal Ofi cial da União Europeia a 28 de Junho de 2013, e entrou em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação. De acordo com a Directiva, os Estados-Membros da União Europeia que disponham de zonas offshore81 devem transpor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas contidas na Directiva, até 19 de Julho de 2015. Porém, as plataformas petrolíferas já existentes, terão até 19 de Julho de 2018 para cumprir com os novos requerimentos.

79 Artigos 7º, 8º, 9º e 10º da OPRC.80 Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:

2013:178:0066:0106:EN:PDF.81 A Directiva defi ne “offshore” como: “(..) o que está situado no mar territorial,

na Zona Económica Exclusiva ou na plataforma continental de um Estado-Membro na acepção da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”.

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Em termos de objecto e âmbito de aplicação, esta nova Directiva visa estabelecer “(...) os requisitos mínimos para a prevenção dos acidentes graves nas operações offshore de petróleo e gás [82] e para a limitação das consequências desses acidentes”83.

Fica, assim, claro que a Directiva, projectada como uma resposta ao desastre do Golfo do México84, pretende (i) prevenir, tanto quanto possível, os acidentes que decorram de operações de exploração petrolífera offshore, (ii) limitar as consequências desses mesmos acidentes, (iii) estabelecer condições de segurança mínimas para a exploração petrolífera offshore, e (iv) melhorar a resposta a dar a acidentes por parte dos Estados-Membros e das companhias petrolíferas que estejam envolvidas em operações de exploração petrolífera offshore. É bem patente, com efeito, uma expectativa, por parte da União Europeia, de que esta Directiva contribua para uma maior protecção do ambiente marinho contra a poluição causada por operações de exploração petrolífera offshore.

Em termos de aplicação, a Directiva aplica-se não só a instalações85 e operações de exploração petrolífera offshore futuras mas também às instalações já existentes. Quanto a estas últimas, a Directiva refere que as mesmas irão benefi ciar de um período de aplicação transitório.

82 A Directiva defi ne operações offshore de petróleo e gás como “todas as actividades que estão associadas a uma instalação ou a uma infraestrutura conectada, incluindo a sua concepção, planeamento, construção, funcionamento e desactivação, e que se relacionam com a pesquisa e produção de petróleo e gás, com exclusão do transporte de petróleo e gás de costa a costa”.

83 Artigo 1º da Directiva. 84 Tal como expressamente referido no preâmbulo da Directiva.85 A Directiva defi ne instalações como “uma instalação fi xa ou móvel, ou um

conjunto de instalações permanentemente interligadas por pontes ou outras estruturas, utilizada nas operações offshore de petróleo e gás ou em ligação com essas operações, incluindo as unidades móveis de sondagem offshore quando estejam estacionadas no offshore para pesquisa, produção ou outras actividades relacionadas com operações offshore de petróleo e gás”.

Esta Directiva, destinada a Estados-Membros detentores de zonas offshore e com uma indústria de operações offshore activa, terá de ser objecto de uma transposição total, sendo certo que os Estados-Membros que não possuam zonas offshore ou que, possuindo, não tenham operações de exploração petrolífera offshore, serão apenas obrigados a transpor um número limitado de disposições para os seus ordenamentos jurídicos.

A Directiva sendo bastante extensa e detalhada, regula um conjunto de matérias que inclui, entre outras:

a) Gestão de risco

Os princípios gerais de gestão de risco nas operações de exploração petrolífera offshore plasmados na Directiva abrangem, entre outros, um requisito específi co para que as companhia petrolíferas a operar no offshore adoptem “todas as medidas adequadas” a prevenir acidentes em operações petrolíferas offshore, bem como a limitar as consequências de acidentes graves para a saúde humana e para o meio ambiente.

O conceito de “todas as medidas adequadas” não está defi nido no texto da Directiva, embora esta refi ra que “Os Estados-Membros deverão exigir aos operadores [86] que garantam que as operações offshore de petróleo e gás são realizadas com base numa gestão de risco sistemática, de modo a que o risco residual de acidentes graves para as pessoas, o ambiente e as instalações offshore sejam aceitáveis”87. Em ordem a restringir este risco, as companhias

86 A Directiva defi ne Operadores como: “a entidade designada pelo titular da licença ou pela autoridade licenciadora para conduzir as operações offshore de petróleo e gás, incluindo o planeamento e execução de uma operação de sondagem ou gestão e controlo das funções de uma instalação de produção”.

87 Artigo 3º da Directiva.

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petrolíferas deverão seguir as melhores práticas de gestão de risco existentes na indústria.

Importa também referir que a Directiva refere, no seu artigo 3º, que os Estados-Membros deverão assegurar que as companhias petrolíferas não são exoneradas de responsabilidade e dos deveres constantes da Directiva decorrentes de actos ou omissões por parte das suas contratadas que contribuam para a ocorrência de um acidente grave.

b) Licenciamento de operações petrolíferas offshore

Aquando da concessão ou transferência de licenças para efectuar operações de exploração petrolífera offshore, a capacidade técnica e fi nanceira da companhia que esteja a requerer a devida licença deverá ser tida em conta. A título de exemplo, em termos de capacidade fi nanceira, a entidade requerente da licença deverá demonstrar que têm capacidade para assumir a responsabilidade que possa “decorrer das operações offshore de petróleo e gás em causa, bem como a responsabilidade por eventuais prejuízos económicos caso essa responsabilidade esteja prevista na legislação nacional”88.

A razão deste cuidado prende-se com a necessidade de garantir que a licença seja emitida ou transferida para entidades que, comprovadamente, tenham capacidade (especialmente fi nanceira) para lidar com os perigos e riscos que naturalmente decorrem de operações de exploração petrolífera offshore. Caso a entidade requerente não dê provas de tomar ou vir a tomar providências adequadas para assumir a sua responsabilidade relativamente a potenciais riscos da actividade offshore, a licença deverá ser-lhe negada.

88 Artigo 4º da Directiva.

As providências referidas acima, de acordo com a Directiva, deverão ser válidas e efectivas desde o início das operações offshore89.

c) Responsabilidade pelos danos ambientais

A Directiva prevê que os Estados-Membros devem assegurar que as entidades licenciadas para operações de exploração petrolífera offshore respondem fi nanceiramente pela prevenção e reparação de danos ambientais, nos termos previstos na Directiva 2004/35/CE,causados pelas operações de exploração petrolífera offshore efectuadas pelo titular da licença ou pelo operador, ou em nome destes. Isto signifi ca que, de acordo com a Directiva, uma entidade licenciada, ainda que não seja o operador, será responsabilizada por eventuais danos ambientais que venham a ocorrer no âmbito de operações de exploração petrolífera offshore levadas a cabo com a sua licença90.

d) Autoridades competentes

De acordo com a Directiva, os Estados-Membros devem nomear uma autoridade competente responsável por funções regulatórias que deverão incluir, entre outras, a avaliação e aceitação de relatórios de risco e a supervisão do cumprimento por parte das companhias petrolíferas das directrizes contidas na Directiva91.

Relativamente a esta autoridade competente, os Estados-Membros devem garantir a sua independência e objectividade. Em razão do requisito de garantia de independência e objectividade, a Directiva refere ainda que os Estados-Membros devem prevenir eventuais

89 Idem.90 Artigo 7º da Directiva.91 Artigo 8º da Directiva.

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confl itos de interesse entre as funções regulatórias e as funções de licenciamento das operações petrolíferas offshore92.

e) Submissão de documentos

O texto da Directiva refere que existem certos documentos que deverão ser entregues à autoridade competente aquando do início das operações de exploração petrolífera offshore. Entre os documentos exigidos, podemos encontrar referências: ao sistema de gestão ambiental e de segurança da companhia; a um relatório sobre riscos graves; a um plano interno de resposta a emergências, entre outros.O objectivo da obrigatoriedade de apresentação de todos estes documentos é garantir que as operações de exploração petrolífera offshore são conduzidas de forma responsável e por uma companhia com capacidade, comprovada, para as realizar93.

f) Operações efectuadas fora da União Europeia

De acordo com a Directiva, os Estados-Membros devem exigir às empresas registadas no seu território e que efectuem operações de exploração petrolífera offshore fora do espaço da União Europeia quer directamente, quer através de fi liais, e quer como licenciadas quer como operadoras, que lhes enviem, a pedido, um relatório sobre acidentes graves em que tenham estado envolvidas. Esta previsão é bastante importante na medida em que visa trazer mais transparência ao sector e permitir a obtenção de informações mais detalhadas sobre cada companhia petrolífera, mesmo quando as mesmas estejam a operar fora do espaço da União Europeia94.

92 Idem.93 Artigo 11º da Directiva.94 Artigo 20º da Directiva.

g) Transparência e partilha de informações

Um dos aspectos mais evidentes no texto da Directiva é apreocupação demonstrada com a transparência e com o fornecimento de informações aos Estados-Membros, elementos que permitirão uma melhor avaliação de como estão a decorrer as operações de exploração petrolífera offshore dentro do espaço da União Europeia.

Nesse sentido, a Directiva exige que os Estados-Membros assegurem que os operadores prestam à autoridade competente todas as informaçõesmencionadas no Anexo IX da Directiva. Este Anexo exige que os operadores partilhem informações relacionadas com a libertação não intencional de petróleo e gás, com perdas signifi cativas de integridade estrutural, com falhas de elementos críticos para a segurança e ambiente, entre outras informações relevantes95.

h) Cooperação entre Estados-Membros

Finalmente, a Directiva prevê ainda que os Estados-Membros devem cooperar entre si em termos de partilha de informações e de planeamento de operações de exploração petrolífera offshore dentro do espaço da União Europeia. A Directiva refere também que cada Estado-Membro é responsável por garantir que a autoridade competente do seu país partilha informações com as autoridades competentes de outros Estados-Membros96.

Para além dos pontos referidos acima, a Directiva contém igualmenteoutras disposições relativas a efeitos transfronteiriços de acidentes em operações de exploração petrolífera offshore, a prontidão e capacidade

95 Artigo 23º da Directiva.96 Artigo 27º da Directiva.

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de resposta a estes acidentes, a sanções aplicáveis a quem não cumpra as suas disposições, entre outras. Assim, em virtude do detalhe e do alcance proposto pela Directiva, é previsível que a mesma se venha a tornar um diploma essencial na regulação das operações de exploração petrolífera offshore dentro do espaço da União Europeia.

Porém, dado ter sido aprovado como “Directiva”, este diploma terá de ser transposto para os ordenamentos jurídicos nacionais. Só após a transposição da mesma se poderá avaliar o impacto real desta Directiva nas operações de exploração petrolífera offshore.

Ainda assim, considerando as suas disposições inovadoras (nomeadamente a divulgação de acidentes que aconteçam fora do espaço europeu), a ambição demonstrada e o facto de se ter tido em conta o que de melhor se faz na indústria petrolífera (em termos de segurança e prevenção de acidentes), parece-nos que este diploma terá uma importância e um impacto signifi cativo na indústria petrolífera europeia.

Cumpre fi nalizar observando que a Directiva não regula aspectos técnicos das operações de plataformas offshore. Porém, com os seus standards e requisitos, naturalmente que este diploma acabará por ter impacto ao nível da condução dessas mesmas operações.

5. “Even inherently risky businesses can be made much safer, given the right motivations and systems-safety management practices”97

Conforme julgamos ter demonstrado98, os acidentes ocorridos em plataformas offshore geram consequências muito negativas tanto para a companhia petrolífera que sofreu o acidente, como para a

97 Idem, nota 49, p. 219.98 Ver supra, 2..

própria indústria petrolífera. Em termos muito gerais, tais consequências negativas podem ser divididas em consequências ao nível fi nanceiro99 e consequências ao nível reputacional e de imagem pública do sector.

As companhias petrolíferas reconhecem, hoje em dia, que existem inúmeras vantagens em tentar garantir que as suas operações decorram de forma segura, por forma a garantir que desastres como os relatados acima (cfr. 2.) não aconteçam frequentemente. Nesse sentido, e especialmente após o desastre de Macondo, temos assistido a desenvolvimentos tecnológicos signifi cativos no plano da prevenção de acidentes em plataformas offshore.

Como exemplo paradigmático desta “revolução” tecnológica, destaque-se o novo dispositivo de contenção de petróleo e gás apresentado pela BP em 2012. Em termos muito gerais, este dispositivo de 500 toneladas100 foi projectado para poder ser colocado (i) tanto em cima de um BOP que não tenha contido adequadamente um derrame de petróleo, como (ii) em cima de um poço aberto que esteja a derramar, de forma incontrolável, petróleo para o mar. Este dispositivo, segundo anuncia a companhia, pode ser implantado no leito marinho por uma sonda de perfuração e, ainda segundo a BP, pode ser transportado101 para qualquer local do mundo onde a companhia esteja a operar num prazo máximo de 10 dias.

99 Por consequências fi nanceiras entendem-se as operações de limpeza e remoção de petróleo do mar, bem como a destruição da própria plataforma, que representam custos muito elevados para a companhia, as multas ambientais a que a companhia se sujeita, as indemnizações que eventualmente têm de ser pagas pela companhia às populações afectadas. Para além disso, em termos de custos para toda a indústria, quando acontece um desastre petrolífero, os prémios dos seguros tendem, naturalmente, a subir, tornando as operações ainda mais dispendiosas.

100 O dispositivo pesa 500 toneladas, pois esse é o peso necessário para operar em profundidades até 3.000 metros e para conter derrames com fl uxos de petróleo a jorrar a pressões elevadíssimas.

101 A título de curiosidade, importa referir que, segundo a BP, são necessários 5 aviões de carga e dois Boeings 747 para transportar todo o dispositivo.

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Este dispositivo teve, alegadamente, um custo de cerca de 50 milhões de dólares e está equipado com lâminas e tenazes que lhe permitem cortar e atravessar qualquer equipamento que esteja a bloquear uma efectiva contenção do derrame. Após ser colocado por cima da fonte do derrame, este dispositivo direcciona o fl uxo do petróleo e gás derramado, através de um oleoduto, para a superfície, onde o petróleo poderá ser armazenado102.

Outras companhias, como a Chevron e a Total, estão também a desenvolver os seus próprios dispositivos de contenção com vista a dar resposta a um eventual derramamento de um dos seus poços offshore103.

Para além de dispositivos de contenção que irão, certamente, impedir consequências ainda mais graves aquando de eventuais derrames de petróleo e gás, os próprios BOP estão a ser redesenhados para garantir uma maior efi cácia no controlo de jactos indesejados de petróleo e gás. Com efeito, várias companhias estão presentemente a utilizar BOP equipados com sistemas de fecho duplos por forma adiminuir a probabilidade de o sistema de fecho não selar completamente o poço (como aconteceu, por exemplo, com o desastre de Macondo).

Para além destes sistemas de fecho duplos, a maior parte das plataformas que estão neste momento a ser construídas irão ser equipadas com dois BOP, de modo a garantir que, se o primeiro falhar, um segundo possa ser colocado imediatamente104. De acordo com alguns profi ssionais da indústria, a colocação de dois BOP nas plataformas está a tornar-se um standard internacional, sendo que

102 Angel GONZALEZ, Here be oil plugs: Spill Containment Kits Go Global, Wall Street Journal, 9 de Maio, 2012, disponível em http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303630404577392273428558002.

103 Idem.104 David WETHE, Rig Shortage Means Record 4.5 Billion Blowout Binge,

Bloomberg, 2013, disponivel em http://www.bloomberg.com/news/2012-08-09/rig-shortage-means-record-4-5-billion-blowout-binge-energy.html

em várias plataformas já existentes está a ser colocado um segundo BOP105.

Outro exemplo de inovação tecnológica no sector é o novo laboratório construído por uma das maiores prestadoras de serviços à indústria petrolífera, a companhia Halliburton. No seu novíssimo laboratório, a Halliburton consegue reproduzir as condições geológicas e de pressão encontradas pelas companhias aquando da perfuração offshore. Este laboratório permite, assim, testar várias soluções e tecnologias, bem como realizar quais são as melhores soluções tecnológicas para cada caso concreto (i.e., quais os equipamentos que melhor se adequam a cada localização específi ca)106.

Para além destes avanços tecnológicos, a indústria petrolífera está a projectar, no futuro, reduzir o elemento humano e substituir os seus trabalhadores por robôs que consigam executar as tarefas mais rotineiras. A par desta redução do elemento humano, várias companhias estão a desenvolver plataformas totalmente automáticas, sistemas de perfuração controlados exclusivamente por sistemas digitais e BOP que se activam automaticamente107.

Todas estas novidades têm como fi nalidade tentar introduzir mais segurança nas operações de pesquisa e produção de petróleo e gás offshore em ordem a reduzir o risco que lhes é inerente. Só o futuro poderá confi rmar o sucesso ou insucesso de algumas destas inovações mas certamente perfurar offshore nos anos vindouros será mais seguro do que é hoje em dia.

105 Idem.106 Jeannie KEVER, Hallibuton Lab Will Be Going To Extremes, Houston

Chronicle, 2012, disponivel em http://www.houstonchronicle.com/business/energy/article/Halliburton-lab-will-be-going-to-extremes-3937156.php#/0.

107 David WETHE, Robots: The Future of the Oil Industry, BloombergBusinessweek, 2012, disponivel em http://www.businessweek.com/articles/2012-08-30/ robots-the-future-of-the-oil-industry.

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Paralelamente aos avanços tecnológicos, registam-se identicamente inovações legislativas que estão a ser estudadas e implementadas por forma a garantir uma maior segurança nas operações petrolíferas offshore. Reitera-se o que se afi rmou supra108 sobre a inexistência de um regime global aplicável a actividades de pesquisa e produção de petróleo e gás offshore, detectando-se, sim, diversas convenções e tratados internacionais bem como uma extensa regulação a nível nacional.

Esta “dispersão” de normas e regulamentos leva a que, em muitos casos, se apliquem standards e procedimentos diversos consoante a área geográfi ca em que se está a operar. Um dos desafi os com os quais a indústria petrolífera terá de se debater no futuro é a uniformização de procedimentos, com vista a garantir que os mesmos standards de segurança são aplicados em diferentes partes do mundo. Este problematorna-se ainda mais premente se pensarmos que as legislações nacionais são muito diferentes entre si, que nem todos os Estados fazem cumprir as suas normas de segurança interna, e que mesmo as convenções internacionais não são aplicadas de forma uniforme pelos seus signatários.

Porém, se olharmos, por exemplo, para as novas regras aprovadas pela União Europeia, pudemos descortinar um ímpeto legiferante no sentido de tentar uniformizar e padronizar normas de segurança. Leia-se o artigo 19º, nº 18 da Directiva 2013/30/UE, que estabelece o seguinte:

“8. Os Estados-Membros devem exigir aos operadores e proprietários que as suas políticas de empresa relativa à de prevenção de acidentes graves a que se refere o n.º 1 também abranjam as suas instalações de produção e de não-produção fora da União.”

108 Ver supra, 3..

O que deste preceito se retira é que as companhias petrolíferas que pretendam dedicar-se à pesquisa e produção de petróleo e gás no espaço da União Europeia deverão aplicar as mesmas regras internas de prevenção de acidentes quer no espaço da União Europeia, quer fora da União. Este preceito tenta, desta forma, uniformizar políticas e procedimentos de segurança em ordem a garantir que os mesmos padrões de segurança sejam utilizados em todo o mundo.

Para além deste esforço de uniformização de regras, existe ainda um movimento que apela a uma maior regulação internacional das actividades offshore, nomeadamente através da adopção de regulamentos unitários e aplicáveis à globalidade de tais operações, onde quer que elas tenham lugar. Como exemplo, temos o InstitutoPara o Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais (“IDDRI”)109, entidade que lançou recentemente a iniciativa “Towards international regulation of offshore energy exploitation” visando discutir formas de fortalecimento dos meios de controlo dos Estados sobre as operações de pesquisa e produção de petróleo e gás offshore, bem como debater de que forma se pode unifi car os regimes legais internacionais aplicáveis a operações petrolíferas offshore – revertendo, assim, a fragmentação de regras que existem hoje em dia110.

Dito isto, podemos concluir que o futuro das operações offshore passa, por um lado, por avanços tecnológicos que irão permitir garantir mais segurança aos trabalhadores, ao mesmo tempo que reduzem os riscos de um acidente e subsequente derrame de petróleo e gás no mar e, por outro lado, pela uniformização de regras e procedimentos por forma a garantir que os mesmos standards de segurança são aplicados em diferentes partes do mundo. Só o tempo poderá demonstrar o quanto todas estas alterações e inovações irão tornar mais segura a exploração petrolífera offshore.

109 http://www.iddri.org/Iddri/.110 http://www.iddri.org/Iddri/Lettre-de-l-Iddri/Pour-une-reglementation-inter

nationale-de-l-exploitation-des-sources-d-energie-offshore.

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Capítulo III

Crises alimentares: quando o direito e a ciência se cruzam

Maria Inês Gameiro

Jurista

“Nenhum período da história foi maispenetrado pelas ciências naturais nem mais dependente delas

do que o século XX. Contudo, nenhum período, desde a retractaçãode Galileu, se sentiu menos à vontade com elas”1

“Se fosse possível a um jurista particularmente interessadopelas coisas do direito público entrar no sono da princesa

da fábula, não precisaria de deixar correr os cem anos para descobrir

atónito que à sua volta tudo mudou”2

Sumário: 1. Introdução; 2. As crises alimentares; 3. A resposta europeia; 3.1. O arranque de uma nova política; 3.2. O Regulamento (CE) nº 178/2002 e a criação da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos; 3.3. O RASFF (Sistema de Alerta Rápido para os Géneros Alimentícios e Alimentos para Animais); 4. O quadro internacional; 5. A regulação do risco na base da legislação alimentar; 6. A auto-regulação, um fenómeno em crescimento; 7. As crises alimentares como refl exo da relação entre

ciência e direito.

1 Eric HOBSBAWM, A era dos extremos: História breve do século XX, 1914-1991, p. 508.

2 Rogério EHRHARDT SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, p. 23.

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1. Introdução

A chamada “sociedade de risco” contemporânea pressupõe o reconhecimento – e a aceitação – da existência de riscos associados ao desenvolvimento científi co e tecnológico3. Os cientistas deixaram de poder garantir certezas científi cas, reconhecendo-se ainda que, habitualmente, não estão em causa apenas considerações científi cas, mas também opções sociais, políticas, económicas ou éticas. As crises alimentares que ocorreram nas últimas décadas vieram desafi ar as instituições europeias, mas também a ideia de que a ciência consiste num empreendimento valorativamente neutro4.

A alimentação é, por motivos óbvios, e desde sempre, de grande importância, constituindo uma das actividades com maior impactodirecto no quotidiano do ser humano. Embora existam registos de menções à segurança alimentar e à saúde pública desde temposancestrais, foi nas últimas décadas que este tema ganhou novos contornos, circunstância para que contribuiu o crescimento do papelda ciência e da tecnologia, a montante, nas várias etapas da produção alimentar, mas também, a jusante, na maior capacidade para detectar possíveis riscos e efeitos adversos com origem nos alimentos5.

3 Ulrick BECK, Risk Society, Towards a New Modernity, 10ª ed., Londres, 2009.

4 Este fenómeno é mais visível na União Europeia do que na América do Norte, onde a confi ança na ciência é mais sólida. Vários motivos têm sido apontados para esta diferença, entre os quais estão precisamente as crises alimentares na Europa. A este propósito v., entre outros, David VOGEL, Ships passing in the night: The Changing Politics of Risk Regulation in Europe and the United States, EUI Working Papers, nº 2001/16, 2001; e Grace SKOGSTAD, Regulating Food Safety Risks in the European Union: A Comparative Perspective, in ANSELL, VOGEL (eds.), What’s the Beef? The Contested Governance of European Food Safety Regulation, Cambridge, 2006, pp. 213-236, p. 221.

5 As referências à segurança alimentar remontam a tempos muito antigos, desde as indicações de preparação dos alimentos nas religiões do ‘Livro’ (e anteriores), a formas de conservação que ainda hoje se mantêm, como é o caso da salga do

Na Europa, foi na década de 90 do século XX que a dimensão das crises alimentares fez abalar a confi ança nas instituições, dando origem a profundas transformações na legislação alimentar que reforçaram o papel da ciência. Porém, não desapareceu o alarme público – talvez parte integrante das “sociedades de risco” –, periodicamente reavivado por novos episódios, como o incidente dos nitrofuranos, em Portugal, em 2003, o caso das sementes germinadas contaminadas com a bactéria E. Coli, em 2011, ou a crise da carne de cavalo, em 20136. Nestes incidentes, exacerbados pela importância intrínseca da alimentação, verifi ca-se o postulado de Beck de que “a arena política da sociedade mundial de risco não é a rua mas sim a televisão”, sendo os meios de comunicação social a carimbar a existência defi nitiva na esfera pública de um episódio signifi cativo7. Para responder à inquietação pública e às exigências de protecção da saúde pública e dos consumidores, as agências alimentares desenvolveram métodos de identifi cação dos riscos que, no caso da União Europeia, estão ligados a um sistema de alerta, o RASFF (Rapid Alert System for Food and Feed ou Sistema de Alerta Rápido

bacalhau em Portugal. A título de exemplo: “Assyrian tablets described the method to be used in determining the correct weights and measures for food grains, and Egyptian scrolls prescribed the labelling to be applied to certain foods. In ancient Athens, beer and wines were inspected for purity and soundness, and the Romans had a well-organized state food control system to protect consumers from fraud or bad produce. In Europe during the Middle Ages, individual countries passed laws concerning the quality and safety of eggs, sausages, cheese, beer, wine and bread”, FAO, Understanding the Codex Alimentarius, 3ª ed., Roma, 2006, pp. 5-6, ftp://ftp.fao.org/codex/Publications/understanding/Understanding_EN.pdf.

6 Sobre a contaminação de sementes germinadas, v. Documento de trabalho da Comissão Lessons learned from the 2011 outbreak of Shiga toxin-producing Escherichia coli (STEC) O104:H4 in sprout seeds, DG SANCO/13004/2011, http://ec.europa.eu/food/food/biosafety/salmonella/docs/cswd_lessons_learned_en.pdf.

7 Ulrick BECK, World Risk Society, Cambridge, 1999, p. 44.

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para os Géneros Alimentícios e Alimentos para Animais), pertencendo ainda, na sua maioria, à rede INFOSAN (International Food Safety Authorities Network).

Perante a importância das crises alimentares e a infl uência que tiveram no desenvolvimento da estrutura político-institucional europeia, procurar-se-á, em primeiro lugar, descrever brevemente a evolução das últimas décadas neste domínio, tendo em atenção o peso da indústria alimentar na Europa e as questões identitárias e culturais associadas às gastronomias nacionais e locais. Seguidamente,examinar-se-á o Regulamento (CE) nº 178/2002, considerado o pilar da legislação alimentar, incluindo as disposições sobre o RASFF8. Procurar-se-á ainda traçar o panorama internacional, no qual avulta o Codex Alimentarius e o INFOSAN. Por último, atentaremos em alguns aspectos que atravessam o âmbito da segurança alimentar, comoa regulação do risco e o fenómeno do crescimento da auto-regulação.

O tema da alimentação revela-se muito vasto, cruzando várias áreasdo direito. Inevitavelmente, serão excluídos desta análise casos que, estando associados, merecem tratamento autónomo. O exemplo mais evidente é o dos organismos geneticamente modifi cados (OGM), cujo debate moldou também a evolução da legislação e da arquitectura institucional europeia9.

Verifi cando-se neste campo a infl uência europeia e internacional no direito administrativo, que tem sido entendido tradicionalmente como o direito estatal, a análise da regulação da segurança alimentar, permitirá, ainda, suscitar algumas refl exões sobre o aprofundamento

8 Regulamento (CE) nº 178/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios.

9 Outro exemplo é o das nanotecnologias em que, de entre a multiplicidade de campos abrangidos – o que tem difi cultado a elaboração de uma defi nição uniforme e consensual das ‘nano’ –, se encontra a alimentação.

do diálogo globalizante entre direito e ciência, transversal nas sociedadescontemporâneas10.

2. As crises alimentares

A segurança alimentar (food safety) diz respeito à garantia de condições de segurança em relação aos alimentos e aos processos de produção que envolvem a cadeia alimentar no sentido de evitar perigos e riscos para os consumidores11. De acordo com a Organização para a Alimentação e Agricultura (Food and Agriculture Organization, FAO) e a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization, WHO), compreender a relação entre a redução dos perigos associados à alimentação e dos riscos de efeitos nocivos para a saúde é fundamental no âmbito da segurança alimentar12.

O Regulamento (CE) nº 178/2002 e o Manual de Procedimentosda Comissão do Codex Alimentarius defi nem os dois conceitos, distinguindo entre perigo – um agente biológico, químico ou físico presente nos alimentos, ou que constitua um condição dos mesmos, com potencial para provocar um efeito nocivo na saúde –, e risco

10 Sobre a relação entre a ciência e a Administração tendo por pano de fundo o episódio da BSE, v. Maria Eduarda GONÇALVES, Ciência e política em Portugal: o caso das “vacas loucas”, in GONÇALVES (ed.), Ciência e Democracia, Lisboa, 1996, pp. 121-139.

11 Este conceito não deverá ser confundido com o de food security, relacionado com o direito à alimentação. Apesar da evidente relação – o direito à alimentação deverá passar por uma alimentação segura – aqui apenas se abordará a food safety.

12 A título de exemplo, FAO/WHO, Risk management and food safety, Report of a Joint FAO/WHO Consultation, FAO Food And Nutrition Paper, 65, Rome, 1997, http://www.fao.org/docrep/w4982e/w4982e00.htm. V. também a ‘Declaração de Pequim sobre Segurança Alimentar’, adoptada no High-level International Food Safety Forum “Enhancing Food Safety in a Global Community”, WHO, 26 e 27 de Novembro de 2007, Pequim, China, http://www.who.int/foodsafety/fs_management/meetings/Beijing_decl.pdf.

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– uma “função da probabilidade de um efeito nocivo para a saúdee da gravidade desse efeito, como consequência de um perigo” (artigo 3º, nºs 14 e 9, respectivamente, do Regulamento (CE) nº 178/2002)13. Na origem das crises alimentares podem estar situações diversas, desde problemas nutricionais, de rotulagem ou embalamento, de higiene, de transporte ou até fraudes, uma categoria que tem crescido nos últimos anos e que não se encontra necessariamente associada à existência de efeitos nocivos para a saúde14. As diferentes confi gurações das crises alimentares suscitam respostas várias, tipifi cadas em sistemas de controlo: os sistemas reactivos, depois do perigo se ter concretizado, que constituem a maioria dos sistemas existentes e que são frequentemente adoptados pelas Administrações, e os preventivos, que procuram antecipar os perigos, nomeadamente através do estudo de padrões e dados de crises anteriores15.

Na Europa, o primeiro sinal da necessidade de defi nir uma solução para garantir a segurança dos alimentos ocorreu em 1978, data em que um fornecimento de laranjas de Israel foi injectado com mercúrio, tendo sido detectado em Maastricht, na Holanda, primeiramente, e em várias cidades da República Federal Alemã mais tarde16. A gravidade da situação levou os países da Comunidade

13 Codex Alimentarius Commission, Procedural Manual, Joint FAO/WHO Food Standards Programme, 21ª ed., Roma, 2013, p. 114, ftp://ftp.fao.org/codex/Publications/ProcManuals/Manual_21e.pdf. A defi nição de risco do Regulamento (CE) nº 178/2002 tem sido também afi rmada pelo Tribunal de Justiça: v., entre outros, Processo T-13/99, Pfi zer Animal Health SA v Conselho da União Europeia, [2002] ECR II-3305, nº 147.

14 Gijs A. KLETER e Hans J. P. MARVIN, Indicators of emerging hazards and risks to food safety, Food and Chemical Toxicology, 47, 2009, pp. 1022-1039, p. 1028.

15 Sobre os sistemas preventivos, incluindo exemplos de projectos de desenvolvimento destes sistemas apoiados pelos Programas-quadro europeus, v. H. J. P. MARVIN, et al. Early Identifi cation systems for emerging foofborne hazards, Food and Chemical Toxicology, 47, 2009, pp. 915-926, p. 922 segs.

16 As laranjas foram injectadas por um grupo extremista, o Arab Revolutionary Army-Palestine Command, com o intuito de debilitar a economia israelita.

Europeia a fi rmar, em 1979, um acordo de cavalheiros para criar um sistema de alerta partilhado sobre riscos alimentares e ilustrou, de forma exemplar, um dos aspectos mais salientes das crises alimentares modernas: a interligação global e complexa entre países, mercados e indústria e a potencial extensão de efeitos que um determinado produto pode desencadear.

Porém, o mais grave acontecimento, consensualmente apontado como o detonador da nova política e legislação alimentar, foi o episódio da BSE que, pela sua dimensão e gravidade, se tornou sinónimo de crise alimentar.

Em 1986, em Inglaterra, um grupo de cientistas detectou gado contaminado com encefalopatia espongiforme bovina (bovine spongiform encephalopathy, BSE, também conhecida como doençadas vacas loucas). Dois anos mais tarde, estudos laboratoriais revelaram tratar-se de uma doença zoonótica, ou seja, capaz de passar a barreira das espécies, sendo transmissível aos seres humanos17. Em 1996, o Governo inglês confi rmou a ligação entre a BSE e a variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (vCJD)18, uma doença mortal que fez a primeira vítima em 1995, sendo a contaminação feita através do consumo de carne infectada com BSE. A partir desse momento, a Comissão Europeia introduziu restrições à exportação

17 Em resultado da crise da BSE, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (AESA) tem entre as suas competências a publicação periódica de relatórios sobre doenças zoonóticas, a partir de elementos fornecidos pelas autoridades de segurança alimentar nacionais, v. Directiva 2003/99/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Novembro de 2003, relativa à vigilância das zoonoses e dos agentes zoonóticos (artigo 9º).

18 A crise da BSE está relacionada com a prática iniciada nos anos 20 do século XX de alimentar o gado com farinhas e suplementos de origem animal (frequentemente feitos a partir de gado). O motivo para este procedimento teve origem na necessidade que o gado tem de consumir proteína, especialmente nos primeiros meses de vida, que deixou de poder ser fornecida pelas mães pela via do leite, já que o destino deste passou a ser a comercialização. A dimensão do episódio da BSE estende-se até aos nossos dias, tendo o número de mortes ascendido a mais de 100.

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de carne de vaca do Reino Unido e, posteriormente, de outros países onde se confi rmaram casos da doença.

No rescaldo da crise verifi cou-se existir, na conhecida classifi cação de Beck, uma “irresponsabilidade organizada” (Organisierte Unverantwortlichkeit), sendo a opacidade dos processos administrativostão elevada que tornou difícil o apuramento de responsabilidades19. Este aspecto foi sublinhado pelo Comité de Inquérito à BSE, que evidenciou o carácter obscuro e pouco democrático do procedimento de comitologia existente: “By virtue of the opaqueness, complexity and anti-democratic nature of its workings, the existing system of comitology seems to be totally exempt from any supervision, thereby enabling national and/or industrial interests to infi ltrate the Community decision-making process”20.

A opacidade do sistema existente, a gravidade do alarme público e a falta de confi ança na resposta às crises demonstrada pelos cidadãos europeus estiveram na base da remodelação da legislação alimentar, das instituições comunitárias, dos painéis de peritos e do próprio sistema de comitologia21.

19 Ulrich BECK, Risk Society..., cit.20 Ellen VOS, The EU regulatory system on food safety: between trust

and safety, in EVERSON, VOS (eds.), Uncertain Risks Regulated, Abingdon, 2009, pp. 249-268, p. 253 e Temporary Committee of Inquiry into BSE, “Report on alleged contraventions or maladministration in the implementation of Community law in relation to BSE, without prejudice to the jurisdiction of the Community and national courts”, Relator: Manuel Medina Ortega, A4-0020/97, 7 de Fevereiro de 1997, parágrafo 19.4, http://www.europarl.europa.eu/conferences/ 19981130/bse/a4002097_en.htm. Sobre o procedimento de comitologia, v. Laurie BUONANNO, The Creation of the European Food Safety Authority, in ANSELL, VOGEL (eds.), What’s the Beef? The Contested Governance of European Food Safety Regulation, Cambridge, 2006, pp. 259-278, pp. 261-262.

21 Sobre a importância da confi ança do público na segurança alimentar, incluindo os factores ‘imparcialidade’ e ‘competência’, e sobre os limites da transparência e participação na tomada de decisões, nomeadamente no contexto da AESA, v. Ellen VOS, The EU regulatory system..., cit.

3. A resposta europeia

3.1. O arranque de uma nova política

A resposta europeia às questões da alimentação sofreu alterações signifi cativas ao longo das últimas décadas, podendo ser distinguidos alguns períodos fundamentais22.

Até ao início dos anos 80, a prioridade política e legislativa incidiu na criação de padrões uniformes de segurança alimentar, associada ao programa de harmonização legislativa, adoptado em 196923. Durante este período destacaram-se as chamadas “recipe laws”, directivas que estabeleciam a composição permitida e proibida dos alimentos24. Esta via veio a ser afastada pela Comissão – por não respeitar a diversidade de tradições gastronómicas existente na Europa, por difi cultar o aparecimento de novos produtos, reduzindo a inovação e a fl exibilidade comercial com a introdução de regras rígidas sobre a composição dos produtos, e por considerar que as preferências dos consumidores não deveriam ser objecto de regulação – e pelos Estados, que contrariaram esta opção através da adopção de medidas restritivas e da invocação de cláusulas de salvaguarda25.

22 Propondo uma divisão em quatro fases com diferenças em relação à evolução aqui traçada, v. Alberto ALEMANNO, Food Safety and the Single European Market, in ANSELL, VOGEL (eds.), What’s the Beef?..., cit., pp. 239 segs.

23 Resolução do Conselho, de 28 de Maio de 1969, “General Programme for the Elimination of Technical Barriers to Trade”, também conhecido como a ‘Old Approach’.

24 As ‘recipe laws’ criaram os chamados ‘Euro-produtos’, tendo o primeiro sido o chocolate – veja-se a Directiva do Conselho 73/241/CE, de 24 de Julho, “on the approximation of the laws of the Member States relating to cocoa and chocolate products intended for human consumption”.

25 A Comissão reconheceu que “The Member States appear (...) to be able to agree on the general principles of food legislation, but fi nd diffi culty in reconciling their differences of opinion on requirements for the composition of various individual foodstuffs”, acrescentando que, no âmbito da protecção e informação do consumidor,

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A abordagem da política alimentar modifi cou-se no período seguinte – entre o início da década de 80 e os anos 90 – marcado, por um lado, pelo princípio do reconhecimento mútuo e, por outro, pela limitação da harmonização legislativa às medidas necessárias para a protecção da saúde pública e de outros interesses dos consumidores e para a instituição de controlos adequados26.

O princípio do reconhecimento mútuo, enunciado no conhecido acórdão Cassis de Dijon, em 1979, determina que um bem legalmentecomercializado num Estado-Membro deve ser admitido noutro Estado-Membro, excepto quando existir um motivo juridicamente válido para tal não suceder, como a protecção dos direitos dos consumidores ou o interesse público27. Em termos gerais, o acórdão

se colocaram duas opções: “one is to develop extremely detailed regulations on the composition and manufacturing characteristics of each foodstuff (“recipe law”)”, “the other is based on the fundamental idea that, provided that the purchaser is given adequate information on the nature and composition of foodstuffs, it is not necessary to defi ne these elements in law unless they are required for the protectionof public health. Clearly, the Community must commit itself to the second approach because: it is neither possible nor desirable to confi ne in a legislative straitjacket the culinary riches of ten (twelve) European countries; legislative rigidity concerning product composition prevents the development of new products and is therefore an obstacle to innovation and commercial fl exibility; the tastes and preferences of consumers should not be a matter for regulation”, Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu, de 8 de Novembro de 1985, “Completion of the internal Market: Community legislation on foodstuffs” COM(85), 603 fi nal, pp. 5, 8 e 9.

26 Verifi cou-se a nível internacional a mesma tendência, tendo o Codex Alimentarius passado de directrizes detalhadas, na década de 70, para recomendações mais gerais actualmente. V. FAO, Understanding the Codex..., cit., p. 16.

27 Neste conhecido caso, a Alemanha procurou impedir a importação do licor francês “Cassis de Dijon” com base no argumento de que a legislação alemã indicavapara os licores à base de fruta um teor mínimo de álcool superior ao do “Cassis de Dijon” – e estabelecendo assim, uma medida restritiva ao produto. O Tribunal afi rmoua necessidade de existir uma base científi ca para a activação da cláusula de salvaguarda. V. Processo C-120/78, Rewe-Zentral AG v Bundesmonopolverwaltung für Branntwein [1979], ECR 649. De resto, como se pode ler no Livro Verde sobreos princípios gerais da legislação alimentar na União Europeia, COM(1997),

marcou a passagem de um esforço de integração positiva no âmbito das questões alimentares, através de intensa harmonização legislativa, para um fortalecimento das liberdades de circulação, que marcou uma alteração concreta da política da Comissão no sentido da integração negativa28.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça e, em particular, o princípio do reconhecimento mútuo, passou a ser a base da garantia da livre circulação dos produtos alimentares nas áreas não harmonizadas. A legislação centrou-se em defi nir padrões mínimos de segurançaalimentar, reconhecendo a diversidade existente entre Estados-Membros e confi ando no reforço da informação dos consumidores, tendo sido adoptadas, para este efeito, directivas-quadro sobre rotulagem, aditivos alimentares, higiene e segurança, entre outras.

Os desenvolvimentos legislativos deste período concretizaram, assim, a nova política da Comissão que se passou a centrar na protecção da saúde pública e dos interesses dos consumidores, nomeadamente no seu direito à informação, e na implementação de controlos ofi ciais29. A diminuição da regulação foi recebida comalgumas críticas, descartadas, no entanto, pela Comissão, nos termos seguintes: “Another criticism levelled is the danger that the lack of Community compositional rules would automatically lead to a reduction in quality, since the most liberal national rule will become

0176 fi nal, p. x., “Nas áreas não harmonizadas, o principal instrumento de gestão do mercado interno continua a ser o princípio do reconhecimento mútuo, o qual requer que um Estado-Membro autorize no seu território a livre circulação de mercadorias produzidas ou colocadas no mercado em conformidade com os ensaios, regras ou normas de um outro Estado-Membro que proporcionem um grau de protecção equivalente ao dos seus próprios ensaios, regras ou normas”.

28 Esta mudança política iria fi car registada em vários documentos nos anos subsequentes, nomeadamente na Comunicação da Comissão, de 24 de Outubro de 1989, relativa à livre circulação de géneros alimentícios na comunidade (89/C 271/03).

29 Comunicação da Comissão Completion of the internal Market: Community legislation on foodstuffs, COM(85) 603 fi nal, p. 6.

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general practice. The Commission does not share this view, nor does the available evidence support it”.

A Comissão reconheceu, todavia, a necessidade de uma cooperação administrativa efectiva30.

O propósito real da legislação alimentar, nesta fase, consistiu na eliminação de obstáculos ao funcionamento do mercado interno. A Comunicação da Comissão “Completion of the internal Market: Community legislation on foodstuffs” apontava para a necessidade da adoptar procedimentos simplifi cados em matéria alimentar, nomeadamente através da votação por maioria qualifi cada de algumasmatérias, como a implementação das medidas do Conselho no ‘Standing Committee on Foodstuffs’ da Comissão, deixando as regras gerais da legislação alimentar para o processo mais moroso do voto por unanimidade do Conselho31.

O Tratado de Maastricht veio dar um forte impulso à protecção do consumidor e da saúde humana, objectivos essenciais à realização da missão da União, plasmados no artigo 3º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE). Os actuais artigos 169º (defesa dos consumidores) e 168º (protecção da saúde) do Tratado sobre oFuncionamento da União Europeia (TFUE) concretizam este impulso. As alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa aprofundaram, em particular, a dimensão transfronteiriça das ameaças para a saúde,uma realidade que representa a maioria dos alertas do sistema RASFF32.

30 Comunicação da Comissão Completion of the internal Market: Community legislation on foodstuffs, COM(85) 603 fi nal, pp. 12-13.

31 Comunicação da Comissão Completion of the internal Market: Community legislation on foodstuffs, COM(85) 603 fi nal, pp. 16-17.

32 V. RASFF Preliminary Annual Report, 2013, http://ec.europa.eu/food/food/rapidalert/docs/preliminary_report_2013_en.pdf.

Porém, a mudança fundamental deu-se, como se assinalou, com as crises alimentares que surgiram na Europa na década de 90, inaugurando uma nova fase da política alimentar, onde fi couevidente que a questão da segurança era fundamental, não só para os consumidores, mas também, e consequentemente, para o funcionamento do mercado interno, urgindo por isso encontrar uma solução mais estruturada e global para o problema.

O episódio da BSE deu início a uma discussão alargada sobre a segurança dos alimentos, a protecção da confi ança dos consumidores e as políticas de saúde pública e ainda sobre os mecanismos departicipação, transparência e accountability existentes no quadro institucional europeu. A gravidade da situação teve várias consequências:conduziu à apresentação de uma moção de censura à Comissão pelo Parlamento Europeu; à criação de uma Comissão de Inquérito; ao reconhecimento da urgência de resolução do problema por parte do Presidente da Comissão Jacques Santer e, fi nalmente, à adopção de uma nova política alimentar e de novas instituições33.

Nesta viragem, revelou-se fundamental o Livro Verde sobre os princípios gerais da legislação alimentar na União Europeia, de 1997, que estabeleceu seis objectivos principais, incluindo os de “assegurar um elevado grau de protecção da saúde pública e de segurança do Consumidor”, de garantir “a livre circulação de mercadorias no mercado interno”, de “assegurar que a legislação assenta sobretudo em

33 A moção de censura, apresentada a 17 de Dezembro de 1998, viria a ser rejeitada a 14 de Janeiro de 1999. De entre as diversas questões suscitadas, uma das mais relevantes é a interpelação directa à Comissão sobre se esta tinha colocado o mercado à frente da saúde pública. V. Temporary Committee of Inquiry into BSE, Report on alleged contraventions..., cit., e Speech by Jacques Santer, Presidentof the European Commission, Debate on the report by the Committee of Inquiryinto BSE, SPEECH/97/39, 19.02.1997, http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-97-39_en.htm. V. também Comunicação da Comissão, de 30 de Abril de 1997, sobre saúde dos consumidores e segurança alimentar, COM(97) 183 fi nal, p. 3.

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dados científi cos e em avaliações de risco” e de “atribuir à indústria,aos produtores e aos fornecedores a principal responsabilidade pela segurança alimentar, através da análise de risco e de sistemas do tipo de pontos de controlo críticos [“hazard analysis and critical control points” ou Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos, HACCP], a que há que acrescentar um controlo e aplicação ofi ciais efi cazes”34.

A nova política foi enformada pelo princípio de que a responsabilidadepela decisão política deve estar afastada da responsabilidade pela consulta científi ca – devendo estar também separada das funções inspectivas – e pelo objectivo de garantir maior transparência einformação ao longo de todo o processo35. Estes fi ns guiaram posteriormente os vários documentos sobre legislação alimentar, nomeadamente a Comunicação da Comissão sobre saúde dos consumidores e segurança alimentar, também de 199736.

A longa duração da crise da BSE, a sua gravidade e a reacção pública que originou – a que se juntou, em 1999, a ‘crise de dioxinas’ na Bélgica37 – e, embora com contornos particulares, a polémica em torno dos OGM, fi zeram com que os Estados-Membros estivessem também mais permeáveis a uma reforma institucional profunda. Desde logo, a partir da anterior DG XXIV foi criada uma Direcção-Geral dedicada às questões de saúde e protecção do consumidor (DG

34 Livro Verde sobre os princípios gerais da legislação alimentar na União Europeia, COM(1997) 0176 fi nal, pp. vi e 2.

35 Speech by Jacques Santer..., cit., parágrafo 9.36 Comunicação da Comissão sobre saúde dos consumidores e segurança

alimentar, COM(97) 183 fi nal, p. 3.37 A ‘crise das dioxinas’ teve início em 1999, na Bélgica, quando se detectou

a existência de frangos e ovos contaminados com um tipo de dioxina em níveis superiores ao permitido. O caso teve dimensões europeias, estendendo-se rapidamente a França e à Holanda. V. Decisão 1999/788/CE, de 3 de Dezembro de 1999, relativa a medidas de protecção em relação à contaminação por dioxinas de determinadosprodutos provenientes de suínos e aves de capoeira destinados ao consumo humano ou animal.

SANCO/Direcção-Geral da Saúde e Consumidor) e, através das Decisões 97/404/CE, de 10 de Junho de 1997 e 97/579/CE, de 23 de Julho de 1997, a Comissão passou a ser auxiliada por um ComitéCientífi co Director e por oito comités científi cos divididos por áreas – incluindo um Comité Científi co da Alimentação Humana – quedeveriam aconselhar a Comissão sobre aspectos científi cos, de acordo com os princípios de excelência, transparência e independência, que passaram a nortear a política europeia38.

Com a publicação do Livro Branco sobre a Segurança dos Alimentos, o documento com que culminou a atribulada década de 90, a nova política europeia passou a basear-se, de forma decisiva,na análise do risco e também numa “comprehensive, integrated approach”, sob o mote “from the farm to the fork”, que incluiu a adopção de 84 medidas legislativas abrangendo os vários aspectos da produção alimentar39.

A aprovação do Regulamento (CE) nº 178/2002 desencadeou a transição defi nitiva para uma nova fase, dando resposta ao facto da legislação alimentar ter sido “desenvolvida por etapas, ao longo do tempo, não existindo nenhum acto unifi cador central que estabeleça os princípios fundamentais da legislação alimentar comunitária e defi na claramente as obrigações de todas as partes envolvidas”40.

38 Decisão 97/404/CE, de 10 de Junho de 1997, que cria um Comité Científi co Director e Decisão 97/579/CE, de 23 de Julho de 1997, que cria comités científi cos no domínio da saúde dos consumidores e da segurança alimentar, alteradas pela Decisão 2000/443/CE, de 18 de Maio de 2000. As responsabilidades do Comité Científi co da Alimentação Humana – tal como os Comités Científi cos da Alimentação Animal, da Saúde e do Bem-Estar dos Animais, das Medidas Veterinárias Relacionadas com a Saúde Pública e das Plantas – foram posteriormente integradas na Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos. Sobre os princípios de excelência, transparência e independência v. Comunicação da Comissão sobre saúde dos consumidores e segurança alimentar, COM(97) 183 fi nal, p. 9.

39 Livro Branco sobre a Segurança dos Alimentos, COM(1999) 719 fi nal.40 Livro Verde sobre os princípios gerais da legislação alimentar na União

Europeia, COM(1997) 0176 fi nal, p. 1.

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Correspondendo ao objectivo enunciado no Livro Verde de instituir controlos ofi ciais das responsabilidades atribuídas à indústria, aos produtores e aos fornecedores pela segurança alimentar, foi ainda aprovado o Regulamento (CE) nº 882/2004, que se veio a revelar bastante importante para o funcionamento efi caz do RASFF, ao harmonizar os diferentes sistemas de controlo dos Estados-Membros, defi nidos como “qualquer forma de controlo que a autoridade competente ou a Comunidade efectue para verifi car o cumprimentoda legislação em matéria de alimentos para animais e de géneros alimentícios, assim como das normas relativas à saúde e ao bem-estar dos animais” (artigo 2º, nº 1 do Regulamento (CE) nº 882/2004)41. Este Regulamento integra o chamado ‘Food Hygiene Package’, o qual procurou harmonizar e reforçar as medidas de segurança alimentar na União42.

41 Regulamento (CE) nº 882/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativo aos controlos ofi ciais realizados para assegurar a verifi cação do cumprimento da legislação relativa aos alimentos para animais e aos géneros alimentícios e das normas relativas à saúde e ao bem-estar dos animais, alterado pelo Regulamento (CE) nº 776/2006, da Comissão, de 23 de Maio de 2006. V. também o Regulamento (CE) nº 669/2009, da Comissão, de 24 de Julho de 2009, que dá execução ao Regulamento (CE) nº 882/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho no que respeita aos controlos ofi ciais reforçados na importação de certos alimentos para animais e géneros alimentícios de origem não animal.

42 Este ‘pacote legislativo’ é constituído também pelos Regulamentos (CE)nº 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios, nº 853/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece regras específi cas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal, nº 854/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece regras específi cas de organização dos controlos ofi ciais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano, nº 183/2005, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Janeiro de 2005, que estabelece requisitos de higiene dos alimentos para animais e nº 2073/2005, da Comissão, de 15 de Novembro de 2005, relativo a critérios microbiológicos aplicáveis aos géneros alimentícios.

Finalmente, a última fase da evolução da política alimentar poderá ser delineada desde meados dos anos 2000 até à actualidade, sendomarcada essencialmente pela estabilização das novas políticas. Deu-se a consolidação da AESA e do RASFF, tendo aumentado signifi cativamente o número de notifi cações, mas fi cou também claro que as crises alimentares não estão totalmente sob controlo. O episódio da carne de cavalo, em 2013, em que não esteve em causa a saúde pública, mas a protecção da confi ança do consumidor, é bem demonstrativo deste facto43.

Assim, depois de uma fase inicial de integração positiva, seguida de um período em que se privilegiou a integração negativa, ambas centradas no funcionamento do mercado, e depois do episódio da BSE ter evidenciado de forma contundente as questões da saúde pública, conduzindo à elaboração dos Livros Verde e Branco, do Regulamento (CE) nº 178/2002 e à criação da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (AESA ou Autoridade) e do RASFF, os actuais tempos de estabilização irão determinar os passos seguintes da área a que já se chamou ‘direito alimentar europeu’.

3.2 O Regulamento (CE) nº 178/2002 e a criação da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos

O Re gulamento (CE) nº 178/2002 é considerado o instrumento ‘fundador’ do chamado ‘direito alimentar europeu’44. Este Regulamentorepresenta o culminar do processo de reestruturação da política alimentar: criou a AESA; estabeleceu as normas e os princípios da

43 Em 2013, primeiro no Reino Unido e depois noutros países, foram detectadas várias embalagens de comida congelada pré-cozinhada contendo carne de cavalo. A rotulagem indicava que se tratava de carne de porco e de vaca.

44 Maria João ESTORNINHO, Segurança alimentar e protecção do consumidor de Organismos Geneticamente Modifi cados, Coimbra, 2008, pp. 44 e 45 e Miguel Ángel RECUERDA GIRELA, Seguridad Alimentaria y Nuevos Alimentos. Régimen Jurídico-Administrativo, Navarra, 2006, p. 21 segs.

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legislação alimentar e os procedimentos de segurança para os alimentos; e defi niu, pela primeira vez a nível europeu, os conceitos de ‘género alimentício’ e ‘legislação alimentar’ (artigos 2º e 3º, nº 1, respectivamente)45.

O Regulamento (CE) nº 178/2002 teve em vista promover a efi ciência, a transparência e a legitimidade dos novos processos de regulação da cadeia alimentar, assentando em duas vertentes essenciais:por um lado, o elevado nível de protecção da saúde humana e dos interesses dos consumidores, “incluindo as boas práticas no comércio” e tendo em conta “a protecção da saúde e do bem-estar animal, a fi tossanidade e o ambiente” (artigos 1º e 5º, nº 1); e, por outro lado, o funcionamento efectivo do mercado interno, devendo a legislação alimentar “visar a realização da livre circulação” dos alimentos (artigos 1º e 5º, nº 2).

Um segundo equilíbrio que guia as directrizes da legislação alimentar europeia consiste na habitual ponderação entre interesses europeus e nacionais ou locais, patente desde logo no artigo 1º,nº 1 que estabelece que o regulamento “prevê os fundamentos para garantir um elevado nível de protecção da saúde humana e dos interesses dos consumidores em relação aos géneros alimentícios, tendo nomeadamente em conta a diversidade da oferta de géneros alimentícios, incluindo produtos tradicionais”46.

Assente no risco, o regulamento veio também codifi car algumas defi nições relevantes, nomeadamente a análise do risco e os três elementos que a compõem, avaliação do risco, gestão do risco e comunicação do risco (artigo 3º), abrangendo “todas as fases de produção, transformação e distribuição de géneros alimentícios”

45 O Regulamento (CE) nº 178/2002 distingue entre ‘género alimentício’ ou ‘alimento para consumo humano’ e ‘alimento para animais’. Refi ro frequentemente ‘alimentos’, tendo como primeiro signifi cado os alimentos para consumo humano.

46 Sublinhado meu – Alberto ALEMANNO, Food Safety and the..., cit., p. 255.

(artigo 1º, nº 3 e artigo 4º, nº 1), orientação que é afi rmada de forma inequívoca pelo artigo 6º, nº 147. Para além disso, serão tidos em contaos princípios da precaução (artigo 7º), a protecção dos interesses dos consumidores (artigo 8º) e o princípio da transparência, traduzido nos procedimentos de consulta pública (artigo 9º) e na informação aos cidadãos (artigo 10º)48. No âmbito da consulta dos cidadãos, foi criado um grupo consultivo da cadeia alimentar, da saúde animal e da fi tossanidade, reunindo as várias partes interessadas, cuja função é aconselhar a Comissão49.

O regulamento estabelece que não serão colocados no mercado géneros alimentícios que não sejam seguros, ou seja, que sejam prejudiciais para a saúde ou impróprios para consumo humano (artigo 14º), detalhando as responsabilidades dos operadores das empresas do sector alimentar que deverão assegurar a segurança dos alimentos em todas as fases da cadeia, sujeitos aos sistemas de controlos ofi ciais, bem como a rastreabilidade dos alimentos através da rotulagem e identifi cação (artigos 17º, 18º e 19º).

47 Sobre a análise do risco em maior detalhe, v. infra 5. Sobre os vários modelos de legitimação da regulação do risco, comparando a União Europeia, os Estados Unidos da América e o Canadá, v. Grace SKOGSTAD, Regulating Food Safety..., cit., pp. 213 segs.

48 Estas orientações foram consagradas na Convenção sobre Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente (Convenção de Aarhus), aprovada para ratifi cação pela Resolução da Assembleia da República nº 11/2003, Diário da República, 1ª série, 25 de Fevereiro de 2003. Desenvolvendo o tema do direito à informação e a ideia da informação como partilha do “poder”, v. entre outros, Carla AMADO GOMES, A caminho de uma ecocidadania: notas sobre o direito à informação ambiental. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 136/05, in Direito do Ambiente, Anotações Jurisprudenciais Dispersas, Lisboa, 2013, pp. 59-73. V. também, sobre a informação dos cidadãos, o Processo C-636/11, Karl Berger v Freistaat Bayern [2013].

49 Decisão 2004/613/CE, de 6 de Agosto de 2004, relativa à criação de um grupo consultivo da cadeia alimentar, da saúde animal e da fi tossanidade, alterada pela Decisão 2011/242/UE, de 14 de Abril de 2011.

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Um dos aspectos mais importantes do regulamento é a criação da AESA, o organismo responsável pelo aconselhamento científi co– correspondente à fase da avaliação do risco –, entidade que fi ca encarregada de “fornecer pareceres científi cos e apoio técnico e científi co à legislação e políticas comunitárias” no domínio da alimentação, devendo “fornecer informações independentes sobre todas as questões desses domínios e proceder à comunicação do risco”, cabendo-lhe ainda contribuir para os objectivos gerais da legislação alimentar (artigo 22º, nºs 2 e 3).

A Autoridade enquadra-se na grande vaga de utilização do modelo de agência a que se voltou a assistir no início do novo milénio50. Com efeito, trata-se de uma agência independente dotada de personalidade jurídica (artigo 46º), que serve como ponto de referência na UE (artigo 22º, nº 7). A natureza deste organismo foi motivo de debate institucional, tendo-se oscilado entre a opção por uma entidade que tivesse a seu cargo, para além da avaliação, a gestão do risco (à semelhança da infl uente Food and Drug Administration americana), retirando esta função à Comissão, ou a opção por uma entidade que se limitasse a avaliar o risco. A primeira solução surgiu do relatório dos cientistas James, Kemper e Pascal, que pendiam para a atribuição de poder regulatório à autoridade, e a segunda, que veio a prevalecer, era privilegiada pela Comissão, com base na ideia de que se coadunaria melhor com a accountability democrática e, acima de tudo, de que o poder regulatório deveria pertencer à Comissão, como órgão político51.

50 Paul CRAIG, EU Administrative Law, Oxford, 2006, pp. 149 e 150. Ellen VOS utiliza a ilustrativa expressão “agencies are mushrooming in the new millenium”, Ellen VOS, Independence, Accountability and Transparency of EuropeanRegulatory Agencies, in GERADIN, MUÑOZ, PETIT, Regulation through Agencies in the EU, A New Paradigm of European Governance, Cheltenham, 2005, pp. 120-137, p. 132.

51 “The Commission has stressed in the White Paper that it is neither appropriate nor feasible to devolve risk management power to the Authority. We believe that decisions in the risk management area should properly remain the preserve of

Em caso de confl ito com outros organismos, nomeadamente com as autoridades nacionais, a AESA apenas poderá cooperar com os organismos competentes dos Estados-Membros (artigo 22, nºs 7 e 8 e artigo 30º)52. Embora estes parâmetros possam parecer insufi cientes para a Autoridade exercer o seu mandato, na realidade o recurso dos tribunais às opiniões da AESA, as obrigações que se colocam aos operadores privados e o dever de cooperação a que as autoridades nacionais estão sujeitas fazem com que exista uma autoridade de facto. A AESA movimenta-se, assim, num equilíbrio de competências que se prende com as tensões que, de forma mais geral, existem entre a União e os Estados-Membros. A cooperação inclui a criação de uma rede europeia de organismos que trabalhem nos domínios da competência da AESA (artigo 36º), cujo controlo político é simultaneamente difi cultado, pela multiplicidade dos intervenientes e das suas esferas geográfi cas de actuação, e benefi ciado, pelo pluralismo inerente53.

the Commission, Parliament and Council, as appropriate”, “Address by David Byrne, Commissioner for Health and Consumer Protection on the White Paper on Food Safety Meeting of the Scientifi c Steering Committee”, SPEECH/00/146, 14.04.2000. O relatório de James, Kemper e Pascal foi publicado em 1999, v. Philip JAMES, Fritz KEMPER, Gerard PASCAL, A European Food and Public Health Authority, The future of scientifi c advice in the EU, Dezembro de 1999, http://ec.europa.eu/food/fs/sc/future_food_en.pdf. Sobre as agências e a accountability v., entre outros, Laurie BUONANNO, The Creation of the European Food..., cit., pp. 266 segs., Deirdre CURTIN, Delegation to EU Non-majoritarian Agencies and Emerging Practices of Public Accountability, in GERADIN, MUÑOZ, PETIT, Regulation through Agencies in the EU, A New Paradigm of European Governance, Cheltenham, 2005, pp. 88-119 e Ellen VOS, Independence,Accountability and Transparency..., cit., pp. 120-137.

52 Alberto ALEMANNO, Food Safety and the..., cit., p. 249.53 Paul CRAIG, EU Administrative Law, cit., pp. 176 e 178-179. V. Regulamento

(CE) nº 2230/2004, da Comissão, de 23 de Dezembro de 2004, que estabelece normas de execução do Regulamento (CE) nº 178/2002 no que diz respeito à criação de redes de organismos que trabalhem nos domínios da competência da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos.

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Os juízos sobre segurança alimentar incluem, para além de considerações científi cas objectivas, considerações sobre o risco que determinado Estado ou comunidade pretende assumir na preservação das suas tradições culturais54. A primazia da AESA sobre as autoridadesnacionais poderia implicar uma uniformização de padrões, a bem do mercado interno, com efeitos negativos sobre a diversidade cultural e gastronómica europeia – opção que, como se referiu, foi afl orada sem êxito na década de 80. Como descreve Alemanno, “confl icts about food safety within the European contexto inevitable involve a tension between a European (universal) and a national (local) vision of both safety and the sociocultural perception of a particular food”, acrescentando que a AESA refl ecte, por um lado, a recusa da Comissãoem ceder à uniformização alimentar, e, por outro, a defesa dos Estados-Membros das suas noções próprias de risco55.

As tarefas da Autoridade procuram sublinhar a sua natureza de organismo de aconselhamento científi co e o seu carácter independente, sendo marcadamente o organismo ‘avaliador do risco’ por oposição à Comissão, ‘gestora do risco’ (artigo 23º). Porém, cabe à AESA a comunicação do risco (artigo 40º).

Na sua actuação, a Autoridade deve agir com independência e transparência (nos procedimentos e nos métodos de funcionamento,artigo 22º, nº 7), devendo os membros do Conselho de Administração, do Fórum Consultivo, do Comité Científi co, dos painéis científi cos e o Director Executivo prestar declarações de compromisso e de

54 Note-se, por exemplo, o caso dos queijos não pasteurizados ou dos enchidos, em que as formas de produção artesanais poderão implicar a assumpção de um determinado risco.

55 Alberto ALEMANNO, Food Safety and the..., cit., p. 254. V. também, a propósito, Damian CHALMERS, Food for thought: reconciling European risks and traditional ways of life, Modern Law Review, 66, 2003, pp. 532-562 e Paola TESTORI COGGI, Risk Perception: Science, Public Debate and Policy Making – Speaking Notes, Bruxelas, Dezembro de 2003, http://ec.europa.eu/food/risk_perception/sp/testori_coggi.pdf.

interesses para esse efeito (artigos 37º e 38º), excepto quando se tratem de informações confi denciais justifi cadas, e caso não esteja em causa a protecção da saúde pública (artigo 39º)56. O requisito de transparência obriga ainda a que as reuniões do Conselho deAdministração sejam públicas, a não ser quando, sob proposta do Director e relativamente a pontos administrativos específi cos a defi nir em regulamento interno, se decida em contrário (artigo 38º, nºs 2 e 3). Os membros do Conselho de Administração são escolhidos pelo Conselho, a partir de uma lista elaborada pela Comissão, em consulta com o Parlamento Europeu (artigo 25º), num processo que, semincluir qualquer representação dos países, constitui mais um indício da prontidão em reagir à quebra de confi ança institucional registada após as crises alimentares dos anos 9057.

A AESA emite pareceres científi cos a pedido da Comissão (sempreque a legislação preveja a consulta da Autoridade), dos Estados-Membrose do Parlamento Europeu podendo também fazê-lo por iniciativa própria (artigo 29º), cabendo-lhe ainda a assistência científi ca e técnicaà Comissão (artigo 31º). A Autoridade pode recusar a emissão de pareceres se considerar que o pedido não cumpre os requisitos ou que já se pronunciou sobre a questão em causa (artigo 29º, nºs 4 e 5). Finalmente, cabe à Autoridade a identifi cação de riscos emergentes (artigo 34º) e o exame das mensagens de alerta rápido (artigo 35º).

56 A obrigação de independência está associada ao episódio da BSE em que surgiram suspeitas na opinião pública de que o atraso na tomada de decisões estaria ligado aos interesses comerciais que alguns membros dos painéis tinham na indústria alimentar. No entanto, as suspeitas de infl uência da indústria alimentar junto dos peritos e dos painéis não terminaram com a criação da AESA. A título de exemplov. Stéphane FOUCART, Sécurité alimentaire européenne: 59 % des experts en confl it d’intérêts, Le Monde, 23.10.2013, http://www.lemonde.fr/sciences/article/ 2013/10/23/securite-alimentaire-europeenne-59-des-experts-en-confl it-d-interets_ 3501367_1650684.html.

57 V. Ellen VOS, Independence, Accountability and Transparency..., cit., pp. 124 e 132.

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Para auxiliar a Comissão Europeia, foi criado pelo Regulamento (CE) nº 178/2002 o Comité Permanente da Cadeia Alimentar e da Saúde Animal (Standing Committee on the Food Chain and Animal Health ou ‘Scofka’), composto por representantes dos Estados-Membros e presidido por um representante da Comissão, com o mandato de assistir a Comissão em todos os aspectos relacionados com a cadeia alimentar (artigo 58º)58.

3.3 O RASFF (Sistema de Alerta Rápido para os Géneros Alimentíciose Alimentos para Animais)

Na União Europeia, a gestão das crises alimentares assenta em dois pilares complementares. Cabe aos Estados-Membros garantir a segurança alimentar e o cumprimento da legislação relativa aos géneros alimentícios e aos alimentos para animais, mas, para que exista uma rápida comunicação entre Estados, foi criado o RASFF que funciona como um mecanismo de interligação59. O sistema de alerta rápido, remontando a 1979, foi formalmente instituído pela Directiva 92/59/CEE que estabeleceu um sistema de troca de informações em caso de emergência que funcionasse a nível nacional e europeu60. Porém, as crises alimentares da década de 90 do século passado vieram evidenciar que a morosidade e complexidade do sistema

58 O parecer favorável da maioria qualifi cada dos Estados-Membros representados no Comité é necessário na adopção de certas medidas.

59 Para uma evolução histórica do RASFF, v. Comunicação da Comissão The Rapid Alert System for Food and Feed of the European Union, COM(2009) 25 fi nal.

60 A Directiva 92/59/CEE estabelecia no Anexo I o esquema inicial do que viria a ser o RASFF, excluindo ainda os animais e os produtos de origem animal. V. Directiva 92/59/CEE, do Conselho, de 29 de Junho de 1992, relativa à segurança geral dos produtos.

existente não eram adequadas a situações que, pela sua natureza, exigiam respostas urgentes e adequadamente coordenadas61.

Os diplomas fundamentais no âmbito dos riscos alimentares são, para além do Regulamento (CE) nº 178/2002, o Regulamento (UE) nº 16/2011, que estabelece as medidas de execução do RASFF (conforme o artigo 51º do Regulamento (CE) nº 178/2002), e ainda o Regulamento (CE) nº 183/2005 que alarga o âmbito de aplicação do RASFF à saúde animal e ambiente62. O Regulamento (CE)nº 882/2004 contribuiu também signifi cativamente para a efi cácia do RASFF, como se referiu, ao permitir a harmonização dos sistemas de controlo.

O RASFF integra os Estados-Membros, a Comissão Europeia, que gere a rede, a AESA e ainda a Noruega, a Islândia e o Liechtenstein, ao abrigo do artigo 50º, nº 6 do Regulamento (CE) nº 178/2002 e do artigo 1º, nº 2 do Regulamento (UE) nº 16/2011.

O funcionamento do sistema de alerta faz-se essencialmente através de notifi cações à Comissão respeitantes a medidas adoptadas pelos Estados-Membros “com vista a restringir a colocação no mercado ou a impor a retirada do mercado, ou a recolha, de géneros alimentíciosou de alimentos para animais, a fi m de proteger a saúde humana, e queexija uma acção rápida”, a “qualquer recomendação ou acordo com operadores profi ssionais que vise, numa base voluntária ou obrigatória, prevenir, limitar ou impor condições específi cas à colocação no mercado ou eventual utilização de géneros alimentícios ou de alimentos para animais devido a um risco grave para a saúde humana que exija uma

61 Para uma maior efi ciência do RASFF também contribuiu o desenvolvimento tecnológico que permitiu que as notifi cações, por vezes com centenas de páginas, não tivessem de ser transmitidas por morosos faxes aos Estados-Membros.

62 V. Regulamento (UE) nº 16/2011, da Comissão, de 10 de Janeiro de 2011, que estabelece medidas de execução relativas ao Sistema de Alerta Rápido para os Géneros Alimentícios e Alimentos para Animais e Regulamento (CE) nº 183/2005 (artigo 29º).

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acção rápida” e a medidas de rejeição relacionadas “com um riscodirecto ou indirecto para a saúde humana, de qualquer lote, contentorou carga de géneros alimentícios ou de alimentos para animais por parte de uma autoridade competente num posto fronteiriço da União Europeia” (artigo 50º, nº 3).

O Regulamento (UE) nº 16/2011 concretiza a tipologia das notifi cações. As primeiras, de alerta, dirigem-se a “um risco que exige ou pode exigir uma acção rápida noutro país membro” (artigo 1º, nº 4).As notifi cações de informação são relativas a “um risco que não exige uma acção rápida noutro país membro”, tendo o Regulamento (UE) nº 16/2001 introduzido as subcategorias de “acompanhamento”, quando está “relacionada com um produto que está ou pode estar colocado no mercado de outro país membro”, ou “para chamada de atenção”, quando o produto “i) está presente apenas no país membro notifi cante; ou ii) não foi colocado no mercado; ou iii) já não está presente no mercado” (artigo 1º, nº 5, alíneas a) e b), respectivamente). Finalmente, a notifi cação de rejeição nos postos fronteiriços diz respeito à “rejeição de qualquer lote, contentor ou carga de géneros alimentícios ou de alimentos para animais”, conforme o artigo 50º, nº 3, alínea c) do Regulamento (CE) nº 178/2002 (artigo 1º, nº 6 do Regulamento (UE) nº 16/2001). O Regulamento (UE) nº 16/2011 indica ainda uma outra distinção entre notifi cações originais – que incluem as notifi cações de alerta, de informação para acompanhamento, de informação para atenção e de rejeição nos postos fronteiriços – e de acompanhamento, que “contém informações adicionais em relação à notifi cação original” (artigo 1º, nºs 7 e 8, artigo 6º e artigo 7º, nº 3)63.

As notifi cações de alerta devem ser feitas à Comissão, “o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, no prazo de 48 horas a partir do momento em que o membro tomou conhecimento do risco”

63 No portal RASFF podem ser consultadas as notifi cações originais: https://webgate.ec.europa.eu/rasff-window/portal/?event=SearchForm&cleanSearch=1.

(artigo 3º do Regulamento (UE) nº 16/2011), enquanto as notifi cações de informação e rejeição não estão sujeitas a prazo máximo indicado, devendo ser enviadas à Comissão “sem atraso injustifi cado” (artigo 4º e 5º do Regulamento (UE) nº 16/2011). Em todas as situações as notifi cações deverão incluir a informação disponível completa,especialmente sobre o risco e o produto a que o risco está ligado(artigos 3º, nº 1, 4º, nº 1 e 5º, nº 1 do Regulamento (UE) nº 16/2011), sendo que, em relação às notifi cações de alerta, “o facto de não ter sido recolhida toda a informação pertinente não deve atrasar injustifi cadamente a transmissão” (artigo 3º, nº 1 do Regulamento (UE) nº 16/2011).

Cabe à Comissão a verifi cação das notifi cações antes do envio para os pontos de contacto, assegurando que cumprem com os critérios constantes do artigo 8º: integridade; legibilidade; correcção da base jurídica em caso de incumprimento; inclusão do objecto da notifi cação no âmbito da rede, de acordo com o artigo 50º do Regulamento (CE) nº 178/2002; linguagem compreensível; cumprimento dos requisitos do Regulamento (UE) nº 16/2011; e identifi cação de repetições no risco, no operador profi ssional e/ou no país de origem da notifi cação. Quando a informação que serve de base à acção a adoptar for infundada ou a notifi cação tiver sido transmitida de forma errónea, qualquer membro pode pedir a retirada da mesma, podendo ainda solicitar alterações a uma notifi cação, em ambos os casos com o acordo do notifi cante (artigo 9º do Regulamento (UE) nº 16/2011). O Regulamento (UE) nº 16/2011 prevê ainda a informação do país terceiro quando o produto tiver nele origem (artigo 10º).

A maioria dos alertas submetidos ao RASFF são, como se referiu, rejeições fronteiriças, existindo um sistema de controlo implementado, os postos de inspecção fronteiriços, para assegurar a manutenção dos padrões de segurança alimentar na Europa.

Em Portugal, o ponto de contacto é a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV ou Direcção-Geral) que envia à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) as notifi cações para efeitos do Regulamento (CE) nº 178/2002 (artigo 50º, nº 1) e do

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Regulamento (UE) nº 16/2011 (artigo 2º), de acordo com o Decreto-Lei nº 7/2012, de 17 de Janeiro (artigo 13º), e com o Decreto Regulamentar nº 31/12, de 13 de Março (artigo 2º, nº 2, al. b), d) e l))64. A DGAV é dotada de autonomia administrativa (artigo 1º do Decreto Regulamentar nº 31/12) tendo como missão a “defi nição, execução e avaliação das política de segurança alimentar” (artigo 2º, nº 1 do Decreto Regulamentar nº 31/12). A Direcção-Geral é ainda a “autoridade responsável pela gestão do sistema de segurança alimentar” (artigo 2º, nº 1 do Decreto Regulamentar nº 31/12). No caso da ASAE, e nos termos da orgânica defi nida no Decreto-Lei nº 194/2012, de 23 de Agosto, está a seu cargo a avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar, sendo ainda o ponto de contacto com outros organismos europeus e internacionais (artigo 2º, nºs 1 e 2, alínea b) e artigo 5º)65. De forma idêntica à AESA, a ASAE é a autoridade responsável pela avaliação e comunicação do risco (artigo 2º, nºs 1 e 5), cabendo a gestão do risco à DGAV. No entanto, à ASAE, como órgão de polícia, cabe a fi scalização do cumprimento da lei e a instauração de processos contra-ordenacionais e criminais (artigo 15º, nº 1). A relação entre os dois organismos tem sido objecto de alguma indefi nição, como aponta o relatório do Serviço Alimentar e Veterinário da Comissão (Food and Veterinary Offi ce, FVO) a propósito da avaliação do controlo de contaminantes nos alimentos: “the lack of clear division of competence between competent authorities involved [DGAV e ASAE] and a lack of coordinated approach to offi cial controls combined with communication problems undermine the effectiveness of controls”66.

64 Alterado pelo Decreto-Lei nº 109/2013, de 1 de Agosto.65 A ASAE “integra “o conjunto de entidades a quem são obrigatoriamente

comunicadas as mensagens que circulam no sistema de alerta rápido (RASFF)”, Decreto-Lei nº 194/2012, artigo 2º, nº 2, al. b), iv).

66 O relatório critica a DGAV por não ter “staff trained to control establishments processing food of non-animal origin, control procedures, access to adequate

O FVO é um serviço da Comissão, cuja função principal consisteem, através de inspecções e auditorias, garantir a aplicação e o cumprimento da legislação europeia de segurança e qualidade dos alimentos, sanidade animal, fi tossanidade e bem-estar dos animais, garantir o cumprimento dos requisitos de importação por países terceiros que exportem para a UE, contribuir para o desenvolvimentoe implementação de sistemas de controlo efectivos de segurança alimentar, sanidade animal e fi tossanidade, e informar a partesinteressadas dos resultados das suas auditorias e inspecções. O FVO não regula directamente, mas inspeciona e monitoriza os sistemas regulatórios dos Estados-Membros, funcionando em estreita articulação com o RASFF, sendo através do sistema de notifi cações deste último que frequentemente se tomam as decisões sobre que inspecções devem ser efectuadas pelo FVO. A articulação entre os dois organismos funciona também em sentido inverso, podendo as inspecções do FVO conduzir a notifi cações do RASFF67.

Para além do sistema de alerta, o Regulamento (CE) nº 178/2002 prevê ainda outras duas situações: as emergências, em que a Comissão é autorizada a tomar medidas específi cas, quando um alimento for susceptível de constituir um risco grave para a saúde humana, animal ou para o ambiente e esse risco não puder ser satisfatoriamente

sampling equipment and designated laboratories”. No caso da ASAE, destaca que a autoridade “operates a system for the offi cial controls of contaminants in foods on the market which is risk based. (...) The scope of testing in the ASAE laboratory does not yet cover the full range of contaminants due to the lack of certain validated methods”. V. Final report of an audit carried out in Portugal from 29 April to 08 May 2013 in order to evaluate the controls for contaminants in food, DG(SANCO) 2013-6658 – MR FINAL, 10.10.2013, http://ec.europa.eu/food/fvo/act_getPDF.cfm?PDF_ID=10695.

67 Comunicação da Comissão The Rapid Alert System for Food and Feed of the European Union, COM(2009) 25 fi nal, p. 25. A situação descrita ocorreu, por exemplo, no Processo T-212/06, Bowland Dairy Products Ldt v Commision of the European Communities [2006], ECR II-4073.

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controlado pelos Estados-Membros (artigo 53º), ou, caso a Comissão não o faça, e após informação ofi cial do Estado-Membro, os casos em que este tome medidas de protecção provisórias (artigo 54º); e a elaboração de um plano de gestão de crises pela Comissão, especifi cando as situações que impliquem riscos para a saúde que não possam ser supridos pela legislação alimentar em vigor e que não possam ser geridos unicamente pelas medidas previstas para as situações de emergência (artigo 55º)68.

4. O quadro internacional

Em 1950, na primeira sessão do Joint FAO/WHO Expert Committee on Nutrition foi manifestada a preocupação de que “food regulations in different countries are often confl icting and contradictory. Legislation governing preservation, nomenclature and acceptable food standards often varies widely from country to country”69. Nos anos subsequentes,foram tomados várias medidas com vista à formulação de padrões alimentares mínimos e ao estudo da segurança alimentar. Em 1962, uma conferência conjunta da FAO e da OMS (Joint FAO/WHO Food Standards Conference) reuniu-se para estabelecer um quadro de cooperação entre as duas agências das Nações Unidas, criando a Comissão do Codex Alimentarius70. A Comissão foi responsável pela implementação do programa Joint FAO/WHO Food Standards, aprovado em 1963, na 16ª Assembleia Mundial da Saúde. Segundo Cassese, a Comissão do Codex Alimentarius integra um dos vários exemplos de organismos de direito administrativo global, tratando-se

68 O plano foi detalhado na Decisão 2004/478/CE, de 29 de Abril de 2004, relativa à adopção de um plano geral de gestão de crises no domínio dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais.

69 FAO, Understanding the Codex..., cit., p. 6.70 11ª Sessão da Conferência da FAO, Novembro de 1961.

de um caso paradigmático da administração pública sujeita a critérios globais que ultrapassam o domínio substancial, incluindo também o domínio procedimental71. O Codex consiste num conjunto de recomendações, orientações e códigos de boas práticas relativamente a um leque muito diversifi cado de temas, incluindo as características dos alimentos, os seus processos produtivos, os sistemas de controlo,requisitos de higiene alimentar ou os procedimentos administrativos nacionais relacionados com a segurança alimentar e a protecção do consumidor. Tal como sucede com a generalidade dos sistemas de segurança alimentar, baseia-se na ciência, como se lê no “Statement of Principle Concerning the Role of Science in the Codex Decision-Making Process and the Extent to Which Other Factors are Taken into Account”, que estabelece que o Codex Alimentarius se deverá basear numa sólida análise científi ca72.

A importância do Codex foi crescendo à medida que o tráfego global se foi intensifi cando, tendo sido reconhecida pelas Nações Unidas na Resolução 39/248, de 1985, que defi niu orientações para o reforço da protecção do consumidor e da segurança alimentar, e que indicou que, ao formular as políticas nacionais relativas à alimentação, os governos devem ter em consideração o imperativo da segurança alimentar e devem adoptar, sempre que possível, os padrões de segurança estabelecidos pelo Codex Alimentarius73.

Em 1995, entraram em vigor os Acordos da Organização Mundial do Comércio – Acordo relativo ao Entraves Técnicos às TrocasComerciais (Technical Barriers to Trade, TBT) e Acordo de Medidas

71 Sabino CASSESE, Gamberetti, Tartarughe e Procedure, Standards Globali per i Diritti Amministrativi Nazionali, Rivista trimestrale di diritto pubblico, 3, 2004, pp. 657-678, p. 659. A propósito do direito administrativo global v., entre outros, o texto citado e Sabino CASSESE, Il diritto amministrativo globale, una introduzione, Rivista trimestrale di diritto pubblico, 2, 2005, pp. 331-357.

72 FAO, Understanding the Codex..., cit., p. 2173 V. A/RES/39/248, de 16 de Abril de 1985, Consumer protection, parágrafo 39.

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Sanitárias e Fitossanitárias (Sanitary and Phytosanitary Measures, SPS) – encorajando a harmonização internacional dos padrões alimentares e dando uma nova legitimidade ao Codex. O primeiro acordo aplica-se à generalidade dos produtos e medidas e o segundo diz respeito ao direito dos Estados de estabelecerem graus de protecção sanitária adequados, sem que constituam um mecanismo de protecção encapotado e sem que introduzam entraves desnecessáriosàs trocas comerciais74. O Acordo TBT estabelece que as partescontratantes podem adoptar práticas divergentes em relação às normas internacionais em casos de “informação enganosa, protecção da saúde e segurança humanas, protecção da vida e segurança animal e protecção do ambiente”75. Por seu turno, o Acordo SPS refere explicitamente a relevância das directrizes e recomendações do Codex Alimentarius, atribuindo-lhes um estatuto de referência internacional76.

Para além do Codex, foi criado, em 2000, no âmbito da WHO, um sistema de alerta rápido, a rede INFOSAN, que promove a troca e disseminação de informações sobre segurança alimentar pelas diversas autoridades competentes, a nível nacional e internacional, tendo pontos de contacto na grande maioria dos países – no caso de Portugal, o ponto de contacto de referência é a DGAV (artigo 2º, nº 2, alínea b), do Decreto Regulamentar nº 31/12, de 13 de Março). Estes pontos de contacto são informados através da rede, distribuindo

74 Por exemplo, os organismos geneticamente modifi cados têm sido alvo de disputas internacionais – especialmente entre os Estados Unidos e a União Europeia – ao abrigo do Acordo SPS.

75 Artigos 2º, nº 2 e 6 e 5º, nº 4 e 7 do Acordo TBT.76 O Anexo I do Acordo SPS defi ne, como “international standards, guidelines

and recommendations” para a segurança alimentar “the standards, guidelines and recommendations established by the Codex Alimentarius Commission relating to food additives, veterinary drug and pesticide residues, contaminants, methods of analysis and sampling, and codes and guidelines of hygienic practice” (artigo 3, a)).

posteriormente as notas recebidas pelos organismos da Administraçãorelevantes, e devem também informar a INFOSAN caso exista alguma emergência alimentar com implicações internacionais. A existência destes pontos de contacto, servindo como referência dos organismos internacionais, e por vezes designados por estes mesmos organismos, revela a mudança do paradigma do Estado como unidade, passando a organização administrativa interna a ganhar crescente relevância internacional e, reciprocamente, os organismos internacionais a ganharem relevância na organização interna77.

A rede INFOSAN reúne dados sobre doenças e perigos alimentares fornecidos por autoridades nacionais, regionais e internacionais, e tal como sucede com o sistema RASFF, os Estados-Membros da rede têm sistemas de alerta rápido activados para as diferentes situações e para os diferentes graus de gravidade78.

Em 2008, a cooperação internacional no âmbito de uma crise alimentar atingiu um novo patamar de interligação, na gestão do episódio da ‘melamina’, com origem na China. Nesse ano foram detectados vários lotes de leite infectado com melamina, substância que falseia positivamente o conteúdo proteico dos alimentos, tendo o primeiro alerta de emergência INFOSAN sido emitido a 16 de Setembro de 200879. Apesar das críticas no atraso da comunicação

77 Sobre a ideia de ‘desagregação’ do Estado como unidade, v. Sabino CASSESE, Gamberetti, Tartarughe e Procedure..., cit., p. 668 e Sabino CASSESE, Il diritto amministrativo globale..., cit., p. 346.

78 Em casos de particular gravidade, a rede INFOSAN pode associar-se aos sistemas Global Outbreak Alert and Response (GOARN), relativo a doenças infecciosas, e ao Global Early Warning System (GLEWS), para doenças zoonóticas, ambos no quadro da WHO. A WHO gere ainda o Global Public Health Intelligence Network (GPHIN), que reúne informações a partir de fontes informais, como a internet ou os canais noticiosos.

79 A infecção estendeu-se posteriormente ao leite em pó para bebés e a outrosalimentos. Sobre o episódio da melamina v., por exemplo, o comunicado da WHO, de 25 de Setembro de 2008, http://www.simmons.edu/hygieneandhealth/docs/Melamine.pdf.

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à rede, verifi cou-se um nível de cooperação elevado entre os vários sistemas (incluindo o RASFF) liderado pela INFOSAN80.

5. A regulação do risco na base da legislação alimentar

O processo decisório europeu é permanentemente ameaçado pelo “constant spectre of ‘scientifi c indeterminacy’” subjacente às várias etapas da cadeia alimentar e as crises alimentares que ocorreram naEuropa vieram pôr em evidência a inefi cácia dos mecanismos existentes de análise do risco, questionando a actividade administrativa da regulação do risco em matéria alimentar e o cânone da infalibilidade da ciência81.

A Comunicação da Comissão sobre saúde dos consumidores e segurança alimentar dividiu a análise do risco em três componentes, “avaliação”, “gestão” e “comunicação” do risco, uma orientação que foi seguida em numerosos documentos relacionados com a “scientifi c expertise”, incluindo o Livro Branco sobre a Segurança dos Alimentos e, de forma inequívoca, o Regulamento (CE) nº 178/200282.

80 O RASFF tem vindo a colaborar com a rede INFOSAN tendo em conta, não só a globalização crescente das trocas comerciais, mas também o facto de a maioria das notifi cações do RASFF serem de rejeição fronteiriça. A obrigação da UE e dosEstados-Membros cooperarem com organizações internacionais está identifi cada no Regulamento (CE) nº 178/2002 (artigo 13º). V. Comunicação da Comissão The Rapid Alert System for Food and Feed of the European Union, COM(2009) 25 fi nal, p. 37.

81 Michelle EVERSON, Good Governance and European Agencies: The Balance, in GERADIN, MUÑOZ, PETIT (eds.), Regulation through Agencies in the EU, A New Paradigm of European Governance, Cheltenham, 2005, pp. 141-163, p. 158.V. Maria Eduarda GONÇALVES, Ana DELICADO, Hélder RAPOSO, Mafalda DOMINGUES, Consumidores, pacientes, activistas, cidadãos: representação e participação do público na gestão do risco, in GONÇALVES (coord.), DELICADO, BASTOS, RAPOSO, DOMINGUES, Os Portugueses e os Novos Riscos, Lisboa, 2007, pp. 169-215.

82 Comunicação da Comissão sobre saúde dos consumidores e segurança alimentar, COM(97) 183 fi nal, pp. 19 e 20. Regulamento (CE) nº 178/2002 (artigo 3º, nºs 10, 11, 12 e 13).

A avaliação do risco, a fase verdadeiramente científi ca do processo, permite identifi car os perigos que podem atingir a saúde dos consumidores e estimar a probabilidade do seu aparecimento numa determinada situação. Esta fase divide-se em quatro etapas: identifi caçãodo perigo, caracterização do perigo, avaliação da exposição e caracterização do risco, devendo a avaliação ser independente, objectiva e transparente, bem como baseada na melhor ciência disponível.

Já a gestão do risco consiste fundamentalmente, após feita a avaliação, em determinar que medidas podem ser tomadas para reduzir ou conter o risco identifi cado, de forma a assegurar um nível de protecção adequado. As medidas devem ter em conta o impacto das várias alternativas possíveis e a sua ponderação deve ser feita tendo em conta também aspectos ambientais e socioeconómicos. No caso da legislação alimentar, sendo a Comissão o ‘risk manager’, esta poderá ter em consideração outros factores, para além das opiniões científi cas da AESA.

Através do último elemento da análise do risco, a comunicação, pretende-se que seja promovida a troca de informações sobre a natureza dos riscos e as medidas a serem tomadas83. A comunicação do risco deve ser transparente, envolvendo a participação das partes interessadas e dos cidadãos em geral em todas as fases do processo,devendo incluir informações científi cas, e tendo em conta aspreocupações de riscos de saúde dos cidadãos. Embora se verifi queno domínio do ‘direito alimentar’ – e não só – um reforço dos “direitos procedimentais que visam incrementar a participaçãodos cidadãos nos processos de decisão públicos”84, procurando

83 Comunicação da Comissão sobre saúde dos consumidores e segurança alimentar, COM(97) 183 fi nal, p. 7.

84 Carla AMADO GOMES, Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas verdades inconvenientes, Scientia Iuridica, nº 315, 2008, pp. 409-426, p. 415.

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compensar as quebras democráticas diagnosticadas em vários contextos, nomeadamente no plano europeu, a realidade é que as garantias de participação não parecem conferir uma verdadeira possibilidade de os cidadãos serem ouvidos junto dos organismos com capacidade decisória. A natureza essencialmente técnica dos relatórios de avaliação e dos pareceres alia-se à brevidade dos prazos de consulta, dois factores que permitem duvidar que o envolvimento das partes interessadas e dos cidadãos se traduza, na prática, em algo mais do que um exercício simbólico.

Deverá ser tido ainda em conta o princípio da precaução, a que o Regulamento (CE) nº 178/2002 alude expressamente no artigo 7º. Contestado por alguma doutrina, este princípio constitui, a par da análise do risco, a base da regulação fundada na ciência, como, entre outros documentos, refere o Livro Branco: “A política de segurança dos alimentos basear-se-á em pareceres científi cos e o princípio de precaução será aplicado sempre que necessário”85. No caso dos dados e informações disponíveis se mostrarem insufi cientes ou havendo hesitação quanto à avaliação científi ca do risco, coloca-se um conjunto de desafi os a um sistema regulador habituado a lidar com ‘critérios de objectividade’, que se depara com a difi culdade de separar “conhecimento e decisão (...): ninguém ‘sabe realmente’

85 Livro Branco sobre a Segurança dos Alimentos, COM(1999) 719 fi nal, p. 4. Considerando que o Regulamento (CE) nº 178/2002 enuncia uma versão fraca do princípio, quando é tomado em consideração todo o regulamento e o requisitoda proporcionalidade, v. Paul CRAIG, EU Administrative Law, cit., p. 745. Questionando o princípio da precaução v., por exemplo, Carla AMADO GOMES, A prevenção à prova no Direito do Ambiente, Coimbra, 2000, e Carla AMADOGOMES, Dar o duvidoso pelo (in)certo? Refl exões sobre o “princípio da precaução”, in Textos Dispersos de Direito do Ambiente, I, Lisboa, 2005, pp. 141-174. Em sentido contrário v., a título de exemplo, Maria Eduarda GONÇALVES, The precautionary principle in European law, in RODOTÀ, ZATTI (dir.), Trattato di Biodiritto, Ambito e Fonti del Biodiritto, Milano, 2010, pp. 515-532. Deve ser tida ainda em consideração a Comunicação da Comissão relativa ao princípio da precaução, COM(2000) 1 fi nal.

o resultado fi nal – ao nível do conhecimento positivo, a situação é radicalmente ‘indecidível’ – mas no entanto tem de se decidir”86. Verifi ca-se, assim, um paradoxo interessante em que, se por um lado o direito positivo já não reverencia a ciência como fornecedora de certezas, por outro, o recurso à ciência surge de forma cada vez mais visível na tomada de decisões. A regulação do risco introduz ainda uma outra dimensão de análise ao colocar em confronto direitos fundamentais, evidenciando a clássica refl exão sobre o papel do Estado na “defesa do indivíduo contra si próprio”87.

6. A auto-regulação, um fenómeno em crescimento

A legislação assente no dinamismo da ciência e o relevo atribuído à fl exibilização de procedimentos são características que fomentam o recurso à auto-regulação – em que os operadores privados são incentivados a adoptar códigos de boas práticas supervisionados por sistemas ofi ciais de controlo – cuja importância no contexto da legislação alimentar, e, em sentido mais lato, na regulação dos fenómenos relacionados com a ciência e as novas tecnologias, tem vindo a aumentar. O Acordo Interinstitucional “Legislar Melhor” (“Better Law-Making”) defi ne a auto-regulação como “a possibilidade de os operadores económicos, os parceiros sociais, as organizações não-governamentais ou as associações adotarem entre si e para si linhas diretrizes comuns a nível europeu”88.

86 Slavoj ŽIŽEK, Risk Society and its Discontents, Historical Materialism, 2, 1998, pp. 143-64, p. 150.

87 Carla AMADO GOMES, Estado Social e concretização de direitos fundamentais..., cit., p. 421. Este tema tem sido objecto de extensa análise, por exemplo, a propósito da utilização obrigatória do cinto de segurança. V. também este artigo sobre a questão das restrições da liberdade em confronto com a redução do risco e com os chamados ‘direitos paternalistas’.

88 Acordo Interinstitucional “Legislar melhor” (2003/C 321/1), nº 22. V. também Comité Económico e Social Europeu, Relatório de informação “O estado

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Maria João Estorninho apresenta três razões principais para o crescimento do fenómeno da auto-regulação – ideológicas, tradu-zidas no Estado mínimo neo-liberal; de ordem técnica, motivadas pela maior complexidade dos processos; e práticas, com o aumento das tarefas e dos custos nesta área89 – podendo ser encontrados si-nais das três no caso da segurança alimentar: as razões ideológicas, manifestas na evolução institucional e legislativa europeia descrita, as técnicas, decorrentes de um maior nível de exigência e interli-gação entre as várias redes e sistemas, e as práticas, visíveis, por exemplo, no aumento das notifi cações à AESA. Acresce a evidente associação entre a auto-regulação e a globalização, podendo afi r-mar-se que, quanto maior a distância do Estado, mais ténue se torna a linha que separa o público e o privado90. A opção pela auto-regu-lação traz também implicações mais gerais, como sugere António Manuel Hespanha ao perguntar: “Deve continuar-se a insistir no primado da lei sobre outras formas de regulação social? Ou, pelo contrário, deve admitir-se que certas esferas da vida comunitária se auto-regulem a si mesmas?”91.

Existe uma noção consolidada de que a auto-regulação se poderá revelar mais adequada em áreas que envolvam a ciência, o risco e a incerteza. A Comissão já anunciava no Livro Verde que “logo que esteja criado um quadro legislativo claro que estabeleça os objectivos a alcançar, os operadores económicos poderão implementar a legislação,sob supervisão efi caz das autoridades de controlo, através do recurso a sistemas tipo HACCP, códigos de conduta e a outros instrumentos

actual da co-regulação e da auto-regulação no mercado único”, CESE 1182/2004, 10.02.2005, p. 11.

89 Maria João ESTORNINHO, Segurança Alimentar e Protecção..., cit., p. 62.90 Sabino CASSESE, Il diritto amministrativo globale..., cit., p. 342.91 António Manuel HESPANHA, O caleidoscópio do direito, O direito e a

justiça nos dias e no mundo de hoje, Coimbra, 2009, p. 61.

adequados”92. O Regulamento (CE) nº 178/2002 prevê a participação dos operadores privados, atribuindo-lhes responsabilidades no âmbito da segurança alimentar, supervisionada por autoridades reguladoras (artigos 17º a 19º)93. O mesmo sucede com o sistema de controlo HACCP, através do qual a indústria analisa os momentos críticos do processo produtivo e implementa procedimentos de segurança conformes (Regulamento (CE) nº 882/2004). Caso exista violação dos deveres de auto-controlo, haverá lugar a sanções administrativas.

Com efeito, as instituições da UE tendem a encarar a auto-regulação como uma solução para uma governação mais orientada para o cidadão e como um mecanismo fl exível e favorável à tradução das preocupações éticas e de valores relacionados com o impacto das ciências e das tecnologias. A posição favorecida é a de que a auto-regulação deve ser promovida de forma a que os “os meios socioprofi ssionais” sejam “implicados na defi nição das regras económicas ou sociais que a eles se aplicam diretamente”94. O ‘outro lado da moeda’ poderá ser, porém, o risco de a auto-regulação representar tendencialmente interesses sectoriais95. Os códigos de

92 Livro Verde sobre os princípios gerais da legislação alimentar na União Europeia, COM(1997) 0176 fi nal, pp. 12 e 13. Sobre o papel da auto-regulação v. também pp. 14 segs.

93 Ao abrigo do artigo 19º do Regulamento (CE) nº 178/2002, os operadores das empresas do sector alimentar estão obrigados à retirada do mercado quando houver razões para crer que os alimentos não estão conforme com os requisitos de segurança. Caso não o possam fazer, deverão informar as autoridades competentes.

94 Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre “A cidadaniaeuropeia e os meios de lhe conferir visibilidade e efectividade” (2006/C 318/28), parágrafos 1.4 e 5.5. Esta posição está patente em vários documentos. A título de exemplo, v. do Comité Económico e Social Europeu, os documentos “O estado atual da co-regulação e da auto-regulação no mercado único”, “Legislar melhor” (2006/C 24/12) e “A cidadania europeia e os meios de lhe conferir visibilidade e efetividade”.

95 Adrienne HÉRITIER, The White Paper on European Governance: A Response to Shifting Weights in Inter-institutional Decision-Making, Jean Monnet Working Paper No. 6/01, Symposium: Mountain or Molehill? A Critical Appraisal of the Commission White Paper on Governance, 2001, p. 6.

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conduta e de boas práticas tendem a constituir regras “acordadas entre portadores de interesses privados desenvolvendo uma certa atividade social (tecnológica), que não cuidam (...) da coisa pública”96.

Se estes instrumentos se podem mostrar mais fl exíveis, a auto- -regulação, nomeadamente dos operadores privados da indústria alimentar, enfrenta os receios da falta de transparência e de legitimidade97. Paralelamente, num plano mais abrangente, a escolha deste tipo de instrumento pode revelar-se um mecanismo para evitar a regulação pública98.

7. As crises alimentares como reflexo da relação entre ciência e direito

As crises alimentares e as respostas encontradas constituem uma eloquente ilustração do tema mais vasto da ligação entre ciência e direito e das várias tensões que neste diálogo se desenham. O Livro Verde sobre os Princípios Gerais da Legislação Alimentar na União Europeia e, mais tarde, o Livro Branco sobre a Segurança dos Alimentos fi zeram alicerçar na ciência, de forma inequívoca, a estrutura da legislação alimentar. A importância da ciência em todo o processo e a enfâse na ‘scientifi c expertise’ é patente nos vários documentos e constitui a base da avaliação do risco. O episódio da BSE esteve ligado a esta mudança, que foi além da própria legislação

96 António Manuel HESPANHA, O caleidoscópio do direito..., cit., pp. 438 e 440.

97 Os mecanismos de auto-regulação, e em particular os códigos de conduta, também têm vindo a expandir-se no espaço da União nas áreas da proteção do consumidor e do ambiente, v. Comité Económico e Social Europeu, Relatório de informação “O estado actual da co-regulação e da auto-regulação no mercado único”, pp. 16 e 17.

98 Comité Económico e Social Europeu, Relatório de informação “O estado actual da co-regulação e da auto-regulação no mercado único”, p. 19.

alimentar: o tratamento das controvérsias de base científi ca, a instituição de uma abordagem precaucionária e a rigidifi cação dos mecanismos assentes na avaliação do risco estenderam-se a outras áreas da política europeia, consolidando uma forma de legislar e governar ‘à sombra da BSE’, opção que acarretou algumas implicações99.

Em primeiro lugar, tornou-se relativamente consensual, nas décadas mais recentes, o reconhecimento de que a ciência não é neutra,devendo estar sujeita ao controlo democrático e a regras e princípios jurídicos, como o princípio da transparência100. Paradoxalmente, recorre-se cada vez mais à ciência para fundamentar decisões políticas, invocando não só uma pretensa neutralidade, mas também uma suposta infalibilidade que se revela ilusória101. Para legitimar o processo, a avaliação do risco no âmbito da segurança alimentar passou a ser feita por uma agência independente, a AESA, circunstância que espelha o aumento da área de acção do ‘técnico’102. Ainda assim, o modelo escolhido para a AESA, afastada do processo de gestão do risco que cabe à Comissão, revela abertura a critérios políticos, sociais e económicos, para além de científi cos, embora, potencialmente, a estes subordinados.

99 A regulação dos OGM, não só em termos alimentares mas também ambientais, foi um dos campos que se afi rmou estar ‘à sombra da BSE’. Sheila JASANOFF, Designs on Nature: Science and Democracy in Europe and the United States, Princeton, New Jersey, 2007, pp. 121 segs.

100 V. sobre este aspecto, Maria Eduarda GONÇALVES, Controlo democrático da tecnologia: uma promessa por cumprir?, in SCHMIDT, PINA CABRAL (orgs.), Ciência e Cidadania, homenagem a Bento de Jesus Caraça, Lisboa, 2008, pp. 135-146.

101 Maria da Glória GARCIA, Sociedade de risco, política e direito, in FREITAS DO AMARAL, FERREIRA DE ALMEIDA, TAVARES DE ALMEIDA (coords.), Estudos comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, vol. I, Coimbra, 2008, pp. 111-135, p. 115.

102 Carla AMADO GOMES, Estado Social e concretização de direitos fundamentais..., cit., p. 425.

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Um segundo aspecto que se retira desta análise é o movimento de ‘internacionalização’ e ‘europeização’ dos direitos estaduais nacionais – que se deparam com fenómenos, pela sua natureza, de incidência global – traduzidos no aumento de referências supraestaduais nos instrumentos jurídicos. O episódio da BSE, como, entre outros, o das dioxinas ou o da melamina, veio revelar que a alimentação ‘não conhecefronteiras’. Perante esta realidade, poderá estar em processo de transformação a clássica divisão em ‘níveis’ – nacional, regional/europeu e internacional – em que o poder público se encontra enquadrado103.

Em terceiro lugar, verifi ca-se uma preferência crescente por formas de regulação heterodoxas, como é o caso da auto-regulação, associadas a uma maior fl exibilidade numa área, por natureza, dinâmica, com uma forte componente transfronteiriça. Caberá ao futuro responder se a esta tendência corresponde um movimento desregulador dissimulado ou se o corpus jurídico em que se alicerça a legislação alimentar se articula com a nova realidade.

Se a renovada política europeia da alimentação procura contrariar a ideia de favorecimento do mercado, a prática não apresenta indícios tão convincentes104. O mesmo parece suceder na nova área internacional de conteúdo administrativo, de que os acordos da Organização Mundial do Comércio, SPS e TBT, bem como as orientações do Codex Alimentarius constituem exemplo, que se ergue num equilíbrio incerto entre a retirada de obstáculos ao comércio e a protecção da saúde e dos consumidores105. Por outro lado, este é

103 Sabino CASSESE, Il diritto amministrativo globale..., cit., p. 347.104 Defendendo que a governação da segurança alimentar europeia tem

“considerably helped the EC food law to get rid of its original sin, its pro-market bias.”, v. Alberto ALEMANNO, Food Safety and the..., cit., p. 257. Ilustre-se, a título de exemplo com o Processo C-1/00, Comissão v França, [2001] ECR I-9989, que opôs a Comissão Europeia à autoridade de segurança alimentar francesa a propósito da proibição desta última da importação de carne de vaca inglesa, na sequência da crise da BSE. O mesmo tem sucedido com os OGM.

105 Sabino CASSESE, Gamberetti, Tartarughe e Procedure..., cit. pp. 661-662.

um campo que se tem revelado um palco privilegiado do exercício activo de direitos por parte dos cidadãos – a par do ambiente ou de outros domínios da saúde e da protecção do consumidor. O activismo cívico, notório nos movimentos de slow food ou no caso dos OGM (onde foi particularmente visível), parece indicar que os cidadãos consideram que têm uma palavra a dizer, infl uenciando com as suas opções como consumidores as políticas sobre a alimentação e a saúde pública, uma tendência que já foi designada como “voting with your fork”106.

A centralidade da ciência no chamado ‘direito à alimentação’, não sendo caso único – basta pensar no direito do ambiente, por exemplo –, constitui um exemplo paradigmático, enriquecido pela natureza do objecto e pelas particularidades que reúne. A sociedade de risco tenderia inevitavelmente para este predomínio, mas a refl exão sobre as suas consequências está longe de estar terminada. Um dos riscos possíveis está na diminuição da importância do Estado em favor de uma tecnocracia global que se relaciona apenas com as burocracias nacionais107. Como antecipou Rogério Soares, quando escreveu a conhecida frase sobre o “sono da princesa da fábula”: torna-se necessário rever os quadros fundamentais do Estado em profunda modifi cação com o desenvolvimento da sociedade técnica e complexa108.

106 “You can vote with your fork... and you can do it three times a day”, MichaelPOLLAN, Voting with your fork, The New York Times, 07.05.2006, http://pollan. blogs.nytimes.com/2006/05/07/voting-with-your-fork/. Sobre o ‘poder’ da alimentação,na perspectiva das relações entre países, v., a título de exemplo, Raymond O’ROURKE, European Food Law, 3ª ed., Londres, 2005, pp. 248-249.

107 Sabino CASSESE, Il diritto amministrativo globale..., cit., p. 354.108 Rogério Ehrhardt SOARES, Direito público e sociedade técnica, Coimbra,

2008, pp. 23-24.

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Capítulo IV

Acidentes nucleares

Miguel Sousa Ferro

Assistente Convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário1. Introdução; 2. Emergências radiológicas; 2.1. Introdução; 2.2. Direito Internacional; 2.2.1. Notifi cação e assistência; 2.2.2. Segurança nuclear e proteção radiológica; 2.2.3. Acidentes marítimos; 2.2.4. Soft law e escala INES; 2.3. Direito da União Europeia; 2.3.1. Introdução; 2.3.2. Notifi cação e troca de informações; 2.3.3. Assistência mútua; 2.3.4. Prevençãoe reação a emergências radiológicas; 2.3.5. Informação da população; 2.3.6. Contaminação radioativa de alimentos; 3. Responsabilidade civil na sequência de acidentes radiológicos; 3.1. Regime aplicável a instalações nucleares; 3.1.1. Introdução; 3.1.2. Sistema da Convenção de Paris; 3.1.3. Sistema da Convenção de Viena; 3.1.4. Protocolo Conjunto; 3.1.5. Comentários gerais;

3.2. Outros regimes de responsabilidade; 3.3. Direito da União Europeia.

1. Introdução

O presente estudo debruça-se sobre as normas de direito internacional e de direito da União Europeia que regulam os “acidentes nucleares”, entendidos como qualquer acidente com consequências especialmente alargadas e gravosas (merecedoras da qualifi cação de “catástrofe”), para a população e para o meio ambiente, resultantes de atos humanos que conduzam à libertação de energia do núcleo atómico ou, mais genericamente, de radiações ionizantes.

Pensamos, portanto, a título de exemplo: em acidentes com reatores nucleares de instalações para produção de energia ou para investigação ou de meios de transporte (navios ou submarinos); e em acidentes durante o transporte ou armazenamento de combustível nuclear ou de material com elevada radioatividade.

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Excluímos do âmbito da análise as normas relativas à segurança nuclear e à proteção radiológica, embora estas fossem enquadráveis, naturalmente, na dimensão da prevenção de acidentes nucleares. A sua análise alargaria em muito as páginas que seguem e conduzir-nos-ia para muito longe do propósito imediato que subjaz à presente coleção de estudos. Excluímos também a discussão das consequências de danos resultantes de utilizações não pacífi cas de energia nuclear e de radiações ionizantes, já que estas situações não confi guram “acidentes” e exigem a ponderação de múltiplas questões jurídicas distintas.

Os eventos de Fukushima, em março de 2011, vieram evidenciar que os riscos de grandes acidentes nucleares não se limitam às velhas centrais soviéticas, mas que são uma possibilidade mesmo em modelos ocidentais recentes de centrais nucleares. Apesar do seu profundo impacto mediático e político, e possivelmente por os efeitos deste acidente se terem limitado ao Japão, Fukushima não levou, pelo menos até agora, a uma revisão do direito internacional aplicável.

2. Emergências radiológicas

2.1. Introdução

Designa-se “emergência radiológica” toda e qualquer situação em que se verifi que uma libertação não intencional (ou apenas inicialmente intencional) de radiação ionizante de tal maneira que esta tenha ou possa ter um impacto não negligenciável sobre seres humanos ou sobre o meio ambiente.

Exemplos de emergências radiológicas são: os acidentes nucleares de Chernobil (o mais grave alguma vez ocorrido em todo o mundo) e de Fukushima; a detonação de um engenho explosivo com materialradioativo (“dirty bomb”); a exposição de uma população a uma fonte radioativa abandonada e tida por um brinquedo por uma

criança1; a deteção de poeiras radioativas na atmosfera devido à incineração inadvertida de uma fonte; a fuga de águas radioativas no interior do complexo de uma central nuclear; etc.

Há que distinguir o conceito o mais estrito de “acidente nuclear”, que se refere, em suma, a acidentes que envolvam material físsil ou nuclear ou instalações ou meios de transporte onde tal material se encontre. Por vezes, designadamente na linguagem da AIEA, os “acidentes” são diferenciados dos “incidentes”, sendo estes de impacto reduzido.

2.2. Direito Internacional

2.2.1. Notificação e assistência

Com a exceção de um tratado escandinavo da década de 19602, só após o acidente de Chernobil é que a comunidade internacional sentiu necessidade de organizar um sistema obrigatório de cooperação internacional em caso de emergências radiológicas importantes, tendo aprendido uma dura lição com o silêncio das autoridades soviéticas nos dias que se seguiram ao acidente de 26 de abril de 1986. Até esse momento, os Estados não tinham qualquer obrigação específi ca no direito internacional (com a referida exceção) de notifi car outros Estados de acidentes nucleares ocorridos no seu território e que pudessem ter efeitos noutros países, embora se pudesse defender que esta obrigação já decorria de princípios gerais.

1 Como sucedeu no acidente em Goiânia, Brasil, em setembro de 1987.2 Acordo Nórdico de Assistência de Emergência Mútua em caso de Acidentes

Nucleares, de 17 de outubro de 1963 (celebrado entre a AIEA, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, e com entrada em vigor em 1965).

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Foi assim que surgiram a CNRAN3 e a CAANER4, ao abrigo da AIEA, na ótica de regulação do comportamento de e do auxílio entre Estados soberanos na sequência de um acidente nuclear. Ambas contam, atualmente, com mais de 100 Estados Partes.

Ao passo que o âmbito da CAANER foi traçado em termos imprecisos (“acidentes nucleares ou emergências radiológicas”), para permitir maior fl exibilidade, a CNRAN não abrange toda e qualquer emergência radiológica. Esta foi pensada para se aplicar apenas a acidentes com efeitos transfronteiriços e envolvendo material nuclear ou instalações do ciclo nuclear, ou ainda radioisótopos para aplicações civis. Ainda assim, permite-se a utilização do sistema da CNRAN para comunicação de outras emergências radiológicas (artigo 3º).

Devido ao seu âmbito mais amplo, o sistema criado pela CAANER tem sido utilizado mais frequentemente que o da sua Convenção irmã, em especial no contexto de solicitações de assistência por países com meios reduzidos, para lidar com pequenas emergências radiológicas.

A obrigação central da CNRAN é a de notifi car sem demora os Estados potencialmente afetados e a AIEA da verifi cação de um acidente nuclear, transmitindo todas as informações necessárias a uma reação adequada. As informações a transmitir são precisadas nos artigos 2º e 5º, devendo ainda fornecer-se, tão pronto quanto possível, os esclarecimentos adicionais que sejam solicitados (artigo 6º).

A AIEA centraliza e difunde informações, mantendo para esse efeito um gabinete em funcionamento permanente e coordenando uma rede de pontos de contacto nacionais, que devem ser designados por cada Parte. A AIEA deve ainda implementar sistemas de vigilância

3 Convenção sobre Notifi cação Rápida em caso de Acidente Nuclear, de 26 de setembro de 1986 (INFCIRC/335 da AIEA).

4 Convenção sobre Assistência em caso de Acidente Nuclear ou Emergência Radiológica, de 26 de setembro de 1986 (INFCIRC/336 da AIEA).

de radioatividade, caso tal lhe seja solicitado por um Estado Parte sem atividades nucleares próprias mas vizinho de um Estado com um programa nuclear ativo e que não tenha ratifi cado a Convenção (artigo 8º).

Detetamos a obrigação de notifi cação de incidentes noutros tratados. Ao abrigo da Convenção SOLAS5 e do Código INF6, por exemplo, esta obrigação é imposta no contexto do transporte marítimo de materiais nucleares e radioativos, bem como no que respeita a navios nucleares.

Quanto à CAANER, constrói um regime relativamente complexo em torno de uma obrigação de cooperação entre Estados Partes, e entre estes e a AIEA, “para facilitar a assistência imediata” em caso de emergência radiológica (artigo 1º). Existe uma verdadeira obrigaçãode prestação de assistência, embora possa ser condicionada ao reembolso posterior de despesas e tenha por limites a capacidade e disponibilidade de cada Parte, o que introduz um elemento dediscricionariedade. A AIEA desempenha um papel duplo de coordenação e de prestação direta de assistência.

A Convenção especifi ca: os procedimentos a seguir com vista à solicitação de assistência, o direito de exigir a cessação dessa assistência, a direção e controlo da assistência, as obrigações do Estado que solicita a assistência, questões de confi dencialidade, privilégios e imunidades do pessoal da Parte que presta assistência, responsabilidade civil por factos decorrentes da prestação da assistência, de entre outros.

5 Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar, de 1 de novembro de 1974.

6 Código para o Transporte Seguro de Combustível Nuclear Irradiado, Plutónio e Resíduos Altamente Radioativos a Bordo de Navios (Código INF), Capítulos 10 e 11.

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Por último, importa ter em conta que uma emergência radiológica também pode cair no âmbito de aplicação das Regras Internacionais de Saúde7, com consequências tanto ao nível da notifi cação como ao nível da intervenção ou sua preparação. Por esta via, a Organização Internacional de Saúde surge como outra organização internacional a notifi car em caso de emergência radiológica.

2.2.2. Segurança nuclear e proteção radiológica

O quadro supra descrito foi completado, a partir de 1996, pela CSN8. A CSN conta, atualmente, com 76 Partes Contratantes. Esta Convenção estabeleceu obrigações não só para os Estados Partes mas também, indiretamente, para particulares.

Nos termos deste tratado, os titulares de instalações nucleares devem ser obrigados a:

• tomar as medidas necessárias para prevenir acidentes, para lhes reagir e mitigar as suas consequências, incluindo a preparação e ensaio periódico de planos de emergência (a serem aprovados pelo órgão regulador); e

• notifi car atempadamente todo e qualquer incidente relevante ao órgão regulador nacional.

A isto acresce que os Estados Partes devem:

• notifi car e prestar informações adequadas à sua população e a Estados vizinhos; e

7 Adotadas pela Assembleia de Saúde a 23 de maio de 2005, no exercício do poder de adotar regulamentos vinculativos dos Estados Partes que lhe é atribuído pela Constituição da Organização Internacional de Saúde (maxime, artigos 21º e 22º).

8 Convenção sobre Segurança Nuclear, de 17 de junho de 1994 (ver especialmente os artigos 16º, 18º, alínea i) e 19º, alíneas iv) e vi).

• dispor de planos de emergência para reagir a emergências radiológicas no seu território ou com efeitos sobre ele.

A Convenção Conjunta9, que entrou em vigor em 2001 e conta com 69 Partes Contratantes, estendeu as obrigações da CSN de preparação e ensaio periódico de planos de emergência, bem como a segunda obrigação dos Estados Partes acima mencionada, à gestão de combustível nuclear irradiado e às instalações de tratamento de resíduos radioativos.

2.2.3. Acidentes marítimos

Mais recentemente, entrou em vigor na ordem internacional o Protocolo OPRC-HNS (sigla inglesa)10. Aberto apenas às Partes da Convenção Internacional Relativa à Preparação, Resposta e Cooperação em casos de Poluição por Óleo, de 1990, este Protocolo abarca a introdução em meio marítimo de qualquer substância (à exceção de hidrocarbonetos) que possa afetar a saúde humana ou o ambiente, incluindo portanto substâncias radioativas.

O Protocolo OPRC-HNS estabelece obrigações paralelas às da CNS para os responsáveis por navios ou instalações associadas ao transporte de tais substâncias (planos de emergência, notifi cação das autoridades em caso de incidente).

9 Convenção Conjunta sobre a Segurança da Gestão do Combustível Irradiado e dos Resíduos Radioativos, de 29 de setembro de 1997.

10 Protocolo sobre a Prevenção, Resposta e Cooperação no combate à Poluição por Substâncias Nocivas e Potencialmente Perigosas, de 15 de março de 2000, em vigor desde 2007, atualmente com 33 Partes Contratantes.

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As obrigações para os Estados são, porém, mais detalhadas do que aquelas que encontramos nas Convenções da AIEA, a saber:

• notifi cação de Estados potencialmente afetados por um incidente;

• elaboração de planos de emergência em portos ou outras instalações que trabalhem com estas substâncias;

• criação de um sistema nacional de reação a incidentes de poluição, incluindo plano nacional de emergência, ensaios periódicos e designação de autoridades responsáveis e pontos de contacto;

• garantia da disponibilidade de uma quantidade mínima de equipamento de reação.

O Protocolo contém ainda disposições de coordenação que espelham os mecanismos da CAANER.

A Organização Marítima Internacional exerce, no âmbito deste Protocolo, uma função de coordenação semelhante à da AIEA no quadro das Convenções acima referidas.

O Código INF impõe também obrigações de preparação de planos de emergência para os navios que transportem materiais nucleares, sujeitos a aprovação pelas autoridades nacionais.

Alguns tratados bilaterais e regionais de proteção ambiental incluem obrigações genéricas de cooperação em reação a emergênciasambientais, que são potencialmente aplicáveis a emergênciasradiológicas.

Na região do Pacífi co, por exemplo, a convenção SPREP11 incluiuma obrigação geral deste tipo, acompanhada da exigência de notifi cação imediata de qualquer Estado potencialmente afetado (artigo 15º). Este regime foi desenvolvido pelo Protocolo SPREP de Emergências de Poluição (equivalente ao Protocolo OPRC-HNS).

11 Convenção para a Proteção dos Recursos Naturais e do Ambiente na Região do Sul do Pacífi co, de 24 de novembro de 1986.

A região do Sudeste do Pacífi co está coberta por normas internacionaisrelativas à preparação e à cooperação para uma resposta efi caz a emergências radiológicas, por força do Protocolo de Paipa12 (artigo 8º) e da Convenção SEPEP13.

Graças ao artigo 9º da Convenção de Barcelona14, complementado pelo Protocolo de Emergências de Barcelona15, o Mar Mediterrâneo também está coberto por este tipo de obrigações de notifi cação e de cooperação. Estas são acompanhadas pela exigência de planos de contingência (incluindo planos de emergência a bordo de navios) e por uma versão simplifi cada do mecanismo de assistência que encontramos na CANARE.

Por fi m, a Convenção de Helsínquia16, relativa ao Mar Báltico, inclui um regime básico de notifi cação e de cooperação (artigos 13º e 14º e Anexo VII). O mesmo se diga, quanto ao Mar Negro, da Convenção de Bucareste17, complementada pelo Protocolo de Emergências de Bucareste18.

12 Protocolo para a Proteção do Pacífi co Sudeste contra Poluição Radioativa, de 21 de setembro de 1989.

13 Convenção para a Proteção do Meio Marinho e da Orla Costeira do Pacífi co Sudeste, de 12 de novembro de 1981.

14 Convenção de Barcelona para a Proteção do Mar Mediterrâneo contra a Poluição, na sua revisão de 10 de junho de 1995.

15 Protocolo à Convenção de Barcelona para a protecção do Mar Mediterrâneo contra a poluição, relativo à cooperação em matéria de prevenção da poluição pelos navios e, em caso de situação crítica, de luta contra a poluição do mar Mediterrâneo.

16 Convenção para a Proteção do Meio Marinho na Zona do Mar Báltico, de 9 de abril de 1992.

17 Convenção para a Proteção do Mar Negro contra a Poluição, de 22 de abril de 1992.

18 Protocolo sobre a Proteção do Mar Negro contra Poluição por Óleo e Outras Substâncias e em Situação de Emergência.

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2.2.4. Soft law e escala INES

O Direito Internacional relativo às emergências radiológicas tem vindo a ser completado por múltiplos documentos não vinculativos da AIEA, que estabelecem procedimentos bastante precisos, dos quais destacamos os seguintes:

(i) “Considerations in Emergency Preparedness and Response for a State Embarking on a Nuclear Power Programme”, AIEA, 2012;

(ii) “Lessons Learned from the Response to Radiation Emergencies (1945-2010)”, AIEA, 2012;

(iii) “Criteria for Use in Preparedness and Response for a Nuclear or Radiological Emergency”, adotado por várias organizações internacionais, Doc. GSG-2 da AIEA, 2011;

(iv) “Generic Procedures for Response to a Nuclear or Radiological Emergency at Research Reactors”, AIEA, 2011;

(v) “Emergency Notifi cation and Assistance Technical Operations Manual” (ENATOM) da AIEA, 2007;

(vi) “Arrangements for Preparedness and Response for a Nuclear or Radiological Emergency”, Doc. GS-G-2.1 da AIEA, 2007;

(vii) “Joint Radiation Emergency Management Plan of the International Organisations”, AIEA, 2004;(viii) “Preparedness and Response for a Nuclear or Radiological

Emergency”, Doc. GS-R-2 da AIEA, 2002; e(ix) “The International Nuclear Events Scale – User’s Manual”,

AIEA, 2001.

Em caso de emergências radiológicas, a relevância prática destes instrumentos poderá ser, frequentemente, bem superior à dos instrumentos juridicamente vinculativos.

Foi também no plano extra normativo que vimos o desenvolvimento de uma escala para emergências radiológicas comparável às escalas de Richter e de Mercalli para sismos.

A escala INES (“International Nuclear Events Scale”) foi criada para classifi car e transmitir uma ideia clara sobre a importância de determinado incidente radiológico. Os eventos são classifi cados numa escala de 1 (mera anomalia sem consequências signifi cativas) a 7 (acidente do tipo Chernobil e Fukushima).

Embora latamente utilizada ao nível ofi cial, a escala não tem vingado junto dos meios de comunicação social ou do público em geral. Devido às particulares sensibilidades ligadas ao setor nuclear, todo e qualquer incidente, mesmo de nível 1, tende a ser apresentado pelos media como um “acidente nuclear”.

Os efeitos negativos desta tendência são agravados pelo facto de a escala INES não utilizar um único critério de classifi cação. Um incidente pode merecer determinado grau de classifi cação em função de três critérios: (i) impacto sobre pessoas e o ambiente; (ii) difusão de radioatividade no interior duma instalação; e (iii) falha ou mau funcionamento dos sistemas de reação. Ou seja, a escala INES classifi ca também como acidentes situações sem quaisquer consequências para pessoas ou para o meio ambiente.

Para efeitos de combate à tendência acima indicada, e de redução da perceção pública de insegurança, seria eventualmente mais útil a separação da escala INES, de modo a generalizar o uso duma escala limitada às consequências sobre pessoas e ambiente, assim reduzindo signifi cativamente o número de incidentes dignos de classifi cação.

A relação com os media no caso de um incidente radiológico coloca problemas difíceis para os órgãos reguladores. A preocupação com a transparência leva a que se divulguem todos e quaisquer incidentes, mesmo aqueles sem qualquer impacto relevante. O modo como os eventos são apresentados pelos meios de comunicação social, porém, é tipicamente pouco objetivo. Mesmo as histórias de sucesso são apresentadas ao público numa ótica negativa. Um bom exemplo foram as notícias que correram o mundo a 3 de agosto de 2008, com títulos tais como “Fugas de plutónio numa central austríaca”. Só a consulta atenta das fontes permitiria compreender que se tratara duma fuga no interior dum laboratório da AIEA. A notícia tinha sido

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divulgada pela Agência para indicar que os seus investimentos em segurança dos laboratórios tinham funcionado: os alarmes e as medidas de reação funcionaram perfeitamente, não tendo havido qualquer consequência negativa. Em vez disso, a esmagadora maioria da população fi cou com a imagem de um líquido verde fl uorescente a escorrer para fora de uma qualquer central nuclear algures na Áustria (que não tem centrais nucleares...).

As potenciais amplas consequências internacionais de emergências nucleares e o número de organizações internacionais com tratados e competências relevantes neste domínio levou à necessidade de coordenar os esforços das diferentes entidades no que respeita à preparação para e resposta a emergências nucleares e radiológicas. Foi criado, para este fi m, o Comité Inter-Agências de Emergências Nucleares e Radiológicas (IACRNE). Este comité, presidido pela AIEA, reúne periodicamente esta organização e a União Europeia, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, a Organização da Aviação Civil Internacional, a Europol, a Interpol, a Agência de Energia Nuclear da OCDE, a Organização Mundial da Saúde, a Organização Pan-Americana da Saúde, a Organização Meteorológica Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários e o Escritório das Nações Unidas para Assuntos do Espaço Exterior. Desenvolveu-se um website dedicado à partilha segura de informação neste âmbito19.

Ao passo que o Direito Internacional impõe a realização de exercícios nacionais de emergências radiológicas, não existe qualquer obrigação do género para exercícios de âmbito internacional. Não obstante, os Estados e as organizações internacionais reconheceram, há muito, a importância da coordenação internacional para se conseguir uma reação adequada a uma emergência nuclear. A AIEA,

19 See: http://www-ns.iaea.org/tech-areas/emergency/iacrna/login.asp.

a AEN da OCDE e a Comissão Europeia têm organizado vários exercícios internacionais.

Através da IACRNE, a AIEA promove “Exercícios de Convenção” (ConvEx), divididos em três tipos: os “ConvEx-1” testam comunicações, os “ConvEx-2” testam tempos de resposta, e os “ConvEx-3” testam a operacionalidade completa dos mecanismos mundiais de troca de informações. Estes exercícios são executados, designadamente, emtorno de centrais nucleares em diferentes pontos do globo e envolvem as organizações internacionais participantes na IACRNE, bem como várias dezenas de Estados-Membros da AIEA, prolongando-sefrequentemente por 2 dias ou mais. Os exercícios da AEN da OCDE designam-se “International Nuclear Emergency Exercises” (INEX), sendo divididos em séries e sendo coordenados pelo “Working Party on Nuclear Emergency Matters” (WPNEM)20.

2.3. Direito da União Europeia

2.3.1. Introdução

Embora o Tratado que institui a Comunidade Europeia de Energia Atómica não refi ra, expressamente, competências relativas a emergênciasradiológicas, o TJUE já esclareceu que “os artigos 30º a 32º do Tratado CEEA conferem à Comunidade competência para editar normas de base em matéria de medidas de emergência, o que implica o poder de requerer aos Estados-Membros que elaborem planos que prevejam tais medidas para as instalações nucleares”21.

20 Veja-se o Relatório da AEN da OCDE Strategy for developing and conducting nuclear emergency exercises, de 2007, disponível em http://www.nea.fr/html/rp/reports/2007/nea6162-emergency.pdf. Para mais informações, ver: http://www.nea.fr/html/rp/inex/index.html.

21 Acórdão do TJUE, de 10 de dezembro de 2002, Comissão c. Conselho (C-29/99), § 97.

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2.3.2. Notificação e troca de informações

Os Estados-Membros em cujo território ocorra uma emergência radiológica, ou em que esta produza efeitos, têm a obrigação de contactar imediatamente todos os outros Estados-Membros e Estados terceiros que possam ser afetados ou estar envolvidos. Estes contactos visam “partilhar a avaliação da situação de exposição e coordenar as medidas de proteção e a informação a prestar ao público”, assentando em sistemas internacionais de trocas de informações, e “não devem impedir ou adiar, a nível nacional, a tomada de qualquermedida que seja necessária”25. Cumpre igualmente assegurar a partilha de informação com Estados potencialmente afetados e com organizaçõesinternacionais relevantes, quanto a situações de perda, roubo ou descoberta de certas fontes radioativas perigosas26.

O sistema comunitário de notifi cação rápida em caso de emergênciaradiológica com efeitos transfronteiriços assenta na Decisão nº 87/600/Euratom27. O âmbito desta Decisão está limitado aos casos em que um Estado-Membro “decida tomar medidas de grande envergadura a fi m de proteger o público em geral em caso de emergência radiológica” (artigo 1º, nº 1).

Sem prejuízo das normas supra citadas, decorria já deste regime que, em tais casos, o EM em causa deve notifi car “imediatamente” a Comissão e os EMs potencialmente afetados, indicando as medidas adotadas e outras informações úteis (esta obrigação existe, sempre que possível, já na fase em que se planeie tomar medidas). O artigo 3º especifi ca as informações que devem ser transmitidas, com uma precisão maior que a CNRAN e com exigências de renovação periódica.

25 Diretiva 2013/59/Euratom, artigo 99º, nº 2.26 Diretiva 2013/59/Euratom, artigo 99º, nº 3.27 Decisão nº 87/600/Euratom do Conselho, de 14 de dezembro de 1987, relativa

a regras comunitárias de troca rápida de informações em caso de emergência radiológica (JO L 371/76, 30/12/1987).

Em reação ao acidente de Chernobil22, a União Europeia desenvolveu um sistema que funciona em paralelo ao da AIEA (a UE aderiu àCNRAN e à CAANER23), aproveitando a integração comunitária para introduzir um regime mais exigente, mas procurando sempre garantir a compatibilidade e coordenação com os esforços internacionais.

Alguns dos esforços legislativos mais recentes, sobretudo no domínio da segurança nuclear e da gestão de resíduos radioativos, seguiram mais de perto os regimes internacionais, verifi cando-se uma maior relutância dos Estados-Membros em abdicar de competências e a transferirem poderes para a União Europeia, mesmo quando estão em causa matérias tipicamente de interesse supranacional e que justifi cam uma regulação supranacional, à luz do princípio da subsidiariedade.

Para o Direito da União Europeia, uma emergência radiológica é “uma situação ou evento não habitual que implica uma fonte de radiação que requer uma ação rápida a fi m de atenuar as consequências adversas graves para a segurança e a saúde humanas, para a qualidade de vida, os bens ou o ambiente, ou um perigo suscetível de provocar tais consequências adversas”24.

22 Para uma visão contemporânea da reação comunitária a este acidente, veja-se: Comissão Europeia, Balanço das ações empreendidas pela Comunidade após o acidente de Chernobil (COM/89/203 fi nal).

23 Cfr. Decisão da Comissão nº 2005/845/Euratom, de 25 de novembro de 2005, relativa à adesão da Comunidade Europeia da Energia Atómica à Convenção sobre Assistência em Caso de Acidente Nuclear ou Emergência Radiológica (JO L 314/27, de 30/11/2005); e Decisão da Comissão nº 2005/844/Euratom, de 25 de novembro de 2005, relativa à adesão da Comunidade Europeia da Energia Atómica à Convenção sobre Notifi cação Rápida de um Acidente Nuclear (JO L 314/21, 30/11/2005).

24 Diretiva 2013/59/Euratom do Conselho, de 5 de dezembro de 2013, que fi xa as normas de segurança de base relativas à proteção contra os perigos resultantes da exposição a radiações ionizantes, e que revoga as Diretivas 89/618/Euratom, 90/641/Euratom, 96/29/Euratom, 97/43/Euratom e 2003/122/Euratom (JO L 13/1, 17/01/2014) (adiante “Diretiva 2013/59/Euratom”), artigo 4º, nº 26.

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Em contraste com o regime da CNRAN, os artigos 4º e 5º prevêem obrigações para os Estados-Membros que recebem a informação de comunicar à Comissão as medidas adotadas em reação e certas informações recolhidas periodicamente (relativas a níveis de radioatividade no ambiente, nos alimentos, na água, etc.), bem como obrigações de testes periódicos do sistema. O artigo 6º estabelece um regime de confi dencialidade aparentemente mais fl exível que o da CNRAN.

A Comissão Europeia desempenha um papel semelhante ao da AIEA, mantendo um gabinete de emergências em funcionamento permanente e garantindo a centralização e difusão da informação, não só no âmbito de emergências comunitárias, mas também no caso de emergências externas com efeitos potenciais dentro da União.

Para permitir a implementação efi ciente destas obrigações mútuas de transmissão de informações foi criada a rede ECURIE (“European Community Urgent Radiological Information Exchange”). Por via de tratado internacional, a participação nesta rede foi estendida a Estados terceiros (atualmente, apenas a Suíça e a Turquia)28. A rede ECURIE está ainda ligada ao sistema da AIEA por um acordo informal.

Esta rede foi complementada pelo sistema ENSEMBLE,desenvolvido pelo Centro Comum de Investigação (“Joint Research Centre”), que visa conciliar as previsões nacionais de dispersãoatmosférica de partículas radioativas, em casos de emergências transfronteiriças. Além disso, em caso de emergência, os dados constantes da rede de monitorização radiológica EURDEP (“European Radiological Data Exchange Platform”)29 passariam a ser atualizados de duas em duas horas, nos termos de um acordo informal.

28 Acordo entre a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom) e Estados não membros da União Europeia sobre a participação destes nas regras comunitárias de troca rápida de informações em caso de emergência radiológica (Ecurie) (JO C 102/2, 29/04/2003).

29 Ver, a este respeito, a Recomendação da Comissão nº 2000/473/Euratom, de 8 de junho de 2000, relativa à aplicação do artigo 36º do Tratado Euratom respeitante

2.3.3. Assistência mútua

Quanto aos mecanismos de assistência mútua (paralelos aos da CAANER), estes encontram-se, em primeira linha, no artigo 99º, nºs 1 e 4 da Diretiva nº 2013/59/Euratom, nos termos dos quais os Estados-Membros estão obrigados a cooperar entre si e com países terceiros na resposta a emergências radiológicas nos respetivos territórios e que possam afetar outros países, tendo em vista facilitar a organização da proteção radiológica nesses outros países, bem como a transição para situações de exposição existente (no caso de efeitos continuados).

Quanto à regulação mais detalhada dos mecanismos de assistência mútua, encontramo-la na Decisão nº 2007/779/CE, Euratom30, implementada pela Decisão 2004/277/CE, Euratom31. O âmbito deste mecanismo abarca expressamente emergências radiológicas32, embora seja muito mais amplo (é utilizado, por exemplo, em casos de incêndios fl orestais).

ao controlo dos níveis de radioatividade no ambiente para efeitos de avaliação da exposição de toda a população (JO L 191/37, 27/07/2000), revista pela Recomendação da Comissão nº 2006/715/Euratom, de 23 de outubro de 2006 (JO L 293/17, 24/10/2006) e pelo Tratado de Adesão de 2003.

30 Decisão do Conselho nº 2007/779/CE,Euratom, de 8 de novembro de 2007, que estabelece um Mecanismo Comunitário no domínio da Protecção Civil (reformulação) (JO L 314/9, 01/12/2007). Embora agora com interesse essencialmente histórico, deverá ainda ter-se em conta: a Comunicação da Comissão ao Conselho sobre a cooperação comunitária em matéria de proteção e assistência em caso de acidentenuclear ou de emergência radiológica (COM/89/25 fi nal); e a Comunicação da Comissão ao Conselho sobre assistência médica em caso de acidente nuclear (COM/87/206 fi nal).

31 Decisão da Comissão nº 2004/277/CE, Euratom, de 29 de dezembro de 2003, que defi ne regras de execução da Decisão 2001/792/CE, Euratom do Conselho que estabelece um mecanismo comunitário destinado a facilitar uma cooperação reforçada no quadro das intervenções de socorro da protecção civil (JO L 87/20, 25/03/2004), revista pela Decisão da Comissão nº 2008/73/CE, Euratom, de 20 de dezembro de 2007 (JO L 20/23, 24/01/2008) e pela Decisão da Comissão nº 2010/481/UE,Euratom, de 29 de julho de 2010 (JO L 236/5, 07/09/2010).

32 Cfr. artigo 1º, nº 2 da Decisão nº 2007/779/CE, Euratom.

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Obviamente, este mecanismo é bastante mais preciso e vinculativo que o desenvolvido ao abrigo da AIEA, incluindo:

• a identifi cação prévia dos recursos disponíveis nos vários Estados-Membros, incluindo equipas de avaliação e coordenação

e equipas de reação rápida (dentro de 12 horas), com exigências muito precisas de capacidades gerais e específi cas para certas modalidades (e.g. deteção e amostragem químicas, biológicas, radiológicas e nucleares, busca e salvamento em situações de riscos químicos, bacteriológicos, radiológicos e nucleares, abrigos temporários de emergência, etc.);

• a disponibilidade de recursos noutras fontes (designadamente no setor privado);

• o desenvolvimento de ações de formação;

• a possibilidade de apoio fi nanceiro.

De novo, a Comissão Europeia desempenha o usual papel de centralização e coordenação, mantendo um gabinete de funcionamento permanente para vigilância e reação rápida, além de fornecer pessoal próprio de reação (maxime para efeitos de avaliação). Note-se que este mecanismo também pode ser usado para reação a emergências fora do território da Comunidade.

2.3.4. Prevenção e reação a emergências radiológicas

Enquanto ao nível internacional só se conseguiu um regime algo insipiente de prevenção e reação a emergências radiológicas, o Direito da União Europeia desenvolveu uma regulação relativamente aprofundada nesta área, em especial na Diretiva nº 2013/59/Euratom.

É difícil destrinçar as normas gerais de proteção radiológica das normas que regem, especifi camente, situações de emergências radiológicas, já que qualquer visão limitada a estas descurará, necessariamente, a dimensão de prevenção e o enquadramento geral que já resulta das primeiras. Em todo o caso, uma análise do quadro

normativo aplicável à proteção radiológica em geral levar-nos-ia para demasiado longe do propósito do presente estudo.

Por contraste com as normas internacionais (de âmbito limitado a acidentes em instalações nucleares ou transportes marítimos de substâncias radioativas), o regime comunitário aplica-se a qualquer situação de emergência radiológica.

Resultam da Diretiva nº 2013/59/Euratom um conjunto de obrigações para as empresas ou entidades responsáveis (indiretamente) e um conjunto de obrigações para as autoridades dos Estados-Membros.

Em caso de emergência radiológica, as entidades responsáveis devem ser obrigadas a notifi car imediatamente as autoridades do respetivo Estado, a realizar uma primeira avaliação da emergência e a adotar as primeiras medidas de proteção33. Para acidentes dentro ou fora do território do respetivo Estado-Membro, sobre os quais tenham jurisdição, as autoridades competentes devem garantir medidas de proteção quanto à fonte de radiação, ao ambiente e à população(incluindo cuidados médicos), implementando a estratégia de proteção otimizada prevista no plano de resposta a emergências e providenciando a avaliação e registo das consequências da emergências e da efi cácia das medidas adotadas34.

Os trabalhadores cujas atividades possam estar associadas a emergências radiológicas devem receber formação quanto aos “planos e procedimentos de resposta a emergências”35. Os trabalhadores de instalações com maiores probabilidades de encontrarem fontes radioactivas órfãs (abandonadas) têm também de receber formação quanto à identifi cação, aos cuidados a ter e ao modo de reação36.

33 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 69º, nºs 1 e 2.34 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 69º, nºs 3 a 5.35 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 15º, nºs 1, alínea d), 4 e 5.36 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 16º.

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São especialmente amplas as exigências de informação prévia e formação dos trabalhadores de emergência (isto é, dos trabalhadores que poderão ser chamados a intervir em caso de uma emergência radiológica), que deve incluir formação geral e regularmente atualizada, mas também informação específi ca antes de uma intervenção concreta, incluindo informação sobre as consequências das doses de radiação que poderão receber37.

Se é certo que um trabalhador que intervenha no contexto duma emergência pode vir a ser exposto a doses de radiação perigosas ou mesmo letais, a Diretiva procura impor condicionantes exigentes a taisexposições. Com efeito, as exposições profi ssionais de emergências devem, “sempre que possível”, fi car abaixo dos limites de dose gerais (20 mSv por ano, ou 50 mSv num ano se o primeiro limite não for ultrapassado numa média de 5 anos consecutivos). Quando tal não for “exequível”, permite-se a fi xação de níveis de exposição “em geral abaixo de uma dose efetiva de 100 mSv”. Prevê-se ainda que, “em situações excecionais, para salvar vidas, prevenir efeitos graves para a saúde induzidos pelas radiações, ou impedir a ocorrência de catástrofes, pode ser fi xado um nível de referência para uma dose efetiva de radiação externa dos trabalhadores de emergência superior a 100 mSv, mas não superior a 500 mSv”38.

Todos os Estados-Membros têm de dispor de um sistema de gestão de emergências radiológicas, que tem de conter um conjunto detalhadode elementos obrigatórios e que deve incluir planos de resposta com o objetivo de “evitar reações tecidulares conducentes a efeitos determinísticos graves em qualquer indivíduo da população afetada e reduzir o risco de efeitos estocásticos”39.

37 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigos 17º e 53º, nº 3.38 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 53º, nºs 1 e 2.39 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 97º e Secção A do Anexo XI.

Devem ser desenvolvidos planos de resposta a eventuais situações de emergência identifi cadas na aferição de risco de cada Estado, com os elementos referidos na Diretiva40. Os planos de emergência têm de ser testados, verifi cados e revistos periodicamente.

Estes planos devem ainda prever os termos da transição para uma subsequente situação de “exposição existente”, quando seja o caso. Estas situações são reguladas nos artigos 100º a 103º, devendo ainda atender-se ao artigo 73º.

Este quadro é completado pelas normas relativas à informação da população.

2.3.5. Informação da população

A partir da adoção da CSN, o direito internacional passou a incluir a obrigação dos Estados de prestarem informações adequadas às populações suscetíveis de serem afetadas por um acidente nuclear. O direito da União Europeia já tomara esse passo cinco anos antes, através da Diretiva nº 89/618/Euratom41, mas deu àquela obrigação um âmbito mais amplo e defi niu-a em termos muito mais precisos. Este regime encontra-se, atualmente, na Diretiva nº 2013/59/Euratom42.

Distinguem-se duas categorias de informações à população cuja prestação deve ser garantida pelos Estados-Membros:

• informação prévia da população: informação sobre medidas de proteção sanitária aplicáveis, comportamento a adotar e autoridades responsáveis, a ser prestada sem necessidade de

40 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigo 98º e Secção B do Anexo XI.41 Veja-se também a Comunicação da Comissão Europeia tendo por objeto a

adoção da Diretiva 89/618/Euratom do Conselho, de 27 de novembro de 1989, relativa à informação da população sobre as medidas de proteção sanitária aplicáveis e sobre o comportamento a adotar em caso de emergência radiológica (JO C 103/12, 19/04/1991).

42 Diretiva nº 2013/59/Euratom, artigos 70º e 71º e Anexo XII.

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solicitação e com atualizações regulares (de acordo com detalhes previstos no Anexo XII, Secção A);

• informação da população afetada por uma emergência radiológica: informação imediata sobre os factos da situação de emergência, medidas de proteção sanitária aplicáveis, comportamento a adotar e autoridades responsáveis (de acordo com detalhes previstos no Anexo XII, Secção B).

A Comissão desempenha um papel de coordenação. É obrigatório transmitir-lhe a informação prestada à população afetada por uma emergência radiológica, que também deve ser comunicada aos Estados--Membros suscetíveis de serem afetados. A Comissão pode ainda exigir a transmissão das outras duas categorias de informações.

Também se encontram noutros diplomas europeus exigências específi cas de informação e aconselhamento do público, como no caso de deteção de valores de radioatividade superiores aos autorizados na água para consumo humano43.

2.3.6. Contaminação radioativa de alimentos

Embora ausentes do direito internacional, encontramos no ordenamento jurídico da União Europeia regras relativas à reação à contaminação radioativa de alimentos. Aliás, importa ter em conta que o Direito da União Europeia regula, de modo geral (fora do contexto de acidentes), a presença e utilização de radiações ionizantes em produtos alimentares44.

43 Cfr. Diretiva 2013/51/Euratom do Conselho, de 22 de outubro de 2013, que estabelece requisitos para a proteção da saúde do público em geral no que dizrespeito às substâncias radioativas presentes na água destinada ao consumo humano (JO L 296/12, 07/11/2013), artigo 7º, nº 3, alínea b).

44 Este quadro legislativo consta, essencialmente dos seguintes instrumentos: Regulamento (CE) n.º 854/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de

O acidente de Chernobil levou à contaminação de produtos alimentares. Era necessária uma reação coordenada em toda a Comunidade45. A urgência dessa reação e as diferentes abordagens que começaram a ser adotadas levou a que se optasse pela adoção de Regulamentos (direta e imediatamente aplicáveis), em vez de Diretivas. Embora grande parte deste quadro normativo tenha sido pensado no contexto específi co daquele acidente, manteve-se em vigor até hoje, disperso por vários instrumentos, e poderá aplicar-se a qualquer situação futura. Isto, claro, sem prejuízo da necessidade do seu complemento com normas específi cas na sequência de um acidente nuclear, como se verifi cou após o acidente de Fukushima.

O Regulamento (Euratom) nº 3954/8746 permite a fi xação, na sequência de uma emergência radiológica, de níveis máximos de contaminação radioativa de alimentos para consumo humano e

abril de 2004, que estabelece regras específi cas de organização dos controlos ofi ciais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano (JO L 139/206, 30/04/2004), revisto em último lugar pelo Regulamento (UE) nº 517/2013, do Conselho, de 13 de maio de 2013 (JO L 158/1, 10/06/2013); Diretiva 1999/3/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de fevereiro de 1999, relativa ao estabelecimento de uma lista comunitária de alimentos e ingredientes alimentares tratados por radiação ionizante (JO L 66/24, 13/03/1999); Diretiva 1999/2/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de fevereiro de 1999, relativa àaproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos alimentos e ingredientes alimentares tratados por radiação ionizante (JO L 66/16, 13/03/1999), revista em último lugar pelo Regulamento (CE) nº 1137/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008 (JO L 311/1, 21/11/2008); Decisão nº 2002/840/CE da Comissão, de 23 de outubro de 2002, que adota a lista das instalações aprovadas para a irradiação de alimentos em países terceiros (JO L 287/40, 25/10/2002), revista em último lugar pela Decisão de Execução nº 2012/277/EU da Comissão, de 21 de maio de 2012 (JO L 134/29, de 24/05/2012).

45 Cfr. Recomendação nº 86/156/CEE da Comissão, de 6 de maio de 1986, dirigida aos Estados-Membros relativa à correção das medidas nacionais tomadas a respeito dos produtos agrícolas na sequência das precipitações radioativas provenientes da União Soviética (JO L 118/28, 07/05/1986).

46 Regulamento (Euratom) nº 3954/87 do Conselho, de 22 de dezembro de 1987, que fi xa os níveis máximos tolerados de contaminação radioativa dos géneros

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animal. Os alimentos que ultrapassem os níveis assim fi xados não podem ser comercializados na União.

No caso de uma emergência radiológica que leve a que sejam ou possam ser ultrapassados os níveis de contaminação indicativos, constantes do Anexo, a Comissão Europeia deve impor níveis máximos através da adoção de um regulamento provisório. Esta limitação deve ser imposta pelo mínimo período possível. A Comissão deverá rapidamente propor ao Conselho a adoção de um regulamento defi nitivo, o qual deliberará por maioria qualifi cada. Enquanto o Conselho não deliberar (e a proposta não seja retirada), o regulamento provisório continuará em vigor.

A Comissão centraliza a informação relativa à aplicação pelos Estados-Membros dos regulamentos em causa, sendo ainda habilitada a adoptar regulamentos de execução.

Esta competência foi usada para fi xar uma lista e defi nir os níveis máximos de contaminação de alimentos de menor importância (para humanos), bem como os níveis máximos de contaminação de alimentos para animais – Regulamento (Euratom) nº 944/8947 e Regulamento (Euratom) nº 770/9048, respetivamente.

alimentícios e alimentos para animais na sequência de um acidente nuclear ou de qualquer outro caso de emergência radiológica (JO L 371/11, 30/12/1987), tal como revisto pelo Regulamento (Euratom) nº 2218/89 do Conselho, de 18 de julho de 1989 (JO L 211/1, 22/07/1989).

47 Regulamento (Euratom) nº 944/89 da Comissão, de 12 de abril de 1989, que fi xa os níveis máximos tolerados de contaminação radioactiva dos géneros alimentícios de menor importância na sequência de um acidente nuclear ou de qualquer outro caso de emergência radiológica (JO L 101/17, de 13/04/1989).

48 Regulamento (Euratom) nº 770/90 da Comissão, de 29 de março de 1990, que fi xa os níveis máximos tolerados de contaminação radioativa de alimentos para animais na sequência de um acidente nuclear ou de qualquer outro caso de emergência radiológica (JO L 83/78, de 30/03/1990).

Este regime foi alargado, através do Regulamento (CEE) nº 2219/8949, à exportação de produtos alimentares para fora da Comunidade na sequência de uma emergência radiológica.

Mantém-se ainda em vigor um regime de controlo da contaminaçãoradioativa de produtos agrícolas importados de países terceiros, atendendo às consequências do acidente de Chernobil50. Os produtos abarcados por este regime têm de ser controlados em certos postos aduaneiros (a Comissão publica periodicamente uma lista destes).

Na sequência do acidente de Fukushima, foram impostas condições especiais à importação de alimentos e de ração do Japão51. Salvo nova intervenção legislativa, estas condições especiais caducarão no fi nal de março de 2014.

Para reagir à complexifi cação decorrente da repartição destaregulamentação por vários instrumentos, a Comissão propôs ao Conselho um regulamento de codifi cação, mas que ainda não foi adotado52.

49 Regulamento (CEE) nº 2219/89 do Conselho, de 18 de julho de 1989, relativo às condições especiais de exportação dos géneros alimentícios e dos alimentos para animais na sequência de um acidente nuclear ou de qualquer outro caso de emergência radiológica (JO L 211/4, 22/07/1989).

50 Regulamento (CE) nº 733/2008 do Conselho, de 15 de julho de 2008, relativo às condições de importação de produtos agrícolas originários de países terceiros na sequência do acidente ocorrido na central nuclear de Chernobil (Versão codifi cada) (JO L 201/1, 30/07/2008), revisto pelo Regulamento (CE) nº 1048/2009 do Conselho, de 23 de outubro de 2009 (JO L 290/4, 06/11/2009); implementado pelo Regulamento (CE) nº 1635/2006 da Comissão, de 6 de novembro de 2006, que estabelece as regras de execução do Regulamento (CEE) nº 737/90 do Conselho relativo às condições de importação de produtos agrícolas originários de países terceiros na sequência do acidente ocorrido na central nuclear de Chernobil (JO L 306/3, 07/11/2006).

51 Regulamento de Execução (UE) n.º 996/2012 da Comissão, de 26 de outubro de 2012, que impõe condições especiais à importação de géneros alimentícios e alimentos para animais originários ou expedidos do Japão após o acidente na centralnuclear de Fukushima e que revoga o Regulamento de Execução (UE) n.º 284/2012 (JO L 299/31, 27/10/2012). Este Regulamento veio na sucessão de uma sequência de Regulamentos, cujo primeiro foi o Regulamento (UE) nº 297/2011, de 25 de março de 2011.

52 Proposta de regulamento (Euratom) do Conselho que fi xa os níveis máximos tolerados de contaminação radioativa dos géneros alimentícios e alimentos para

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O Direito da União Europeia exige também o controlo da radio-atividade da água destinada ao consumo humano, com determinadas metodologias e periodicidade, bem como a investigação e adoção das medidas corretivas necessárias sempre que seja detetado um incumprimento dos valores paramétricos53.

3. Responsabilidade civil na sequência de acidentes nucleares

3.1. Regime aplicável a instalações nucleares

3.1.1. Introdução

Não surpreenderá que apenas os (potenciais) acidentes nucleares mais gravosos e com maior probabilidade de consequências transfronteiriças tenham sido objeto de regulação internacional. A responsabilidade civil dos operadores de instalações nucleares civis, em especial, foi alvo de acesas discussões e de esforços normativos na comunidade internacional, desde os primórdios.

Atendendo à provável falência da entidade responsável no caso de um acidente nuclear, era necessário encontrar uma solução que garantisse a disponibilidade de fundos sufi cientes para compensar os danos causados. Por outro lado, seria economicamente impossível aos operadores garantir a disponibilidade de fundos sufi cientes em absoluto. Assim, encontrou-se um equilíbrio, necessariamente frágil

animais na sequência de um acidente nuclear ou de qualquer outro caso de emergência radiológica (Reformulação) (COM/2010/184 fi nal). Ver anterior proposta no documento COM/2007/0302 fi nal. Ver também a Opinião do Comité Económico e Social (JO C 48/160, 15/02/2011).

53 Cfr. Diretiva nº 2013/51/Euratom do Conselho, de 22 de outubro de 2013, que estabelece requisitos para a proteção da saúde do público em geral no que diz respeito às substâncias radioativas presentes na água destinada ao consumo humano (JO L 296/12, 07/11/2013).

e sujeito a evoluções, entre a solução “justa” ou “desejável”, e a solução “possível”, introduzindo-se um sistema de compensação limitada, em que a responsabilidade se reparte, em primeiro lugar, pelo operador, seguido do Estado respetivo e, eventualmente, de solidariedade internacional.

Dito de outro modo, o regime da responsabilidade civil por atividadesnucleares é tanto fi lho da necessidade de proteção das pessoas e do ambiente, como do imperativo de não inviabilizar economicamente atividades que se entendem benéfi cas e úteis à vida humana.

Importa não esquecer que os atuais regimes internacionais não garantem, nem de perto, a compensação de todos os danos decorrentesdum acidente nuclear signifi cativo. Meramente como valor de referência,considere-se que, de acordo com algumas estimativas, os custos totais decorrentes do acidente de Chernobil ultrapassaram em muito a centena de mil milhões de euros, e o acidente de Fukushima já levou ao pagamento de indemnizações no valor de EUR 13,7 mil milhões (o direito japonês não prevê limitação da responsabilidade do operador), sendo que o regime internacional atual mais generoso não garante compensação para além de EUR 420 milhões.

Até ao presente, os regimes internacionais nunca foram utilizados. Em 1986, quando ocorreu em Chernobil o único acidente que poderia ter testado estes regimes, a URSS não dispunha de legislação nem pertencia a qualquer tratado relevante. Além disso, sem surpresa, o acidente de Chernobil não deu origem a disputas entre Estados (pedidos de compensação a título de representação diplomática de cidadãos), essencialmente devido à submissão da URSS a um tribunal internacional ter de ser voluntária. Quando ao acidente de Fukushima, ainda não se identifi caram, até ao presente, danos transfronteiriços, pelo que a compensação dos danos se tem processado exclusivamente no âmbito do direito japonês.

Para além do que fi cou já referido (responsabilidade limitada em valor e compensação adicional por fundos estatais), os princípios básicosdo Direito Internacional da responsabilidade civil por acidentes nucleares são:

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(i) responsabilidade absoluta do operador (i.e. independente de culpa ou negligência) – poderia ser demasiado difícil às partes lesadas preencher o ónus da prova exigido pelo regime geral da responsabilidade civil;

(ii) responsabilidade exclusiva do operador – sem esta medida, tornar-se-ia muito difícil atribuir a responsabilidade dum acidente (ao responsável da instalação, à empresa transportadora, à empresa produtora de determinado mecanismo ou peça, etc.) e seria demasiado arriscado fornecer serviços ou produtos aos operadores de instalações nucleares;

(iii) responsabilidade limitada no tempo – a ausência de um limite temporal para os pedidos de compensação criaria demasiada insegurança, tornando incomportável o risco económico para os operadores; por outro lado, este limite implica a possibilidade da decorrência do prazo de prescrição antes de se verifi carem certas consequências negativas de um acidente;

(iv) seguro obrigatório – o operador tem de ter um seguro ou outra garantia fi nanceira que cubra completamente a sua responsabilidade

em caso de acidente; a capacidade de cobertura seguradora tem sido um factor crucial no desenvolvimento deste conjunto normativo, servindo de critério para a fi xação do limite da responsabilidade dos operadores;

(v) limitação da responsabilidade – fi xam-se limites mínimos da responsabilidade do operador; e

(vi) jurisdição exclusiva dos tribunais do Estado em cujo território aconteceu o acidente.

O primeiro esforço de regulação global da responsabilidade extracontratual por atividades nucleares foi a Lei Price-Anderson, dos EUA, adoptada em 1957 e revista várias vezes desde então.

Pouco tempo depois, surgiram dois regimes internacionais paralelos. Por um lado, o sistema da Convenção de Paris, desenvolvido pela OCDE em 1960, que se limitou a cobrir a Europa Ocidental e revela, portanto, maior profundidade e garantias de efi cácia. Três anos depois,

e por outro lado, foi adotado sob os auspícios da AIEA o sistema da Convenção de Viena, que pretendia ser de âmbito global, mas cujas 39 Partes fi caram, claramente, muito aquém do objetivo de universalidade.

Note-se que estes regimes internacionais aplicam-se exclusivamente a atividades pacífi cas, não podendo ser usados para o ressarcimento de danos causados por uma atividade nuclear de cariz militar.

3.1.2. Sistema da Convenção de Paris

Atualmente, o sistema da OCDE é composto pela Convenção de Paris54 e pela Convenção Complementar de Bruxelas55, ambas revistas em 1964 e 1982.

Nos termos deste sistema, o “operador”56 de uma “instalação nuclear” é responsável pelos danos causados a pessoas e a bens57, bastando provar-se o nexo de causalidade entre o dano e o acidente nuclear ocorrido no interior de uma instalação ou durante o transporte de materiais nucleares de ou para a instalação58.

54 Convenção sobre a Responsabilidade Civil no Domínio da Energia Nuclear, de 29 de julho de 1960.

55 Convenção de Bruxelas Complementar à Convenção de Paris, de 31 de janeiro de 1963.

56 “Explorador” na tradução ofi cial portuguesa.57 Excetuam-se para este efeito a própria instalação nuclear, bem como outras

instalações nucleares no mesmo “local” e bens que nelas se encontrem e que lhes estejam funcionalmente afectados. Veja-se a alínea b) do artigo 3º quanto às situações de indiferenciação da origem nuclear e não-nuclear do dano, bem como da cumulação como causa do acidente de radiação ionizante não causada pelo acidente nuclear.

58 A não ser que a responsabilidade já se tenha transferido para outro operador, ou que os materiais tenham sido descarregados num Estado não coberto pela convenção. A legislação nacional pode permitir a transferência da responsabilidade para o transportador, sujeita a seguro obrigatório e decisão caso-a-caso de uma autoridade pública.

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Em princípio, esta responsabilidade só abrange acidentes e danos no território de Partes Contratantes59 ou no mar alto, com duas possíveis exceções: (i) a lei do Estado do operador pode impor uma solução mais ampla; e (ii) uma pessoa que esteja sedeada num Estado Parte e que pague indemnizações por danos ocorridos em Estados terceiros tem direito de retorno sobre o operador responsável pelo acidente.

O conceito de “instalação nuclear” é bastante amplo, incluindo todas as instalações onde se preparam, detêm, utilizam ou armazenam materiais nucleares (material físsil e respetivos resíduos com utilidade ou fi m ulterior), excluindo-se porém os reatores “que fazem parte de um meio de transporte” (e.g. navios nucleares). O Comité Diretor da AEN da OCDE pode redefi nir parcialmente, por unanimidade, o âmbito da Convenção, excluindo certas instalações ou substâncias (quando o reduzido nível de risco o justifi que), bem como esclarecendo os materiais cobertos60.

O operador só pode ser responsabilizado por acidentes nucleares nos termos da convenção e é exclusivamente responsável (sem prejuízo dos mecanismos públicos de compensação adicional decididos por cada Estado)61, embora a legislação nacional possa permitir acionar diretamente o respetivo segurador ou prestador da garantia fi nanceira. O operador (bem como o Estado que tenha pago indemnizações complementares) só terá direito de retorno sobre outras pessoas se o acidente resultou de um ato ou omissão destas, com intenção danosa, ou se as suas relações contratuais o previam expressamente.

59 A Convenção aplica-se apenas aos territórios metropolitanos, excluindo-se os territórios ultramarinos, a não ser que o respectivo Estado tome decisão contrária.

60 As decisões, recomendações e interpretações adoptadas pela Comissão Directora foram reunidas num documento disponível em http://www.nea.fr/html/law/paris-convention-dec-rec-int.pdf.

61 A Alemanha, Áustria e Grécia fi zeram reservas que afastaram esta regra de responsabilidade exclusiva.

A responsabilidade do operador (obrigatoriamente coberta por um seguro ou garantia fi nanceira equivalente) deve ser limitada entre cerca de EUR 21 milhões e EUR 7 milhões62. No entanto, só o valor mínimo é que é absolutamente vinculativo. Os Estados Partes podem, na prática, impor os limites de responsabilidade que entenderem, desde que superiores ao valor mínimo. Esta faculdade foi usada pela Alemanha na década de 80, impondo responsabilidade ilimitada dos operadores.

Em regra, o limite de responsabilidade é determinado pela legislação do Estado do operador. No entanto, um Estado Parte pode exigir um aumento ad hoc do limite de responsabilidade de operadores estrangeiros (no máximo, até ao limite fi xado na sua legislação interna) para permitir o trânsito de materiais nucleares pelo seu território, de modo a cobrir adequadamente os riscos63.

A determinação das indemnizações em casos concretos (incluindo a sua distribuição equitativa) é feita de acordo com a legislação doEstado do operador64, sujeita ao princípio da não-discriminação com base em nacionalidade, domicílio ou residência (e.g., não se pode dar preferência à indemnização de cidadãos nacionais relativamente aos cidadãos de outras Partes).

62 Máximo: 15 milhões de Direitos Especiais de Saque (DES); mínimo: 5 milhões DES. O DES é uma unidade de conta estabelecida pelo FMI, resultante dum cabaz constituído pelo Euro, o Dólar americano, o Yen japonês e a Libra Esterlina.

63 Esta exceção não se aplica ao transporte aéreo (desde que exista o direito de sobrevoar ou aterrar no território em causa) nem ao transporte marítimo, no caso de exercício do direito de passagem inofensiva pelas águas territoriais ou de recurso de emergência a um porto de abrigo.

64 Note-se também que todos os pagamentos relacionados com a implementação da responsabilidade civil decorrente desta Convenção, bem como os prémios de seguro e resseguro correspondentes, são “livremente transferíveis entre as zonas monetárias das Partes Contratantes” (artigo 12º).

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Fixa-se um prazo de prescrição de 10 anos para pedidos de indemnização, a contar do acidente nuclear65. As Partes podem fi xar prazos mais longos, desde que garantam a cobertura da responsabilidade dos operadores no período excedente. Além disso, podem impor um prazo alternativo (que não pode exceder o prazo principal) de pelomenos 2 anos (fi xado em 3 anos pela Convenção Complementar de Bruxelas) a contar do momento em que o lesado teve conhecimento do dano e do operador responsável, ou do momento em que o lesado deveria, razoavelmente, ter tido esse conhecimento. Este regime contrasta fortemente com a solução norte-americana, que impõe apenas o prazo de 3 anos após o conhecimento dos danos e da sua origem, suscitando dúvidas sobre a sua necessidade e justiça.

As causas de exclusão da responsabilidade dos operadores (“force majeure”) são as usuais (“confl ito armado”, “hostilidade”, “guerra civil”, “insurreição” ou “cataclismos naturais de caráter excecional”66)67. Suscitou-se nos últimos anos a controvérsia de saber se um ato terrorista confi guraria algum destes casos de exceção, mas a conclusão tende a ser negativa (a não ser que se enquadrasse numa guerra civil). Note-se ainda que a escolha de localização, design e medidas de segurança na construção de centrais nucleares devemvisar evitar que cataclismos naturais “não excecionais” desencadeiem um acidente nuclear. Por outras palavras, a verifi cação de um tremor de terra só excluiria a responsabilidade de um operador se ocorresse num local ou com dimensões para as quais não fosse razoavelmente exigível a adoção de medidas de prevenção sufi cientes.

65 Como regra especial, no caso do acidente nuclear ser causado por material nuclear (lato sensu) que tivesse sido perdido, roubado ou abandonado, o prazo de prescrição conta-se a partir da data do acidente, mas não poderá exceder em caso algum 20 anos.

66 Esta última causa de exclusão pode não ser incluída na legislação nacional.67 A Alemanha e a Áustria reservaram o direito de não aplicar estas causas de

exclusão, no que respeita a acidentes no seu território.

Prevê-se ainda um modo de determinação dos tribunais competentes para pedidos de indemnização e de resolução de confl itos positivos de jurisdição. Em princípio, a jurisdição cabe aos tribunais da Parte Contratante em que se verifi cou o acidente nuclear ou em que o operador responsável está sedeado. As decisões dos tribunais competentes têm poder executório no território de todas as Partes, sem prejuízo de eventuais formalidades de reconhecimento que não podem infl uir sobre o mérito da causa68.

Sabia-se, desde o início, que os limites fi xados para a responsabilidade dos operadores não seriam sufi cientes para compensar todos os danos resultantes para terceiros de um acidente nuclear signifi cativo, o que deixaria muitas vítimas desprotegidas e injustiçadas.

Para reagir a este problema, foi adotada a Convenção Complementarde Bruxelas (três anos após a primeira convenção), instituindo um mecanismo de compensação suplementar com base em fundos públicos e solidariedade internacional, dependente de e paralelo às disposições da primeira convenção. No entanto, nem todas as Partes da Convenção de Paris aderiram a este mecanismo (uma das que fi cou de fora foi Portugal), não benefi ciando dos dois níveis de responsabilidade adicional referidos de seguida.

Nos termos desta convenção, os danos de terceiros que ultrapassem o valor fi xado para a responsabilidade do operador na legislação nacional aplicável (em conformidade com a Convenção de Paris) serãocompensados até ao máximo, por acidente, de cerca de 420€ milhões69. Quando os danos previsíveis excedam este limite máximo, o Estado relevante poderá determinar critérios equitativos de repartição da compensação disponível, seguindo o princípio da não-discriminação.

68 Sobre esta matéria, ver igualmente, e.g., os artigos 1º, nº 7 e 23º, nº 3 da Convenção sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras em Matéria Civil e Comercial, adoptada a 1 de Fevereiro de 1971.

69 300 milhões de DES (120 milhões na versão inicial desta convenção).

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Após o primeiro nível de responsabilidade (do operador), acciona-se o segundo nível: a responsabilidade do Estado onde se encontra o operador na origem do acidente, até cerca de EUR 240 milhões70. Por fi m, se ainda não se tiverem indemnizado todos os danos, aciona-se a solidariedade entre as Partes (independentemente dos territórios afectados), até ao máximo acima indicado. Neste último caso, calcula-se a contribuição de cada Estado de acordo com uma fórmula que a torna proporcional à sua riqueza (PNB) e potência nuclear instalada.

Em termos processuais, impõe-se a simplicidade e a cooperação entre os Estados Partes. As vítimas solicitarão indemnização perantea jurisdição competente, sem necessidade de qualquer distinção consoante a proveniência dos fundos.

Por último, deve ter-se em conta que este mecanismo complementar só se aplica relativamente a danos sofridos no território duma Parte, ou por cidadãos71 ou navios ou aeronaves duma Parte no ou sobre o mar alto, e que tenham sido causados por um acidente imputável a um operador legítimo de uma das Partes72.

Apesar de ser o regime internacional mais generoso, o sistema da Convenção de Paris está ainda muito longe de garantir o ressarcimento integral dos danos causados por um acidente nuclear signifi cativo. Num esforço de retifi car esta situação, adotaram-se Protocolos de revisão das duas convenções em 2004. Mas, até ao presente, o processo

70 175 milhões de DES. Nos casos em que, nos termos da Convenção de Paris, sejam competentes os tribunais de outro Estado, este será responsável pelo adiantamento de indemnizações até esta quantia, sendo posteriormente ressarcido pelo Estado do operador.

71 Mediante declaração dos Estados Partes, o conceito de “cidadão” pode incluir residentes habituais.

72 O operador em causa deve constar de uma lista fornecida por cada Estado Parte ao Governo belga. Prevêem-se mecanismos de contestação pelas outras Partes à inclusão duma instalação nesta lista. O Anexo à Convenção estabeleceu um regime especial para os casos em que a aplicação da Convenção Complementar seja afastada exclusivamente por este requisito.

de ratifi cação destes protocolos é um fracasso quase completo. Caso estes Protocolos entrem em vigor, o sistema da Convenção de Paris sofrerá, em síntese, as seguintes alterações:

(i) maior nível de compensação: • responsabilidade do operador fi xada num mínimo de 700€

milhões73; • possibilidade de valor inferior para certas instalações ou transportes de materiais nucleares com menores níveis de riscos (70€ ou

80€ milhões, respectivamente); • segundo nível de responsabilidade (Estado do operador) até

500€ milhões; • terceiro nível de responsabilidade (solidariedade) até 300€

milhões (passando-se de um total máximo de 420€ milhões para 1.500€ milhões), alterando-se a fórmula de repartição das contribuições para dar mais peso à capacidade instalada;

(ii) novos tipos de danos cobertos: certos tipos de perdas económicas, lucros cessantes e gastos com reabilitação ambiental e com medidas preventivas;

(iii) maior número de instalações cobertas: passam a cobrir-se instalações nucleares em vias de encerramento e instalações de eliminação de materiais radioativos (pelo menos até à fase fi nal, em que já não exista risco signifi cativo);

(iv) maior âmbito territorial: • para o primeiro nível da responsabilidade (operador): incluídos

danos causados no território e zonas marítimas de Estados terceiros que: (a) sejam Partes da Convenção de Viena e Protocolo

Conjunto, (b) que não tenham capacidade nuclear instalada, ou (c) cuja legislação atribua os mesmos benefícios ao Estado relevante (em reciprocidade);

73 O limite máximo seria defi nitivamente abolido, embora, como se viu, ele já não exista na prática.

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• para o segundo e terceiro níveis de responsabilidade: mesmo âmbito territorial que anteriormente, acrescentando-se apenas a ZEE e a plataforma continental das Partes;

(v) maior prazo de prescrição: 30 anos para danos pessoais ou morte;

(vi) menos causas de exclusão da responsabilidade dos operadores: só se retêm as causas relativas a “actos bélicos” (os operadores passam a ser responsáveis mesmo em casos de desastres naturais de caráter excecional);

(vii) responsabilidade estatal pela ausência de seguro: o Estado do operador tem de garantir as indemnizações devidas pelo operador que não sejam cobertas pelo seu seguro ou garantia fi nanceira.

3.1.3. Sistema da Convenção de Viena

Até hoje, apesar da adoção de dois instrumentos adicionais, o sistema da AIEA é composto, na prática, apenas pela Convenção de Viena original74. Tendo em conta que este regime é muito semelhante ao da Convenção de Paris, referir-se-ão apenas os principais pontos de divergência.

Em termos de âmbito, a Convenção de Viena permite a exclusão da sua aplicação a pequenas quantidades de materiais nucleares, de acordo com limites fi xados pela AIEA.

No que respeita aos limites da responsabilidade do operador, as Partes devem fi xar um valor mínimo de cerca de EUR 38 milhões75, não se impondo um valor máximo.

74 Convenção sobre a Responsabilidade Civil no Domínio da Energia Nuclear, de 21 de maio de 1963.

75 USD 5 milhões, por referência ao valor em ouro do dólar americano a 29 de Abril de 1963.

Prevê-se, expressamente, que um operador não tem de indemnizar danos sofridos por pessoa que tenha provocado inteira ou parcialmente o acidente nuclear em causa, intencionalmente ou por negligência grosseira. Esta lacuna da Convenção de Paris é, porém, facilmente integrável pelos princípios gerais de Direito Internacional (culpa contributiva).

As duas principais diferenças, porém, são: (a) a inexistência de um mecanismo obrigatório de resolução de disputas76; e (b) a ausência de um sistema de compensação suplementar pelo Estado do operador e pelas Partes em geral (componente de solidariedade).

Na mesma lógica que levou à adoção, no sistema da Convenção de Paris, da Convenção Complementar de Bruxelas e dos Protocolos de Revisão de 2004, adotaram-se no mesmo ano dois tratados para melhorar o sistema da Convenção de Viena: a Convenção sobre Compensação Suplementar e o Protocolo de revisão de 1997. Ambos foram redigidos de modo a permitir a sua ratifi cação sem ser necessária a ratifi cação da Convenção da Viena ou de Paris (sonhava-se com a adesão de Estados tais como os EUA, a China, a Índia, o Canadá ou o Japão). Ambos fracassaram: o primeiro ainda não entrou em vigor, e o segundo já vigora mas apenas com 11 ratifi cações de menor monta.

O Protocolo teria aumentado os níveis de compensação para cerca de 420€ milhões77, podendo as Partes impor este ónus inteiramenteao operador ou responsabilizar-se por 50% desse valor. Seria ainda possível, a título transitório, limitar a compensação a 140€ milhões78 nos quinze anos após a entrada em vigor do Protocolo.

76 Existe um Protocolo Opcional para este efeito, mas que até hoje só foi ratifi cado pelas Filipinas e pelo Uruguai.

77 300 milhões de DES.78 100 milhões de DES.

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Ambos alargariam o âmbito da Convenção, tanto em termos das pessoas que podem benefi ciar da indemnização como do tipo de danos indemnizáveis. Abarcar-se-iam quaisquer danos, independentemente da sua localização (remoção do limite territorial), permitindo-se exceções para os casos de Estados com instalações nucleares que não oferecem reciprocidade. Danos pessoais e morte passariam a gozar de preferência na indemnização nos primeiros 10 anos, gozando de um prazo de prescrição alargado para 30 anos. A lista de tipos de danos indemnizáveis é consideravelmente alargada (passando a incluir perdas económicas, lucros cessantes e gastos com reabilitação ambiental e com medidas preventivas), mas os novos tipos só serão indemnizáveis se tal for previsto na legislação nacional aplicável.

A Convenção sobre Compensação Suplementar aumentaria a compensação disponível para vítimas através de fundos públicos até um valor que dependeria dos Estados Partes e que, caso todos os Estados com capacidade nuclear instalada aderissem, se elevaria a cerca de 420€ milhões79. Ou seja, na melhor das hipóteses, os dois tratados em conjunto elevariam o nível de compensação disponível para aproximadamente 840€ milhões80.

Como refl exo de uma componente de solidariedade mais reduzida, esta Convenção prevê que 50% dos fundos públicos serão utilizados para compensar danos de vítimas do Estado Parte onde se situa o operador responsável e de outros Estados, os restantes 50% sendo reservados às vítimas dos outros Estados. Ou seja, dá-se preferência ao ressarcimento dos danos de vítimas de outros Estados Partes que não aquele onde se situa o operador responsável pelo acidente.

79 300 milhões de DES.80 600 milhões de DES.

3.1.4. Protocolo Conjunto

Era irracional e desnecessariamente limitativa a existência de dois regimes semelhantes em áreas geográfi cas adjacentes. Os cidadãos dos Estados Parte de um dos sistemas não poderiam benefi ciar da proteção conferida pelo outro, caso o operador responsável pelo acidente se localizasse num Estado Parte desse outro sistema. A ratifi cação de ambas Convenções revelava-se indesejável, por poder dar origem a obrigações contraditórias81.

A ideia de fundir as duas Convenções através de um novo tratado existia pelo menos desde o início da década de 1970. Foi o acidente de Chernobil que deu à ideia o impulso político necessário, demonstrando que um acidente num Estado da Europa de Leste (território potencial da Convenção de Viena) poderia facilmente afetar Estados da Convenção de Paris. Assim, nasceu o Protocolo Conjunto82. Apesar de ter entrado em vigor relativamente depressa, só foi ratifi cado por metade dos membros dos dois sistemas, sendo assim uma ponte incompleta.

Nos termos do Protocolo Conjunto, os operadores são responsáveis por danos causados no território das Partes do outro sistema, mas de acordo com as regras da Convenção aplicável no território do operador. Note-se que o Protocolo Conjunto não abarca o regime previsto na Convenção Complementar de Bruxelas - ou seja, não abre as possibilidades de compensação por fundos públicos aos Estados Partes da Convenção de Viena.

81 Esta solução foi ensaiada pela Eslovénia, que acabou por se retirar da Convenção de Viena.

82 Protocolo Conjunto sobre a Aplicação da Convenção de Viena e da Convenção de Paris, de 21 de setembro de 1988.

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3.1.5. Comentários gerais

Os dois sistemas internacionais de responsabilidade civil na sequência de acidentes nucleares constituem um bom caso de estudo sobre o tipo de concessões necessárias num regime global ou, noutra ótica, sobre a maior profundidade de um regime negociado entre um número pequeno de Estados unidos por fortes laços. Acima de tudo, o fracasso das tentativas de melhoria destes sistemas revela a notável relutância da maioria dos Estados em se comprometer, ao nível internacional, com níveis de indemnização realistas.

Enquanto se viabilizou, de facto, a atividade económica no setor nuclear, o outro objetivo essencial destes regimes – a proteção das vítimas de acidentes nucleares – está francamente longe de ser alcançado.

Por um lado, atualmente, a maioria das centrais nucleares do mundo continua a não estar coberta por qualquer regime interna-cional de responsabilidade civil. Por outro lado, os regimes que existem não são verdadeiramente satisfatórios para os Estados que optaram por não ter energia nuclear. De facto, a Convenção de Pa-ris não foi ratifi cada nem pela Áustria, nem pelo Luxemburgo nem pela Irlanda, três Estados historicamente contra a opção nuclear.

O salto extraordinário nos níveis de proteção propostos nos tratados que ainda não entraram em vigor (valores de indemnização, tipo de danos cobertos, âmbito territorial) mostra bem a desadequação e injustiça do regime atualmente vigente. Neste, como noutros casos, torna-se difícil compreender a lógica das negociações internacionais, não sendo claro quais os interesses que são protegidos pela indisponibilidade dos Estados para ratifi carem estes tratados.

3.2. Outros regimes de responsabilidade

Como decorre do que se expôs na secção anterior, os sistemas de responsabilidade civil dos operadores nucleares cobrem a maior parte das atividades que podem justifi car a derrogação ao regime

geral da responsabilidade civil e que são mais propensas a ter uma dimensão internacional. Cobrem-se por aquela via, por exemplo, os transportes (por qualquer meio) de materiais nucleares de e para as instalações dos operadores.

As principais lacunas que restam prendem-se com potenciais danos resultantes de atividades militares (em tempo de paz ou de guerra) e de reatores nucleares utilizados em meios de transporte (na prática, navios nucleares).

Quanto às atividades militares, é pouco surpreendente que os Estados não tenham tido interesse em chegar a acordo sobre um regime internacional de indemnização.

Diversamente, a responsabilidade pela operação de navios nucleares chegou a ser objeto de negociações. A Conferência Diplomática de Direito Marítimo de Bruxelas (1962) adotou a CRANN83. Condenada desde o início, por não ter sido aceite pelos Estados Unidos e pela URSS (únicos Estados com navios nucleares, nessa altura), esta Convenção nunca entraria em vigor.

Os princípios de base eram muito semelhantes aos dos regimes de responsabilidade civil dos operadores nucleares, canalizando-se a responsabilidade exclusiva e objetivamente para o armador do navio nuclear84. Um dos maiores obstáculos à sua aceitação foi a inclusão de navios de guerra. Abrangia ainda outras disposições que viriam a ser posteriormente rejeitadas pelo Direito Internacional do Mar: reconhecia-se aos Estados, por exemplo, o direito de recusar a entrada dum navio nuclear nas suas águas territoriais.

83 Convenção sobre a Responsabilidade dos Armadores de Navios Nucleares, de 25 de maio de 1962.

84 Fixava-se um limite de responsabilidade de um milhão e meio de francos por acidente (por referência a um valor determinado em ouro, sujeito a evolução), obrigatoriamente coberto por seguro ou outra garantia fi nanceira (exceto quando o armador seja o próprio Estado).

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O fracasso desta convenção, acompanhado da preocupação de vários Estados costeiros em disporem de um quadro regulatório antes de permitirem a entrada de navios nucleares nos seus portos, levou à adoção de múltiplos tratados bilaterais, muitas vezes seguindo de perto as disposições de responsabilidade extracontratual da CRANN85.

Existem ainda algumas centenas de navios nucleares no mundo, embora tenham tendido a desaparecer nas aplicações civis. Tirando os raros casos de acordos bilaterais que ainda sejam relevantes, estes navios não estão cobertos por qualquer regime especial de responsabilidade civil.

O transporte marítimo de materiais nucleares também foi objeto de regulação adicional. Os sistemas da Convenção de Paris e da Convenção de Viena já cobriam a grande maioria destes transportes (serão raros os transportes de material nuclear sem ser de ou para uma instalação nuclear). No entanto, receava-se que as obrigações decorrentes daquelas convenções entrassem em confl ito com outros regimes internacionais que atribuíam a responsabilidade aos armadores dos navios.

A adoção da CRTM86 explica-se, portanto, pelo objetivo de garantir o respeito pela responsabilidade exclusiva dos operadores nucleares,tal como fi xada nas duas convenções acima referidas. Em si, esta convenção não acrescenta nenhum regime de responsabilidade (não se alarga o âmbito dos transportes cobertos). Nos seus termos, sempre que um operador seja responsável por danos causados du-rante um transporte de material nuclear (por força de uma das con-

85 No caso de Portugal, foram celebrados dois tratados deste género:– Acordo que regula a entrada do navio nuclear americano Savannah nas

águas territoriais e portos portugueses, de 12 de Novembro de 1964; e– Tratado entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha

sobre a Utilização de Águas e Portos Portugueses pelo N/N Otto Hahn, de 29 de Janeiro de 1971.

86 Convenção sobre a Responsabilidade Civil no Domínio do Transporte Marítimo de Material Nuclear, de 17 de dezembro de 1971.

venções ou de legislação nacional equivalente), a responsabilidade do transportador é excluída.

A CRTM foi ratifi cada por poucos Estados (menos de metade das Partes da Convenções de Paris e de Viena). Mesmo para os Estados que não sejam Partes deste tratado, as próprias Convenções de Paris e Viena já previam que, embora os acordos internacionais no domínio do transporte não fossem derrogados, o transportador obrigado a compensar danos resultantes de um acidente nuclear (coberto por estes sistemas) adquiriria um direito de compensação relativamente ao operador, por subrogação.

Cumpre ainda ter em conta a tentativa (até agora falhada) de criar um regime internacional de responsabilidade extracontratual por danos causados durante o transporte marítimo de substâncias perigosas.

A Convenção HNS87 aplicar-se-ia, designadamente, às substâncias em embalagens cobertas pelo Código Marítimo Internacional de Bens Perigosos, incluindo assim materiais radioativos e não apenas nucleares. No entanto, devido aos reduzidos riscos de dispersão de materiais devidamente embalados, permite-se a cada Parte excluir a aplicação da Convenção a este tipo de substâncias.

Estariam cobertos danos e medidas preventivas no território e zonas marítimas das Partes ou causados por navios com o pavilhão de uma das Partes (excluídos, em princípio, os navios estatais em viagens não comerciais). Sem entrar em detalhe sobre as restantes disposições desta convenção, importa reter que se fi xaria um limite máximo de responsabilidade do armador de cerca de:

87 Convenção Internacional sobre a Responsabilidade e a Indemnização por Danos Resultantes do Transporte de Substâncias Perigosas e Nocivas por Mar, de 3 de maio de 1996.

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(i) 14€ milhões88 para navios com até 2000 de tonelagem;(ii) 140€ milhões89 para navios com maior tonelagem (variável em

função da tonelagem), embora (em contraste com os regimes de Paris e de Viena) este limite deixasse de se aplicar se se provasse que o acidente decorreu de um ato ou omissão dolosa ou de negligência grosseira do transportador.

No âmbito dos restantes modos de transporte, não foram adotadas normas especiais de responsabilidade civil para acidentes com materiais radioativos.

A Convenção Relativa aos Transportes Internacionais Ferroviários (COTIF), de 9 de maio de 1980, tal como revista pelo Protocolo de 3 de junho de 1990, articula as suas normas de responsabilidade com os regimes das Convenções de Paris e de Viena, indicando que o transportador não será responsável por danos causados por um acidente nuclear, no âmbito dum transporte ferroviário, se uma lei nacional atribuir a um operador duma instalação nuclear essa responsabilidade90. Já não encontramos normas paralelas (que, em qualquer caso, seriam supérfl uas) nos tratados internacionais sobre transporte por estrada e por via navegável interna.

3.3. Direito da União Europeia

Não existe regulamentação comunitária no domínio da res-ponsabilidade civil por danos decorrentes de atividades nucleares ou de substâncias radiológicas.

88 10 milhões de DSE.89 100 milhões de DSE.90 Artigo 50º das Regras CIV, apensas à Convenção.

Uma das componentes do regime da Convenção de Paris afecta, porém, um domínio da competência exclusiva da Comunidade – a questão da determinação da jurisdição competente e do reconhecimento de decisões judiciais doutros Estados, que foi objeto do Regulamento (CE) nº 44/2001. Por esse motivo, é necessária a adoção de decisões comunitárias autorizando os Estados-Membros a ratifi carem alterações aos tratados do sistema da Convenção de Paris e da Convenção de Viena91.

A mesma razão levou à decisão que autorizou a ratifi cação da Convenção HNS92.

91 Cfr. Decisão do Conselho nº 2013/434/UE, de 15 de julho de 2013, que autoriza determinados Estados-Membros a ratifi car ou a aderir, no interesse da União Europeia, ao Protocolo que altera a Convenção de Viena relativa à Responsabilidade Civil em matéria de Danos Nucleares de 21 de maio de 1963, e a fazer uma declaração sobre a aplicação das regras relevantes internas da legislação da União (JO L 220/1, 17/08/2013); Decisão nº 2003/882/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2003, que autoriza os Estados-Membros que são partes contratantes na Convenção de Paris sobre a responsabilidade civil no domínio da energia nuclear, de 29 de julho de 1960, a assinar, no interesse da União Europeia, o protocolo de alteração da referida convenção (JO L 338/30, 23/12/2003); Decisão nº 2004/294/CE, do Conselho, de 8 de março de 2004, que autoriza os Estados-Membros que são partes contratantes na Convenção de Paris sobre a Responsabilidade Civil no Domínioda Energia Nuclear, de 29 de julho de 1960, a ratifi car, no interesse da União Europeia, o protocolo de alteração da referida convenção, ou a aderir ao mesmo (JO L 97/53, 08/03/2004); Decisão nº 2007/727/CE do Conselho, de 8 de novembro de 2007, que autoriza a República da Eslovénia a ratifi car, no interesse da União Europeia, o Protocolo de 12 de fevereiro de 2004 relativo à alteração da Convenção de Paris de 29 de julho de 1960 sobre a Responsabilidade Civil no Domínio da Energia Nuclear (JO L 294/23, 13/11/2007).

92 Decisão nº 2002/971/CE, do Conselho, de 18 de novembro de 2002, que autoriza os Estados-Membros a ratifi car ou a aderir, no interesse da União, à Convenção Internacional de 1996 sobre a responsabilidade e a indemnização por danos resultantes do transporte de substâncias perigosas e nocivas por mar (“Convenção HNS”) (JO L 337/55, 13/12/2002).

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Em regra, quando um tratado inclui algumas matérias da competência dos Estados e outras da competência da Comunidade, esta adere igualmente ao tratado. Isto não aconteceu no caso destas convenções (nem se procurou incluir nas revisões a cláusula que permitiria tal adesão).

É possível defender a existência de base jurídica para a criação de um sistema comunitário de responsabilidade civil dos operadores nucleares, imediata e diretamente aplicável em todos os Estados- -Membros. Isto poderia ser feito, por exemplo, com base no objetivo de promover a solidariedade entre Estados-Membros, em conjunto com uma lógica de aprofundamento do mercado interno, sendo então necessária uma votação por unanimidade.

Trata-se, porém, por enquanto, de um cenário muito pouco provável. De facto, a atuação da União Europeia tem ido justamente na direção oposta, mantendo-se a regulação desta matéria estritamente no domínio do Direito Internacional clássico. Nesta ótica, o sistema da Convenção de Paris foi acompanhado por duas recomendações, que visavam uma aplicação harmoniosa das suas disposições pelos vários Estados-Membros93. A mesma abordagem justifi cou que se excluíssemos danos nucleares do âmbito de outros regimes mais amplos, como é o caso da Diretiva nº 2004/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,de 21 de abril de 2004, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais94.

93 Recomendação nº 65/42/Euratom da Comissão, de 28 de outubro de 1965, aos Estados-Membros relativa à harmonização das legislações de aplicação da Convenção de Paris de 29 de julho de 1960 e da Convenção Complementar de Bruxelas de 31 de janeiro de 1963 (JO 196/2995, 18/11/1965); Recomendaçãonº 66/22/Euratom (Segunda) da Comissão aos Estados-Membros relativa à harmonização das legislações de aplicação da Convenção de Paris, de 29 de julho de 1960 (JO 136/2553, 25/07/1966).

94 JO L 143/56, 30/04/2004, ver artigo 4º, nº 4 e Anexo V. Revista em último lugar pela Diretiva 2013/30/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013 (JO L 178/66, 28/06/2013).

Mas esta abordagem não é satisfatória. Dos 28 Estados-Membros da Comunidade Europeia, 13 aderiram à Convenção de Paris, 10 aderiram à Convenção de Viena, e 5 não pertencem a qualquer dos sistemas. Estes 5 são Estados historicamente antinucleares (Áustria, Irlanda e Luxemburgo), pouco desejosos de aceitar os limites de compensação que benefi ciam os operadores nucleares e não as vítimas, ou afastados em geral da regulação internacional do setor nuclear (Malta e Chipre). Dos 23 que pertencem a um dos dois sistemas, só 18 ratifi caram o Protocolo Conjunto. Por outras palavras, não existe um regime internacional de responsabilidade civil dos operadores nucleares que cubra toda a Comunidade.

No quadro dum mercado liberalizado da eletricidade, em que os operadores nucleares dum Estado podem concorrer livremente com os produtores de eletricidade doutros Estados-Membros, a ausência de um regime único e, sobretudo, de um regime que garanta um nível adequado de compensação em caso de acidente, leva forçosamente a distorções de concorrência.

Acima de tudo, a União não pode pretender promover um mercado interno em que as vítimas de um acidente nuclear não sejam devidamente indemnizadas porque se continua à espera duma solução justa no quadro do Direito Internacional clássico.

A isto acrescem difi culdades técnicas específi cas, tais como as que se poderão verifi car ao nível da execução num Estado de decisões de tribunais de outro. Nos termos da legislação europeia95, os lesados que queiram acionar a via da responsabilidade extracontratual podem optar entre intentar a ação no seu Estado-Membro ou no Estado-Membro da entidade responsável. Essa mesma legislação exige que o reconhecimento de sentenças doutros Estados-Membros seja praticamente automático.

95 Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho.

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O que faria, então, um tribunal francês confrontado, na sequência de um acidente nuclear no seu território, com inúmeras sentenças luxemburguesas condenando o operador a pagar indemnizações, num valor ultrapassando em muito o nível máximo da responsabilidade daquele?

Uma solução possível para este confl ito é a de interpretar as Decisões do Conselho, acima referidas, como implicando uma derrogação ao regime geral. Ou seja, a Comunidade ter-se-ia vinculado indiretamente às normas da Convenção de Paris e da Convenção de Viena, ao permitir que os Estados ratifi cassem um tratado com normas contraditórias com legislação anterior. Todavia, na ausência de uma regulação específi ca, semelhante interpretação suscitaria, necessariamente, sérias difi culdades.

Capítulo V

Poluição marinha por hidrocarbonetos em sua dimensão catastrófica: a resolução jurisdicional de conflitos envolvendo incidentes com petroleiros no direito internacional

Orlindo Francisco Borges

Mestre em Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa

Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Advogado

0. Introdução; 1. Resolução Jurisdicional de confl itos envolvendo poluição por hidrocarbonetos no mar, congestão de instrumentos normativos internacionais e a fragmentação do contencioso internacional ambiental – Panorama geral; 2. Matriz legal internacional aplicável à matéria; 2.1. Aspectos materiais aplicáveis na resolução de litígios envolvendo poluiçãopor hidrocarbonetos; 2.1.1. Responsabilidade penal por eventos de poluição marinha – Regime interno de cada país; 2.1.2 Responsabilidade civil do proprietário do navio – Regime de canalização da responsabilidade; 2.1.3 “Finding deep pocket targets” – Sociedades de classifi cação de navios e as teses de relativização ao regime de canalização na busca de terceiros agentes responsáveis em catástrofes com óleo no mar; 2.2. Aspectos adjetivos aplicáveis na resolução de litígios envolvendo poluição por hidrocarbonetos; 2.2.1. Forum shopping; 2.2.2. Simultaneus processus; 2.2.3. Sucessivos processus; 3. Case Law – Uma seleção de casos; 3.1. Torrey Canyon; 3.1.1. Análise quanto a jurisdição interna da França; 3.1.2. Análise quanto a jurisdição interna da Inglaterra; 3.2. Amoco Cadiz; 3.3. Prestige; 3.4. M/V Louisa; 4. Considerações fi nais.

0. Introdução

Ao receber o convite para contribuir com esta obra sobre Catástrofes Tecnológicas, fomos incumbidos com a temática “acidentes com petroleiros”. Dada a abertura desse tema e os riscos de se cair ao ponto

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comum da doutrina, que tem se limitado a apresentar a sistemática do regime de responsabilidade civil por eventos de poluição e umhistórico dos maiores eventos ocorridos, optou-se por seguir um corte distinto, voltado para a forma como tem se processado a resolução jurisdicional desses confl itos, não apenas em seu âmbito material, mas também adjetivo (processual), de modo a identifi car os principais problemas enfrentados pelo Direito Internacional no trato dessa questão tão sensível.

Como fi cará demonstrado, a tutela do meio ambiente marinho por poluição causada pelo vazamento de hidrocarbonetos, quando trazido para o âmbito da regulação e resolução de confl itos, se apresenta como uma matéria de extrema complexidade, haja vista o cenário da multiplicidade de agentes, jurisdições e legislações envolvidas, aliado à transversalidade das matérias jurídicas aplicáveis, uma vez que para além dos Direitos Administrativo, Civil e Penal, incidem questões peculiares do Direito Internacional Público e Privado, bem como dos Direitos Ambiental, Marítimo, Comercial e da Concorrência e Regulação.

Dessa complexidade, emerge uma série de questões materiais e adjetivas, das quais se buscará discutir neste trabalho por meio dos casos paradigmáticos enfrentados no contencioso internacional envolvendo a matéria, em especial, o forum shopping decorrente doconfl ito positivo de jurisdições e legislações aplicáveis, a litispendênciainternacional, a coisa julgada material internacional e a questão dos processos sucessivos [tratados enquanto aspectos adjetivos da tutela de catastrofes com petroleiros], além, é claro, da responsabilidade civil e o seu regime específi co de canalização e a sistemática de constituição de fundos de compensação; a responsabilidade penal e os deveres de prevenção imputados aos Estados [aspectos materiais], abrindo espaço para as discussões sobre novas questões que vêm sendo enfrentadas, como a busca de terceiros responsáveis para além do regime de canalização da responsabilidade ao proprietário do navio, como é o caso das sociedades de classifi cação de navios.

Posto isso, o presente capítulo será organizado em três partes, em que primeiramente se (1) analisará criticamente a forma como se organiza o sistema normativo internacional de tutela do meio ambiente marinho. Dentro deste contexto, se (2) apresentará os principais instrumentos normativos que regulamentam a matéria, discutindo-se os seus efeitos materiais (responsabilidades civil e criminal por derramamento de óleo no mar) e adjetivos (confl itos de jurisdição e aspectos processuais incidentes) decorrentes deste instrumentos, bem como e as novas teses enfrentadas neste cenário, para, por fi m, (3) analisar a forma como estas questões foram enfrentadas nos principais casos levados ao contencioso internacional.

1. Resolução jurisdicional de conflitos envolvendo poluição por hidrocarbonetos no mar, Congestão de instrumentos normativos internacionais e a fragmentação do contencioso internacional ambiental – Panorama Geral

Intimamente relacionada com a idéia de soberania estatal, a jurisdição, no plano doméstico, opera como o mecanismo estatal de resolução de confl itos dentro de sua esfera territorial, em que o Estado substitui as partes interessadas, enquanto terceiro imparcial, para a aplicação da lei ao caso concreto1. Contudo, em âmbito internacional tal expressão signifi caria, em primeiro plano, grosso modo, o poder atribuído aos estados para exercer em seus respectivos territórios suas funções executivas, legislativas e judiciárias, em conformidade com o direito internacional.

1 Acerca do desenvolvimento da idéia de jurisdição estatal, cfr. Giuseppe CHIOVENDA, Instituições de Direito Processual Civil, vol. II, trad. Paolo Capitanio, Campinas, Bookseller, 1998, pp. 7-12; José Frederico MARQUES, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1958, pp. 262-263; Cândido Rangel DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993, pp. 81 segs.

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Como adverte QUEIRÓ2, o termo “jurisdição” em direito internacional ora pode signifi car um elemento da soberania do estado (como acima explicado), ora pode signifi car a competência de um ente para julgar demandas dotadas de elementos de direito internacional. Para fi ns deste trabalho adotaremos o último signifi cado: jurisdição enquanto o poder exercido por uma corte ou tribunal para julgar/resolver confl itosque contenham elementos de internacionalidade3. Estabelecida esta premissa, passemos a análise de seu exercício em matérias relacionadas à proteção do ambiente.

O exercício da jurisdição no plano internacional envolvendo a matéria do ambiente, até a década de 1970, era feita por meio de mecanismos de resolução de confl itos ad hoc, estabelecidos para

2 No prefácio da segunda edição portuguesa do Direito Internacional de BRIERLY, Afonso Rodrigues QUEIRÓ assim explica a adoção do termo “jurisdição” no contexto internacional: “A tradutora e nós próprios hesitámos sobre se não seria de aproveitar a oportunidade de uma nova edição para se refazer o texto português do capítulo sexto, relativo à “Jurisdição do Estado”, passando a verter o termo inglês jurisdiction, ora por jurisdição ora por competência (conforme se tratasse da faculdade ou poder estadual de julgar ou executar os julgados ou da generalidade dos poderes em que se analisa, digamos sem rigor, a soberania estadual), atendendo, assim, sugestão que nos foi feita por um distinto internacionalista brasileiro. Resolveu-se manter a posição inicialmente tomada, pois não só se não encontra fi xada uma terminologia portuguesa nessa orientação, nos dois lados do Atlântico, como se correria o risco de, aqui ou além, atraiçoar o sentido em que aquele termo é utilizado no original inglês. Ao leitor continua a deixar-se, por conseguinte, o cuidado de distinguir os passos em que o termo jurisdição se refere ao poder que ao Estado o direito internacional confere de legislar, administrar e julgar e aqueles outros em que ele alude restritamente ao poder estadual de julgar”. Cfr. Afonso Rodrigues QUEIRÓ, Prefácio à 2ª ed. portuguesa, p. VIII, in James Leslie BRIERLY, Direito Internacional, trad. M. R. Grucho de Almeida, 4ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.

3 Nesse sentido, Tullio TREVES, “The term “jurisdiction” refers to the power of an international court or tribunal to decide (potestas decidendi)”. Cfr. Tullio TREVES, The jurisdiction of the International Tribunal for the Law of the Sea, in Hugo CAMINOS (org.), Law of the Sea, Ashgate Publishing Ltd./Dartmouth Publishing Co., Burlington, 2001, p. 347.

casos específi cos regulamentados por convenções tópicas4. Hoje, por outro lado, existem cinco formas distintas de solução, nem sempre harmônicas entre si: 1) por mecanismos ad hoc, com o encaminhamento de disputas já existentes para a abitragem ou para cortes ou tribunais internacionais permanentes; 2) pela prévia eleição de um painel arbitral ou corte específi ca para a resolução de confl itos que venham a surgir5; 3) por meio dos procedimentos estabelecidos em convenções e/ou acordos internacionais que elegem um foro para a sua interpretação e aplicação6 e; 4) por cortes ou órgãos especializados em matérias que não sejam ambientais, mas em cujas matérias tenham contato com a questão ambiental posta em litígio7, sem desconsiderar, ainda, 5) a hipótese de um Estado por meio de sua organização judiciária interna julgar casos que contenham elementos de internacionalidade no âmbito do Direito Internacional Privado.

Esta variedade de formas de resolução de litígios gera uma série de problemas práticos ao aplicador do direito que, em grande parte dos casos, se vê diante de hipóteses de sobreposição de competências, capazes de gerar extensas discussões preliminares ao mérito, tornando o processo lento e oneroso para as partes e órgãos envolvidos.

Tal problemática é atribuída em grande parte à “pulverização” da edição de diplomas normativos internacionais em matéria do ambiente. A crescente dispersão destes instrumentos, em grande

4 Cfr. Tim STEPHENS, International Courts and Environmental Protection, in Cambridge Studies in International and Comparative Law, Cambridge UniversittyPress, Cambridge, 2009, p. 21; cfr. Malgosia FITZMAURICE, International Environmental Law as a Special Field, Netherlands Yearbook of International Law, 25, 1994, pp. 181-226, in Paula PEVATO (org.), International Environmental Law, vol. II, Dartmouth, Hants, 2003, pp. 13-16.

5 Como no disposto no artigo 36º, nº 2 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). Disponível em www.icj-cij.org. Acesso em 02.mai.2011.

6 Como previsto no artigo 282º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS). Disponível em www.itlos.org. Acesso em: 01.mai.2011.

7 Cfr. Tim STEPHENS, International Courts..., pp. 21-22.

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parte desenvolvidos sem qualquer conexão um com o outro, acaba por gerar resultados normativos nocivos, posto que apresentam soluções distintas (ainda que semelhantes em alguns casos) para uma mesma hipótese8.

Problema, este, que gera graves desafi os práticos/processuais ao intérprete no que concerne ao confl ito e coordenação jurisdicional diante de um litígio, como o forum shopping, a litispendência (processos simultâneos em foros distintos) e a possibilidade de ocorrência de processos sucessivos, que serão abordados tematicamente a seguir juntamente com os aspectos materiais que envolvem a resolução de confl itos nesse cenário.

“Mais convenções não signifi ca, contudo, melhor protecção”9. Esta expressão de Carla Amado Gomes explicita bem o panorama geral em que se insere a tutela do ambiente no cenário internacional hodiernamente. Diante de tantos instrumentos (e tão poucos10), a sua proteção fragmenta-se em razão da sua falta de coordenação, e, nesse contexto, o Direito do Ambiente, que já possui um défi cit de vinculatividade no cenário internacional11, tropeça novamente quando trazido para apreciação jurisdicional.

8 Cfr. Rüdiger WOLFRUM e Nele MATZ, Confl icts in InternationalEnvironmental law, in Max-Planck-Institute für Ausländisches Öffentliches Recht und Völkerrecht, Springer: Heildeberg, 2003, pp. 1-3.

9 Cfr. Carla AMADO GOMES, Apontamentos sobre a protecção do ambientena jurisprudência internacional, in Carla AMADO GOMES, Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambiente, AAFDL, Lisboa, 2008, p. 370.

10 Se analisados enquanto instrumentos efetivos/compulsórios. Por exemplo, inexiste um tribunal internacional especializado em matéria ambiental, entendendo-se que as câmaras especializadas do TIJ para assuntos ambientais, criada em 1993, porém, nunca utilizada, não afasta esta carência.

11 Cfr. Alexandre KISS e Dinah SHELTON, Guide to International Environmental Law, Martinus Nijhoff Publisher, Leiben, 2007, pp. 18-23; Pierre-Marie DUPUY, Soft law and the international law of the environment, in Michigan Journal of International Law, vol. 12, 1991, pp. 420-435, in Paula PEVATO (org.), International Environmental Law, vol. I, Dartmouth, Hants, 2003, pp. 219-234; Malgosia FITZMAURICE, International..., ob. cit., pp. 21-23.

O sistema ambiental internacional pós-Estocolmo sofreu o que Bethany Hicks12 nomeia de “congestão de tratados”13. Este fenômeno é fruto da crescente especialização e autonomia de certas esferasda sociedade que, acompanhadas da uniformização trazida pela globalização, geram a necessidade de regulação no plano internacional. Esta regulação, especializada no plano material (v.g. “direito do mar”, “direito do ambiente”, “direito comercial”, “direitos humanos”, etc...), porém, muitas vezes sustentada em princípios gerais de Direito Internacional em seu plano formal, traz consigo sérios problemas de coerência com outros instrumentos normativos já existentes, o que acaba por incrementar ainda mais a fragmentação do sistema.

Um exemplo que ilustra bem essa problemática é o conhecido caso MOX Plant (1992/2002)14, em que a Irlanda opôs perante o Reino Unido, em decorrência de este ter autorizado a construção de uma estação de tratamento de resíduos nucleares que viria aefetuar descargas no mar, afetando, dessa forma o ambiente marinho e conseqüentemente a autora. Este litígio envolveu três tribunais internacionais, nomeadamente, um tribunal ad hoc, constituído ao abrigo da Convenção para a proteção do meio marinho do Atlântico nordeste, de 1992 (OSPAR), um tribunal arbitral instituído ao abrigo do Anexo VII da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar(UNCLOS), e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, conforme a cláusula de jurisdição exclusiva do Tratado EURATOM.

12 Cfr. Bethany Luckitsch HICKS, Treaty Congestion in International Environmental Law: The need for Greater International Coordination, in University of Richmond Law Review, n. 32, 1999, p. 1643.

13 Fenômeno este, que não é exclusivo do Direito Internacional Ambiental, mas do Direito Internacional como um todo. Cfr. ILC, Fragmentation of International Law: Diffi culties Arising from the Diversifi cation and Expansion of InternationalLaw, Report of the Study Group of the International Law Commission, A/CN.4/L.682 (13 April 2006), Geneva, International Law Commission, 2006, p. 256.

14 Sobre o caso, cfr. Carla AMADO GOMES, Apontamentos..., ob. cit., pp. 395-397; Tim STEPHENS, International Courts..., ob. cit., pp. 295-303; ILC, Fragmentation..., ob. cit., pp. 12-13.

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Vemos neste caso uma forte sobreposição de tratados, um universal (direito do mar) e dois regionais (direito europeu – lato sensu – e proteção do Atlântico nordeste – stricto sensu –), que ofereciam várias jurisdições potencialmente competentes para o caso. Questão que tem se tornado recorrente quando se trata da proteção do ambiente marinho, afi nal, ao se falar dessa matéria, trata-se conjuntamente de “direito do ambiente”15, “direito do mar”, “direito comercial”16, além de outras implicações, como pudemos ver, de instrumentos regionais17 e de integração econômica, capazes de gerar inúmeras questões acerca de qual critério adotar para solucionar esses confl itos, sem prejuízo da segurança jurídica, ameaçada pela possibilidade da edição de jurisprudências confl itantes entre si.

Tim STEPHENS18 observa que tal problema não se dá apenas pela sobreposição material existente entre os instrumentos ratifi cados, mas também pelo aumento signifi cativo de mecanismos institucionais de

15 O que inclui uma série de convenções genéricas e específi cas (v.g. Convenção sobre diversidade biológica, como exemplo de convenção genérica, e a Convenção sobre a proteção do Southern Bluefi n Tuna, enquanto convenção específi ca, que também gerou controvérsias jurisdicionais no celebrado caso do Southern Bluefi n Tuna (1999).

16 Matérias nem sempre harmônicas entre si. Exemplo claro está na dicotomia existente entre as normas internacionais de “proteção ambiental” e de “direito comercial”. Estes ramos altamente especializados trazem consequências práticas completamente divergentes entre si. Enquanto o objetivo do primeiro está na autolimitação dos Estados nos direitos de exploração de seus bens e recursos naturais, a ótica do segundo está na otimização dessa exploração, dentro de uma perspectiva econômica.

17 No âmbito europeu, por exemplo, a proteção de seu ambiente marinho é tratado especifi camente conforme cada região marinha circunscrita em seu território, nas quais destacam-se a Convenção para a Proteção do Meio Marinho na Zona do Mar Báltico (HELCOM), assinada em Helsínquia em 1992, a Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste (OSPAR), assinada em Paris em 1992, a Convenção para a Proteção do Mar Mediterrâneo contra a Poluição, assinada em Barcelona em 1976, e a Convenção para a Protecção do Mar Negro contra Poluição, assinada em Bucareste em 1992.

18 Cfr. Tim STEPHENS, International Courts..., op. cit., pp. 22-23.

resolução de confl itos. Além da “congestão de tratados”, o autor registra que a maioria dos tratados e convenções ambientais promulgados após a década de 1970, traz consigo alguma cláusula de resolução de confl itos, seja por meio da arbitragem, seja por meio de resolução judicial.

Apesar da existência destas cláusulas, a maior parte se limita a reproduzir o disposto no artigo 33º da Carta das Nações Unidas, em que há uma previsão geral e aberta de que as partes resolverão os seus confl itos de forma pacífi ca, por um instrumento eleito de comum acordo19. No entanto, existem outros mecanismos como os do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), da Corte Permanente de Arbitragem (CPA), do Tribunal Internacional para o Direito do Mar (ITLOS) e dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (UNCLOS)20, que merecem destaque, haja vista a sua maior afi nidade para a resolução de litígios envolvendo o direito internacional ambiental marinho.

19 A abitragem, enquanto instrumento ad hoc de resolução de confl itos, tem se mostrado como o favorito mecanismo utilizado pelos Estados para a solução de suas controvérsias ambientais, tendo sido utilizada em diversos casos como o caso do Trail Smelter (1938), do Lago Lanoux (1957), além dos controversos casos do MOX Plant (1992/2002) e do Southern Bluefi n Tuna (1999), em que houve confl itos de jurisdição, apesar da tentativa de sua resolução por painéis arbitrais.

20 Além destes órgãos, outras Cortes especializadas e integradas em organizações ligadas à integração econômica e livre comércio (v.g. Painel da OMC, e o Tribunal de Justiça da União Européia), bem como direitos humanos (v.g. Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos), cujas competências também abarcam matéria ambiental, são destacadas por Tim STEPHENS (cfr. Tim STEPHENS, International Courts..., ob. cit., pp. 310-344). Contudo, a sua atuação não interessa diretamente para os fi ns deste trabalho, apesar de demonstrar a quantidade de órgãos aptos a processar e julgar questões ambientais, podendo, assim, surgir problemas envolvendo forum shopping, litispendência e outras questões processuais prejudiciais à pacífi ca resolução do litígio.

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2. Matriz legal internacional

Embora o despertar da era ecológica tenha ocorrido nos fi nais dos anos 60, já na década de 50 iniciou-se a preocupação mundialna regulação do transporte de hidrocarbonetos em razão de sua potencialidade poluidora. Neste sentido, a Convenção de Londres (OILPOL/54) para a prevenção das águas do mar por óleos, foi assinada em 1954 e, dentre outras disposições, proibia a descarga de óleo e misturas oleosas por navios e impunha aos Estados a obrigação de tomar todas as medidas necessárias voltadas à promoção de instalações adequadas para o recebimento de resíduos.

No entanto, foi com o desastre do Torrey Canyon, em 1967, que surgiu o atual marco normativo em matéria da poluição do mar por hidrocarbonetos. Diante da verifi cação da inadequação do quadro normativo da época, foram editadas a Convenção de Responsabilidade Civil (CLC/69) e a Convenção sobre Intervenção em Alto Mar em Incidentes de Poluição por Óleo (INTERVENTION/69), ambas de 1969.

A INTERVENTION/69 reconhece aos Estados Costeiros o direito de tomar medidas além dos limites de seus mares territoriais em casosque possam vir a resultar em danos às suas áreas costeiras. Este direito só pode ser exercido após a realização de consultas aos Estados de bandeira dos navios objeto da intervenção e aos proprietários do navio e da carga, envolvidos no evento, sob pena do Estado interventor serobrigado a indenizar os danos causados pelas medidas que vier a adotar.

A CLC/69, por sua vez, estabeleceu um regime de responsabilidade e de limitação voltada ao tratamento da poluição por hidrocarbonetos. Trata-se de um regime de responsabilização objetiva, canalizada ao proprietário do navio, porém limitável, salvo em casos que a atuação do agente venha a incidir em uma de suas exceções. Esta responsabilização é assegurada pela imputação de um seguro obrigatório e complementada por um sistema de compensação estabelecido pela Convenção Internacional para o Estabelecimento de um Fundo para a Compensação pelos Prejuízos Devidos à Poluição.

Vê-se, portanto, que o regime da CLC/FIPOL busca uma reparação célere e efetiva das vítimas ao estabelecer um regime de canalização da responsabilidade do proprietário do navio com base em sua imputação objetiva, na obrigação de um seguro obrigatório e com a instituição de um Fundo complementar de indenização, voltadas à busca de uma reparação quase que integral desses tipos de dano. Por outro lado, esse sistema tem se desenvolvido em resposta aos incidentes de grande magnitude, quando verifi cada a insufi ciência de seus termos, de modo que se apresenta como uma via de eterna revisão a se organizar sempre depois de confi rmada a ausência de sua efetividade para o caso concreto. Portanto, apesar de se apresentarenquanto instrumento de prevenção, a sua organização se mostra repressiva, uma vez que seus postulados surgem a reboque das grandes catástrofes.

Paralelamente ao regime CLC/FIPOL, há de se observar também os termos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), assinada em Montego Bay em 1982. Editada com o intuito de se tornar a Constituição dos mares, esta convenção estabeleceu em seu artigo 192º a obrigação dos Estados em proteger e preservaro ambiente marinho, devendo os mesmos tomar, individual ou conjuntamente (conforme seja mais apropriado) todas as medidas compatíveis com a convenção para prevenir, controlar e reduzir a poluição do meio marinho, qualquer que seja a sua fonte, utilizando-se para este fi m os meios mais viáveis que disponham e de conformidadecom as suas possibilidades, devendo esforçar-se por harmonizaras suas políticas a esse respeito (artigo 194º, nº 1). A seção II da convenção se encarrega da promoção da cooperação mundial e regional, em patente infl uência do Direito Administrativo Global, para a consecução deste objetivo.

Há, ainda, a Convenção MARPOL 73/78, para a prevenção de poluição por navios que, inclusive, em seu preâmbulo estabelece o desejo em “alcançar a eliminação completa da poluição intencional aomeio marinho por hidrocarbonetos e outras substâncias prejudiciais, bem como a minimização de descargas acidentais de tais substâncias”;

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e a Convenção OPRC/90, sobre Preparo, Resposta e Cooperação em caso de poluição por óleo.

A MARPOL 73/78 se apresenta como a principal norma internacional relacionada à prevenção de poluição decorrente de causas operacionais e acidentais por navios, tornando a OILPOL/54 praticamente obsoleta. A Convenção originariamente foi concluída em Londres em 1973, mas o seu Protocolo de 17 de fevereiro de 1978 absorveu seus termos, uma vez que foi adotado antes de sua entrada em vigor. O Anexo I da Convenção, sobre a prevenção da poluição por óleo, que mais interessa para os fi ns deste trabalho, é de aplicação obrigatória aos Estados signatários, devendo os mesmos adotar os seus termos aos navios que arvorem a sua bandeira ou naveguem em sua jurisdição,a exigir uma série de requisitos técnicos de prevenção, com especial destaque para as vistorias e inspeções a seres realizadas no Estado doporto (artigos 5º e 7º), bem como a exigência de que os navios-tanque com mais de 150 ton. e navios comuns com mais de 400 ton. tenham um “plano de bordo para emergência de poluição por óleo” (Shipboard Oil Pollution Emergency Plan). Há também o destaque para a obrigação de que os navios-tanque construídos a partir de Julho 1993 (data da vigência da Emenda adotada em 1992) tivessem casco-duplo. Obrigação esta, acompanhada da elaboração de um calendário para a adequação dos navios já construídos.

Já a Convenção OPRC/90, determina que todos os seus signatários estabeleçam um sistema nacional para o preparo e a resposta de incidentes com hidrocarbonetos, a incluir uma relação organizacional entre os órgãos envolvidos e a designação das autoridades responsáveis por tais ações. Há de se destacar, ainda, os termos de seu artigo 2º, nº 2 que defi ne “incidente de poluição por hidrocarbonetos” como um acontecimento que impõe uma ação urgente ou uma atuação imediata.

Postas as normas gerais e a situação histórica em que foram ratifi cadas, algumas considerações mais pormenorizadas merecem ser feitas em relação ao regime da CLC/FIPOL, em especial às suas peculiaridades acerca da responsabilização civil de agentes pela

poluição marinha por hidrocarbonetos, cujo tratamento se dará em tópico específi co (Aspectos materiais – Responsabilidade Civil por poluição marinha por hidrocarbonetos).

3.1. Aspectos materiais na resolução de litígios envolvendo poluição por hidrocarbonetos

3.1.1. Responsabilidade Penal por eventos de poluição marinha causada por navios/petroleiros – Regime interno de cada país

Em resposta à falta de efi ciência do Direito Internacional Ambiental para a resolução de problemas sensíveis à comunidade global dentro do contexto da sociedade de risco, sobretudo, diante da consciência da comunidade acerca da esgotabilidade dos recursos naturais e da potencialidade de um cataclismo decorrente da ação humana na terra, tem impulsionado movimentos voltados à busca de uma regulação internacional mais rígida. No caso, a expansão do Direito Penal (com a criação de um Direito Penal Internacional Ambiental) tem sido apontada enquanto solução imediata para a questão21.

21 Cfr. Cornelius PRITTWITZ, Tendencias actuales del derecho penal y de la política criminal. El derecho penal entre “derecho penal del riesgo” y “derecho penal del enemigo”, in Colecciones Derecho y Justicia, Escuela Judicial Lic. Edgar Cervantes Villalta, Costa Rica, 2009, pp. 9-20, p. 10; Cornelius PRITTWITZ, La función del Derecho Penal em la sociedad globalizada del riesgo – Defensa de um rol necessariamente modesto, in Kai AMBOS; Maria Laura BÖHM,Desarrolos Actuales de las Ciencias Criminales em Alemania: Primera Escuela de Verano em Ciências Criminales y Dogmática Penal alemana, Ed. Temis, Bogotá,2012, pp. 51 segs, pp. 51-53; Jesús-Maria SILVA SANCHEZ, La expansión del Derecho Penal: aspectos de la política criminal en las sociedades post-industriales, Civitas, Madrid, 1999; Carlos BLANCO LOZANO, Introducción a la problemáticade la protección jurídico-penal del ambiente. Cuadernos de Política Criminal, fasc. 66, Madrid, 1998, pp. 539-555; Jorge REIS BRAVO, A tutela penal dos

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Essa infl uência pode se verifi car nas recomendações apresentadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU, por meio da Resolução 1994/1522, em prol do uso do Direito Penal na proteção do ambiente emnível nacional, comunitário e internacional; nos esforços empreendidos também pela ONU à aprovação dos malogrados artigo 19º, do projetode Convenção para a Responsabilidade dos Estados, e artigo 26º, do projeto do Código de Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade (que redundou no Estatuto de Roma); bem como nas Convenções esparsas que contém elementos de criminalização ambiental, como: o artigo 35º, nº 3 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra de 1949 (Protocolo I, de 1977)23, relacionado à proibição de atos militares desproporcionais lesivos ao ambiente, reconhecido como um crime de guerra no artigo 8º, nº 2, alínea b), IV, do Estatuto deRoma – claramente internacionais; e outros instrumentos de incitaçãoa uma criminalização ambiental interna padronizada/regional, como o artigo VIII, nº 1, alínea a), da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES)24; o artigo 4º da Convenção da Basiléia sobre o

interesses difusos: a relevância criminal na proteção do ambiente, do consumo e do patrimônio cultural, Coimbra Editora, Coimbra, 1997.

22 Cfr. ECOSOC, Res./1994/15, The role of Criminal Law in the protection of the Environment. (25 Jul. 1994). Disponível em http://www.un.org/documents/ecosoc/res/1994/eres1994-15.htm. Acesso em: 13 Ago. 2012.

23 Artigo 35º, nº 3: “É proibido utitizar métodos ou meios de guerra concebidos para causar, ou que se presume irão causar, danos extensos, duráveis e graves ao meio ambiente natural.”. Disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dih-prot-I-conv-genebra-12-08-1949.html. Acesso em: 13 Jun. 2012.

24 Artigo VIII: “MEASURES TO BE TAKEN BY THE PARTIES, (1) The Parties shall take appropriate measures to enforce the provisions of the present Convention and to prohibit trade in specimens in violation thereof. The se shall include measures: (a) to penalize trade in, or possession of, such specimens, or both; and (b) to provide for the confi scation o r return to the State of export of such specimens.” Disponível em http://www.fws.gov/le/pdf/CITESTreaty.pdf. Acesso em: 13 Jul. 2012.

Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito (Convenção da Basiléia de 1989)25; e a Convenção Internacional para a Prevenção de Poluição por Navios (MARPOL 73-78)26 e subseqüentes instrumentos normativos sobre poluição marinha por hidrocarbonetos.

Especifi camente no caso de vazamentos de petróleo no mar, observa-se que a MARPOL e a UNCLOS pugnam para que osEstados contratantes criminalizem atos de poluição marinha, ou seja, exigem que seus signatários incluam em suas políticas criminais sanções para atos de poluição marinha por hidrocarbonetos, todavia, tais previsões são delegadas à esfera interna de cada país, não havendo ingerência internacional no grau e tipo de punibilidade decorrente desta infração.

O mesmo ocorre em âmbito Europeu, a Directiva sobre a Proteção do Meio Ambiente através do Direito Penal (Directiva nº 2008/99/CE)27, traz os elementos básicos de um Direito Penal Ambiental Regional. Há de se registrar, no entanto, que apesar de lançar as bases de harmonização legislativa entre os membros da União Europeia, tal instrumento não tem o condão de constituir, de per se, um conjunto de tipos penais aplicáveis em substituição ao direito interno. A iniciativa legislativa para a adoção dessas orientações, portanto, é de competência do ente nacional, que deverá executá-la dentro do prazo de transposição estabelecido, sob pena de vir

25 Artigo 4º, nº 3: “The Parties consider that illegal traffi c in hazardous wastesor other wastes is criminal”. Disponível em http://www.basel.int/Portals/4/Basel %20Convention/docs/text/BaselConventionText-e.pdf. Acesso em: 14 Jul. 2012.

26 Artigo 4º, nºs 1 e 2, da MARPOL/78. Cfr. Ilias BANTEKAS, International Criminal Law, 4ª ed., Hart Publishing, Oxford, 2010, p. 312.

27 PARLAMENTO EUROPEU; CONSELHO DA EUROPA, Directiva 2008/99/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Novembro de 2008, relativa à protecção do ambiente através do direito penal. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:32008L0099:PT:HTML. Acesso em: 14 Jul. 2012.

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a responder pelo seu incumprimento. Especifi camente sobre poluição originária de navios, destaca-se a Directiva n.º 2009/123/CE, de 21 de outubro, que emenda a Directiva n.º 2005/35/CE, que visa assegurar a efetiva criminalização destes eventos. Porém, a cada Estado-Membro é atribuída autonomia para defi nir as penalidades e sua tipologia, dado que o instrumento normativo apenas exige que as penalidades sejam efetivas, proporcionais e criminalmente dissuasivas28.

Dessa maneira, sem focar propriamente na questão da legitimidade ou da funcionalidade da tutela penal de bens jurídicos ambientais e novos riscos, questão essa já enfrentada por vasta doutrina29, com destaque para as discussões da escola de Frankfurt30, pode se reconhecer a existência de uma tutela penal internacional de catástrofes envolvendo poluição por hidrocarbonetos causada por navios. No entanto, tal tratamento é delegado à esfera interna de cada país que punirá os infratores conforme as peculiaridades de seu regime interno.

28 Cfr. Michael FAURE, Criminal Liability for Oil Pollution Damage: An Economic Analysis, in Michael FAURE et al (eds.), Maritime Pollution Liability and Policy – China, Europe and the US, 2010, pp. 161 segs, Kluwer Law International, Maastricht, 2010, p. 182.

29 Entre nós, cfr. Paulo de SOUSA MENDES, Vale a pena o Direito Penal do Ambiente?, AAFDL, Lisboa, 2000; Augusto SILVA DIAS, “Delicta in se” e “delicta mere prohibita”: Uma análise das descontinuidades do Direito Penal Moderno à luz da reconstrução de uma distinção clássica, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 213 segs; Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Sobre a tutela jurídico-penal do ambiente – um quarto de século depois, in FIGUEIREDO DIAS et al. (orgs.), Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 389 segs; Helena Regina Lobo da COSTA, Proteção Penal Ambiental: Viabilidade – efetividade – tutela por outros ramos do Direito, Saraiva, São Paulo, 2010.

30 Registra-se que o Institut für Kriminalwissenschaften da “Frankfurter Schule” não possui um pensamento homogêneo e coerente característico da denominação comum atribuída às escolas de pensamento. Todavia, é considerada uma escola por sua metodologia crítica, com destaque no âmbito de investigação em torno da tese do “Direito Penal Mínimo”, tomando como ponto de referência as obras de HASSEMER, HERZOG e NAUCKE. Cfr. Augusto SILVA DIAS, “Delicta in se” e “delicta mere prohibita”..., ob. cit., p. 214.

Posto isso, para fi ns penais observa-se uma forte preocupação internacional em criminalizar eventos de poluição marinha causadas por navios. Todavia, a internacionalidade desta previsão se dissipa nos variados tratamentos existentes, dada a previsão específi ca de cada país em seu âmbito interno, o que faz com que questões prejudiciais ao mérito, como a defi nição do foro e lei aplicáveis à matéria, sejam de extrema importância para fi ns penais, haja vista que o tratamento criminal do evento poderá ser diametralmente diferente a depender do regime aplicado.

3.1.2. Responsabilidade Civil do proprietário do navio – Regime de canalização da responsabilidade

Como já observado, a base legal convencional acerca daresponsabilização por poluição marítima por hidrocarbonetos proveniente de navios está inserida na CLC e no FIPOL/71-92, de maneira que se faz fundamental o tratamento de alguns conceitos presentes nestes sistemas de imputação/limitação de responsabilidade, impulsionados pelo desastre do Torrey Canyon31 nas costas da Cornualha em 1967.

31 Em 18 de março de 1967, este petroleiro de propriedade de uma empresa norte-americana, registrada nas Bermudas, e que navegava sob a bandeira de conveniência liberiana, encalhou nos recifes de Seven Stones, próximo às ilhas Scilly, em alto mar, partindo-se em quatro e atingindo o mar com cerca de 120 miltoneladas de óleo bruto, que atingiu 110 km da costa britânica e 80 km da costa francesa, acarretando em graves impactos ambientais e econômicos para ambos os países, que sofreram com desaparecimento de 50% da população de aves da região e arcaram na época, respectivamente, com £3.750.000 e 41 milhões de francos. Cfr. Emmanuel DU PONTAVICE, La pollution des mer par les hydrocarbures, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1969, p. 9; Jean-Pierre QUÉNEUDEC, L’incidence de l’affaire du Torrey Canyon sur le droit de la mer, in Annuaire français de droit international, vol. 14, 1968, pp. 701-718, p. 701. Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/afdi_0066-3085_1968_num_14_1_1515.

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O artigo II da CLC/92 estabelece o seu escopo de aplicação, ao dispor que a convenção aplica-se exclusivamente aos prejuízos causados por poluição32 no território de um Estado contratante, incluindo o mar territorial, à sua zona econômica exclusiva33, bem como às medidas de salvaguarda, onde quer que sejam tomadas para se prevenir ou reduzir os prejuízos decorrentes do dano.

Portanto, havendo um incidente que venha a atingir o território de um Estado contratante, os termos desta convenção deverão ser aplicados exclusivamente em seu tratamento.

A sua aplicação tem por escopo estabelecer um regime de canalização da responsabilidade do proprietário do navio34, em que o mesmo responde objetivamente35 pelo dano, porém, de forma limitada36.

32 Entendidos conforme o disposto no artigo I, nº 6 da CLC/92 como (a) “qualquer perda ou dano exterior ao navio causado por uma contaminação resultante da fuga ou descarga de hidrocarbonetos provenientes do navio, qualquer que seja o local onde possam ter ocorrido, desde que a compensação pelos danos causados ao ambiente, excluídos os lucros cessantes motivados por tal dano, seja limitada aos custos das medidas necessárias tomadas ou a tomar para a reposição das condições ambientais; (b) O custo das medidas de salvaguarda bem como quaisquer perdas ou danos causados pelas referidas medidas. Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Leis Marítimas, Almedina, Coimbra, 2010, p. 932.

33 Ou, nos casos de Estados que não delimitaram a sua zona econômica exclusiva, a extensão não superior a 200 milhas náuticas contadas a partir das linhas de baseutilizadas para determinar a largura de seu mar territorial. Art. II(a)(ii), da CLC/92.

34 Por proprietário, entende-se, por pessoa, singular ou coletiva, em nome da qual o navio está matriculado ou, diante da inexistência de matrícula, da qual o navio é propriedade. Art. I(3) CLC/92. Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Leis..., ob. cit., p. 931.

35 A característica da responsabilidade do proprietário do navio enquanto objetiva é partilhada por grande parte da doutrina maritimista. Cfr., v.g., Manuel Januário da Costa GOMES, Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 385-386; Sabrina ROBERT, L’Érika: Responsabilités pour um désastre écologique, Pedone: Paris, 2003, p. 31; Ignacio ARROYO, Curso de Derecho Marítimo, 2ª ed., Thomson – Civitas, Madrid, 2005, p. 758; Philippe BOISSON, La responsabilité de la société de classifi cation dans lárrêt Erika, in Le Droit Maritime Français, Nov.2010, pp. 897-902, p. 900, dentre outros.

36 Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Limitação..., ob. cit., p. 365; BOISSON, sobre a CLC/92: “Ce texte instaure en effet un mécanisme de responsabilité

Nesse sentido, o proprietário do navio será responsável, inde-pendentemente de sua culpa, por qualquer prejuízo devido à poluição causada pelo navio37, salvo se o mesmo provar que a poluição: (1) decorreu de um ato de guerra, hostilidades, de uma guerra civil, de uma insurreição ou de um fenômeno natural de caráter excepcional, inevitável e irresistível; (2) resulta, em sua totalidade, de um fato deliberadamente praticado ou omitido por terceiro com a intenção de causar o prejuízo; (3) resulta, na totalidade, da negligência ou qualquer outra ação prejudicial de um governo ou autoridade responsável pelo bom funcionamento de faróis ou de outros auxiliares de navegação, praticado no exercício destas funções.

Não obstante, o montante indenizatório será limitado com base na tonelagem do navio (artigo V, em conformidade com o Anexo I da CLC/69, emendado pelo CLC-Prot/92), que varia entre 4.510.000 e 89.770.000 unidades de conta (SDR)38 e, para a sua incidência, fundamental se faz com que o proprietário constitua um fundo totalizando o limite da sua responsabilidade junto de um tribunal ou outra autoridade competente de um dos Estados contratantes, onde possa ser movida uma ação ao abrigo do artigo XI da convenção.

Contudo, o proprietário perderá o direito a limitação de res-ponsabilidade caso fi que comprovado que o dano decorreu de uma ação ou omissão que lhe seja imputada, cometida dolosamente ou

objective et limitée, canalisée sur le proprietaire du navire”, cfr. Philippe BOISSON, La responsabilité..., ob. cit., p. 900.

37 Se o evento danoso consistir de uma sucessão de eventos de mesma origem, considerar-se responsável o proprietário do navio no momento do primeiro evento. Artigo III, nº 1 da CLC/92.

38 SDR é sigla referente aos Special Drawing Rights, unidade de contaadministrada pelo FMI (artigo V, nº 6 da CLC/92) e avaliada para o ano de 2011 em 0,4230 euros (disponível em http://www.imf.org/external/np/exr/facts/sdr.HTM. Acesso em: 07.mai.2011). Portanto, o plafond do montante indenizatório a ser suportado pelo proprietário do navio nesta convenção, em sua máxima escala, atingirá o montante de €37.972.710.

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com imprudência, diante do conhecimento de que aquele resultado provavelmente resultaria39.

Como suplemento à CLC/69, foi editado o FIPOL/71, com afi nalidade de constituir um Fundo destinado à reparação das vítimas que não obtiveram a totalidade de suas compensações abarcadas pela CLC/69, nos casos em que: (1) o proprietário do navio é exonerado de sua responsabilidade nos termos da convenção, exceto nos casos de guerra, hostilidade, guerra civil ou insurreição; (2) o proprietário nãopossui recursos sufi cientes para garantir o pagamento em cumprimento à CLC/69 e o seu seguro se mostra insufi ciente, depois de esgotados os meios legais ao alcance da vítima em ser compensada integralmente; (3) o dano extrapola o teto compensatório previsto na CLC/6940.

Em decorrência de novos acidentes com petroleiros, como o caso do Amoco Cadiz41, em 1978, que demonstraram a insufi ciência deste regime, procederam-se alterações ao sistema CLC/FIPOL por meio de protocolos (1976 e 1984) a fi m de atualizar o Fundo para o atendimento das demandas da época. Ainda assim, tais tentativas

39 Artigo V, nº 2 da CLC/92. Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Leis..., ob. cit., p. 935.

40 Artigo 4º, nº 1 do FIPOL/92. Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Leis..., ob. cit., p. 949.

41 Em 16 de março de 1978, dois dias antes de se completarem 11 anos do desastre envolvendo o Torrey Canyon, o petroleiro de bandeira liberiana, Amoco Cadiz, que se dirigia do Golfo Pérsico para Le Havre (França) carregado com 1.619.048 barris de óleo bruto, devido a uma falha em seu mecanismo de direção encalhou nas rochas de Portsall, a 5,55 km da costa da Bretanha e, devido às más condições do tempo, foi inviabilizada a tentativa de salvação por reboque efetuada e o navio partiu-se derrubando a totalidade de sua carga no mar. Este incidente foi o de maior magnitude de sua época, tendo formado uma mancha de óleo de aproximadamente 33 km de largura por 148 km de comprimento que atingiu 370 km da costa francesa e afetado as praias de 76 diferentes comunidades situadas na região da Bretanha. Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée judiciaire de l’Amoco Cadiz, in Journal du droit international, Paris, 120n.1 (jan.-mar.1993), pp. 41-96, pp. 42-43; Amoco CadizIncident Report, disponível em http://www.incidentnews.gov/incident/6241. Acesso em: 30.abr.2011.

não lograram o êxito pretendido em decorrência de sua não ratifi cação pelos EUA, que aprovaram legislação própria (a Oil Pollution Act – OPA) após o evento do Exxon Valdez em 198942.

Diante da pressão decorrente da existência do Oil Pollution Act norte-americano e de novos incidentes, a exemplo do Haven, foi ratifi cado o Protocolo de 1992 à CLC e ao FIPOL. Este protocolo integra as convenções no sentido de complementar os seus termos, em especial, em delimitar o campo de aplicação da convenção, por meio das novas noções de “navio” e de “evento”; reforçar a canalização por meio do arrolamento de pessoas imunes a responder por pedidos de responsabilização (artigo III, nº 4); e aumentar os limites de indenização a serem imputados aos proprietários dos navios envolvidos em eventos de poluição por óleo43. Limites, estes, novamente revistos pelo Protocolo de 2003 à FIPOL/92, incentivado após o incidente do Erika.

Para assumir os objetivos da convenção, o Fundo será reconhecido enquanto pessoa jurídica nos termos da legislação dos Estados contratantes, de maneira que possa assumir direitos e obrigações, bem como ser parte em qualquer ação ajuizada em um destes Estados.

O montante compensatório a ser pago, por sua vez, será limitado, de modo que a soma total do que será disponibilizado pelo Fundo com o que foi efetivamente pago pelo proprietário não exceda 203 milhões de SDR44 por incidente. Assim, nas hipóteses em que o montante reclamado exceder o limite total das compensações a pagar, o valor disponível deverá ser repartido equitativamente entre os reclamantes.

O Fundo é fi nanciado por contribuições anuais de pessoas que tenham recebido quantidades superiores a 150.000 ton. de hidrocarbonetos transportados por via marítima nos portos e terminais de um Estado

42 Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Limitação..., ob. cit., p. 367.43 Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Limitação..., ob. cit., p. 368.44 Artigo 4º, nº 4 do FIPOL/92. Valor correspondente a €85.869.000 euros.

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contratante, que, por sua vez, informará o Fundo da quantidade circulada em seu território para a cobrança das contribuições45.

Vê-se, portanto, que o regime da CLC/FIPOL busca uma reparação célere e efetiva das vítimas ao estabelecer um regime de canalização da responsabilidade do proprietário do navio com base em sua imputação objetiva, na obrigação de um seguro obrigatório e com a instituição de um Fundo complementar de indenização, voltadas à busca de uma reparação quase que integral desses tipos de dano.

Por outro lado, esse sistema tem se desenvolvido em resposta aos incidentes de grande magnitude, quando verifi cada a insufi ciência de seus termos, de modo que se apresenta como um sistema de eterna revisão a se organizar sempre depois de confi rmada a ausência de sua efetividade para o caso concreto. Portanto, apesar de se apresentarenquanto instrumento de prevenção, a sua organização se mostra repressiva, uma vez que seus postulados surgem a reboque das grandes catástrofes.

3.1.3. “Finding deep pocket targets” – Sociedades de classificação de navios e as teses de relativização ao regime de canalização na busca de terceiros agentes responsáveis em catástrofes com óleo no mar

Com o crescente aumento do transporte marítimo e a constatação de que os fundos complementares à limitação de responsabilidade do proprietário do navio não são capazes de compensar de forma satisfatória a totalidade das vítimas de incidentes catastrófi cos46, tem surgido tentativas de se imputar a responsabilidade de agentes,

45 Artigo 10º do FIPOL/92. Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Leis..., ob. cit., p. 954.

46 Como foi verifi cado nos casos dos navios Amoco Cadiz, Erika e Prestige.

como é o caso das sociedades de classifi cação47, enquanto terceiros responsáveis pelo dano. Isso se dá, principalmente, em razão da inexistência de previsão legal expressa acerca da limitação de sua responsabilidade e da possibilidade de se direcionar as ações de compensação para outros foros em que não haja a vigência do regime da CLC/92 e, assim, buscar maiores patamares indenizatórios.

A CLC/92, como dito, canaliza a responsabilidade pelo evento danoso para o proprietário do navio, não trazendo, portanto, qualquer menção expressa às sociedades de classifi cação. A segunda parte do artigo III, nº 4 deixa evidente este regime ao estabelecer que:

“Sem prejuízo do previsto no parágrafo 5 deste artigo, nenhum pedido de indemnização por prejuízos devidos à poluição (...), pode ser formulado contra: a) os funcionários ou agentes do proprietário ou membros da tripulação; b) o piloto ou qualquer outra pessoa que,

47 O processo de classifi cação consiste, basicamente, no desenvolvimento de normas e critérios voltados para o design e construção de navios e seus equipamentos; a revisão acerca do cumprimento destas normas; a atribuição e registro de uma classe, se estas normas forem atendidas; e a emissão de um certifi cado renovável se tais condições se mantiverem ao longo do tempo, podendo, certamente, retirar a classifi cação atribuída nas hipóteses em que seus requisitos não sejam mais cumpridos.

Essa atuação poderá ter uma natureza de âmbito privado ou público, a depender das peculiaridades de cada classifi cação. Isso porque, a classifi cação de navios poderá decorrer tanto de um contrato privado realizado para a construção e classifi cação de um navio, como poderá decorrer de uma atribuição dada por um órgão público às sociedades de classifi cação para a verifi cação do atendimento das normas de segurança marítima existentes. No âmbito de sua atuação pública, ou seja, no exercício de inspeções em nome do Estado de bandeira, a atuação das sociedades de classifi cação é regulada por uma série de normas internacionais, comunitárias, nacionais e até mesmo técnicas (auto-regulação por órgãos e associações internacionais),voltadas à segurança marítima. Internacionalmente, a base legal para o seu tratamento se encontra consubstanciada nas Convenções internacionais de Linhas de Carga, de 1966 (LC 66); para Salvaguarda da Vida Humana no Mar, de 1974, e suas emendas (SOLAS 74); bem como na Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL), de 1973, e o seu protocolo de 1978.

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não sendo membro da tripulação, preste serviço no navio; c) qual-quer afretador (seja qual for o seu estatuto, incluindo o afretador de navio em casco nu), gestor ou operador do navio; d) qualquer pes-soa que desenvolva operações de salvamento com o consentimento do proprietário ou de acordo com instruções de uma autoridade pública competente; e) qualquer pessoa que esteja a executar medi-das de salvaguarda; f) todos os funcionários ou agentes das pessoas mencionadas nas alíneas c), d) e e), excepto se o prejuízo resultar de acção ou omissão destas pessoas com a intenção de causar tal pre-juízo ou por imprudência e com o conhecimento de que tal prejuízo poderia vir a ocorrer”48.

Como pode se observar, a alínea b) do artigo III, nº 4 faz menção a “qualquer outra pessoa que, não sendo membro da tripulação, preste serviço no navio”, ou seja, esta alínea dá abertura para o entendimento de que as sociedades de classifi cação não poderiam ser demandadas em ações indenizatórias que pleiteiem a compensação por prejuízos causados por poluição.

Note que a terminologia “pessoa”, conforme estabelece o artigo I, nº 2, signifi ca, para os fi ns da convenção, “qualquer pessoa física ou pessoa moral de direito público ou de direito privado, incluindo o Estado e suas subdivisões políticas” 49, de maneira que, no aspecto subjetivo do dispositivo as sociedades de classifi cação se enquadrariamno rol de pessoas que não poderiam sofrer qualquer pedido de indenização decorrente dos prejuízos causados por poluição de um navio. Resta saber se a mesma cumpre o aspecto objetivo da norma que é a subsunção ao fato “prestar serviço no navio”.

Uma primeira leitura do dispositivo leva-nos a crer que para a sua incidência, fundamental se faz que o agente preste serviços a bordo do navio, como fi cou confi gurado na decisão do caso Erika

48 Manuel Januário da COSTA GOMES, Leis..., ob. cit., pp. 933-934.49 Manuel Januário da COSTA GOMES, Leis..., ob. cit., p. 931.

que se discutirá mais adiante. Contudo, deverá assinalar-se que a tradução portuguesa deste trecho afasta-se das versões ofi ciais em inglês e francês, que dispõem: “performs services for the ship”50 e “s’acquitte de services pour le navire”, respectivamente. Ou seja, para a subsunção do fato à norma basta que o agente preste serviços para o navio e não, necessariamente, a bordo do mesmo, conforme denota as expressões “for” e “pour”, que correspondem à preposição “para” em língua portuguesa. Desse modo, há fundamentos para se reconhecer que o regime previsto na CLC/92 poderia afastar a possibilidade das vítimas ajuizarem pedidos de indenização perante as sociedades de classifi cação de navios, uma vez que esta presta serviços para o navio.

Contudo, a doutrina está dividida neste pormenor. Phillipe BOISSON51 e Francesco SICCARDI52 concordam que, apesar destas sociedades não serem membros da tripulação, os mesmo executam um serviço para o navio imprescindível para a sua operação, do qual há a necessidade de serem realizados fi sicamente a bordo do navio para a comprovação do estado real da embarcação, motivo pelo qual deve se reconhecer a sua imunidade. Em sentido contrário estão NicolaiLAGONI53, Pierre BONASSIES54 e Francesco BERLINGIERI55. Para LAGONI, a expressão “o piloto ou qualquer outra pessoa” pressupõe

50 Artigo III, nº 4, alínea b) da CLC/92 (versão inglesa disponível em http://www.iopcfund.org/npdf/Conventions%20English.pdf. Acesso em: 29.mai.2011).

51 Cfr. Philippe BOISSON, La responsabilité de la société..., ob. cit., pp. 696-673. 52 Cfr. Francesco SICCARDI, Pollution Liability and Classifi cation Societies,

Is the System a Fair One?, in Il Diritto Marittimo, 2005, pp. 691-710.53 Nicolas LAGONI, The third party..., ob. cit., pp. 289-290.54 Cfr. Pierre BONASSIES, Sociétés de classifi cation et convention de

1969/1992 sur la responsabilité pour les dommages dus à la pollution par les hydrocarbures, in Le Droit Maritime Français, Set. 2008, pp. 691-695.

55 Cfr. Francesco BERLIGIERI, Les societés de classifi cation peuvent-elles bénéfi cier de la canalisation prévue á l’article III.2 de la CLC 1992?, in Le Droit Maritime Français, Dez. 2012, pp. 1015-1019.

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implicitamente que a outra pessoa deve ter obrigações equivalentes a do piloto para se inserir neste rol.

Já BONASSIES se utiliza de dois argumentos para defender o afastamento da imunidade das sociedades de classifi cação, o primeiro em relação a mens legis durante os trabalhos preparatórios da convenção, e o segundo quanto a técnica de interpretação deste tipo de cláusula e o seu texto. Recorda o autor, que durante a discussão acerca da aprovação da convenção, jamais se falou nas sociedades de classifi cação, bem como a proposta dos Países Baixos para a inclusãodo termo “empreiteiros independentes” (entrepreneurs indépendents) em vez de “mandatários” na alínea a) foi negada, o que demonstraria apredisposição em não reconhecer a imunidade a este tipo de sociedades. Quanto ao texto, em conformidade com o que LAGONI defende, BONASSIES entende que, por se tratar o artigo III, nº 4 de uma cláusula de exceção, a mesma deverá ser interpretada restritivamente (ejusdem generis) e que há diferenças entre as prestações feitas pelas sociedades de classifi cação e os sujeitos descritos na norma, não sendo, portanto, extensíveis a estas a sua imunidade56.

BERLINGIERI acrescenta que, se levado a efeito o argumento de BOISSON acerca da prestação de serviços para o navio, dever-se-ia incluir todos os prestadores de serviço (v.g. estaleiros de construção e reparação de navios) a caminhar para um regime de “canalização absoluta”, o que dispensaria a lista de pessoas nas demais alíneas do artigo e não foi acordado nos trabalhos preparatórios57.

Por outro lado, há além da alínea b), a alínea e) deste mesmo artigo que daria azo a uma interpretação quanto à uma eventual imunidade das sociedades de classifi cação. Segundo este dispositivo seria imune “qualquer pessoa que esteja a executar medidas de

56 Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Limitação de Responsabilidade..., ob. cit., pp. 399-406.

57 Cfr. Francesco BERLIGIERI, Les societés de classifi cation..., ob. cit., p. 1019.

salvaguarda”. Ora, mantido o entendimento de “pessoa”, já discutido acima, segundo o artigo I, nº 7 da convenção o conceito de “medidas de salvaguarda” seria “quaisquer medidas razoáveis tomadas por qualquer pessoa após a ocorrência de um evento para prevenir ou limitar a poluição”. Levando em consideração que diante de eventos de poluição, as sociedades de classifi cação inspecionam e reexaminam os navios de natureza técnica semelhante para prevenir a ocorrência de danos futuros. Pode-se reconhecer, para estes casos, uma imunidade fora da alínea b).

Apesar dos argumentos trazidos por BONASSIES e o impasse da jurisprudência que, como veremos, possui julgados para ambos os entendimentos proferidos na mesma época, acompanhamos a doutrina encampada por BOISSON, posto que a fi nalidade do regime de canalização da CLC/92 é, justamente, eliminar a existência destes responsáveis virtuais, e permitir um contencioso menos custoso e célere para as vítimas. Ademais, as sociedades de classifi cação, nas prestações de classifi cação, não apenas prestam um serviço direcionadoà administração do navio, imprescindível para a sua navegação, como o devem fazer em contato direto com a embarcação (o que poderia se equiparar a um serviço prestado à bordo), uma vez que precisam inspecioná-lo fi sicamente. Além disso, tal interpretação não pode ser dissociada de uma análise econômicas, no sentido de que, ao delegarum risco dessa magnitude (sujeição passiva e sem limitação de responsabilidade), os serviços de inspeção e classifi cação se tornariam impraticáveis e, consequentemente, o transporte de óleo em atendimento às normas de segurança convencionadas, em razão da onerosidade excessiva de tais operações.

Entendida a possibilidade acerca da imunidade das sociedades de classifi cação, há ainda de se reconhecer que o artigo III, nº 4 deverá atender os termos de seu parágrafo 5, que estabelece que nenhuma disposição da convenção prejudicará os direitos de recurso do proprietáriocontra terceiros. Portanto, ainda que tais sociedades não pudessem ser demandadas diretamente, nada impede o redirecionamento da responsabilidade do proprietário do navio perante as mesmas, caso

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estas tenham incorrido no disposto do artigo III, nº 2, alínea b), que abre a possibilidade de se isentar a responsabilidade do proprietário nas hipóteses em que este provar que o dano resultou, na totalidade, de um fato deliberadamente praticado ou omitido por terceiros com a intenção de praticar o prejuízo.

Esse regime, portanto, prevê a possibilidade das sociedades de classifi cação vir a responder por um fato de poluição, que se apresenta enquanto responsabilidade extracontratual. Contudo, apenas legitima o proprietário do navio para litigar perante esses sujeitos. Ocorre que o proprietário do navio possui uma relação contratual com estas sociedades, em cujas cláusulas há previsões expressas quanto a exclusão e/ou limitação de sua responsabilidade perante terceiros.

Resta-nos saber se estas cláusulas seriam oponíveis para se sustentar a exoneração de responsabilidade para estes casos, posto que ambas as partes são contratantes. Conforme a verifi cação acerca da legalidade destas cláusulas de exoneração/limitação, o único ponto em comum entre a jurisprudência francesa, inglesa e americana é no sentido deque se a prática foi dolosa ou equivalente ao dolo (culpa grave), não haveria a possibilidade da parte se aproveitar desta cláusula exoneratória. Desse modo, considerando que para o redirecionamento da responsabilidade para terceiros no regime da CLC/92, fundamental se faz a comprovação do dolo do agente (prática intencional), não há se falar em validade destas cláusulas no presente caso.

A mesma conclusão se dá para a previsão do ISM Code58, que estabelece entre as partes o reconhecimento do direito de limitação de responsabilidade das sociedades de classifi cação em até 10 vezes

58 Instrumento multilateral gerido pelo Comitê Marítimo Internacional (CMI) em que os membros da IACS, da International Chamber of Shipping (ICS), da International Chamber of Commerce (ICC), da International Association of Dry Cargo Shipowner (Intercargo), da International Group of P&I Clubs (IG P&I), da International Union of Marine Insurance (IUMI), da Oil Companies International Marine Forum (OCIMF) e da Organização Marítima Internacional (OMI) são signatários.

os honorários por elas recebido por demanda. Desse modo, diante da ausência de normas aplicáveis nesse sentido, o montante indenizável pelas sociedades de classifi cação dependerá da apreciação equitativa do juiz no caso concreto.

2.2. Aspectos adjetivos aplicáveis na resolução de litígios envolvendo poluição por hidrocarbonetos

Estabelecidas as principais premissas acerca do tema, fundamental se faz enfrentar os principais problemas adjetivos enfrentados com a jurisdicionalização destes confl itos.

2.2.1. Forum Shopping

Forum shopping é o termo adotado para se referir ao exercício de escolha praticado por um litigante na eleição de um foro em detrimentode outro potencialmente competente59. A alusão ao shopping se dá justamente pelo fato de que, diante das hipóteses apresentadas, o litigante naturalmente avaliará o custo/benefício de cada foro eescolherá aquele que potencialmente lhe trouxer maiores vantagens, como se escolhesse um item dentre os demais em uma vitrine de loja.

A sua ocorrência pode se dar tanto domesticamente quanto transnacionalmente60. Para fi ns deste trabalho, contudo, não nos interessa a análise do forum shopping doméstico, motivo pelo qual apenas nos atentaremos às hipóteses de sua ocorrência diante de

59 Cfr. Christopher A. WHYTOCK, The envolving forum shopping system, in Cornell Law Review, vol. 96 (2010/2011), p. 7. Disponível em http://ssrn.com/abstract=1596280. Acesso em: 02.fev.2011.

60 Idem; cfr. Tim STEPHENS, International Courts..., ob. cit., p. 280; Ralph U. WHITTEN, U.S. Confl ict-of-Laws Doctrine and Forum Shopping, Domestic and International (Revisited), Texas International Law Journal, vol. 37, 2010, p. 559, 2002. Disponível em http://ssrn.com/abstract=1716537. Acesso em: 06.mai.2011.

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sistemas jurídicos e/ou processuais distintos, ou que tenha algum elemento de internacionalidade.

Posto isso, para ocorrência do forum shopping, fundamental se faz a satisfação de três condições: (1) a existência de mais de um país detentor de uma corte ou a existência de mais de uma corteinternacional potencialmente competentes para a apreciação do pedido; (2) estas cortes devem estar regidas por sistemas jurídicos distintos; (3) a existência de um elemento que torne um sistema mais atrativo que o outro para o litigante.

A doutrina se divide quanto até que ponto esta prática é indesejável. Isso porque, se, de um lado há a liberdade de escolha das partes dentre as opções legitimamente existentes, de outro, essa escolha pode ir de encontro com a fi nalidade do processo, que seria a resolução do confl ito de maneira célere e sem maiores custos ao Estado e às partes.

Quando trazido para o plano do Direito Internacional Ambiental, esta discussão ganha novos contornos que potencializam os pontos negativos desta prática, haja vista que com a crescente especialização das cortes internacionais e suas distintas fi nalidades, por vezes confl itantes, questiona-se qual foro seria o mais apropriado para a resolução de litígios ambientais. Isso porque, de um lado há a concepção de maior proteção deste bem, transindividual e intergeracional, e de outro, o fato de que raramente os confl itos surgidos tratem de questões puramente ambientais.

Em razão disso, várias estratégias têm surgido no Direito Internacionalpara limitar esta prática, com destaque para o desenvolvimento da doutrina do forum non conveniens (quando rejeita-se o pleito por entender que dentre as opções existentes outro tribunal ou corte se mostra mais competente para a resolução do litígio), das anti-suit injunctions (quando a corte ou tribunal rejeita a ação proposta diante da violação de uma cláusula compromissória efetuada em outro órgão de resolução de confl itos), bem como do disposto no artigo 282º, da UNCLOS, que busca harmonizar a atuação do ITLOS comos demais órgãos jurisdicionais internacionais ao estabelecer que se

as partes tiverem ajustado, por meio de um acordo geral, regional ou bilateral, ou de qualquer outra forma, que a controvérsia seja submetida a um procedimento que redunde em uma decisão obrigatória, esse procedimento será aplicado em lugar do previsto na convenção, salvo estipulação em contrário.

2.2.2. Simultaneus processus

O instituto do simultaneus processus, também conhecido por litispendência, ocorre quando há a coexistência de processos com o mesmo objeto em cortes ou tribunais distintos. Reconhece-se também como litispendência os casos em que o sujeito passivo opõe uma reconvenção em foro distinto daquele em que foi demandado.

Isso pode ocorrer tanto domesticamente quanto internacionalmente.Contudo, em âmbito internacional esta situação pode ser mais complexa, diante da difi culdade, quando não, a ausência de coordenação entre os inúmeros instrumentos normativos internacionais em vigor, o que pode vir a gerar decisões contraditórias, bem como difi cultar a executoriedade da sentença de uma determinada corte, dada a discussão de sua validade quando da existência de outra decisão emanada por uma corte distinta.

Portanto, por se afastar da concepção de segurança jurídica, dada a possibilidade do surgimento de decisões confl itantes sobre um mesmo objeto, a litispendência é largamente repudiada pelos ordenamentos jurídicos dos Estados democráticos de Direito e, diante da ausência de regulação desta matéria em sede internacional, a prevenção destes atos tem sido perseguida por meio de uma extensão de regras de caráter geral como os institutos da lis alibi pendens e da res judicata (coisa julgada). Este, inclusive, reconhecido enquanto princípio geral de direito61.

61 Tim STEPHENS, International Courts... ob. cit., p. 280.

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Registre-se, todavia, que para o reconhecimento da litispendência em sede de Direito Internacional, fundamental se faz que haja a identidade de partes e objeto, como fi cou assentado na jurisprudência do TIPJ.

2.2.3. Sucessivos processus

Outro problema decorrente da fragmentação do contencioso internacional ambiental pode ser identifi cado na possibilidade de ocorrência de sucessivos processus, que seria, basicamente, o ajuizamento de uma nova demanda similar ou idêntica há um caso já decidido.

Além dos custos com uma nova demanda, há novamente o grave risco de decisões contraditórias, o que representa séria violação à segurança jurídica e à administração da justiça.

Em prevenção a tal possibilidade há, em direito internacional, a regra do stare decisis, em que a divergência jurisprudencial só poderá ser evitada diante da aplicação da doutrina da res judicata. Contudo, observa Tim Stephens que essa doutrina, como a lis alibi pendens em relação a processos paralelos, só se efetiva quando a situação envolver uma disputa idêntica62, ou seja, mesmos sujeitos, causa de pedir e pedido, o que torna a sua vedação praticamenteimpossível, uma vez que, como discutido pelo autor, ainda não ocorreu em nenhuma instância de direito internacional do ambiente, processos sucessivos buscando uma demanda idêntica, apesar da constante ocorrência de processos similares, como visto nos casos do Southern Bluefi n Tuna e do MOX Plant.

62 Idem, p. 285.

3. Case Law- uma seleção de casos

A jurisprudência selecionada segue um critério cronológico que, como dito, se confunde com o próprio desenvolvimento legislativo internacional acerca da matéria. Sendo assim, iniciaremos a abordagempelo emblemático caso do Torrey Canyon, primeiro marco na história de catástrofes ambientais decorrentes da dispersão de hidrocarbonetos para o meio marinho por petroleiros. A sua seleção se deu pelo fato da legislação sobre a matéria ter se originado de sua discussão, postoque diante da omissão legislativa internacional sobre o assunto, fez-se necessário enorme esforço doutrinário e jurisprudencial não só para resolver este litígio conforme as regras de direito interno dos países afetados, como para repensar a questão da responsabilidade por danos ambientais causados por navios.

O segundo caso analisado é o incidente do Amoco Cadiz,emblemático caso de forum shopping que veio inspirar a revisão dos patamares indenizatórios vigentes no regime da CLC/69 à época. Em seguida, trataremos do desastre do Prestige, que traz consigo grande discussão sobre litispendência e forum shopping no tratamento compensatório das vítimas da poluição pelo FIPOL, seguido da tentativa de condenação de outros sujeitos fora do regime de canalização imposto pela CLC/69. E, por fi m, analisaremos o caso do M/V Louisa, recente julgado do ITLOS acerca de sua jurisdição prima facie para a concessão de medidas provisórias com fundamento no risco de vazamento de hidrocarbonetos para o meio marinho.

Dessa feita, propõe-se por meio desta seleção analisar os confl itos de jurisdição e leis surgidos nestes litígios não só por meio de uma perspectiva histórica, como também a estabelecer um paralelo entre o seu tratamento nos Direitos Internacional Público e Privado, a tangenciar questões de responsabilidade contratual e extracontratual, a nos evidenciar de que forma se coloca a problemática da fragmentação do direito internacional ambiental neste seguimento especializadíssimo que é o da poluição marinha por hidrocarbonetos.

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3.1. Torrey Canyon

O incidente do Torrey Canyon se destaca por ter sido o primeiro marco na história do direito da responsabilidade por danos decorrentes da poluição por navios petroleiros63, tendo inspirado a legislação internacional no que concerne ao tratamento deste tipo de incidentes tão peculiares e de difícil coordenação.

Em 18 de março de 1967, este petroleiro de propriedade de uma empresa norte-americana, registrada nas Bermudas, e que navegava sob a bandeira de conveniência liberiana, encalhou nos recifes de Seven Stones, próximo às ilhas Scilly, em alto mar, partindo-se em quatro e atingindo o mar com cerca de 120 mil toneladas de óleo bruto64, que atingiu 110 km da costa britânica e 80 km da costa francesa, acarretando em graves impactos ambientais e econômicos para ambos os países, que sofreram com desaparecimento de 50% da população de aves da região e arcaram na época, respectivamente, com £3.750.000 e 41 milhões de francos65.

Este incidente se afi rma como verdadeiro caso seminal da jurisprudência e doutrina jusmaritimista, posto que, apesar de se apresentar como um claro litígio de Direito Internacional (incidente emalto mar/ danos transfronteiriços/ sujeitos de diferentes nacionalidades),

63 Chao WU destaca, no entanto, que antes de sua ocorrência ocorreram diversos incidentes signifi cativos de poluição do mar por hidrocarbonetos, como relatado na Conferência de 1969, em que os Estados participantes reportaram a ocorrência de 48 importantes sinistros ocorridos entre os anos de 1959 e 69. Cfr. Chao WU, La pollution..., ob. cit., 1994, p. 13.

64 Disponível em www.cedre.fr. Acesso em: 02.abr.2011.65 Cfr. Emmanuel DU PONTAVICE, La pollution des mer par les hydrocarbures

à propos de l’affaire du “Torrey Canyon”, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1968, p. 9; Jean-Pierre QUÉNEUDEC, L’incidence de l’affaire du Torrey Canyon sur le droit de la mer, in Annuaire français de droit international,vol. 14, 1968, pp. 701-718, p. 701. Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/afdi_0066-3085_1968_num_14_1_1515. Acesso em: 03.abr.2011; Chao WU, La pollution..., ob. cit., p. 13.

não havia como se resolver tal confl ito nesta seara. Isso porque, inexistia à época legislação internacional aplicável ao caso66, motivo pelo qual houve a necessidade de grande esforço doutrinário e jurisprudencial não só para identifi car a forma para se resolver este litígio conforme as regras de direito interno dos países afetados, como para repensar a questão da responsabilidade por danos ambientais causados por navios,a inspirar as Convenções de Bruxelas de 1969, sobre responsabilidade civil (CLC/69) e sobre intervenção em alto mar diante do risco de poluição por hidrocarbonetos.

Apesar desses esforços, o caso foi resolvido por meio de um acordo extrajudicial realizado em 11 de novembro de 1969 entre a empresa Barracuda Tanker Corporation e os governos francês e britânico, no qual a empresa se comprometeu a pagar £3 milhões a serem divididos igualmente entre França e Inglaterra. O valor acordado correspondeu a um terço dos gastos efetuados pelo governo inglês na contenção do dano, sem a consideração do dano ecológico sofrido.

Assim, independentemente do acordo realizado, analisar-se-á, diante da legislação e jurisprudência vigente na época, os meios de resolução deste confl ito em nível interno dos países afetados no que tange à jurisdição competente e lei aplicável para a resolução do caso, a fi m de ilustrar o labirinto jurídico que estes países se encontravam diante deste impacto.

Considerando, desse modo, a hipótese de resolução do caso em nível interno, fundamental se faz responder a seguinte questão: a legislação doméstica destes países atribuía aos seus tribunais competência para julgar um litígio decorrente de uma poluição acidental ocorrida em alto-mar?E, assim o fazendo, qual lei seria aplicável ao caso e que efeitos práticos decorreriam de sua aplicação? Vejamos.

66 Cfr. Chao WU, La pollution..., ob. cit., pp. 14-15.

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3.1.1. Análise quanto à jurisdição interna da França

No caso francês, a base principal para a atribuição de competência internacional para os seus tribunais estava prevista nos artigos 14º e 15º do Code Civil, que dispunham que um cidadão francês poderia ajuizar uma ação e ser demandado perante um tribunal nacional, ainda que a outra parte fosse estrangeira, independente do local onde tenha sido celebrada a obrigação67. Insta registrar, que apesar de constar os termos “contractées” e “obligations” em seus dispositivos, desde o séc. XIX está pacifi cado na jurisprudência francesa estarem abrangidas também neste dispositivo as obrigações extracontratuais,incluindo-se todas as matérias de responsabilidade68. Tratava-se, portanto, de uma regra de competência pautada, tão somente, na nacionalidade de uma das partes.

Apesar da aceitação majoritária da jurisprudência e doutrina francesa quanto à extensão e generalidade dos signifi cados atribuídos aos dispositivos, o mesmo não se pode afi rmar em sede internacional, havendo grande difi culdade para o reconhecimento e execução no exterior de decisões fundadas com base neste entendimento69.

Por sua vez, no âmbito da lei aplicável, a sua verifi cação poderia ser feita com base em critérios como o do local onde o ato ilícito foi praticado, o local onde o dano ocorreu ou, eventualmente, a nacionalidade das partes.

67 Artigo 14º: “L´étranger, même non résident en France, pourra être cité devant les tribunaux français, pour l’éxecution des obligations par lui contractées en France avec un Français; il pourra être traduit devant les tribunaux de France, pour les obligation par lui contractées en pays étranger envers des Français”; Artigo 15º: “Un Français peut être traduit devant un tribunal de France, pour des obligations par lui contractées en pays étranger, meme avec un étranger”.

68 Chao WU, ob. cit., p. 16.69 Cfr. Renée RODIÈRE; Emmanuel DU PONTAVICE, Droit maritime, Précis

Dalloz, Paris, 12ª ed., 1996, p. 134.

De um lado, seria possível a aplicação da legislação liberiana, enquanto lei do Estado do pavilhão. Prática típica de direito marítimo a trazer consigo a vantagem de se incidir apenas um sistema normativo a um caso que envolve mais de uma jurisdição e, portanto, evitar o emprego de legislações distintas que podem divergir em matéria de limitação da responsabilidade, podendo, assim, gerar um tratamento diferenciado das vítimas de um mesmo dano, o que fere a idéia de isonomia. Além disso, a lei do pavilhão é o regulamento de conhecimento do requerido. Contudo, a sua aplicação em França estaria condicionadaà verifi cação de que a mesma não seria muito desfavorável às vítimas em relação à legislação francesa, sob pena de violação da ordem pública nacional70.

Por sua vez, o posicionamento doutrinário em França era no sentido de aplicar a lex loci delicti comissi, lei do foro onde o ilícito foi praticado nos casos de responsabilidade decorrente de uma obrigação extra-contratual. Contudo, como o incidente ocorreu em alto-mar, local desprovido de jurisdição, restava saber se havia a possibilidade de se reconhecer enquanto sítio do dano aquele onde os seus efeitosforam sentidos. A doutrina e jurisprudência francesas da época eramhesitantes neste sentido. É preferível, então, recorrer a jurisprudência da Cour de Cassation que já havia se posicionado em um arresto de 1966 no sentido de ser aplicável a lex fori nos casos de incidentes ocorridos em alto-mar71.

Portanto, no regime francês da época, a lei aplicável seria a lex loci comissi delicti, nos casos em que houvesse poluição decorrente de um dano ocorrido em águas territoriais e, caso o dano viesse a ocorrer em local onde não há a possibilidade de se atribuir sua ocorrênciaa um país, como é o caso do alto-mar, aplicar-se-ia a lex fori. Se aplicado este regime, todavia, a execução de sua sentença nos Estados Unidos, local onde se situava a sede do proprietário do navio, seria

70 Cfr. Chao WU, La pollution..., ob. cit., pp. 19-20.71 Idem, pp. 20-22.

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absolutamente impossível, dado o fato da justiça norte-americana não reconhecer o exequatur de sentenças proferidas por um tribunal cuja jurisdição se paute, tão somente, na nacionalidade de uma das partes, como era o caso do artigo 14º, do Code Civil francês72.

3.1.2. Análise quanto à jurisdição interna da Inglaterra

No caso inglês, as vítimas de poluição teriam duas possibilidades de acionar o poder judiciário local: (1) por meio de uma actio in personam, no qual a jurisdição do tribunal dependerá da submissão voluntária do requerido, por meio de sua presença física, ainda que transitória, à jurisdição inglesa. No caso de companhias estrangeiras, o requisito da presença física é substituído pelo ato de realizar suas atividades na Inglaterra (v.g. através de uma fi lial); (2) por meio de uma actio in rem, no qual a common law reconhece a jurisdição de um tribunal inglês para julgar ações intentadas contra uma coisa (rem), como um navio e seus assessórios. Para tanto, há tão somente a dependência do reconhecimento da competência jurisdicional marítima da High Court inglesa que, por sua vez, dependia da presença da coisa em território inglês.

Se não bastasse a difi culdade em se intentar uma ação com base em ambas as modalidades existentes, haja vista o fato da empresa proprietária do navio estar matriculada em Bermudas e o navio ter afundado fora das águas territoriais inglesas. No caso de ações por responsabilidade decorrente de um ato ilícito, fazia-se necessário, ainda, que o ato ou omissão objeto do litígio, houvesse sido praticado

72 Nesse sentido, Chao WU: “son affi rmation se trouve confi rmée dans l’article 30 § 2 du Second Restatement américain: A state does not have jurisdiction to prescribe a rule of law attaching legal consequences to the conduct of an alien outside its territory merely on the ground that the conduct affects one of its national”. Cfr. Chao WU, La pollution..., ob. cit., p. 30, nota 80.

na Inglaterra, tornando-se impossível o processamento e julgamento do caso junto à justiça britânica.

Diante da falta de jurisdição do tribunal inglês, e da impossibilidade de execução das decisões francesas no domicílio do proprietário do navio, entende-se a razão que levou às partes a concordar com o acordo realizado, ainda que o valor acordado não correspondesse a um terço dos gastos efetuados pelos países. No entanto, foi em razão destas difi culdades encontradas pelos países no tratamento desta questão, que houve o consenso internacional no sentido da necessidade em se elaborar um sistema que desse um tratamento internacional acerca da responsabilidade dos navios por poluição causada por hidrocarbonetos.

3.2. Amoco Cadiz

Em 16 de março de 1978, dois dias antes de se completarem 11 anos do desastre envolvendo o Torrey Canyon, o petroleiro de bandeira liberiana, Amoco Cadiz, que se dirigia do Golfo Pérsico para Le Havre (França) carregado com 1.619.048 barris de óleo bruto, devido a uma falha em seu mecanismo de direção encalhou nas rochas de Portsall, a 5,55 km da costa da Bretanha e, devido às más condições do tempo, foi inviabilizada a tentativa de salvação por reboque efetuada e o navio partiu-se derrubando a totalidade de sua carga no mar. Este incidente foi o de maior magnitude de sua época, tendo formado uma mancha de óleo de aproximadamente 33 km de largura por 148 km de comprimento que atingiu 370 km da costa francesa e afetado as praias de 76 diferentes comunidades situadas na região da Bretanha73.

73 Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée judiciaire de l’Amoco Cadiz, in Journal du droit international, Paris, 120n.1 (jan.-mar.1993), pp. 41-96, pp. 42-43; NOAA, Amoco Cadiz Incident Report. Disponível em http://www.incidentnews.gov/incident/6241. Acesso em: 30.abr.2011.

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O plano de ação para a mitigação deste dano foi nomeado de “Plan Polmar”, no qual a marinha francesa fi cou encarregada de promover todas as operações off-shore, enquanto a defesa civil francesa se encarregou da promoção da limpeza da costa com o auxílio de voluntários 74.

Embora tenha se tratado de um incidente ocorrido na costa francesa e houvesse jurisdição das cortes nacionais para o tratamento do caso, as vítimas desta maré negra optaram pela escolha da jurisdição norte-americana para a apreciação de seus pedidos de compensação. Esta opção de foro se deu como estratégia das vítimas para escapar da limitação de responsabilidade do proprietário do navio prevista na CLC/69, que foi ratifi cada pela França e não pelos Estados Unidos da América75. Este é um emblemático caso de forum shopping em que os litigantes buscam se benefi ciar por meio da escolha do foro.

Antes de analisar o julgado, fundamental se faz necessário qualifi car os sujeitos envolvidos no sinistro, posto que a escolha do foro norte-americano foi feita com base na jurisdição ratione personae e a principal discussão deste processo são, justamente, a jurisdição competente e a determinação da lei aplicável para a resolução do confl ito.

O petroleiro envolvido no acidente é de propriedade da Amoco Transport Co., uma sociedade liberiana fi liada ao grupo Standard Oil Co. (sociedade americana com sede em Chicago), que detinha outra fi lial, a Amoco International Oil Co. (AIOC – também sediada em Chicago), responsável pela organização e gestão de transportes

74 Cfr. NOAA, Amoco Cadiz Incident..., ob. cit.75 Conforme a aplicabilidade da Convenção, em vigor na França e na Libéria

(potenciais jurisdições para apreciação do caso), estariam previstos somente 77 milhões de francos (aproximadamente 16 milhões de dólares em 1978) para indenizar o Estado francês e as demais vítimas do desastre (hoteleiros, pescadores, comerciantes, etc.). Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée..., ob. cit., p. 43; cfr. Alexandre KISS, L’affaire de l’Amoco Cadiz: responsabilité pour une catastrophe écologique, Journal du droit international, 1985, n.03, pp. 575-589.

do grupo Standart Oil Co. e encarregada pelo comando e recepção do navio. Ele foi encomendado e construído no estaleiro espanhol Astilleros, registrado na Libéria, certifi cado pela sociedade de classifi cação americana American Bureau of Shipping (ABS), segurado no Reino Unido e no momento do sinistro era comandado por um capitão italiano. O proprietário da carga era a britânica Shell International Petroleum Co. (SIP), e a empresa contratada para efetuar o reboque do navio foi a alemã Bugsier.

Em uma primeira vista, haveria como opção aos litigantes as jurisdições da França e da Libéria para a apreciação dos pedidos de compensação, enquanto domicílio das vítimas e do proprietário direto do navio. Se considerada a CLC/69, o foro detentor de jurisdição genérica para a apreciação do caso seria o foro do local onde ocorreu o delito (França), ao estabelecer em seu artigo IX, nº 1, uma verdadeira lex loci delicti commissi como regra de competência internacional, quando dispõe que serão competentes os tribunais do(s) Estado(s) em cujo(s) território(s) o evento76 ocorreu.

Contudo, nenhuma destas hipóteses atendia as vítimas, que buscavam a não aplicação da CLC/69, cuja limitação de responsabilidade do proprietário do navio não alcançaria os patamares de indenizaçãopleiteados. Como estratégia para escapar desta limitação deresponsabilidade, foi realizada a eleição do foro norte-americano com base na extensão da responsabilidade da empresa controladora pelos atos de suas fi liais.

Os litigantes apontaram a teoria do “lifting [or piercing] the corporate veil”, ao sustentar que a empresa controladora possuiresponsabilidade pelos atos de suas subsidiárias. No caso, a empresa liberiana Amoco Transport Co. era subsidiária da americana AIOC, que geria todo o transporte do grupo americano Standard Oil Co.

76 Nesse sentido, por “evento” entende-se “qualquer fato ou conjunto de fatos com a mesma origem e dos quais resulta uma poluição”. Artigo I, nº 8, CLC/69.

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e era responsável pelo navio Amoco Cadiz, desde a sua encomenda e construção, e, por sua vez, era controlada pela Standard. Nesse sentido, sustentaram que as americanas AIOC e Standard Oil Co. eram proprietárias do navio, o que tornaria o foro norte-americano competente para a apreciação de seus pleitos77.

Contudo, o seu interesse não estava em apenas processar e julgar ocaso nos EUA, mas também em aplicar a lei norte-americana para a sua resolução. Neste sentido, para a aplicação da lex fori, os litigantesinvocaram a regra jurisprudencial norte-americana afi rmada no caso Babcok v. Jackson78 para afi rmar que a ocorrência do sinistro em águas francesas era um caso puramente fortuito, posto que as regras de comportamento que ocasionaram o acidente deveriam ser atribuídas ao local onde se situa a sede da AIOC, uma vez que estes foram negligentes ao colocar em atividade um navio sem condições mecânicas de navegabilidade79.

Com base nesta situação, uma complexa relação processual se instaurou nos Estados Unidos da América. (1) A República francesa ajuizou uma ação perante o grupo Amoco (Standart Oil Co. e suas

77 Cfr. Shynia MURASE, Perspectives from International Law on Transnational Environmental Law, in Recueil des Cours, tomo 253, Académie de Droit International de la Haye, Martinus Nijhoff Publishers, La Haye, 1995, pp. 282 segs., p. 380.

78 Célebre caso da jurisprudência norte-americana que veio consagrar em 1963 a fl exibilização da “law of the place of the tort” (lex loci delicti comissi) para a incidência da lei do domicílio comum do agente e do lesado, no caso, entendida como a“law of the jurisdiction which has the strongest interest in the resolution of the particular issue presented” e infl uenciou a criação do princípio geral norte-americano da most signifi cant relationship em matéria de responsabilidade extracontratual. Cfr. Babcock v. Jackson, julgado em 9.5.1963, Court of Appeals of New York, 191 N.E. 2d 279, 281, 285. Cfr. António MARQUES DOS SANTOS, Breves notas sobre o Direito Internacional Privado do Ambiente, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra, 2003, pp. 167-191, p. 178.

79 Cfr. Carlos de Oliveira COELHO, Poluição Marítima..., ob. cit., p. 205; Andreas LOWENFELD, International litigation and the quest for reasonableness, Recueil de Cours de L’Academie de Droit International, tome 245, p. 132.

fi liais) enquanto proprietários do navio afundado, pela compensação dos gastos efetuados com a limpeza e recuperação das áreas degradadas; (2) As communes bretãs (espécie de municipalidades francesas), os departamentos administrativos de Côte Du Nord e Finisterre, bem como associações de vítimas e indivíduos (litigantes franceses) ajuizaram ações semelhantes; (3) O departamento de Côte Du Nord e os litigantes franceses também buscaram a responsabilização do grupo Astilleros por negligência na construção do navio junto aos distritos de Nova York e Illinois; (4) Côte Du Nord e a própria Amoco processaram o proprietário do reboque, também por negligência.

O grupo Amoco, por sua vez, na tentativa de partilhar a sua responsabilidade por fato de terceiro, requereu a condenação do grupo Astilleros, pela construção do navio sem condições de navegabilidade, a condenação da sociedade de classifi cação ABS, por ter certifi cado a navegabilidade deste navio enquanto o mesmo apresentava defeitos mecânicos que o colocavam em risco, e a condenação do proprietário do rebocador por negligência na execução do contrato de salvação celebrado.

Quando recebidos os pedidos franceses, a corte distrital norte- -americana se reconheceu competente, com fulcro no artigo III, seção I, de sua Constituição80, que lhe atribui competência internacional direta para a apreciação de casos de direito marítimo, e condenou o grupo Amoco (comandado pela Standard Oil Co.) com base no fato de que as suas fi liais eram 100% comandadas pela Standard Oil Co. Em solidariedade, condenou o grupo Astilleros, por culpa naconcepção e construção do navio. Esta primeira decisão foi interessanteno sentido de não só reconhecer-se diretamente competente para condenar a empresa controladora pelos atos de suas fi liais como o

80 O artigo III, seção I, da Constituição norte-americana traz o seguinte enunciado: “The judicial power of United States shall extend (...) to all cases of admiralty and maritime jurisdiction”.

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fez sem o reconhecimento da limitação de sua responsabilidade81 e desconsideração da canalização, presente na CLC/69.

O grupo Astilleros invocou a doutrina do forum non conveniens ao requerer que o juízo declarasse a sua incompetência ratione personae para condená-la, mas o juízo refutou este argumento ao reconhecer que a sua responsabilidade se deu em razão da negociação e celebração do contrato com o grupo Amoco, que tiveram lugar nos Estados Unidos, o que considerou como passos decisivos na seqüência de eventos que desencadearam o desastre82. A avocação da competência para a condenação da sociedade espanhola se deu, portanto, com base em uma responsabilidade contratual.

Na fase posterior do processo, destinada a fi xação do montante indenizatório, o tribunal em sua decisão de 11 de janeiro de 1988, concluiu pela condenação das partes em 468 milhões de francos (85,2 milhões de dólares), dos quais 380 milhões de francos seriam devidos ao Estado francês e 93,3 milhões devidos às communes bretãs, grupos e sindicatos mistos83. Decisão esta que foi revista após a complementação dos pedidos de indenizações e recursos apresentados pelo Estado francês e pelas communes bretãs. Em 12 de janeiro de 1992, a Court of Appeal de Chicago reformou a decisão

81 Neste pormenor, registe-se que o grupo Amoco requereu a limitação deresponsabilidade não conforme a CLC/69, mas conforme a aplicação da lei norte--americana de limitação de responsabilidade aplicável aos proprietários de navios, editada em 1851. Ao contrário da conclusão extraída para a condenação das três empresas no que concerne o dano, o juiz Mc Garr entendeu que a lei norte-americana só se aplicaria à proprietária direta do navio, não reconhecendo, portanto, a limitação de responsabilidade para as sociedades Standard Oil Co. e a AIOC. Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée..., ob. cit., pp. 45, 54-55.

82 Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée..., ob. cit., p. 50. Nesse sentido, Shynia MURASE observa que diante da ausência de um simples foro alternativo que se mostrasse mais apropriado que qualquer outro, se mostrava evidente que o tribunal estava decidido a reunir todos os processos emergentes deste contencioso em um único foro. Cfr. Shynia MURASE, Perspectives..., ob. cit., p. 378.

83 Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée..., ob. cit., pp. 45-46.

no sentido de aumentar a indenização devida ao Estado francês em 3,5 milhões de francos, pelos custos de limpeza, bem como aumentou a taxa de juros de 7,22% para 11,9% a incidir sobre o valor devido, o que resultou no débito fi nal de 930 milhões de francos devidos ao Estado francês e 210 milhões de francos as communes, a totalizar 1, 27 bilhões de francos84.

No entanto, esta decisão não foi feita completamente com base no direito norte-americano, como desejado pelos litigantes. O tribunal aplicou a CLC/69, enquanto lei francesa na apreciação do dano e legitimidade dos autores, e a aplicou conforme a interpretação da jurisprudência e doutrina francesa. Contudo, a sua adoção não veio a confi gurar uma lex loci delicti commissi. Isso porque, o tribunal a seu ver aplicou a “lei francesa”, não enquanto lei do local do dano, mas conforme a legislação norte-americana, o que veio a trazer resultados não equivalentes se o caso fosse processado e julgado por um juízo francês. Exemplo disso foi a condenação solidária da Astilleros, incabível no sistema de canalização da responsabilidade previsto na CLC/69 (enquanto lei francesa), bem como a apreciação das provas conforme o sistema americano85, que veio a infl uenciar diretamente na quantifi cação e abrangência das indenizações, etc.

A aplicação do direito norte-americano nesta perspectiva (sob o fundamento de inexistirem diferenças materiais com o direito francês) suscitou diversas discussões na doutrina, principalmente no que tange à regra de direito internacional privado aplicada para resolver os confl itos de jurisdição e lei aplicáveis no presente caso.

84 Idem; Il Diritto Marittimo, Ano XCV, vol. IV, pp. 1160 segs.85 Arnaud DE RAULIN observa, neste pormenor, que a apreciação da prova

nos regimes americano e francês são completamente diferentes, em cuja avaliação, o sistema americano se mostra mais cético em relação às provas apresentadas pelas vítimas. Cfr. Arnaud DE RAULIN, L’Epopée..., ob. cit., p. 59.

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MARQUES DOS SANTOS entendeu que no caso foi aplicada a lex fori pelo tribunal, ainda que não fosse a proper Law of the tort, devido o fato de não ter sido provado, no entender do tribunal, que a lex loci delicti comissi tinha um teor diferente da lei do foro86. Rute SARAIVA, por sua vez, reproduziu o entendimento do professor Marques dos Santos com outra conclusão, no sentido de que no caráter facultativo da norma de confl itos referentes à responsabilidade extracontratual, justifi cou-se a aplicação de uma lex favor laesi em contraposição ao declínio da lex loci delicti commissi87.

Esta posição, segundo Oliveira COELHO, é equivocada e se limi-ta à análise do julgado de 11 de janeiro de 1988, o qual não esgotou atemática internacional privatística presente neste caso, que se apresenta como verdadeiro leading case88 do que poderia ser entendido por direito internacional privado da poluição marítima por derramamento de hidrocarbonetos no mar89 e traz uma rica discussão que será tratada a seguir.

Como já afi rmado, a CLC traz consigo a regra do lex loci delicticommissi, ou seja, diante de poluição por hidrocarbonetos, será competente o juízo onde ocorreu o evento danoso. Contudo, neste pormenor, é de fundamental importância fazer uma distinção entre o local da conduta e o local de seus efeitos, remetendo-se o local da conduta para aquele em que ato ilícito foi praticado, o que nem sempre é fácil de identifi car.

86 Cfr. António MARQUES DOS SANTOS, Breves notas..., ob. cit., p. 184.87 Cfr. Rute SARAIVA, Direito Internacional Privado, Responsabilidade

e Ambiente, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Coimbra, 2005, vol. I, p. 668.

88 Cfr. Karl LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1978, p. 484.

89 Cfr. Carlos de Oliveira COELHO, Poluição Marítima por hidrocarbonetos e Responsabilidade Civil, Almedina: Coimbra, 2007, pp. 195-196.

Neste aspecto, Oliveira COELHO90 relembra as observações de Von Bar91, no sentido de que, em se tratando de responsabilidade ambiental, há a possibilidade de sua imputação sem que haja propriamente uma conduta ativa, como ocorre no caso de uma omissão lesiva. Nestas hipóteses, o ato ilícito seria a omissão de uma ação que deveria ter sido praticada e, portanto, o local da conduta remeteria ao lugar onde o responsável tinha o dever legal de ter agido e não o fez.

Ao trazer tais considerações ao caso do Amoco Cadiz, pode-se remeter à decisão de 14 de janeiro de 1992, que entendeu que “as condições de inavegabilidade do navio resultou da omissão em exercer cuidado razoável na manutenção e operação do navio”92. Portanto, reconhecendo-se a omissão lesiva da AIOC, considerada negligente pelo tribunal na razoável execução de sua obrigação de manter e reparar o sistema de lemes do navio (causa próxima da avaria que resultou o desastre), a lex loci delicti commissi poderia ser entendida como sendo a do local onde se situa a sede da AIOC, no caso, Chicago.

De tal forma, neste pormenor, não haveria a necessidade de uma extensão interpretativa para se aplicar a lex fori enquanto norma mais favorável, muito menos o fazer diante da “ausência de prova do direito francês”, como suscitado por Rute Saraiva. Além disso, o direito norte-americano não foi aplicado exclusivamente. O tribunal emseu julgado atentou em verifi car a aplicação da legislação francesa, bemcomo o posicionamento de sua doutrina e jurisprudência sobre os assuntos materiais postos em litígio93. Em razão disso, entende Oliveira

90 Idem, p. 197.91 Cfr. Christian VON BAR, Environmental..., ob. cit., p. 365.92 Cfr. Carlos de Oliveira COELHO, Poluição Marítima..., ob. cit., p. 198,

nota 485.93 Observa Oliveira Coelho que o tribunal aplica o direito francês considerando

as valorações norte-americanas. Cfr. Carlos de Oliveira COELHO, Poluição Marítima..., ob. cit., p. 208.

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COELHO que foi adotado, ainda que não assumido dogmaticamente pelo tribunal, o instituto da adaptação94 sobre as normas materiais do foro, de maneira que a aplicação da lei estrangeira fi cou dependente de requerimento de qualquer dos interessados.

De fato, os litigantes franceses requereram a aplicação do direito norte-americano e o grupo Amoco também se utilizou de seus institutos(v.g. o pedido de limitação de responsabilidade segundo o The Limitation of Liability Act, 46 U.S.C. § 183(a), de 1851), o que veio a ser confi rmado pelo tribunal no sentido de ter aplicado as regras de conduta conforme a autonomia das partes na escolha da lei aplicável, ainda que tacitamente 95. Assim, pode se observar que, embora quisesse a CLC/69 estabelecer um foro delitual exclusivo para a resolução de confl itos decorrentes de poluição marinha por hidrocarbonetos, a mesma falha na determinação de seu conceito de lugar do delito, bem como na possibilidade de sua aplicação em qualquer que tenha sido o local onde foram tomadas medidas para prevenir ou reduzir os seus prejuízos.

Esta abertura dá liberdade ao intérprete para o exercício do forum shopping tanto na perspectiva extracontratual quanto contratual, diante da possibilidade da vítima e/ou proprietário do navio deslocarem o eixo central dos fatos ocorridos para outra realidade geográfi ca completamente estranha ao local impactado.

Este caso demonstra, ainda, a insufi ciência dos mecanismos ressarcitórios disponibilizados aos lesados no sistema da CLC/69, e a inoperatividade de seu regime de canalização de responsabilidade,quando permite a exoneração de responsabilidade por fato de terceiro, novamente abrindo espaço para o alargamento do seu campo jurisdicional para longe do local onde foi sofrido o dano.

94 Sobre adaptação, cfr. António MARQUES DOS SANTOS, Breves Considerações sobre a Adaptação em Direito Internacional Privado, separata dos Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, Lisboa, 1988, p. 60.

95 No sentido de que nenhuma das partes requereu a aplicação do direito francês. Cfr. nota 108.

3.3. Prestige

O incidente do Prestige é destacado neste trabalho por ter sido um caso recente de grandes proporções ambientais, a envolver a jurisdição de quatro países com discussões acerca de litispendência e fórum shopping, além de acionar a atuação do FIPOL.

Em 13 de novembro de 2002, o navio taque Prestige, que navegava com bandeira de Bahamas carregado com 76.972 toneladas de óleo pesado, comunicou que havia começado a vazar óleo nas proximidades de Cabo Finisterra, na região da Galícia espanhola. Seis dias depois, enquanto era rebocado para longe da costa espanhola, o navio partiu em dois e afundou a 260 km de Vigo, liberando cerca de 63.000 toneladas de óleo no mar. Os destroços do navio que, segundo as autoridades espanholas, permaneciam com cerca de 13.800 toneladasde óleo armazenados consigo, continuaram a liberar óleo por semanas que, com o auxílio da ação das correntes e dos ventos dispersaram a mancha de óleo da costa ocidental da Galícia para o Golfo de Biscaia, afetando fortemente também a costa norte de Espanha e França. Além dos 1.900 km de costa franco-espanhola afetadas de Vigo a Brest, foi detectada ainda uma leve e intermitente contaminação do Canal Inglês até o estreito de Dover, na costa britânica96. As operações de limpeza no mar foram realizadas pela Espanha, com o auxílio de navios de mais nove países europeus97, com destaque

96 Cfr. IOPC, The Prestige Incident: IOPC Funds Report. Disponível em http://www.iopcfund.org/prestige.htm. Acesso em: 28.abr.2011.

97 Como resultado da operação, 141.000 toneladas de resíduos oleosos foram retiradas da costa espanhola e 18.300 toneladas foram retiradas da costa francesa, totalizando 159.300 toneladas de resíduos extraídos. Em 2004, o governo espanhol contratou a companhia RepsolYPV para a limpeza do óleo remanescente nos destroços do navio, o que lhe custou mais €109,2 milhões. A compensação das vítimas pelos danos sofridos com o vazamento de óleo foi suportada pelo sistema instituído pelo FIPOL/92, do qual fazem parte Espanha, França e Portugal. Para o caso, em razão da limitação de responsabilidade do proprietário do navio, foram disponibilizados

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para a França e Portugal, principais interessados na contenção da contaminação98.

A London P&I Club99 juntamente com o Fundo, em antecipação ao grande número de processos que surgiriam em decorrência do desastre, criaram duas sedes para o atendimento das vitímas e recebimento dos requerimentos de compensação, nos termos no FIPOL/92 (Claim Offi ces): uma em La Coruña, na Espanha e outra em Bourdeux, na França100.

Diante dos recursos disponibilizados, um imbróglio processual foi constituído em quatro jurisdições distintas: pedidos de compensação feitos diretamente nas sedes de atendimento às vítimas, processos civis e criminais instruídos nas justiças comuns de Espanha, França e Portugal, e uma ação instaurada pelo governo espanhol nos Estados Unidos da América buscando a responsabilização da sociedade de classifi cação do navio.

Sem embargo, além do ajuizamento de pedidos de compensação efetuados diretamente ao Fundo101, houve ainda a apresentação de pedidos à Justiça comum, onde ocorreram inúmeros casos de

€171,5 milhões, sendo €22,3 milhões suportados pela seguradora do proprietário da embarcação (London P&I Club) e os outros €148,7 milhões suportados pelo Fundo adicional do FIPOL/92. Cfr. The Prestige Incident: IOPC Funds Report..., ob. cit.

98 Apesar dos avanços pelo mar, não houve nenhum registro de contaminação da costa portuguesa, prova da efetividade da ação preventiva adotada na operação de limpeza off-shore. Cfr. IOPC, The Prestige Incident: IOPC Funds Report..., ob. cit.

99 A seguradora depositou este montante em 28 de Maio de 2003 em conta judicial aberta em Corcubión, na Espanha, como garantia de não ser cobrando além da limitação de sua responsabilidade.

100 Em 2006 a sede de Bourdeux foi fechada e suas atividades foram transferidaspara Lorient, onde passaram a ser administradas pelos mesmos responsáveis pelo atendimento das vítimas do Erika. Cfr. IOPC, The Prestige Incident: IOPC Funds Report..., ob. cit.

101 Na Espanha, o Fundo foi acionado em 844 processos diretamente requeridos na sede de La Coruña, totalizando €1,08 bilhões, dos quais 14 pedidos são do governo

litispendência, haja vista a existência de procedimentos de compensação em curso. Só na Espanha, dos 4.010 processos instaurados na comarca de Corcubión, 612 foram encerrados por litispendência, haja vista que seus autores já haviam recebido, a título de pagamento provisório, parcela do que foi requerido em sede do regime do FIPOL/92. Contudo, esses casos de litispendência ocorreram em foro doméstico, não acarretando grandes tumultos à resolução do caso.

A grande questão envolvida não se refere à administração do Fundo, haja vista que apesar do grande número de litigantes a sua atuação se limitou a coordenar a distribuição das compensações de forma eqüitativa entre as vítimas e não houve qualquer elemento estranho à jurisdição dos locais preteridos pela CLC/92. O que veio efetivamente tornar este caso emblemático, foi a atuação em paralelo procedida pelo governo espanhol em foro norte-americano, na tentativa de responsabilizar a sociedade classifi cadora do navio em 1 bilhão de dólares à título de compensação cumulada com punitive damages.

espanhol requerendo o valor agregado de €968,5 milhões. Destes pedidos, €67 milhões foram requeridos pelo governo francês pelos custos de limpeza e prevenção. Em relação aos outros pedidos, em 346 requerimentos foram admitidos o pagamento de 30% do montante pedido, o que equivale a €5,3 milhões. 56 pedidos que totalizavam o montante de €3,8 milhões foram indeferidos por falta de demonstração do nexo causal entre a perda apresentada e o incidente danoso.

Em Portugal, o governo português ajuizou em dezembro de 2003 uma ação no Tribunal Marítimo de Lisboa, requerendo o pagamento relativo a €3,3 milhões pelo custos de limpeza e prevenção efetuados. Em fevereiro de 2005, o governo português trouxe novos documentos aos autos que fi zeram com que seu pedido fosse acrescido em €1 milhão. Dos €4,3 milhões requeridos, foram avaliados €2,2 milhões reconhecidos pelo Fundo. O governo português concordou com a avaliação e foram pagos 15% desse valor (€328.488,00), o que não preclui o direito do governo português de receber pagamentos adicionais na hipótese da Comissão Executiva do Fundo aumentar os níveis de pagamento posteriormente. Cfr. IOPC, The Presti-ge Incident: IOPC Funds Report..., ob. cit.

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Como ocorrido no caso Amoco Cadiz, há a tentativa de se escapar da limitação de responsabilidade prevista na CLC/92 por meio da aplicação da legislação norte-americana, no sentido de se buscar indenizações em patamares mais altos por meio do forum shopping, a se cumular, inclusive, a requisição por punitive damages, institutotípico de direito norte-americano, estranho ao regime europeu de responsabilidade (local do dano). Interessante é que o governo espanhol é parte em 14 processos ajuizados diretamente contra o Fundo na Espanha e, busca por este meio, suprir os prejuízos sofridos na identifi cação de terceiros a partilhar a responsabilidade pelo incidente.

Diferentemente do caso Amoco Cadiz, trata-se de uma relação que não envolve o proprietário do navio. O Estado lesado, busca por esta via o reconhecimento de que a sociedade classifi cadora de navios (a American Bureau of Shipping – ABS), enquanto terceiro, foi imprudente na emissão do certifi cado que atestava o bom estado de navegabilidade do navio, tendo, dessa maneira, contribuído para o evento danoso, haja vista que o sinistro decorreu de uma falha mecânica da embarcação. A ABS, por sua vez, opôs uma série de reconvenções requerendo, dentre outras coisas, compensar os potenciais prejuízos que viesse sofrer no litígio com os ganhos obtidos pela Espanha diante do FIPOL.

Não obstante, requereu uma decisão sumária com o argumento de que a Espanha não provou o devido grau de culpabilidade para lhe imputar uma responsabilidade conforme a CLC e, alternativamente, aduziu que a corte não era competente para julgar o caso nos termos da convenção, em que a Espanha e Bahamas são signatários102.

102 “Both prongs of ABS’ motion are focused on the jurisdictional and liability channeling provisions of the CLC. Defendants assert that they are covered by the CLC and argue, fi rst, that Plaintiff cannot prove the standard of knowing and reckless conduct on Defendants’ part that would be required to meet the standard for direct liability under the Convention. Defendants also argue that because Spain’s pollution damage claims against them are covered by the CLC, those

O processo foi julgado pela Corte Distrital de Nova York, em que a juíza Laura Taylor Swain proferiu duas decisões sobre o caso: na primeira, publicada em 2 janeiro de 2008103, a Corte Distrital reconheceu-se incompetente para o tratamento da matéria, conforme o tratamento legal dado pela CLC/92. Esta decisão foi reformada pela Court of Appeal104 no que tange à aplicação da doutrina do forum non conveniens e foi reenviada à Corte Distrital que, em sua revisão, proferida em 8 de março de 2010105, reconheceu a competência do foro norte-americano para a resolução do litígio e declarou, conforme o direito norte-americano, que a sociedade de classifi cação do navio não poderia ser responsabilizada pela poluição ocorrida. Analisemos as decisões.

Na primeira sentença, o tribunal em uma decisão sumária reconheceua aplicabilidade da CLC/92, no sentido de que o artigo III, nº 4, alínea b) incluiria as sociedades de classifi cação de navios enquanto “outra pessoa106 que, não sendo membro da tripulação, preste serviços para

claims can only be adjudicated in Convention signatory fora”. Cfr. Reino de Espana v. The American Bureau of Shipping, Decisão de 02.fev.2008, 03-cv-3578, U.S. District Court, Southern District of New York. Disponível em http://www.ingenierosnavales. com/uploaded/resolucionPrestigeUSAuno.pdf. Acesso em: 05.mai.2011, p. 4.

103 Cfr. Reino de Espana v. The American Bureau of Shipping, Decisão de 02.fev.2008... ob. cit.

104 Cfr. Reino de Espana v. The American Bureau of Shipping, Decisão de 12.jun.2009, 08-0579-cv, U.S. Court of Appeal of the Second Circuit. Disponível em http://www.ca2.uscourts.gov/decisions/isysquery/187b9f2f-7e06-4cab-a1bb-25 d6fdb4c148/1/doc/. Acesso em: 07mai.2011.

105 Cfr. Reino de Espana v. The American Bureau of Shipping, Decisão de 08.mar.2010, 03-cv-3573, U.S. District Court, Southern District of New York. Disponível em www.ingenierosnavales.com/.../sentencia%20prestige%20%20Agosto%20%202010.pdf. Acesso em: 05.mai.2011.

106 O argumento de defesa da Espanha de que o termo “pessoa” neste dispositivo apenas aplicaria às pessoas naturais foi afastado com base no artigo I, nº 2 da CLC, que reconhece enquanto “pessoa”, “qualquer pessoa física ou pessoa moral de direito público ou de direito privado, incluindo o Estado e as suas subdivisões políticas”. Cfr. Manuel Januário da Costa GOMES, Leis..., ob. cit., p. 931.

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o navio” e, portanto, tais sociedades não poderiam responder por nenhum pedido de reparação decorrente do ato de poluição, a não ser que “o prejuízo resulte de ação ou omissão destas pessoas com a intenção de causar tal prejuízo ou por imprudência e com o conhecimento de que tal prejuízo poderia vir a ocorrer”107. Além disso, a juíza reconheceu que a Corte de Nova York, enquanto tribunal norte-americano, não seria competente para o processamento e julgamento do caso, nos termos do artigo IX, nº 1, da CLC/92, por entender que o referido artigo atribui jurisdição exclusiva aos Estados contratantes para processar e julgar os casos referentes aos eventos ocorridos em seus territórios e a sua inobservância se assemelharia ao descumprimento de uma obrigação contratual por parte do Estado signatário.

A Espanha recorreu desta decisão alegando, em suma, que a CLC/92 não seria capaz de retirar a jurisdição material de uma corte federal norte-americana, posto que os EUA não são signatários desta convenção, não estando obrigados, portanto, aos seus termos108.

A Court of Appeal of the Second Circuit apreciou o recurso e lhe deu provimento. Em seus fundamentos, no entanto, observou que o provimento do recurso não signifi ca que a corte distrital

107 “The undisputed factual record, even when read in light most favorable to Spain, clearly indicates that ABS is a person who, without being a member of the crew, performed services for the Prestige within the meaning of CLC Article III(4). Accordingly, the CLC is applicable to Spain’s claims against ABS in this action”. Cfr. Reino de Espana v. The American Bureau of Shipping, Decisão de 02.fev.2008, ob. cit., p. 5.

108 Acerca da efi cácia de convenções internacionais perante terceiros, o professor Fernando Loureiro Bastos identifi ca a sua possibilidade em algumas espécies de convenções ambientais, que infl uenciam a esfera de terceiros por meio da estipulação de obrigações para as partes contratantes. No entanto, não é o caso da CLC/69-92. Sobre a efi cácia dos tratados perante terceiros, Cfr. Fernando Loureiro BASTOS, Algumas considerações sobre a produção de efeitos dos tratados de protecção do ambiente no espaço marinho, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 301-342, in Separata de Estudos em homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, vol. 4, pp. 301 segs.

norte-americana teria de aplicar necessariamente a sua jurisdição para o caso. Isso dependeria de uma análise perfunctória da aplicação da doutrina do forum non conveniens e da cortesia internacional (comity), que deveria ser propriamente realizada em primeira instância. Na eventualidade desses institutos não acarretarem em sua impronúncia, observou que caberia à Corte analisar qual legislação seria aplicável ao caso e decidir sobre o mérito da questão. Com base nisso, o tribunal não se estendeu na análise do litígio, concluindo que o juízo de primeira instância errou ao considerar que a CLC privou a aplicação de sua jurisdição material e reenviou o processo para a sua revisão.

Recebido o processo, a Corte distrital de Nova York, em atendimento ao reenvio efetuado pela Court of Appeal of the Second Circuit, reconheceu-se competente com base nos §§ 1332 e 1333, 28 U.S.C, que atribuem jurisdição exclusiva às Cortes dos estados norte-americanos para processar e julgar ações civis em direito marítimo109 e reconheceu que, em se tratando de uma ação cujo valor indenizatório pleiteado supera 75.000 dólares e possuam elementos de internacionalidade, o processo será julgado originariamente por uma Corte distrital. Nessa esteira, reconheceu também ser aplicado o direito norte-americano para a resolução do litígio.

Vejamos a situação do réu antes de se aprofundar a discussão desta decisão: A ABS tem a sua sede principal em Houston, Texas (EUA), porém é registrada conforme as leis de Nova York, uma vez que a sua sede anterior se situava naquela cidade. Não obstante, a realização de suas atividades de certifi cação e inspeção de navios

109 28 U.S.C, § 1333: “The district courts shall have original jurisdiction, exclusive of the courts of the States, of: (1) Any civil case of admiralty or maritime jurisdiction, saving to suitors in all cases all other remedies to which they are otherwise entitled: (2) Any prize brought into the United States and all proceedings for the condemnation of property taken as prize”. Disponível em http://codes.lp.fi ndlaw.com/uscode/28/IV/85/1333. Acesso em: 08.mai.2011.

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é efetuada em seus escritórios situados em Hong Kong e Cantão, na China, e em Dubai e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.

O Prestige realizava as suas vistorias especiais e obrigatórias (special and statutory surveys) para a emissão de sua classifi cação, válida por cinco anos, em Cantão, na China. Esta certifi cação foi emitida pela sede de Houston, EUA, em 2001. As suas vistorias anuais obrigatórias para certifi cação de classe (annual and statutory class surveys), todavia, eram realizadas em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos, que emitia a sua própria certifi cação, tendo esta, inclusive, sido a última realizada pelo navio cinco meses antes do incidente. Para navegar conforme a bandeira de Bahamas, o Prestige precisava destes dois certifi cados.

Posto isso, a Espanha argumentou ser a lei norte-americana aplicável ao caso, uma vez que a ABS é uma empresa norte-americana e o ato objeto do processo teria decorrido de sua sede estadunidense, queconcentra e coordena as atividades de seus escritórios. Alternativamente, aduziu ser aplicável a legislação espanhola, dado que o lesado foi o Estado soberano da Espanha. A ABS, por sua vez, alegou ser aplicável a lei do Estado de bandeira, no caso, as Bahamas, posto que os atosobjeto do processo foram praticados em diversas localidades do globo e o Estado das Bahamas teria maior proximidade com a causa, uma vez que é o principal interessado na regulação das sociedades que reconhecidamente certifi cam a navegabilidade de seus navios. Alternativamente, defende a aplicação das legislações chinesa e dos Emirados Árabes Unidos, uma vez que as atividades objeto do litígio foram praticadas nestes países.

Diante desta realidade, a Corte realizou uma análise de precedentes e concluiu no sentido de que, como o réu não é o proprietário do navio e não existe nenhuma relação contratual entre as partes (tort liability), o fato mais relevante para a eleição da lei aplicável ao caso é o fato de uma das certifi cações necessárias para a navegação do navio ter sido emitida pelo escritório norte-americano controlador das demais empresas, o que conduz à concepção de que o ato ilícito objeto da ação foi praticado por um sujeito norte-americano nos

EUA. Esta conclusão, a exemplo do caso Amoco Cadiz, se pauta na idéia de que o local do incidente foi meramente fortuito, a justifi car o afastamento de uma verifi cação geográfi ca quanto ao local do dano em detrimento da responsabilidade da empresa controladora pelos atos de suas fi liais.

Tendo reconhecido a sua jurisdição e lei aplicável sobre o caso, a Corte em seu juízo de mérito entendeu que, diante da inexistência de precedentes que condenem uma sociedade de classifi cação enquanto terceiro responsável por poluição decorrente de falhas no navio, acompanhado dos precedentes que reconhecem que a inspeção/vistoria realizada por tais entidades se dirige tão somente ao proprietário do navio, que é o responsável fi nal por todos os elementos relacionados à embarcação, não existem elementos sufi cientes a justifi car a condenação da sociedade. Seu posicionamento foi reforçado pela desproporcionalidade existente entre o valor da inspeção e o risco que seria assumido por tais instituições, caso pudessem ser reconhecidas enquanto terceiros responsáveis.

Portanto, como ocorrido no caso do Amoco Cadiz, a abertura dos conceitos presentes na CLC/92, permitem a prática do forum shopping, que tem sido aceite nos tribunais norte-americanos, ao menos em relação ao reconhecimento de sua jurisdição e lei aplicável, desde que reste demonstrada a participação de uma empresa norte-americana enquanto controladora de um grupo.

3.4. M/V Louisa

O caso M/V Louisa merece destaque não só por se tratar do único caso selecionado envolvendo um confl ito entre Estados, mas por trazerconsigo uma recente e rica discussão acerca da jurisdição do ITLOS para promover a liberação de navios apreendidos por meio de um provimento cautelar (provisional measure) com fundamento na constatação de risco ao ambiente marinho causado por hidrocarbonetos.

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Em 23 de novembro de 2010, São Vicente e Granadinas opuseram um processo ao ITLOS contra a Espanha, com base nos artigos 287º, nº 1, alínea a) e 290º, nº 1 da UNCLOS, requerendo o provimento de uma medida cautelar para a liberação dos navios MV/Louisa e Gemini III e a devolução dos materiais que neles se encontravam quando foram apreendidos pelas autoridades espanholas na baía de Cádiz em fevereiro de 2006, sob as alegações de violação do patrimônio histórico-cultural submerso espanhol, do cometimento de infrações ambientais marinhas e de porte de armas ilegais a bordo do navio.

Em seus fundamentos, sustentou a violação por parte da Espanha dos artigos 73º, 87º, 226º, 245º e 303º, da UNCLOS, que teriam acarretado para si um prejuízo não inferior a 10 milhões de dólares. Porém, seu principal argumento foi a potencialidade de graves danos ambientais na baía de Cádiz em razão das precárias condições que os navios se encontram (supostamente sem manutenção desde a data de sua apreensão) e de haver grande quantidade de hidrocarbonetos armazenados no MV/Louisa. Ainda, justifi cou que a apreensão dos navios e detenção da tripulação foi ilegal uma vez que a empresa proprietária dos navios teria licença de pesquisa para a verifi cação da existência de petróleo e gás metano na região. Por estas razões requereu provisoriamente a admissão do pedido, o reconhecimento de violação por parte da Espanha da legislação marítima apontada, a imediata liberação dos navios, a devolução do material apreendido e a declaração de que a detenção da tripulação do navio foi ilegal.

Em sua resposta a Espanha alegou o descabimento do pleitopretendido tanto formal quanto materialmente. No plano formal sustentou a violação ao devido processo legal ao pretender uma decisão de mérito (procedimento de liberação de navio) por meio de um provimento incidental. Argumentou que, por se tratar de um processo ajuizado com base no artigo 290º, nº 1 e, portanto, pendente de confi rmação posterior, não poderia o mesmo por meio de uma decisão prima facie vir a prejudicar nenhum processo internacional ou doméstico em andamento pautado nos mesmo fatos e demonstrou que há um processo criminal em andamento para a apuração destes

fatos em Cádiz. Sustentou também que a requerente não foi capaz de satisfazer os requisitos legais para o reconhecimento da jurisdição prima facie do ITLOS, nem cumpriu os requisitos dos artigos 283º e 295º da UNCLOS, além de não ter demonstrado a urgência do pedido e falhado em provar a necessidade do provimento para se evitar graves danos ambientais até a decisão fi nal. Neste pormenor, destacou que a Capitanía marítima de Cádiz tem monitorado a situação dos navios, com especial atenção aos hidrocarbonetos ali armazenados, além de possuir um protocolo de ação diante de qualquer ameaça ambiental que venha a surgir na Baía de Cádiz, razão pela qual a liberação dos navios não seria a única via necessária para se proteger o ambiente local das ameaças que os navios apresentam.

No plano material aduziu que a medida pretendida necessariamente pressupõe um julgamento de mérito e que o seu atendimento não respeitaria o equilíbrio entre as partes em litígio, uma vez que o provimento para a liberação do navio e devolução do material apreendido inviabilizaria a justiça criminal espanhola de exercer a sua função jurisdicional pelo esgotamento dos elementos de convicção do juízo juntados aos autos. Alegou ainda, que a apreensão do navio e dos materiais encontrados a bordo somente foi procedida por decisão judicial, depois de verifi cada a existência de material arqueológico,armas ilegais e equipamentos de “caça ao tesouro” no navio, o que demonstrava a prática de danos ao sítio arqueológico submerso encontrado no local pela sua exploração sem a adoção dos devidos rigores científi cos para tanto.

Em sua decisão preliminar o ITLOS reconheceu a sua jurisdição prima facie para a apreciação do pedido, contudo, entendeu pela sua improcedência110 em razão de entender pela inexistência de gra-ves ameaças ao ambiente no momento, haja vista o compromisso as-

110 17 votos contra 4. Os votos contrários foram dos juízes WOLFRUM, TREVES, COT e GOLITSYN. Houve ainda uma opinião em separado emitida pelo juiz PAIK.

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sumido pela Espanha de monitorar e acompanhar os navios atracados em seus portos. Essa decisão em nada afeta os direitos das partes, que terão um posicionamento fi nal sobre seus argumentos somente na decisão de mérito.

Apesar do ITLOS em seu acórdão não ter enfrentado os problemas de jurisdição levantados pela Espanha, merecem destaque os votos vencidos dos juízes WOLFRUM, TREVES, COT e GOLITSYN e a opinião separada proferida pelo juiz PAIK111, onde há um minucioso tratamento da jurisdição prima facie do ITLOS e do procedimento incidental para o provimento de medidas cautelares diante de ameaças ambientais.

No entendimento dos juízes, cujo voto foi vencido, o ITLOS carece de jurisdição prima facie para o tratamento do caso. Para tanto, fundamental se faz voltar os olhos para as declarações feitas pelos países signatários, nos termos do artigo 287º, da UNCLOS. No caso, ambos os países reconhecem a jurisdição do ITLOS com algumas peculiaridades, São Vicente e Granadinas depositou a sua declaração em 22 de dezembro de 2010, reconhecendo a jurisdição do ITLOS apenas para a resolução de disputas relacionadas ao arresto e detenção de seus navios, enquanto a Espanha prevê a jurisdição do ITLOS para a aplicação e interpretação da UNCLOS, desde 2002.

Com base nisso, há de se asseverar que a jurisdição do tribunal em relação a São Vicente e Granadinas é deveras limitada, só podendo ser acionada diante de confl itos relativos ao arresto e detenção de navios que navegam com sua bandeira. Desse modo, a jurisdição do tribunal se limita ao tratamento do Louisa, posto que o Gemini III, nunca navegou com a bandeira daquele Estado.

111 Cfr. ITLOS, M/V Louisa, Dissenting opinion of judge Wolfrum; Dissenting opinion of judge Treves; Dissenting opinion of judge Cot; Dissenting opinion of judge Golitsyn; e Separate opinion of judge Paik. Todos disponíveis em www.itlos.org. Acesso em: 12.mar.2011.

Em seu voto, o juiz WOLFRUM sustenta a inexistência de jurisdiçãoprima facie do ITLOS ao reconhecer que dentre os argumentos levantados pelo requerente, não há qualquer verossimilhança que possa vir a garantir uma futura decisão de mérito. Nesse sentido, apoiado na jurisprudência do TIJ, sustenta que para que qualquer corte internacional possa assumir sua jurisdição prima facie perante um caso, não basta a existência de argumentos em abstrato, mas há a necessidade de se verifi car a potencialidade de vir a se decidir o caso no mérito. Isso porque, para se proferir uma decisão cautelar, fundamental se faz que haja um juízo de confi rmação posterior, quando da análise do mérito e não havendo elementos que possa demonstrar a verossimilhança das alegações do autor quanto esta potencialidade, não haveria razão para se reconhecer a jurisdição prima facie desta Corte.

Outrossim, o juiz observou que o requerente apontou a violação do artigo 73º, da UNCLOS em relação à apreensão do Louisa. Nesse pormenor, observa que tal dispositivo se refere à apreensão de navios que tenham violado normas de gestão e conservação de recursos vivos na zona econômica exclusiva dos Estados costeiros, não tendo, portanto, nenhuma relação com o caso, posto que o Louisa fora apreendido por violação ao patrimônio cultural submerso espanhol, nãohavendo em se falar, portanto, de recursos vivos e, conseqüentemente, em jurisdição do ITLOS para o mérito deste ponto112.

Em relação ao artigo 87º, da UNCLOS, o requerente alegou que, com a apreensão do navio, a Espanha violou a sua liberdade de navegação em alto mar. Ocorre, contudo, que esta liberdade está condicionada ao cumprimento das normas internacionais e, como registrado, o navio foi apreendido em decorrência de persecução

112 Cfr. ITLOS, M/V Louisa, Dissenting opinion of judge Wolfrum..., ob. cit., p. 6.

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criminal, o que legitimaria a conduta do Estado Costeiro, esvaziando-se a força deste argumento para um potencial juízo de mérito113.

Além destes elementos, o juiz TREVES apontou a inexistência de um confl ito capaz de invocar a competência do ITLOS. Com base na jurisprudência do TIJ, o juiz demonstra que para que o ITLOS seja reconhecido competente para a apreciação do pedido, fundamental se faz a existência de um litígio acerca da interpretação e aplicação da UNCLOS antes da apresentação do pedido114, bem como que as partes tenham atendido ao disposto no artigo 283º da UNCLOS, no sentido de que a parte autora buscará resolver o litígio por meios pacífi cos antes de ajuizar uma demanda perante o tribunal, o que, a seu ver, não ocorreu115.

O juiz PAIK, ao contrário, concorda com a parte operativa da decisão do tribunal e traz em sua opinião em separado o enfrentamento das questões acerca da jurisdição prima facie. A seu ver, conforme fi cou estabelecido no caso M/V Saiga (nº 2), concorda com os votos em contrário acerca da necessidade de se verifi car a possibilidade de proferir uma decisão de mérito sobre a questão para o reconhecimento da jurisdição prima facie do tribunal. No entanto, ao menos em relação ao artigo 87º da UNCLOS, entendeu que o requerente atendeu tal requisito, haja vista que não há a necessidade de certeza neste pormenor, mas tão somente um juízo de verossimilhança. Ademais, entendeu que apesar da existência de jurisdição prima facie, não existem elementos sufi cientes a justifi car o provimento cautelar, posto que o laudo pericial apresentado não fora capaz de demonstrar as sérias ameaças que o ambiente sofreria diante da permanência

113 Idem. No mesmo sentido, os juizes GOLITSYN e COT. Cfr. ITLOS, M/V Louisa, Dissenting opinion of judge Cot..., ob. cit., p. 5; M/V Louisa, Dissenting opinion of judge Golitsyn..., ob. cit., p. 5.

114 Cfr. ITLOS, M/V Louisa, Dissenting opinion of judge Treves..., ob. cit., p. 3.115 Elemento também apontado pelo juiz GOLITSYN. Cfr. ITLOS, M/V Louisa,

Dissenting opinion of judge Golitsyn..., ob. cit., pp. 2-3.

da apreensão do navio no porto de Santa Maria. Em maio de 2013, ao analisar o mérito da demanda, o Tribunal entendeu pela manutenção da decisão preliminar acerca do não reconhecimento da jurisdição do ITLOS para o caso116.

Vê-se, portanto, que além dos problemas enfrentados no seio do Direito Internacional Privado quanto a competências concorrentes e lacunas acerca da lei aplicável para a resolução de litígios ambientais marinhos, há o surgimento de problemática quanto ao acionamento de cortes internacionais em sobreposição às domésticas. Neste caso, ainda que perante um processo criminal em andamento na Espanha, com fortes indícios da prática de crimes que justifi cariam a apreensão de seus instrumentos, o Estado de bandeira, reconhecido enquanto bandeira de conveniência buscou a liberação da embarcação em outro foro distinto do doméstico, onde os esforços dos interessados não obtinham êxito.

Este litígio, é um exemplo de um novo problema do contencioso internacional marinho, em que diante de casos com baixa probabilidade de êxito em instâncias internas, Estados que oferecem bandeiras de conveniência venham a patrocinar os interesses de seus clientes perante cortes internacionais em que estes não teriam acesso117, muitas vezes, vindo a suscitar matérias de cunho ambiental como o ocorrido.

116 Disponível em https://www.itlos.org/fi leadmin/itlos/documents/press_releases_english/PR_193_E.pdf.

117 Verifi ca-se esta tendência no recentíssimo caso do M/V Virginia G (Panamá vs. Guiné Bissau), instaurado em sede do ITLOS, onde o Estado de bandeira busca a reparação de supostos danos patrimoniais causados a um petroleiro espanhol apreendido pelo governo da Guiné Bissau quando procedia com o abastecimento de navios pesqueiros dentro de sua ZEE. Cfr. ITLOS, M/V Virginia G, Press release,disponível em http://www.itlos.org/fi leadmin/itlos/documents/press_releases_english/ pr_168_E.pdf». Acesso em: 05.jul.2011; ITLOS, M/V Virginia G, Notifi cation of Special Agreement, disponível em http://www.itlos.org/fi leadmin/itlos/documents/ cases/case_no.19/Notifi cation_submitted_by_Panama.pdf. Acesso em: 02.ago.2011.

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4. Considerações finais

A fragmentação do Direito Internacional traz refl exos diretos ao contencioso internacional ambiental ao dissipar o seu tratamento para diversas jurisdições distintas, porém, com competências sobrepostas, e permitir, dessa forma, a prática de forum shopping, bem como a ocorrência de decisões contraditórias decorrentes de processos simultâneos ou sucessivos.

Os casos tratados, embora homogêneos no que tange a tipologia do incidente ambiental enfrentado, trazem consigo uma heterogeneidade histórica que demonstram peculiaridades na sua resolução conforme o sistema legal e regimes vigentes e a sua contribuição para o desenvolvimento legislativo da matéria.

No caso do Torrey Canyon, observa-se que, diante da ausência de instrumentos internacionais para tratar deste tipo de incidente, a tentativa de sua resolução pelo regime dos países afetados não se mostrava como a melhor via, não só pela difi culdade de seu processamento e julgamento, como pela possibilidade de se gerar decisões distintas para um mesmo fato, o que se afasta da concepção de isonomia e de justiça. Em resposta a este incidente, houve a união de esforços para um tratamento unifi cado em sede internacional para este tipo poluição por meio da edição da CLC/69 e da convenção sobre intervenção em alto-mar. Tal propósito, contudo, não foi atendido de forma plena, dado que a CLC não foi ratifi cada por Estados importantes como os EUA.

No caso do Amoco Cadiz, já na vigência da CLC/69, observa-se a prática de forum shopping por meio do ajuizamento das ações indenizatórias no foro dos EUA com o intuito de não se aplicar a convenção para um fato ocorrido em território dos Estados contratantes. Por meio da aplicação da teoria do lifting the coorporate veil, houve o reconhecimento da jurisdição das cortes norte-americanas, que aplicaram a sua lei para a resolução do litígio.

Observa-se, portanto, que, embora quisesse a CLC/69 estabelecer uma jurisdição exclusiva para a resolução de seus confl itos, pautada no local do dano, a mesma falha na abertura dada ao conceito de “local do delito”, de modo a permitir que o intérprete desloque o eixo central dos fatos ocorridos para outra realidade geográfi ca completamente estranha ao local impactado, onde, inclusive, a sua efi cácia não é respeitada.

No incidente do Prestige observa-se esta prática com base nos mesmos pressupostos do Amoco Cadiz. Porém, além da aberturaverifi cada quanto ao local do delito, constatou-se a fragilidade do sistema de canalização de responsabilidade da CLC/92 no que tange as brechas acerca da imunidade de terceiros quanto a possibilidade das pessoas que não se encontrem nomeadas nas alíneas do artigo III, nº 4 (v.g. sociedades de classifi cação, construtor do navio) serem demandadas diretamente pelas vítimas. Esta abertura, não só abre outro espaço para o direcionamento da ação para longe do local do dano (e longe da aplicação da lex loci delicti commissi), como para a identifi cação de vários responsáveis virtuais capazes de tornar a resolução do confl ito lenta e onerosa para as partes, ao contrário do objetivado na convenção.

Vê-se, assim, que a regulamentação internacional acerca da responsabilidade por poluição por hidrocarbonetos vem a reboque dos incidentes catastrófi cos presenciados pela humanidade. A sua insufi ciência tem servido de justifi cativa para a busca por parte das vítimas por outros regimes de responsabilidade, em especial, o sistema norte-americano que, como vimos, possui jurisdição internacional para o tratamento de matérias de Direito Marítimo. Para tanto, basta a demonstração do nexo de causalidade entre o dano e um elemento de conexão situado em território norte-americano.

Já no M/V Louisa, vemos uma tentativa que indica uma nova problemática para o contencioso internacional ambiental marinho, em que Estados reconhecidos enquanto bandeiras de conveniência, possam vir a se utilizar de cortes internacionais para buscar decisõesque não foram conseguidas em sede do Direito Internacional Privado

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em favor dos proprietários dos navios que arvoram a sua bandeira. Embora esta prática não chegue a constituir uma hipótese pura de litispendência ou de sucessivos processus, haja vista a inexistência de identidade de partes, o seu efeito prático é equivalente, uma vez que ocorre a representação do proprietário do navio pelo Estado ao buscar a liberação de uma embarcação que não é propriedade sua, mas apenas é registrada em seu território.

Capítulo VI

Actos de guerra contra a população civil: uma catástrofe tecnológica?

Rita Madeira

Jurista

Sumário: 1. Introdução; 2. O conceito de catástrofe tecnológica: problemas de defi nição; 2.1. A catástrofe tecnológica, a catástrofe ambiental e acatástrofe humanitária; 2.2. A gestão de catástrofes tecnológicas como gestão de risco; 3. Confl itos armados e direito(s) das catástrofes; 3.1. A guerra como catástrofe; 3.2. A guerra, a tecnologia e a tecnologia de guerra; 3.3. Os efeitos catastrófi cos dos confl itos armados na população civil; 4. Confl itosarmados e direito aplicável; 4.1. Normas e princípios basilares de direitointernacional humanitário; 4.2. Actos armados contra a população civil; 4.2.1. No contexto de confl itos armados internacionais; 4.2.2. No contexto de confl itos armados não internacionais; 4.2.3. Fora do âmbito do direito internacional humanitário; 4.2.3.1. Confl itos transnacionais; 4.2.3.2. Actos de terrorismo; 4.2.3.3. Uso de drones para execuções sumárias; 5. O elemento intencional de um acto armado contra civis; 6. A impunidade e a era mediática: os limites do Direito Internacional; 7. Considerações

fi nais.

1. Introdução

Desde o início dos tempos que a humanidade é constantemente confrontada com a mudança. Adapta-se, altera-se, nega-a, aceita-a, mas prossegue sempre incorporando o que de novo acontece neste nosso pequeno planeta. Nos últimos dois séculos, particularmente nos últimos setenta anos, a tecnologia tem evoluído de forma crescente e conquistado um lugar proeminente na vida em sociedade tal como a conhecemos hoje. Se cada nova mudança traz novos desafi os e difi culdades, a imiscuição exponencial da tecnologia em cada

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aspecto das nossas vidas não poderia deixar de ter um enorme impacto, quer na própria interacção dos indivíduos, quer nos fenómenos maiores que caracterizam as sociedades humanas.

Um desses fenómenos, presente desde os primórdios das civilizações,é a guerra. Embora hoje designada de outra forma – como veremos, sob a perífrase eufemística confl ito armado – a guerra permanece um fenómeno recorrente da sociedade contemporânea. Tal como os restantes aspectos da actualidade, também a guerra foi profundamente afectada pela tecnologia a ponto de nos fazer questionar de que forma ambos os conceitos se interligam.

Assim, considerando o interesse e o tema geral desta publicação – as catástrofes tecnológicas – pareceu-nos pertinente indagar quaisas ligações estabelecidas entre o fenómeno catastrófi co, em particular aquele que envolve a utilização de tecnologias, e os actos armadoscontemporâneos, que como se sabe compreendem também o recurso a armas altamente tecnológicas e sofi sticadas. Para tentar estabelecer tais elos, pareceu-nos essencial colocar três ordens de questões: em primeiro lugar, o que caracteriza as catástrofes tecnológicas e como distingui-las de outro tipo de catástrofes? Depois, o que caracteriza a guerra contemporânea e será esta perspectivada sob o prisma de uma catástrofe? Finalmente, poderá a utilização massiva de armas, especialmente contra civis, no âmbito de um confl ito armado ser classifi cada como uma catástrofe tecnológica?

Para tentar dar resposta a estas questões, começaremos por analisar de forma breve, no ponto 2., o conceito de catástrofe e as suas possíveis subdivisões em tipos catastrófi cos diferentes. Procuraremos extrair dessa breve análise as características de uma catástrofe tecnológica e o elemento essencial que a distingue dos restantes tipos.

De seguida, em 3., iremos abordar o fenómeno da guerra e a sua ligação com o conceito de catástrofe. No ponto 3.1. averiguaremos especifi camente se a guerra é hoje perspectivada como fenómeno catastrófi co e, se sim, por que razões. As interdependências entre a guerra e a tecnologia serão discutidas no ponto 3.2., bem como a evolução da prática da guerra, cujo quadro resultará do ponto 3.

como um todo. No ponto 3.3. iremos abordar uma das principais novidades da guerra contemporânea, que consiste no forte impacto que esta tem sobre a população civil. Este será o enfoque específi co da nossa investigação.

Passaremos então para a caracterização do quadro jurídico- -internacional aplicável a situações de confl itos armados, a que dedicaremos todo o ponto 4. No ponto 4.1. analisaremos as normas basilares do ramo de direito internacional em causa – o direito internacional humanitário – e no ponto 4.2. e respectivos subpontos iremos destacar normas específi cas aplicáveis aos dois grandes tipos de confl itos nele previstos: os confl itos armados internacionais e os confl itos armados não internacionais. Iremos ainda abordar perfunctoriamente certo tipo de actos armados contra civis que se situam numa zona de fronteira e que, como tal, suscitam de igual modo algumas questões relativamente à sua potencial caracterização como catástrofe tecnológica.

Em 5., procederemos à distinção entre a lógica inerente às actividades no âmbito das quais se produzem catástrofes tecnológicas e a dos actos armados contra populações civis perpetrados no âmbito de um confl ito armado. Deste modo, esperaremos tornar mais claraa questão da possibilidade (ou impossibilidade) de estes serem considerados uma catástrofe por si só, independentemente de se encontrarem já regulados pelo direito internacional humanitário.

Finalmente, no ponto 6., sistematizaremos as grandes alterações detectadas na prática contemporânea da guerra, bem como os limites do direito internacional face a este tipo de fenómenos. Após este percurso, estaremos em condições de apresentar, em notas fi nais, as nossas conclusões relativamente às três ordens de questões que colocámos no início desta investigação.

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2. O conceito de catástrofe tecnológica: problemas de definição

O conceito de catástrofe é um conceito que aterroriza os juristas. De facto, como bem detecta Robert L. Rabin1, qualquer sistema jurídico está pensado e desenhado para lidar com acontecimentos previsíveis e regulares, quer se trate de incidentes privados, na relação entre cidadãos, quer se trate de incidentes de carácter público, na relação destes com o Estado. Pelas suas características intrínsecas – manifestamente patentes na lentidão com que o direito reage às evoluções sociais, científi cas, tecnológicas... – e pela sua tendencialestabilidade, o direito não está preparado para lidar com o desconhecido e com o imprevisto. Ora, como esclarece o mesmo autor, situações massifi cadas de desastres, independentemente da forma concreta de que estes se revistam, atingem precisamente essa grande vulnerabilidade que afecta os sistemas jurídicos e que consiste em não conseguir dar resposta a situações de excepção. Perante o caos e a desordem, o direito colapsa na sua função de ordenamento social, restando-lhe esperar que a ordem seja restabelecida para voltar a produzir os seus efeitos.

Esta característica, plenamente visível no contexto de direitointerno, torna-se menos patente no âmbito do direito internacional, que pela sua própria natureza é menos ordenador do que conciliador e regulador das relações jurídicas internacionais. E contudo, também os internacionalistas tremem perante o conceito de catástrofe, não tanto pela sua imprevisibilidade, mas sobretudo pela sua amplitude e pela amálgama de ramos especiais de direito internacional que convoca, e não é sem difi culdades que se aborda o tema. Com efeito, como afi rma David D. Caron2: “the notion of catastrophe can begin to embrace too much to be a manageable lens for discussion”.

1 Robert L. RABIN, Dealing with Disasters: Some Thoughts on the Adequacy of the Legal System, Stanford Law Review, vol. 30 (1977-1978), p. 297.

2 David D. CARON, Addressing Catastrophes: Confl icting Images of Solidarity and Separatness, in Les Aspects Internationaux des Catastrophes Naturelles et

O primeiro problema surge logo com a tentativa de defi nição de catástrofe. O que pode ser englobado neste conceito? Ou, dito de outra forma, o que é este conceito para o direito internacional? Que tipos de catástrofe podemos antever? Como deve o direito internacional lidar com as catástrofes? A tendência é, como vemos, a de cada questão levantada apresentar um grau de complexidade sucessivamente maior, pelo que não é de estranhar, como se disse, que o próprio conceito assuste qualquer internacionalista e que poucos sejam os que se aventuram por meandros (potencialmente) catastrófi cos.

Contudo, e apesar destas difi culdades, alguns autores3 tiveram a coragem de aventar uma possível defi nição do conceito de catástrofe, apresentando também possíveis sistematizações dos diferentes tipos de catástrofe consoante os seus denominadores comuns. A tipologiamais frequente divide as catástrofes em razão da sua origem, ou seja, em catástrofes naturais e catástrofes tecnológicas, embora alguns autores admitam também a existência de catástrofes mistas/complexas e de catástrofes intencionais4. Uma outra sistematização, porventura mais feliz, distingue as catástrofes com origem humana das catástrofes com origem não humana5, admitindo igualmente a hipótese de causas mistas ou concorrentes.

Industrielles/The International Aspects of Natural and Industrial Catastrophes, Direction David D. Caron, Charles Leben, The Hague: The Hague Academy of Law, 2001, p. 10.

3 Veja-se o excelente trabalho da Academia de Direito Internacional da Haia (Les Aspects Internationaux des Catastrophes Naturelles et Industrielles/The International Aspects of Natural and Industrial Catastrophes, Direction David D. Caron, Charles Leben, The Hague: The Hague Academy of Law, 2001), particularmente o texto de Charles Leben, onde se apresenta a seguinte defi nição de catástrofe, fruto de um trabalho conjunto de investigadores daquela Academia: La catastrophe (...) [est] un événement souvent imprévisible ou une situation durable qui produit des dommages immédiats ou différés aux personnes, aux biens ou à l’environnement, et d’une ampleur telle qu’ils appellent une réaction solidaire de la communauté nationale et/ou internationale – v. Charles LEBEN, cit., p. 9.

4 David D. CARON, ob. cit., p. 11.5 Charles LEBEN, ob. cit., pp. 38 segs.

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Ora, tratando este ponto da difi culdade de defi nir o conceito de catástrofe tecnológica, por que razão se mencionam aqui as difi culdades de sistematização tipológica das catástrofes em geral? Interessa saber se uma catástrofe é tecnológica, se tem origem humana ou se é mista?

Para efeitos de regime jurídico, uma vez que (ainda?) não existe um ramo de direito internacional que tenha por objecto específi co as catástrofes6, tais considerações poderão parecer despiciendas. Contudo, e porque mesmo intuitivamente compreendemos que um sismo é diferente de um acidente nuclear (embora ambos possam concorrer para uma mesma catástrofe, como se viu recentemente no Japão), suscitando questões jurídicas diferentes, será certamente proveitoso partir para a análise destas difi culdades com a ideia de que a dicotomia catástrofe natural/catástrofe tecnológica não será a única possível, admitindo-se outras classifi cações ou desdobra-

6 Na verdade, estaremos ainda muito longe de isso vir a acontecer... No estado actual do direito internacional, como diz David Caron, [t]he international legal order regarding catastrophes is not easily described because the breadth of the notion of catastrophes leads one to examine many instruments and areas at once. Vide David D. CARON, ob. cit., p. 17. No mesmo sentido, diz-nos Charles Leben que la question des catastrophes a été posée de façon sectorielle, dans le cadre du droit de l’environnement ou dans celui du droit humanitaire ou encore dans le droit de la responsabilité, sans qu’il ait eu des réfl exions approfondies sur la possibilité de regrouper ces différents secteurs au sein d’une branche nouvelle du droit qui serait le ‘droit des catastrophes’. Vide Charles LEBEN, ob. cit., pp. 49-50. Também Eulalia Petit nos diz que [l]’ordre juridique international ne connaît pas de régime juridique spécial pour les situations de catastrophe, une sorte de droit d’exception, tel qu’on peut le connaître dans les ordres juridiques internes. E ainda: Le droit international ne connaissant pas un droit des catastrophes, c’est-à-dire un droit spécialisé applicable aux situations d’urgence indépendamment de leur origine [...]. Vide Eulalia W. PETIT, Les actions d’urgence dans les catastrophes: évolution des activités des organisations interétatiques et des organisations non gouvernementales, Les Aspects Internationaux des Catastrophes Naturelles et Industrielles/The International Aspects of Natural and Industrial Catastrophes, Direction David D. Caron, Charles Leben, The Hague: The Hague Academy of Law, 2001, pp. 539 e 551 respectivamente.

mentos. Para o tema central desta refl exão esta é uma ideia-chave que importa reter, de modo a compreender melhor as nuances da temática das catástrofes tecnológicas.

Um outro motivo justifi ca ainda a referência ao conceito geral de catástrofe e suas tipologias antes da abordagem específi ca da catástrofe tecnológica. Para além da sua função de enquadramento, tais considerações permitem-nos compreender quão difícil de compartimentar em categorias estanques é a temática que temos diante, e como as difi culdades de defi nição do conceito de catástrofe tecnológica espelham afi nal iguais difi culdades de delimitação do conceito de catástrofe7 enquanto conceito jurídico operativo.

2.1. A catástrofe tecnológica, a catástrofe ambiental e a catástrofe humanitária

Uma das grandes difi culdades da defi nição do conceito de catástrofe tecnológica prende-se com a distinção desta relativamente a outros tipos de catástrofe com que muitas vezes coexiste. Frequentemente, para não dizer quase sempre, a catástrofe tecnológica não ocorre isoladamente, desencadeando, através dos seus efeitos, catástrofes de outra índole como sejam a catástrofe ambiental e a catástrofe humanitária. Nestes casos, poder-se-ia dizer que a catástrofe tecnológica foi a origem desses outros tipos de catástrofe, ao provocar efeitos devastadores na população civil e no meio ambiente. Na prática, contudo, não é fácil destrinçar tais efeitos, sendo até de certa forma artifi cial pretender fazê-lo.

7 Como escreve Charles Leben, [i]l est en réalité très diffi cile de distinguer de façon absolue les catastrophes qui sont d’origine humaine et celles qui ne le sont pas, ou, pour employer les notions habituelles, entre les catastrophes industrielles et les catastrophes naturelles. Vide Charles LEBEN, ob. cit. p. 48.

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Perante uma explosão numa fábrica, por exemplo, que provoca não só a morte imediata de muitos dos seus trabalhadores, como também faz defl agrar um incêndio de proporções tais que este se alastra para aldeias vizinhas, causando a destruição da quase totalidade das suas habitações e a fuga da sua população, como classifi caríamos esta tragédia? Onde termina a catástrofe tecnológica e onde começa a catástrofe humanitária? Pense-se, para nos atermos a uma situação real, no chocante acidente de Bhopal8, na Índia, onde uma fuga de gás armazenado numa fábrica provocou a morte de vários milhares de pessoas e um número indeterminado de feridos de forma grave e permanente. Para além de ter sido um dos piores acidentes industriais de que há registo (se não mesmo o pior9), não suscitando dúvidas a sua classifi cação como catástrofe tecnológica, a magnitude dos seus efeitos do ponto de vista humanitário e ambiental foi de tal ordem que não podemos deixar de nos questionar se não estaremos concomitantemente perante uma catástrofe humanitária e ambiental.

Daqui resultam as especiais difi culdades em classifi car efi cientemente uma catástrofe. Raramente uma catástrofe tecnológica deixará de ter efeitos profundos na população civil, pelo que, se atingir certos patamares, poderá ser simultaneamente uma catástrofe humanitária. Muito difi cilmente, também, um acontecimento dessas proporções deixará de provocar algum tipo de desequilíbrio no meio ambiente, pelo que, na grande maioria dos casos, a ele estará associada uma qualquer forma de catástrofe ambiental, ainda que esta não goze de momento da força mobilizadora da catástrofe humanitária.

Tal sobreposição deve-se, ao que nos parece, ao facto de estarmos perante duas formas distintas de sistematização tipológica das catástrofes. A primeira, que qualifi ca a catástrofe como tecnológica,

8 Para uma análise das implicações do acidente para o Direito Internacional, veja-se Y. K. TYAGI e Armin ROSENCRANTZ, Some International Law Aspects of the Bhopal Disaster, Social Sciene & Medicine, vol. 27, No. 10 (1988), p. 1105.

9 Y. K. TYAGI e Armin ROSENCRANTZ, ob. cit., p. 1105.

diz respeito à causa do evento catastrófi co; a segunda, que classifi ca a catástrofe como humanitária e/ou ambiental, considera as consequênciasdesse mesmo evento. Por este motivo, ao analisar assuntos relativos à temática das catástrofes tecnológicas, convém ter sempre presente esta dualidade classifi cativa que separa as causas das consequências10.

2.2. A gestão de catástrofes tecnológicas como gestão de risco

Apesar das difi culdades supra descritas relativamente à circunscrição e defi nição dos vários tipos de catástrofe, é possível identifi car algumas características distintivas daquele que por ora nos interessa. Se a tarefa de encontrar uma defi nição precisa se nos afi gura hercúlea, o mesmo não acontece com uma tentativa de aproximação ao que pode ser considerado o núcleo essencial do conceito. Assim sendo, o que caracteriza afi nal uma catástrofe de tipo tecnológico?

A palavra ‘tecnologia’ remete-nos desde logo para um universo jurídico específi co. Embora hoje associemos tecnologia a computadores,centrais termonucleares, satélites e toda a parafernália de gadgets que nos rodeiam, a tecnologia em sentido moderno surgiu noséculo XVIII, com a Revolução Industrial. A famosa Jenny, que veio revolucionar a indústria do algodão, bem como as máquinas e locomotivas a vapor, que vieram impulsionar todo o sector industrial, trouxeram também, para além de um fulgurante desenvolvimento, acidentes aparatosos e um novo problema jurídico: perante acidentes causados por máquinas e independentes de culpa humana, a quem

10 Evidentemente, há situações em que uma catástrofe humanitária é simultaneamente causa e consequência. Basta pensar na violação de direitos humanos em larga escala, de que o genocídio é o caso mais tristemente emblemático, para compreender tal afi rmação, embora mesmo nesses casos se possa artifi cialmente separar a violação dos direitos humanos como causa e a catástrofe humanitária como consequência dessa violação...

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atribuir a responsabilidade de indemnizar? É o famoso problema do risco, que veio fundar a construção do instituto da responsabilidade objectiva ou pelo risco11, tal como ele fi gura na maior parte dos ordenamentos jurídicos internos de matriz civilística.

Deste modo, quando falamos hoje em dia em catástrofes tecnológicas,estamos pois a falar de descendentes da distante Jenny, muito mais poderosos e de potencial catastrófi co infi nitamente mais avassalador. Estamos, no fundo, a falar de actividades consideradas benéfi cas para o desenvolvimento da sociedade, mas que carregam consigo um forte pendor de risco, proveniente da possibilidade de, quer por via de erro humano, quer por via de falha técnica12, vir a ocorrer um acidente de consequências potencialmente catastrófi cas. Por outras palavras, quando pensamos em catástrofes tecnológicas, temos em mente grandes acidentes mediáticos ligados ao mundo altamente tecnológico em que vivemos, e somos de imediato transportados para o universo13 de Tchernobil, do crash do satélite Cosmos 954, de Bhopal... Situações em que o potencial de risco se manifestou em toda a sua magnitude e deu origem àquilo que justamente consideramos uma catástrofe – ou uma tragédia – tecnológica.

Para difi cultar ainda mais a matéria, o desenvolvimento exponencial de novas tecnologias veio também densifi car a própria questão do risco. A descoberta da sequência de ADN e a possibilidade de

11 Guido Fernando Silva SOARES e Everton Vieira VARGAS, The Basel Liability Protocol on Liability and Compensation for Damage Resulting from the Transboundary Movements of Hazardous Wastes and Their Disposal, Yearbook of International Environmental Law, 12 (2001), pp. 73-74.

12 Ou, nas palavras de Charles Leben, uma défaillance technique du “matériel” employé [...] ou uma défaillance humaine (involontaire ou volontaire). Vide Charles LEBEN, ob. cit., p. 42.

13 Vide as observações de Paul SZASZ, organizador do painel convocado a 10 de Abril de 1987 para o debate de temas relativos a catástrofes de origem humana, in Paul SZASZ, International Responsibility for Manmade Disasters, American Society of International Law Proceedings, vol. 81 (1987), p. 320.

manipulação genética, a informatização de grande parte dos sistemas que sustentam o mundo moderno, a intrincada rede de interconexões que se vem tecendo sobre um mundo globalizado, tudo isso contribuiu para a multiplicação e complexifi cação dos riscos tecnológicos que habitam o nosso mundo14. Riscos que, evidentemente, são suportados por complexas redes de seguros15, em processos que escapam totalmente ao conhecimento e compreensão do cidadão comum.

Um outro aspecto que não podemos deixar de mencionar prende-se com a potenciação de riscos tecnológicos em zonas conhecidas pela sua vulnerabilidade a catástrofes naturais. Falamos, evidentemente, de casos como o verifi cado em 2011 no Japão, conhecido como desastre de Fukushima, em que uma central nuclear instalada numazona sísmica veio a ser alvo daquilo a que os especialistas intitulam catástrofe sinergética16. Conhecido na língua inglesa como NaTechs (junção do início das palavras natural e technological), este fenómeno caracteriza-se pela potenciação recíproca dos efeitos de um e de outro tipo de catástrofe, gerando uma sinergia negativa que tem como resultado a exponenciação dos efeitos devastadores de ambas.

Daqui resulta evidente a principal característica do conceito de catástrofe tecnológica: ela provém de actividades consideradas de risco, mas aceites pela comunidade como necessárias, face ao carácter benéfi co dos bens e da riqueza por elas produzidos. Deste modo, a gestão da possibilidade de se verifi carem acidentes de proporções tais que são reputados pela comunidade internacional como catástrofes tecnológicas coincide com a gestão do risco inerente ao exercício dessas mesmas actividades.

14 Expressão de Charles Leben: [...] c’est la multiplicité et la complexité des “risque technologiques” qui peuplent notre monde. Vide, Charles LEBEN, ob. cit., p. 43.

15 Charles LEBEN, ob. cit., p. 43.16 Charles LEBEN, ob. cit., p. 43.

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Por esse motivo, encontramos no plano do direito internacional vários regimes sectoriais de responsabilidade civil pelo risco decorrente do exercício de actividades consideradas perigosas ou ultra-perigosas17, de que são exemplo as várias convenções relativas à produção de energia nuclear para fi ns civis18, a convenção relativa ao transporte de resíduos perigosos19, a convenção relativa ao transporte marítimo de petróleo20, entre outras. Destinadas a computar e a distribuir o risco associado a estas actividades21, tais convenções situam-se no limiar entre o mero acidente e a verdadeira catástrofe tecnológica, não existindo verdadeiramente para este último cenário mecanismos de resposta institucionalizados. Face à calamidade tantas vezes repetidadas catástrofes ditas tecnológicas, a comunidade internacional tem-se

17 Francisco Orrego VICUÑA, Responsibility and Liability for Environmental Damage Under International Law: Issues and Trends, Georgetown International Environmental Law Review, 10 (1997-1998), p. 285.

18 Convenções de Paris (Paris Convention on Third Party Liability in the Field of Nuclear Energy, adoptada a 29 de Julho de 1960, com entrada em vigor a 1 de Abril de 1968) e de Viena (Vienna Convention on Civil Liability for Nuclear Damage, adoptada a 21 de Maio de 1963, com entrada em vigor a 12 de Novembro de 1977) sobre responsabilidade civil por danos causados no âmbito da energia nuclear.

19 Convenção de Basileia (Basel Convention on the Control of Transboundary Movements of Hazardous Wastes and their Disposal, adoptada a 22 de Março de 1987, com entrada a vigor a 5 de Maio de 1992).

20 Convenção Internacional sobre a Responsabilidade Civil pelos Prejuízos devidos à Poluição por Hidrocarbonetos (International Convention on Civil Liability for Oil Pollution Damage, adoptada a 29 de Novembro de 1969, com entrada em vigor a 19 de Junho de 1975).

21 Esta a razão pela qual estão associados a estes sectores regimes de responsabilidadecivil internacional, ainda que muito poucos estejam efectivamente em vigor e ainda menos tenham sido mobilizados para fundar pedidos de indemnização por parte de vítimas de acidentes e poluição. Vide Noah SACHS, Beyond the Liability Wall: Strengthening Tort Remedies in International Environmental Law, UCLA Law Review, 55 (2008), pp. 837 segs e Jutta BRUNNÉE, Of Sense and Sensibility: Refl ections on International Liability regimes as Tools for Environmental Protection, International and Comparative Law Quarterly, 53 (2004), p. 365.

limitado a reagir de forma variável, consoante os interesses e “boas vontades” dos Estados mais afectados por tais eventos, bem como pelos que se afi guram mais poderosos dentro do panorama internacional.

3. Conflitos armados e direito(s) das catástrofes

A história recente da humanidade tem sido pródiga em episódios calamitosos de violência armada. Se o século XX alterou radicalmenteo signifi cado da guerra, levando a raça humana a testemunhar horrores nunca antes pensados e a temer a própria erradicação, a primeira década do século XXI não foi muito auspiciosa quanto aos caminhos futuros da prática da guerra. De facto, no espaço de pouco mais de um século, a espécie humana viu desenrolar-se perante si um conjunto de enormes calamidades, que vieram abalar profundamente todas as anteriores concepções do fenómeno guerra. Os dois grandes confl itos internacionais da primeira metade do século XX deram lugar a uma infi nidade de confl itos regionais e locais que revelaram o quanto o ser humano está condenado a repetir a História, mesmo as suas fases mais negras.

A um vocabulário ligado à inevitabilidade, que classifi cava os estragos e sofrimento causados pela guerra como malheurs de guerre22, sucedeu-se um vocabulário complexo, simultaneamente catastrófi co e eufemístico. A guerra já não é hoje vista como um fenómeno legítimo e regular, sendo antes entendida sob o prisma da calamidade e da ilegitimidade, e no entanto o vocabulário bélico associado à guerra caiu em desuso, falando-se hoje em confl ito armado. Paradoxalmente, a questão da guerra – sob a nova roupagem de confl ito armado – mantém-se mais actual do que nunca e o fl agelo de que

22 Vide Charles LEBEN, ob. cit., p. 45.

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os fundadores da Carta das Nações Unidas23 queriam proteger as gerações futuras permanece um problema sem solução aparente, continuando a suscitar um grande número de questões de difícil resposta.

3.1. A guerra como catástrofe

Quando falamos hoje no conceito de guerra, não conseguimos dissociá-lo do peso recente que as duas guerras mundiais do século XX lhe conferiram. Um peso pesado, pós-nuclear, pós-Holocausto, agravado pelas sangrentas guerras civis que assolaram grande parte do continente africano, pelas guerras ideológicas do Vietname, do Iraque e do Afeganistão e pela vergonha persistente24 do genocídio,que perpassa continentes e culturas. Este peso, que não esteve sempre associado à experiência bélica, tem hoje um carácter catastrófi co inegável que faz com que nenhuma refl exão séria sobre o problema das catástrofes se possa alhear desta problemática25.

23 Vide o Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, assinada a 26 de Junho de 1945 em São Francisco, com entrada em vigor a 24 de Outubro de 1945: We the peoples of the United Nations determined to save succeeding generations from the scourge of war, which twice in our lifetime has brought untold sorrow to mankind [...] (sublinhado nosso).

24 Vide Charles LEBEN, ob. cit., p. 47: [...] des génocides qui sont la honte persistante de ce XXe siècle.

25 Charles Leben diz mesmo que toute réfl exion sur le phénomène catastrophique dans cette fi n du XXe siècle ne peut ignorer ce type de événements qui, plus que d’autres encore, produisent ‘des dommages immédiats ou différés aux personnes, aux biens ou à l’environnement, et d’une ampleur telle qu’ils appellent une réaction solidaire de la communauté nationale et/ou internationale’. Vide Charles LEBEN, ob. cit., p. 46. Embora o autor se refi ra, neste contexto, à menor protecção humanitáriaem caso de confl itos armados não internacionais, em particular em situações como as vividas na ex-Jugoslávia, Rwanda e na Somália, parece-nos que não será descabido alargar o âmbito desta ideia aos efeitos massivos que as guerras têm na população civil, como veremos infra no ponto 3.3.

Com efeito, a difi culdade não está em determinar se os vocábulos guerra e catástrofe estão ou não ligados – hoje é evidente que um e outro andam de mãos dadas – mas sim em saber de que modo, do ponto de vista jurídico-internacional, se concretiza esta ligação, se é que se concretiza. Face à inexistência de um ramo de direitointernacional especializado em matéria de catástrofes, de que modo poderá ser enquadrada esta ligação quase intuitiva – ou mesmo emocional, como veremos infra, em 6. – entre guerra e catástrofe pelo direito internacional?

Para tentarmos responder a esta questão, sem dúvida alguma um desafi o sem garantias de sucesso, há que ter presentes duas ideias-chave fundamentais. A primeira consiste em separar muito bem dois territórios distintos: o universo da guerra tal como ele foi vivido ao longo dos tempos e o universo jurídico da guerra, que é uma construção relativamente recente. Como se sabe, tal construçãoremonta às doutrinas medievais da guerra justa, tendo sofrido um grande desenvolvimento com a invenção do Estado moderno e, mais recentemente, uma transformação total com a aprovação da Carta das Nações Unidas. De prerrogativa soberana do Estado, coincidente com a máxima de Clausewitz segundo a qual a guerra é a continuação da política por outros meios26, a guerra passou a ser considerada ilegal em todos os casos excepto nos expressamente previstos na Carta das Nações Unidas. Sofreu também uma alteração nominativa, como se disse, tendo o vocábulo guerra cedido lugar à expressão confl ito armado.

É esta nova construção jurídica27, e já não a guerra, que é hoje objecto de um ramo próprio de direito internacional, o Direito Internacionaldos Confl itos Armados. Este ramo, que se fundiu recentemente com o

26 John KEEGAN, Uma História da Guerra, Tinta da China, Lisboa, 2006, p. 21.

27 Que teve o mérito de fazer depender a aplicação das normas de direito internacional humanitário da verifi cação de certas condições objectivas – i.e., de uma situação de facto –, e já não da vontade subjectiva dos Estados que decidiam ou não declarar

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Direito Internacional Humanitário28, regula não só os casos em que é permitido recorrer à força armada (ius ad bellum), como também o uso dessa força, ou seja, o modo de fazer guerra (ius in bello) no âmbito desses confl itos armados. A esta matéria dedicaremos todo o ponto 6., pelo que não nos deteremos agora sobre o assunto.

A segunda ideia-chave a ter presente diz respeito ao lado catastrófi co da guerra. Como se disse, se é verdade que a experiência da guerra é hoje vivida como uma catástrofe, é igualmente verdade que não foi sempre assim. De facto, durante grande parte da história da humanidade a guerra foi um importante instrumento de conquista de poder e de território, fonte de grande glória e riqueza para os vencedores, pelo que constituía um fenómeno regular da vida das comunidades. Neste sentido, a devastação causada pela guerra era entendida como um resultado inevitável de um fenómeno político incontornável das sociedades humanas: o confronto armado com objectivos de conquista ou manutenção do poder29. Comum aos gregos e romanos da Antiguidade Clássica, aos cavaleiros medievais que lutaram nas cruzadas, aos samurais no longínquo Japão, aos turcos otomanos, aos exércitos modernos pós-napoleónicos e mesmo a algumas sociedades primitivas, a cultura guerreira foi sempre uma cultura própria, ainda que com especifi cidades exclusivas de cada período histórico e de cada espaço geográfi co30.

a guerra a outros Estados. Vide Sylvain VITÉ, Typology of armed confl icts in international humanitarian law: legal concepts and actual situations, International Review of the Red Cross, vol. 91, Number 873, March 2009, p. 72.

28 Segundo o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados, [t]he law of armed confl ict was traditionally divided into two parts, each named after the city where much of the law was devised. Hague law was concerned with how militaryoperations are conducted; Geneva law was concerned with the protection of the victims of armed confl ict. The two bodies have now merged, in The Manual of the Law of Armed Confl ict – UK Ministry of Defense, Oxford University Press, 2004, p. 3.

29 Charles LEBEN, ob. cit., p. 45.30 Para uma leitura muito completa sobre a guerra ao longo dos tempos e nas

diversas culturas veja-se o excelente livro de John KEEGAN, Uma História da Guerra, Tinta da China, Lisboa, 2006.

Evidentemente, não poderemos discutir aqui aspectos relacionados com a natureza da guerra, transversais a outros ramos do pensamento, tais como a Filosofi a, a Sociologia e a História Militar. A ideia principal a reter prende-se com a novidade histórica que é a leitura da guerra sob o ponto de vista da catástrofe. Note-se que não se contesta o facto de a guerra ter atingido, em épocas passadas, elevados graus de violência e crueldade – tais características são intrínsecas à guerra31. O que se defende é que a percepção destas realidades se alterou, em virtude de várias mudanças sofridas pela humanidade ao longo dos últimos séculos. Embora não seja possível percorrer aqui de forma exaustiva as razões subjacentes a essa alteração de paradigma, algumas são facilmente apreendidas tendo por referência certos aspectos notórios da história recente da humanidade.

Em primeiro lugar, temos uma alteração signifi cativa de escala: o surgimento dos exércitos em sentido moderno, associados ao Estado e recrutando ofi ciais de entre todos os seus cidadãos através do mecanismo do serviço militar obrigatório, veio possibilitar a mobilização de enormes contingentes de soldados32. Ora, um maior número de homens mobilizado tenderá a traduzir-se num maior número de mortes, ainda que um aumento exponencial no número de baixas militares só se tenha verifi cado mais tarde, com o aumentoda capacidade mortífera do armamento de guerra possibilitado pelos

31 Veja-se, a título de exemplo, as descrições que John Keegan faz dos rituais de guerra de povos primitivos tais como os Astecas. ob. cit., pp. 151 segs.

32 Segundo John Keegan, foi na sequência da Revolução Francesa que surgiu a primeira forma de um exército deste tipo. Embora antimilitaristas e defensores de ideais racionais de justiça e liberdade, os franceses revolucionários sentiram necessidade de criar um instrumento capaz de fazer face às forças reaccionárias, que dispunham do exército real. Assim, criaram um exército revolucionário, a Guarda Nacional, que, após alguns ajustes, acabou por incorporar uma primeira versão de serviço militar obrigatório – a levée en masse – que submetia todos os homens aptos à disposição da República. Para John Keegan, este era um tipo de exército completamente novo. Vide John KEEGAN, ob. cit., pp. 455 segs.

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desenvolvimentos tecnológicos. A Guerra Civil Americana foi porventura a primeira em que aquela tendência se tornou absolutamente visível33, embora seja difícil comparar com números anteriores ao século XIX, visto não haver registos censitários antes desse período34. Evidentemente, a mortandade atingiu o seu expoente máximo nas duas primeiras guerras mundiais, ressalvando-se todavia os confl itos não internacionais da segunda metade do século XX que, como veremos, tiveram como principal característica os elevadíssimos números de baixas civis35.

Em segundo lugar, temos uma alteração profunda nas concepções fi losófi co-jurídicas do estatuto do ser humano. Com o rescaldo das duas grandes guerras mundiais e o desenvolvimento da doutrina dos direitos humanos36, cujo amadurecimento se traduziu na progressiva adopção de mecanismos de protecção de um conjunto de direitos do ser humano, a ideia de que a guerra – ou o confl ito armado – causa enorme sofrimento e provoca a morte de seres humanos foi-se tornando progressivamente intolerável para a consciência moral da humanidade. Vale a pena determo-nos por um instante numa ideia curiosa: se por um lado foram as duas grandes guerras, particularmente a segunda, que com toda a sua desolação e experiência de guerra total, abriram caminho para o desenvolvimento do ideário dos direitos humanos, por outro lado foi precisamente esta construção teórica que reforçou a noção de guerra como algo catastrófi co, contribuindo de

33 John KEEGAN, ob. cit., pp. 471 segs.34 John KEEGAN, ob. cit., p. 470.35 Segundo Nils Meltzer, [i]n virtually all contemporary armed confl icts –

whether conducted by professional, well-resourced, and disciplined armed forces, or by poorly trained, equipped and organized armed groups – a staggering 90 per cent of all victims are civilians. Vide Nils MELTZER, Bolstering the Protection of Civilians in Armed Confl ict, in Antonio CASSESE, Realizing Utopia – The Future of International Law, Oxford University Press, 2012, p. 508.

36 Que, como se sabe, remonta também à Revolução Francesa e à sua Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão de 1789.

forma decisiva para a consolidação da experiência de guerra como uma experiência de catástrofe.

3.2. A guerra, a tecnologia e a tecnologia de guerra

Se há algo que caracteriza o mundo contemporâneo – na guerra como fora dela – esse algo poderá muito bem ser a omnipresença da tecnologia. De facto, já não conseguimos conceber um mundo atecnológico, ou seja, um mundo desprovido de recursos tecnológicos, que enformam todos os aspectos da nossa vida, ainda que não nos apercebamos disso. Basta pensar na experiência urbana de uma falha eléctrica que ocorra durante a noite para compreender o vazio sentido por quem não sobrevive sem algo tão aparentemente banal como a energia eléctrica... Algo que, embora muitos de nós nãoassociem à palavra tecnologia, reservada para equipamentos digitais e outros objectos fulgurantes, constituiu uma verdadeira revolução tecnológica, para a qual foram necessários inúmeros contributos científi cos e invenções até ser possível aquela chegar às nossas casas, de forma segura e praticamente ininterrupta, sob a forma de corrente eléctrica.

Uma tal ligação entre modo de vida e tecnologia existe, de forma paralela, entre guerra e tecnologia de guerra. Com efeito, há entre uma e outra um conjunto de interdependências que Alex Roland captou de forma primorosa no seu artigo War and Technology37. Segundo este autor, há quatro linhas de força que caracterizam a relação entre guerra e tecnologia: i) a tecnologia molda o modo de fazer guerra e, simultaneamente, a guerra molda a tecnologia; ii) a tecnologia de guerra (militar) não é determinística; iii) a tecnologia

37 Alex ROLAND, War and Technology, Foreign Policy Research Institute Footnotes, February 2009, vol. 14, No. 2, disponível no website http://www.fpri.org/footnotes/1402.200902.roland.wartechnology.html

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militar abre caminhos; iv) todas estas características são especialmente evidentes no mundo contemporâneo.

Em primeiro lugar, a tecnologia molda o modo de fazer guerra. Esta ideia é facilmente compreendida se tivermos em mente o facto de que só é possível combater-se com os meios tecnológicos disponíveis em cada período histórico. Assim, antes da invenção da pólvora não era possível a guerra com armas de fogo, do mesmo modo que antes da invenção do estribo38 não era possível recorrer efi cazmente à cavalaria, por não ser possível a um homem equilibrar-se de forma segura no dorso de um cavalo no momento de desferir golpes sobre o inimigo. E quem diz pólvora diz navios e todos os seus ascendentesmarítimos, sem os quais não teriam sido possíveis as batalhas navais que marcaram a História. Se quisermos um exemplo mais recente, pensemos na guerra por via aérea, que antes do século XX não era sequer concebível39.

Ainda em conexão com esta ideia, o autor avança uma outra, que distingue entre a guerra (war) e o modo de fazer guerra (warfare). Deste modo, se a tecnologia molda o modo de fazer guerra, também a guerra (e não o modo de fazer guerra) molda a tecnologia. É por referência ao contexto bélico – maxime, à supremacia bélica – que são prosseguidas inovações tecnológicas no armamento militar, com o objectivo de vitória na mira.

Em segundo lugar, por mais que o modo de condução da guerradependa da tecnologia e por mais que esta seja moldada pela guerra, a tecnologia, por si só, não determina o resultado da guerra. Ou seja,

38 Alex Roland cita Lynn WHITE JR. (Medieval Technology and Social Change, Oxford, 1962), para quem o estribo foi o catalisar do feudalismo, na medida em que conferiu aos cavaleiros da Idade Média, heavily armed and armored, a possibilidade de se inclinarem para a frente sem se desequilibrarem, o que lhes permitia desferir os clássicos golpes de lança contra guerreiros inimigos. Contudo, esta ideia não é consensual entre os historiadores, como também denota Alex Roland.

39 Vide Alex ROLAND, ob. cit.

a tecnologia não é determinística, na medida em que não depende apenas dela nem a natureza, nem o resultado do confronto directo entre as partes. Na verdade, este depende de outros factores que vão bem além do tipo de armamento disponível, tais como o moral das tropas, a estratégia adoptada, a supremacia dos comandantes, entreoutros. Tudo factores extrínsecos à tecnologia, que fazem com que não seja absolutamente determinante deter, em cada momento histórico, a arma considerada mais avançada e mais mortífera. Esta ideia é, aliás, facilmente comprovada através da observação dos confl itos armados contemporâneos, em que a desigualdade tecnológica das partes não signifi ca necessariamente um rápido desfecho do confl ito ou uma vitória clara da parte dotada de tecnologia mais avançada40.

A terceira ideia-chave decorre da noção de que a tecnologia não determina a guerra e é apresentada através de uma metáfora: a tecnologia – uma ferramenta que não é boa nem má em si mesma – abre caminhos (technology opens doors41), dependendo da acção humana o modo como esta é utilizada.

Finalmente, e esta talvez seja a ideia que mais nos interessa, Alex ROLAND defende que todas estas questões são hoje mais evidentes do que nunca, em virtude das características do mundo contemporâneo. Para o autor42, a tecnologia de guerra do nosso tempo tem como principal atributo o facto de estar em constante evolução ou, melhor dizendo, o facto de essa evolução ser perceptível durante o tempo de vida de um soldado. Se enquanto em épocas passadas um guerreiropodia legitimamente esperar iniciar a sua carreira e reformar-se tendo sempre utilizado o mesmo tipo de armamento, passando frequentemente as armas de geração em geração na mesma família, hoje será praticamente impossível um militar de carreira começar e terminar

40 Relembremos a guerra do Vietname, que ainda hoje assombra a memória colectiva dos americanos.

41 Alex Roland atribui a metáfora a Lynn White Jr. Vide ob. cit.42 Alex ROLAND, ob. cit.

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os seus dias de serviço com as mesmas armas em mão. A tecnologia evolui a uma velocidade vertiginosa e, mesmo depois de ter sido criada the ultimate weapon – a nuclear, que durante décadas assombrou a existência humana – a investigação militar prossegue com grande intensidade, continuando a desenvolver-se novas armas e tipos cada vez mais precisos e poderosos de equipamento militar.

É evidente que tudo isto tem repercussões no modo de fazer a guerra contemporâneo. A guerra de hoje, com todos os sistemas de geolocalização, radares, mísseis antiaéreos, drones, enfi m, toda a panóplia de precision weapons43, acarreta dois paradoxos, que a diferenciam signifi cativamente dos modos de condução de guerra do passado. Por um lado, nunca a capacidade humana para dominar a tecnologia foi tão evidente como nos dias que correm44, sendo inclusivamente possível perpetrar ataques com uma precisão quase cirúrgica45; por outro lado, como veremos de seguida, nunca se registaram tantas vítimas civis como nos confl itos mais recentes que assolaram a humanidade.

O primeiro paradoxo reside no facto de que, embora haja normas de direito internacional que visam proteger a população civil dos efeitos dos confl itos armados, como veremos no ponto 4., e embora já seja em grande medida possível realizar operações militares de

43 Sobre a questão da precisão das armas contemporâneas, vide Michael N. SCHMITT, Precision attack and international humanitarian law, International Review of the Red Cross, No. 859, 2005, pp. 444-466.

44 O que, nas expressivas palavras de Alex Roland, se traduz num unprecedented mastery of energy and materials ranging across a dimensional scale from nanotechnology to fl oating cities like the modern aircraft carrier. Vide Alex ROLAND, ob. cit.

45 Segundo Darren M. Stewart, [t]he changing character of weapons means that militaries possessing the relevant capability can not only target with unprecedented precision but, in addition, through the use of sophisticated persistent surveillance, assess with much greater accuracy the anticipated effects of incidental loss or damage to civilian persons or property and take appropriate remedial measures. Vide Darren M. STEWART, New Technology and the Law of Armed Confl ict, International Law Studies, vol. 87, 2011, p. 285.

grande precisão, planeadas de forma a causar o mínimo número possível de baixas civis, é o inverso que se tem verifi cado, com uma incidência mortal na população civil na ordem dos noventa por cento, segundo vários autores46. Um segundo paradoxo, também detectado por Alex ROLAND47, diz respeito à distribuição da tecnologia pelos vários Estados e grupos armados. Embora nunca a tecnologia de guerra disponível tenha sido tão avançada, nunca a sua distribuição foi tão desigual48 como nos dias de hoje, o que contribui para um retrocesso nos meios de realização da guerra por parte dos Estadose grupos armados que não dispõem dessa tecnologia de forma a compensar essa falta de meios. Assim, como veremos melhor no ponto 6., o recurso a meios ilegais de condução da guerra, tais como a utilização de civis como escudo humano49, acaba por ter

46 Vide nota 35.47 Segundo este autor, it [is not] just the evolution of weaponry that changes

warfare. It is the distribution of the weaponry. Throughout history, states have usually fought one another in weapons symmetry. In the fi rst Gulf War, for example, Saddam Hussein attempted to defeat a conventional, industrialized, mechanized American army with a conventional, industrialized, mechanized Iraqi army. The quality and quantity of the American technology prevailed. In the second Gulf War, however, the insurgents resorted to asymmetrical warfare, fi ghting the high-tech American arsenal with low-tech instruments of assassination, sabotage, and terror. Vide Alex ROLAND, ob. cit.

48 A esta situação tem-se dado o nome de asymmetrical warfare, que, segundo o Comité Internacional da Cruz Vermelha (ICRC em referências bibliográfi cas), é caracterizada por signifi cant disparities between the military capacities of the belligerent parties. Its fundamental aim is to fi nd a way round the adversary’s military strength. Asymmetry often causes today’s armed confrontations to take a more brutal turn, in which there is seemingly little place for the rule of law. Vide International humanitarian law and the challenges of contemporary armed confl icts – Document prepared by the International Committee of the Red Cross for the 30th International Conference of the Red Cross and Red Crescent, Geneva, Switzerland, 26–30 November 2007, in International Review of the Red Cross, vol. 89, Number 867, 2007, p. 732.

49 Que se trata, como veremos, de uma situação proibida pelo direito internacional humanitário. Veja-se também o relatório do Comité Internacional da Cruz Vermelha referido na nota anterior, p. 723.

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um enorme impacto na prática da guerra do século XXI e, também por essa via, contribuir para a percepção deste fl agelo sob o prisma da catástrofe, em virtude dos efeitos devastadores que tem sobre as populações civis, particularmente as dos Estados mais afectados pela pobreza.

Tendo presentes estas considerações, resta-nos perguntar o seguinte: se não só a face da guerra mudou, como também a nossa perspectivadela foi alterada, como enquadrar este fenómeno no âmbito do direito internacional? Serão ainda adequadas as regras de direito internacional humanitário ao contexto bélico actual ou, pelo contrário, estaremos afi nal perante um novo fenómeno que requer um enquadramento jurídico-internacional novo? Poderá a utilização de nova e poderosa tecnologia de guerra, capaz de grandes níveis de destruição em massa, justifi car a classifi cação de actos bélicos que afectem civis como catástrofes tecnológicas?

3.3. Os efeitos catastróficos dos conflitos armados na população civil

Como dissemos já supra, uma das principais características dos confl itos armados contemporâneos reside no facto de a grande maioria das vítimas da violência da guerra ser a população civil50

50 Antonio Cassese cita um depoimento de um representante sueco, presente na conferência diplomática de 1974 de preparação dos Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra, onde se detecta bem a rápida evolução na incidência dos efeitos dos confl itos armados sobre a população civil: an increasing number of those killed in wars are civilians: some 5 per cent in the First World War, some 50 per cent in the Second World War perhaps around 60 per cent in he Korean War. And for the Vietnam War some 70 per cent of the disabled have been stated to be civilians. Vide Antonio CASSESE, Current Trends in the Development of the Law of Armed Confl ict, Cassese, Antonio, The Human Dimension of International Law – Selected Papers, Oxford University Press, 2008, p. 24.

dos Estados onde ocorrem os confrontos. Nas palavras do eminenteinternacionalista Antonio CASSESE, [i]t is common knowledge that civilians are among those who suffer the most from the scourge of war51. Entre mortos, feridos e refugiados52, é desolador qualquer cenário de guerra contemporâneo, pela devastação que provoca a todos os níveis na população civil que aí reside.

Trata-se de números que, como vimos supra53, não são animadores.Segundo Nils MELTZER54, [i]n virtually all contemporary armed confl icts [...] a staggering 90 per cent of all victims are civilians. Isto signifi ca que o impacto dos confl itos armados no mundo contemporâneo é mais directo do que nunca. Já não são as mulheres que fi cam sem maridos e fi lhos, militares de carreira ou por obrigação, e entram no mercado de trabalho para compensar a falta de braços na economia55, são populações inteiras que desaparecem, homens e mulheres de todas as idades, crianças, jovens, adultos e idosos, que sofrem as duras consequências da violência do Homem sobre o Homem. Os efeitos devastadores dessa violência, dos quais os mais impressionantes são talvez as enormes massas de refugiados que atravessam fronteiras em busca de protecção e auxílio, não carecemevidentemente de descrição. São imagens que temos presentes graças à cobertura mediática dos confl itos armados mais recentes que, como

51 Antonio CASSESE, Current Trends in the Development of the Law of Armed Confl ict, The Human Dimension of International Law – Selected Papers, Oxford University Press, 2008, p. 22.

52 Como se sabe, o problema dos refugiados é um dos maiores do nosso tempo, ao qual se dedica uma agência especializada da Organização das Nações Unidas, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

53 Vide nota 35.54 Nils MELTZER, ob. cit., p. 508. 55 O que aconteceu, como é do conhecimento geral, durante as duas Guerras

Mundiais, dada a enorme mobilização de recursos humanos para esse efeito. De facto, a necessidade acelerou o processo de abertura social e veio integrar milhares de mulheres quer nas fi leiras da guerra, quer no mercado de trabalho que sustentava a economia sob a qual assentava o esforço de guerra.

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veremos no ponto 6., é também uma característica da guerra de hoje que suscita algumas refl exões mais profundas sobre a infl uência da comunicação social na própria condução da guerra.

Dada a escala de incidência dos efeitos dos confl itos armados sobre as populações civis, não será exagerado qualifi cá-los como catastrófi cos. Assim, esta característica será muito possivelmente o elemento essencial que nos leva a considerar os confl itos armados sob o prisma da catástrofe e a questionarmo-nos acerca do seu possível enquadramento jurídico-internacional. De facto, como salienta Eulalia W. PETIT56, é por referência aos seus efeitos nos seres humanos que determinado evento pode ser considerado uma catástrofe, o que ajuda a explicar as alterações supra57 descritas na forma como a experiência de guerra é vivida pelo ser humano. Para além do peso históricoassociado à guerra, da democratização do ideário dos direitos humanos e da evolução tecnológica que permitiu o recurso a armamento de guerra cada vez mais mortífero e poderoso58, também o aumento exponencial dos efeitos dos confl itos armados sobre a população civil terá concorrido para a classifi cação da guerra como um fl agelo persistente no século XXI.

56 Nas palavras da autora: [...] l’élément essentiel de la défi nition de la catastrophe ne se situe pas sur le plan de phénomènes ou causes qui la provoquent mais au niveau des effets pour la population, effets qui doivent être d’une extension et d’une gravité particulières, sans que leur détermination soit une question purement arithmétique. Vide Eulalia W. PETIT, ob. cit., p. 556.

57 Vide pp. 11 segs.58 Em 1975, Antonio Cassese escrevia o seguinte: Owing to technological

progress, belligerents in modern warfare increasingly use cruel weapons which infl ict agonizing and terrible suffering. Vide Antonio CASSESE, Weapons Causing Unnecessary Suffering: Are They Prohibited?, The Human Dimension of International Law – Selected Papers, Oxford University Press, 2008, p. 192. Embora na altura se recorresse a tipos de armamento que foram entretanto banidos (estamos a pensar nos projécteis que se estilhaçam aquando do impacto e são indetectáveis por raio-X, minas antipessoais, armas químicas e biológicas...), é impossível não imaginar o que diria este notável internacionalista se pudesse ver, hoje, os avanços tecnológicos entretanto alcançados...

Ora, não é possível abordar a eventual classifi cação jurídico- -internacional dos confl itos armados como catástrofe por referência aos seus efeitos devastadores sobre a população civil, sem antes nos debruçarmos sobre o quadro normativo dos confl itos armados no plano do direito internacional. Por esse motivo, antes de avançarmos para o debate relativo a uma eventual tipologia de catástrofe de onde fi gurem os confl itos armados e a sua possível designação, iremos focar-nos de modo perfunctório no panorama actual do direito internacional humanitário.

4. Conflitos armados e direito aplicável

O direito internacional humanitário do nosso tempo está longe de ter cumprido a promessa que lhe deu origem: a de proteger a população civil dos efeitos nefastos da guerra59. Tendo surgido na segunda metade do século XIX com os objectivos de mitigar os efeitos da guerra sobre pessoas que não participassem no combate, quer estes fossem feridos (portanto, considerados hors de combat), quer fossem civis, e de regular a própria condução da guerra, este ramo de direito começou por se desdobrar em duas partes distintas, que hoje se unifi caram: o corpo jurídico resultante das Convenções de Genebra60, relativo ao tratamento de feridos e de civis, e o corpo

59 Nas palavras de Eve Massingham: The promise of modern international humanitarian law is that those who are hors de combat will be protected, respected, and cared for in times of armed confl ict. Vide Eve MASSINGHAM, Confl ict without casualties... a note of caution: non-lethal weapons and international humanitarian law, International Review of the Red Cross, vol. 94, Number 886, Summer 2012, p. 673.

60 As quatro Convenções de Genebra, adoptadas na cidade Suíça que lhes deu o nome, em 1949, a que mais tarde se acrescentaram três Protocolos Adicionais, dois de 1977 e um de 2005. Vide site do Comité Internacional da Cruz Vermelha: http://www.icrc.org/eng/war-and-law/treaties-customary-law/geneva-conventions/index.jsp Para referência completa vide notas 66-68.

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referente às Convenções da Haia61, que regulavam a condução da guerra, limitando os meios de combate a que se podia legitimamenterecorrer de forma a garantir um mínimo de humanidade62 na condução das hostilidades63. Não estamos, pois, perante o ramo de direito distinto, ainda que relacionado, que regula os casos excepcionais em que é legítimo recorrer à força armada no âmbito das relações internacionais, mas sim perante o ramo que regula situações de facto de confronto armado64, quer o recurso à força tenha sido ou seja lícito ou ilícito.

O direito internacional humanitário é um ramo de direito relativamente vasto, que abrange as quatro Convenções de Genebra de 194965, dois

61 Várias Convenções, adoptadas na cidade holandesa que lhes deu o nome, cuja lista pode ser consultada no site da Comité Internacional da Cruz Vermelha: http://www.icrc.org/ihl.

62 Segundo o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados, [t]he main purpose of the law of armed confl ict is to protect combatants and non-combatants from unnecessary suffering and to safeguard the fundamental human rights of persons who are not, or are no longer, taking part in the confl ict (...) and of civilians – in The Manual of the Law of Armed Confl ict, ob. cit., p. 3.

63 Sobre este assunto, vide o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados (ob. cit., pp. 8 segs) e Antonio CASSESE, Current Trends..., ob. cit., p. 3.

64 Que, como se sabe, está hoje essencialmente regulado na Carta das Nações Unidas, de onde consta uma proibição geral do recurso à força pelos Estados no âmbito das relações internacionais (artigo 2º, parágrafo 4), sendo igualmente relevante a prática do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas relativamente a essa matéria. Embora não seja do âmbito deste trabalho, vale a pena referir que, embora a importância histórica desta consagração se mantenha nos dias de hoje, existe também uma renovada ambiguidade em torno desta questão. Por um lado, trata-se de uma proibição fl exível, na medida em que Estados muito poderosos conseguem sempre contorná-la, servindo-se dos seus interesses. Por outro lado, trata-se de uma proibição que não é hoje sufi ciente para alcançar os almejados objetivos de paz e segurança: a esmagadora maioria dos confl itos armados actuais é de natureza não internacional, e portanto não estão abrangidos por esta proibição.

65 Trata-se de quatro convenções, todas celebradas em Genebra a 12 de Agosto de 1949: Convention (I) for the Amelioration of the Condition of the Wounded and Sick in Armed Forces in the Field; Convention (II) for the Amelioration of the Condition of Wounded, Sick and Shipwrecked Members of Armed Forces at Sea;

Protocolos Adicionais66 de 1977, e um Protocolo Adicional67 de 2005, as Convenções da Haia68 de 1899 e 1907, e inúmeros outros tratados69 relativos a matérias específi cas, tais como a Convenção para a proibição de Armas Biológicas70, a Convenção para a Proibição de Armas Químicas71 e a Convenção relativa à Proibição de Determinadas Armas Convencionais72 (para mencionar apenas alguns).

Porque não é esse o escopo deste trabalho, não iremos deter-nos aqui sobre a totalidade deste ramo de direito, abordando apenas as normas e distinções relevantes para o tema, de forma a extrair o quadro normativo que dele resulta relativamente à população civil que se veja enquadrada num cenário de guerra. Pela sua relevância, analisaremos também alguns casos que se situam numa zona relativamente

Convention (III) relative to the Treatment of Prisoners of War e Convention (IV) relative to the Protection of Civilian Persons in Time of War.

66 São eles: o Protocol Additional to the Geneva Conventions of 12 August 1949, and relating to the Protection of Victims of International Armed Confl icts (Protocol I), 8 June 1977; e o Protocol Additional to the Geneva Conventions of 12 August 1949, and relating to the Protection of Victims of Non-International Armed Confl icts (Protocol II), 8 June 1977.

67 Trata-se do Protocol additional to the Geneva Conventions of 12 August 1949, and relating to the Adoption of an Additional Distinctive Emblem (Protocol III), 8 December 2005.

68 Das quais resultou um conjunto de documentos relativos à condução das hostilidades que, embora muitos não se encontrem hoje em vigor, deram origem a grande parte das normas costumeiras sobre a matéria. Vide nota 61.

69 Uma lista exaustiva de tratados internacionais relevantes para este ramo de direito pode ser encontrada no website do Comité Internacional da Cruz Vermelha: http://www.icrc.org/ihl.

70 Convention on the Prohibition of the Development, Production and Stockpiling of Bacteriological (Biological) and Toxin Weapons and on their Destruction. Data de entrada em vigor: 26 de Março de 1975.

71 Convention on the prohibition of the development, production, stockpiling and use of chemical weapons and on their destruction. Data de entrada em vigor: 29 de Abril de 1997.

72 Convention on Prohibitions or Restrictions on the Use of Certain Conventional Weapons Which May be Deemed to be Excessively Injurious or to Have Indiscriminate Effects. Data de entrada em vigor: 2 de Dezembro de 1983.

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cinzenta de regulação, fora do direito internacional humanitário, mas eventualmente com alguns pontos de contacto. Dada a brevidade a que temos de nos cingir, não iremos abordar de forma exaustiva as diferenças de regime entre os confl itos internacionais e os confl itos não internacionais, fi cando-nos por algumas normas directamente relacionadas com a protecção de civis durante situações de confl ito armado.

4.1. Normas e princípios basilares de direito internacional humanitário

O direito internacional humanitário tal como o conhecemos hoje baseia-se em quatro princípios fundamentais: o princípio da necessidade militar, o princípio da humanidade, o princípio da distinção e o princípio da proporcionalidade. Trata-se de quatro princípios incontornáveis, que enformam as principais normas costumeiras relativamente à condução das hostilidades.

De acordo com o princípio da necessidade militar, as partes em confl ito só devem usar, em grau e em qualidade, a força necessária para atingir o objectivo legítimo do confl ito, estando evidentemente vedadas formas de recurso à força proibidas pelo direito internacional humanitário73. Trata-se de um jargão difícil de compreender para qualquer leigo em matéria militar, não pela sua especial complexidade, mas pela lógica bélica que lhe é inerente. É evidente que, uma vez que o direito internacional humanitário foi inicialmente desenvolvido tendo em conta as guerras entre Estados, ou seja, os confl itos internacionais, estes princípios, que inicialmente se aplicavam apenas aos Estados e beligerantes, estão imbuídos de uma lógica de paridade de meios e de posições entre as partes. Como veremos, essa poderá ser hoje

73 Vide o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados, ob. cit., p. 21.

uma limitação grave do direito internacional humanitário em cenários de guerra que se caracterizam precisamente pelo oposto, e que mais contribuirá para a falta de aplicação das normas que compõem o corpus deste ramo de direito.

O princípio da humanidade, que à primeira vista poderá parecer um contra-senso quando aplicado no contexto militar, complementa o anterior princípio, proibindo a infl icção de danos, sofrimento ou destruição que não sejam necessários para alcançar os objectivos militares legítimos das partes em confl ito74. É deste princípio que resulta a consagração da imunidade da população civil, na medida em que, para usar termos militares, do ataque a este segmento populacionalnão advém qualquer vantagem estratégica, pelo menos no entendimentotradicional do modo de condução da guerra75. Este princípio articula-se também com o princípio da proporcionalidade, através do qual se aceita que haja danos incidentais a civis decorrentes de um ataque a um objectivo militar, desde que estes danos não sejam excessivos relativamente à vantagem militar que se pretendia com o ataque76. Mais uma vez, trata-se de um tipo de raciocínio que choca as mentes não militares, pela desigualdade de termos que merecem comparação pela bitola da proporcionalidade77.

74 Vide o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados, ob. cit., p. 23.75 Como veremos no ponto 6., um dos novos modos insidiosos de condução

das hostilidades, utilizado principalmente por grupos armados não estatais no âmbito de confl itos não internacionais, portanto dotados de meios limitados em termos de armamento e tecnologia de guerra, consiste em recorrer a ataques a civis como forma de pressão mediática, sendo utilizado, nessas situações, como modo de obter algum tipo de vantagem estratégica... Evidentemente, trata-se de uma situação condenável relativamente à qual urge encontrar formas efi cazes de combater tais práticas, para nos mantermos dentro do vocabulário bélico.

76 Vide o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados, ob. cit., p. 23.77 O valor deste princípio da proporcionalidade tem sido questionado por alguns

internacionalistas. Antonio Cassese considera que “the rule of proportionality has a questionable value”, e cita Robert R. Baxter, para quem “proportionality to the military advantage to be gained (...) calls for comparing two things for which

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Ambos estes princípios estão intimamente ligados àquele que porventura mais nos interessa no âmbito desta investigação: o princípio da distinção entre civis e combatentes. Segundo este princípio, e uma vez que as operações militares devem ser conduzidas apenas contra objectivos militares, deve haver uma distinção clara entre combatentes envolvidos nestas operações e a população civil, que delas não faz parte78. Este será o princípio sacrossanto do direito internacional humanitário, na medida em que é aquele que possibilita, pelo menos em teoria, a protecção da população civil presente em cenários de guerra. Comporta uma excepção, que se compreende raciocinando através de uma lógica militar: esta imunidade que protege elementos da população civil dissolve-se assim que estes peguem em armas e participem directamente nas hostilidades79, uma vez que nesse caso estarão a ter um papel activo no confl ito armado.

De todos estes princípios decorre a máxima que teremos presente até ao fi nal desta investigação: é absolutamente proibido atacar directamente a população civil no contexto de um confl ito armado. Tal acto viola todos os princípios fundamentais do direito internacional humanitário, na medida em que não é necessário para obter vantagens militares, não é humano, não distingue entre militares e civis e, evidentemente, não é proporcional. Mas vejamos mais de perto a

there is no standard of comparison. Is one, for example, compelled to think in terms of a certain number of casualties as justifi ed in the gaining of a specifi ed number of yards? Such precise relationships are so far removed from reality as to be unthinkable” – Robert R. BAXTER, apud Antonio CASSESE, Current Trends..., ob. cit., p. 22.

78 Vide o Manual britânico de Direito dos Confl itos Armados, ob. cit., p. 24.79 Para Nils Meltzer, “[f]or the purposes of the principle of distinction, the

defi nition of civilian refers to those persons who enjoy immunity from direct attack unless and for such time as they take a direct part in hostilities” – vide Nils MELTZER, Interpretative Guidance on the Notion of Direct Participation In Hostilities under International Humanitarian Law, ICRC, 2009, p. 20.

protecção jurídica do direito internacional humanitário relativamente a actos armados contra a população civil.

4.2. Actos armados contra a população civil

Desde logo, há que frisar que a violência armada contra civis choca essencialmente pelo desequilíbrio de forças em causa: de um lado, forças militares ou paramilitares, em geral fortemente armadas,treinadas e mentalizadas para o combate; do outro, elementos heterogéneos da população civil, desarmados, não treinados e não preparados para qualquer tipo de confronto armado. Trata-se de um tipo de violência que entendemos como profundamente injusta (se é que há algum tipo que possa ser tido como justo...) e desigual.

Em segundo lugar, convém referir que, como vimos, estamos perante uma matéria regulada pelo direito internacional humanitário. Ora, como deixámos já antever, este estabelece uma distinção de regime entre confl itos internacionais, nos quais estão em confronto Estados ou beligerantes (um conceito que terá já caído em desuso), e confl itos não internacionais, em que se enfrentam um Estado e grupos armados mais ou menos organizados ou simplesmente grupos armados. Se é verdade que a distinção entre os dois já implicou uma enorme diferença de regime, com uma previsão exaustiva de normas e relativamente ampla protecção conferida à população civil para os primeiros e uma previsão mínima e insufi ciente para os segundos, deve assinalar-se que hoje em dia essa diferença se esbateu um pouco, embora continue a haver algumas diferenças de regime. Sem a pretensão de sermos exaustivos, iremos abordar cada um dos regimes no que diz respeito à protecção da população civil quanto aos efeitos dos confl itos armados.

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4.2.1. No contexto de conflitos armados internacionais

Embora as categorias de confl itos abrangidas pelo direito internacional humanitário tenham sido criadas numa época em que predominavam os grandes confl itos entre Estados, o que hoje não acontece – e em que, em consequência disso, eram estas as grandes guerras que mereciam tratamento jurídico e refl exão fi losófi ca – a verdade é que, uma vez criadas, as categorizações tendem a manter-se, ainda que a realidade que lhes subjaz se altere profundamente. Por esse motivo, a grande divisão entre confl itos internacionais e confl itos não internacionais continua a existir e a comportar regimes jurídicos diferentes, embora a realidade material se tenha alterado a tal ponto que alguns autores começam a questionar se não fará sentido esbater uma tal fronteira jurídica80.

Contudo, por enquanto, é esta a terminologia que está em vigor e é a ela que nos devemos ater. Deste modo, quando falamos em confl itos internacionais temos em mente confl itos entre Estados81, com todo o seu poderio bélico, embora esta categoria também tenha abrangido, no grande boom de movimentos de libertação nacional do século passado, as chamadas guerras de libertação nacional, destinadas a conquistar pela força o direito dos povos à auto-determinação,

80 Segundo Roger Bartels, “[s]ome authors have commented that the distinc-tion between IAC and NIAC is ‘truly artifi cial’, ‘arbitrary’, ‘undesirable’’and ‘diffi cult to justify’, and that it ‘frustrates the humanitarian purpose of the law of war in most of the instances in which war occurs now”. Para uma autora citada por Bartels, Liesbeth Zegveld, a prática internacional tem demonstrado a trend to diminish the relevance of the distinction between the law applicable to internatio-nal and internal armed confl icts. Trata-se de uma problemática interessante, mas que não nos cabe analisar nesta sede. Para uma leitura sobre o assunto vide Roger BARTELS, Timelines, borderlines and confl icts: The historical evolution of the legal divide between international and non-international armed confl icts, International Review of the Red Cross, vol. 91, Number 873, March 2009.

81 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 71.

e a cujos grupos armados era reconhecido o estatuto jurídico de beligerante82.

As normas relevantes para a protecção de civis no âmbito de confl itos internacionais resultam da Convenção de Genebra IV de 1949 e do Protocolo Adicional I de 1977. Entre estas, destacamos: i) a obrigação de distinção entre combatentes e civis através de uniformes e emblemas reconhecíveis83; ii) a consagração de uma protecção geral da população civil contra os perigos que advêm de operações militares84; iii) a proibição de fazer de populações civis objecto de ataque, ou seja, a proibição de ataques directos a civis85;iv) a proibição de ataques indiscriminados contra civis, ou seja, deataques que não sejam direccionados para um objectivo militarespecífi co, que utilizem técnicas ou tácticas que não permitamdistinguir entre objectos militares e civis ou cujos efeitos não possam ser limitados de acordo com o Protocolo86; v) a proibição de represálias contra civis87; vi) a proibição de recorrer a civis como escudo88; vii) a proibição de atacar objectos civis89; viii) a obrigação de tomar medidas preventivas no momento do ataque com vista à salvaguarda da população civil90.

82 Sobre o estatuto de beligerante vide Roger BARTELS, ob. cit., pp. 50 segs. Sobre as guerras de libertação nacional, vide Antonio CASSESE, Wars of National Liberation and Humanitarian Law, The Human Dimension of International Law – Selected Papers, Oxford University Press, 2008, pp. 98 segs.

83 Artigo 48º do Protocolo I, considerado basic rule pelo texto do próprio Protocolo.

84 Artigo 51º do Protocolo I.85 Artigo 51º, nº 2 do Protocolo I.86 Artigo 51º, nº 4 do Protocolo I. 87 Artigo 51º, nº 6 do Protocolo I.88 Artigo 51º, nº 7 do Protocolo I.89 Artigos 52º e seguintes do Protocolo I.90 Artigos 57º e 58º do Protocolo I.

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Como se depreende do conjunto de normas mencionadas, trata-se de um regime que, quando observado, garante à população civil alguma protecção quanto aos efeitos nefastos causados pelos confl itos armados. E se no âmbito destes confl itos, cujos protagonistas são os Estados, impende sobre os mesmos a obrigação de respeitar estes princípios e estas normas, o mesmo não acontece, como veremos de seguida, no âmbito dos confl itos armados não internacionais, cujos protagonistas não gozam de iguais incentivos ao respeito por normas semelhantes.

4.2.2. No contexto de conflitos armados não internacionais

A história dos confl itos armados não internacionais ajuda a explicar por que motivo estes têm merecido um tratamento jurídico muito mais incipiente pelo direito internacional humanitário do que os seus equivalentes internacionais91. Por um lado, o seu aparecimento enquanto fenómeno jurídico, na altura designado guerra civil92, está intimamente ligado à criação da fi gura do Estado moderno93 e ao estabelecimento de uma ordem jurídica interna pacifi cada que atribui o

91 Michael J. Matheson apresenta uma lista de possíveis justifi cações para o facto de o regime jurídico dos confl itos armados não internacionais ser tradicionalmente menos detalhado e completo do que o dos confl itos internacionais. Vide Michael J. MATHESON, The New International Humanitarian Law and its Enforcement, Les règles et institutions du droit international humanitaire à l’épreuve des confl its armés récents – Rules and Institutions of International Humanitarian Law Put to the Test of Recent Armed Confl icts, Académie de Droit International de la Haye – Hague Academy of International Law, Martinus Nijhoff Publishers, 2010, p. 140.

92 Para uma paradigmática análise deste assunto vide Stefan OETER, Civil War, Humanitarian Law and the United Nations, Max Planck Yearbook of United Nations Law, vol. 1 (1997), pp. 195-229.

93 Nas palavras de Stefan Oeter, civil war as a legal phenomenon, in contrast to inter-State wars, is linked indissolubly in a historical perspective to the rise of the modern State. Vide Stefan OETER, ob. cit., p. 196.

monopólio do uso da força ao poder estatal94. Por outro lado, o princípio da soberania dos Estados, na sua vertente externa, e a percepção deuma eventual regulação desses confl itos pelo direito internacional como ingerência nos assuntos internos de cada Estado95 tem implicado uma enorme resistência dos Estados ao estabelecimento de um regime jurídico tão detalhado como o dos confl itos internacionais. Por estes motivos – e porque os Estados continuam a não ver como uma situação de paridade o confronto entre as suas forças ofi ciais e grupos armados que se lhes oponham96 –, as normas internacionais aplicáveis a confl itos não internacionais são muito menos numerosas e detalhadas do que as que tutelam os confl itos internacionais.

Antes de 1977 e da adopção do Protocolo II às Convenções de Genebra, havia apenas uma norma aplicável aos confl itos internos, que constava do artigo 3º, comum às quatro convenções de 1949. Este artigo previa apenas um standard mínimo de protecção, que reduzia a liberdade dos Estados de recorrer ao uso da força contra grupos envolvidos contra si numa guerra civil, estabelecendo algumas garantias para os feridos, para os prisioneiros de guerra e para a

94 Stefan OETER, ob. cit., p. 197. 95 Esta é uma das justifi cações avançadas por Michael J. Matheson, para quem

a insufi ciência das normas internacionais relativas aos confl itos internos resulta, entre outros factores, de uma tendência de muitos governos to resist international regulation of internal confl icts as an intrusion on national sovereignty and an excuse for foreign intervention. Vide Michael J. MATHESON, ob. cit., p. 140.

96 Não nos esqueçamos de que, na perspectiva dos Estados, grupos armados que se lhes oponham pela força são considerados rebeldes, terroristas ou criminosos: [t]he ‘civilian’ waging armed resistance against its State became liable to serious penalties under the crimes of breach of public Peace, rebellion, hifh treason. Vide Stefan OETER, ob. cit., p. 197. Também Antonio Cassese nos diz que in time of civil wars, the legitimate government considers armed rebellion to be a serious offence and treats insurgents as common criminal who have violated the core principles of the constitution. Vide Antonio CASSESE, Civil War and International Law, The Human Dimension of International Law – Selected Papers, Oxford University Press, 2008, p. 111.

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população civil97. Uma tal protecção era manifestamente insufi ciente, representando uma diferença abissal de regime jurídico entre os dois tipos de confl itos conhecidos.

Só em 1977, com a adopção do referido Protocolo II, a situação melhorou ligeiramente – ainda que não de forma substancial. No que diz respeito à protecção da população civil quanto aos efeitos dos confl itos, esta passa a gozar de uma protecção geral dos perigos resultantes das operações militares98, o que inclui a proibição de serobjecto de ataque e vítima de actos destinados a assustar e a espalhar o terror pela população99. Tal como nos confl itos internacionais, esta protecção deixa de ser aplicável a elementos da população civil que participem directamente nas hostilidades100. Estão também abrangidos por esta imunidade os objectos indispensáveis à sobrevivência da população civil101, bem como instalações consideradas perigosas102, bens culturais e locais de culto103.

Comparando as normas respeitantes à protecção de populações civis aplicáveis em situações de confl ito internacional e em confl itos não internacionais, detecta-se que aos segundos não se aplica uma série de regras consideradas fundamentais no primeiro tipo de confl ito104. São elas: i) a proibição de ataques indiscriminados, ataques que causem baixas civis desproporcionais à vantagem militar ganha e ataques direccionados a zonas altamente povoadas por civis com o intuito de destruir objectivos militares aí presentes105; ii) a proibição de represálias contra civis106; iii) a proibição de utilizar civis como

97 Stefan OETER, ob. cit., p. 202. 98 Artigo 13º, nº 1 do Protocolo II. 99 Artigo 13º, nº 2 do Protocolo II.100 Artigo 13º, nº 3 do Protocolo II.101 Artigo 14º do Protocolo II.102 Artigo 15º do Protocolo II.103 Artigo 16º do Protocolo II.104 Michael J. MATHESON, ob. cit., p. 141. 105 Artigo 51º, nºs 4 e 5 do Protocolo I, sem equivalente no Protocolo II.106 Artigo 51º, nº 6 do Protocolo I, sem equivalente no Protocolo II.

escudo humano107; iv) a proibição de atacar objectos civis que não sejam relevantes para objectivos militares108; v) a obrigação de tomar todas as medidas possíveis para evitar ou minimizar ferimentos e danos civis e de avisar antecipadamente da ocorrência de ataques passíveis de afectar a população civil109.

Daqui resulta o quadro normativo em vigor para os confl itos não internacionais, no que diz respeito à protecção de civis potencialmente afectados pelo confl ito, até meados da década de noventa do século XX. Com efeito, em 1996 foi adoptado um Protocolo Adicional à Convenção da ONU relativa à Proibição de Determinadas Armas Convencionais110 que representou uma viragem histórica111 que deu início ao gradual alargamento do âmbito de protecção conferido pelo regime dos confl itos não internacionais. Este Protocolo, dedicado à matéria das minas antipessoais, veio estender a aplicação de regrasbásicas de direito internacional humanitário não constantes do Protocolo II aos confl itos armados não internacionais, que assim passaram a ser aplicáveis a ambos os tipos de confl ito112. Entre tais regras, encontram-se a proibição de ataques indiscriminados e a proibição de represálias contra a população civil113.

Após a adopção deste Protocolo, seguiram-se outros documentos que estenderam os seus efeitos a confl itos não internacionais, dos quais destacamos a sua Convenção-mãe, que foi alterada de modo a que todos os seus protocolos passassem a abranger também confl itos não internacionais114.

107 Artigo 51º, nº 7 do Protocolo I, sem equivalente no Protocolo II.108 Artigo 52º do Protocolo I, sem equivalente no Protocolo II.109 Artigo 57º, nºs 2 e 3 do Protocolo I, sem equivalente no Protocolo II.110 Vide nota 72. 111 The historic breakthrough, nas palavras de Michael J. Matheson – ob. cit.,

p. 142.112 Michael J. MATHESON, ob. cit., p. 143.113 Michael J. MATHESON, ob. cit., p. 143.114 Michael J. MATHESON, ob. cit., pp. 143-144.

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Apesar do gradual alargamento do âmbito de protecção das populações civis potencialmente afectadas pelos confl itos armadosnão internacionais e das palavras esperançosas de Michael J. MATHESON115, a regulação internacional deste tipo de confl itos deixa ainda muito a desejar, particularmente se tivermos em conta que hoje, e desde a Segunda Guerra Mundial, este tipo de confl itos é mais comum116 do que os internacionais, causando muito mais baixas civis e um sofrimento117 bastante mais generalizado em toda a população.Sobretudo se a este facto acrescentarmos o incumprimento118 (e mesmo desconhecimento) da grande maioria destas normas por parte dos grupos armados envolvidos nos confl itos não internacionais, esvaziando-as de qualquer efeito prático e comprometendo seriamentea realização da promessa119 do direito internacional humanitário de proteger a população civil dos efeitos devastadores da violência inerente aos confl itos armados.

115 Para o autor, [t]he historical aversion of States to recognizing the applicability of rigorous IHL norms to non-international confl icts has been breached and it is hopefully only a matter of time before this is fully codifi ed. Vide Michael J. MATHESON, ob. cit., p. 145.

116 Vide Michael J. MATHESON, ob. cit., p. 141.117 Segundo Antonio Cassese, uma vez que os confl itos armados não internacionais

se caracterizam essencialmente por serem confl itos assimétricos, [they] are more barbaric and cruel than wars between States, mainly because the two parties are not on an equal footing – Civil War..., ob. cit., p. 112.

118 Para Nils Meltzer, [w]hile it is generally recognized that non-state belligerents are subject to international humanitarian law and international criminal law and, thus, are legally obliged to protect and respect the civilian population in situations of armed confl ict, international law provides them with few incentives for complying with this obligation – Bolstering..., ob. cit., p. 515.

119 Vide nota 59.

4.2.3. Fora do âmbito do direito internacional humanitário

Quando falamos em actos armados contra populações civis fora do âmbito do direito internacional humanitário, temos essencialmenteem mente três situações distintas. A primeira, que porventura não se situará exactamente fora do âmbito desse ramo de direito internacional mas sim numa zona cinzenta de regulação (por não se deixar enquadrarperfeitamente em nenhuma das categorias de confl itos aí existentes), diz respeito aos confl itos transnacionais. A segunda, indubitavelmente extrínseca ao âmbito de aplicação do direito internacional humanitário, situa-se no plano dos ataques terroristas perpetrados por um Estado, ou por uma entidade não estatal, em território de outro Estado fora do contexto de um confl ito armado, cujo estatuto jurídico-internacional ainda não se encontra defi nido e muito menos regulado. E a terceira, igualmente situada numa zona cinzenta e em estreita ligação com a situação anterior, prende-se com a abundante utilização de drones para execuções sumárias à distância (extrajudicial killings, na expressão inglesa), principalmente pelos Estados Unidos da América em território de Estados como o Paquistão, o Afeganistão, o Iémen e a Somália120. Passaremos rapidamente em revista cada uma destas situações e a sua potencial categorização como catástrofe tecnológica.

4.2.3.1. Conflitos transnacionais

Como vimos supra121, alguns autores advogam o fi m da distinção entre confl itos internacionais e confl itos não internacionais, bem como da dualidade de regimes prevista pelo direito internacional humanitário. Um dos motivos pelos quais o fazem prende-se com a difi culdade de categorização de certos tipos de confl ito que, por

120 Vide Mary Ellen O’CONNOR, ob. cit., p. 122.121 Vide nota 80.

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revestirem características mistas, não se deixam subsumir totalmente a nenhuma das categorias previstas. Casos, por exemplo, em que um grupo armado de um Estado entra em confl ito com outro Estado, fronteiriço ou não, sem que haja uma oposição entre dois Estados soberanos ou entre grupos armados operantes dentro do mesmo Estado, ou ainda entre um grupo armado e o Estado onde este opera. Em situações deste tipo, recorrendo às palavras de Sylvain Vité, the hostilities take place in a cross-border basis122, pelo que se torna verdadeiramente difícil enquadrá-las dentro de uma das categorias existentes.

Deveremos atender à qualidade de Estado de uma das partes e considerar o confl ito como internacional? E, nesse caso, os membros do grupo armado são considerados combatentes ou civis que participam directamente nas hostilidades? Ou será que, para citar ainda Sylvain Vité, se deverá criar uma nova categoria de confl itos não internacionais transfronteiriços123 ou até considerar estes casos como um tipo distinto de confl ito?

Um exemplo124 relativamente recente deste tipo de confl itos opôs o Hezbollah ao Estado de Israel, em 2006. De facto, a 12 de Julho desse ano, o grupo armado libanês atacou uma série de aldeias israelitas, provocando a morte de oito e a captura de dois soldados israelitas. Na sequência desse ataque, Israel lançou uma ofensiva aérea, terrestre e marítima sobre o Líbano, em retaliação pelos actos do Hezbollah. O confl ito, de elevado grau de intensidade, durou cerca de um mês, tendo terminado com um cessar-fogo acordado entre os governos de ambos os Estados. Do ponto de vista do direito internacional humanitário, a questão que se coloca é, portanto, a de saber perante que tipo de confl ito nos encontramos e, consequentemente, quais as normas internacionais que lhes são aplicáveis.

122 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 90.123 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 90.124 Vide Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 91.

Segundo uma Comissão de Inquérito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, estamos perante um confl ito interna-cional, ainda que as forças armadas libanesas não tenham chegado a participar directamente no confronto armado. A justifi cação125 estaria, no entender da Comissão de Inquérito, na estreita ligação entre o Hezbollah e o Estado libanês, na medida em que o primeiro é um partido político legalmente estabelecido com representação no Parlamento e no Governo do Líbano. Nesse sentido, considerando esta ligação orgânica126 entre o Hezbollah e o Líbano, a Comissão entendeu que o confl ito armado tinha sido de natureza internacional.

Segundo Sylvain VITÉ, todavia, a questão poderá não ser assim tão clara. Com efeito, para o autor127, os argumentos aduzidos pela Comissão de Inquérito poderão não ser sufi cientes para imputar os actos do Hezbollah ao Estado libanês, de acordo com as regras gerais de direito internacional. Para que tal acontecesse, os combatentes do Hezbollah teria de ter agido em nome do (e eventualmente sob as ordens de) Estado libanês, ou pelo menos teria de existir algum tipo de controlo por parte deste relativamente às acções daquele grupo armado.

A distinção é pertinente pelas razões que vimos supra128, em sede de regime jurídico específi co para cada um dos dois tipos de confl itos. Os confl itos transnacionais, por exibirem características de ambos, colocam desafi os interessantes, quer no que diz respeito à qualifi cação jurídica, quer no que toca ao corpo de normas aplicáveis. E caso se entenda que, por implicarem especifi cidades não reconduzíveisa nenhuma das categorias, devem ser objecto de um regimejurídico diverso, poderemos estar perante um novo tipo de confl ito e, consequentemente, de uma nova categoria de direito internacional

125 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 91.126 No original: organic link. Vide Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 91.127 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 91.128 Vide 4., especialmente pontos 4.2.1 e 4.2.2.

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humanitário129, ainda que incipiente. Acresce que, a verifi car-se o caminho da convergência dos dois tipos de confl itos para um sóregime, tais especifi cidades deixarão de ser relevantes, face ao novo regime unifi cado que passaria a existir.

4.2.3.2. Actos de terrorismo

O tópico do terrorismo poderá parecer um pouco deslocado, na medida em que se trata de uma problemática diversa que coloca enormes desafi os quer ao direito internacional, quer aos ordenamentos jurídicos nacionais, quer ainda aos decisores políticos de determinados Estados mais envolvidos na matéria. Contudo, uma vez que se trata de actos que afectam principalmente civis130 – e portanto, num sentido directo, estamos perante actos armados contra civis – pareceu-nos pertinente abordar nesta sede alguns aspectos relevantes suscitados pela prática de actos terroristas contra populações civis.

Desde logo, há que distinguir entre duas situações diversas: de um lado, a prática de actos terroristas dentro do contexto de um confl ito armado; do outro lado, a prática de actos terroristas fora de um tal enquadramento. Uma tal distinção permite-nos compreender que, enquanto actos do primeiro tipo se encontram regulados por normas de direito internacional humanitário131, os actos referidos em segundo lugar situam-se fora de qualquer enquadramento jurídico. São esses que suscitam as maiores refl exões.

129 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 92.130 E, pelo seu impacto e magnitude, a comunidade internacional no seu todo,

bem como os Estados em que tais ataques acontecem.131 Como vimos supra, nos pontos 4.2.1 e 4.2.2, tanto nos confl itos armados

internacionais como nos confl itos armados não internacionais são proibidos actos destinados a espalhar o terror no seio da população civil. Vide também artigo 51º, nº 2 do Protocolo I, artigo 4º, nº 2, alínea d) artigo e 13º, nº 2 do Protocolo II.

A questão mais difícil que, quanto a nós, se coloca a este respeito no quadro do direito internacional consiste em determinar perante que tipo de evento jurídico internacional nos encontramos. Tratar-se-á de um crime internacional132? Tratar-se-á de uma catástrofe? E no caso de se tratar de uma catástrofe, de que tipo? Alguns autores colocamainda uma outra questão: poder-se-á reconduzir determinado conjunto de actos terroristas perpetrados por grupos armados da índole da Al-Qaeda contra Estados, no território destes, a alguma categoria de direito internacional humanitário133? A famosa guerra americana contra o terrorismo, descontando-se o vocabulário bélico a que não corresponde nenhuma categoria jurídica própria, poderá ser vista como um confl ito armado entre os Estados Unidos da América e a Al-Qaeda?

Não poderemos, evidentemente, desenvolver nesta sede tais questões com o detalhe devido. O terrorismo, enquanto conceito próprio da época em que vivemos, pode ser abordado sob vários ângulos, ora aproximando-se de uma perspectiva catastrófi ca, ora de uma perspectiva criminalística. Os ataques às torres gémeas de Nova Iorque, em Setembro de 2001, marcaram uma nova era do terrorismo organizado, com efeitos de larga escala de um horror antes inimaginável. Neste sentido, não só pela estrutura de índole criminal que sustenta estes actos, como também pelos efeitos que estes provocam na consciência – na opinião pública – internacional,não será totalmente descabido colocar a hipótese de estarmos perante actos criminosos, ainda que o Estatuto do Tribunal Pe-

132 Embora o terrorismo não conste do elenco de crimes internacionais previstos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, alguns autores não se coíbem de afi rmar que actos dessa natureza estão já contemplados pelo direito internacional costumeiro como um tipo próprio de crime internacional. Vide Antonio CASSESE, Terrorism is Also Disrupting Some Crucial Legal Categories of International Law, European Journal of International Law, vol. 12 (2001), No. 5, p. 994.

133 Sylvain VITÉ, ob. cit., p. 93.

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nal Internacional134 não o tenha incluído no seu leque de crimesinternacionais. Poderá ser visto como uma catástrofe tecnológica? Deixamos a resposta a esta questão para as nossas considerações fi nais.

4.2.3.3. Uso de drones para execuções sumárias

Tal como relativamente aos actos terroristas, também a utilização de drones – aviões não tripulados: unmanned aerial vehicules – pode ser vista em dois contextos diferentes, consoante estes sejam utilizados no âmbito de um confl ito armado ou fora dele. As questõesque os dois tipos de utilização suscitam são complexas e têm sido em grande parte descuradas, quer pelos pensadores, quer pelosactores políticos internacionais, que têm revelado um enorme grau de complacência135 relativamente ao assunto. Por um lado, a sua utilização no âmbito de confl itos armados tem acontecido sem antes passar pelo crivo das regras internacionais relativas ao armamento de guerra, nomeadamente a obrigação constante do artigo 36º do Protocolo I às Convenções de Genebra de 1949, que impõe aos Estados signatários a averiguação da conformidade ou desconformidade de novas tecnologias de guerra com as regras de direito internacional humanitário. Por outro lado, a sua utilização fora do contexto de confl itos armados, principalmente pelos Estados Unidos da América,

134 O Estatuto de Roma de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional. Textodisponível no site ofi cial do tribunal em http://www.icc-cpi.int/NR/rdonlyres/ADD16852-AEE9-4757-ABE79CDC7CF02886/283503/RomeStatutEng1.pdf.

135 A palavra é de Mary Ellen O’Connor, uma autora americana que, contra- -a-corrente, questiona e denuncia a crescente utilização deste tipo de armamento pelos Estados Unidos da América, sobretudo quando fora do âmbito de confl itosarmados. Vide Mary Ellen O’CONNOR, Seductive Drones: Learning from a Decade of Lethal Operations, Journal of Law Information and Science, vol. 21 (2011/2012), p. 117.

em ataques cirúrgicos destinados a eliminar suspeitos de actos terroristas, semelhantes a verdadeiras execuções sumárias à distância, tem acontecido perante a mais absoluta indiferença da comunidade internacional.

Em ambos os casos, os drones têm sido largamente utilizados pelos Estados que detêm esse tipo de armamento sem que uma refl exãoséria acerca das questões problemáticas que suscita acompanhasse essa utilização. Muitos autores136 limitam-se a considerar que, desdeque a sua utilização respeite as normas de direito internacional humanitário137, o uso de drones no âmbito de confl itos armados não será muito diferente da utilização de mísseis telecomandados e outros meios técnicos de ataque à distância138, não suscitando, para esses autores, novas questões jurídicas. Ora, a introdução do elemento distância com um novo signifi cado – distância não de alguns metros ou poucos quilómetros mas sim de milhares de quilómetros, com repercussões evidentes na noção de risco e de segurança – e a correlativa despersonalização139 do acto de matar são factores que,

136 A título de exemplo, referimos apenas dois: Chris JENKS, Law From Above: Unmanned Aerial Systems, Use of Force, and the Law of Armed Confl ict, North Dakota Law Review, vol. 85 (2009), pp. 650-671; e Laurie R. BLANK, After ‘Top Gun’: How Drone Strikes Impact the Law of Warfare, University of Pennsylvania of International Law, vol. 33, Issue 3 (2012), pp. 675-718.

137 Para além dos princípios e normas mencionados em 4., todo o conjunto de normas reguladoras da utilização de armamento de guerra, quer as que contêm proibições gerais, quer as que contêm proibições específi cas. Vide notas 65 e seguintes.

138 Vide Laurie R. BLANK, ob. cit., p. 683, onde a autora defende a legalidade da utilização de drones no âmbito de confl itos armados e cita um relatório de um Relator Especial da Organização das Nações Unidas sobre a questão de Extrajudicial, Arbitrary or Summary Executions, segundo o qual “a missile fi red from a drone is no different from any other commonly used weapon, including a gun fi red by a soldier or a helicopter or gunship that fi res missiles. The critical legal question is the same for each weapon: whether its specifi c use complies with IHL.”

139 Este é um dos aspectos analisados por Mary Ellen O’Connor, que demonstra de modo convincente que a distância entre os pilotos e os alvos, tal como ela é percepcionada pelos operadores de drones, lowers political and psychological barriers to killing. Vide Mary Ellen O’CONNOR, ob. cit., p. 118.

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quanto a nós, relevam sobremaneira na avaliação do impacto da utilização de drones no âmbito de confl itos armados, podendo ser perigosa a sua equiparação a outro tipo de equipamento militar.

Já o segundo tipo de uso de drones, que corresponde a um método de eliminar suspeitos de actos terroristas no âmbito de uma alegada luta contra o terrorismo, suscita um outro leque de questões, que não nos cabe averiguar no âmbito deste estudo. Cumpre salientar, ainda assim, e dada a estreita ligação entre esta e a questão de fundo que a perpassa, que não poderemos deixar de nos questionar sobre a natureza do fenómeno jurídico perante o qual nos encontramos, no que diz respeito a esta segunda utilização de drones: estaremos, tal como quanto a actos terroristas, no âmbito de um quadro penal internacional, ou, pelo contrário, no âmbito de um cenário catastrófi co, composto quer pelos actos terroristas, quer pelos ataques cirúrgicos operados por drones em resposta aos primeiros?

5. O elemento intencional de um acto armado contra civis

Analisado, ainda que de forma forçosamente breve, o quadro jurídico-internacional aplicável a situações de confl itos armados, é tempo de regressarmos ao ponto de partida.

Tal como vimos supra140, o conceito de catástrofe tecnológica caracteriza-se essencialmente pelo elemento risco, que é inerente às actividades no âmbito das quais tais desastres poderão ocorrer. Deste modo, é precisamente a noção de risco – associada, evidentemente, ao conceito de acidente – que anima o termo “catástrofe tecnológica”.

Ora, se analisarmos sob o mesmo prisma os actos de guerra que compõem os confl itos armados, quer estes sejam internacionais ou não, será que encontramos uma lógica semelhante, baseada no risco? Quando um ser humano, militar ou civil, que participe directamente

140 Vide Capítulo 2.

nas hostilidades, direcciona uma bomba, um míssil, um projéctil, um drone ou uma simples granada a populações civis (quer directamente, quer indirectamente) será que estamos perante um acto inserido numa lógica de risco (e de racionalidade custo/benefício) ou, pelo contrário, perante uma lógica de intencionalidade e volição humana?

Em nosso entender, parece-nos clara a distinção lógica entre ambas as categorias. Ainda que a racionalidade militar seja diferente da racionalidade civil, admitindo-se na primeira situações totalmente impensáveis na segunda141, tal diferença não pode estender-se ao ponto de se aceitar que uma noção de risco do tipo custo/benefíciopossa vigorar quando estão em causa ataques armados contra populações civis – portanto, segmentos populacionais externos ao confl ito em causa. Admitir uma tal hipótese seria desconsiderar de forma grosseira quaisquer considerações de índole humanitária, inclusivamente o próprio respeito pelos direitos humanos. Um acto armado contra populações civis indefesas é, ao que nos parece, um acto intencional, desconforme ao direito internacional humanitário e violador das mais básicas considerações de justiça.

Acresce que, quando nos deparamos com cenários de guerraassombrados por números desoladores de mortos e refugiados civis142,[c]’est désormais une logique d’assistance humanitaire qui domine, logique qu’on ne rencontre pas, sous cette forme et à ce degré, dans lesinstruments juridiques qui portent sur les catastrophes industrielles143,para usar as palavras precisas de Charles Leben. De facto, as catástrofes

141 Tal como vimos supra, no ponto 4.1., a lógica militar admite baixas civis como consequência de ataques a objectivos militares, desde que aquelas não excedam o necessário para a conquista do objective militar pretendido. Uma tal lógica seria impensável do ponto de vista não militar.

142 E, infelizmente, não precisamos de ir muito longe na história para termos presente cenários semelhantes... Basta ler os jornais e acompanhar a terrível situação que se vive na Síria, onde números insondáveis de civis são dizimados a cada dia que passa...

143 Charles LEBEN, ob. cit., p. 78.

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tecnológicas propriamente ditas não mobilizam da mesma forma a noção de urgência humanitária, convocando mais facilmente assistência técnica e recursos humanos para fazer face ao processode limpeza e recuperação da área afectada do que contingentes de ajuda humanitária. Convém não esquecer também, recorrendo ainda as refl exões de Charles Leben, que [l]es guerres internes ou internationales sont les seules catastrophes d’origine humaine qui peuvent dépasser les violences les plus meurtrières des phénomènes naturels144, uma ideia que certamente faria Hobbes reafi rmar a validade da sua tese segundo a qual o Homem é o lobo do Homem – se é que podemos reduzir uma construção teórica de fôlego a uma frase apenas.

Perante tudo isto, será que podemos classifi car actos de guerra perpetrados contra civis, em contexto de confl ito armado, como catástrofes tecnológicas? Ou, inversamente, será outro conceito mais adequado à sua realidade? Uma terceira questão poderia consistir ainda em saber até que ponto será vantajoso tipifi car actos armados contra civis em contexto de confl itos regulados pelo direito internacional humanitário como catástrofe – independentemente do qualifi cativo adoptado – existindo já um quadro jurídico aplicável a essa matéria... E, por fi m, será que não estaremos afi nal no âmbito de uma lógica criminalística, nomeadamente perante crimes de guerra? A estas questões daremos resposta nas nossas considerações fi nais.

6. A impunidade e a era mediática – os limites do direito internacional

Se hoje nos questionamos sequer acerca da natureza jurídica de actos de guerra contra a população civil, dada a percepção de tais actos sob o prisma de catástrofe, tal deve-se em grande parte ao facto de a própria forma de fazer guerra ter sofrido enormes transformações

144 Charles LEBEN, ob. cit., p. 82.

desde meados do século XX. Como demos nota supra145, tais alterações não são estranhas à evolução da própria tecnologia, e nesse sentido sãohistoricamente naturais. Contudo, na História recente da humanidade, tais mudanças foram para além da evolução tecnológica e tiveram repercussões profundas no impacto da guerra sobre as sociedades humanas. Com efeito, como vimos no ponto 3.3, uma das principais características dos confl itos armados contemporâneos prende-se com o efeito devastador destes sobre as populações civis, que se traduz muito cruamente nos elevados números de baixas, feridos e refugiados dessas mesmas populações146.

Tais efeitos resultam essencialmente de três grandes transformações visíveis na forma de condução da guerra, por comparação ao modo como esta era conduzida antes do dealbar do século XX, a saber: o facto de a guerra ter hoje contornos fl agrantemente assimétricos (asymmetrical warfare), a infl uência mediática e a sua manipulação por parte dos exércitos/grupos armados menos tecnologicamente apetrechados e, por fi m, em consequência de tudo isto, a insufi ciente aplicação das normas de direito internacional humanitário.

Como afi rmámos supra147, uma das características das guerras actuais que mais se traduz nos elevados números de baixas civis diz respeito à desigual distribuição da tecnologia de guerra pelos exércitos e grupos armados envolvidos em confl itos armados. De facto, um

145 Vide Capítulo 3, especialmente ponto 3.2.146 Vale a pena ler os vários relatórios preparados pelo Comité Internacional da

Cruz Vermelha sobre o assunto. A título de exemplo, deixamos aqui uma passagem, que demonstra bem a realidade daquilo que dizemos: Today, civilians still bear the brunt of armed confl icts. Civilians have remained the primary victims of violations of IHL committed by both State parties and non-State armed groups. Deliberate attacks against civilians, forced displacement of civilian populations, the destruction of infrastructure vital to the civilian population and of civilian property are just some examples of prohibited acts that have been perpetrated on a regular basis. Vide International humanitarian law and the challenges of contemporary armed confl icts, ob. cit., p. 719.

147 Vide ponto 3.2, parte fi nal.

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tal desequilíbrio de meios, que opõe, a título de exemplo, drones, mísseis antiaéreos, GPS, radares, sonares e afi ns a metralhadoras, bombas artesanais e a guerras de guerrilha (guerrilla warfare), só se pode traduzir na tentativa de superação dessas lacunas técnicas por outras vias. Tais vias serão precisamente aquelas que, por recorrerem a meios insidiosos de combate, são expressamente proibidas pelo direito internacional humanitário... como, por exemplo, a utilização de civis como escudo humano, a não adopção de medidas que facilitem a distinção entre civis e combatentes, incluindo a utilização deliberada de emblemas e distintivos de entidades protegidas com o objectivo de ludibriar o inimigo, entre outros expedientes da mesma índole148. Trata-se de acções que, mais do que afectar os exércitos poderosos de Estados dotados da mais moderna tecnologia de guerra nas suas posições bélicas, afectam as populações civis que se encontram encurraladas em medonhos cenários de guerra.

Um outro meio utilizado por grupos armados com capacidade tecnológica defi citária que em muito contribui para a modelação das formas contemporâneas de fazer guerra relaciona-se com um dos aspectos mais omnipresentes e poderosos da vida do século XXI: a cobertura mediática incessante de eventos de todo o mundo. Cientes do poder de uma imagem – particularmente uma imagem de violência e de sofrimento –, os grupos armados directamente envolvidos num confl ito não se coíbem de recorrer a esse mesmo expediente como forma de obter visibilidade mediática que se traduza numa forma de pressão internacional sobre a contraparte altamente

148 É precisamente o que vem descrito no relatório do Comité Internacional da Cruz Vermelha de 2007: When under attack, a belligerent party that is weaker in military strength and technological capacity may be tempted to hide from modern sophisticated means and methods of warfare. As a consequence, it may be led to engage in practices prohibited by IHL, such as feigning protected status, mingling combatants and military objectives with the civilian population and civilian objects, or using civilians as human shields. Such practices clearly increase the risk of incidental civilian casualties and damage. Vide ob. cit., p. 732.

militarizada no sentido de iniciar diligências que ponham termo ao confl ito149. Deste modo, a própria comunicação social é utilizada como meio de combate pelas partes do confl ito com menos capacidade tecnológica, como meio de suprir essa lacuna.

Infelizmente, a prova de que esses meios surtem efeito – pelo que continuarão previsivelmente a ser utilizados num futuro próximo... – está dependente de todos nós e reconduz-se à ideia, desenvolvida supra150, de que a guerra é hoje percepcionada como um fenómeno catastrófi co151. De facto, é também em virtude da sobre-exposição mediática que não dissociamos hoje a ideia de guerra da ideia de catástrofe. Independentemente das concepções morais de cada indivíduo, do sistema fi losófi co que as justifi que ou de considerações sociológicas que expliquem o mundo de hoje, a ligação da ideia de guerra à noção de catástrofe é também profundamente emocional e está intrinsecamente ligada à era audiovisual em que vivemos. Consideramos a guerra uma catástrofe também porque a vemos em directo nos nossos ecrãs, estabelecemos uma relação emocional com o que se passa naquela parte do mundo e vibramos com o horror completo a que assistimos.

De tudo isto resulta evidente o terceiro aspecto mencionado no início deste ponto, e que consiste na insufi ciente aplicação das normasde direito internacional humanitário. Para recorrer às palavras elucidativas do Comité Internacional da Cruz Vermelha152: Insuffi cient

149 Mais uma vez, é o que denuncia o relatório do Comité Internacional da Cruz Vermelha de 2007: [p]rovoking incidental civilian casualties and damage may sometimes even be deliberately sought by the party that is the object of the attack. The ultimate aim may be to benefi t from the signifi cant negative impression conveyed by media coverage of such incidents. The idea is to ‘‘generate’’ pictures of civilian deaths and injuries and thereby to undermine support for the continuation of the adversary’s military action. Vide ob. cit., p. 732.

150 Vide 3., principalmente o ponto 3.1.151 Ainda que possa eventualmente não o ser do ponto de vista técnico-jurídico.152 ICRC Report: Humanitarian Law and the Challenges of Contemporary

Armed Confl ict, 28th International Conference of the Red Cross and Red Crescent,

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respect for the rules of international humanitarian law has been a constant – and unfortunate – result of the lack of political will and practical ability of states and armed groups engaged in armed confl ict to abide by their legal obligations. Se os Estados têm incentivos evidentes para respeitar as normas de direito internacional humanitário – e ainda assim muitos não o fazem – tais como usufruir do benefício do estatuto de prisioneiro de guerra e de todas as protecções garantidas pelas Convenções de Genebra de 1949 eProtocolo Adicionais de 1977, o mesmo não acontece quanto aos grupos armados. Na verdade, no que toca a estes grupos, é difícil encontrar incentivos153 para que observem tais normas, que muitas vezes nem sequer conhecem. Deste modo, enquanto não houver vontade política para alterar o status quo, a face da guerra contemporânea permanecerá inalterada, sendo difícil sondar os caminhos futuros que tomará.

7. Considerações finais

Começámos este trabalho com três ordens de questões a investigar: em primeiro lugar, o que é e o que caracteriza uma catástrofetecnológica? Em segundo lugar, o que caracteriza os confl itos armados contemporâneos e qual o seu quadro jurídico internacional? Finalmente, operando uma ligação entre as duas primeiras questões, será que podemos classifi car actos de guerra perpetrados contra civis no contexto desses confl itos como catástrofes tecnológicas? E ainda, como questão acessória, haverá outro tipo de actos armados contra civis, fora do âmbito desses confl itos, que possam ser classifi cados como catástrofes tecnológicas?

2-6 December 2003, Report prepared by The International Committee of the Red Cross, p. 20.

153 Para uma análise sistemática desta falta de incentivos vide Nils MELTZER, Bolstering..., ob. cit., pp. 509 segs.

Para tentar responder a este leque de questões, começámos por delimitar e clarifi car o conceito de catástrofe e os vários subtipos em que este se pode desdobrar. Confi rmámos a difi culdade de defi nir conceitos ainda incipientes no vocabulário jurídico-internacional e a inexistência, quer de um ramo de direito internacional próprio dedicado ao tema das catástrofes, quer de um regime jurídico aplicável a situações reconduzíveis a esse conceito. Deste modo, preparámos o terreno para navegar em águas pouco claras, munindo-nos de conceitosque nos ajudassem a discernir formas concretas, de signifi cado mais preciso, sob as águas turvas.

Por este motivo, procurámos esclarecer de forma sucinta as acepçõesgeralmente atribuídas ao conceito de catástrofe tecnológica, bem como as características que lhe estão em regra associadas. Assim, encontrámos o elemento que, ao que nos parece, melhor traduz a lógica inerente a este tipo de catástrofes, e que consiste precisamente na gestão do risco associado ao desenvolvimento de actividades industriais susceptíveis de dar origem a esse tipo de acidentes de larga escala.

De seguida, partimos para a análise dos confl itos armados, procurando elencar as características da guerra contemporânea e as causas da sua percepção como fenómeno catastrófi co. Determinámos quais os elos entre guerra e tecnologia, constatando que se trata de uma relação orgânica, complexa, mas não determinística, não dependendo apenas da tecnologia os resultados fi nais de um confl ito armado. Aventámos também a ideia de que esta complexa relação entre guerra e tecnologia não é uma novidade histórica, na medida em que a guerra implicou sempre o recurso a tecnologia, mesmo quando esta não era mais do que uma pedra aguçada presa a um pedaçode madeira. A novidade contemporânea reside mais numa diferença de grau e de intensidade do que numa diferença de qualidade: a prossecução de vantagem competitiva através da inovação tecnológica, que se desenrola a uma velocidade estonteante durante o tempo de vida – de carreira – de um ser humano, essa é a novidade histórica que caracteriza a lógica bélica contemporânea. Uma outra novidade

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histórica de relevo consiste na referida percepção da guerra – de confl itos armados – como algo catastrófi co, e não como um fenómeno comum e regular da vida em sociedade. Vimos ainda os modos em que a própria condução da guerra (warfare) se alterou ao longo do último século, em virtude de um conjunto de factores bem analisados ao longo deste trabalho. A alteração mais visível, e porventura mais inquietante, prende-se com o violentíssimo impacto que a guerra tem agora sobre a população civil.

Partimos depois para o enquadramento jurídico dos confl itos armados no âmbito do direito internacional. Demonstrámos a sua tradicional subdivisão em confl itos armados internacionais e confl itos armados não internacionais e a forma como cada um destes se encontra regulada pelo direito internacional humanitário. Das normas e princípios fundamentais deste ramo de direito, destacámos aquelas que protegem a população civil dos efeitos nefastos dos confl itos armados, particularmente a norma que proíbe o ataque directo a civis e a objectos reputados necessários para a sua sobrevivência. Como vimos, tais actos são fortemente condenados pelo direito internacional humanitário, pelo que poderão mesmo constituir crimes de guerra, embora na prática, dada a fraca implementação das normas em causa, os seus autores gozem de absoluta impunidade.

De seguida, levantámos algumas questões relativamente a três casos que poderão ou não enquadrar-se no âmbito do direito internacionalhumanitário, e indagámos qual o seu possível estatuto jurídico nos casos em que não se enquadrassem. Confl itos transnacionais, actos terroristas e a execução de indivíduos através de drones suscitam problemas de várias ordens, ao mesmo tempo que poderão abrir uma janela de aplicação do conceito de catástrofe tecnológica.

Por fi m, retomámos as questões iniciais e comparámos os conceitosde catástrofe tecnológica e de actos armados contra populações civis: estaremos perante lógicas semelhantes? Demonstrámos que não, uma vez que às actividades por detrás da primeira corresponde uma lógica de gestão de risco, segundo uma análise do tipo custo/benefício, enquanto que aos segundos corresponde um elemento volitivo do

tipo intencional. Por este motivo, reformulámos as questões iniciais no sentido de determinar se fará algum sentido classifi car actos de guerra perpetrados contra civis, no âmbito de um confl ito armado, como catástrofes tecnológicas, e até se se justifi cará tipifi car actosarmados contra civis em contexto de confl itos regulados pelo direito internacional humanitário como catástrofe (tecnológica ou outra) existindo já um quadro jurídico aplicável a essa matéria. Aventámos ainda uma outra questão, relacionada com os actos armados contra civis perpetrados fora do âmbito de aplicação do direito internacional humanitário – como por exemplo, actos terroristas e ataques com drones fora de um confl ito armado – e que consiste em saber se,perante estes casos, poderá fazer sentido falar em catástrofes de tipo tecnológico (ou até outro) ou se fará mais sentido falar em actos de natureza criminal, quer de ordem interna, quer eventualmente de ordem internacional.

Chegou, por fi m, o momento de responder a estas questões. Começaremos por dizer que, relativamente à primeira, não nos parece existir qualquer fundamentação para a classifi cação de actos de guerra contra populações civis, no âmbito de confl itos armados, como catástrofes tecnológicas. Não só a lógica interna de ambos os conceitos é, como vimos, totalmente diferente, como também não parece haver nenhuma vantagem jurídica a colher dessa classifi cação, uma vez que já existe um regime específi co, desenhado para a situação em análise, resultante das normas de direito internacional humanitário. Mais do que um problema de falta de regulação, estamos pois perante um problema, conhecido do direito internacional, de falta de aplicação e cumprimento do regime jurídico em vigor.

Assim, ao que nos parece, seria mais vantajoso reforçar o regi-me já existente, através de acções de sensibilização para as regras do direito internacional humanitário, da criação de incentivos para o cumprimento dessas regras, principalmente pelos grupos armados e outros actores não estatais, e da sanção do seu não cumprimento dentro do próprio ramo de direito, do que criar uma situação de ambiguidade e insegurança acrescentando novos conceitos à mesma

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realidade. Sabemos, evidentemente, que se trata de objectivos ambiciosos, na medida em que há poucos indicadores de que os Estados estarão dispostos a concretizar tais propostas, ou mesmo de que uma campanha de sensibilização junto dos grupos armados seja um projecto passível de ser, na prática, implementado.

Não nos enganemos, porém, ajuizando a absoluta inadequação do conceito de catástrofe à matéria em causa. O facto de o epíteto tecnológico ser desadequado aos actos de guerra contra civis no contexto de um confl ito armado não signifi ca que o conceito mais lato de catástrofe seja de afastar totalmente. De facto, poderá haver situações – voltamos a evocar o quadro tenebroso do confl ito que assola presentemente a Síria – em que a escala e a intensidade dos efeitos sobre a população civil convocam a atenção da comunidade internacional e despertam uma sua reacção solidária, para relembrarmos a defi nição geral de catástrofes avançada pelos autores do estudo da Academia de Direito Internacional da Haia apresentada no início deste trabalho154. Nestes casos, porém, parece-nos mais coerente colocar a questão no plano da catástrofe humanitária, em virtude do paralelismo que aí encontramos quanto às causas e efeitos dessa catástrofe.

Com efeito, as catástrofes humanitárias resultam em grande parte de violações manifestas de direitos humanos, de que é exemplo claro o genocídio, e referem-se à magnitude dos efeitos dessas violações sobre as suas vítimas. Assim, também no caso de actos armados contra civis em contexto de um confl ito armado poderemos estar perante uma catástrofe humanitária se, em virtude da violação das normas de direito internacional humanitário que protegem os civis dos efeitos dos confl itos, se gerar uma situação de larga escala de violência sobre estes, de danos e sofrimento humano que convoque a solidariedade da comunidade internacional e, eventualmente, a

154 Vide nota 3.

assistência humanitária de organizações não governamentais dedicadas a missões dessa natureza.

Finalmente, quanto à questão acessória de saber se casos de actos armados contra civis perpetrados fora do contexto de confl itos armados poderão ser qualifi cados como catástrofes ou se deverão situar-se, pelo contrário, dentro de um quadro criminal, é difícil encontrar uma resposta satisfatória. De facto, uma vez que abordámos este assunto apenas de forma adjacente à nossa questão central, não conseguimos recolher elementos sufi cientes para fundamentar umaresposta completa à questão. Contudo, poderemos avançar que, considerando as lógicas, sobejamente analisadas ao longo deste trabalho, do conceito de catástrofe e do conceito de acto armadointencional, seríamos mais facilmente levados a considerar estarmos perante uma matéria de natureza criminal – quer de ordem interna, quer eventualmente de ordem internacional – do que perante uma matéria abrangida pela ideia de catástrofe, embora seja necessária uma maior refl exão e um mais amplo debate para se alcançar mais clareza quanto a este assunto.

Face à complexidade cada vez maior de um mundo interdependente, o que não podemos fazer é fechar os olhos às questões mais sensíveis e votar ao abandono aqueles que mais sofrem com a violência do nosso mundo. Poderemos não ter poder para muito, nem coragem para ir mais longe, mas teremos sempre voz pensante e, por esse motivo, não podemos deixar nunca de questionar o mundo em que vivemos e de procurar formas de o melhorar naquilo em que pudermos.

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Capítulo VII

Acidentes industriais: o regime Seveso e outros regimes internacionais de prevenção, preparação e resposta

Rui Tavares Lanceiro

Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: I. Considerações gerais; II. A regulação pelo Direito da UE do controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas: a) A adopção das três Directivas Seveso; b) O regime Sevesode controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvemsubstâncias perigosas; i. Objectivos; ii. Âmbito de aplicação; iii. Níveis de controlo das instalações; iv. Obrigações genéricas e específi cas dos operadores; 1. Considerações gerais; 2. O dever genérico de notifi cação; 3. O dever genérico de elaborar e aplicar uma política de prevenção de acidentes graves; 4. O dever específi co de apresentação de um relatório de segurança; 5. O dever específi co de defi nir e aplicar o plano de emergênciainterno; 6. O dever de informar a autoridade competente e de adoptar medidas após um acidente grave; v. Obrigações dos Estados-Membros; 1. O dever de tomada em consideração dos estabelecimentos Seveso no ordenamento do território e urbanismo; 2. O dever de inspecção e proibição da actividade de estabelecimentos; 3. O dever de informação e consulta do público; 4. O dever de informação de outros Estados-Membros e da Comissão; 5. O dever de garantir a adopção de medidas de emergência e recolha de informações; 6. O dever específi co de defi nir e aplicar o plano de emergência externo; 7. O dever de identifi cação e adopção de medidas face ao “efeito dominó”; vi. Deveres de cooperação administrativa; vii. Obrigações da Comissão; c) Outros regimes de Direito da UE relativos ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas; III. A regulação pela UNECE do controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas: a) A Convenção sobre os Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais; i. Regime da CETAI de prevenção dos acidentes; ii. Regime CETAI de preparação de resposta aos acidentes; iii. Regime de informação e participação do público;

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iv. Regime CETAI de resposta aos acidentes; v. Os órgãos de governo da CETAI; b) Outros regimes aplicáveis no âmbito da UNECE; IV. Outros regimes internacionais de prevenção e controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas.

I. Considerações gerais

1. O presente texto tem como objectivo apresentar e contribuir para a análise dos regimes jurídicos internacionais que visam a prevenção de acidentes industriais, a preparação para os seus efeitos e a sua minimização. Nesse âmbito, dá-se especial atenção ao regime Seveso – regime aplicável na União Europeia (UE), por ser o mais desenvolvido a este nível, permitindo um maior grau de harmonização.

2. A história da regulação internacional da prevenção e assistência em caso de acidentes industriais graves não pode ser dissociada da história dos acidentes industriais – em especial dos ocorridos na segunda metade do século XX1 – pois esta regulação é, muitas das vezes, reactiva. Diversos acidentes industriais graves foram causa, directa ou indirecta, da celebração de convenções internacionais, do reforço de convenções existentes, da aprovação de regulação internacional ou da actuação de organizações internacionais nesta área. De facto, para além da gravidade destes acidentes e dos seus efeitos sobre a população e sobre o ambiente demonstrar a perigosidade da utilização de determinadas substâncias, também realçou que os impactos de um acidente industrial podem ultrapassar as fronteirasnacionais, servindo de impulso para a regulação jurídica internacional

1 Como exemplos podem ser apontados os acidentes industriais ocorridos em Seveso, Bhopal, Schweizerhalle, Enschede, Toulouse e Buncefi eld. As circunstâncias relativas a estes acidentes encontram-se desenvolvidas na parte II a) do presente texto.

da prevenção da ocorrência de acidentes industriais e da limitação dos seus efeitos. Esta tendência geral faz-se sentir um pouco por todo o mundo, mas teve consequências específi cas na Europa, nomeadamentedevido à concentração de áreas industrializadas e à elevada densidade populacional. Assim, quer a União Europeia (UE), quer a Organização das Nações Unidas para a Europa (UNECE) desempenharam um papel de charneira no desenvolvimento dos regimes internacionais relativos aos riscos de acidentes industriais graves.

3. Central a esta apresentação e análise é o conceito de acidente industrial. Este conceito pode ser alvo de alguma incerteza2 – nomeadamente quanto à defi nição do que será uma actuação considerada acidental e quais as actividades que podem ser consideradas industriais para estes efeitos. Neste caso, no entanto, ao contrário de outras áreas,não pode ser ignorado que os regimes jurídicos internacionais aplicáveis contêm já defi nições relativamente uniformes para este conceito. Para efeitos do presente texto, adoptar-se-ão as defi nições já resultantes do regime Seveso, aplicável na UE, e na Convenção sobre os Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais (CETAI) – que serão descritos infra.

2 Quanto à incerteza da defi nição de catástrofe natural ou desastre natural, cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia: a prevenção à prova nas directivas Seveso, in O Direito, nº 143, III, 2011, pp. 459-488, pp. 462-465 (também publicado em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, E. Paz Ferreira/ H. Taveira Torres/ C. Celorico Palma (org.), vol. 3, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 89-117); idem, A gestão do risco de catástrofe natural – Uma introdução na perspectiva do Direito Internacional, in Direito(s) das Catástrofes Naturais, Carla Amado Gomes (coord.), Almedina, Coimbra, 2012, pp. 15 segs, pp. 16-25; Tiago ANTUNES, Os desastres naturais e as alterações climáticas – em especial, a resposta do ordenamento jurídico aos fenómenos meteorológicos extremos, in in Direito(s) das Catástrofes Naturais, Carla Amado Gomes (coord.), Almedina, Coimbra, 2012, pp. 71 ss., pp. 75 segs.

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De acordo com o primeiro destes textos, o regime Seveso, um acidente industrial (ou um “acidente grave”) é defi nido como um acontecimento, como uma emissão, um incêndio ou uma explosão, de graves proporções, resultante de desenvolvimentos não controlados durante o funcionamento de um estabelecimento onde se verifi que a presença de uma substância perigosa, e que provoque um perigo grave, imediato ou retardado, no interior ou no exterior de um estabelecimento,para a saúde humana ou para o ambiente, e que envolva uma ou mais das referidas substâncias perigosas3. Já de acordo com o CETAI, “acidente industrial” é defi nido como um evento resultante de um desenvolvimento descontrolado de qualquer actividade envolvendo substâncias perigosas em uma de duas situações: i) em instalações, porexemplo, durante a sua fabricação, uso, armazenamento, manuseamento ou eliminação; ou ii) durante o transporte, em certas condições4.

Daqui podemos retirar que o conceito de acidente industrial, para efeitos de regulação internacional, implica um acontecimento ou evento imprevisto, mas não imprevisível, descontrolado, durante o funcionamento de certos tipos de estabelecimentos – que são defi nidos pela presença de certas substâncias consideradas perigosas, onde se incluem actividades de utilização, transformação e modifi cação dessas substancias, mas também o seu mero armazenamento – e que têm ou podem ter consequências danosas para a saúde humana ou para o ambiente.

3 Cfr. os artigo 3º, nº 5, Directiva nº 96/82/CE, do Conselho, de 9 de Dezembro de 1996, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, a designada Directiva Seveso II (DS II) (transposto para a ordem jurídica portuguesa pelo artigo 2º, alínea a), do Decreto-Lei nº 254/2007, de 12 de Julho, designado de DL Seveso) e artigo 3º, nº 13, Directiva nº 2012/18/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, que altera e subsequentemente revoga a Diretiva nº 96/82/CE, do Conselho, designada de Directiva Seveso III (DS III).

4 Cfr. o artigo 1º, alínea a), CETAI.

4. O presente texto começa por abordar a regulação internacional do controlo dos acidentes industriais que envolvam substâncias perigosas na União Europeia (UE), através de uma apresentação do regime Seveso e dos regimes que lhe estão associados. Posteriormente apresenta-se o regime aplicável no âmbito da UNECE, a CETAI e os regimes que lhe estão associados. Por fi m, faz-se uma apresentação genérica de outros instrumentos de Direito Internacional Público relacionados com o controlo de risco de acidentes industriais graves.

II. A regulação pelo Direito da UE do controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas

5. A UE tem vindo a prestar especial atenção à questão do controlo dos perigos associados a acidentes industriais graves com substâncias perigosas, tomando medidas com o objectivo de garantir o respeito pelos princípios da precaução e da prevenção e um elevado nível de protecção dos cidadãos europeus e do ambiente5.

Nesse âmbito, o artigo 191º, nº 1, do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE), estabelece a base normativa que atribui competência à UE para legislar sobre esta matéria, estabelecendo que a política da UE no domínio do ambiente deve contribuir para a prossecução, entre outros, dos objectivos de preservação, a protecção e a melhoria da qualidade do ambiente e de protecção da saúde das pessoas. No uso desta competência no domínio ambiental, e de competênciasequivalentes ao âmbito do Tratado da Comunidade Europeia (TCE) ou, no caso do Tratado da Comunidade Económica Europeia (TCEE), de preocupações com o funcionamento do mercado único e a saúde

5 Cfr., sobre o tratamento jurídico do ambiente pelos Tratados da UE no pós-Tratado de Lisboa, Carla AMADO GOMES / Tiago ANTUNES, O Ambiente no Tratado de Lisboa – Uma relação sustentada, in O Direito, nº 5 (O Tratado de Lisboa), 2010, pp. 31-63.

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dos trabalhadores, a UE tem emitido directivas no âmbito do controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas – que constituem o regime jurídico Seveso. O nome Seveso tem origem num acidente industrial ocorrido em Itália que levou à emissão da primeira directiva a incidir sobre esta matéria. O regime jurídico Seveso constitui o mais completo e mais bem sucedido mecanismo supra-nacional de cooperação entre Estados no âmbito da preparação e resposta a acidentes industriais.

6. Diga-se que, com o Tratado de Lisboa, a UE passou a dispor de “competência para desenvolver acções destinadas a apoiar, coordenar ou completar a acção dos Estados-Membros” relativamente à protecção civil (cfr. artigo 6º, alínea f), TFUE) – competência desenvolvida no artigo 196º TFUE, que estabelece que a UE “incentiva a cooperação entre os Estados-Membros a fi m de reforçar a efi cácia dos sistemas de prevenção das catástrofes naturais ou de origem humana e de proteção contra as mesmas”6. Assim, as bases jurídicas invocáveis pela UE para justifi car a sua competência no âmbito da prevenção de acidentes e na preparação para a resposta aos seus efeitos passou também a benefi ciar deste alargamento relativo à protecção civil.

a) A adopção das três Directivas Seveso

7. A primeira Directiva relativa à questão dos acidentes industriais com substâncias perigosas foi emitida, como já foi referido, como resposta a um acidente industrial grave, ocorrido em Seveso, Itália, em 10 de Julho de 1976 e às exigências de gestão dos riscos de

6 Cfr. A. ARAGÃO, Prevenção de riscos na União Europeia: o dever de tomar em consideração a vulnerabilidade social para uma protecção civil efi caz e justa, in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 93, Junho 2011, pp. 71-93, em especial, pp. 72 segs.

acidentes industriais decorrentes deste acidente e de outros seme-lhantes.

Este acidente deu-se numa instalação industrial química, onde o rompimento de tanques de armazenagem levou à fuga de vários quilogramas da dioxina TCDD (tetraclorodibenzo-para-dioxina) para a atmosfera. O motivo do acidente foi uma reacção quími-ca exotérmica descontrolada ainda hoje não totalmente explicada, ocorrida durante o processo de produção de triclorofenol (um herbi-cida e fungicida), bem como de produtos químicos intermediários. A dioxina em causa, que é um subproduto venenoso e canceríge-no, difundiu-se pela região da Lombardia, entre Milão e o lago de Como, levando à contaminação de aproximadamente 2.500 metros quadrados de solo e vegetação. Apesar da dispersão generalizada de quantidades da dioxina na ordem dos quilogramas – sendo que esta é letal para o homem mesmo em doses de microgramas –, não foram identifi cadas vítimas mortais com causa imediata no aciden-te. Devido ao acidente, no entanto, foi necessária a evacuação de mais de 600 pessoas e aproximadamente 2000 pessoas receberam tratamento contra o envenenamento pela dioxina. Milhares de ani-mais tiveram de ser abatidos.

8. A Directiva nº 82/501/CEE, do Conselho, de 24 de Junho de 1982, relativa aos riscos de acidentes graves de certas actividades industriais, foi adoptada tendo como causa próxima este acidente, com o objectivo de prevenir os acidentes graves que possam ser provocados por algumas actividades industriais, bem como limitar as suas consequências para o homem e o ambiente. Trata-se da designada Directiva Seveso I (DS I) e veio instituir o regime Seveso7.

7 Cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia, pp. 474-475.

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Esta Directiva foi adoptada num período em que as preocupações ambientais ainda não tinham consagração expressa nos Tratados. Por isso, a DSI foi adoptada com base nos (então) artigos 100º e 235º TCEE, em especial o primeiro – que previa a aproximação de legislações que tenham uma incidência sobre o funcionamento do mercado único. O objectivo era, por um lado prevenir os riscos para a população e para os trabalhadores, mas também harmonizar as condições de funcionamento das instalações – garantindo a leal concorrência no mercado comum.

A DS I foi alterada por duas vezes: a primeira pela Directiva nº 87/216/CEE, do Conselho, de 19 de Março de 1987, e a segunda pela Directiva nº 88/610/CEE, do Conselho, de 24 de Novembro de 1988. Ambas as alterações tiveram como objectivo o alargamento do âmbito de aplicação da Directiva, em especial para incluir o armazenamento de substâncias perigosas.

Estes alargamentos do âmbito de aplicação ocorreram como resposta a dois outros acidentes graves. Um deles foi o acidente ocorrido na fábrica de pesticidas Union Carbide, em Bhopal, In-dia, em 1984, que é considerado o mais grave acidente industrial do mundo. Devido a uma fuga, mais de 500 mil pessoas, a sua maioria trabalhadores da fábrica, foram expostas a 42 toneladas de isocianato de metila, que é um gás tóxico, e a outros químicos8. O outro acidente ocorreu no armazém agroquímico Sandoz, perto de Basileia, na Suíça, em 1986. Este acidente, cuja causa nunca foi estabelecida, levou à fuga de agroquímicos para a atmosfera. Para além disso, a água utilizada no combate ao incêndio ocorrido foi

8 As estimativas de mortes causadas pela fuga do gás em Bhopal variam. A estimativa ofi cial de vítimas mortais imediatas é de 2.259 pessoas, sendo também contabilizadas 3.787 mortes relacionadas com a fuga. No entanto, existem estimativas de mortes ocorridas devido a doenças relacionadas à inalação do gás que apontam para um número próximo de 10 mil pessoas.

contaminada com toneladas de produtos químicos9, acabando por ser introduzida no rio Reno, que se tornou vermelho devido aos poluentes, causando a morte massiva de animais a jusante do rio10.

A DS I foi transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei nº 224/87, de 3 de Junho, tendo a alteração introduzida pela Directiva nº 87/216/CEE sido transposta, por seu turno, pelo Decreto-Lei nº 204/93, de 3 de Junho – que revogou o Decreto-Lei nº 224/87, de 3 de Junho.

9. Posteriormente, a Directiva Seveso I foi revista e substituída pela Directiva nº 96/82/CE, do Conselho, de 9 de Dezembro de 1996, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, a designada Directiva Seveso II (DS II)11. Esta revisão teve como objectivo dar resposta à necessidade de uma aplicação mais efi caz do regime e incluiu, nomeadamente, o alargamento do seu âmbito de aplicação, a introdução de novos requisitos para os sistemas de gestão da segurança e a necessidade de planos de emergência e de ponderação desta matéria no âmbito do ordenamento do território, um reforço da regulação dos deveres de inspecção dos Estados-Membros e uma intensifi cação do intercâmbio de informações sobre esta matéria entre os Estados-membros.

A DS II foi emitida já após da consagração das matérias ambientais nos Tratados. Assim, a base normativa para a emissão da DS II foi o (então) artigo 130º-S TCE (posterior artigo 174º TCE), que corresponde hoje ao artigo 191º TFUE.

9 Onde se incluem ureia, corante fl uorescente, éster fosfato (insecticida), compostos de mercúrio e organoclorados, que deram origem a agentes poluentes da água, como o dinitro-ortho-cresol, bem como organofosfatos e organoclorados.

10 As estimativas apontam para a morte de meio milhão de peixes, nomeadamente uma grande parte da população de enguia europeia do Reno (embora essa população tenha recuperado nos anos subsequente).

11 Cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia, pp. 475-476.

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Esta Directiva foi alterada pela Directiva nº 2003/105/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2003, tendo em conta acidentes industriais entretanto ocorridos em Toulouse, França12, Baia Mare, Roménia13, e Enschede, Países Baixos14, bem como a estudos relativos a carcinogéneos e substâncias perigosas para o ambiente. As alterações mais signifi cativas estavam relacionadas com a cobertura de riscos decorrentes das actividades de armazenamento e processamento no sector mineiro, de substâncias pirotécnicas e explosivas, e do armazenamento de nitrato de amónio e de fertilizantes derivados de nitrato de amónio.

A DS II foi transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei nº 164/2001, de 23 de Maio, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 69/2003, de 10 de Abril, que estabelecia o regime de exercício da actividade industrial. O regime foi revogado pelo Decreto-Lei nº 254/2007, de 12 de Julho, que veio transpor a

12 Onde ocorreu uma explosão numa indústria química de produção de adubos, em 2001, equivalente a 20-40 toneladas de TNT, provocada por 300 toneladas de nitrato de amónio, causando cerca de 30 mortos e 10.000 feridos, bem como inúmeros desalojados e uma cratera de 10 metros de profundidade. A instalação industrial em causa armazenava nitrato de amónio granulado em montes sobre o solo.

13 Onde ocorreu uma fuga de cianeto de sódio de um tanque de decantação resultante da actividade mineira de extracção de ouro, em 2000, para um afl uente do Danúbio, que afectou solos e águas (superfi ciais e subterrâneas), tendo como uma das suas consequências a morte de um grande número de organismos aquáticos a jusante do rio (como peixes, moluscos, etc.). Devido a esse acidente, a Roménia foi condenada no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Tătar c. Roménia (Queixa nº 67021/01, Acórdão de 27 de Janeiro de 2009), por violação do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (considerando que a poluição interfere com a vida privada e familiar), por atentar contra o dever de protecção dos cidadãos através da regulação e controlo de actividades industriais, em especial as perigosas para o ambiente ou para a saúde humana.

14 Onde ocorreu uma série de explosões ocorridas numa fábrica de fogo-de-artifício, em 2000, tendo a última explosão a força equivalente a 4-5 toneladas de TNT, causando cerca de 23 mortos e 1000 feridos e deixando mais de 1200 pessoas desalojadas.

Directiva nº 2003/105/CE. É este o regime actualmente em vigor em Portugal de transposição da DS II (de ora em diante designadode DL Seveso). Foi alterado recentemente pelo Decreto-Lei nº 42/2014, de 18 de Março, que alterou o seu anexo I.

10. Uma terceira revisão do regime Seveso levou à aprovação da Directiva nº 2012/18/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, que altera e subsequentemente revoga a Diretiva nº 96/82/CE, do Conselho15. Esta Directiva, designada de Directiva Seveso III (DS III), entrou em vigor em 13 de Agosto de 2012 e deve ser transposta até 31 de Maio de 2015, devendo as novas disposições entrar em vigor a partir de 1 de Junho de 2015. A base normativa para a emissão da DS III é o artigo 192º, nº 1, TFUE.

Algumas das principais alterações introduzidas estão relacionadas com actualizações técnicas decorrentes do novo regime da UE de classifi cação de substâncias e misturas químicas – que foi aprovada em 2008, através do Regulamento (CE) nº 1272/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativo à classifi cação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas (o Regulamento CLP16). Este Regulamento veio adaptar o regime da UE aos critérios harmonizados de classifi cação e rotulagem no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), que levaram ao Sistema Mundial Harmonizado de Classifi cação e Rotulagem de

15 A proposta tinha sido aprovada no plenário do Parlamento Europeu em 14 de Junho de 2012, por larga maioria (599 votos a favor, 12 contra e 6 abstenções), foi subsequentemente aprovada pelo Conselho, reunido a 26 de Junho de 2012 e adoptada a 4 de Julho de 2012.

16 A sigla CLP resulta da expressão inglesa “Classifi cation, Labelling and Packaging”.

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Produtos Químicos (GHS17), revogando as Directivas respeitantes à classifi cação, embalagem e rotulagem das substâncias perigosas e das preparações perigosas18. Este Sistema implicou a necessidade de adaptar o regime Seveso, uma vez que o seu âmbito, defi nido no anexo I, se encontrava baseado na classifi cação de substâncias químicas substituído pelos critérios GHS, que vai ser revogada pela entrada em vigor do Regulamento CLP. É por isso que a data em que as disposições de transposição da DSIII devem entrar em vigor – 1 de Junho de 2015 – é também a data em que a nova classifi cação de químicos entra em vigor.

As alterações incluíram, assim, a adaptação do anexo I do regime Seveso ao Regulamento CLP, através da repercussão directa da alteração de designações feita por este último, bem como o aditamento de novas categorias (como os aerossóis infl amáveis e líquidos e sólidos pirofóricos) e de novas substâncias (como o trifl uoreto de boro e o sulfureto de hidrogénio) – bem como dos produtos petrolíferos, como os fuelóleos pesados – e a alteração de alguns valores-limite e critérios.

Foram efectuados diversos estudos relativos ao impacto das alterações decorrentes do GHS e com o objectivo de abordar outras questões relativas à aplicação da DS II – levando ao conjunto de alterações propostas19.

Para além das alterações decorrentes da adaptação ao GHS, a DS III também veio introduzir, genericamente, as seguintes alterações:

17 A sigla GHS resulta da expressão inglesa “Globally Harmonised System”. 18 A Directiva nº 67/548/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1967, e a Directiva

nº 1999/45/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Maio de 1999.19 Os estudos podem ser consultados em http://ec.europa.eu/environment/seveso/

review.htm.

i. Garantia de um melhor acesso dos cidadãos à informação sobre os riscos resultantes das actividades das empresas localizadas na sua vizinhança, como decorrência da Convenção de Aahrus20. Pretende-se garantir que as pessoas susceptíveis de serem afectadas por um acidente grave dispõem de informações sufi cientes, formuladas de forma clara e compreensível, de forma a poderem reagir correctamente se este ocorrer. Além da obrigação de as informações serem fornecidas de forma activa, sem o público ter de as solicitar, devem também ser disponibilizadas de forma permanente e actualizadas electronicamente. São introduzidas regras mais efi cazes relativas à participação do público interessado na regulação do ordenamento do território relacionado com instalações abrangidas pelo âmbito de aplicação do regime Seveso, também como decorrência da Convenção de Aahrus.

ii. A informação deve ser gerida em conformidade com a iniciativa Sistema de Informação Ambiental Partilhada (Shared Environmental Information System – SEIS)21.

iii. Ainda no âmbito do ordenamento do território, adapta-se o regime à Directiva nº 2007/2/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Março de 2007, que estabelece uma infraestrutura de informação geográfi ca na Comunidade Europeia (a Directiva INSPIRE22), e com as suas normas de execução que visam permitir a partilha de informação geográfi ca e ambiental entre as organizações do sector público e facilitar o acesso do público à informação geográfi ca. Essa informação deve ser mantida numa base de dados acessível ao público, a nível da UE.

20 Trata-se da Convenção sobre Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente, assinada em Aarhus, Dinamarca, a 25 de Junho de 1998 (Convenção de Aarhus).

21 Esta iniciativa foi introduzida pela Comunicação da Comissão de 1 de Fevereiro de 2008, com o título “Para um Sistema de Informação Ambiental Partilhada (SEIS)”, COM(2008) 46 fi nal.

22 Infrastructure for Spatial Information in the European Community.

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iv. São introduzidas alterações no regime de acesso à justiça, no caso de não disponibilização da informação ou do desrespeito pelo direito de participação do público, o que decorre igualmente da Convenção de Aahrus.

v. Pretende-se estabelecer parâmetros e requisitos mais rigorosos para as inspecções das instalações abrangidas, de forma a garantir a efectividade do regime Seveso. A esse nível, a DS III vem prever um sistema de inspecções que abrange um programa de inspecções periódicas de rotina, bem como inspecções extraordinárias.

vi. Por fi m, a DS III, utilizando a possibilidade dada pelo Tratado de Lisboa, vem prever a possibilidade de adaptação dos anexos II a VI ao progresso técnico por alterações introduzidas por actos delegados da Comissão (artigo 25º DS III) – não devendo as alterações traduzir-se em mudanças substanciais nas obrigações que incumbem aos Estados-Membros e aos operadores em virtude da Directiva. O regime aplicável ao exercício da delegação está previsto no artigo 26º DS III – onde se prevê o prazo (prorrogável) de cinco anos para o seu exercício, a possibilidade da sua revogação pelo Parlamento Europeu ou pelo Conselho e o poder de veto destas entidades.

O artigo 30º da DS III já foi transposto para a ordem jurídica portuguesa pelo referido Decreto-Lei nº 42/2014, de 18 de Março, que aditou os fuelóleos pesados à listagem constante do anexo I do DL Seveso.

11. Diga-se que o artigo 193º TFUE (ex-artigo 176º TCE) prevê a possibilidade de os Estados-Membros adoptarem medidas mais exigentes e obrigações reforçadas relativamente a estes regimes. O regime Seveso deve ser, assim, considerado como um limiar mínimo de protecção.

b) O regime Seveso de controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas

12. Como já foi referido, o regime Seveso decorre de directivas, que vinculam os Estados-Membros da UE à sua transposição para o respectivo Direito nacional (artigo 288º, 3º parág., TFUE) – independentemente da possibilidade de as suas normas terem efeito directo.

O âmbito de aplicação potencial do regime Seveso abrange hoje umgrande número de estabelecimentos industriais onde substâncias perigosas são utilizadas ou armazenadas em quantidades signifi cativas, em especial nos sectores da indústria química, petroquímica, metalúrgica e armazenagem. Os operadores destes estabelecimentos são abrangidos pelos deveres decorrentes do regime Seveso indirectamente – na medida em que este deve ser transposto e executado pelos Estados-Membros. Édesta forma que, ao longo do texto, se irá tratar de deveres dos operadores que decorrem do regime Seveso – como deveres dos operadores que estão previstos nas directivas, vinculando os Estados-Membros a aplicá-los aos operadores.

13. De facto, de uma forma genérica, o regime Seveso impõe um conjunto alargado de deveres de actuação e de abstenção aos Estados--Membros23, nomeadamente o dever de impor aos operadores que

23 Cfr., v.g., sobre o regime Seveso, Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia: a prevenção à prova nas directivas Seveso, pp. 459-488; A. ARAGÃO, A prevenção de Riscos em Estados de Direito Ambiental na União Europeia, disponível no URL https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/handle/10316/15263 (acedido pela última vez em 2014/03/30), pp. 9 segs; C. KIRCHSTEIGER, Il rischio industriale nell’Unione europea, in Rivista giuridica dell’ ambiente, ano 15, nº 2, 2000, pp. 227-248; S. PORTER / J. WETTIG, Policy issues on the control of major accident hazards and the new Seveso II directive, in Journal of Hazardous Materials, vol. 65, 1999, pp. 1-14; R. BARRET /H. ENMARCH-WILLIAM, Major industrial accident hazards and the proposed new Seveso directive, in European environmental law review, vol. 3, nº 7, 1994, pp. 195-199; M. PRIEUR, La directive Seveso sur les risques d’accidents

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tenham e implementem uma política de prevenção de acidentes graves (artigo 7º da DS II e artigo 8º da DS III).

Os operadores de estabelecimentos em que as substâncias perigosas estejam presentes em quantidades iguais ou superiores a determinados níveis – onde existe, por isso, uma maior perigosidade – (que a DS III designa de “estabelecimentos de nível superior”24) devem ser sujeitos pelos Estados-Membros a um regime mais exigente, que inclui o dever de elaborar um relatório de segurança, uma política de prevenção de acidentes graves, um sistema de gestão da segurança e um plano de emergência interno (artigo 9º, nº 1, alíneas a) e d), DS II, e artigo 10º, nº 1, alíneas a) e d), DS III). Em relação a estes estabelecimentos, os Estados-Membros devem também elaborar planos de emergência externos (artigo 11º, nº 1, alínea c), DS II, e 12º, nº 1, alínea c), DS III), devendo o público ser informado regularmente relativamente aos diversos planos referidos. Os Estados-Membros também são obrigados a ter em conta os objectivos de prevenção de acidentes graves e limitação das suas consequências no âmbito do ordenamento do seu território (artigo 12º DS II e 13º DS III).

Estes deveres decorrentes do regime Seveso não se aplicam, pois, a todas as instalações industriais – mas apenas àquelas onde substâncias qualifi cadas como perigosas são utilizadas ou armazenadas em quantidades signifi cativas. O regime Seveso não tem, assim, uma aplicação universal. Para além disso, mesmo relativamente àsinstalações ou aos estabelecimentos Seveso (no sentido de instalações ou estabelecimentos abrangidos pelo âmbito de aplicação do regime Seveso por se verifi car uma presença substancial das substâncias

majeurs, in Revue juridique de l’environnement, nº 3, 1989, pp. 261-268; B. POZZO, The institutional and legal framework of reference: the “Seveso” Directives in the Community and their implementation in the Member States, in The Implementation of the Seveso Directives in an Enlarged Europe: A Look Into the Past and a Challenge for the Future, Barbara Pozzo (ed.), Kluwer Law International, 2009, pp. 1-29.

24 O DL Seveso designa estes estabelecimentos como “Estabelecimento de nível superior de perigosidade” – cfr. artigo 2º, alínea f), DL Seveso.

perigosas) o regime adopta dois escalões de controlo, correspondendo a níveis distintos de deveres que devem resultar da legislação nacional de transposição – quanto maior a quantidade de substâncias perigosas presentes na instalação, maiores os deveres impostos. A DS III diferencia, a este nível, entre “estabelecimentos de nível inferior” e “estabelecimentos de nível superior”, sujeitando estes últimos a um maior controlo.

i. Objectivos

14. O regime Seveso tem dois grandes objectivos: i) por um lado, prevenir o risco de ocorrência de acidentes graves com substâncias perigosas; ii) por outro lado, na medida em que se revela impossível evitar em absoluto a ocorrência de alguns acidentes, limitar as suas consequências, não só para as pessoas (relativamente à saúde esegurança), mas também para o ambiente. Ambos os objectivos devem ser prosseguidos a fi m de “assegurar, de maneira coerente e efi caz, um nível de proteção elevado em toda a União” (artigos 1º da DS II25 e DS III).

Apesar de, na maior parte dos casos, as substâncias em causa serem perigosas simultaneamente para o ser humano e para o ambiente, pode ser dito que o âmbito da DS I estava mais direccionado para a protecção das pessoas do que da fauna e fl ora26. Com a aprovação da DS II a capacidade de uma substância ou acidente com essa substância colocar o ambiente em risco tornou-se um aspecto importante, tendo sido reforçado pela introdução, pela primeira vez, de substâncias classifi cadas como perigosas para o meio aquático no âmbito de aplicação do regime Seveso27.

25 Sem transposição pelo DL Seveso.26 Cfr. A. ARAGÃO, A prevenção de Riscos em Estados de Direito Ambiental

na União Europeia, p. 13.27 Estas substâncias já se encontravam previstas na DS I, embora sob outra

classifi cação.

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ii. Âmbito de aplicação

15. O âmbito de aplicação do regime Seveso depende da presença de substâncias perigosas, elencadas no seu anexo I, em estabelecimentos industriais em quantidades iguais ou superiores às previstas. Ou seja, o regime aplica-se a um determinado estabelecimento, na medida em que estas substâncias perigosas estejam presentes numa ou mais das suas instalações, incluindo as infraestruturas ou atividades comuns ou conexas (artigos 2º, nº 1, e 3º, nº 1, DS II28 e DS III).

16. O regime abrange no seu âmbito as actividades industriais e o armazenamento de substâncias químicas perigosas. A defi nição de “instalação” é, por isso, bastante lata, compreendendo qualquer unidade técnica dentro de um estabelecimento, “tanto ao nível do solo como subterrânea, onde sejam produzidas, utilizadas, manipuladas ou armazenadas substâncias perigosas; inclui todo o equipamento, estruturas, canalizações, maquinaria, ferramentas, ramais ferroviários exclusivos, cais de carga, pontões de acesso à instalação, molhes, armazéns ou estruturas semelhantes, fl utuantes ou não, necessários ao funcionamento dessa instalação” (cfr. artigos 3º, nº 2, DS II29 e 3º, nº 8, DS III).

17. Para estes efeitos, o regime Seveso defi ne substâncias perigosas como “as substâncias, misturas ou preparações enumeradas na parte 1 do anexo I ou que satisfazem os critérios fi xados na parte 2 do anexo I e presentes sob a forma de matérias-primas, produtos, subprodutos, resíduos ou produtos intermédios, incluindo aquelas

28 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 3º, nº 1, DL Seveso.29 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 2º, alínea h), DL

Seveso. A noção da DS II parece mais abrangente, por conter a referência ao solo e subsolo, mas deve entender-se que estes também são abrangidos pela defi nição do DL Seveso.

para as quais é legítimo supor que se produzem em caso de acidente” (artigo 3º, nº 4, DS II30). Assim, para que a instalação seja abrangida pelo âmbito de aplicação do regime é necessário que se verifi que a presença das substâncias listadas na parte I do anexo 1 ou que estejam em causa substâncias que, embora não listadas na parte I, preencham os critérios estabelecidos na parte II – por exemplo, as substâncias, tóxicas, muito tóxicas ou comburentes.

Como se referiu, o elemento essencial para a aplicação do regime Seveso é a “presença de substâncias perigosas”. Nos termos do regime, este requisito verifi ca-se pela existência, real ou prevista, no estabelecimento das substâncias perigosas elencadas, ou quando se considere razoável que estas substâncias se possam produzir aquando da perda de controlo dos processos, incluindo das actividades de armazenagem, numa instalação no interior do estabelecimento, em quantidades iguais ou superiores às quantidades-limiar (artigo 2º, nº 2, DS II31 e artigo 3º, nº 12, DS III).

18. A este nível, existem duas diferenças substanciais do regime Seveso em vigor relativamente à DS I.

Em primeiro lugar, a DS I continha uma lista de instalaçõesespecífi cas descritas a partir de um conjunto de actividades. Estalistagem foi abandonada pela DS II, deixando de ser necessário defi nir a actividade industrial que ocorre no estabelecimento em causa para se determinar se este está ou não abrangido pelo âmbito de aplicação. Para além disso, a lista de substâncias perigosas nomeadas foi reduzida de aproximadamente 180 no anexo III da DS I, para 50, no anexo I, parte 1, da DS II – recorrendo esta última a uma enumeração alargada e sistematizada de categorias genéricas de substâncias, de

30 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 2º, alínea n), DL Seveso.

31 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 3º, nº 1, DL Seveso.

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acordo com a sua classifi cação (anexo I, parte 2, da DS II), como tóxica, explosiva ou infl amável. Para essa classifi cação, a DS II recorria às Directivas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à classifi cação, embalagem e rotulagem das substâncias perigosas e das preparações perigosas32.

Esta evolução permitiu a simplifi cação do regime e a extensão do seu âmbito de aplicação, suprimindo lacunas importantes.

Em segundo lugar, enquanto a DS I se aplicava a instalações (artigo 1º, nº 2, alínea a), DSI), a DS II aplica-se a estabelecimentos,que são defi nidos como “a totalidade da área sob controlo de um operador onde existam substâncias perigosas numa ou mais instalações, incluindo as infra-estruturas ou actividades comuns ou conexas” (artigo 3º, nº 1, DS II). Esta alteração importante de perspectiva permite evitar a lacuna que poderia ocorrer através da divisão de instalações de actividade e armazenamento, formando unidades mais pequenas que não estariam abrangidas pelo âmbito do regime Seveso.

19. A defi nição de substâncias perigosas foi alterada pela DS III, tendo em conta as alterações ocorridas em sede de critérios harmonizados declassifi cação e rotulagem no âmbito do Sistema Mundial Harmonizado de Classifi cação e Rotulagem de Produtos Químicos (geralmente designado por GHS, sigla de Globally Harmonized System). Aliás, estas alterações são um dos motivos de fundo para a aprovação da

32 A Directiva nº 67/548/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1967, e a Directiva nº 1999/45/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Maio de 1999, são revogadas pelo Regulamento (CE) nº 1272/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativo à classifi cação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas (o Regulamento CLP). A execução do Regulamento (CE) nº 1272/2008 na ordem jurídica nacional foi assegurada pelo Decreto-Lei nº 98/2010, de 11 de Agosto e pelo Decreto-Lei nº 220/2012, de 10 de Outubro.

DS III, como se verá infra (nºs 93 ss.). Assim, o termo “substânciaperigosa” passa a ser defi nido como “a substância ou mistura abrangidapela parte 1 ou enumerada na parte 2 do Anexo I, incluindo na forma de matéria-prima, produto, subproduto, resíduo ou produto intermédio” (artigo 3º, nº 10, DS III). A este nível há uma inversão das partes do anexo I, passando a parte 1 a conter as categorias genéricas de substâncias perigosas – de acordo com o Regulamento (CE) nº 1272/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativo à classifi cação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas, o designado Regulamento CLP33 – e a parte 2 a conter um elenco de substâncias perigosas de acordo com a sua designação.

20. Existem matérias excluídas do âmbito de aplicação do regime Seveso. Aí se incluem os estabelecimentos, as instalações ou as áreas de armazenagem militares, os perigos associados às radiações (a segurança nuclear), o transporte e a armazenagem temporária intermédia de substâncias perigosas por diversas vias, incluindo por condutas, a exploração (ou seja, a prospecção, a extracção e o processamento) de minerais em minas ou pedreiras, a prospecção e exploração offshore de minerais, incluindo hidrocarbonetos, e as descargas de resíduos (cfr. artigos 4º DS II34 e 2º, nº 2, DS III). A DS III veio aditar às actividades excluídas da aplicação a armaze-nagem offshore de gás no subsolo.

33 A sigla CLP resulta da expressão inglesa “Classifi cation, Labelling and Packaging”.

34 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 3º, nº 2, DL Seveso.

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iii. Níveis de controlo das instalações

21. Os estabelecimentos industriais onde se verifi que a presença das substâncias químicas perigosas constantes do anexo I do regime Seveso podem estar sujeitos a vários níveis de controlo e regulação – sendo que maiores quantidades de presença das substâncias acarretam um nível maior de controlo e de obrigações. Presume-se que o risco de um acidente grave decorrente de um estabelecimento Seveso au-menta em proporção com o aumento da quantidade das substâncias perigosas presente.

Assim, um estabelecimento onde se verifi que a presença de uma tal substância, mas em quantidade inferior aos limites estabelecidosno anexo I, não está abrangido pelo seu âmbito de aplicação, aplicando-se-lhe os regimes gerais relativos à saúde, segurança e protecção do ambiente decorrente da restante legislação da UE nãoespecifi camente direccionada para a protecção relativamente a riscos de acidentes graves. Estes estabelecimentos encontram-se numa situação equivalente à daqueles em que não se verifi ca a presença da substância35.

Se, no entanto, se verifi car a presença da substância perigosa acima do limite mínimo estabelecido no anexo I, o estabelecimento em causa deve ser considerado como abrangido pelo regime Seveso, mas não se encontra sujeito a todos os deveres decorrentes desse regime. No âmbito da DS II, as quantidades-limite em causa estão descritas na coluna 2 do anexo I, fi cando os estabelecimentos em causa sujeitos às obrigações estabelecidas nos artigos 6º e 7º DS II – ou seja, o dever de notifi cação (relativamente à existência, alterações ou encerramento do estabelecimento) e o dever de elaborar e aplicar uma política de prevenção de acidentes graves – mas não sujeitos

35 São os designados “estabelecimentos”, nos termos do artigo 2º, alínea e), do DL Seveso.

ao dever de apresentar um relatório de segurança, previsto no artigo 9º DS II36.

Por seu lado, os estabelecimentos onde a presença das substâncias perigosas se verifi que acima da quantidade-limite superior – os estabelecimentos de maior perigosidade – fi cam sujeitos a todosos deveres decorrentes do regime Seveso, incluindo o dever de apresentação do relatório de segurança37. Nos termos da DSII, as quantidades-limite em causa estavam descritas na coluna 3 do anexo I.

22. A DS III vem introduzir algumas alterações neste âmbito.Os estabelecimentos em que as substâncias perigosas se encontram

presentes em quantidade sufi ciente para justifi car a aplicação do regime Seveso, mas inferior à quantidade-limite mais alta – de menor perigosidade –, são designados pela DS III como “estabelecimento de nível inferior” (artigo 3º, nº 2, DS III)38. O regime que lhes é aplicável é equivalente ao resultante da DS II para os estabelecimentos em situação semelhante, ou seja, estão sujeitos ao dever de notifi cação (artigo 7º DS III) e ao dever de elaborar e aplicar uma política de prevenção de acidentes graves (artigo 8º DS III) – e não abrangidos pelo dever de apresentação do relatório de segurança (artigo 10º DS III). A DS III esclarece, todavia, que o dever de aplicação de uma política de prevenção não implica necessariamente o respeito pelo anexo III da DS III, desde que se realize por meios, estruturas e sistemas de gestão adequados, proporcionais aos perigos de acidente

36 Cfr. o artigo 3º, nº 3, do DL Seveso.37 O DL Seveso designa estes estabelecimentos como “Estabelecimento de

nível superior de perigosidade” (artigo 2º, alínea f), DL Seveso).38 Estes estabelecimentos são defi nidos como aqueles “em que as substâncias

perigosas estejam presentes em quantidades iguais ou superiores às enumeradas na coluna 2 da parte 1 ou na coluna 3 da parte 2 do Anexo I, mas inferiores às quantidades indicadas na coluna 3 da parte 1 ou na coluna 3 da parte 2 do Anexo I, usando, se aplicável, a regra da adição prevista na nota 4 do Anexo I” (artigo 3º, nº 2, DS III).

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grave, tendo em conta os princípios enunciados nesse anexo (artigo 8º, nº 5, DS III).

Os estabelecimentos em que a presença das substâncias se verifi que em quantidades superiores à quantidade-limite mais alta – de maior perigosidade –, são designados pela DS III como “estabelecimento de nível superior” (artigo 3º, nº 3, DSIII)39. Estes estabelecimentos devem respeitar todas as obrigações resultantes do regime Seveso, como ocorre com os estabelecimentos equivalentes, ao abrigo da DS II, nomeadamente o dever de apresentação do relatório de segurança (artigo 10º DS III).

iv. Obrigações genéricas e específicas dos operadores

1. Considerações gerais

23. O regime Seveso prevê obrigações gerais e específi cas quer para os operadores quer para os Estados-Membros e as suas autoridades. Estas obrigações enquadram-se, de uma forma genérica, no duplo objectivo do regime de prevenir a ocorrência de acidentes graves e limitar as suas consequências.

Como já se referiu, é certo que não é correcto afi rmar que decorrem directamente deveres para os operadores do regime Seveso – uma vez que esta tem como destinatários os Estados-Membros. No entanto, apesar de da Directiva resultarem apenas vinculações para os Estados--Membros, na medida em que do seu regime resultam deveres de os Estados-Membros imporem obrigações aos operadores, por facilidade de exposição, opta-se por esta formulação.

39 Estes estabelecimentos são defi nidos como aqueles “em que as substâncias perigosas estejam presentes em quantidades iguais ou superiores às quantidades enumeradas na coluna 3 da parte 1 ou na coluna 3 da parte 2 do anexo I, usando, se aplicável, a regra da adição prevista na nota 4 do anexo I” (artigo 3º, nº 3, DSIII).

No presente texto, começa-se por apresentar as obrigações genéricas e específi cas dos operadores para, de seguida, explorar as obrigações dos Estados-Membros.

24. O regime Seveso estabelece o dever geral dos operadores tomarem todas as medidas necessárias para evitar acidentes graves e, caso estes ocorram, limitar as suas consequências para o homem e o ambiente (artigos 5º, nº 1, DS II40 e DS III). O operador tem também o dever de provar que tomou estas medidas à autoridade competente do Estado-Membro em causa (artigos 5º, nº 2, DS II41

e DS III), nomeadamente no âmbito de inspecções e controlos administrativos – o ónus da prova recai, assim, sobre o operador42.

25. Para além deste dever genérico, pode-se retirar do regime Seveso, relativamente à prevenção de acidentes graves, um elenco de deveres de todos os operadores de instalações ou estabelecimentos Seveso – que inclui:

a) O dever de notifi cação;b) O dever de elaborar e de manter actualizada uma política de

prevenção de acidentes graves e de a aplicar efi cazmente, por exemplo através de um sistema de gestão da segurança;

c) O dever de informação do público.

40 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 4º, nº 1, DL Seveso, que estabelece os deveres gerais do operador.

41 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 4º, nº 2, DL Seveso. A autoridade competente a que o operador deve demonstrar o cumprimento dos seus deveres nestes termos é a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) – que sucedeu à Inspecção-Geral do Ambiente e Ordenamento do Território (IGAOT), nos termos do artigo 34º, nº 3, alínea c), do Decreto-Lei nº 7/2012, de 17 de Janeiro, e do artigo 12º do Decreto-Lei nº 23/2012, de 1 de Fevereiro –, e a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC).

42 Trata-se de uma inversão do ónus da prova. Cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia, pp. 478-479.

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Para além destes deveres genéricos, estabelece-se para os operadores de estabelecimentos onde a presença das substâncias perigosas se verifi que acima do limite superior – os estabelecimentos de nível superior, na terminologia da DS III43 – o dever específi co de apre-sentação de um relatório de segurança.

26. Já relativamente à limitação dos efeitos de acidentes graves, pode-se retirar o seguinte elenco de deveres de todos os operadores Seveso:

a) O dever de informar a autoridade competente, logo que possível, após um acidente grave, comunicando-lhe informações relevantes;

b) O dever de tomar medidas para minimizar os efeitos a médio e longo prazo do acidente e evitar que o acidente se repita.

Para além destes deveres genéricos e ainda quanto à limitação dos efeitos de acidentes graves, estabelece-se para os operadores de estabelecimentos onde a presença das substâncias perigosas se verifi que acima do limite superior – os estabelecimentos de nível superior, na terminologia da DS III44 – o dever específi co de defi nir e aplicar o plano de emergência interno, onde se inclui o dever de prestação de informação ao público.

27. Muitos destes deveres estão relacionados com a prestação e partilha de informação – quer por parte do operador à autoridade competente, ao público e aos restantes operadores, quer por parte da autoridade competente relativamente ao público e aos restantes operadores. Assim, quanto a este aspecto, há um dever associado de intercâmbio e partilha de informação entre estabelecimentos

43 Ou “estabelecimentos de nível superior de perigosidade”, de acordo com a DL Seveso.

44 Como já referido, ou “estabelecimentos de nível superior de perigosidade”, de acordo com a DL Seveso.

que sejam avaliados como abrangidos pela possibilidade de “efeito dominó”, previsto no artigo 8º DS II e artigo 9º DS III – que será analisado infra (nº 87 ss.).

28. Apresentam-se, de seguida, estes deveres, começando pelos deveres de todos os operadores de instalações ou estabelecimentos Seveso relativos à prevenção de acidentes graves, onde se incluem o dever de notifi cação e o dever de elaborar e aplicar uma política de prevenção de acidentes graves, passando pelo dever específi co, neste âmbito, dos estabelecimentos de nível superior de apresentação de um relatório de segurança, analisando, de seguida, relativamente à limitação dos efeitos de acidentes graves, os deveres defi nir e aplicar o plano de emergência interno e de informar a autoridade competente e de adoptar medidas após um acidente grave. O tema relativo aos deveres de informação será também analisado posteriormente, em conjunto com os deveres dos Estados-Membros.

2. O dever genérico de notificação

29. Todos os operadores Seveso devem notifi car a autoridade competentedo respectivo Estado-Membro de que o respectivo estabelecimento se encontra abrangido pelo âmbito de aplicação do regime Seveso, sob pena da ilegalidade da sua actuação. Este dever é regulado pelos artigos 6º DS II45 e 7º DS III. O principal objectivo é garantir que as autoridades dos Estados-Membros sejam informadas sobre quais os estabelecimentos onde existem quantidades signifi cativas de substâncias perigosas.

45 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 7º, nº 1, DL Seveso.

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A notifi cação deve conter os elementos constantes dos artigos 6º, nº 2, DS II46 e 7º, nº 1, DS III, que dizem respeito, em especial:

a) À identifi cação do operador, à localização da sua sede, ao seu endereço e à localização do estabelecimento;

b) À identifi cação do responsável pelo estabelecimento;c) À actividade exercida ou prevista nas instalações ou no local

de armazenagem;d) Às informações que permitem identifi car as substâncias perigosas

ou a categoria de substâncias em causa e a sua quantidade e forma física;

e) À identifi cação da área circundante do estabelecimento e os factores susceptíveis de causarem um acidente grave ou de agravarem as suas consequências.

30. O prazo para o envio da notifi cação à autoridade competente é variável.

No caso de estabelecimentos novos, a notifi cação deve ser feita “num prazo razoável antes do início da construção ou da entrada em funcionamento” (artigo 6º, nº 1, 1º travessão, DS II). Apesar de não existir uma defi nição precisa de qual será este prazo, será de concluir que um “prazo razoável”, para este efeito, é aquele que garante que a autoridade competente tem tempo sufi ciente para examinar a notifi cação e para a ela reagir, por exemplo, solicitando informação complementar ou esclarecendo dúvidas que se lhe coloquem relativamente à segurança do estabelecimento. O diploma nacional de transposição deveria ter isso em conta, não devendo ser demasiado curto – não permitindo a actuação da autoridade – nem demasiado longo – permitindo a actuação do estabelecimento durante um longo período de tempo sem notifi cação.

46 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 7º, nº 1, e anexo II DL Seveso.

Infelizmente, o artigo 7º, nº 1, alínea a), do DL Seveso não estabeleceu qualquer prazo, apenas obrigando à notifi cação antes da construção ou da entrada em funcionamento de estabelecimento novo. O legislador nacional, portanto, não cumpriu a sua obrigação de transposição da DS II, adaptando-a à realidade nacional.

Os estabelecimentos já existentes no momento da entrada em vigor do regime Seveso que já tenham transmitido a informação relativa à notifi cação em momento anterior47 estão dispensados de apresentar nova notifi cação (artigo 6º, nº 3, DS II e artigo 7º, nº 3, DS III)48. Já no caso dos estabelecimentos existentes no momento da entrada em vigor da DS II, que se encontrem fora do seu âmbito mas que posteriormente passarem a por este fi car abrangidos têm, a partir desse momento, o prazo de três meses para o cumprimento do dever de notifi cação (artigo 6º, nº 1, 3º travessão, DS II)49.

O regime previsto na DS III apresenta diferenças.Estabelecem-se prazos distintos para os “novos estabelecimentos”

e para os restantes casos. Para esses efeitos, “novos estabelecimentos” são defi nidos como aqueles que entrem em funcionamento ou sejam construídos após o termo da data limite para a transposição da DS III – ou seja, a partir de 1 de Junho de 2015. No entanto, também são abrangidos neste conceito: i) os locais de operação (estabelecimentos e

47 Por exemplo, se já tiverem prestado essa informação por força da DS I aquando da entrada em vigor da DS II.

48 Os estabelecimentos já existentes no momento da entrada em vigor da DS II e que sejam abrangidos no seu âmbito de aplicação, deviam ter cumprido o dever de notifi cação no prazo de um ano a contar do fi nal do prazo para a transposição da Directiva (artigo 6º, nº 1, 2º travessão, DS II) – que ocorreu a 3 de Fevereiro de 1999, o que signifi ca que o prazo terminou a 3 de Fevereiro de 2000. Esta regra foi transposta para a ordem jurídica nacional pelo artigo 37º, nº 4, DL Seveso. Note-se, no entanto, que a transposição não é a correcta, pois o prazo de um ano, neste caso, é contado desde a entrada em vigor do DL Seveso.

49 Transposto para a ordem jurídica nacional pelos artigos 7º, nº 1, alínea d), e 37º, nº 3, DL Seveso.

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instalações) que passem a ser abrangidos pelo âmbito da DS III; ii) os estabelecimentos de nível inferior que se tornem estabelecimentosde nível superior; ou iii) os estabelecimentos de nível superior que se tornem estabelecimentos de nível inferior; – em todos estes casos, desde que cumpram dois requisitos: a) que estas alterações ocorram após 1 de Junho de 2015, e b) tenham como causa “a modifi cações nas suas instalações ou actividades que impliquem uma alteração no seu inventário de substâncias perigosas” (artigo 3º, nº 5, DS III). A DS III prevê que, no caso de um “novo estabelecimento”, a notifi cação à autoridade competente deve ocorrer num “prazo razoável” antes do início da construção ou da entrada em funcionamento, ou antes das modifi cações que impliquem uma alteração no inventário das substâncias perigosas (artigo 7º, nº 2, alínea a), da DS III). Aplica-se a este conceito de “prazo razoável” as considerações já formuladas supra. Quando não se trate de um “novo estabelecimento”, a notifi cação deve ocorrer no prazo de um ano a contar da data em que a DS III se tornou aplicável ao estabelecimento em causa (artigo 7º, nº 2, alínea b), da DS III).

31. Uma vez efectuada a notifi cação, o regime Seveso prevê odever de informação à autoridade competente da alteração de factos relevantes dela constantes (artigo 6º, nº 4, DS II50 e artigo 7º, nº 4, DS III) – mais concretamente, quando ocorre: i) um aumento signifi cativo da quantidade e de alteração signifi cativa da natureza ou do estado físico da substância perigosa presente, indicados na notifi cação ou de alteração dos processos utilizados; ii) uma modifi cação de um estabelecimento ou instalação que possam ter repercussões signifi cativas em acidentes de grande gravidade; ou iii) o encerramento defi nitivo da instalação. A DS III, no artigo 7º, nº 4, prevê a existência do

50 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 7º, nºs 2 e 3, DL Seveso.

dever de informação para além dos casos referidos, também nos casos de: i) decréscimo signifi cativo da quantidade da substância perigosa; ii) desactivação do estabelecimento; iii) alterações à identifi cação do operador, à localização da sua sede, ao seu endereço, ao endereço do estabelecimento e à identifi cação do responsável pelo estabelecimento.

A DS III prevê o dever de reexaminar e, se necessário, rever e actualizar a notifi cação em caso de alteração de uma instalação, de um estabelecimento, de um local de armazenagem, de um processo, ou da natureza, da forma física, e das quantidades de substâncias perigosas, que possam ter “sérias consequências” no domínio dos perigos associados a acidentes graves ou quando esta alteração possa levar a que um estabelecimento de nível inferior passe a ser um estabelecimento de nível superior ou vice-versa (artigo 11º DS III). O operador deve fornecer à autoridade competente todos os elementos relativos a tais atualizações antes de as efectuar.

O DL Seveso estabeelce o procedimento administrativo relativo à notifi cação, no seu artigo 8º, prevendo, mais especifi camente, que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) tem o prazo de 15 dias a contar da data de recepção da notifi cação para notifi car o operador de que esta compreende os elementos legalmente exigidos, podendo esta entidade solicitar, por uma vez, ao operador a apresentação de elementos adicionais.

3. O dever genérico de elaborar e aplicar uma política de prevenção de acidentes graves

33. Um outro dever genérico de todos os operadores de estabelecimentosabrangidos pelo âmbito de aplicação do regime Seveso é o de elaborare aplicar correctamente uma política de prevenção de acidentes graves.

Este dever genérico foi uma inovação da DS II relativamente à DS I e decorre do reconhecimento de que a existência de políticas apropriadas, em conjunto com os respectivos sistemas de gestão,

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são instrumentos necessários para a prevenção de acidentes graves, na medida em que factores relacionados com a gestão dos estabelecimentos são vistos como tendo contribuído para muitos dos acidentes ocorridos desde o início da aplicação da DS I.

34. A expressão “política” não prima pela clareza – pelo menos no âmbito do Direito nacional português, na medida em que não é claro o seu signifi cado51. No entanto, sendo um conceito de Direito da UE, deve ser interpretado nos termos desse Direito e não do Direito nacional português – apesar da transposição acrítica do termo efectuada pelo artigo 9º do DL Seveso. Assim, por “política”, neste caso, quer-se signifi car um plano de acção geral, uma estratégia ou uma abordagem, constante de um documento escrito, prevendo princípios gerais e linhas de acção, mas também um conjunto de procedimentos e metodologias a adoptar com o objectivo de assegurar um elevado nível de protecção da saúde humana e do ambiente.

35. Quanto ao regime aplicável à política de prevenção de acidentes graves, a DS II diferencia, de alguma forma, os estabelecimentos com um nível de perigosidade mais baixa (designados de estabelecimentos de nível inferior pela DS III) dos estabelecimentos com um maior nível de perigosidade (os estabelecimentos de nível superior, nos termos da DS III52) – que são obrigados a apresentar o relatório de segurança.

Para os primeiros, a elaboração e aplicação da política de prevenção são defi nidas no artigo 7º DS II – que não se aplica aos estabelecimentos de maior perigosidade (artigo 7º, nº 3, DS II), onde

51 A versão alemã da DS III refere-se a “Konzept zur Verhütung schwerer Unfälle” – nas versões em língua inglesa, francesa, espanhola e italiana, são empregues expressões equivalentes a “política”.

52 Ou “estabelecimentos de nível superior de perigosidade”, de acordo com a DL Seveso.

se encontram alguns traços do seu regime. No caso dos estabelecimentos com um maior nível de perigosidade, a existência e aplicação de uma política de prevenção de acidentes graves, devem ser demonstradas no âmbito do relatório de segurança (artigo 9º, nº 1, alínea a), DS II) – que é apresentado pelo operador à autoridade competente. Em ambos os casos, no entanto, a DS II remete a defi nição das regras para a elaboração e aplicação da política para o anexo III – de onde resulta uma similitude de regras53. No entanto, o anexo III estabelece que no caso dos estabelecimentos com um nível de perigosidade mais baixa, as regras devem ser proporcionais aos riscos de acidente grave que o estabelecimento representa – de onde se pode retirar que serão, em princípio, menos exigentes.

Por seu lado, a DS III não distingue, para efeitos da aplicação do seu artigo 8º DS III, entre estabelecimentos de nível inferior e superior quanto a esta questão. As suas disposições genéricas são aplicáveis a todos os estabelecimentos Seveso. Para os estabelecimentos de nível superior, mantém-se o dever de demonstração da aplicação da política no âmbito do relatório de segurança (artigo 10º, nº 1, alínea a), DSIII).

36. A política de prevenção de acidentes graves deve ser defi nidapelo operador, ser reduzida a escrito, atendendo aos princípios estabelecidos no anexo III54, e deve garantir um nível elevado de protecção da saúde humana e do ambiente através dos meios, estruturas e sistemas de gestão adequados (artigo 7º, nº 1, e anexo

53 No âmbito do DL Seveso, o artigo 9º, nº 2, também é o preceito que regula a apresentação da política de prevenção de acidentes graves pelos estabelecimentos de menor perigosidade, enquanto para os “estabelecimentos de nível superior de perigosidade”, esta política está incluída no relatório de segurança (artigo 10º, nº 2, alínea a), do DL Seveso).

54 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo anexo III DL Seveso. Em Portugal, o operador deve também atender aos documentos de orientação divulgados no sítio na Internet da APA (artigo 9º, nº 2, DL Seveso).

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III, DS II, e artigo 8º, nº 1, DS III). Nessa medida, a política deve ser proporcional ao perigo de acidentes graves em causa. O operador tem o dever de colocar a política à disposição das autoridades competentes quando estas a solicitem, nomeadamente no âmbito das inpecções periódicas (artigos 5º, nº 2, e 7º, nº 2, DS II55 e 5º, nº 2, DS III).

A DS III vem densifi car mais as obrigações do operador,estabelecendo que a política deve incluir os objectivos e princípios de acção gerais defi nidos pelo operador, o papel e a responsabilidade da administração, bem como o empenho na melhoria contínua do controlo dos perigos de acidentes graves, e assegurar um nível de proteção elevado (artigo 8º, nº 1, DS III).

Apesar de tal já poder ocorrer no âmbito da DS II, a DS III passa a prever expressamente a possibilidade de a legislação nacional consagrar o dever de o operador enviar a política às autoridades competentes. Actualmente, o DL Seveso apenas prevê esse envio quando as autoridades o solicitem (artigo 9º, nº 2, DL Seveso). A DS III vem também estabelecer que, caso se estabeleça esse dever, este envio deve ocorrer, no caso de novos estabelecimentos, “num prazo razoável antes do início da construção ou da entrada em funcionamento, ou antes das modifi cações que impliquem uma alteração no inventário das substâncias perigosas” ou, nas restantes situações, no prazo de um ano a contar da data em que a DS III se tornou aplicável ao estabelecimento em causa (artigo 8º, nº 2, DS III)56.

Também é estabelecido expressamente pela DS III o dever de revisão periódica da política, pelo menos de cinco em cinco anos, de forma a mantê-la actualizada podendo os Estados-Membros

55 Cfr. artigos 9º, nº 2, 4º, nº 2, e 28º, DL Seveso.56 O operador é dispensado de defi nir a política se já o tiver feito antes de 1

de Junho de 2015, na medida em que as informações nela contida respeitem os requisitos impostos e não tenham sido alteradas (artigo 8º, nº 3, DS III).

estabelecer o dever de envio da política actualizada à autoridade competente “sem demora” (artigo 8º, nº 4, DS III).

37. Para além do dever de elaboração da política de prevenção de acidentes graves, existe também o dever de a aplicar correctamente, através dos meios, estruturas e sistemas de gestão adequados, nomeadamente através de um sistema de gestão da segurança (artigos 7º, nº 1, e anexo III, DS II57, e 8º, nº 1 e 5, DS III).

Nos termos do anexo III, o sistema de gestão da segurança deve abranger a organização e pessoal, a identifi cação e avaliação dos riscos de acidentes graves, o controlo da exploração, a gestão das modifi cações, a planifi cação para emergências, a fi scalização dos resultados ou monitorização do desempenho, bem como o controlo e análise ou a auditoria e revisão da política de prevenção.

De acordo com a DS III, o sistema de gestão da segurança deve ser “proporcional aos perigos de acidente grave e à complexidade da organização ou das actividades do respectivo estabelecimento” (artigo 8º, nº 5, DS III). Dentro desta lógica de proporcionalidade do sistema de gestão da segurança relativamente aos riscos, é estabelecida uma diferenciação entre estabelecimentos de nível superior e inferior. Os sistemas de gestão da segurança dos primeiros devem estar de acordo com o anexo III. Já relativamente aos de nível inferior, a obrigação de aplicação da política pode ser respeitada por outros meios, estruturas e sistemas de gestão adequados, proporcionais aos perigos de acidente grave, diferentes dos resultantes do anexo III, mas tendo em conta os princípios aí enunciados. Esta ideia de proporcionalidade já resultava, de resto, do anexo III da DS II, que estabelece que no caso dos estabelecimentos com um nível de perigosidade mais baixa, regulados pelo artigo 7º DS II, as

57 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 9º, nº 1, e anexo III, DL Seveso.

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regras devem ser proporcionais aos riscos de acidente grave que o estabelecimento representa.

A introdução do dever de desenvolvimento de um sistema de gestão da segurança tomou em consideração a evolução dos novos métodos de gestão e organização empresarial em geral e, em particular, as alterações signifi cativas na actividade industrial relativamente à gestão do risco. Um dos principais objectivos é prevenir ou reduzir os efeitos de acidentes causados por factores relacionados com a gestão dos estabelecimentos.

38. A política de prevenção de acidentes graves e os sistemas de gestão devem ser reexaminados e, se necessário, revistos e actualizados em caso de alteração de uma instalação, de um estabelecimento, de um local de armazenagem, de um processo, ou da natureza (da “forma física”, aditou a DS III) e das quantidades de substâncias perigosas, que possam ter “repercussões importantes” (“sérias consequências”, nos termos da DS III) no domínio dos perigos associados a acidentes graves (artigos 10º DS II58 e 11º DS III). O operador deve fornecer à autoridade competente todos os elementos relativos a tais atualizações antes de as efectuar. A DS III adita que esta actualização também se deve realizar quando a alteração em causa possa levar a que um estabelecimento de nível inferior passe a ser um estabelecimento de nível superior ou vice-versa.

58 Transposto para a ordem jurídica nacional pelos artigos 9º, nº 3, e 2º, alínea b), DL Seveso.

4. O dever específico de apresentação de um relatório de segurança

39. Para além do cumprimento dos deveres genéricos referidos nos últimos pontos, relativamente à prevenção de acidentes graves os operadores de estabelecimentos com um maior grau de perigosidade (de nível superior, na terminologia da DS III59) estão sujeitos também ao dever de apresentação de um relatório de segurança.

Trata-se de uma inovação introduzida pela DS II. No entanto, apesar de a DS I não conter a obrigação de elaboração de um relatório de segurança, já continha o dever de realizar uma avaliação dos riscos em matéria de segurança (artigo 5º, nº 1, alínea b), 3º travessão, e nº 3, DS I)60. A DS II introduziu requisitos suplementares signifi cativos, ao nível da necessidade de uma política de prevenção de acidentes graves ou de um sistema de gestão da segurança, por exemplo.

40. O relatório de segurança deve ser elaborado tendo em conta a necessidade de demonstrar que (artigos 9º, nº 1, DS II61 e 10º, nº 1, DS III):

a) Foram postos em prática, uma política de prevenção dos acidentes graves e o respectivo sistema de gestão da segurança;

b) Foram identifi cados os perigos de acidente grave (e os possíveis cenários de acidentes graves, aditou a DS III) e que foram tomadas as medidas necessárias para os prevenir e para limitar as consequências desses acidentes para a saúde humana e o ambiente;

59 Ou “estabelecimentos de nível superior de perigosidade”, de acordo com a DL Seveso.

60 Cfr., sobre avaliação de riscos, v.g., A. AMENDOLA, Risk assessment within the control process of major accident hazards, in Environmental Aspects of Converting CW Facilities to Peaceful Purposes, Raymond R. McGuire, John C. Compton (ed.), Springer, 2002, pp. 223-240.

61 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 10º, nº 3, DL Seveso.

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c) A adequada segurança e fi abilidade da concepção, da construção, da exploração e da manutenção das instalações, locais de armazenagem, equipamentos e infra-estruturas relativos ao seu funcionamento, que tenham uma relação com os perigos de acidente grave no estabelecimento;

d) Foram defi nidos planos de emergência internos e apresentar os elementos que permitam a elaboração do plano externo.

Para além disso, deve também fornecer informação sufi ciente às autoridades competentes para lhes permitir tomar decisões sobre a implantação de novas actividades ou sobre o ordenamento do território em torno de estabelecimentos existentes.

Os requisitos relativos às informações mínimas que devem ser prestadas encontram-se estabelecidos no artigo 9º, nº 2, 1º parágrafo, e anexo II da DS II62 e no artigo 10º, nº 2, e anexo II da DS III. Assim, este relatório deve conter: i) informações sobre o sistema de gestão e sobre a organização do estabelecimento, tal como previstas no anexo III; ii) a apresentação da zona circundante ao estabelecimento; iii) a descrição da instalação; iv) a identifi cação e análise dos riscos de acidente e dos meios de prevenção; v) as medidas de protecção e de intervenção para limitar as consequências de um acidente; vi) a designação das organizações relevantes envolvidas na elaboração do relatório.

O relatório de segurança deve também incluir um inventário actualizado das substâncias perigosas presentes no estabelecimento (artigo 9º, nº 2 e anexo II, III, alínea c), 1, DS II63 e anexo II, nº 3, alínea c), i), DS III).

62 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 10º, nº 2, e anexo IV, DL Seveso. Em Portugal também é necessário ter em conta as orientações para a sua preparação divulgadas no sítio na Internet da APA.

63 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 15º e anexo IV, III, alínea c), 1, DL Seveso.

41. A DS II permite às autoridades competentes “sempre que fi que demonstrado de forma satisfatória” que “as substâncias específi cas presentes no estabelecimento ou que partes do próprio estabelecimento não são susceptíveis de criar um perigo de acidente grave” restringiras informações a incluir nos relatórios de segurança, podendo abranger apenas algumas matérias (artigo 9º, nº 6, alínea a), DSII64). Naturalmenteesta restrição das informações ocorrerá a pedido fundamentado do operador. A restrição não pode incidir sobre a totalidade das informações em causa, sendo necessário assegurar a prestação da informação que incida sobre as matérias que são “relevantes para a prevenção dos perigos residuais de acidentes graves e à limitação das suas consequências para o homem e o ambiente” (artigo 9º, nº 6, alínea a), DS II).

A decisão das autoridades nacionais sobre esta matéria deve ser tomada tendo em conta os critérios defi nidos pela Comissão (artigo 9º, nº 6, alínea b), DS II65). A Comissão veio a estabelecer esses critérios numa Decisão66 adoptada através do procedimento de regulação – que é um procedimento de comitologia. Para além disso, a Comissão deve ser informada da lista de estabelecimentos abrangidos por estas restrições e dos motivos para tal (artigo 9º, nº 6, alínea c), DS II). Trata-se de um exemplo de exercício de uma competência decisória das autoridades nacionais dos Estados-Membros de acordo com critérios normativos harmonizados pela Comissão.

Esta possibilidade foi afastada pela DS III – que não prevê qualquer regime de restrição da informação necessária ao nível do relatório de segurança.

64 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 11º, nº 3, DL Seveso.65 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 11º, nº 3, DL Seveso.66 Trata-se da Decisão da Comissão nº 98/433/CE, de 26 de Junho de 1998,

relativa a critérios harmonizados para a concessão de isenções nos termos do artigo 9º da Directiva nº 96/82/CE, do Conselho, de 9 de Dezembro de 1996 [notifi cada com o número C(1998) 1758].

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42. Os prazos para o envio do relatório de segurança à autoridade competente variam, também neste caso (artigo 9º, nº 3, DS II).

Os novos estabelecimentos devem cumprir esse dever “num prazo razoável, antes do início da construção ou da entrada em funcionamento”– aplicando-se aqui o que foi referido sobre a noção de “prazo razoável” (cfr. nº 30). Curiosamente, o diploma nacional de transposição não estabeleceu, também neste caso, prazos para o operador67 – apenas a necessidade de apresentação do relatório antes da construção ou da entrada em funcionamento da instalação e a nulidade de qualquer licenciamento ou autorização do estabelecimento emitidos sem a prévia aprovação do relatório de segurança (artigo 11º, nºs 1 e 2, DL Seveso).

Na DS II também se estabelecem períodos transitórios para os estabelecimentos já existentes68, devendo os estabelecimentos que passem a estar abrangidos pela DS II proceder ao envio “sem demora”, tendo o prazo máximo de um ano a contar do momento do início da aplicação69.

Estes prazos são alterados pela DS III (artigo 10º, nº 3). No caso de “novos estabelecimentos” (que têm a defi nição referida supra no nº 30), é estabelecido que o relatório deve ser enviado “num prazo razoável antes do início da construção ou da entrada em funcionamento, ou antes das modifi cações que impliquem uma alteração no inventário das substâncias perigosas”. No caso de estabelecimentos de nível superior existentes, o prazo vai até 1 de Junho de 2016 e nos outros estabelecimentos70, no prazo de dois anos a contar da data em que a Directiva é aplicável ao estabelecimento em causa71.

67 Com excepção do artigo 12º, nº 2, DL Seveso.68 No caso de estarem já abrangidos pelo âmbito da DS I, o prazo é de dois

anos; no caso de passarem a estar abrangidos pela DS II, de três anos. Em ambos os casos o prazo conta-se da data limite para proceder à transposição da DS II.

69 Cfr. artigo 37º, nºs 4 a 6, DL Seveso.70 Defi nidos como “um local de operação que seja abrangido pelo âmbito de

aplicação da presente directiva, ou um estabelecimento de nível inferior que se71

43. O regime Seveso é fl exível quanto à apresentação do relatório, permitindo que outros relatórios de segurança, elementos desses relatórios, ou relatórios equivalentes elaborados nos termos de outra legislação sejam fundidos num único relatório de segurança para efeitos do artigo 9º da DS II (no seu nº 2, 2º parágrafo72), de forma a evitar uma repetição inútil de informações e uma duplicação dos trabalhos efectuados pelo operador, desde que todas as exigências de prestação de informação sejam respeitadas. No âmbito da DS III, o artigo 6º, nº 3, prevê, de uma forma mais genérica, que as autoridades competentes devem aceitar “informações equivalentes apresentadas pelos operadores ao abrigo de outra legislação aplicável da União, que satisfaçam os requisitos” do regime Seveso.

44. É estabelecida a necessidade de revisão periódica do relatório de segurança, que deve ocorrer de cinco em cinco anos, para a sua actualização (artigo 9º, nº 5, 1º travessão, DS II73 e artigo 10º, nº 5, 1º parágrafo, DS III). Independentemente do decurso desse prazo, o relatório deve ser revisto por iniciativa do operador ou a pedido da autoridade competente, sempre que factos novos o justifi quem ou para ter em conta novos conhecimentos técnicos relativos à

torne estabelecimento de nível superior ou vice-versa, em 1 de Junho de 2015 ou em data posterior, por razões diferentes das referidas no ponto 5”, no artigo 3º, nº 7 DS III.

71 A DS III veio dispensar do cumprimento do dever de apresentação do relatório de segurança os operadores que tenham enviado o relatório de segurança à autoridade competente, de acordo com as disposições legais nacionais, antes de 1 de Junho de 2015, no caso de as informações nele contidas respeitarem os seus requisitos e não tenham sido alteradas. Em caso de alteração ou incompletude, também é possível ao operador apresentar as partes eventualmente alteradas do relatório de segurança no formato acordado pela autoridade competente, nos prazos legalmente estabelecidos (artigo 10º, nº 4, DS III).

72 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 10º, nº 4, DL Seveso.73 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 14º, nº 1, alínea a),

DL Seveso.

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segurança, resultantes, por exemplo, da análise dos acidentes ou, tanto quanto possível, dos “quase-acidentes”, e a evolução dos conhecimentos no domínio da avaliação dos perigos (artigo 9º, nº 5, 2º travessão, DS II74 e artigo 10º, nº 5, 2º parágrafo, DS III). O DS III adita a necessidade de rever o relatório de segurança, actualizando-o,sempre que necessário, na sequência de um acidente grave no respectivo estabelecimento (artigo 10º, nº 5, 2º parágrafo, DS III).

O relatório de segurança actualizado ou as partes actualizadas do mesmo devem ser enviados “o mais rapidamente possível” (“sem demora”, nos termos da DS III) à autoridade competente (artigo 9º, nº 3, 5º travessão, DS II e artigo 10º, nº 5, 3º parágrafo, DS III).

45. Uma vez recebido o relatório de segurança pela autoridade competente, esta deve analisá-lo e comunicar as suas conclusões ao operador (artigo 9º, nº 4, 1º travessão, DS II e artigo 10º, nº 6, DS III). No âmbito do processo de apreciação do relatório, a autoridade pode pedir informações complementares (apesar de a DS III deixar de prever expressamente esta hipótese, crê-se que esta continuará válida) ou efectuar uma inspecção ao estabelecimento, se o considerar necessário (artigos 18º DS II e 20º DS III).

Após essa análise, a autoridade pode proibir a entrada ou continuaçãoem funcionamento do estabelecimento se considerar que as medidas adoptadas pelo operador para a prevenção e a redução de acidentes graves são manifestamente insufi cientes (artigos 9º, nº 4, 2º travessão, e 17º DS II, e artigos 10º, nº 6, e 19º DS III).

A análise do relatório e a comunicação ao operador das conclusões da autoridade deve ocorrer antes de o operador dar início à construção ou ao funcionamento de um novo estabelecimento ou, nos restantes

74 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 14º, nº 1, alíneas b) e c), DL Seveso – onde também se refere a possibilidade de revisão devido a informações fornecidas por um grupo de “efeito dominó”.

casos, dentro de prazos razoáveis após recepção do relatório (artigo 9º, nº 4, DS II e artigo 10º, nº 6, DS III).

46. Assim, apesar de o regime Seveso não estabelecer expressamente a necessidade de emissão de uma autorização ou licença administrativa – ou de um qualquer acto autorizativo da autoridade competente – nesta matéria, decorre do regime assim fi xado a necessidade de a autoridade analisar efectivamente o relatório de segurança e de sobre ele formular um juízo – proibindo ou permitindo a actividade do estabelecimento em causa. Não será sufi ciente a mera declaração da autoridade de que recebeu o relatório e que este parece reunir toda a informação necessária – é necessária a apreciação do mérito da ponderação dos riscos de acidente e das medidas previstas para os prevenir ou limitar os seus efeitos.Esta necessidade de existência de um procedimento administrativo em que a autoridade competente controle o início de actividade está também relacionada com os deveres relativos ao ordenamento do território, como se verá infra (cfr. nº 59 segs).

47. Em Portugal, prevê-se expressamente a necessidade de aprovação pela APA do relatório de segurança (artigo 11º, nº 1, DL Seveso) antes da construção ou da entrada em funcionamento do estabelecimento, sendo nulos os actos de licenciamento ou de autorização doestabelecimento emitidos em violação desta regra (artigo 11º, nº 2, DL Seveso). O procedimento administrativo aplicável encontra-se no artigo 12º DL Seveso, onde se prevê o prazo para a decisão da APA de 90 dias, podendo esta solicitar a apresentação de elementos adicionais uma só vez e directamente ao operador – durante esse período, o prazo de decisão é suspenso. A decisão fi nal da APA é comunicada à ANPC, à IGAMAOT e à entidade coordenadora do licenciamento.

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48. O relatório de segurança deve ser reexaminado e, se necessário, revisto e actualizado em caso de alteração de uma instalação, de um estabelecimento, de um local de armazenagem, de um processo, ou da natureza (da “forma física”, aditou a DS III) e das quantidades de substâncias perigosas, que possam ter “repercussões importantes” (“sérias consequências”, nos termos da DS III) no domínio dos perigos associados a acidentes graves (artigos 10º DS II75 e 11º DS III). O operador deve fornecer à autoridade competente todos os elementos relativos a tais atualizações antes de as efectuar. A DS III adita que esta actualização também se deve realizar quando a alteração possa levar a que um estabelecimento de nível inferior passe a ser um estabelecimento de nível superior ou vice-versa.

5. O dever específico de definir e aplicar o plano de emergência interno

49. No âmbito da limitação dos efeitos de acidentes graves, os operadores de estabelecimentos com um maior grau de perigosidade(ou de nível superior, na terminologia da DS III) estão sujeitosigualmente ao dever de defi nição e aplicação de um plano de emergência interno (artigo 11º, nº 1, alínea a), DS II76 e artigo 12º, nº 1, alínea a), DS III)77, bem como o dever de fornecer às autoridades competentes as informações necessárias que lhes permitam elaborar o plano de emergência externo (artigos 11º, nº 1, alínea b), DS II78 e 12º, nº 1, alínea b), DS III). Trata-se de obrigações que já constavam da DS I e que se mantêm até hoje.

75 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 13º, nº 1, DL Seveso.76 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 17º, nº 1, DL Seveso.77 Cfr., v.g., C. PALANQUE, L’administration et les plans particuliers

d’intervention: application de la directive de Seveso, in Revue juridique de l’environnement, nº 3, 1989, pp. 289-292.

78 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 19º, nº 1, DL Seveso.

Os planos de emergência internos devem conter as medidas de resposta a adoptar no interior dos estabelecimentos no caso de ocorrênciade um acidente, quer relativamente à circunscrição, controle e limitação dos seus efeitos e dos danos por si provocados (quanto à saúde humana, ao ambiente e aos bens), à protecção relativamente a esse danos, à comunicação às autoridades e ao público das informações necessárias e as medidas necessárias para a reabilitação e o “saneamento” do ambiente nas áreas afectadas (artigos 11º, nº 2, DS II79 e 12º, nº 3, DS III) – bem como as restantes informações descritas no anexo IV, nº 1, da DS II80 e da DS III. Devem ser elaborados pelo operadore disponibilizados às autoridades competentes81, em conjunto com informação sufi ciente para que estas possam aprovar planos de emergência externos. Na elaboração dos planos de emergência internos, os operadores devem consultar os seus trabalhadores e restante pessoal contratado a longo prazo (artigos 11º, nº 3, DS II82 e 12º, nº 4, DS III).

50. Quanto a prazos, o plano de emergência interno deve ser elaborado, no caso de novos estabelecimentos, antes da sua entrada em funcionamento (artigo 11º, nº 1, alínea a), 1º travessão, DS II83). No caso de estabelecimentos que venham a fi car incluídos no âmbito da DS II, o plano deve ser elaborado “sem demora”, não se devendo

79 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 17º, nº 2, DL Seveso.80 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo anexo V DL Seveso. Em

Portugal é ainda necessário ter em conta as orientações fornecidas pela APA no seu sítio na Internet (artigo 18º, nº 1, DL Seveso).

81 Em Portugal, estes planos devem ser apresentados à APA e à ANPC, através da entidade coordenadora do licenciamento ou autorização do estabelecimento (artigo 18º, nº 1, DL Seveso). Estas entidades podem formular recomendações ao plano de emergência interno (artigo 18º, nº 3, DL Seveso).

82 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 18º, nº 2, DL Seveso.83 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 18º, nº 1, alínea a),

DL Seveso.

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ultrapassar o prazo de um ano a contar da data em que a DS II se passou a aplicar ao estabelecimento em questão (artigo 11º, nº 1, alínea a), 4º travessão, DS II). Os mesmos prazos aplicam-se ao dever de o operador fornecer às autoridades competentes as informações necessárias para lhes permitir elaborar o plano de emergência externo (artigo 11º, nº 1, alínea b), 1º e 4º travessões, DS II84).

A DS III vem alterar os prazos para o cumprimento destas alterações,passando a estabelecer, relativamente aos “novos estabelecimentos”(com a defi nição referida supra, cfr. nº 30), que o plano de emergência deve ser elaborado “num prazo razoável antes do início da entradaem funcionamento, ou antes das modifi cações que impliquem uma alteração no inventário das substâncias perigosas”85, e relativamente aos “outros estabelecimentos”, um prazo de dois anos a contar da data em que a DS III se torna aplicável ao estabelecimento em causa (artigo 12º, nº 2, alíneas a) e c), DS III)86.

51. Os planos de emergência devem ser avaliados, revistos e actualizados quando for necessário, com uma periodicidade adequada que não deve exceder três anos (artigos 11º, nº 4, DS II87 e 12º, nº 6, DS III). Este reexame deve ter em conta as alterações ocorridas nos estabelecimentos em questão e nos serviços de emergência relevantes, bem como os novos conhecimentos técnicos e os conhecimentos em matéria das medidas a adoptar em caso de acidentes graves.

84 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 19º, nº 1, DL Seveso.85 Quanto à interpretação de “prazo razoável”, cfr. supra nº 30.86 Estabelece-se uma disposição transitória para os estabelecimentos de nível

superior existentes, fi xando-se o prazo máximo de 1 de Junho de 2016, salvo se o plano de emergência interno elaborado por força das disposições legais nacionais antes dessa data, e as informações nele contidas e fornecidas às autoridades respeitem os requisitos legais e não tiverem sido alteradas (artigo 12º, nº 2, alínea b), DS III).

87 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 17º, nº 5, DL Seveso.

52. Os planos de emergência internos devem ser aplicados “sem demora” pelo operador sempre que se registe um acidente grave, ou se verifi que um incidente não controlado do qual é razoável prever que, pela sua natureza, possa conduzir a um acidente grave (artigos 11º, nº 5, DS II88 e 12º, nº 7, DS III). Assim, decorre directamente do regime Seveso um dever de tomar medidas de contenção dos efeitos do acidente, de prevenção da propagação dos seus efeitos e respectiva circunscrição (quanto à saúde humana, ao ambiente e aos bens), medidas de protecção relativamente a esse danos, de comunicação ao público das informações necessárias e a adopção das medidas necessárias para a reabilitação e o “saneamento” do ambiente nas áreas afectadas.

6. O dever de informar a autoridade competente e de adoptar medidas após um acidente grave

53. No âmbito da limitação dos efeitos de acidentes graves, os operadores de todos os estabelecimentos Seveso estão também sujeitos ao dever de informar a autoridade competente, logo que possível, após um acidente grave da sua ocorrência, utilizando os meios mais adequados (artigos 14º, nº 1, alínea a), DS II89 e 16º, alínea a), DS III).

O dever de informação inclui a comunicação dos seguintes elementos, logo que conhecidos: as circunstâncias do acidente; as substâncias perigosas em causa; os dados disponíveis para avaliar os efeitos do acidente sobre a saúde humana e o ambiente; e as

88 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 22º, nº 1, alínea a), DL Seveso.

89 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 22º, nº 1, alínea b), DL Seveso.

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medidas de emergência tomadas (artigos 14º, nº 1, alínea b), DS II90 e 16º, alínea b), DS III). Para além disso, a autoridade competente também deve ser informada das medidas previstas para minimizar os efeitos a médio e longo prazo do acidente e para evitar que o acidente se repita (artigos 14º, nº 1, alínea c), DS II e 16º, alínea c), DS III).

54. Daqui se pode retirar o dever genérico dos operadores de, em caso de acidente grave, adoptar medidas de emergência para limitar e circunscrever os seus efeitos e medidas necessárias para minimizar os efeitos a médio e longo prazo do acidente e para evitar que o acidente se repita. A autoridade competente também se deve assegurar que o operador tome as medidas paliativas necessárias (artigos 14º, nº 2, alíneas a) e c), DS II91 e 17º, alíneas a) e c), DS III).

55. O operador tem o dever de actualizar as informações fornecidas, na medida em que um inquérito mais aprofundado revelar novos elementos que alterem essas informações ou as conclusões delas tiradas (artigos 14º, nº 1, alínea d), DS II92 e 16º, alínea d), DS III).

v. Obrigações dos Estados-Membros

56. Como já foi referido, na medida em que o regime Seveso consta de uma Directiva, os deveres que foram enunciados como pertencendo ao operador dependem dos Estados-Membros para os transporem para a sua ordem jurídica e tomarem todas as medidas necessárias

90 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 22º, nº 1, alínea c), DL Seveso.

91 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 23º, nº 1, alínea c), DL Seveso.

92 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 22º, nº 1, alínea f), DL Seveso.

para garantir a sua efectiva aplicação. No entanto, independentemente desse dever genérico, decorrente dos Tratados e do princípio da cooperação leal (artigo 4º, nº 3, TUE e artigo 288º, 3º parágrafo, TFUE), não se pode negar que o regime Seveso contém, paralelamente às obrigações que devem ser impostas aos operadores, incumbências que recaem directamente sobre os Estados-Membros e sobre as autoridades competentes por si designadas.

57. Mais especifi camente, os deveres dos Estados-Membros relacionadoscom a prevenção de acidentes graves com a limitação dos seus efeitos são:

a) O dever de tomada em consideração dos estabelecimentos Seveso no ordenamento do território e urbanismo;

b) O dever de inspecção e proibição da actividade de estabele-cimentos;

c) O dever de informação e consulta do público;d) O dever de informação de outros Estados-Membros e da

Comissão;e) O dever de garantir a adopção de medidas de emergência e

recolha de informações;f) O dever de defi nir e aplicar o plano de emergência externo;g) O dever de identifi cação e adopção de medidas face ao “efeito

dominó”.

58. Analisa-se de seguida estes deveres dos Estados-Membros.

1. O dever de tomada em consideração dos estabelecimentos Seveso no ordenamento do território e urbanismo

59. Inúmeros acidentes industriais graves, como o ocorrido em Bhopal, na Índia, demonstram a necessidade de adoptação de um ordenamento do território que tenha em conta os riscos de acidentes com substâncias perigosas. De facto, um correcto ordenamento do

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território é um factor-chave na prevenção e mitigação das consequências nefastas destes acidentes93. Desta forma, o regime Seveso determina o dever dos Estados-Membros de tomar em conta o duplo objectivo de prevenção de acidentes e de controlo dos seus efeitos no âmbito das suas políticas de ordenamento do território e de afectação ou utilização dos solos, bem como das restantes políticas relacionadas.

60. Em concreto, os Estados-Membros devem atender a estes objectivos no que diz respeito às políticas de “afectação e uso dos solos” – ou seja, de ordenamento do território – implicando um “controlo” da “implantação de novos estabelecimentos” ou da alteração de estabelecimentos existentes (artigos 12º, nº 1, alíneas a) e b), DS II94, e 13º, nº 1, alíneas a) e b), DS III). Os objectivos também devem ser atendidos pelos Estados-Membros relativamente ao controlo do ordenamento do território, no que diz respeito, por exemplo, a vias de comunicação, a locais frequentados pelo público ou a zonas residenciais, sempre que o local de implantação ou o ordenamento da área sejam susceptíveis de aumentar o risco de um acidente grave ou agravar as suas consequências (artigos 12º, nº 1, alínea c), DS II95, e 13º, nº 1, alínea c), DS III).

93 Cfr. A. ARAGÃO, A prevenção de Riscos em Estados de Direito Ambiental na União Europeia, pp. 18 ss.

94 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 5º, nº 3, DL Seveso. Este preceito estabelece que “nas operações urbanísticas de iniciativa pública ou privada na proximidade” de estabelecimentos Seveso devem ser observadas “as distâncias de segurança resultantes da aplicação dos critérios defi nidos na portaria” prevista no artigo 5º, nº 2, DL Seveso. Esta portaria, que deveria especifi car os critérios de referência, nomeadamente a dimensão das parcelas e os parâmetros urbanísticos que permitam acautelar as distâncias de segurança adequadas entre os estabelecimentos Seveso dentro dos limites da parcela afecta ao estabelecimento, ainda não foi emitida.

95 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 5º, nº 1, DL Seveso.

Para alcançar este controlo, os Estados-Membros devem assegurar a existência de procedimentos de consulta adequados entre as autoridades competentes Seveso e as restantes entidades administrativas com competência ao nível do ordenamento. Esses procedimentos devem ser concebidos para que, no momento em que são tomadas decisões, os operadores facultem informações sufi cientes sobre os riscos associados ao estabelecimento e seja emitido um parecer técnico sobre esses riscos, com base na análise do caso concreto ou em critérios gerais (artigos 12º, nº 2, DS II96, e 13º, nº 3, DS III)97.

A DS III vem distinguir os estabelecimentos de nível superior e inferior, estabelecendo que estes últimos devem fornecer, a pedido da autoridade competente, informações sufi cientes sobre os riscos associados ao estabelecimento, necessárias para efeitos de ordenamento do território (artigo 13º, nº 3, 2º parágrafo, DS III).

61. A longo prazo, as políticas de ordenamento do território dos Estados-Membros (e de outras relacionadas) e a execução dessas políticas, devem garantir o estabelecimento e a manutenção das “distâncias adequadas” entre, por um lado, os estabelecimentos Seveso e, por outro, as zonas residenciais, os edifícios e as zonas de utilização pública, as zonas de recreio e lazer e, na medida do possível, as principais vias de circulação. Devem também atenderà necessidade de proteger as zonas naturais de interesse particular, ou com características particularmente sensíveis, situadas nas imediações dos estabelecimentos, se for caso disso, através do estabelecimento de distâncias de segurança adequadas ou de outras medidas adequadas.

96 Este dever é assegurado, na ordem jurídica portuguesa, pelo procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) ou, quando os estabelecimentos em causa não estiverem abrangidos por AIA, pela necessidade de emissão de parecer pela APA antes do licenciamento ou autorização (artigo 5º, nº 4, DL Seveso.

97 Cfr. M. D. CHRISTOU / A. AMENDOLA / M. SMEDER, The control of major accident hazards: The land-use planning issue, in Journal of Hazardous Materials, vol. 65, 1999, pp. 151-178.

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Por fi m, relativamente aos estabelecimentos existentes, tomar medidas técnicas complementares, de modo a não aumentar os riscos para a saúde humana e para o ambiente (artigos 12º, nº 1, 2º parágrafo, DS II98, e 13º, nº 2, DS III).

A forma de determinar quais são as “distâncias adequadas” e de executar efi cazmente o dever decorrente da DS II é, no entanto, complexa. Os deveres de controlo da instalação de estabelecimentos Seveso e do ordenamento do território que os rodeia implicam um grau de avaliação de risco, para efeito da garantia de existência destas “distâncias adequadas” de estabelecimentos Seveso entre si e entre estes e áreas sensíveis (áreas merecedoras de um regime especial de protecção por motivos ambientais ou de protecção do património cultural), infra-estruturas de utilização pública, áreas de maior densidade populacional ou outros estabelecimentos industriais. Ora, a metodologia para proceder a essa avaliação do risco (ao nível da selecção dos dados técnicos usados na avaliação do risco e da identifi cação de cenários de acidente)99 bem como a própria noção de “distâncias adequadas”100 varia em grande medida entre os regimes nacionais aplicáveis dos Estados-Membros101. Daí o reconhecimento da necessidade de alguma harmonização neste âmbito – cfr. infra nº 94.

98 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 5º, nº 1, DL Seveso.99 Cfr. M. CHRISTOU / Z. GYENES / M. STRUCKL, Risk assessment in

support to land-use planning in Europe: Towards more consistent decisions?, in Journal of Loss Prevention in the Process Industries, vol. 24, 2011, pp. 219-226; M. D. CHRISTOU / M. MATTARELLI, Land-use planning in the vicinity of chemical sites: Risk-informed decision making at a local community level, in Journal of Hazardous Materials, vol. 78, 2000, pp. 191-222.

100 Cfr., sobre a variação deste conceito, A. MARANGONA / M. CARCASSIA / A. ENGEBØ / S. NILSEN, Safety distances: Defi nition and values, in International Journal of Hydrogen Energy, vol. 32, 2007, pp. 2192-2197.

101 Cfr., para uma análise comparativa, v.g., I. A. PAPAZOGLOU / Z. S. NIVOLIANITOU / G. S. BONANOS, Land use planning policies stemming from the implementation of the SEVESO-II Directive in the EU, in Journal of Hazardous Materials, vol. 61, 1998, pp. 345-353.

62. É de referir também que o regime Seveso vincula não só as políticas de ordenamento do território, mas também o procedimento nacional de licenciamento ou autorização relativo à localização de actividades – relativo à urbanização, à edifi cação e aos usos – de cada Estados-Membros. Nesse âmbito é de referir o Acórdão Franz Mücksch102, no qual o Tribunal de Justiça da UE (TJUE) veio interpretar as obrigações dos Estados-Membros decorrentes do artigo 12º, nº 1, DS II, precisamente nesse sentido. Ou seja, que o dever dos Estados-Membros de se “assegurarem que seja tida em conta a necessidade de, a longo prazo, manter distâncias adequadas” entre os estabelecimentos Seveso e “os edifícios utilizados pelo público”se aplica não só no âmbito da actividade de planeamento, mas também no âmbito da emissão de licenças de construção103. Assim, também as autoridades públicas com competência licenciadora no domínio urbanístico estão abrangidas por este dever, mesmo que a actividade licenciadora seja “uma competência vinculada”104.

O TJUE concluiu nesse processo que o efeito útil da DS II podia ser posto em causa se fosse permitido às autoridades não encarregues pelo planeamento do ordenamento do território invocar a ausência de um plano para se subtraírem ao dever de ter em conta a necessidade de manter as “distâncias adequadas”. O artigo 12º, nº 1, da DS II vincula as autoridades “em termos inequívocos” a tomar em conta a manutenção das “distâncias adequadas” no âmbito da sua política de ordenamento do território (ou de outras políticas pertinentes) e nos procedimentos de execução dessas políticas – deixando a estas autoridades “uma margem de apreciação” para determinar as referidas distâncias (margem essa que tem como limites o cumprimento do dever de manter as “distâncias adequadas”) e aos Estados-Membros

102 Cfr. o Acórdão do TJUE no Proc. nº C-53/10, Land Hessen c. Franz Mücksch, de 15 de Setembro de 2011, Col. p. I-08311.

103 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 35. 104 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 35.

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liberdade para determinar quais as autoridades responsáveis e se os instrumentos de planeamento defi nem essa distância a priori ou se a remetem para decisão posterior das autoridades de execução dos planos105.

O TJUE considera que a determinação do momento do procedimento em que o controlo da existência de “distâncias adequadas” está nadiscricionariedade dos Estados-Membros. No entanto, se os instrumentosde gestão territorial não tomaram em conta a necessidade de garantiade manutenção destas “distâncias”, o TJUE considera que deve ser a autoridade licenciadora a proceder a essa avaliação – o que decorre do princípio da cooperação leal previsto no artigo 4º, nº 3, TUE – isto apesar de, de acordo com a lei nacional do caso, a competênciada autoridade licenciadora ser vinculada, sem espaço para essa ponderação106. Nesse âmbito, o caminho apontado pelo TJUE é o da interpretação conforme ao Direito da UE do Direito Nacional, que deve tomar em consideração o direito nacional na sua globalidade, sendo o dever de interpretação conforme tido como “inerente ao sistema do Tratado CE, na medida em que permite ao órgão jurisdicional nacional assegurar, no âmbito das suas competências, a plena efi cácia do direito da União quando se pronuncia sobre o litígio que lhe foi submetido” – mesmo que invocado num processo principal que oponha uma autoridade pública a um particular107.

105 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 22, 24 e 26-27.

106 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 28-29. O Acórdão cita, a este propósito, os Acórdãos do TJUE no Proc. nº C-397/01 a C-403/01, Pfeiffer e o., de 5 de Outubro de 2004, Col. p. I-8835, nº 110 – que diz respeito ao dever de interpretação conforme ao Direito da UE pelos órgãos jurisdicionais nacionais – e do Proc. nº C-444/09 e C-456/09, Gavieiro Gavieiro e Iglesias Torres, de 22 de Dezembro de 2010, Col. p. I-14031, nº 72 – que diz respeito ao dever de interpretação conforme ao Direito da UE pelas autoridades dos Estados-Membros, incluindo na sua qualidade de empregador público.

107 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 32-34. O Acórdão cita, a este propósito, os Acórdãos do TJUE nos Proc. nº C-160/01,

O TJUE também decidiu no mesmo Acórdão que o dever previsto no artigo 12º, nº 1, da DS II não impõe a proibição do licenciamentode “imóveis utilizados pelo público” que não cumprem uma “distância adequada” em relação a um estabelecimento Seveso já existente,verifi cando-se três condições: “quando, a uma distância não superior ou não sensivelmente superior, já existem vários edifícios equiparáveis frequentados pelo público”, essa instalação não implique para o operador Seveso “novas exigências no que respeita à limitação dos efeitos de acidentes” e “são respeitadas as exigências de salubridade em matéria de habitação e de condições de trabalho”108. De facto, de acordo com o TJUE, não se pode retirar da letra do preceito – que obriga as autoridades a “ter em conta” as “distâncias adequadas” – a proibição de licenciamento de instalações aquém dessas distâncias, uma vez que outras considerações podem ser tidas em conta, nomeadamente factores socioeconómicos109.

No entanto, de acordo com o TJUE, é contrário ao Direito da UE – mais especifi camente a este dever de “ter em conta” as “distâncias adequadas” – a previsão do carácter vinculado do licenciamento do imóvel, sem que “os riscos ligados à implantação no interior doperímetro das referidas distâncias” sejam avaliados pela autoridadecompetente “na fase de planeamento ou na da decisão individual”110.

Mau, de 15 de Maio de 2003, Col. p. I-4791, nº 34 e Proc. nº C-555/07, Kücükdeveci, de 19 de Janeiro de 2010, Col. p. I-365, nº 48, relativamente ao dever de interpretação conforme, os Acórdãos Pfeiffer e o. (C-397/01 a C-403/01), nº 115, e no Proc. nº C-239/09, SeydaLand Vereinigte Agrarbetriebe, de 16 de Dezembro de 2010, Col. p. I-13083, nº 50, relativamente ao dever de ter em consideração “o direito nacional no seu todo”, e os Acórdãos do TJUE no Proc. nº 80/86, KolpinghuisNijmegen, de 8 de Outubro de 1987, Col. p. 3969, nºs 12 a 14, e Proc. nº C-321/05, Kofoed, de 5 de Julho de 2007, Col. p. I-5795, nº 45, relativamente à invocação da interpretação conforme contra particulares.

108 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 53. 109 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 41-42,

44-48. 110 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 53.

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O dever de “tomada em conta” das “distâncias adequadas” exige que ocorra no procedimento um momento da avaliação do risco, e que esta seja realmente tida em consideração a par dos outros factores, seja de modo geral, aquando da elaboração dos planos de ordenamento do território, seja, na sua ausência, no caso concreto, nomeadamente, quando da adopção de decisões sobre as licenças de construção111.

63. Assim, decorre da jurisprudência do TJ que se pode retirar interpretativamente do artigo 12º, nº 1, da DS II a necessidade de existência de um procedimento administrativo que permita às autoridades competentes “ter em conta” as “distâncias adequadas” quando autorizam a localização da instalação em causa pelo menos quando esse requisito não é garantido pelo instrumento de gestão territorial aplicável. Trata-se de um desenvolvimento no sentido de um maior controlo – na medida em que a actividade de planeamentodo ordenamento do território e do uso do solo podem não sersufi cientes para garantir a existência de uma “distância adequada” (exigida pela Directiva). Já antes, a doutrina tinha chamado à atenção para a utilidade desse controlo deveria existir, para evitar que um armazém de brinquedos ou ursos de peluche, por exemplo, possa ser transformado em armazém de substâncias químicas perigosas, como nitrato de amónio, sem a necessidade de intervenção da autoridade competente112.

64. No âmbito nacional, para além dos deveres de ponderação dos estabelecimentos Seveso no âmbito dos planos municipais de ordenamento do território (artigo 5º, nº 1, DL Seveso), a instalação ou a alteração do uso de estabelecimentos abrangidos pelo âmbito

111 Cfr. Acórdão do TJUE Land Hessen c. Franz Mücksch (C-53/10), nº 50. 112 Cfr. G. WALKER, Land use planning, industrial hazards and the

‘COMAH’ Directive, in Land Use Policy, vol. 12, nº 3, 1995, pp. 187-191, p. 189.

do regime Seveso estão abrangidos pelo controlo das operações urbanísticas previsto no regime jurídico da urbanização e edifi cação(RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro. Assim, mesmo que os planos não prevejam a as “distâncias adequadas”,existe a garantia da ponderação destes riscos na avaliação da localização no âmbito do procedimento administrativo de controlo urbanístico – através de dois mecanismos possíveis: i) ou o estabelecimento em causa está abrangido pelo procedimento de avaliação de impacte ambiental (AIA) – caso em que essa avaliação ocorrerá nesse âmbito113; ii) ou, quando os estabelecimentos em causa não estiverem abrangidos por AIA, pela necessidade de emissão de parecer pela APA antes do licenciamento ou autorização (artigo 5º, nº 4, DL Seveso)114.

65. Uma inovação da DS III neste âmbito é a garantia de autonomia do regime Seveso face à Directiva nº 2011/92/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (Directiva AIA) e à Directiva nº 2001/42/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Junho de 2001, relativa à avaliação dos efeitos de determinados planos e programas no ambiente (Directiva da avaliação ambiental estratégica – Directiva AAE), e estabelecer a possibilidade de os Estados-Membros criarem procedimentos coordenados ou conjuntos para satisfazerem as suas

113 O artigo 45º, nº 4, do Decreto-Lei nº 151-B/2013, de 31 de Outubro, que aprova o regime jurídico da AIA (RJAIA), estabelece que sempre que um projectorespeite a um estabelecimento abrangido pelo regime Seveso, a avaliação da compatibilidade de localização, prevista no artigo 5º, nº 4, do DL Seveso, deve ser integrada na respectiva avaliação de impacte ambiental. Também nesse caso está garantida a intervenção da APA como autoridade de AIA (artigo 8º, nº 1, alínea a), sub-alínea iii), RJAIA).

114 O parecer deve ser emitido no prazo de 30 dias considerando-se favorável se não for emitido nesse prazo (artigo 5º, nºs 5 e 6, DL Seveso).

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obrigações de controlo ao nível do ordenamento e de avaliação de impacte sobre o ambiente previstas nessa legislação, nomeadamente para evitar a duplicação das avaliações ou consultas (artigo 13º, nº 4, DSIII).

2. O dever de inspecção e proibição da actividade de estabelecimentos

66. O regime Seveso também estabelece o dever de as autoridades competentes dos Estados-Membros procederem ao controlo da execução dos deveres dos operadores resultantes deste regime. Para tal, estabelece-se que estas autoridades devem ter competências inspectivas – existindo, aliás, o dever de proceder a inspecções –, e competências sancionatórias para determinarem o encerramentode estabelecimentos e proibir a prossecução da sua actividade, caso verifi quem violações do regime ou das suas indicações. Neste âmbito, a Comissão Europeia tem também fornecido apoio técnico à actuação das administrações dos Estados-Membros, em especial emitindo um conjunto de publicações sobre inspecção115, com o objectiv o de divulgação de conhecimento e de boas práticas.

67. A competência inspectiva e de controlo das autoridades competentesé central para o desiderato de garantir a efectividade do regime Seveso e da coerência na sua aplicação ao nível da UE. Assim, procede-se à regulação relativamente detalhada das obrigações da autoridade competente de organização de um sistema de inspecções que pode consistir numa avaliação sistemática dos estabelecimentos ou, pelo menos, numa inspecção in situ por ano.

115 Podem ser consultados em http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/?id=503 – apenas disponíveis em língua inglesa.

A DS II veio reforçar signifi cativamente este aspecto – mantido e alargado pela DS III. Enquanto a DS I apenas continha um parágrafo relativo às inspecções – que as colocava a par de outros sistemas de controlo (artigo 7º, nº 2, DS I) –, a DS II passou a regular a matéria num artigo autónomo (artigo 18º DS II). O elemento novo mais relevante é o dever de organização de um sistema de inspecção de forma a garantir que o operador tomou todas as medidas necessárias para cumprir o duplo objectivo do regime Seveso (prevenção e limitação das consequências de acidentes graves com substâncias perigosas) – em especial, que o relatório de segurança cumpre os requisitos legais e é completo (apesar de a adopção das medidas de controlo e inspecção não depender da apresentação do relatório) e que os deveres de informação do público foram cumpridos (artigo 18º, nº 1, DS II e artigo 20º, nº 1 e 2, DS III).

68. Assim, as autoridades competentes têm o dever de instituir um sistema de inspecção e controlo dos estabelecimentos Seveso. Este sistema consiste num sistema de inspecção – devendo ser determinada a entidade competente, a estrutura organizativa, o procedimento, os recursos alocados, etc. – e em outras medidas de controlo adaptadas ao tipo de estabelecimento em causa, o que introduz fl exibilidade (artigos 18º, nº 1, DS II116 e 20º, nº 2, DS III). O objectivo do sistema é verifi car se foram adoptadas as medidas apropriadas para prevenir acidentes graves, se existem os meios adequados para limitar as consequências, se os dados constantes do relatório de segurança estão correctos e se a informação foi disponibilizada ao público.

O sistema de inspecção deve garantir que para cada estabelecimento Seveso – de maior e menor perigosidade – existe um programa de inspecções a realizar pela autoridade competente. O programa deve

116 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 28º, nº 1, DL Seveso. A autoridade competente, para este efeito, é a IGAMAOT.

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ser elaborado tendo em conta a legislação nacional, as prioridadesnacionais e locais e uma ponderação geral de onde devem ser realizadas as inspecções, tendo em conta os riscos de acidente, a existência de alterações ou os dados disponíveis relacionados com o estabelecimento em causa e ao seu desempenho – nomeadamente tendo em conta os resultados das inspecções anteriores (ou a sua ausência), a dimensão e complexidade do estabelecimento e a experiencia adquirida relativamente a estabelecimentos semelhantes, por exemplo. Para os estabelecimentos Seveso de menor grau de perigosidade deve decorrer da ponderação referida uma frequênciaadequada para as inspecções. No caso de estabelecimentos de maior perigosidade (ou estabelecimentos de nível superior, na terminologia da DS III), o programa de inspecções pode consistir na avaliação sistemática dos perigos associados com acidentes graves relacionados com o estabelecimento em causa ou na realização pela autoridadecompetente de uma inspecção no local pelo menos de doze em doze meses (artigos 18º, nº 2, alínea a), DS II117 e 20º, nº 4, 2º parágrafo, DS III).

Após cada inspecção, a autoridade competente deve elaborar um relatório completo (artigos 18º, nº 2, alínea b), DS II118 e 20º, nº 7, DS III) e sempre que seja considerado necessário, tendo em conta os resultados da inspecção, deve ocorrer o acompanhamento posterior do estabelecimento (o designado “follow-up”), num prazo razoável após a realização da inspecção (artigos 18º, nº 2, alínea c), DS II119 e 20º, nº 7, DS III). Este acompanhamento posterior será especialmente importante se a autoridade competente tiver detectado

117 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 28º, nºs 2 a 5, DL Seveso.

118 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 28º, nº 6, DL Seveso. O IGAMAOT deve dar conhecimento do relatório ao operador, à APA, à ANPC, à câmara municipal e à entidade coordenadora do licenciamento ou autorização do estabelecimento.

119 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 28º, nº 7, DL Seveso – trata-se das “inspecções de acompanhamento”.

o incumprimento ou o cumprimento defi ciente das medidas de segurança do estabelecimento e tiver solicitado a adopção de medidas adicionais.

Neste âmbito, a autoridade competente pode requerer ao operador que assegure toda a assistência quanto à realização das inspecções e a obtenção de todas as informações complementares necessárias para que possa avaliar cabalmente a possibilidade de ocorrência de um acidente grave, determinar o eventual aumento das probabilidades de este ocorrer ou o agravamento possível das consequências desse acidente, bem como ter em conta as substâncias que podem necessitar de um tratamento especial devido ao seu estado físico, certas condições específi cas ou a localização do estabelecimento (artigos 18º, nº 3, DS II120 e 20º, nº 11, DS III).

69. São várias as inovações introduzidas, quanto a esta matéria, pela DS III.

Desde logo, são tipifi cados dois tipos de inspecções: i) as inspecções de rotina, que ocorrem de acordo com o programa de inspecções; e ii) as inspecções extraordinárias, que têm o objectivo de investigar, tão rapidamente quanto possível, as queixas graves, os acidentes graves e os “quase-acidentes”, os incidentes e a ocorrência de incumprimentos (artigo 20º, nº 4 e 6, DS III).

Para além disso, vem estabelecer a necessidade de existência de um plano de inspecções (distinto do programa de inspecção de cada estabelecimento), que deve abranger todos os estabelecimentos Seveso e que pode ser de nível nacional, regional ou local, e o dever de revisão periódica do plano, que deve ser actualizado sempre que necessário (artigo 20º, nº 3, DS III). Para além disso, a DS III estabelece quais os elementos que devem constar destes planos de inspecção, nomeadamente a avaliação geral das questões de segurança relevantes, a zona geográfi ca abrangida, a lista dos estabelecimentos

120 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 28º, nº 8, DL Seveso.

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abrangidos, a lista dos grupos de estabelecimentos que possam estar sujeitos a um efeito dominó, lista dos estabelecimentos em que a existência de riscos ou fontes de perigo externos específi cos possa aumentar o risco ou as consequências de um acidente grave, osprocedimentos para a realização das inspecções de rotina, incluindo os programas dessas inspecções, os procedimentos para a realização das inspecções extraordinárias, e a cooperação entre as diferentes autoridades de inspecção.

Passa a ser com base nesses planos que as autoridades competenteselaboram periodicamente programas de inspecção de rotina nosestabelecimentos, incluindo a determinação da frequência das visitas in situ para os diferentes tipos de estabelecimento. A DS III também vem estabelecer que o intervalo entre duas visitas consecutivas ao local não deve ser superior a três anos, no caso dos estabelecimentos de nível inferior, excepto se a autoridade competente tiver elaborado um programa de inspecção baseado numa apreciação sistemática dos perigos de acidente grave dos estabelecimentos em causa (artigo 20º, nº 4, DSIII).

As outras inovações incluem o estabelecimento do prazo de quatro meses após cada inspecção para a autoridade competente comunicar ao operador as conclusões da inspecção e todas as medidas cuja necessidade foi identifi cada (artigo 20º, nº 7, DS III) e determina que, se uma inspecção tiver detectado um incumprimento importante, há lugar a uma inspecção complementar no prazo de seis meses (artigo 20º, nº 8, DS III).

Merecem também destaque a determinação dos critérios para a apreciação sistemática da perigosidade dos estabelecimentos (artigo 20º, nº 5, DS III) e o dever de coordenação, “quando pertinente”, das acções de inspecção realizadas por força de outra legislação da União (artigo 20º, nº 9, DS III)121. Da preocupação da DS III com a

121 Designadamente o regime de prevenção e controlo integrados da poluição (PCIP). O regime PCIP encontra-se previsto na Directiva nº 2010/75/UE, do

efectividade do sistema de controlo decorre o dever de os Estados--Membros assegurem a disponibilidade, em número sufi ciente, de pessoal com as aptidões e qualifi cações necessárias para realizar, com efi cácia, as inspecções e que as autoridades competentes prestem um apoio adequado, por meio de instrumentos e mecanismos de intercâmbio de experiências e consolidação de conhecimentos, nomeadamente a nível da UE.

70. Para além dos deveres de inspecção, também recaem sobre as autoridades competentes dos Estados-Membros deveres específi cos de proibição do funcionamento ou da entrada em actividade da totalidade ou parte de um estabelecimento, instalação ou local de armazenagem,no caso de (artigo 17º, nº 1, DS II122 e 19º, nº 1, DS III): i) as medidas adoptadas pelo operador para a prevenção e a redução de acidentes graves forem “manifestamente insufi cientes”123; ou ii) o operador não tiver apresentado a notifi cação, os relatórios ou as outras informações previstas no prazo fi xado. Deve existir um procedimento de revisão desta decisão (através de recurso ou de impugnação) a que os operadores tenham acesso, embora se remeta para a legislação dos Estados-Membros a determinação da instância

Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Novembro de 2010, relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição).

122 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 29º, nºs 1 e 2, DL Seveso. A autoridade competente é a IGAMAOT que deve comunicar de proibiçãode funcionamento à APA, “sem prejuízo da obrigatoriedade de comunicação à entidade coordenadora do licenciamento ou autorização do estabelecimento” (artigo 29º, nº 3, DL Seveso). A proibição de funcionamento prevista nos artigos anteriores é uma decisão urgente e não carece de audiência dos interessados, nos termos do Código do Procedimento Administrativo (CPA).

123 A DS III vem densifi car a forma como as medidas podem ser consideradas “manifestamente insufi cientes”, para estes efeitos, estabelecendo que “os Estados-Membros têm nomeadamente em conta as falhas graves na tomada das medidas necessárias identifi cadas no relatório de inspecção”.

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adequada e dos procedimentos específi cos (artigo 17º, nº 2, DS II124 e 19º, nº 2, DS III).

Através destas medidas de carácter sancionatório, as autoridades competentes nacionais podem pressionar os operadores a executar os seus deveres decorrentes do regime Seveso e garantir a aplicação de medidas necessárias quando esteja em causa a saúde ou a segurança da população ou a protecção do ambiente.

3. O dever de informação e consulta do público

71. O regime Seveso consagra um conjunto de direitos do público àinformação e a ser consultado no processo de tomada de decisão125. O objectivo é a garantia de estabelecimento de um diálogo efectivo entre os operadores e a população que reside na vizinhança do estabelecimento e que será potencialmente afectada em maior medida no caso de um acidente, com a participação das autoridades competentes. Estes deveres estão relacionados com a prevenção de acidentes, na medida em que a consulta do público traga contributos que permitam evitar acidentes, e a limitação dos seus efeitos, na medida em que o público que pode vir a ser afectado deve ser informado da correcta forma de reagir.

124 Em Portugal, este procedimento deve ser considerado decorrente dos termos gerais de recurso e impugnação dos actos administrativos previsto no CPA e do Código do Processo dos Tribunais Administrativos.

125 Cfr. A. ARAGÃO, A prevenção de Riscos em Estados de Direito Ambiental na União Europeia, pp. 16 segs.; J.-P. VALLAURI, L’information du public, in Revue juridique de l’environnement, nº 3, 1989, pp. 293-299; G. WALKER / P. SIMMONS / A. IRWIN / B. WYNNE, Risk communication, public participation and the Seveso II directive, in Journal of Hazardous Materials, vol. 65, 1999, pp. 179-190.

A DS II não contém uma defi nição de público ou de público interessado, embora, relativamente a certos deveres dos Estados- -Membros, referira as pessoas susceptíveis de ser afectadas por um acidente grave, no artigo 13º, nº 1, DS II, enquanto noutros casos não faz essa distinção. A DS III veio colmatar esta falta, defi nindo público como “qualquer pessoa singular ou colectiva e, de acordo com a legislação ou as práticas nacionais, as suas associações, organizações ou agrupamentos” e público interessado como o “público afectado, ou susceptível de o ser, pelos processos de decisão sobre qualquer matéria abrangida pelo artigo 15º, nº 1, [que regula o dever de consulta do público, como se verá] ou com interesse nos mesmos; para efeitos da presente defi nição, consideram-se interessadas as organizações não-governamentais que promovem a protecção do ambiente e cumprem os requisitos previstos na legislação nacional”126.

72. Assim, os operadores e as autoridades competentes estão sujeitos a um conjunto de deveres de informação do público127. Estes deveres de informação podem ser divididos em dois grandes conjuntos: a informação passiva e a informação activa.

O dever relativo à informação passiva acarreta uma obrigação de disponibilização permanente de informação – podendo o público consultá-la a pedido. Este dever corporiza-se na possibilidade de o público consultar os relatórios de segurança e o inventário das substâncias perigosas dos estabelecimentos com um maior nível

126 O artigo 2º, alínea l), DL Seveso dá como defi nição de público interessado “os titulares de direitos subjectivos ou de interesses legalmente protegidos susceptíveis de serem afectados por um acidente, no âmbito de decisões tomadas ao abrigo do presente decreto-lei, bem como as associações que tenham por fi m a defesa desses interesses”.

127 Cfr. O. RENN, Risk Communication at the Community Level: European Lessons from the Seveso Directive, in JAPCA – Journal of the Air & Waste Management Association, vol. 39, nº 10, 1989, pp. 1301-1308.

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de perigosidade ou de nível superior (artigos 13º, nº 4 e 6, DS II128 e 14º, nº 2, alíneas b) e c), e 22º, nº 3, DS III). Por motivos de sigilo industrial, comercial ou pessoal, segurança pública ou defesa nacional, a autoridade competente pode autorizar o operador a não divulgar ao público algumas partes do relatório ou do inventário. Em tais casos, o operador fornece à autoridade e coloca à disposição do público um relatório ou um inventário alterado que exclui tais matérias. A DS III vem garantir que o relatório alterado seja, por exemplo, um resumo não técnico, que inclua, pelo menos, informações gerais sobre os perigos de acidente grave e os seus efeitos potenciais na saúde humana e no ambiente em caso de acidente grave (artigo 14º, nº 2, alínea b), DS III).

Um dever genérico de garantia de acesso do público à informação também pode ser encontrado. As autoridades competentes devem pôr à disposição de qualquer pessoa singular ou colectiva que o solicite as informações recebidas devido ao cumprimento do regime Seveso (artigos 20º, nº 1, DS II129 e 21º, nº 1, DS III). Existem, no entanto, excepções ao dever de transparência – para proteger, por exemplo, a confi dencialidade de decisões administrativas, das relações internacionais e da defesa nacional, a segurança pública, o segredo de justiça, o segredo comercial ou industrial e a propriedade intelectual, ou a privacidade (artigos 20º, nº 1, 2º parágrafo, DS II130 e 21º, nº 2, DS III).

128 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 15º, nº 1 e 2, DL Seveso relativamente ao relatório de segurança e ao inventário e das respectivas revisões.

129 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 24º DL Seveso e pela Lei nº 19/2006, de 12 de Junho, que regula o acesso à informação sobre ambiente.

130 Transposto pelo artigo 11º, nº 6, da Lei nº 19/2006, de 12 de Junho, que regula o acesso à informação sobre ambiente.

73. Por seu lado, o dever relativo à informação activa acarreta uma obrigação dos operadores e da administração procurar informar, por sua iniciativa, o público que possa vir a ser afectado por um acidente grave com origem num estabelecimento de maior perigosidade ou de nível superior (artigos 13º, nº 1, DS II131 e 14º, nº 1 e 2, alínea a), e 2º parágrafo, DS III). As informações devem ser claras e inteligíveis, incidir sobre as medidas de segurança e os comportamentos que devem ser adoptados em caso de acidente e devem ser fornecidas sem que o público o tenha de solicitar, por exemplo através da distribuição de folhetos ou brochuras, de forma adequada e regular. Essas informações são igualmente fornecidas a todos os grupos de pessoas e os edifícios e zonas de utilização pública, incluindo escolas e hospitais, e a todos os estabelecimentos vizinhos, susceptíveis de ser afectados. O conjunto de informações que devem ser fornecidas encontra-se descrito no anexo V da DS II e DS III (artigo 13º, nº 1, 3º parágrafo, DS II132). A informação deve ser revista de três em três anos e deve ser repetida e actualizada cada cinco anos e sempre que exista uma alteração no estabelecimento (artigo 13º, nº 1, 2º parágrafo, DS II133 e artigo 14º, nº 1 e 2, 2º parágrafo, DS III).

Prevê igualmente a DS III que seja dado acesso ao público dos principais relatórios e pareceres já transmitidos à autoridade competente e a um conjunto de informações diferentes das disponibilizadas por força do artigo 15º, nº 2, que sejam pertinentes para a decisão em causa e que só estejam disponíveis depois de o mesmo público ser informado nos termos desse preceito (artigo 15º, nº 3, DS III).

131 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 20º, nºs 1 e 2, DL Seveso. É o serviço municipal de protecção civil que é a entidade responsável pela informação sobre as medidas de autoprotecção e o comportamento a adoptar em caso de acidente, em articulação com a ANPC e com os corpos de bombeiros.

132 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 20º, nº 3, e anexo VI DL Seveso.

133 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 20º, nº 4, DL Seveso.

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74. Paralelamente aos deveres de informação, o regime Seveso consagra deveres de consulta do público em casos de projectos de novos estabelecimentos de maior perigosidade ou de nível superior ou de alteração de estabelecimentos existentes quando “estejam sujeitas às exigências” em matéria de ordenamento do território(artigo 13º, nº 5, 1º e 2º travessões, DS II134 e artigo 15º, nº 1, alíneas a) e b), DS III). Também é estabelecido o dever de consulta do público aquando da defi nição do ordenamento do território nas imediações de estabelecimentos existentes (artigo 13º, nº 5, 3º travessão, DS II135) – a DS III acrescenta, “sempre que o local de implantação ou o ordenamento da zona sejam passíveis de aumentar o risco de um acidente grave ou de agravar as suas consequências” (artigo 15º, nº 1, alínea c), DS III).

A DS III vem concretizar a regulação do dever de consulta,prevendo a necessidade de o público ser informado, através de avisos públicos ou por outros meios adequados, nomeadamente por meios electrónicos, de um conjunto de elementos, no início do processo de tomada de decisão ou, o mais tardar, logo que seja razoavelmente possível disponibilizar a informação (artigo 15º, nº 2, DS III). Neste aspecto, concretiza que o dever de consulta abrange igualmente o direito de o público interessado apresentar as suas observações e opiniões à autoridade competente antes de ser tomada uma decisão sobre um projecto individual específi co – e que essas observações sejam tidas na devida conta (artigo 15º, nº 4, DS III). A DS III também assegura o dever de disponibilização ao público do teor dadecisão tomada no âmbito destes procedimentos e sua fundamentação,

134 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 5º, nº 5, DL Seveso e pelo artigo 15º RJAIA.

135 O Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de Setembro, contém os deveres de consulta e participação do público no âmbito do procedimento de elaboração dos instrumentos de gestão territorial.

bem como dos resultados das consultas realizadas antes de ser tomada a decisão, bem como uma explicação da forma como essas consultas foram tomadas em conta na mesma (artigo 15º, nº 5, DS III).

Quanto a planos – por exemplo, de ordenamento do território – e programas relativamente aos quais já não exista o dever de realização de um processo de consulta pública, nos termos da Diretiva AAE, vem a DS III estabelecer o dever de permitir a participação efectiva e atempada do público na sua elaboração ou revisão, utilizando os procedimentos previstos no artigo 2º, nº 2, da Directiva nº 2003/35/CE, de 26 de maio de 2003, que estabelece a participação do público na elaboração de certos planos e programas relativos ao ambiente (artigo 15º, nº 6, DS III).

75. Por fi m, a DS III remete a regulação do dever de informação do público e a consulta do público interessado para os Estados-Membros. Estabelece, no entanto, o dever de estabelecimento de prazos razoáveis para as diferentes fases, a fi m de proporcionar tempo sufi ciente para a informação ao público e para que o público interessado se possa preparar e possa participar efetivamente no processo de tomada de decisão em matéria de ambiente (artigo 15º, nº 7, DS III).

4. O dever de informação de outros Estados-Membros e da Comissão

76. O regime Seveso também consagra um conjunto de deveres de informação por parte dos Estados-Membros da Comissão e dos outros Estados-Membros.

Nesses termos, os Estados-Membros estão sujeitos a deveres de informação relativamente aos estabelecimentos de maior perigosidade ou de nível superior a outros Estados-Membros potencialmente afectados por um acidente ocorrido nesse estabelecimento. Destaforma, quando exista a possibilidade de outro Estado-Membro ser

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afectado pelos efeitos transfronteiriços de um acidente grave, esse Estado deve receber informação sufi ciente para que possa ter em consideração esse facto no estabelecimento de planos de emergência, no seu ordenamento do território e que possam proceder à informação do público que possa vir a ser afectado (artigo 13º, nº 2, DS II136 e artigo 14º, nº 3, DS III).

No caso de o Estado-Membro onde se localiza o estabelecimento próximo do território de outro Estado-Membro considerar que este não é susceptível de criar um perigo de acidente grave para além do seu perímetro e que, por conseguinte, não requer a elaboração de um plano de emergência externo, deve informar desse facto o outro Estado-membro (artigo 13º, nº 3, DS II137 e artigo 14º, nº 4, DS III).

77. Após a ocorrência de acidente grave, os Estados-Membros têm o dever de informar esse facto à Comissão, em certos casos (artigos 15º, nº 1, DS II138 e 18º, nº 1, DS III). Este dever de informação tem objectivos de prevenção e de limitação das consequências dos acidentes graves.

No entanto, o dever de informação não existe relativamente a todos os acidentes ocorridos. É o anexo VI139 que estabelece os critérios para a existência do dever de notifi cação do acidente, relacionados com as consequências dos acidentes relativamente às substâncias perigosas envolvidas, os danos causados a pessoas ou bens imóveis,os danos imediatos para o ambiente, os danos materiais e osdanostransfronteiriços140. Os limites para os valores envolvidos são

136 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 25º, nº 1, DL Seveso.137 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 25º, nº 2, DL Seveso.138 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 26º, nº 1, alínea c),

DL Seveso. A autoridade competente é a APA.139 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo anexo VII DL Seveso.140 Cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais

graves na União Europeia, pp. 476-477.

estabelecidos através de valores matemáticos objectivos141, na medida em que o recurso a critérios subjectivos criaria incerteza sobre a necessidade de notifi cação. Mesmo assim, devido ao riscode manipulação dos critérios, o regime Seveso recorre à fi gura dos “quase-acidentes” ou seja, as situações em que, apesar de os limiares referidos não serem atingidos, apresentem “um interesse técnico específi co” para “a prevenção de acidentes graves e para a limitação das respectivas consequências”142. Desta forma, o dever de notifi cação não está relacionado com características do acidente em si143. Isto também signifi ca que a defi nição de acidente grave é mais lata do que os acidentes que são objecto do dever de notifi cação, nos termos do anexo VI.

As informações que devem ser prestadas – um relatório sumário – incluem a identifi cação da autoridade que elabora o relatório,do estabelecimento e das circunstâncias do acidente incluindo as substâncias perigosas envolvidas e os efeitos imediatos na saúde humana e no ambiente, bem como a descrição das medidas de emergência adoptadas e das precauções imediatas necessárias para evitar que o acidente se repita.

78. Após a análise do acidente ocorrido, o Estado-Membro deve enviar à Comissão um relatório mais desenvolvido, que deve resultar de um inquérito após o acidente, utilizando o modelo para isso estabelecido, como se verá infra – cfr. nº 91 (artigos 15º, nº 2, DS II144 e 18º, nº 3, DS III). Esse modelo deve ser aprovado no âmbito da comitologia,

141 Por exemplo, um morto ou seis feridos no interior do estabelecimento e hospitalizados, pelo menos, durante 24 horas. Cfr. anexo VI, I, nº 2, 1º e 2º travessões, DS II e anexo VI, I, 2, alíneas a) e b), DS III.

142 Cfr. anexo VI, II, DS II e anexo VI, II, DS III. 143 Cfr. A. ARAGÃO, A prevenção de Riscos em Estados de Direito Ambiental

na União Europeia, pp. 23-24.144 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 26º, nº 1, alínea c),

sub-alínea v), DL Seveso.

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nos termos da DS II, pelo procedimento de regulamentação (artigo 15º, nº 2, DS II)145 ou, nos termos da DS III, pelo procedimento de exame (artigo 18º, nº 3, DS III), tomando a forma de acto de execução.

A comunicação deste relatório só pode ser adiada para permitir a tramitação de processos judiciais, nos casos em que tal comunica-ção for susceptível de afectar estes processos (artigo 15º, nº 2, DS II146 e artigo 18º, nº 2, 2º parágrafo, DS III).

A DS III também aqui inova, estabelecendo que as informações devem ser fornecidas “o mais rapidamente possível e, o mais tardar, no prazo de um ano a contar da data do acidente”, utilizando a base de dados prevista na Directiva, sendo que as informações “devem ser actualizadas assim que estiverem disponíveis os resultados de outras análises e recomendações” (artigo 18º, nº 2, 1º parágrafo, DS III).

79. Os Estados-Membros também devem comunicar à Comissãoa identifi cação de qualquer organismo susceptível de possuirinformações sobre acidentes graves e que se encontre em condições de aconselhar as autoridades competentes de outros Estados-membros que necessitem de intervir em caso de ocorrência de um acidente dessa natureza (artigo 15º, nº 3, DS II e artigo 18º, nº 4, DS III).

145 Já foi adoptado um modelo pela Decisão da Comissão nº 2009/10/CE, de 2 de Dezembro de 2008, que estabelece um modelo de relatório de acidente grave [notifi cada com o número C(2008) 7530].

146 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 26º, nº 2, DL Seveso.

5. O dever de garantir a adopção de medidas de emergência e recolha de informações

80. Após a o corrência de um acidente grave, a autoridade competente dos Estados-Membros está sujeita a um conjunto complexo de deveres de reacção ao acidente e contenção dos seus efeitos (artigos 14º, nº 2, DS II147 e 17º DS III).

Desde logo, deve assegurar-se que todas as medidas de emergência, bem como outras medidas, a médio e longo prazo, que se revelarem necessárias – por si, por outras entidades públicas e pelo operador – são tomadas. A autoridade competente também se deve assegurar que o operador tome as medidas paliativas necessárias. Para além disso, a autoridade competente deve realizar uma inspecção, um inquérito ou de qualquer outro meio adequado de forma a poder recolher as informações necessárias para uma análise completa do acidente aos níveis técnico, organizativo e de gestão. Com base nos conhecimentos adquiridos, deve a autoridade competente formular recomendações relativas a futuras medidas de prevenção.

6. O dever específico de definir e aplicar o plano de emergência externo

81. As autoridades competentes têm o dever de elaborar e aplicar planos de emergência externos, para a intervenção no exterior do estabelecimento, no caso de um acidente grave, para os estabelecimentosde maior perigosidade (artigo 11º, nº 1, alínea c), DS II148)149. Trata-se

147 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 23º DL Seveso.148 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 19º, nº 1 e 3, DL

Seveso. O plano de emergência externo é elaborado pelo serviço municipal de protecção civil.

149 Cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia, pp. 482-483.

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de uma obrigação já prevista na DS I e que se mantém até hoje. Os planos de emergência externos devem conter as medidas de resposta, que devem ser adoptadas no exterior do estabelecimento no caso de ocorrência de um acidente. Os seus objectivos são semelhantes aos dos planos internos: a circunscrição, controle, limitação dos e a protecção quanto aos efeitos e danos provocados pelos acidentes, quanto à saúde humana, ao ambiente e aos bens, a comunicação ao público das informações necessárias e as medidas necessárias para a reabilitação e o “saneamento” do ambiente nas áreas afectadas (artigos 11º, nº 2, DS II150 e 12º, nº 3, DS III) – bem como as informações descritas no anexo IV, nº 2, DS II e DS III.

O plano de emergência externo é elaborado com base nas informações e que a autoridade competente disponha e – principalmente – nas informações fornecidas pelo operador às autoridades competentes. Neste âmbito, a autoridade competente pode requerer ao operador que forneça todas as informações complementares necessárias para que possa elaborar o plano e ter em conta as substâncias que podem implicar a necessidade de previsões especiais devido ao seu estado físico, a certas condições específi cas ou à respectiva localização (artigos 18º, nº 3, DS II151 e 20º, nº 11, DS III).

No entanto, a elaboração deste plano pode ser dispensada. De facto, a autoridade competente pode decidir, de forma fundamentada e tendo em conta as informações incluídas no relatório de segurança, que não se verifi ca a obrigação de estabelecer um plano de emergência externo (artigos 11º, nº 6, DS II152 e 12º, nº 8, DS III).

150 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 17º, nº 2, DL Seveso.151 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 19º, nº 1, DL Seveso.

As informações deve estar de acordo com as orientações aprovadas e divulgadas pela ANPC.

152 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 19º, nº 6, DL Seveso. É a ANPC que pode decidir, ouvida a APA, não ser necessário elaborar um plano de emergência externo, tendo em conta as informações incluídas no relatório de segurança.

82. As autoridades devem consultar o público aquando da elaboração,da actualização ou da modifi cação substancial dos planos de emergência externos (artigos 11º, nº 3, DS II153 e 12º, nº 5, DS III), aditando a DS III a necessidade de que esta consulta ocorra numa fase precoce. Devem igualmente ter em conta a necessidade de possibilitar uma cooperação reforçada na assistência da protecção civil em grandes emergências (artigos 11º, nº 4A, DS II e 12º, nº 6, 2º parág., DS III).

83. Não é expressamente estabelecido um prazo para a elaboração do plano de emergência externo, na DS II, mas este deve ser elaborado num prazo razoável desde o momento em a autoridade tenha acesso às informações necessárias. Neste âmbito, o TJ já emitiu um acórdão – no caso Comissão c. Espanha (C-392/08)154 – no sentido de que, apesar de não serem fi xados prazos pela Directiva, tal “não signifi ca, em si mesmo, que os Estados-Membros não estejam sujeitos a prazos para cumprir a obrigação de os elaborarem”, pois se assim fosse“aquela obrigação seria esvaziada de conteúdo e o sistema deprotecção instituído pelo artigo 11º da Directiva 96/82 fi caria privado de qualquer efeito útil”, uma vez que a elaboração dos referidos planos pelas autoridades competentes podia “fi car indefi nidamente em suspenso”155. O TJ chega a esta conclusão tendo em conta a importância dos planos de emergência externos para a protecção contra os riscos de acidentes e quanto à sua interdependência com os planos internos – bem como o facto de “no caso de algumas informações”, a sua “rápida desactualização pode tornar inefi caz um plano de emergência que nelas se baseie”156.

153 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 19º, nºs 4 e 5, DL Seveso.

154 Cfr. o Acórdão do TJ no processo C-392/08, Comissão c. Espanha, de 25 de Março de 2010, Col. p. I-02537.

155 Cfr. o Acórdão do TJ Comissão c. Espanha (C-392/08), nº 14-15.156 Cfr. o Acórdão do TJ Comissão c. Espanha (C-392/08), nº 16-19.

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No entanto, o TJ não esquece que o prazo para a elaboração dos planos de emergência externos – uma vez que estes dependem da informação prestada pelos operadores – “só pode, em princípio,começar a correr depois da transmissão das referidas informações”, pelo que conclui que as “autoridades competentes são obrigadas a elaborar os planos de emergência externos previstos no artigo 11º da Directiva 96/82, dentro de um prazo que, por um lado, não possa pôr em causa o efeito útil das disposições desse artigo, mas que, por outro, tenha em conta o tempo necessário para a fi nalização dos planos, ou seja, dentro de um prazo razoável a contar da data em que os dados sejam transmitidos pelos operadores em causa”157.

Assim, o prazo não fi ca inteiramente dependente da transmissão de informação pelos operadores, uma vez que “não deixa de ser verdade que a mesma disposição impõe aos Estados-Membros a obrigação de zelar por que aqueles operadores prestem as informações necessárias nos prazos estabelecidos. Nestas condições, o facto de, em alguns casos, as autoridades competentes não disporem das informações necessárias dentro desses prazos não justifi ca (...) a inexistência de planos de emergência externos”158.

Por seu lado, a DS III já estabelece um prazo específi co: as autoridades têm o prazo de dois anos para elaborar o plano após terem sido recebidas do operador as informações necessárias (artigo 12º, nº 1, alínea c), DS III).

84. O DL Seveso prescreve a necessidade de envio pelo operador da informação necessária para a elaboração do plano de emergência externo antes da entrada em funcionamento de um estabelecimento novo ou de uma alteração a um estabelecimento – não prevendo propriamente um prazo. A câmara municipal pode solicitar informação

157 Cfr. o Acórdão do TJ Comissão c. Espanha (C-392/08), nº 20-21.158 Cfr. o Acórdão do TJ Comissão c. Espanha (C-392/08), nº 25.

adicional ao operador no prazo de 45 dias. Após o envio dessa informação, o plano deve ser elaborado no prazo de 120 dias a contar da data de envio das informações à câmara municipal (artigo 19º, nºs 1 a 3, DL Seveso).

Diga-se que, neste âmbito da elaboração dos planos de emergência externos, Portugal já foi condenado por incumprimento, pelo TJUE – no processo Comissão c. Portugal (C-30/09)159. Nesse processo se concluiu que, na medida em que no termo do prazo fi xado no parecerfundamentado da Comissão, nem todos os estabelecimentos de maior perigosidade situados no território nacional tinham fornecido às autoridades competentes as informações necessárias à elaboração de um plano de emergência externo, que vários estabelecimentos não dispunham de tal plano elaborado pelas referidas autoridades e que alguns planos que deviam ser revistos ainda não o tinham sido, Portugal estava em incumprimento dos deveres decorrentes do artigo 11º DS II160.

85. Os planos de emergência devem ser avaliados, revistos e actualizados quando for necessário, com uma periodicidade adequada que não deve exceder três anos (artigos 11º, nº 4, DS II161 e 12º, nº 6, DS III). Este reexame deve ter em conta as alterações ocorridas nos estabelecimentos em questão e nos serviços de emergência relevantes, bem como os novos conhecimentos técnicos e os conhecimentos em matéria das medidas a adoptar em caso de acidentes graves.

159 Cfr. Acórdão do TJ no Proc. nº C-30/09, Comissão c. Portugal, de 15 de Outubro de 2009, Col. p. I-00170.

160 Cfr. Acórdão do TJ Comissão c. Portugal (C-30/09), nº 17.161 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 17º, nº 5, e 19º, nº 9, DL

Seveso.

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86. Os planos de emergência externos devem ser aplicados “sem demora” pela autoridade competente “se for caso disso” sempre que se registe um acidente grave, ou se verifi que um incidente não controlado do qual é razoável prever que, pela sua natureza, possa conduzir a um acidente grave (artigo 11º, nº 5, DS II162 e artigo 12º, nº 7, DS III).

7. O dever de identificação e adopção de medidas face ao “efeito dominó”

87. A DS II veio estabelecer o dever de os Estados-Membros, através da respectiva autoridade competente, identifi carem os estabelecimentos (de maior e menor perigosidade ou, na terminologia empregue pela DS III, de nível inferior e superior) ou grupos de estabelecimentos em que os riscos de um acidente grave podem ser maiores ou as suas consequ ências mais gravosas, devido à sua posição geográfi ca, à sua proximidade ou às substâncias perigosas presentes identifi cadasno inventário (artigo 8º, nº 1, DS II163 e artigo 9º, nº 1, DSIII). Esse aumento exponencial do risco de um acidente grave (ou de agravaçãodos efeitos nefastos de um acidente) é designado de “efeito dominó”164.

162 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 23º, nº 1, alínea a), DL Seveso.

163 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 21º, nº 1, DL Seveso. Cabe à APA a tarefa de identifi car estes estabelecimentos, de acordo com os critérios divulgados no seu sítio na Internet e as informações fornecidas pelo operador na notifi cação e no relatório de segurança.

164 A expressão “efeito dominó” inspira-se numa actividade que consiste na colocação de diversos dominós (peças do jogo) em pé numa fi leira de modo que se o primeiro for derrubado com um simples toque, provoca um efeito em cadeia relativamente aos outros até que todos sejam derrubados. É comum a utilização deste termo na ciência, em relação a processos que desencadeiam outros processos recursivamente ou incrementalmente ou acontecimentos que desencadeiam uma série de outros acontecimentos. É semelhante a fenómenos de “efeito em cascata” ou de “efeito em cadeia”.

Para proceder a essa identifi cação, a autoridade competente dos Estados-Membros deve basear-se nas informações fornecidas pelos operadores nas suas notifi cações e nos relatórios de segurança e proceder a uma avaliação da localização geográfi ca dos estabele-cimentos (por exemplo, a proximidade de outros estabelecimen-tos, de infra-estruturas públicas, cursos de água, ou de áreas de grande densidade populacional), bem como dos potenciais efeitos (e a interacção entre efeitos) de um acidente com substâncias pe-rigosas (por exemplo, a possibilidade de reacções químicas entre substâncias presentes em um ou em diversos estabelecimentos ou de um acidente poder causar outro acidente). A DS III vem prever expressamente a tomada em conta pela autoridade competente de conhecimentos adquiridos através de um pedido de informações adicionais ou por intermédio das inspecções.

88. Os Estados-Membros também devem garantir a troca de informaçãoe cooperação entre os estabelecimentos em causa para que estes possam ter em conta a natureza e extensão do perigo global de acidente grave nas políticas de prevenção de acidentes graves, nos sistemas de gestão da segurança, nos relatórios de segurança e nos planos de emergência internos – o que deve ser controlado pela autoridade competente. Também deve existir cooperação quanto à informação do público e à divulgação de informações à autoridaderesponsável pela elaboração dos planos de emergência externos (artigos 8º, nº 2, DS II165 e 9º, nº 3, DS III).

A DS III vem prever a possibilidade de disponibilização, pela autoridade competente aos operadores, de informação relativa à área circundante do seu estabelecimento e dos factores susceptíveis de causarem um acidente grave ou de agravarem as suas consequências, adquirida no âmbito da notifi cação de um outro estabelecimento (artigo 9º, nº 2, DS III).

165 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 21º, nº 2, DL Seveso.

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vi. Deveres de cooperação administrativa

89. A execução coerente e aplicação consistente do regime Seveso em toda a UE só pode ser alcançada através de uma cooperação signifi cativa e continuada entre as várias autoridades competentes nos diversos Estados-Membros (cooperação horizontal) e entre estas e a Comissão (cooperação vertical).

Esta cooperação assenta, desde logo, na partilha de informação – a que já se referiu – quer relativamente a estabelecimentos Seveso que possam dar origem a efeitos transfronteiriços, quer relativamente às substâncias consideradas perigosas, quer relativamente mesmo à partilha de experiências adquiridas É por esse motivo que o regime estabelece o dever de partilha de informação e experiência adquirida relativamente à sua aplicação prática entre Estados-Membros e a Comissão (artigo 19º DS II166 e artigo 21º DS III).

90. Como fórum para concretizar essa cooperação, foi constituído o Comité das Autoridades Competentes para a implementação do regime Seveso (conhecido pela designação em língua inglesa Committee of Competent Authorities [CCA]), previsto nos artigos 22º DS II e 27º DS III. Este Comité, criado pela DS II, é compostopelos representantes destas autoridades dos Estados-Membros e dos serviços da Comissão. O CCA é presidido por um representante da Comissão e reúne uma vez em cada presidência do Conselho (ou seja, uma vez de 6 em 6 meses). Os procedimentos de deliberação e de tomada de decisões baseiam-se no consenso.

O CCA discute todos os aspectos relativos à implementação do regime Seveso e dá orientações quanto à sua aplicação prática. Neste contexto diversos documentos com guias e directrizes relativamente à aplicação de diversas normas deste regime. Apesar destes documentos

166 Transposto para a ordem jurídica nacional pelo artigo 27º DL Seveso.

não serem vinculativos, dão orientações aos operadores e às autoridades competentes, na medida em que refl ectem a opinião consensual dos Estados-Membros relativamente àquele assunto. O CCA funciona em cooperação com a Comissão e os seus serviços com competências neste âmbito – sendo no seu sítio da internet que são publicados estes documentos167.

91. O CCA é um comité de comitologia, nos termos do Regulamento (UE) nº 182/2011, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 1 de Março de 2011, que estabelece as regras e os princípios gerais relativos aos mecanismos de controlo pelos Estados-Membros do exercício das competências de execução pela Comissão (Comitologia III).

Neste âmbito, o CCA funciona como comité de regulação, para auxiliar a Comissão em certos aspectos, como a determinação de critérios harmonizados para a autoridade competente decidir se um estabelecimento não é susceptível de criar um perigo de acidentegrave, restringindo as informações requeridas nos relatórios de segurança (artigo 9º, nº 6, alínea b), DS II) – hipótese que deixou de ser prevista no âmbito da DS III –, a criação de um modelo de relatório para os Estados-Membros comunicarem à Comissão a ocorrência de um acidente (artigo 15º, nº 2, DS II e artigo 18º, nº 3,DS III), ou a adaptação dos anexos II a VI ao progresso técnico (artigo 21º, nº 1, DS II) – este último poder foi alterado na DS III, confi gurando-se agora como uma competência delegada na Comissão. A DS II prevê o recurso a este comité também para a adopção de modelos e formatos para a comunicação de algumas informações (artigo 21º, nº 5, DS III).

Nos termos da DS II, o procedimento de comitologia adoptado é o de regulamentação (artigo 22º, nº 2, DS II) – o que signifi ca que as decisões eram tomadas por maioria qualifi cada, não sendo possível

167 Cfr. http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/?id=503.

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o consenso –, por exemplo para a aprovação do modelo de relatório (artigo 15º, nº 2, DS II), ou o procedimento de regulamentação com controlo (artigo 22º, nº 3, DS II), por exemplo para a adopção dos critérios harmonizados (artigo 9º, nº 6, alínea b), DS II) ou para a alteração dos anexos (artigo 21º, nº 1, DS II).

Com a aprovação do regime Comitologia III, já referido, o procedimento de regulamentação foi substituído pelo procedimento de exame regulado pelo artigo 5º do Regulamento Comitologia III, considerando-se que o acto de base prevê que, na falta de parecer, a Comissão não pode adoptar o projecto de acto de execução (artigo 5º, nº 4, segundo parágrafo, alínea b), ex vi artigo 13º, nº 1, alínea c), ambos do Regulamento Comitologia III). O procedimento de regulamentação com controlo168 manteve-se em aplicação na medida em que actos de base em vigor para ele remetam (artigo 12º do Regulamento Comitologia III).

A DS III veio adoptar como regra o procedimento de exame (artigo 27º, nº 2, DS III), previsto no artigo 5º do Regulamento Comitologia III, tomando a forma de acto de execução.

vii. Obrigações da Comissão

92. Para além das obrigações que resultam do regime Seveso para os operadores e para os Estados-Membros, também resultam deveres para a Comissão. Estes deveres estão relacionados com a necessidade de apoio técnico à actuação das autoridades competentes dos Estados- -Membros e com a participação nos mecanismos de cooperação que foram abordados no ponto anterior.

168 Que se encontrava previsto no artigo 5º-A da Decisão nº 1999/468/CE (Comitologia II).

93. A Comissão Europeia tem fornecido apoio técnico à actuação das administrações dos Estados-Membros, em especial através da actuação do Centro Comum de Investigação (Joint Research Centre [JRC])169 e do seu Gabinete dos Riscos de Acidentes Graves (Major Accident Hazards Bureau [MAHB]), que têm sede em Ispra, Itália. O MAHB é a unidade especial criada em 1996 no seio do Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia e que tem por objectivo central prestar assistência científi ca e técnica aos seus serviços e em particular à Direcção-Geral do Ambiente, da Comissão, na execução das acções da UE de controlo dos grandes riscos e de prevenção e atenuação de acidentes industriais graves.

É no âmbito do MAHB que se estabeleceram uma série de grupos de trabalho técnico (os Technical Working Groups [TWG]), com a participação de representantes das autoridades competentes dos Estados-Membros, apoiados pelo CCA170. Pode-se referir como exemplo, o grupo de trabalho técnico sobre as inspecções previstas naDS II (o TWG 2), composto por representantes dos Estados-Membros e gerido pelo MAHB, que funciona no âmbito do JRC. Este grupo de trabalho emitiu um conjunto de publicações sobre inspecção no regime Seveso171, com o objectivo de divulgação de conhecimento e de boas práticas.

94. Um outro exemplo é o grupo de trabalho técnico sobre o ordenamento do território (TWG 5), que funciona no âmbito do MAHB para responder à necessidade de harmonização das políticas nacionais a este nível.

169 Cfr. a Decisão nº 96/282/Euratom da Comissão, de 10 de Abril de 1996, relativa à reorganização do Centro Comum de Investigação.

170 Cfr. N. MITCHISON, The Seveso II directive: guidance and fi ne-tuning, in Journal of Hazardous Materials, vol. 65, 1999, pp. 23-36.

171 Podem ser consultados em http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/?id=503. Apenas disponíveis em língua inglesa.

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De facto, apesar de o regime Seveso obrigar os Estados-Membros a garantir que os objectivos de prevenção dos acidentes graves e da limitação das suas consequências são tidas em conta no âmbito das suas políticas de ordenamento do território, não contém a indicação de como tal desiderato deve ser alcançado. Como já foi referido supra (nº 61), os deveres de controlo da instalação de estabelecimentos Seveso e do ordenamento do território que os rodeia decorrentes do artigo 12º DS II (e do artigo 13º DS III) implicam um grau de avaliação de risco, para efeito da garantia de existência de distânciasde segurança (“distâncias adequadas”) entre estabelecimentos Seveso e entre estes e outras áreas merecedoras de tutela. Ora, actualmente as práticas e metodologias relativamente à avaliação do risco variam de tal forma entre os Estados-Membros que é muito difícil comparar as políticas de uso do solo e ordenamento do território existentes na UE.Esta variação de regime aplicável entre os Estados-Membros gera uma incerteza que é indesejável para os operadores do mercado único e para os cidadãos e que põe igualmente em causa a existência de um nível mínimo de protecção garantido em todos os Estados-Membros. Existem, pois, vantagens numa maior harmonização da actuação dos Estados-Membros neste domínio da avaliação dos riscos.

A referida harmonização, que é essencial para a aplicação efectiva do artigo 12º DS II (e do artigo 13º DS III), apenas pode ser alcançada através de uma identifi cação das variações existentes entre os regimesnacionais aplicáveis dos Estados-Membros, compreensão dos motivos para as diferenças e da determinação de qual o nível de segurança aplicada em cada regime nacional. Esta determinação depende da análise de qual a selecção dos dados técnicos usados na avaliação do risco e identifi cação de cenários de acidente – só assim é possível o melhor entendimento das posições nacionais relativamente à correcta interpretação da expressão “distâncias adequadas” de forma a prosseguir a sua convergência. Parece, igualmente essencial garantir que as tomadas de decisão relativamente ao planeamento e ao licenciamento mais transparentes e compreensíveis. A harmonização

depende, assim, da coerência entre os regimes nacionais e a sua aplicaçãoefectiva pelas autoridades competentes dos Estados-Membros.

Neste âmbito, é reconhecida competência à Comissão para editar orientações que defi nam uma base de dados técnicos, incluindo dados de risco e cenários de risco, para a avaliação da compatibilidade entre os estabelecimentos Seveso e as zonas de risco identifi cadas. A DS II prevê que essa defi nição de orientações deve ser feita em estreita colaboração com os Estados-Membros e ter em conta as avaliações das autoridades competentes, as informações recolhidas junto do operador e todas as outras informações pertinentes, como os benefícios sócio-económicos do desenvolvimento e os efeitos atenuantes dos planos de emergência (artigo 12º, nº 1A, DS II).

É em concretização deste desiderato que foi criado o já referido grupo de trabalho técnico sobre o ordenamento do território (o TWG 5), em 1996, onde participam representantes dos Estados-Membros nomeados pelas respectivas autoridades competentes, representantes de associações representativas dos operadores e representantes das autoridades locais (por exemplo, das associações de municípios). Em 1999, este grupo de trabalho veio a emitir um Documento-Guia para auxiliar a execução do artigo 12º DS II. Este Documento-Guia contém apenas de directrizes descritivas, com o objectivo de divulgar a informação sobre as práticas existentes e não propriamente o desenvolvimento de métodos ou critérios normativos – o que corresponde ao mandato do grupo.

Em 2006, após a alteração à DS II pela Directiva nº 105/2003/CE, e dos já referidos acidentes em Toulouse e Enschede, foi publicado outro Documento-Guia pela Comissão, este já com o objectivo de fornecer directrizes baseadas nas melhores práticas quanto à avaliação do risco no âmbito do ordenamento do território172.

172 Ambos os documentos estão disponíveis em http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/index.php/Information-material/503/0/.

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95. A DS III não regula esta questão de forma tão completa, limitando-se a prever a competência da Comissão para emitir orientações sobre a distância de segurança e também sobre o “efeito dominó” (artigo 24º DS III).

96. Assim, com o objectivo de garantir uma interpretação correcta e harmonizada do regime Seveso na UE, a Comissão tem, em colaboração com os Estados-Membros, disponibilizado diversos documentos-guias no site do MAHB173, nomeadamente quanto à preparação dos relatório de segurança174, ao ordenamento do território e à distância de segurança175 e à elaboração das políticas de prevenção de acidentes graves e dos sistema de gestão de segurança176. Apesar de estes documentos não serem vinculativos, dão orientações aos operadores e às autoridades competentes, na medida em que refl ectem a opinião consensual dos Estados-Membros e da Comissão sobre a interpretação dos preceitos em causa.

173 Cfr. o site http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/index.php/Information-material/503/0/. 174 Cfr. o “Guidance on the preparation of a safety report to meet the requirements

of Directive 96/82/EC as amended by Directive 2003/105/EC (Seveso II)” (EUR 22113), disponível em http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/fi leadmin/repository/sta/mahb/docs/GuidanceDocuments/EUR22113EN_1__NewSafetyReportsGuidance.pdf.

175 Cfr. o “Guidance on Land Use Planning as required by Council Directive 96/82/EC (Seveso II)” (EUR 18695), disponível em http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/fi leadmin/repository/sta/mahb/docs/LandUsePlanning/5782-5872_eurtemplate_LUP_Guidance.pdf, e as “Land Use Planning guidelines in the context of article 12 of the Seveso II Directive 96/82/EC as amended by Directive 105/2003/EC” (EUR 22634), disponíveis em: http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/fi leadmin/repository/sta/mahb/docs/LandUsePlanning/EUR18695EN_LandUsePlanningGuidance.pdf.

176 Cfr. o “Guidelines on a Major Accident Prevention Policy and Safety Management System, as required by Council Directive 96/82/EC (Seveso II)” (EUR 18123), disponível em http://ipsc.jrc.ec.europa.eu/fi leadmin/repository/sta/mahb/docs/GuidanceDocuments/Guide_MAPP_SMS.pdf.

O MAHB também tem vindo a publicar, desde 2012, no mesmo site, um boletim baseado na experiencia adquirida com os acidentes ocorridos (os “Lessons Learnt Bulletins”), com descrições dos acidentes ocorridos, informação geral sobre determinados tópicos, e recomendações extraídas dessa experiência adquirida.

97. Com o objectivo de assegurar os deveres de informação dosEstados-Membros, a Comissão criou um “sistema de notifi cação deacidentes graves” – o Major-Accident Reporting System (MARS)177. Este sistema permite, hoje em dia, que a notifi cação ocorra através da Internet, sendo designado eMARS178-179. O eMARS tem como objectivo permitir uma melhor partilha de informações sobre acidentes ou quase-acidentes ocorridos em estabelecimentos Seveso, notifi cados ao MAHB pelos Estados-Membros no âmbito do regime Seveso desde 1982, promovendo a divulgação da experiência adquirida pelos outros Estados-Membros, bem como pelo público em geral. O eMARS abrange também as notifi cações enviadas por Estados não membros da UE: i) no caso de estarem integrados na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e voluntariamente aceitarem esse dever de notifi cação; ii) e no caso de Estados abrangidos por obrigações de reporte no âmbito da CETAI.

Foi igualmente criado um centro de documentação comunitária sobre riscos industriais (o Community Documentation Centre on Industrial Risks [CDCIR]) no âmbito do MAHB. O CDCIR é um centro de documentação que recolhe e avalia directrizes, guias, códigos de boas condutas e dados relativos a acidentes ocorridos

177 Cfr., v.g., C. KIRCHSTEIGER, The Functioning and Status of the EC’s Major Accident Reporting System on Industrial Accidents, in Journal of Loss Prevention in the Process Industries, vol. 12, nº 1, 1999, pp. 29-42.

178 Cfr. o site https://emars.jrc.ec.europa.eu/. 179 Cfr. Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais

graves na União Europeia, p. 483.

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relacionados com aspectos da regulação da UE na área de acidentes industriais.

A Comissão também elabora relatórios de três em três anos, sobre a aplicação do regime Seveso, com base nas informações fornecidas pelos Estados-Membros relativamente aos estabelecimentos Seveso,sob a forma de um questionário. Em 28 d e Junho de 2013, a Comissão adoptou o “Relatório sobre a aplicação, nos Estados-Membros, da Diretiva 96/82/CE, relativa ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas, para o período 2009-2011” [C(2013) 4035 fi nal]180, que sumaria a informação fornecida pelos 27 Estados-Membros para o período 2009-2011.

c) Outros regimes de Direito da UE relativos ao controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas

98. Para além do regime Seveso, existem outros regimes normativos no âmbito do Direito da UE relacionados com o controlo dos per igos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas que podem ser mencionados181.

99. Já se fez referência ao Regulamento CLP182 que consagra o enquadramento normativo para a classifi cação de substâncias e misturas perigosas, que se baseia nas suas características físicas e efeitos para a saúde humana e o ambiente, de acordo com o referido

180 Disponível em http://ec.europa.eu/environment/seveso/pdf/reports/2009_ 11/1_PT_ACT_part1_v2.pdf.

181 Cfr. A. ARAGÃO, A prevenção de Riscos em Estados de Direito Ambiental na União Europeia, pp. 11 segs.

182 O Regulamento (CE) nº 1272/2008, de 16 de Dezembro de 2008, relativo à classifi cação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas.

sistema global GHS – estabelecendo o regime para a sua rotulagem e embalagem, tendo em conta a classifi cação em causa.

O objectivo do Regulamento CLP é a divulgação dos riscos eperigos resultantes de certas substâncias aos seus utilizadores. Antes da colocação de substâncias no mercado, o operador deve avaliar os riscos potenciais para a saúde humana e o ambiente, classifi cando-asde acordo com os perigos associados. As substâncias e misturas consideradas perigosas devem ser rotuladas de acordo com um sistema padronizado, através de fórmulas-padrão (palavras-sinal, advertências de perigo e recomendações de prudência) e pictogramas apostos nos rótulos e fi chas de segurança, de forma a transmitir essa informação de forma clara, a trabalhadores e consumidores na UE183.

Como já foi referido, existe uma relação entre este Regulamento e o regime Seveso, uma vez que o âmbito deste último, defi nido no seu anexo I da DS III, se baseia na classifi cação de substâncias químicas constante do Regulamento CLP.

100. Um outro Regulamento da UE que regula as substâncias perigosas (e outras) químicas é o Regulamento (CE) nº 1907/2006, relativo ao Registo, Avaliação, Autorização e Restrição de substâncias químicas (designado REACH184), que entrou em vigor em 1 de Junho de 2007.

183 Por exemplo, quando uma substância é classifi cada com “toxicidade aguda de categoria 1 (oral)”, o rótulo deve conter, de acordo com o Regulamento CLP, a advertência “Mortal por ingestão” e a palavra-sinal “Perigo”, bem como um pictograma representando uma caveira sobre tíbias cruzadas.

184 Trata-se da sigla de Registration, Evaluation, Authorisation and Restriction of Chemicals.

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O REACH tem como objectivo codifi car o quadro legislativo da UE em matéria de substâncias químicas, substituindo cerca de 40 diplomas185, de forma a melhorar a protecção da saúde humana e do ambiente dos riscos que podem resultar dos produtos químicos. Para além disso, cria a Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA186), que é a entidade da UE responsável pela gestão dos aspectos técnicos, científi cos e administrativos do Regulamento, sediada em Helsínquia, Finlândia.

Salvo algumas excepções (como as substâncias radioactivas, os resíduos ou as substâncias com interesse para a defesa nacional), o REACH aplica-se a todas as substâncias químicas – não só as utilizadas nos processos industriais, mas também as usadas no dia-a-dia pelos cidadãos comuns, como os produtos de limpeza, tintas ou produtos electrónicos – estabelecendo os procedimentos para recolher e analisar informações relativas às suas propriedades e perigos. De acordo com o REACH, os operadores devem identifi car e gerir os riscos relacionados com as substâncias que produzem ou fornecem na UE, registando-as. Têm também a obrigação de demonstrar à ECHA como a substância pode ser usada de forma segura e comunicar as medidas de gestão de risco aos utilizadores. A ECHA recebe e avalia os registos, verifi cando o cumprimento dos requisitos legais, e os Estados-Membros avaliam substâncias selecionadas para verifi car eventuais riscos para a saúde humana ou para o ambiente. As autoridades dos Estados-Membros e os comités científi cos da ECHA avaliam se os riscos das substâncias podem ser feridos. Se não for possível gerir os riscos, as autoridades podem restringir a sua utilização de diferentes formas – proibindo-as ou sujeitando a sua utilização a autorização. A longo prazo, o objectivo

185 Entre os quais o Regulamento (CE) nº 793/93, a Directiva nº 1999/45/CE e a Directiva nº 76/769/CEE e alterando a Directiva nº 67/548/CEE.

186 Trata-se da sigla de European Chemicals Agency.

é que as substâncias mais perigosas sejam substituídas por outras, menos perigosas.

A relação deste regime com a matéria dos acidentes industriais com substancias perigosas decorre desses objectivos: o controlo e diminuição dos riscos associados à utilização de substâncias químicas.

101. Também é relevante o regime aplicável à gestão dos resíduosda indústria extractiva, decorrente da Directiva nº 2006/21/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006. De facto, os resíduos das operações de extracção e de processamento dos recursos minerais podem conter grandes quantidades de substâncias perigosas como metais pesados e representam um dos maiores fl uxos de resíduos na UE – pretendendo a Directiva garantir a sua gestão segura.

Existem vários tipos de resíduos resultantes da actividadeextractiva187. Alguns188, em especial os gerados pela indústria deextracção de metais não-ferrosos, podem conter grandes quantidades de substâncias perigosas, como metais pesados189. Ora, a gestão dos rejeitados é uma actividade intrinsecamente arriscada, muitas vezes envolvendo substâncias químicas residuais e níveis elevados de metais, sendo a sua eliminação e rejeição problemática – acabando

187 Podem ser apontados como exemplos os resíduos resultantes das operações de extracção do minério, envolvendo os materiais que devem ser retirados para ter acesso aos recursos minerais, como o solo superfi cial, estéreis e terras de cobertura, ou também os rejeitados, ou seja, os materiais sólidos sobejantes ou lixos resultantes do tratamento de minerais por técnicas diversas.

188 Outros destes resíduos são inertes, não sendo provável que representem uma ameaça poluente signifi cativa para o ambiente, salvo no que diz respeito ao eventual assoreamento de rios e vias fl uviais ou o seu colapso se armazenados em quantidades muito grandes.

189 Por exemplo, através da extracção e da subsequente preparação de minérios, metais e compostos de metais podem vir a gerar soluções ácidas ou alcalinas que têm de ser drenadas.

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muitas vezes em escombreiras ou bacias contidas por diques. O acidente ocorrido em Baia Mare, Roménia, em 2000, numa dessas é um bom exemplo de como o colapso de uma dessas áreas de rejeição pode ter impactos graves e duradouros em termos de saúde humana, segurança e ambiente, extremamente difíceis e dispendiosos de minimizar através de medidas correctivas.

A Directiva em causa pretende, assim, garantir que os resíduos da indústria extractiva são geridos de forma correcta, para garantir que a sua minimização, tratamento, valorização e eliminação tem em conta o princípio do desenvolvimento sustentável. Em especial, pretende-se a estabilidade a longo prazo dos depósitos de resíduos e das instalações dedicadas à sua eliminação, evitar acidentes e prevenir ou minimizar a poluição das águas e dos solos decorrente de efl uentes alcalinos ou ácidos da drenagem ou lixiviação de metais pesados.

102. Merece igualmente referência, neste âmbito, a Directiva nº 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais.

O regime de responsabilidade ambiental assim estabelecido, baseado no princípio do poluidor-pagador, tem como objectivo a prevenção e a reparação de danos provocados ao ambiente, onde se incluem danos, directos ou indirectos, causados à biodiversidade, à água e ao solo. Os operadores das actividades perigosas ou potencialmente perigosas enunciadas no anexo III da Directiva podem ser responsabilizados objectivamente pelos danos causados ao ambiente por estas, desde que seja possível estabelecer uma relação de causalidade entre o dano e a actividade em questão. O anexo III abrange principalmente as actividades agrícolas ou industriais sujeitas a controlo prévio por força da Directiva PCIP, as actividades emissoras de metais pesados para os meios aquático ou atmosférico, as instalações produtoras de substâncias químicas perigosas – onde se incluem os operadoresde estabelecimentos Seveso (anexo III.7, a) e b), da Directiva) –,

as actividades de gestão de resíduos (nomeadamente, aterros einstalações de incineração), assim como as actividades relacionadas com organismos geneticamente modifi cados190 e microrganismos geneticamente modifi cados191.

Os operadores destes estabelecimentos perante uma ameaça iminente de dano ambiental são, em princípio, obrigados a tomar medidas preventivas adequadas para impedir ou reduzir os danos. Aautoridade competente também pode tomar ela as medidas preventivasadequadas, cobrando em seguida os encargos associados a essas medidas ao operador. Perante a ocorrência de um dano, deve ooperador em causa tomar as medidas de reparação adequadas (determinadas com base nas regras e nos princípios enunciados no anexo II da Directiva). Também neste caso, a autoridade competente pode optar por tomar as medidas de reparação adequadas, cobrando em seguida os encargos. em caso da sua ameaça iminente, de reparar os danos causados aos recursos naturais tendo em conta o seu estado inicial e suportar os custos da acção preventiva ou correctiva.

As actividades profi ssionais não enunciadas no anexo III também estão sujeitas ao regime de responsabilidade, mas subjectiva – ou seja, neste caso, a responsabilidade do operador só será imputada se houver dolo ou negligência da sua parte.

103. Recentemente, na sequência do acidente ocorrido na plataforma Deepwater Horizon, no Golfo do México, em 2010, foi adoptada a Directiva nº 2013/30/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho de 2013, relativa à segurança das operações offshore

190 Cfr. a Directiva nº 2001/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modifi cados.

191 Cfr. a Directiva nº 2009/41/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Maio de 2009, relativa à utilização confi nada de microrganismos geneticamente modifi cados.

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de petróleo e gás e que altera a Directiva nº 2004/35/CE. O novo regime tem o objectivo de garantir que os mais elevados padrões de segurança são aplicados em todas as plataformas de pesquisa e a produção de petróleo e gás na UE. A Directiva também visa assim reduzir o mais possível a ocorrência de acidentes graves relativos a operações offshore de petróleo e gás e limitar as suas consequências, aumentando assim a protecção do meio marinho e das zonas costeiras contra a poluição, bem como consagrar regras para a resposta rápida e efectiva à ocorrência do acidente.

A nova Directiva estabelece regras que cobrem todo o ciclo de vida das actividades de pesquisa e produção, desde a concepção até à desactivação e ao abandono defi nitivo das plataformas, estabelecendo condições mínimas de segurança para a pesquisa e a exploração offshore de petróleo e gás e pretendendo melhorar os mecanismos de resposta em caso de acidente. Nos termos da Directiva, as operações offshore de petróleo e gás só deverão ser conduzidas por operadores designados pelos titulares de licenças ou pelas autoridades licenciadoras, pretendendo-se também assegurar a independência e objectividade da autoridade competente192. Para além disso, a Directiva contém regras sobre partilha de informações e transparência, planos de resposta a emergências e os planos de contingência para os acidentes graves e a cooperação sistemática e planeada entre Estados-Membros e entre estes e a indústria petrolífera e do gás, bem como uma partilha de meios de resposta compatíveis.

192 Neste âmbito, estabelece-se que a organização das competências administrativasdos Estado-Membro deve evitar situações de confl itos de interesses. Isso pode ocorrer, por exemplo, mediante uma separação clara entre, por um lado, as funções de regulação e decisões associadas relativas à segurança offshore e ao ambiente e, por outro lado, as funções de regulação relacionadas com o desenvolvimento económico dos recursos naturais do offshore, incluindo o licenciamento e a gestão das receitas.

104. Estes são apenas alguns exemplos de regimes normativos da UE relacionados com a preocupação com o controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas – diversos outros regimes podiam ser referidos como, por exemplo, a Directiva AIA ou a Directiva AAE, também incluem considerações relativas à avaliação dos riscos de acidente, tendo em conta as substâncias utilizadas.

III. A regulação pela UNECE do controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas

105. A Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (UNECE193) foi criada em 1947 no âmbito do Comité Económico e Social (ECOSOC) da ONU e é uma das suas cinco comissões regionais. O principal objectivo da UNECE é promover a integração económica e o diálogo sectorial entre os 56 Estados que a integram – onde se incluem os Estados europeus (Estados-Membros e não membros da UE), os Estados parte da Comunidade de Estados Independentes (onde se inclui a Federação Russa e outros Estados se encontravam integrados na URSS) e os Estados da América do Norte (EUA e o Canadá). Uma das áreas sectoriais de actividade da UNECE é o ambiente – através da promoção do desenvolvimento sustentável e da cooperação entre os Estados na salvaguarda do ambiente e da saúde humana, de acordo com a Agenda 21194. Um dos instrumentos adoptados para esse fi m foi a celebração de convenções internacionais nesta matéria.

193 Trata-se da sigla de United Nations Economic Commission for Europe.194 A Agenda 21 é um dos principais resultados da conferência do Rio 92,

ocorrida no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992. É um plano de acção da ONU não vinculativo, implementado voluntariamente relacionado com o desenvolvimento sustentável.

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a) A Convenção sobre os Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais

106. A UNECE tem envidado esforços, desde o início dos anos 90 do século XX, no sentido da prevenção de acidentes industriais e, em especial, dos seus efeitos transfronteiriços na área geográfi ca da sua actuação. Foi neste âmbito que foi adoptada a Convenção sobre os Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais (a já referida CETAI), em Helsínquia, em 17 de Março de 1992, sendo assinada por 26 Estados Parte da UNECE e pela UE, que entrou em vigor a 19 de Abril de 2000. A sua adopção tem como causa próxima os diversos acidentes industriais ocorridos, nomeadamente na Europa, já referidos, em Seveso, Itália, em 1976, em Basileia, Suiça, dez anos depois, ou em Baia Mare, Roménia, em 2000.

A CETAI tem como objectivos i) a protecção das pessoas e do ambiente contra acidentes industriais susceptíveis de causar efeitostransfronteiriços, ii) a prevenção da sua ocorrência, a redução da sua frequência e gravidade e a mitigação dos seus efeitos, bem como iii) a promoção da cooperação internacional activa entre as partes contratantes antes, durante e depois de tais acidentes, no âmbito de pesquisa e desenvolvimento e da partilha de informação e tecnologia.

Como a CETAI abrange áreas onde a então Comunidade Europeia(CE) tinha competência legislativa, bem como áreas onde a competência legislativa residia nos Estados-Membros (o que pode ser designado de acordo misto), foi aprovada pela CE (pela Decisão do Conselho nº 98/685/CE, de 23 de Março de 1998) devendo igualmente ser ratifi cada por cada Estado-Membro. Assim, quanto a Portugal a Convenção foi aprovada e assinada pelo Decreto nº 23/2006, de 4 de Outubro. Todos os Estados-Membros da UE, com excepção da Irlanda e de Malta, são parte da CETAI.

107. A CETAI tem uma ligação intrínseca com o regime Seveso. De facto, ambos os regimes têm objectivos e âmbitos de aplicação semelhantes embora, por um lado, o regime Seveso seja mais

ambicioso em termos de regulação da matéria em causa – na medida em que se aplica às actividades industriais onde se verifi que a presença das substâncias perigosas, independentemente de potenciais efeitos transfronteiriços, enquanto a CETAI se concentra nestes últimos – e, por outro lado, a CETAI tenha um âmbito de aplicação geográfi co mais amplo – aplicando-se para além das fronteiras da UE.

A relação entre os dois regimes também é notória em outros aspectos. Na medida em que a UE é parte do CETAI195, o regime Seveso é o seu instrumento jurídico e técnico para o cumprimento das suas obrigações decorrentes desta Convenção. Para além disso, tem existido um esforço de compatibilização dos âmbitos de aplicação dos regimes em causa. De facto, em 19 de Março de 2008, entrou em vigor uma alteração ao anexo I da CETAI, que a ajusta a listagem de substâncias perigosas à versão da DS II alterada pela Directiva nº 2003/105/CE.

i. Regime da CETAI de prevenção dos acidentes

108. De acordo com os princípios da precaução e da prevenção, a CETAI estabelece que os seus Estados partes devem reduzir o risco de acidentes e evitar que estes ocorram, na medida em que seja possível. A ratio é que a primeira linha de defesa contra os acidentes industriais é tentar impedir que estes ocorram. Assim, a CETAI requer que as Partes coloquem a prevenção no centro dos seus esforços paraminimizar os efeitos de acidentes industriais. Neste âmbito, o artigo 6º CETAI obriga à tomada de medidas preventivas, nomeadamenteas especifi cadas no seu anexo IV, a executar pelas Partes, pelas autoridades competentes, pelos operadores ou através de esforços conjuntos.

195 A UE sucedeu à CE nos termos do artigo 1º, 3º parág., TUE, na versão pós-Tratado de Lisboa.

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109. Desde logo, os Estados partes devem identifi car as actividades perigosas no seu território susceptíveis de dar origem a um acidente com impactes transfronteiriços (artigo 4º, nº 1, CETAI). O anexo I da Convenção (alterado em 2006) fornece critérios para a identifi cação de actividades perigosas – elencando as substâncias perigosas que caso estejam ou possam vir a estar presentes nas actividades em quantidades iguais ou superiores ao limite aí previsto, em caso de acidente, possam causar efeitos transfronteiriços. Uma vez que uma actividade perigosa, existente ou prevista, tenha sido identifi cada, de acordo com os artigos 4º e 9º CETAI, as informações relativas a essa actividade devem ser disponibilizadas ao público e aos outros Estados que possam vir a ser afectados – de forma a permitir a cooperação para reduzir o impacto transfronteiriço de um acidente.

O dever de notifi cação depende, assim, da qualifi cação de uma actividade como perigosa, o que pode ser controverso, nomeadamente porque a susceptibilidade de causar efeitos transfronteiriços é um dos elementos em causa. A CETAI prevê que as Partes devem consultar-se mutuamente sobre a questão da identifi cação das actividades perigosas que possam causar efeitos transfronteiriços (artigo 4º, nº 2 e 3, CETAI). No caso de não existir acordo, a CETAI prevê um mecanismo de conciliação de posições supletivo – ou seja, accionável no caso de as Partes envolvidas não tenham acordado outro método de resolver a questão –, a que qualquer das Partes pode recorrer, que se consubstancia no recurso a uma comissão de investigação que emite um parecer, de acordo com o regime estabelecido no anexo II.

110. Para além do dever de identifi cação das actividades, as Partesdevem requerer aos operadores de qualquer actividade perigosa uma análise e avaliação da segurança da execução dessa actividade (artigo 6º, nº 2, CETAI). As matérias que devem ser consideradas na análise e avaliação são detalhadas no anexo V – embora possam ir mais longe do que as aí estabelecidas.

111. O objectivo de prevenção dos acidentes graves é especialmenterelevante relativamente à instalação de novas actividades ou amodifi cações substanciais de actividades instaladas (artigo 7º CETAI). Nesse âmbito, a política de ordenamento do território de cada Estado Parte deve prever que a nova instalação destas actividades se localize nos locais mais adequados, com o objectivo de minimizar ou reduzir os riscos associados à actividade perigosa (anexo V, nº 2, pontos 6 a 8, e anexo VI CETAI).

Deve também ter em conta a Convenção sobre a Avaliação dos Impactes Ambientais num Contexto Transfronteiriço (Convenção de Espoo). De facto, se a avaliação de impacte ambiental de uma actividade perigosa, de acordo com a Convenção de Espoo, incluir uma avaliação dos efeitos transfronteiriços dos acidentes industriais de actividades perigosas, realizada de acordo com a CETAI, a decisãofi nal tomada para efeitos da Convenção de Espoo deve também cumprir os requisitos da CETAI (artigo 4º, nº 4).

Para além disso, antes de qualquer instalação de actividade perigosa, deve ser garantida uma participação procedimental, signifi cativa e efi caz, do público. O anexo VI da CETAI estabelece que os resultados da consulta pública e processos de participação devem ser considerados em conformidade com o artigo 7 º, no âmbito das decisões sobre a localização de actividades perigosas. A Convenção sobre o Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça (Convenção de Aarhus), também oferece orientação a esse respeito.

112. Ainda no domínio da prevenção de acidentes, a CETAI incentiva os Estados Partes a ajudar-se mutuamente e cooperar no âmbito da pesquisa e desenvolvimento, da partilha de informação e tecnologia, e do intercâmbio de experiências e boas práticas. Os acidentes industriaisocorridos (ou quase ocorridos) devem ser relatados e analisados para que a experiência adquirida permita evitar que se repitam acidentes semelhantes. Nesta matéria, foi estabelecida a cooperação entre o Secretariado da CETAI e a Comissão Europeia para a utilização

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da plataforma eMARS para a notifi cação de acidentes e partilha de informações. Para auxiliar as Partes no cumprimento das suas obrigações no que diz respeito à prevenção de acidentes industriais, vários documentos contendo boas práticas, orientações e directrizes interpretativas foram produzidos sob os auspícios da Convenção196.

ii. Regime CETAI de preparação de resposta aos acidentes

113. Por muito rigorosas que sejam as medidas de prevenção adoptadas, existe sempre a possibilidade de ocorrência de acidentes. Os Estados devem estar, por isso, preparados para lidar com as suas consequências. Assim, a CETAI estabelece como as Partes devem manter um “alto nível de preparação” para responder a um acidenteindustrial, especialmente se existirem efeitos transfronteiriços (artigo 8º CETAI), tomando “medidas de preparação” com o objectivo de mitigar os efeitos transfronteiriços dos acidentes, nomeadamente as medidas referidas no anexo VII – em especial a adopção e implementação de planos de contingência (ou de emergência)197.

196 Entre estes incluem-se os Guidelines to facilitate the identifi cation of hazardous activities for the purposes of the Convention (Guidelines for Location Criteria) (Decisão nº 2000/3, ECE/CP.TEIA/2, anexo IV, alterada pela Decisãonº 2004/2, ECE/CP.TEIA/12, anexo II), relativos aos critérios para a determinaçãodo local de instalação da actividade, Safety guidelines and good practices for tailing management facilities (ECE/CP.TEIA/2008/9), relativo à segurança das instalações de gestão de rejeitados da indústria extractiva, Safety Guidelines and Good Practices for Pipelines (ECE/CP.TEIA/2006/11), relativos ao transporte de substancias por tubagens, e Sectoral Checklist for preparation and inspection of a safety report, relativo à preparação e verifi cação dos relatórios de segurança, disponíveis em http://www.unece.org/environmental-policy/treaties/industrial-accidents/envteiaguidelines.html.

197 Na versão portuguesa constante do Decreto nº 23/2006, de 4 de Outubro, que ratifi cou o CETAI, utiliza-se a expressão “plano de contingência”, enquanto na versão portuguesa da Decisão do Conselho nº 98/685/CE, de 23 de Março de 1998, que vinculou a CE, utiliza-se a expressão “plano de emergência”. No original em inglês é utilizada a expressão “contingency plans”.

As actividades perigosas devem ter planos de contingência (ou de emergência) internos (relativos ao local onde a actividade é desenvolvida, designados por “no local”) – cuja verifi cação cabe à Parte de origem (em cujo território o acidente pode ocorrer) – e externos (relativos ao exterior do local onde a actividade é desenvolvida,designados por “fora do local”), que devem ser elaborados por cada Parte potencialmente afectada. Para isso, a Parte de origem deve fornecer às outras Partes interessadas os elementos que possua para a elaboração dos planos de contingência.

Na preparação dos planos de contingência externos, devem ser tomadas em consideração as conclusões das análises e avaliações, em particular das matérias descritas no anexo V, nº 2, pontos 1 a 5. Se várias Partes forem susceptíveis de serem afectadas por um acidente no âmbito de uma actividade perigosa, devem ser mutuamente informadas dos respectivos planos de contingência e devem garantir que esses planos são compatíveis – ou até mesmo, se adequado, devem ser elaborados planos de contingência externos conjuntos transfronteiriços. Os planos de contingência devem ser revistos regularmente ou, quando as circunstâncias assim o requeiram, devem ser revistos tomando em consideração a experiência ganha em lidar com emergências reais.

O cumprimento dos deveres de adopção de medidas no local do desenvolvimento da actividade cabe ao operador.

iii. Regime de informação e participação do público

114. O público, em especial o público residente em áreas que podem ser afectadas por um acidente industrial originado por uma actividade perigosa, deve ser informado da identifi cação da actividade em causa, do risco em causa e do tipo de acidente que poderá ocorrer, bem como da forma como será informado da ocorrência do acidente e as formas como deve reagir, entre outros elementos constantes do anexo VIII. As informações devem ser prestadas através dos meios que

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as Partes consideram adequados e também ter em consideração as matérias descritas no anexo V, nº 2, pontos 1 a 4 e 9 (artigo 9º, nº 1).

115. O público deve ter o poder de participar e de se pronunciar no procedimento de aprovação das medidas de prevenção e preparação, sempre que possível e apropriado (artigo 9º, nº 2). A Parte de origem deve assegurar-se que a oportunidade dada ao público da área afectada localizada no seu território é equivalente à dada ao público de outras áreas afectadas fora do seu território.

Prevê-se a possibilidade de ser dado acesso, numa base recíproca, a processos administrativos e judiciais por parte das pessoas singulares e colectivas que estão a ser afectadas ou são susceptíveis de vir a ser afectadas pelos efeitos transfronteiriços adversos de um acidente industrial no território de uma Parte. Aí se inclui a possibilidade de iniciar uma acção judicial e de recorrer de decisão que afecte os seus direitos (por exemplo, se as opiniões expressas são ignoradas) equivalente às existentes para as pessoas residentes no território da Parte de origem. Neste contexto, também se deve atender às disposições da Convenção de Aarhus.

iv. Regime CETAI de resposta aos acidentes

116. O “alto nível de preparação” a que as Partes estão obrigadas relativamente à necessidade de responder a um acidente industrial (artigo 8º CETAI) – ou seja, o melhor nível de preparação possível – tem como objectivo reduzir o seu impacto sobre as comunidades ou o ambiente. O regime assenta nas medidas de prevenção, onde se insere o dever de identifi cação das actividades perigosas e da sua localização, e nas medidas de preparação, que incluem a adopção de planos de contingência (ou de emergência) – já referidas. Todasas autoridades relevantes a nível local, regional e nacional – em especial no âmbito dos serviços de emergência e da protecção civil – devem estar plenamente preparadas e ter o equipamento e formação

adequada para lidar com qualquer cenário de acidente e implementar os planos de contingência.

Assim, perante a ocorrência de um acidente industrial, a Convençãoprevê que as Partes tomem medidas efi cazes para minimizar os seus efeitos, incluindo os de natureza transfronteiriça. A resposta rápida a um acidente industrial é considerada crucial para essa minimização (artigo 11º, nº 1). Nesse âmbito, a ocorrência de acidente ou ameaça eminente do mesmo (com efeitos transfronteiriços) devem despoletar a aplicação dos planos de contingência, o mais rapidamente possível, e de forma adequada às circunstâncias (artigo 10º, nº 3, CETAI), devendo as Partes envolvidas assegurar a análise dos seus efeitos, quando apropriado em conjunto, com o objectivo de tomar medidas adequadas de resposta. Existe igualmente o dever de as Partes envolvidas aperfeiçoarem a coordenação das respectivas medidas de resposta (artigo 11º, nº 2, CETAI). Se vários Estados são afectados pelo acidente, devem cooperar para atenuar seus efeitos e ajudar-se mutuamente, caso sejam solicitados (artigo 12º). No caso de não existir enquadramento jurídico para essa assistência ou acordo, aplica-se supletivamente o anexo X.

Para além disso, devem existir procedimentos implementados que garantam a informação do público em caso de acidente ou de ameaça de acidente.

117. Se um acidente industrial tem possíveis efeitos transfronteiriços, as Partes são obrigadas a informar os Estados vizinhos que possam vir a ser afectados dos riscos e partilhar toda a informação disponível necessária para uma resposta efi caz (artigo 10º, nº 2, CETAI), incluindo os elementos referidos no anexo IX. Neste âmbito, ao abrigo do artigo 10º, nº 1, CETAI, foi criado o Sistema de Notifi cação de Acidentes Industriais (IAN198), na primeira reunião da Conferência

198 Trata-se da sigla de Industrial Accident Notifi cation System.

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das Partes, em 2000, para possibilitar a notifi cação oportuna destes Estados199.

O sistema assenta em pontos de contacto designados pelos Estados partes para efeitos dos deveres de notifi cação de acidentes industriais, nos termos do artigo 10º, e para solicitar auxílio ou responder a pedidos de auxílio e assistência mútua, nos termos do artigo 12º (artigo 17º, nº 2, CETAI). São estes pontos de contacto que vão aceder ao Sistema de Notifi cação de Acidentes Industriais (IAN). O sistema é composto por três tipos de relatórios: aviso inicial, informação e pedido de assistência. A notifi cação é feita através do preenchimento e submissão de um formulário on-line e enviada por e-mail para os pontos de contacto relevantes.

v. Os órgãos de governo da CETAI

118. A CETAI criou um conjunto de órgãos encarregues da sua implementação e da supervisão da sua aplicação pelos Estados Partes, tendo igualmente encarregado o Secretariado Executivo da UNECE de desempenhar funções de Secretariado no âmbito da Convenção.

119. Para além do Secretariado, é necessário fazer referência à Conferência das Partes da CETAI, que constitui o seu órgão de direcção e é composta pelos representantes dos Estados Partes da Convenção. Teve a sua primeira reunião em Bruxelas, em Novembro de 2000 e reúne regularmente de dois em dois anos.

199 Trata-se da Decisão nº 2000/1, ECE/CP.TEIA/2, anexo II. O sistema foi alterado no âmbito da 3ª reunião da Conferência das Partes (Decisão nº 2004/3, ECE/CP.TEIA/12, anexo III), em 2004, e na 5ª reunião, em 2006, foi decidida a criação de uma aplicação informática (Decisão nº 2006/3, ECE/CP.TEIA/15/Add.1), que foi lançada em 2008.

A Conferência das Partes tem quatro funções principais: i) acompanhar a aplicação da Convenção; ii) aconselhar Estados relativamente a aspectos de prevenção, preparação e resposta a acidentes industriais com efeitos transfronteiriços; iii) estabelecerum programa de trabalhos para as actividades no âmbito daConvenção e iv) criar os órgãos necessários para garantir a aplicação e desenvolvimento da Convenção. Logo na sua primeira reunião, a Conferência das Partes adoptou uma série de decisões centrais à aplicação da CETAI e à defi nição das prioridades de trabalho no âmbito desta Convenção, tendo-se nomeadamente aprovado o seu regimento interno (Rules of Procedure)200, bem como a forma e os procedimentos para reportar a aplicação da CETAI.

Em cada Conferência das Partes é eleita uma comissão (o Bureau of the Conference of the Parties) com o objectivo de acompanhar a aplicação da CETAI até à realização da Conferência seguinte201. Este órgão também foi criado na primeira reunião da Conferência das Partes, onde se aprovou o seu mandato (Terms of Reference)202. O Bureau reúne pelo menos uma vez por ano, com a assistência do Secretariado, e tem como principais funções executar as tarefas que lhe são confi adas pela Conferência das Partes, liderar ou tomar iniciativas para fortalecer a aplicação da Convenção e monitorizar a execução do programa de trabalhos, tomando as decisões apropriadas nesse âmbito.

200 Cfr. ECE/CP.TEIA/3. O regimento está disponível aqui: http://www.unece.org/fi leadmin/DAM/env/teia/implementation/documents/ROP-trilingual.pdf.

201 O Bureau é composto pelo presidente da Conferência das Partes, dois vice-presidentes da Conferência das Partes, outros membros eleitos de entre os representantes dos Estados, bem como representantes de Estados não partes, em número não superior a três.

202 Cfr. ECE/CP.TEIA/2, anexo I. O mandato está disponível em http://www.unece.org/fi leadmin/DAM/env/teia/doc/tor.e.pdf.

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120. Diversos grupos de trabalho foram sendo criados pela Conferência das Partes para assegurar a aplicação adequada da CETAI. Entre esses grupos pode ser destacado o grupo de trabalho relativo à aplicação da Convenção (Working Group on Implementation [WGI]), que é um órgão subsidiário, com um máximo de 10 membros nomeados de entre os representantes dos Estados, criado pela Conferência das Partes na sua primeira reunião, que reúne pelo menos uma vez antes da reunião desta. Tem funções de monitorização da execução da CETAI e avaliar a sua aplicação pelos Estados partes, reportando os seus resultados à Conferência das Partes, dar assistência ao Bureau, executar as tarefas que lhe são confi adas pela Conferência das Partes, entre outras.

Um outro grupo que pode ser referido é o grupo de trabalho relativo ao desenvolvimento da Convenção (Working Group on the Development of the Convention [WGD]), que também é um órgão subsidiário, com uma formação aberta de membros nomeados de entre os representantes dos Estados, criado pela 3ª Conferência das Partes, em 2004. Tem funções de avaliação dos desenvolvimentos noutros textos jurídicos internacionais relativos à CETAI e, em especial, ao seu anexo I (tendo em conta as categorias de substâncias e misturas, bem como as quantidades limite, para efeitos da defi nição de actividade perigosa) e reúne quando se considerar que esta avaliação é necessária. A 7ª Conferência das Partes, em 2012, solicitou ao WGD uma proposta de alteração do anexo I, tendo em conta a necessidade de assimilar as alterações introduzidas pelo GHS e para garantir a coerência com a DS III, entre outras alterações.

Ainda neste âmbito dos grupos de trabalho, foi criado em conjunto pelos Estados Parte da CETAI, na 7ª Conferência das Partes, em 1998, e da Convenção sobre a Proteção e a Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais (Convenção da Água), na 1ª Conferência das Partes, em 1998, um grupo de peritosconjunto relativo a questões da água e de acidentes industriais (Joint Expert Group on Water and Industrial Accidents). Esta cooperação é importante, uma vez que os acidentes industriais graves podem

ter efeitos transfronteiriços de grande alcance e levar à poluição acidental da água. São várias as funções atribuídas a este grupo,nomeadamente a elaboração de directrizes para a adopção de um modelo de plano de contingência transfronteiriço, bem como directrizese guias relativos a diversas outras matérias relacionadas com a poluição da água devido a acidentes industriais, desenvolver um inventário de directrizes existentes de segurança e de boas práticas para a prevenção de poluição da água acidental transfronteiriça, promover exercícios de resposta conjunta, fornecer um fórum para a troca de informação sobre o funcionamento do sistema de notifi cação.

vi. Outros regimes aplicáveis no âmbito da UNECE

121. A CETAI é parte de um enquadramento jurídico mais vasto da UNECE que tem o objectivo de proteger o ambiente e encorajar o desenvolvimento sustentável, tendo relações com outras convenções internacionais celebradas no seu âmbito.

122. Um desses instrumentos internacionais é a já referida Convenção sobre a Protecção e a Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriçose dos Lagos Internacionais (Convenção da Água), assinada em Helsínquia, em 1992, que entrou em vigor em 1996203. Em 2003, a Convenção da Água foi alterada para permitir a adesão de Estados que não integrem a região UNECE. A alteração entrou em vigor em 6 de Fevereiro de 2013, transformando a Convenção da Água num quadro jurídico global para a cooperação transfronteiriça neste âmbito.

203 Esta convenção foi aprovada e assinada por Portugal através do Decretonº 22/94, de 26 de Julho, e vincula igualmente a UE, através da Decisão nº 95/308/CE,do Conselho, de 24 de Julho de 1995, respeitante à conclusão da Convenção relativa à proteção e utilização dos cursos de água transfronteiras e dos lagos internacionais.

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Esta Convenção tem objectivos a adopção de medidas para a gestão ecologicamente correcta e a protecção das águas transfronteiriças – quer superfi ciais, quer subterrâneas – e a promoção da cooperação transfronteiriça no domínio da água. A Convenção da Água determina que as Partes usem as águas transfronteiriças de uma forma razoável e equitativa e assegurem a sua gestão sustentável, para prevenir, controlar e reduzir impactes transfronteiriços. A Convenção também promove a implementação de estruturas de gestão integrada dos recursos aquáticos, em especial a adopção de uma abordagem concentrada nas bacias hidrográfi cas. As Partes limítrofes das mesmas águas transfronteiriças têm de cooperar através da celebração de acordos específi cos e devem estabelecer organismos conjuntos. Como um acordo-quadro, a Convenção não substitui acordos bilaterais e multilaterais para bacias ou aquíferos específi cas, em vez disso, promove a sua criação e implementação, bem como o seu maior desenvolvimento.

Como já foi referido, a Convenção da Água está relacionada com o CETAI, devidos às graves consequências que podem ter os acidentes industriais graves no âmbito dos cursos de águas e lagos internacionais – através da sua poluição, tendo sido criado o Joint Expert Group on Water and Industrial Accidents (cfr. nº 120).

123. Também no âmbito da UNECE foi adoptado em Kiev, a 21 de Maio de 2003, o Protocolo sobre a Responsabilidade Civil e a Indemnização por Danos Causados pelos Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais em Águas Transfronteiriças que resultou do reconhecimento da insufi ciência dos instrumentos para a responsabilidade civil internacional nesta área. Este Protocolo foi negociado pelos Estados parte da CETAI e os Estados parte da referida Convenção da Água, e tem por objectivo estabelecer um regime juridicamente vinculativo de responsabilidade civil e de indemnização adequadae expedita por danos causados pelos efeitos transfronteiriços de acidentes industriais, causados por actividades perigosas, em águas transfronteiriças, no âmbito de ambas as Convenções. O Protocolo

foi assinado por 22 Estados e encontra-se aberto a ratifi cação – ainda não tendo entrado em vigor.

124. Ainda no domínio ambiental foi celebrada no âmbito da UNECE a Convenção sobre Poluição Atmosférica Transfronteiriça a Longa Distância (CLRTAP204), assinada em Genebra, Suíça, em 1979, que entrou em vigor em 1983205/206. Os Estados Parte da CLRTAP comprometem-se a desenvolver políticas e estratégias para limitar e, na medida do possível, reduzir as emissões de poluentes atmosféricos, prevenindo a poluição atmosférica transfronteiriça a longa distância – prevendo deveres de troca de informações, consulta, investigação e monitorização. Na medida em que os acidentes industriais também podem ser fontes deste tipo de poluição, deve ser feita uma leitura conjugada destes deveres com os decorrentes do CETAI.

125. Uma outra convenção celebrada no âmbito da UNECE foi a Convenção sobre Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente (Convenção de Aarhus), assinada em Aarhus, Dinamarca,a 25 de Junho de 1998207. Esta Convenção extravasa o estrito domínio ambiental, regulando a relação entre cidadãos e a sua administração

204 Trata-se da sigla de Convention on Long-range Transboundary Air Pollution.205 Existem oito protocolos adicionais, abrangendo matérias diversas como as

emissões de enxofre, de metais pesados, óxido de azoto, poluentes orgânicos persistentes (POPs) ou o combate à acidifi cação, eutrofi zação e ozono troposférico.

206 Esta convenção foi aprovada e assinada por Portugal através do Decreto nº 45/80, de 12 de Julho, e vincula igualmente a UE, através da Decisão nº 81/462/CEE, do Conselho, de 11 de Junho de 1981.

207 Esta convenção foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 11/2003, de 25 de Fevereiro, e ratifi cada pelo Presidente da República através do Decreto nº 9/2003, de 25 de Fevereiro. A UE também se encontra vinculada à Convenção de Aahrus, através da Decisão nº 2005/370/CE do Conselho, de 17 de Fevereiro de 2005.

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– em termos de responsabilidade, transparência e interacção – pois estabelece o dever de conferir aos cidadãos direitos (e à administração deveres) de acesso à informação ambiental, de participação em procedimentos administrativos com consequências sobre o ambiente e de acesso à justiça ambiental. Estes direitos estão formulados de forma muito aberta, sem necessidade de prova de um interesseespecífi co, estendendo-se os correspectivos deveres a qualquer entidade pública e a entidades que apesar de serem privadas, estão encarregues de funções da administração pública, desempenhem funções públicas ou que prestem serviços públicos.

Na medida em que esta Convenção vem regular a actuação das entidades públicas no âmbito do ambiente – estabelecendo direitos procedimentais, por exemplo – ela tem um efeito transversal em todos os procedimentos administrativos na área do ambiente, onde se incluem os procedimentos relativos à prevenção e controlo dos efeitos dos acidentes industriais com substâncias perigosas. Por exemplo, antes de qualquer instalação de actividade perigosa, deve ser garantida uma participação signifi cativa e efi caz do público que cumpra os requisitos de ambas as Convenções.

126. Por fi m, é preciso tomar em consideração a Convenção sobre a Avaliação dos Impactes Ambientais num Contexto Transfronteiriço (Convenção de Espoo), adoptada em 1991, na cidade de Espoo, e que entrou em vigor a 10 de Setembro de 1997. Esta Convenção estabelece as obrigações dos Estados partes de avaliar o impacte ambiental de certas actividades e de notifi car e consultar os restantes Estados partes relativamente a grandes projectos que sejam susceptíveisde ter um impacte ambiental negativo transfronteiriço signifi cativo.

A necessidade de articulação desta Convenção com a CETAI decorre de esta também prever a necessidade de avaliação dos efeitos transfronteiriços dos acidentes industriais de actividades perigosas. A necessidade de articulação dos dois regimes, decorrente, por exemplo, do artigo 4º, nº 4, CETAI, foi referida supra (cfr. nº 111).

IV. Outros regimes internacionais de prevenção e controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas

127. São vários os instrumentos internacionais – convenções, protocolos e outros acordos – para além dos referidos, promovidos pelos Estados e por diversas organizações internacionais, que têm preocupações ao nível da prevenção e do controlo dos perigos associados a acidentes graves que envolvem substâncias perigosas. Diversas organizações internacionais também tomaram diversas iniciativas nesse sentido, através da actuação dos seus órgãos aprovando decisões ou recomendações ou promovendo programas de acção. Estes diversos instrumentos legais formam uma “manta de retalhos” de regulação internacional, com vários instrumentos cobrindo alguns aspectos específi cos, com âmbito de aplicação universal ou regional, sendo por vezes difícil a sua interpretação conjugada e coerente.

Por exemplo, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceua importância da preparação para e da resposta a emergênciasambientais em geral, adoptando um conjunto de resoluções com o objectivo de melhorar a coordenação entre os Estados. As Resoluções da Assembleia Geral nº 44/224 (1989) e nº 46/182 (1991) reconhecema necessidade de consolidação da cooperação internacional na monitorização, avaliação e antecipação de ameaças ambientais. Na última década, a Resolução nº 58/114 (2003) incidiu sobre a coordenação da assistência de emergência humanitária.

Ainda a um nível global, a Declaração do Rio já estabelecia o dever de notifi cação de desastres naturais e de outras emergências que possam vir a provocar súbitos efeitos prejudiciais sobre o meio ambiente de outros Estados (Princípio 18) e o dever de notifi cação oportuna e prévia dos Estados potencialmente afectados acerca de actividades que possam vir a ter considerável impacto transfronteiriço negativo sobre o meio ambiente, fornecendo informações relevantese promovendo consultas, com a brevidade possível e de boa fé

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(Princípio 19). Por seu lado, no âmbito da Cimeira Mundial do Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo em 2002, um dos objectivos acordados dizia respeito à garantia de que, até 2020, os produtos químicos sejam produzidos e utilizados de forma a minimizar os efeitos adversos signifi cativos para a saúde humana e o meio ambiente.

Para além disso, diversas convenções internacionais incidem sobre certos aspectos da resposta necessária a emergências ambientais com causas humanas ou naturais. Existem convenções relativas a acidentes industriais, em geral ou envolvendo substancias químicas, acidentes nucleares, etc. Por exemplo, a Convenção Internacional sobre a Prevenção, Actuação e Cooperação no Combate à Poluição por Hidrocarbonetos (designada por OPRC208), adoptada em Londres, em 1990209, que entrou em vigor a 13 de Maio de 1995, estabeleceu um enquadramento vinculativo para a cooperação internacional na resposta a incidentes ou ameaças de poluição marinha, abrangendo mais de 100 partes.

As convenções internacionais nesta matéria também podem ter um âmbito regional, como a já referida CETAI, no espaço europeu, ou como o Acordo relativo à Gestão de Desastres e à Resposta a Emergências (Agreement on Disaster Management and Emergency Response), assinado em Vientiane, Laos, em 2005, sob a égide da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)210 – que estabelece um enquadramento legal para a cooperação internacional na resposta a um desastre ambiental – ou o Acordo relativo àColaboração na Assistência e Resposta de Emergência a Desastres

208 Trata-se da sigla de International Convention on Oil Pollution Preparedness, Response and Co-operation.

209 Aprovada em Portugal, pelo Decreto 8/2006, de 10 de Janeiro.210 Trata-se da sigla de Association of Southeast Asian Nations. É uma organização

de cooperação regional criada em 1967 para dinamizar o crescimento económico, o progresso social e o desenvolvimento cultural e promover a paz e a estabilidade na região, que tem os seguintes Estados-Membros: Brunei, Camboja, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Singapura, Tailândia, Vietname.

de Origem Natural e Humana, celebrado sob a égide da Organização de Cooperação Económica do Mar Negro211.

128. Quanto a organizações internacionais, também a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) tem desenvolvido trabalhos na área dos acidentes com produtos químicos. O Conselho da OCDE já tomou diversas decisões e recomendações neste âmbito212, como a Decisão do Conselho sobre Troca de Informação relativa a Acidentes Susceptíveis de Causar Danos Transfronteiriços213,de 8 de Julho de 1988; a Decisão-Recomendação relativa àDisponibilização de Informação ao Público e à Participação do Público nos Procedimentos de tomada de decisão relativos à Prevenção de e Resposta a Acidentes que envolvam Substâncias Perigosas214, de 8 de Julho de 1988; a Recomendação sobre a Aplicação do Princípio do Poluidor-Pagador à Poluição Acidental215, de 7 de Julho de 1989; e a Recomendação relativa à Prevenção, Preparação e Resposta a Acidentes com Substâncias Químicas216, de 15 de Janeiro de 2004.

211 A Black Sea Economic Cooperation Organization é uma organização criadaem 1992, em Istambul, que congrega 11 Estados da região do Mar Negro e visa, designadamente, promover a paz, a estabilidade e a prosperidade na zona, promoverrelações amigáveis e de boa vizinhança e desenvolver a cooperação económicabilateral e multilateral no Mar Negro aproveitando a proximidade geográfi ca, apostando no progresso económico, social e tecnológico e incentivando o comércio livre.

212 Disponíveis em http://www.oecd.org/chemicalsafety/oecdcouncilactsrelatedtochemicals.htm.

213 A Decision of the Council on the Exchange of Information concerning Accidents Capable of Causing Transfrontier Damage [C(88)84/Final].

214 A Decision-Recommendation concerning Provision of Information to the Public and Public Participation in Decision-making Processes related to the Prevention of, and Response to, Accidents Involving Hazardous Substances [C(88)85/Final].

215 A Recommendation on the Application of the Polluter-Pays Principle to Accidental Pollution [C(89)88/Final].

216 A Recommendation concerning Chemical Accident Prevention, Preparedness and Response [C(2003)221].

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Neste âmbito também foi criado o Programa sobre Acidentes Químicos da OCDE (OECD Programme on Chemical Accidents) com o objectivo de ajudar as autoridades, a indústria, os trabalhadores e as restantes partes interessadas (como os que residem perto de uma instalação industrial que utiliza este tipo de produtos químicos) a prevenir acidentes com produtos químicos e a reagir apropriadamente quando estes acidentes ocorrem.

O Programa foi instituído em 1987, após os já referidos acidentes ocorridos em Bhopal, India, em 1984, e Schweizerhalle, Suíça, em 1986, por iniciativa dos Estados Partes da OCDE e tem três áreas de trabalho: i) o desenvolvimento de princípios comuns e guias relativamente às políticas de prevenção, preparação e resposta a acidentes com substâncias químicas; ii) analisar questões problemáticas e formular recomendações relativamente às melhores práticas; iii) possibilitar a partilha de informação e de experiencias entre Estados Partes da OCDE e Estados não Partes. Uma das suas primeiras iniciativas foi a organização da Conferência de Alto Nível sobre Acidentes que Envolvem Substâncias Perigosas (High Level Conference on Accidents involving Hazardous Substances) em 1988. Muitas das suas actividades envolvem a cooperação com outras organizações internacionais. No âmbito destas áreas de trabalho, o Programa jápublicou diversos documentos relativos a princípios gerais e directrizes217,organizou reuniões e workshops para partilha de informações e boas práticas218 e estabeleceu uma ligação ao sistema de reporte de acidentes da UE, o já referido eMARS (cfr. nº 97).

217 Entre esses documentos podem ser enumerados o “Guiding Principles for Chemical Accident Prevention, Preparedness and Response” (2ª ed.), publicado em 2003 – que diz respeito a diversos aspectos de prevenção e gestão de acidentes com substâncias químicas – e o “Guidance on Developing Safety Performance Indicators” (2ª ed.), publicado em 2008 – que tem como objectivo permitir aos diversos intervenientes avaliar a sua execução do “Guiding Principles”.

218 Em áreas como investigação de acidentes, aspectos ambientais e de saúde pública relacionados com os acidentes, auditorias e inspecções de instalações perigosas,

129. Uma outra instituição internacional que actua neste âmbito é a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta organização preocupa-se especialmente com acidentes de trabalho e a saúde e segurança no trabalho.

Neste âmbito, existe um programa específi co da OIT sobre saúde e segurança no trabalho e o ambiente – o SafeWork. Nesse Programa, que abrange as doenças profi ssionais, os acidentes de trabalho, etc., é dada prioridade especial aos trabalhadores em sectores perigosos– por exemplo os sectores que envolvam a exposição a agentes perigosos como substâncias químicas ou radiações, ou a indústria extractiva. O Programa SafeWork para além de actuar no terreno, visando a protecção dos trabalhadores, promove directrizes, códigos de boas práticas, guias técnicos e materiais de formação.

A OIT também promoveu um conjunto signifi cativo de convençõesinternacionais e recomendações relacionadas com a segurança e saúde no trabalho e a prevenção de acidentes industriais graves, como é o caso da Convenção nº 174, relativa à prevenção de acidentes industriais graves, celebrada em 1993, que entrou em vigor a 3 de Janeiro de 1997, ou a Convenção nº 170, relativa à segurança na utilização de químicos no trabalho, celebrada em 1990, que entrou em vigor em 4 de Novembro de 1993.

130. Para além da OCDE e da OIT, também o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP219) tem desenvolvido trabalho nesta matéria. O Conselho da UNEP adoptou diversas decisões com o propósito de promover a preparação para e a resposta a situações de emergência ambiental, através da coordenação e a efectivação do auxílio de emergência220. De facto, a UNEP abrange na sua esfera

treino em gestão de risco, utilização de relatórios de segurança, conhecimentos adquiridos em acidentes e gestão integrada de segurança, saúde, ambiente e qualidade.

219 Trata-se da sigla de United Nations Environment Programme.220 Por exemplo, as Decisões nºs 21/7 (2001), 22/8 (2002), e 26/15 (2011).

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de actuação a preocupação com os acidentes que podem ocorrer no âmbito da produção, armazenamento e distribuição de bens que envolve materiais e substâncias perigosas – fornecendo apoio aos Estados e ao sector privado em matérias de consciencialização para, prevenção de, preparação para e gestão de riscos de acidentes industriais.

Para promover a segurança da actividade industrial, a UNEP tem um vasto conjunto de instrumentos, orientações e princípios de gestão que podem ser implementados nas instalações industriais que produzem, armazenam manipulam ou usam e suas proximidades com o objectivo de proteger a saúde dos trabalhadores e prevenir fugas de substâncias perigosas é o designado Programa Produção Mais Segura (Safer Production) – quando as substâncias perigosas em causa são químicas, este Programa encontra-se alinhado com a Abordagem Estratégica em matéria de Gestão Internacional de Substâncias Químicas (SAICM)221. Os principais instrumentos de actuação da UNEP neste domínio são: o Programa APELL, o Esquema Flexível de Prevenção de Acidentes Químicos e o Programa Produção Responsável.

O Programa APELL diz respeito à consciencialização e preparaçãodas populações para emergências e acidentes ao nível local222. Este Programa foi desenvolvido pela UNEP em conjugação com os Estados

221 É a sigla de Strategic Approach to International Chemicals Management. A SAICM é um quadro político de promoção da boa gestão das substâncias químicas adoptado pela Conferência Internacional sobre a Gestão de Substâncias Químicas (ICCM) em 6 de Fevereiro de 2006, no Dubai. A SAICM foi desenvolvida por um comité preparatório plurisectorial de múltiplos intervenientes, e apoia a prossecução do objectivo acordado na Cimeira Mundial do Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo em 2002, que assegura que, até 2020, os produtos químicos sejam produzidos e utilizados de forma a minimizar os efeitos adversos signifi cativos para a saúde humana e o meio ambiente.

222 APELL é sigla de Awareness and Preparedness for Emergencies at Local Level.

e a indústria e é um instrumento modular, fl exível e metodológico, com o objectivo de minimização da ocorrência dos efeitos nefastos de acidentes industriais e de emergências ambientais. A estratégia prosseguida pelo Programa passa pela identifi cação dos riscos e da consciencialização da população para esses riscos, pela tomada de medidas para a redução e mitigação dos riscos e o desenvolvimento de respostas coordenadas entre as instalações industriais, as autoridades locais e a população. Pretende-se apoiar os responsáveis políticos, bem como os administradores e os responsáveis técnicos das instalações, nesse sentido.

O UNEP também tem liderado uma iniciativa internacional com o objectivo de promover a prevenção de e a preparação relativamente a acidentes químicos através do desenvolvimento e aplicação de um Esquema Flexível de Prevenção de Acidentes Químicos (Flexible Framework for Chemical Accident Prevention), onde se estabelecem orientações gerais aos Estados que pretendam desenvolver, rever ou fortalecer os seus sistemas nacionais de prevenção de e preparação para acidentes químicos. As orientações baseiam-se na experiência adquirida em acidentes passados e nas convenções internacionais existentes neste âmbito – como as celebradas no âmbito da UNECE e na OIT, já referidas – em regimes nacionais ou supra-nacionais – como o regime Seveso existente na UE – e outras orientações internacionais existentes – como os Guiding Principles for Chemical Accident Prevention, Preparedness and Response publicados no âmbito da OCDE e o Programa APELL, também já referidos.

O Programa Produção Responsável (Responsible Production) pretende envolver os operadores económicos (especialmente de pequenase médias empresas) e os trabalhadores que lidam com substâncias perigosas numa lógica de produção mais segura, comunicação de riscos e preparação para emergências, envolvendo divulgação, orientações específi cas e formação.

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131. Para além da UNEP, a ONU também desenvolve actividade neste âmbito através de outros Programas e entidades como, por exemplo, o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA223) que funciona no âmbito do Secretariado das Nações Unidas e tem a missão de procurar uma resposta coerente por parte das entidades humanitárias a situações de emergência e para coordenar o auxílio das Nações Unidas em situações de crise que ultrapassam a capacidade e o mandato de cada uma das agências humanitárias da ONU. O OCHA actua em conjunto com a UNEP, tendo sido criada uma unidade ambiental conjunta (o Joint UNEP/OCHA Environment Unit), com o objectivo de dar resposta às questões específi cas relacionadas com as emergências ambientais apoiando os Estados partes da ONU.

Também no âmbito do Secretariado das Nações Unidas funciona o Gabinete das Nações Unidas para a Redução do Risco de Catástrofes224

criado para servir de secretariado da Estratégia Internacional para a Redução de Catástrofes (International Strategy for Disaster Reduction) da ONU, aprovada em Dezembro de 1999, tendo assumido funções de ponto focal da ONU para a coordenação da redução do risco de catástrofes e de assegurar sinergias entre as diversas actividades empreendidas neste domínio, nomeadamente apoiando a implementação do Quadro de Acção de Hyogo 2005-2015 (o Hyogo Framework for Action 2005-2015: Building the resilience of nations and communities to disasters) – que resultou da Conferência Mundial de Hyogo, Japão, ocorrida em 2005.

132. Por fi m, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também inclui no seu âmbito de actividades a saúde em caso de emergências e acidentes industriais em instalações perigosas, em especiais as

223 Designação do Offi ce for the Coordination of Humanitarian Affairs.224 O UNISDR, sigla de United Nations International Strategy for Disaster

Response.

químicas e as nucleares. A OMS dá assistência aos Estados na preparação e resposta a estas emergências, nomeadamente através da rede dos seus escritórios regionais e de programas específi cos, nomeadamente através do elenco dos químicos mais utilizados e o aconselhamento e diagnóstico em casos de envenenamento.

133. Para além da actuação individual das organizações internacionaisneste domínio, existem diversos programas internacionais que pretendem juntar os seus esforços, como o Programa Internacional de Segurança Química (International Programme on Chemical Safety – IPCS), que junta três organismos de cooperação do sistema das Nações Unidas(a OMS, a OIT e o UNEP) e foi instituído em 1980 em resposta às preocupações crescentes sobre segurança química, visando criar a basecientífi ca para a avaliação dos riscos para a saúde e o ambiente do uso de substâncias químicas e reforçar as capacidades nacionais, a fi m de contribuir para uma utilização segura dos produtos químicos. Comobjectivos idêntico existe também o Programa Inter-Organizacional para a Boa Gestão dos Químicos (Inter-Organization Programme for the Sound Management of Chemicals), criado em 1995, para fortalecer a cooperação e coordenação entre diversas organizações do sistema das Nações Unidas no âmbito da utilização segura dos produtos químicos, juntando a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO – Food and Agriculture Organization), a OIT, o UNEP, a OMS, o Banco Mundial, a OCDE, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial e o Instituto das Nações Unidas para a Formação e a Investigação.

134. Deste breve elenco resulta a imagem de um quadro complexo de regulação internacional do risco de acidentes industriais graves – que é demonstrativo de uma preocupação generalizada sobre este tema na comunidade internacional.

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Capítulo VIII

“Memórias de um Átomo”: nanotecnologia, percepção do risco e regulação

Rute Saraiva

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: 1. Introdução; 2. Size matters? Da Ciência para o Direito;3. Percepção pública da nanotecnologia; 4. A oportunidade regulatória;5. Regulação da nanotecnologia na teoria e na prática: 5.1. Soft law;5.2. Precaução; 5.3. Estados-Unidos; 5.4. União Europeia; 5.5. Direito internacional; 6. Considerações fi nais.

1. Introdução

A nanotecnologia, ainda hoje incompreendida por muitos1, saiu dos fi lmes de fi cção científi ca e encontra-se presente no quotidianoatravés de uma indústria de milhares de milhões de euros2, da cosmética à alimentação, passando pela defesa ou a medicina, vestuário e electrónica, expondo a população e o ambiente a nanopartículas ecompostos com repercussões desconhecidas. Com múltiplas e crescentesaplicações e desenvolvimentos inovadores, as interrogações ao seu redor aumentam, esbarrando, no entanto, em muita falta de informação

1 Segundo o Eurobarómetro nº 55.2, 86.2% dos europeus afi rma que não sabe o que é ou que não compreende a nanotecnologia. Ver também Susana ARMÁRIO / Tiago LEITÃO (2010), Em direcção a um plano de acção estratégico para a nanotecnologia: resultados do relatório relativo ao inquérito público realizado via on-line pela Comissão Europeia, Cluster do Conhecimento da Nanotecnologia.

2 A Comissão Europeia estimava em 2013 que o mercado global de nanotecnologia valia cerca de 20 mil milhões de euros, com produtos avaliados em 2 biliões para 2015 e dava emprego directo, na Europa, a entre 300.000 e 400.000 trabalhadores, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechnology/index_en.html.

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e numa regulação naturalmente incipiente e impreparada para os desafi os colocados por esta revolução tecnológica silenciosa3.

Ao contrário de outros riscos tecnológicos que integram a actual sociedade beckiana, a nanotecnologia apresenta algumas especifi cidadesque a distinguem dos demais e que exigem um tratamento customizado que se antecipe a uma desconfi ança pública generalizada, o que, contudo, não impede que se retirem lições de outras controvérsias aliadas ao desenvolvimento e engenho humano. Afi nal, ao invés dos riscos químicos, nucleares, dos organismos geneticamente modifi cados ou do sobre-aquecimento global, trata-se de um problema futuro colocado por uma “ciência pós-normal”4. Mais do que uma questão de risco na acepção de Knight5, está em causa uma dimensão de incerteza e de ignorância, que acentua bem a existente e fl agrante falha de informação, até por não ser um campo uniforme, com um amplo leque de produtos, tecnologias e aplicações. Estas características empolam as difi culdades na construção de uma moldura jurídica efi caz e efi ciente, a começar pela sua oportunidade.

Nas páginas que se seguem, pretende-se deixar algumas refl exões e contributos para a abordagem desta temática, começando por chamar a atenção para algumas dúvidas epistemológicas de base fundamentaispara enquadrar a problemática dos riscos da nanotecnologia, autonomizando-se, pela sua importância a sua percepção pública, central no planeamento regulador. Por fi m, abordam-se as soluções jurídicas possíveis para lidar com o actual conhecimento científi co e pulsar social.

3 Por todos, com uma revisão de grande parte da literatura sobre nanotecnologia, Kate SEEAR / Alan PETERSEN / Diana BOWMAN (2009), The Social and Economic Impacts of Nanotechnologies: A Literature Review, Final Report, Monash University Victoria.

4 Daniel BARBEN [et al.] (2008), Anticipatory Governance of Nanotechnology: Foresight, Engagement, and Integration, in Edward J. HACKETT [et al.] The handbook of science and technology studies, MIT Press, Cambridge, 979.

5 Frank H. KNIGHT (1921), Risk, Uncertainty, and Profi t, Hart, Schaffner & Marx, Houghton Miffl in Co., Boston, MA.

2. Size matters? Da Ciência para o Direito

Com um mercado global de mais de 11 milhões de toneladas divididas entre múltiplas valências nas mais variadas áreas, a(s) indústria(s) nanotecnológica(s) t(ê)m crescido nos últimos anos a uma velocidade vertiginosa, na linha da lei de Moore e da teoria das mudanças aceleradas de Kurzweil, colocando-a(s) no campo de visão de grupos de interesse e do regulador, pelo seu potencial revolucionário benéfi co mas também entrópico.

De forma simples e transversal, por nanotecnologia entende-se o estudo e a manipulação multidisciplinar de fenómenos e materiais à escala atómica, em que se trabalha na construção de novas moléculas e materiais através de um nível de precisão molecular que permite tantas aplicações quanto ligações atómicas com o aproveitamento de propriedades particulares que apenas se verifi cam nesta escala, tais como reactividade, conductividade, refração ou relação superfície/volume por unidade de massa.

Por outras palavras, o tamanho interessa, tanto que é frequente encontrar na regulação referências quantitativas, sendo mais usual o limite dos 100 nm para pelo menos uma das dimensões das nanopartículas. A título de exemplo, a EPA americana, no âmbito do programa para os pesticidas, remete para medidas entre os 1 e os 100 nm, tal como a legislação europeia para cosméticos contida no Regulamento nº 1223/2009/UE. No Reino-Unido, a DEFRA fi xa como critério pelo menos 200 nm em pelo menos duas dimensões. Porsua vez, o Relatório “Considerations on a Defi nition of Nanomaterial for Regulatory Purposes”6 do Joint Research Centre da Comissão Europeia sugere, em 2010, que a defi nição de nanomateriais, a ser aplicada na União e em linha com legislações estrangeiras, deve preocupar-se com a delimitação do tamanho que considera ser a única característica a precisar de uma defi nição clara dos limites

6 EUR 24403 EN, June 2010.

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de nanoescala. Ademais, o Scientifi c Committee on Emerging and Newly Identifi ed Health Risks (SCENIHR), mandatado pela Comissão para auxiliar do ponto de vista científi co na defi nição jurídica de nanomaterial, opina7, em Dezembro de 2010, depois de concluir que o tamanho é o critério universalmente aplicável e o mais adequado, que a demarcação de um intervalo de tamanho facilita uma interpretação uniforme. Desta feita, propõe um limite inferior de 1 nm e superior de 100 nm, como geralmente utilizado, pese, quanto a este, haja ausência de prova científi ca sobre a sua adequação.

Já a Recomendação da Comissão de 18 de Outubro de 2011 sobre a defi nição de nanomateriais8, com todas as críticas e limitações susceptíveis de serem apontadas a qualquer esforço de defi nição, em particular num contexto de contínua e acelerada evolução científi ca, ensaia um recorte em função das propriedades específi cas que apresentam devido à diminuto tamanho da partícula, numa delimitação que procura conciliar a perspectiva quantitativa com a qualitativa9. Ainda assim, a Recomendação não consegue fugir da ditadura do tamanho, muito embora deixe em aberto a revisão da defi nição em função dos conhecimentos científi cos até Dezembro de 2014. Deste modo, estabelece que se entende por nanomaterial um material natural, incidental ou manufacturado que contenha partículas não agregadas, agregadas ou aglomeradas em que, para 50% ou mais das partículas na distribuição de tamanho de número, uma ou mais dimensões externas tenha entre 1 nm e 100 nm. Em casos específi cos e quando se levantam preocupações para o ambiente, a saúde, a segurança ou a concorrência, o patamar de distribuição de tamanho de número de 50% pode passar para um valor entre 1 e 50%. No entanto, em

7 http://ec.europa.eu/health/scientifi c_ommittees/emerging/docs/scenihr_o_032. pdf.

8 (2011/696/EU) http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ: L:2011:275:0038:0040:PT:PDF.

9 Pontos 11 e 16.

derrogação destes critérios, os fulerenos, fl ocos de grafeno e nanotubos de carbono de parede única com dimensões inferiores a 1nm devem ser considerados nanomateriais.

Em termos de materiais, de momento, dominam os utilizados há décadas como o carvão preto, a sílica sintética amorfa, a prata ou o ouro. Nos últimos anos, vem-se expandindo o seu universo e aplicação,multiplicando-se o seu emprego na cosmética e nos têxteis, na Medicina, por exemplo em terapias tumorais e oncológicas, no sector energético em baterias de lítio-iões e em painéis solares ou na protecção ambiental com ensaios ao nível do sequestro de carbono, no fundo, num sem número de promessas de maravilhas tecnológicas para o aumento do bem-estar humano e planetário.

Algumas apreensões, porém, vêm vindo a lume e ensombrado o optimismo reinante. Por exemplo, nas aplicações medicinais, como nanotubos e nanocápsulas com dimensões setenta vezes inferiores a um glóbulo vermelho em estudo para o combate selectivo ao cancro, teme-se a sua migração para áreas não desejadas do corpo, da mesma forma que se receia a bioacumulação, absorção através da pele ou a inalação ou deglutição (através da entrada na cadeia alimentar) de nanopartículas prejudiciais fora do seu contexto. Estes receios, em particular numa Europa mais avessa ao risco tecnológico do que o congénere americano, vêm suscitando anseios regulatórios e de avaliações casuísticas de risco para o seu desenvolvimento e entrada no mercado.

Contudo, alguns estudos, ainda que incipientes e sem considerações de um ambiente com recurso maciço à nanotecnologia, descartam a toxicidade de nanotubos de carbono ou mostram-se inconclusivos quanto à existência de perigos reais10. Tal não signifi ca, todavia,

10 Emmanuelle SCHULER (2004), Perception of Risks and Nanotechnology, in D. BAIRD / A. NORDMANN / J. SCHUMMER (eds.), Discovering the Nanoscale, Amsterdam, IOS Press, p. 280.

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face ao presente estádio embrionário do conhecimento científi co nesta matéria que, com o tempo, não venham a surgir. De momento, o panorama é pois de incerteza e de ignorância, ansiando-se por respostas “cientifi camente comprovadas”. Afi nal, as leis da física não se aplicam de igual forma ao universo nano, apresentando os materiais qualidades e capacidades diferentes da sua forma “normal” e reacções diversas, umas desejáveis, outras não. Logo, aquilo que poderá ser desejável ou inócuo (ou vice-versa) numa determinada escala não se manterá inevitavelmente se a escala se alterar.

Equacionar a regulação de um potencial problema vindouro, em especial por quem não domina a área, levanta incontáveis problemas. A começar o timing da regulação, seguido do seu conteúdo, extensão, intensidade e forma. Por exemplo, dever-se-á ou não esperar por mais e melhor informação? Deverão as diferentes nanotecnologias ser enquadradas de forma transversal ou tratadas sectorialmente? Que instrumentos empregar? Hard law? Soft law? Mecanismos tradicionais de comando-e-controlo ou instrumentos económicos? Qual o âmbito do princípio da precaução, leia-se prevenção, a empregar? Um panorama catastrófi co irreversível e próximo exige remédios diferentes de um cenário de baixo perigo e longínquo.

Em rigor, o problema começa antes com a avaliação dos dados científi cos existentes, uma vez que, embora não caiba ao cientista regular, o “bom” regulador – seja lá o que isso for – deverá atender e ponderar na sua decisão a informação fornecida. Ora, até a recolha dos dados se revela complexa. Por um lado, por não se possuir formação adequada, tem de se confi ar, numa lógica de divisão e especialização do trabalho, em publicações e estudos alheios, que nem sempre concordam entre si. Por outro lado, inclusive numa lógica de dúvida cartesiana sistemática, importa ler, com algumas reservas e dimensão crítica, os trabalhos científi cos. Por outras palavras, interessa ter presentes algumas considerações epistemológicas recorrentes a este propósito.

Como se apontou noutra sede11, o cientista, por natureza, procura problemas, facto que pode deturpar à nascença a sua análise, em especial se dela advier notoriedade. Ademais, o investimento pessoal de anos num projecto pode infl uenciar a capacidade crítica, além deque o cientista (tal como o seu intérprete, veja-se o regulador no caso) não é imune a pré-juízos e enviusamentos cognitivos que transporta para o seu trabalho. Saliente-se, por outro lado, que a investigação depende, designadamente em áreas onerosas de desenvolvimento tecnológico de ponta, de fi nanciamento de terceiros, condicionando resultados, não apenas para satisfação do investidor mas também como justifi cação do próprio projecto. Acrescente-se, outrossim, que boa parte dos estudos decorrem de trabalhos anteriores, com risco de deturpação ou descontextualização e são conduzidos em ambientes laboratoriais e com recurso a modelos computacionais que, por natureza, se reconduzem a cenários controláveis artifi ciais. Mais, a divulgação (e a forma de divulgação) das previsões científi cas contamina a correcção dos próprios resultados, introduzindo um ruído difi cilmente afastável que infl uencia as posições de outros investigadores e os comportamentos dos agentes económicos.

Somem-se a este conjunto de hesitações epistemológicas, dúvidas fi losófi cas, especifi camente do foro da ética12. Qualquer análise sobre a bondade das nanotecnologias tem de contabilizar os seus benefícios e os seus custos. Ora estes não se resumem a números nos fi cheiros contabilísticos de empresas, como os milhões de receitas

11 Rute SARAIVA (2009), A Herança de Quioto em Clima de Incerteza. Análise Jurídico-Económica do Mercado de Emissões num Quadro de Desenvolvimento Sustentado, Tese de Doutoramento, FDUL, inédita, pp. 42 e segs.

12 A análise ética tem sido dos aspectos menos desenvolvidos no debate sobre a nanotecnologia. Sobre esta matéria, Angela HULLMANN (2008), European activities in the fi eld of ethical, legal and social aspects (ELSA) and govern-ance of nanotechnology, European Commission, DG Research, Unit “Nano and Converging Sciences and Technologies”, disponível em http://cordis.europa.eu/nanotechnology.

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obtidos com nanotubos ou os milhões gastos no seu desenvolvimento. Há que não olvidar que os números escondem uma realidade humana e ambiental difícil de quantifi car. Por exemplo, que valor atribuir às fatalidades associadas ou poupadas pelas nanocápsulas ou ao sentimento individual ou colectivo de insegurança ou à perda de biodiversidade ou à alteração da biologia humana pela introdução de nanomateriais? Afi nal, como coloca PEREIRA DE MELO13, “a nanotecnologia, ao permitir a criação de novos materiais deEngenharia Tecidular, esbate a fronteira entre a “natureza” humana e não humana, suscitando-se o problema de saber se a alteração do substracto biológico do ser humano se refl ectirá no conceito jurídico de pessoa, ou qual o estatuto jurídico a atribuir a um ser portador de genes humanos/não humanos/inorgânicos.”

Os números colocam igualmente dilemas morais associados à inevitabilidade da existência de um custo de oportunidade em qualquer decisão tomada. As verbas que deverão ser previstas para proteger as gerações futuras da nanopoluição não seriam, designadamente, mais bem empregues para aliviar o corrente sofrimento humano, em particular nas zonas mais pobres do globo? E se a nanotecnologia pode salvar hoje mas destruir amanhã se não controlada, porquê privilegiar um futuro incerto (e quiçá inexistente) em detrimento de um presente com necessidades reais? Em suma, o velho confl ito intergeracional e o eterno dilema do estabelecimento de uma taxa de desconto, bem evidente no debate mais visível das alterações climáticas depois da publicação do Relatório Stern.

13 Helena PEREIRA DE MELO (2007), O Tamanho é Importante? A Nanotecnologia e o Direito, De Rerum Natura.

3. Percepção pública da nanotecnologia

Apesar de não existir até à data qualquer estudo científi co signifi cativo que prove o perigo dos nanomateriais para a saúde humana e/ou o ambiente ou a sua bioacumulação, agregação, interacção e/ou disseminação nocivas com organismos vivos e sistemas não-vivos, a indústria cinematográfi ca e os mass media infl amam, de quando em vez, com ecos junto dos órgãos políticos como o Senado americano ou a Comissão Europeia, as desconfi anças em relação a este tipo de tecnologia. Por outras palavras, muito do debate sobre a nanociência, no âmbito dos já enfatizados desconhecimento e incerteza, decorre de uma determinada percepção de risco e não da sua rigorosa e actual avaliação14, num fosso cognitivo entre peritos, leigos e políticos que fomenta distorções na compreensão dos impactos, com a tendencial sobre-estimativa dos riscos e do potencial calamitoso.

Na preparação do plano estratégico europeu para a nanotecnologia2010-2015, a Comissão Europeia lançou um inquérito on-line dirigido aos diferentes stakeholders de modo a tentar compreender o panorama da opinião pública europeia sobre esta temática15. Os resultados indiciam, por enquanto, um grande optimismo com mais de 80% dos inquiridos a apresentar, em geral, enormes expectativas. Quando analisado mais ao pormenor, com distinção entre aplicações, as respostas não demonstram todas um idêntico grau de aceitação com marcadas discrepâncias entre leigos e técnicos. No caso da energia, tecnologia de informação e comunicação, indústria aeroespacial, segurança, construção e química, a percepção dos benefícios é elevada.Já na área da saúde, ao mesmo tempo que se esperam grandes

14 E. SCHULER (2004), p. 279; Margarida SILVA (2004), A aceitabilidade social do risco e a investigação condicionada pelo interesse público – que fazer em nanotecnologia?, Nanosciences and Nanotechnologies @ the University of Porto – Challenges and Future Needs.

15 S. ARMÁRIO e T. LEITÃO (2010).

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promessas, antecipam-se potenciais riscos de monta. Maior cepticismoé manifestado no campo da alimentação, agricultura, ambiente,nano-bio-cogno e uso doméstico. Estranhamente (ou não uma vez que se está perante disposições declaradas), os interessados consideram-se bem informados e apoiam a política europeia, particularmente um reforço da regulação, por exemplo através da inventariação dos nanomateriais e das suas aplicações e nos produtos de consumo. Em suma, a fotografi a hodierna é positiva mas nas áreas de maior proximidade os receios, com os subsequentes apelos reguladores, parecem começar a surgir.

Ora, a narrativa do pessimismo catastrofi sta assemelha-se penosa de desconstruir depois de instalada ou sugerida16. O homem revela,enfi m, pelos seus comportamentos, a aceitação mais rápida de notícias e informações de carga negativa, do que positiva, e a necessidade de mais tempo para inverter a crença num cenário mau em bom do que o inverso. No fundo, a informação e experiência negativas são pegajosas, agarrando-se mais à memória do que as vivências positivas. Basta recordar que mais levemente se aceita a difamação de outrem do que a sua beatifi cação e que um processo de reconquista de confi ança, por exemplo por comprovada não quebra de lealdade, apresenta-se mais moroso do que a sua perda. Daqui decorre pois que feitos os estragos na reputação social da nanotecnologia, por mais esforços de reabilitação que se desenvolva, com campanhas de informação e de esclarecimento sérias, os danos difi cilmente serão reversíveis.

A experiência com os organismos geneticamente modifi cados ou com a energia nuclear ilustram bem esta problemática, enfrentando, de momento, uma resistência estéril e anti-económica e social. Veja-se a moratória europeia à produção e importação de OGM e a sua regulação apertada ou as quebras fi nanceiras das empresas agro-industriais

16 Paul SLOVIC (1987), Perception of Risk, Science, p. 236.

envolvidas, isto para não falar dos rumores que invadiram os mercados alimentares com verdadeiros mitos urbanos de recurso a transgénicos em determinados produtos de consumo de massas que contribuíram para guerras comerciais com prejuízos avultados para os atingidos. No caso do nuclear, a resistência à sua equação em Portugal exemplifi ca bem a dimensão do tabu que se criou.

A gestão do medo do desconhecido e do incerto, de modo a afastar a irracionalidade comportamental e arreigados arquétipos e heurísticas distorcidos e contraproducentes, é fundamental na política e regulação da nanotecnologia. As devidas lições devem ser retiradas da sempre intemporal parábola platónica da caverna, em que a luz da sabedoria não se assume, de per si, como sufi ciente num mundo de escuridão, incompreensão e quadros mentais e culturais pré-defi nidos.

A Comissão Europeia vem reconhecendo a importância da “confi ança e aceitação do público em relação às nanotecnologias (...) para o seu desenvolvimento a longo prazo”17, considerando fundamental não apenas uma auscultação e diálogo efi cazes como o envolvimento alargado dos inúmeros stakeholders. Com efeito, uma política e uma regulação da nanotecnologia que não comunguem com o pulsar social, ainda que técnica e cientifi camente irrepreensíveis, estão votadas ao fracasso, com o seu repúdio, desconfi ança e inefi ciência.Rumores catastrofi stas e de capturas do regulador e de jogos de interesses perigosos somados e exacerbados por complexas teorias da conspiração hollywoodescas que escondem uma síndrome de “Velho do Restelo” poderão derrubar anos de progresso tecnológico com elevados custos económicos mas também humanos.

17 Para uma Estratégia Europeia sobre Nanotecnologias, COM (2004) 338 fi nal, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechnology/pdf/nano_com_pt.pdf.

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O envolvimento e participação públicos não constituem, porém, pese serem essenciais, a solução sufi ciente para a conquista da confi ança e concordância sociais aos nano- desenvolvimentos. É imperioso que essa actuação seja precoce e que desmonte, e para tal conheça e entenda, as erradas percepções e estereótipos construídos a este propósito e o que alimenta o cepticismo. Por outras palavras, a intervenção, para ganhar em efi ciência e efi cácia, deve ser costurada à medida dos destinatários, tanto em termos de conteúdo como de forma de comunicação. Isto signifi ca, pois, cuidados diferenciados consoante o alvo, público em geral, países desenvolvidos ou menos avançados, tecido empresarial e industrial, decisores políticos, comunidade académica e científi ca, entre outros. Implica compreender e antecipar os seus comportamentos e crenças. Afi nal, os credos modelam tanto a forma como se decide (racionalidade procedimental) como o conteúdo das decisões (racionalidade substantiva).

Daqui se retira a importância no cuidado da comunicação da incerteza e riscos associados à nanotecnologia, com um correcto enquadramento que atente, designadamente, na linha das descobertasda Teoria Prospectiva, à aversão às perdas e à importância da saliência.18 Em suma, a mensagem passada será percepcionada de forma diferente consoante se exprima as probabilidades em termos de perdas humanas e ambientais ou, ao contrário, em termos de ganhos,da mesma forma que imagens catastrófi cas ou sugestionáveis (por exemplo num qualquer fi lme de acção como The Day the Earth Stood Still, de 2008, em que nano-robôs destroem a Terra), tecnologias nublosas demasiado herméticas para o leigo ou sensação de ausência de controlo distorcem a capacidade de julgamento, sobre-avaliando o perigo. Aliás, a nanotecnologia já apresenta algumas características

18 James N. DRUCKMAN / Toby BOLSEN (2012), How scientifi c evidence links attitudes to behaviors, in David DANA (ed.) The Challenges of Nanotechnology: Creating Legal Institutions for Uncertain Risks, Cambridge University Press, pp. 85 segs.

que mexem com a imaginação e emoção humanas, a começar pelo seu carácter não-natural19. Torna-se destarte um alvo fácil para mistifi cações e histórias de terror, por estar carregada de gatilhos potenciadores de distorção da percepção do risco.

Os ensinamentos recentes dos estudos desenvolvidos pelo Cultural Cognition Project da Universidade de Yale20 poderão acrescentar mais-valias na necessária preparação e adequação da comunicação do risco (e incerteza). Por exemplo, constatou-se que os sujeitos tendem a alinhar com posições diametralmente opostas às suas convicções culturais quando observam outros, com quem se identifi cam, defender ideias opostas. Já no caso de não haver qualquer relação congruente entre aos valores percepcionados dos informadores e a sua posição quanto aos danos e benefícios da nanociência, a polarização cultural é neutralizada.

Isto indica que a heurística da afi nidade cultural (determinada inclusivamente pela necessidade de identifi cação social e de pertença) tem um peso maior do que a heurística do afecto. Um cuidado na garantia de um pluralismo cultural dos comunicadores pode portanto auxiliar a uma menor polarização ao alargar o espectro de afi nidades. Posto de outra forma, o mensageiro pode bem ser mais importante do que a mensagem na construção da percepção do risco. Esta solução pluralista assemelha-se, todavia, de árdua execução sobretudo pela difi culdade natural, neste contexto, de geração de consenso.

Conhecer o padrão exegético dos mitos é igualmente importante. Não deixa de ser curioso, a este respeito, que a história da pedagogia da catástrofe tantas vezes ensaiada por activistas, extremistas, anarquistas, Nostredamus de serviço ou pseudo-cientistas em busca de cinco minutos de fama e/ou fi nanciamento para as suas pesquisas,

19 E. SCHULER (2004), p. 282.20 D. M. KAHAN [et al.] (2008a), Biased Assimilation, Polarization, and

Cultural Credibility: An Experimental Study of Nanotechnology Risk Perceptions, Cultural Cognition Project Report.

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apresente continuamente uma narrativa comum: a bela e o monstro. É assim com o urso polar e as alterações climáticas, os golfi nhos e baleias, a poluição e exploração marinhas, a borboleta monarca e os OGM, o peixe com três olhos e a opção nuclear. Através da oposição entre um reconhecido símbolo de beleza, singular e com capacidade de criar empatia e a frieza de uma sociedade industrializada, feia, impessoal e de massas, apela-se ao envolvimento emocional, num adormecimento deliberado da razão. O contraste, na linha da heurística da disponibilidade, salienta o lado negro da sociedade de risco.

Mais, a narrativa tende a prosseguir através de um discurso intimistaque procura sublinhar a proximidade dos perigos ao meio familiar, personalizando os efeitos e difi cultando o seu esquecimento. O OGM na papa de cereais do fi lho, o golfi nho na lata de atum ou a casa afectada por eventos climáticos extremos ou pela subida inexorável do mar. Joga-se a cartada da dimensão humana: a susceptibilidade de empatia e, por outro lado, o medo primitivo aliado à aversão à perda.

Em suma, a estratégia centra-se em ligar e acentuar, de forma artifi cial,o alarme. Porquê? Porque o alarme sobre-evidencia o problema e permite, em teoria, a sua maior e mais rápida consciencialização; apela ao instinto inato de sobrevivência, potencializando respostas, ao amplifi car a percepção do perigo e, desta forma, contrariar a sua desconsideração face a outros riscos mais próximos e susceptíveis de controlo e monitorização; e afasta o argumento racional baseado nas probabilidades matemáticas, distorcendo a percepção do risco, transformando uma tese infundada em senso comum e verdade incontestada com a consequente (infeliz e inefi ciente) infl uência na agenda regulatória. Infeliz e inefi ciente porque a alocação (errada)de recursos escassos para a resolução de um-não problema ou problema menor desvia os meios necessários para lidar comproblemas verdadeiramente prioritários, ou seja tem custos elevados e potencialmente irreversíveis.

Com efeito, como se escreveu noutra sede21, o trabalho da Teoria Prospectiva demonstra que a saliência cria inconsistências decisórias. Posto de outro modo, o risco e o alarme não têm o mesmo peso na tomada de decisão, assim como as probabilidades e a dimensão dos efeitos produzidos, prevalecendo, em regra, o segundo elemento da equação, gerando-se uma diferença entre a probabilidade matemática e a probabilidade percepcionada. Um cenário de baixo risco e de alta magnitude sugere a tomada de medidas, não porque as probabilidades assustem, mas por causa do carácter insustentável da sua dimensão, numa verdadeira aversão à catástrofe e à irreversibilidade. Por outro lado, na esteira da heurística da disponibilidade e da ancoragem, tem-se observado que as baixas probabilidades são, em regra, sobreavaliadas e as muito baixas ou sobreavaliadas de forma excessiva ou grosseiramente negligenciadas. Mais, existe a tendência para subestimar riscos elevados e sobrestimar riscos baixos. Em todos estes casos, observa-se que o papel das emoções, ao contrário da razão, potencia a saliência e a disponibilidade na memória inclusivamente por questões naturais de instinto de sobrevivência22.

Note-se que as baixas probabilidades e a magnitude dos efeitos geram tendências psicológicas opostas. Enquanto as primeiras puxam pela manutenção do statu quo, a segunda motiva a acção. Aambivalência é resolvida pelo grau de alarme que depende, em muito, da informação prévia disponível sobre o assunto. O aumento do alarme tem, no entanto, os seus limites. Um discurso demasiado apocalíptico e mal comunicado poderá conduzir a respostas paradoxais como cepticismo, negação e apatia. Os especialistas de comunicação de risco aconselham, por isso, a procura de um grau de medo não paralisante e a entrega de algum poder e controlo sobre a situação à opinião pública.

21 R. SARAIVA (2009), pp. 172 segs.22 Dan M. KAHAN [et al.] (2006), Affect, Values, and Nanotechnology

Risk Perceptions: An Experimental Investigation, Cultural Cognition Project Working Paper, nº 22, p. 5.

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Nos Estados-Unidos, um estudo23 especifi camente desenvolvido por uma equipa pluridisciplinar a propósito da percepção do risco no caso das nanotecnologias concluiu que, à semelhança do que sucede com outros riscos sociais, a percepção pública é notadamente guiada pela heurística do afecto, leia-se emoções, em especial as suas reacções viscerais, que se sobrepõe à racionalidade. Isto implica um certo dinamismo, já que as emoções evoluem mormente em função dos valores individuais (maior ou menor individualismo, igualitarismo ou hierarquização social), além de que podem reagir a novas informações. Aliás, a experiência laboratorial revela que os sujeitos informados sobre os benefícios e malefícios da nanotecnologia, ao contrário dos não expostos à informação, motivam-se e concentram-se de acordo com orientações predispostas culturais e políticas, num fenómeno de assimilação enviusada e de polarização.24

Uma outra investigação25 denota uma correlação inversa entre a percepção pública dos riscos e dos benefícios da nanotecnologia, i.e. a crença nos benefícios é acompanhada de uma crença sobre o carácter arriscado da tecnologia e vice-versa.26 Tal fomenta uma de três leituras: ou a complexidade do processo de decisão, ou a sua simplicidade e afectividade, ou um jogo de compensações internas

23 D. M. KAHAN [et al.] (2006). Retomado em D. M. KAHAN [et al.] (2007). The Future of Nanotechnology Risk Perceptions: An Experimental Investigation of Two Hypotheses, Cultural Cognition Project Working Paper, nº 46; em D. M. KAHAN [et al.] (2008a); e D. M. KAHAN [et al.] (2008b). Cultural Cognition of the Risks and Benefi ts of Nanotechnology, Nature Nanotechnology, p. 4(2).

24 Sobre a polarização, ver também Gregory N. MANDEL (2005), Technology Wars: The Failure of Democratic Discourse, Michigan Telecommunications and Technology Law Review, vol. 11, pp. 159 segs.

25 Steven C. CURRALL [et al.] (2006), What Drives Public Acceptance of Nanotechnology?, Nature Nanotechnology.

26 Contra, estudo de Satterfi eld [et al.] apud Dan M. KAHAN (2009), Nanotechnology and society: The evolution of risk perceptions, Nature Nanotechnology, p. 4.

para garantir ao sujeito o conforto de alguma congruência na globalidade da sua decisão.

Não deixa de ser curioso que até hoje as profecias da desgraça como a malthusiana ou ehrlichiana nunca se verifi caram. Contudo, a sua inexactidão é tolerada e descontada uma vez que se aceita a bondade do exagero, numa evidência da assimetria identifi cada pelos economistas comportamentais e psicólogos cognitivos entre a aversão a perdas ou a ganhos. Do ponto de vista do decisor político que se preocupa com o julgamento retrospectivo dos eleitores (e com a sua reeleição), percebe-se que adopte medidas mais precavidas. Esta aversão ao risco vem legitimando, deste modo, em diversos contextos, a aceitação e aplicação de um princípio da precaução demasiado restritivo e anti-económico.

A lição a retirar é, portanto, não deixar soar o alarme. Mais do que recolher informação sobre os custos e benefícios da nanotecnologia, deve-se coleccionar dados sobre a percepção do risco por leigos e estudar o seu julgamento e deve-se perceber de onde vem a base de sustentação dos juízos feitos por quem reconhecidamente não percebe nada de nanotecnologia mas que, se questionado, tem certamente uma opinião formada (porque a referência a tecnologia remete para a sua experiência com outros tipos de tecnologia)27. Aliás, das avaliações conduzidas nos Estados-Unidos28 decorre que o acesso a mais informação rigorosa e com uma ponderada análise custo-benefício não parece estar positivamente associado com uma posição mais favorável à nanotecnologia, tal como uma maior familiaridade com o assunto. A reacção à informação é, como acima se destacou, sobretudo determinada por predisposições culturais e afectivas. Quando a fonte é identifi cável a resposta é extremada,

27 Peter D. HART, Research Associates, Inc., Report Findings, disponível em http://nanotechproject.org/fi le_download/98.

28 D. M. KAHAN [et al.] 2006; (2007) e (2008).

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seja no seu repúdio (se notavelmente do espectro oposto), seja na adesão (quando o alinhamento é idêntico)29.

Resumindo: o desenvolvimento, a política pública e a regulação da nanotecnologia vão depender decisivamente da percepção do risco revelada pelo cidadão comum.

4. A oportunidade regulatória

Face ao actual nível de desconhecimento sobre os impactos (negativos) humanos e ambientais da nanotecnologia, a questão óbvia é a de saber se o decisor político se deve antecipar e começar agora a prevenir possíveis danos ou se deve aguardar por mais informação ou por confi rmação dos receios. Em suma, agir ou esperar?

À semelhança do que sucede com outros riscos tecnológicos e ambientais, também aqui se observa uma assimetria informativa entre os conhecimentos das empresas/cientistas que produzem e manipulam os nanomateriais e as autoridades, que, em boa parte, até por uma questão de escassez de recursos, recebe a informação das partes interessadas. Se é verdade que tal poderá conduzir a um certoequilíbrio com a recepção de dados, tendencialmente positivos, da indústria e, maioritariamente negativos dos seus contestadores (por exemplo, ludistas), num verdadeiro mercado concorrencial de regulação, o jogo tenderá, em regra para o lado com maior poder, seja ele económico, seja ele de capacidade de manipulação da opinião pública e, consequentemente, do decisor político. Malgrado os riscos de captura e distorção, a sua participação, num contexto de assimetria informativa, é recomendável para o auxílio na decisão quanto mais não seja para diminuir o fosso cognitivo, benefi ciando-se, muito embora com a devida distância e sentido crítico, de aquisição gratuita de dados.

29 D. M. KAHAN [et al.] (2008).

Esquecendo questões de oportunidade e captura políticas, a escolha entre agir ou não agir depende, em última análise, da ponderação do risco, i.e. do nível de probabilidades objectivas de ocorrência de um determinado cenário e da magnitude dos seus efeitos (descontando-sea potencial sinalização alarmista de modo a obter uma decisão racional). Aceitando-se que as probabilidades do cenário catastrófi co são muito baixas mas que os seus custos são muito elevados, justifi ca-se a acção quando comparada com os custos da inércia. Por maioria de razão, o mesmo valerá se tanto as probabilidades como os danos forem altos. A contrario senso, num cenário de baixo risco impõe-se aguardar.

O problema, porém, é que, em rigor, no campo da nanotecnologia não está em causa o risco na acepção de Knight mas antes, e como já mencionado uma cascata de incertezas e de pura ignorância, dando azo a uma “fatal ambiguity”, difi cultando, desta forma, grandemente a decisão. Logo, na incerteza (incomensurável e ambígua), geralmente associada à tecnologia e às condições de mercado, apesar de se poder antecipar cenários e resultados, não se consegue, ao contrário do risco (mensurável e probabilístico), medir de forma objectiva (nomeadamente de cálculo actuarial) a sua probabilidade, com a consequente insusceptibilidade de seguro e um verdadeiro salto de fé na tomada de decisão.

O político tem, no entanto, ao contrário do cientista, que decidir, ainda que seja não decidindo, ou seja não agindo. O recurso a heurísticas ou proxies ajudam: por exemplo, alinhar com a maioria, tomar o todo pela parte ou escolher a solução que minimiza o pior cenário. Ademais, devem auxiliar na tomada de decisão outros valores que não apenas os dados científi cos conhecidos, incluindo no âmbito de questões eminentemente científi cas, tais como a equidade, a segurança, o alarme social ou o potencial de desenvolvimento económico. Nesta fase, face à ausência de dados objectivos e indeterminação, a resposta deverá ser procurada fora da ciência, até para, de forma grosseira, se avaliarem as probabilidades subjectivas associadas à incerteza, uma vez que estas dependem, em última

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análise, do grau de convicção que se espera num determinado resultado.

A incerteza pode, malgrado, ser gerida, mitigada e minimizadaatravés de alguns instrumentos e mecanismos, a começar pelo aprofundamento do conhecimento, pese o seu total afastamento se demonstre impossível, seja devido aos limites do conhecimentocientífi co, seja pela onerosidade de uma informação completa. Dito de outra forma, o decisor deve conviver e assumir a incerteza no processo decisório sob pena de distorções. Ademais, a redução da incerteza não apresenta uma relação linear quanto à habilidade de lidar com o risco. À medida que o risco diminui, verifi ca-se um ponto a partir do qual uma redução marginal não reforça a capacidade de gerir o risco, tornando-se o esforço adicional demasiado custoso. Nestes termos, parece importante, na perspectiva do decisor político, identifi cá-lo.

A ponderação da necessidade (e intensidade) de acção depende ademais da defi nição da taxa de desconto. Não querendo neste ponto retomar uma discussão complexa, recorde-se apenas que a opção por uma taxa de desconto mais baixa, insta a uma actuação imediata, enquanto uma taxa de desconto mais elevada protela a intervenção. Ora, sua fi xação tem, ao lidar com factores de incerteza e de risco, algum carácter “arbitrário”, no sentido em que parte ou traduz, a mais das vezes, convicções pessoais e culturais como o valor a atribuir às gerações futuras, a perspectiva de desenvolvimento tecnológico e económico ou a probabilidade de catástrofes. À semelhança do que se defendeu noutra sede30, propõe-se que aqui também o decisor político equacione uma taxa de desconto tendencialmente decrescente que permite não só, numa lógica libertária, contrariar a miopia em relação ao futuro mas também a susceptibilidade, ainda que ínfi ma, de eventos catastrófi cos, não vedando à partida um maior investimento no crescimento económico e a equidade intergeracional.

30 R. SARAIVA (2009), pp. 322-323.

A decisão de intervenção pública obedece também a um juízo de oportunidade em relação à gestão da acima explorada percepção pública dos riscos. Posto de outra forma, mais do que prevenir os malefícios potenciais da nanociência (até porque não há dados conclusivos), está em causa uma acção precoce para acautelar a confi ança pública no papel do decisor político graças ao controlo (e espera-se da não distorção) do julgamento em torno da nanociência e da legitimação da sua actuação. Ou seja, infl uenciar a percepção pública (e desejavelmente acautelar a racionalidade do debate, desbastando mitos e emoções) e dar um ar de suposta competência. Ora, do que infra se expôs, uma acção tardia quando as másrepresentações da nanotecnologia se encontram instaladas, de pouco ou nada servirá para inverter as crenças, motivando apenas a deslegitimação das autoridades.

A questão, aliás, é a de saber, além do timing, se esta manobra vai transmitir ao público segurança (as autoridades estão atentas e a tratar do assunto) ou, ao contrário, potenciar a desconfi ança e insegurança quanto os efeitos da nanotecnologia (se as autoridadesse preocupam é porque existe um problema), extremando mais as posições, inclusive com a multiplicação de teorias da conspiração.31 Em suma, se vai ser bem sucedida na gestão da percepção pública, sobretudo quando concorre com a prestação de informação por comunicadores coerentes e que alinham com as predisposições culturais do público.

31 Douglas J. SYLVESTER / Kenneth W. ABBOTT / Gary E. MARCHANT (2008), Not Again! Public Perception, Regulation, and Nanotechnology, O’Connor College of Law at Arizona State University.

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5. Regulação da nanotecnologia na teoria e na prática

Assumindo-se a necessidade de intervir (para evitar um cenário catastrófi co apesar de muito improvável), impõe-se como um dos primeiros passos o recorte do universo regulável, com a qualifi cação e previsão dos conceitos enquadráveis. Isto obriga à própria defi nição de nanotecnologia e nanomateriais sujeitos à moldura jurídica, preocupação muito visível na abordagem europeia.

Note-se que a sua delimitação não é indiferente, com impactos em termos de custos de regulação (quer para o regulador quer para o regulado) e de efi cácia. Tanto uma sobre como uma sub-regulação, além de inefi cientes, podem gerar distorções perversas difíceis de combater, nomeadamente pelo seu impacto na percepção pública do risco ou pelas expectativas jurídicas criadas. Veja-se que uma delimitação demasiado ampla de nanotecnologia ou nanomaterial agarrada apenas ao critério da dimensão pode tornar demasiado onerosa, pesada, rígida e ingerível a sua regulação, por exemplo, abarcando produtos de muito baixo risco ou deixando de fora situações que pelo seu potencial de perigo deveriam ser enquadradas.32 Mais, na eventualidade de algum azar, a percepção negativa pode contaminar todo o universo da nanotecnologia por não haver diferenciação inicial.

O problema, no entanto, como várias vezes realçado, é o défi ce informativo que difi culta uma identifi cação cirúrgica e oportuna das situações merecedoras de regulação e transforma qualquer tentativa de defi nição rígida num elemento a prazo. Deste modo, como demora colher e tratar os dados precisos para tal operação, o desafi o está em conseguir agora um recorte transversal (e não casuístico:

32 David A. DANA (2010), Can the Law Track Scientifi c Risk and Technological Innovation?: The Problem of Regulatory Defi nitions and Nanotechnology, Northwestern University School of Law Public Law and Legal Theory Research Paper, nº 10-83.

entenda-se, dirigido a tipos específi cos de nanomateriais e tecnologias) sufi cientemente fl exível para evoluir com o conhecimento e que não onere em demasia tecnologias potencialmente inócuas mas ao mesmo tempo sufi cientemente estável para operacionalizar soluções jurídicas e administrativas sistemáticas e sistematizadas. Em teoria, instrumentos económicos ou de soft law parecem, por isso, mais adequados do que as tradicionais soluções de comando-e-controlo33.

Para tal, não só se pode colher inspiração na prática do Direito ambiental, nomeadamente com as listagens anexas ao instrumento legal e facilmente alteráveis à medida do aprofundamento científi co, como a defi nição não deve apenas centrar-se na dimensão dos materiais ou dos compostos de alguns produtos complexos mas acrescentar outros critérios como34:

• A sua artifi cialidade e intencionalidade (já presente na maioria das regulações), uma vez que se presume que nanopartículas naturais não manipuladas serão inofensivas para a saúde pública e para o ambiente e que as nanopartículas sintéticas, mais facilmente detectáveis e monitorizáveis por serem propositadas, só serão desenvolvidas se contiverem a promessa de novas propriedades que poderão ser ou não nocivas.35 Este critério, apesar de permitir

33 Por todos, na comparação de instrumentos, R. Saraiva (2009). Sugerindo a aplicação de um instrumento económico inovador à nanotecnologia, as obrigações de seguro ambientais (environmental assurance bonds), Douglas A. KYSAR (2009), Ecologic: Nanotechnology, Environmental Assurance Bonding, and SymmetricHumility, Yale University. Propondo soluções do foro dos seguros, Mark POPOVSKY (2011), Nanotechnology and Environmental Insurance, Columbia Journal of Environmental Law, vol. 36, nº 1.

34 D. A. DANA (2010), pp. 2 segs; Maksim RAKHLIN (2008), Regulating nanotechnology: a private-public insurance solution, Duke Law & Technology Review, nº 2; Robin Fretwell WILSON (2007), Nanotechnology: The Challenge of Regulating Known Unknowns, Washington & Lee Public Legal Studies Research Paper, nº 2007-10.

35 Centrando-se essencialmente na precaução quanto às nanopartículas sintéticas, H. PEREIRA DE MELO (s.d.). pp. 6 segs.

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uma selecção mais apurada, fundamental numa primeira fase, peca, contudo, sobretudo se tomado isoladamente, por beber no prejuízo da bondade natural, deixando de fora situações potencialmente perigosas, designadamente por fenómenos de acumulação em massa.

Ademais, impõe-se a concretização do conceito de intencionalidade: incluirá a negligência (grosseira)? E nanoresíduos de nanopartículas desejadas? Note-se que a Comissão, na sua Recomendação de 2011 sobre a defi nição de nanomateriais, não adere a este critério ao delimitar, de forma ampla, o conceito para efeitos de aplicação jurídica a partículas naturais, incidentais e manufacturadas.

• A experiência e duração na sua produção, já que quanto mais longas forem mais dados existem sobre a sua perigosidade. No fundo, a questão está em saber se se está perante algo novo e se a novidade deve, de per si, ser regulada. Daqui decorre, como já

experimentado no Direito ambiental, um tratamento diferenciado para novas e velhas tecnologias, num sistema conhecido por grandfathering que exige mais das primeiras e menos das segundas,

até por questões de custos (e de captura do regulador). Esta opção, porém, pode gerar distorções perversas com o desincentivo à inovação e à manutenção de operadores desqualifi cados.

Um equilíbrio difícil entre as provas dadas de inocuidade e expectativas de tecnologias antigas (a segurança do que se conhece)

e o fomento do desenvolvimento futuro (o receio do que se desconhece) deve ser procurado pelo regulador, quiçá através do recurso a instrumentos económicos dinâmicos como subvenções ou impostos. No Reino Unido, a Royal Society36 recomenda às autoridades a avaliação dos químicos sob forma de nanopartículas

36 Royal Society and Royal Academy of Engineering (2004), Nanoscience and nanotechnologies: opportunities and uncertainties, disponível em http://www.nanotec.org.uk/fi nalReport.htm.

ou nanotubos enquanto novas substâncias. Apesar desta sugestão, os químicos com nanopartículas que tenham sido anteriormente avaliados e regulados podem fi car isentos de novo enquadramento, malgrado o seu potencial de risco e de impactos. Na União Europeia, o REACH, ao contrário do que sucede do outro lado do Atlântico com o Toxic Substances Control Act, não distingue entre químicos novos e existentes após certas disposições transitórias expirarem.

• O seu destino enquanto produto de massas ou para aplicação humana, veja-se cosméticos, alimentação ou pesticidas, atendendo não só a potenciais complicações de acumulação, à escala de efi ciência da intervenção e ainda à percepção pública do risco. Afi nal, o problema, muito embora invisível a olho nu, passa a ser pessoal. Tal não impede, todavia, que certos nanoprodutos, inclusivamente em muito baixa concentração, não se venham a assumir altamente perigosos ou que produtos não inicialmente previstos para produção em massa não acabem por vir a sê-lo. Isto claro para não falar da problemática da densifi cação dos próprios conceitos de massa e de aplicação humana (ex. directa ou indirecta?).

• A existência de características físicas observáveis, como a superfície ou reactividade, que sugiram um maior ou menor risco, critério essencialmente mitigador da ditadura do tamanho mas que poderá incluir alguma ambiguidade na defi nição.

Mesmo que imperfeitos, estes critérios permitem, num primeiro momento em que se está a aprender, concentrar os esforços nas situações que mais provavelmente poderão suscitar preocupações, numa economia de esforço mas também de atenção.

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5.1. Soft law

O actual cenário de grande incerteza e ignorância insta o recurso a instrumentos com fl exibilidade sufi ciente para serem moldados à medida dos acontecimentos (aprofundamento do conhecimento científi co ou evolução da percepção pública), que não refreiem a capacidade de desenvolvimento e inovação37. Nesta fase, programas públicos ou privados voluntários e auto-regulação, por exemplo com códigos de conduta38 ou principiológicos, como já sucede, ainda que incipientemente, no conhecido universo ISO39, parecem soluções ajustadas, tanto que tem decorrido da prática com a indústria nanotecnológica a assegurar, a mais das vezes, a gestão do risco. Tal não signifi ca, contudo, que, de futuro, novos mecanismos não tenham de ser equacionados, passando-se de uma soft law para uma hard law, se assim for contextualmente exigido40.

De igual forma, alguma monitorização pública ou pelo menos tendencialmente neutra deve ser equacionada, de modo a se minimizar o eterno problema de assimetria informativa e, deste modo, permitiravaliar se as medidas escolhidas se mantêm congruentes e da necessidade de acerto regulatório. Afi nal, se a auto-regulação e

37 Por todos, discutindo a aplicação de soft law à nanotecnologia, Gary E. MARCHANT / Douglas J. SYLVESTER / Kenneth W. ABBOTT (s.d.), A New Soft Law Approach to Nanotechnology Oversight: A Voluntary Product Certifi cation Scheme, Arizona State University; Timothy F. MALLOY (s.d.), Soft Law and Nanotechnology: A Functional Perspective, UCLA School of Law.

38 Veja-se a este propósito a Comunicação da Comissão, Recommendation on a code of conduct for responsible nanosciences and nanotechnologies research, C (2008), p. 424 fi nal, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechnology/pdf/nanocode-rec_pe0894c_en.pdf.

39 Veja-se a ISO/TC 229. A este propósito Rafael Luiz FERRONATTO (2010), Nanotecnologia, ambiente e Direito: Desafi os para a sociedade na direção a um marco regulatório, Tese de Mestrado, Universidade de Caxias do Sul, pp. 98 segs.

40 Cary COGLIANESE (2012), Engaging Business in the Regulation ofNanotechnology, Penn Law School Public Law and Legal Theory Research Paper, nº 12-12.

programas voluntários permitem à indústria tentar acautelar e manter a confi ança pública e reputação do sector (fundamentais para o seu sucesso económico dos seus investimentos), sinalizando os cuidados que têm, servem, por outro lado, como um sinal da desnecessária intervenção pública e de protecção interna: esta auto-regulação funciona um pouco como os mercados contestáveis, a saber como um comportamento proactivo que se antecipa e torna supérfl uahétero-regulação mas também que infl uencia, por ancoragem e numa lógica de path-dependency, soluções, inclusivamente públicas, futuras para benefício da indústria e, em consequência, não socialmente óptimas nem efi cientes. Por outro lado, acrescentem-se igualmente problemas associados à procrastinação e efeitos-boleia e de manada que podem determinar o sucesso da solução voluntária.

Adoptar qualquer tipo de programa ou regulação, inclusive se intencionalmente, tem sempre custos – de oportunidade, de transacção e de implementação, entre outros -sobretudo para os primeiros agentesque se vêem obrigados a montar de início um novo modelo de actuação e de gestão do risco. Haverá, destarte, alguma relutância em juntar-se a estes mecanismos se os custos de adesão precoce parecerem superiores aos benefícios, em especial se os primeiros se concentrarem no presente e nos pioneiros e os segundos se diluírem no futuro e socialmente. Em suma, aliam-se os problemas da taxa de desconto e da existência de externalidades positivas (até pelas mais-valias reputacionais que programas voluntários podem trazer para o sector) que podem promover uma sub-produção presente deste tipo de solução.

Ademais, como vem demonstrando a Economia comportamental41, a conduta dos agentes é relativa, ou seja é muito infl uenciada pelas escolhas dos outros, especifi camente dos pares. As normas sociais, ao

41 Por todos, P. Wesley SCHULTZ [et al.] (2007), The Constructive, Destructive, and Reconstructive Power of Social Norms, Psychological Science, vol. 18, nº 5; Hunt ALLCOT (2009), Social Norms and Energy Conservation, CEEPR 09-14.

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contrário do tantas vezes declarado, modelam as condutas. A adesão voluntária a programas ambiental e socialmente correctos dependerá, desta feita, mais da percepção que se tem do comportamento dos outros (se decidiram juntar-se ou não aos programas) do que de educação, incentivos ou sanções.

Apesar destes obstáculos, neste momento, respostas mais fechadas e mandatórias como um mecanismo de comando-e-controlo podem ser demasiado dispendiosas e desadequadas, porque em última análise se assumem como arbitrárias pela ausência de informação necessária para o estabelecimento efi ciente de regras de conduta ou standards a cumprir pela nanociência. Também em termos de equidade, a solução de comando-e-controlo seria criticável por onerar de forma diferente os vários produtores e consumidores de nanotecnologia que têm estruturas de custos diferenciadas, nomeadamente considerando a amplitude de aplicações dos nanomateriais. Ao invés, standards performativos não uniformes, ainda que com limitações operacionais, ultrapassam boa parte destes obstáculos. O mesmo se aplica ao dever de divulgação informativa (por exemplo através da rotulagem ou reporte) ou ao mecanismo procedimental de gestão como planeamento ou monitorização e avaliação contínuas mormente se decididos pela(ou em conjunto – o que no entanto aumenta os custos de transacção) indústria à medida das suas características42. Esta plasticidade inovadora não só se adequa melhor ao actual estádio de desenvolvimento como promove uma maior transparência e accountability43 do progresso da nanotecnologia, primordiais para envolver e tentar enquadrar a opinião pública.

42 C. COGLIANESE (2012), pp. 10 segs.43 LeRoy C. PADDOCK (2006), Keeping Pace with Nanotechnology: A

proposal for a new approach to environmental accountability, Environmental Law Reporter, vol. 36, nº 10943.

A construção de programas públicos voluntários, designadamente trazendo mais-valias para os aderentes (ex. subvenções, diminuição de burocracia, recursos pedagógicos, redução da responsabilidade civil44), pode igualmente adaptar-se a esta fase inicial da nanociência, aprendendo-se com projectos já ensaiados noutras áreas, tais como o 33/50 Program e o National Environmental Performance Track (NEPT) Program, da americana EPA, particularmente no âmbito do controlo de produtos químicos45.

Como programas voluntários privados, recorde-se, entre outros, em termos inventariação, o Project on Emerging Nanotechnologies (PEN)46 que actualmente apresenta uma lista de mais de oitocentos produtos cujos promotores voluntariamente identifi caram como recorrendo à nanotecnologia.

Igualmente interessante é a iniciativa da Nanotechnology Industries Association (NIA), sediada em Bruxelas, que conseguiu juntar agentes públicos e privados e não-governamentais em torno de um código de conduta intitulado Responsible NanoCode que prevê sete grandes princípios orientadores da actuação da indústria nanotecnológica no sentido de assegurar uma política de segurança para a saúde pública e dos trabalhadores do sector, assim como ambiental através da identifi cação, avaliação e minimização continuadas do risco. A metodologia passa por identifi car as boas práticas desenvolvidas pelas empresas e promovê-las, difundindo-as, sublinhando-se a importân-cia da transparência e envolvimento da totalidade dos stakeholders. Esta solução, pela sua fl exibilidade, não prevê, todavia, qualquer mecanismo de accountability ou reporte.

44 David A. DANA (2009), When Less Liability May Mean More Precaution: The Case of Nanotechnology, Northwestern University School of Law, Law & Economics Series, nº 09-43, pp. 2-35.

45 C. COGLIANESE (2012), pp. 20 segs.46 www.nanotechproject.org.

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No plano da auto-regulação, atente-se à solução encontrada pela DuPont Corporation que se associou, em 2007, ao Environmental Defense Fund num participado e trabalhado Nano Risk Framework. Este enquadramento, que se quer maleável, estabelece um procedimento integrado de avaliação do risco para produtores e consumidores de nanomateriais artifi ciais que se baseia numa ampla recolha de informação e em assunções razoáveis de piores cenários.

Os resultados deste tipo de solução mole não são porém fáceis de medir, até porque, em regra, como revela a prática, são notadamente empresas que já têm uma fi losofi a de cautela ambiental e social que aderem. Posto de outra forma, difi cilmente se consegue saber se os participantes teriam comportamentos diferentes na ausência doprograma. Por outro lado, sem uma avaliação externa, é sempre possível que estes projectos mais não sejam do que meras operações publicitáriasde verdadeira lavagem ecológica e social ou quiçá fraudulentas. Pense-se, a título exemplifi cativo, em alguns programas de offset carbónico através de uma putativa refl orestação ou investimentos em países em vias de desenvolvimento sem susceptibilidade de verifi cação. Mais, também aqui importa o balanço da percepção pública. Uma rotulagem voluntária, se a mensagem não for devidamente enquadrada, poderá ou não ser compreendida ou ser distorcida, criando, ao contrário do pretendido, um clima adverso à nanotecnologia.

Pesem estas limitações, a soft law tem a plasticidade sufi ciente para o actual grau de desenvolvimento da nanotecnologia, devendo ser pensada numa lógica incremental, ou seja o seu endurecimento à medida de maior conhecimento científi co (ou pessimismo da opinião pública) e da globalização quotidiana desta nova tecnologia. Esta sua maleabilidade permite ainda preparar o terreno para instrumentos duros, moldando os destinatários das normas às exigências expectáveis pelo seu poder “precursor”47. Ademais, pode servir de balão de ensaio para testar soluções na procura da mais adequada, já que, pela

47 T. F. MALLOY (s.d.), pp. 3-4.

sua proximidade com os operadores, se avalia a sua exequibilidade. Aliás, não deixa de ser comum as respostas serem propostas e postas em prática pelos interessados, ancorando o regulador. Os programas voluntários e a auto-regulação são bons exemplos. Ora, a sua assunção por certos actores, em especial os de referência no mercado, pode ser determinante na construção do comportamento de outros, pelo poder da infl uência das normas sociais e do efeito de manada. Tanto é mais verdade num campo, como a nanotecnologia, em que pequenas start-ups entram no mercado continuamente. Posto de outra forma, a soft law apresenta uma inesperada capacidade de alavancagem normativa nomeadamente pela sua habilidade de alterar as preferências, exprimir o pulsar social e de trazer informação, a baixo custo, para cima da mesa, cimentando e reforçando por dentro e por fora o enquadramento jurídico48.

5.2. Precaução

Como em qualquer outro debate sobre riscos tecnológicos e incerteza, a cartada do princípio da precaução é lançada por decisores políticos e grupos de interesse e não há artigo académico que lhe escape49. Todavia, não se pode esperar que esta invocação, qual palavra mágica, consiga, na prática, orientar as decisões e resolver problemas. Afi nal, a sua densifi cação não se assemelha fácil, com formulações muito diversas nos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que contrariam os esforços da sua concretização e de aplicação.

48 T. F. MALLOY (s.d.), p. 6.49 Por todos no âmbito específi co da nanotecnologia, Oren PEREZ (2010),

Precautionary Governance and the Limits of Scientifi c Knowledge: A Democratic Framework for Regulating Nanotechnology, Bar-Ilan University Public Law and Legal Theory Working Paper; D. A. DANA (2009).

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Ora, escolhendo regular, a opção pelo instrumento adequado deve ponderar, além do nível de conhecimento e de percepção pública do risco, alguns critérios decisórios fundamentais, a saber a efi cácia, a efi ciência estática e dinâmica mas também, pela insufi ciência de uma simples análise custo-benefício50, a plasticidade, a equidade, a aceitabilidade social, a exequibilidade política e a dimensão comportamental, isto é, a capacidade de modelar condutas. A decisão por uma solução incongruente ou desequilibrada pode deitar por terra o sucesso da nanotecnologia ao potenciar distorções, custos desproporcionados ou percepções erradas.

Só com a ponderação integrada destas múltiplas dimensões será possível recortar e densifi car um princípio da precaução adaptado e ajustado às circunstâncias, designadamente que não seja de tal forma lato que arrase, à partida, o próprio desenvolvimento da nanociência, nem tão restrito que seja virtualmente inaplicável. Tal é uma tarefa essencial, uma vez que o apelo à precaução inunda o debate. A título exemplifi cativo, relembrem-se as recomendações de 2008 do Intergovernmental Forum on Chemical Safety51 (IFCS) no sentido de operacionalizar a precaução como instrumento de gestão de risco no âmbito da nanotecnologia52, a declaração principiológica conjunta53 de várias organizações não governamentais ambientais para a aplicação da precaução no plano da nanociência com um pedido de moratória alargada numa lógica de “no health and safety

50 A este propósito, por todos, R. Saraiva (2009). 923 e ss.51 http://www.who.int/ifcs/documents/forums/forum6/f6_execsumm_en.pdf. 52 Sobre modelos de gestão de risco e a sua aplicabilidade à nanotecnologia, Gary

E. MARCHANT / Douglas J. SYLVESTER / Kenneth W. ABBOTT (2008), Risk Management Principles for Nanotechnology, Nanoethics, nº 2; idem (s.d.), A New Approach to Risk Management for Nanotechnology, Arizona State University.

53 International Center for Technology Assessment (2008), Principles for the oversight of nanotechnologies and nanomaterials, http://www.icta.org/doc/Principles%20for%20the%20Oversight%20of%20Nanotechnologies%20and/20Nanomaterials_fi nal.pdf.

data, no market” ou a resposta do regulador britânico à Royal Society que recomendou a alteração da legislação em vigor numa lógica precaucionária por esperar uma maior toxicidade dos nanomateriais54-55.

Desta forma, e tal como se defendeu noutra sede a propósito do efeito de estufa potenciado56, a chave encontra-se na aplicação do princípio da proporcionalidade à lógica de prevenção.57 Com efeito, o princípio da proporcionalidade confere à prevenção a fl exibilidade necessária para acompanhar as exigências do leque de incertezas. Logo, quanto mais intensa e onerosa for a potencial lesão, menor será o nível de probabilidade exigível para permitir a intervenção pública que deverá ponderar os valores e interesses em jogo, evitando, em especial, acções excessivas, inadequadas e não necessárias.

A unilateralidade e extremismo de interpretações tipo in dubio pro ambiente revela-se paralisante, inibindo o progresso e o processo de destruição criativa e fomentando a ingerência castradora do Estado. Ao colocar o ónus da prova da inocuidade ambiental mas também para a saúde pública sobre o proponente de uma inovação, a precaução impõe custos que cerceiam a prossecução da actividadeeconómica, possibilitando, de forma contraproducente, que ansiedades ou intenções anti-concorrênciais de agentes menos efi cientes levantem dúvidas sobre a segurança do bem ou serviço e solicitem medidas restritivas apenas a pretexto de uma eventual possibilidade de risco. Por outras palavras, a precaução pode conduzir a uma espécie de selecção adversa em que apenas subsistem os elementos menosdinâmicos que representam tecnologias ultrapassadas, caras e com

54 HM Government (2005), Response to the Royal Society and Royal Academy of engineering report: nanoscience and nanotechnologies: opportunities and uncertainties, disponível em http://www.berr.gov.uk/fi les/fi le14873.pdf.

55 Royal Society and Royal Academy of Engineering (2004).56 R. SARAIVA (2009), pp. 224 segs.57 Também neste sentido, Helena PEREIRA DE MELO (s.d.), “NO DATA,

NO MARKET” – A Aplicação do Princípio da Precaução à Nanotecnologia, p. 31, disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/HPM10.pdf.

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riscos conhecidos, numa clara preferência pela manutenção do statu quo58. Eventualmente seria equacionável ponderar um fi nanciamento público da realização de testes preventivos de modo a aliviar os encargos das empresas59. Esta possibilidade, no mundo real, chocaria com inevitável burocracia e escassez de recursos públicos, assim como uma percepção de falha distributiva por o contribuinte suportar custos que deveriam ser do produtor, podendo inclusive alimentar parasitismos.

Mais, esta predisposição reaccionária de precaução pode inclusive incutir consequências perversas, ao privar a geração presente de bens ou serviços que satisfaçam as suas necessidades imediatas. Esta atitude anti-científi ca e anti-económica que pretende consolidar a resiliência contra a adversidade prova do seu próprio veneno. A aposta no crescimento económico e na investigação tecno-científi ca tem demosntrado alguma infl uência positiva (principalmente quando se parte de níveis muito baixos de desenvolvimento) no índice de desenvolvimento humano e na diminuição das disparidades sociais (curva de Kuznets). Adiar a introdução de inovações até se obter mais informação pode ser longo e extenuante, mostrando-se contraprodutivo com o aumento da miséria humana e da degradação ambiental. Ou seja, se a precaução visa evitar e controlar riscos, incluindo acobertar futura responsabilização civil e penal dos promotores60, a verdade éque também ela os gera. Afasta-se deste modo o entendimento daqueles que defendem, no âmbito da nanotecnologia, a operacionalização de um princípio da precaução de certifi cação com testes pré-mercado ou na linha do regulamento REACH61.

58 G. E. MARCHANT / D. J. SYLVESTER / K. W. ABBOTT (s.d.), p. 9.59 D. A. DANA (2009), pp. 10, 12-13.60 D. A. DANA (2009), p. 35.61 D. A. DANA (2009), pp. 3-4; H. PEREIRA DE MELO (s.d.), pp. 35 e 37,

acabando por defender, em nome do valor superior da protecção da saúde humana e de que “mais vale prevenir que remediar”, a realização de testes dos nanoprodutos

Defende-se, portanto, apostar numa formulação mais restritiva da precaução, na linha de Sunstein62 com um irreversible harm precautionary principle ou um catastrophic harm precautionary principle que legitimariam medidas agressivas apenas na medida da magnitude dos danos (intensidade, extensão, temporalidade), apesar da difi culdade na sua contabilização e valoração. Esta posição não afasta a susceptibilidade de se exigir, se adequado, a realização de testes pós-mercado, numa lógica de monitorização à medida da aprendizagem e até de testes pré-mercado em situações de desconfi ança fundada de efeitos nocivos extremos.

Por enquanto, a experiência comparada revela uma tendencial regulação “fraca” da nanotecnologia (mais nos Estados-Unidos do que na Europa) com a preferência por medidas moles e voluntárias, que apelam a uma cooperação estreita entre entidades públicas e promotores, numa aparente aplicação pró-económica da precaução.

Trata-se igualmente de uma moldura jurídica muito fragmentada e heterogénea, uma vez que sem um tratamento sistemático e integrado que aborde de forma transversal esta temática, assiste-se à aplicação de regulação de vários sectores a diferentes aspectos da nanotecnologia – que, ainda que possam apresentar características diferenciadoras, não lhe são exclusivos, como a segurança no trabalho ou patentes –, sobretudo quando já existe legislação sobre o material a granel, ou de regulação específi ca de determinado nano-produto ou processo como no caso dos cosméticos. Esta abordagem inevitavelmenteapresenta lacunas e incongruências. A título de exemplo, recorde-se

antes e depois de entrarem no mercado, mesmo se antes propõe uma abordagem menos intrusiva baseada no princípio da proporcionalidade e numa análise custo-benefício.

62 Cass R. SUNSTEIN (2005), Irreversible or Catastrophic, The Law School, The University of Chicago, Public Law and Legal Theory Working Paper, nº 88, Abril ou AEI-Brookings Joint Center Working Paper, nº 05-04, Março, pp. 14-15, 35 segs. No mesmo sentido, Daniel A. FARBER (2011), Uncertainty, The Georgetown Law Journal, vol. 99, pp. 919-920.

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que a FDA americana passou a enquadrar em termos de protecção de saúde o recurso a nanopartículas de dióxido de titânio nos cremes solares mas esqueceu-se, à semelhança de outras agências governamentais, de assegurar a defesa ambiental, em especial o meio aquático.

A pergunta que se poderá colocar é se estas falhas e as características da nanotecnologia justifi cam uma regulação própria, ou se não se poderá aproveitar, melhorando a afi nando, a moldura existente. Afi nal, as aplicações e produtos com potencial impacto signifi cativo são meras especulações, um cenário de futuro que, por natureza, não é certo – além de que se assemelha, à partida, à introdução de novidades como em qualquer outra tecnologia, havendo já um sem número de previsões de avaliação de risco que podem ser empregues. Bastaria acrescentar o tamanho como mais um dos parâmetros defi nidores da substância a aprovar. No entanto, só com um tratamento transversal se consegue uma aplicação uniforme (ou pelo menos harmonizada) e coerente da precaução no âmbito da nanotecnologia e da nanociência.

Resumindo: apenas com uma abordagem guiada pelo tipo de tecnologia (nano) se poderá procurar evitar ou minimizar a repetição de episódios confl ituosos do passado. Importa, portanto, tirar as devidas lições dos mediáticos casos dos OGM, da clonagem, da biotecnologia ou do nuclear. Estranhamente, contudo, os erros reiteraram-se.

5.3. Estados-Unidos

Nos Estados-Unidos63, em 2006, Berkeley foi o primeiro município a regular a nanotecnologia depois de um pedido de licenciamentode um laboratório especializado. Malgrado a pouca informação disponível, defi niu-se a obrigação (vinculativa), para todas as instalações que fabriquem ou utilizem nanopartículas, de preenchimentode relatórios a entregar aos serviços municipais quanto à forma como, em segurança, manipulam, monitorizam, contêm, dispõem, inventariam e previnem fugas destes materiais. Já a cidade de Cambridge, Massachusetts, em vez de implementar medidas de partilha obrigatória de informação, preferiu, em 2007, uma abordagemvoluntária e de colaboração com um inquérito e avaliação aospromotores locais e a criação de um programa de assistência técnica para a promoção das melhores práticas em matéria de segurança e saúde.

O Estado da Califórnia, por sua vez, aprova em 2006 o Assembly Bill 289 que autoriza o Department of Toxic Substances Control (DTSC) da EPA californiana e outras agências a solicitar informação aos importadores e produtores de químsicos que utilizem nanomateriais e nanotecnologias sobre os seus impactos ambientais e na saúde e sobre as metodologias e técnicas de testes empregues. No fi nal de 2010, o DTSC inicia a segunda chamada de informação química para seis nanomateriais dirigida a cerca de quarenta promotores com o objectivo de identifi car falhas informativas e de aprofundar

63 Por todos, Gary MARCHANT / Douglas SYLVESTER / Kenneth W. ABBOTT (s.d.), Nanotechnology regulation: the United States Approach, Arizona State University, Gregory N. Mandel (2007), Nanotechnology Governance, Alabama Law Review, vol. 59, nº 5, pp. 1345 segs; Katharine A. VAN TASSEL /Rose H. GOLDMAN (2011), The Growing Consumer Exposure to Nanotechnology in Everyday Products: Regulating Innovative Technologies in Light of Lessons from the Past, Connecticut Law Review, vol. 44, nº 2.

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o conhecimento sobre as práticas de análise, destino, transporte ou qualquer outro dado relevante no plano da segurança e saúde.

A nível federal, a FDA tem optado por não criar uma regulação específi ca para a nanotecnologia, particularmente quanto à rotulagem, alargando a já existente quando considera necessário64. Apesar dessa tomada de posição, implementou uma Task Force para a nanociência e tem desenvolvido algum brainstorming sobre o caminho regulatório. Neste momento, as orientações são uma regulação procedimental e substantiva baseada no conhecimento científi co e primordialmente casuística, isto é focada no produto. Esta abordagem implica uma aplicação diferenciada de standards jurídicos consoante a classifi cação dos produtos. Por exemplo, os aditivos alimentares são considerados seguros quando existe uma certeza razoável de não serem prejudiciais, enquanto que para os medicamentos a avaliação é feita não apenas com base no seu perfi l de risco mas também nos benefícios esperados. Ou seja, isto signifi ca que produtos que apresentem o mesmo nível de risco podem ser tratados de forma diversa em função do contexto.

Assim, nalguns casos, quando se encontram previstos procedimentos avaliativos pré-mercado, estes são estendidos aos nanomateriais, exigindo-se aos promotores a submissão de informação para responder a questões sobre segurança, efi cácia ou estatuto jurídico. Na ausência destes procedimentos prévios, a FDA encoraja processos de consulta para reduzir danos ambientais e humanos inesperados, designadamente a submissão voluntária de informação, reporte de impactos adversos e actividades de monitorização pós-mercado ou a procura de dados junto das autoridades antes da colocação do produto no mercado. A própria FDA conduz o acompanhamento pós-mercado de produtos com nanomateriais e oferece conselhos

64 http://www.fda.gov/ScienceResearch/SpecialTopics/Nanotechnology/default.htm. Criticando fortemente a abordagem Americana, por todos, Albert C. LIN (2007), Size Matters: Regulating nanotechnology, Harvard Environmental Law Review, nº 31, pp. 361 segs.

técnicos e orientações aos promotores para o cumprimento das suas obrigações legais.

A EPA, por seu turno, aposta, desde 2008, num programa voluntário intitulado Nanoscale Materials Stewardship Program, através do qual pretende encorajar os promotores (produtores e consumidores desta tecnologia) a partilhar informação sobre nanomateriais, em particular sobre as suas características, riscos, utilização, exposição potencial e práticas e procedimentos de gestão de risco, que depois difunde pelos interessados, sobretudo quando envolvem as melhores práticas. Este programa vem, no entanto, sendo alvo de críticas internas por ser demasiado limitado e pouco efi ciente na troca de dados.

De resto, e deixando de lado a intervenção de outras agências como a Occupational Health and Safety Administration (OSHA) para as condições de trabalho, a Consumer Product Safety Commission para a protecção dos consumidores ou o Department of Agriculture no campo da alimentação, importa sublinhar a criação, em 2000, na Casa Branca, da National Nanotechnology Initiative (NNI) que procura coordenar a investigação em torno da nanotecnologia e a actividade de vinte e cinco agências federais, transformando-se no programa central através do qual é canalizado o fi nanciamento federal para a nanotecnologia.

Por fi m, em 2010, é apresentada uma proposta ao Senado para um Nanotechnology Safety Act que acaba por nunca ver a luz do dia. O seu propósito, todavia, era bastante mole e sem apelos regulatórios, visto que pretendia apenas que a FDA prosseguisse a pesquisa no âmbito da nanotoxicidade e a criação de um gestor para coordenar o trabalho das várias agências.

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5.4. União Europeia

A nível da União Europeia65, a abordagem da nanotecnologia tem sido mais elaborada e proactiva, possivelmente devido à experiênciacom os OGM66, o que, contudo, não signifi ca um tratamento homogéneoe sistematizado e nem sequer congruente. Tal como nos Estados-Unidos opta-se por uma abordagem sectorial e de produto, em vez de baseada na tecnologia como ensaiado na biotecnologia agrícola.

Em 2004, a Comissão Europeia apresenta a Comunicação67 “Para uma Estratégia Europeia sobre Nanotecnologias” que pretende motivar o debate em torno da nanotecnologia, mormente ao nível institucional, e propor uma abordagem responsável e integrada. Este primeiro passo abre as portas à preparação de um Plano de Acção quinquenal68 em 2005 com a consagração de várias acções articuladas e interligadas para o tratamento e implementação imediatos de medidas de garantia de uma nanociência segura, refl ectida e integrada de acordo com as prioridades identifi cadas na Estratégia europeia. O seu primeiro relatório de execução de 200769 dá conta, entre outros aspectos, da intenção da Comissão de adoptar um código de conduta de carácter voluntário para a investigação responsável sobre nanociência e nanotecnologia, ideia retomada

65 Por todos, Joel D’SILVA / Geert van CALSTER (2009), Taking Temperature – A Review of European Union Regulation in Nanomedicine, European Journal of Health Law, nº 16.

66 Robert FALKNER / Nico JASPERS (2012), Regulating Nanotechnologies: Risk, Uncertainty and the Global Governance Gap, Global Environmental Politics, pp. 12(1), 15-16.

67 COM (2004) 338, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechonology/pdf/nano_com_pt.pdf.

68 Comunicação da Comissão Europeia, Nanociências e Nanotecnologias: Plano de Acção para a Europa 2005-2009, COM (2005) 243, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechonology/pdf/nano_action_plan2005_pt.pdf.

69 COM (2007) 505 fi nal, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2007:0505:FIN:PT:PDF.

posteriormente na Comunicação de 200870, e de criar um observatório que efectue avaliações dinâmicas do desenvolvimento e utilização das nanotecnologias, para permitir às partes interessadas compreender as questões potenciais e críticas e proporcionar um sistema de “alerta precoce” para as instituições europeias e para os Estados-Membros.

Em matéria de regulamentação, num esforço de avaliação da legislação existente no âmbito de segurança ambiental e na saúde, reconhece-se a possibilidade e adequação da sua aplicação à nanotecnologia, até com algumas alterações casuísticas devido às suas características e à detecção de lacunas ou na decorrência de desenvolvimento do conhecimento científi co. Os dois relatórios sobre o quadro regulatório71, além de passarem em revista os vários diplomas aplicáveis em áreas como a segurança dos trabalhadores, o ambiente ou químicos e de avaliarem a sua implementação, em especial quanto à base científi ca, informação aos consumidores e supervisão do mercado, sugerem que este é um trabalho em construção mas que a Europa está dotada de mecanismos de salvaguarda e de intervenção em situação de risco com produtos colocados no mercado. Dos seus textos parece decorrer que, na globalidade, o enquadramento existente, ainda se disperso, se mostra adequado ao actual estádio de desenvolvimento econhecimento em torno da nanotecnologia. Porém, podem observar-se incongruências tais como variações de humor da Comissão que ora apela a moratórias e a aplicações mais restritivas do princípio da precaução na Comunicação sobre o código de conduta, ora defendenos relatórios regulatórios a adequação da legislação vigente e exorta os

70 Comunicação da Comissão, Recommendation on a code of conduct for responsible nanosciences and nanotechnologies research, C (2008) 424 fi nal, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechonology/pdf/nanocode-rec_pe0894c_en.pdf.

71 COM (2008) 366, disponível em http://ec.europa.eu/nanotechonology/pdf/comm_2008_0366_en.pdf; COM (2012) 572, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2012:0572:FIN:pt:PDF.

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benefícios da nanotecnologia. De igual forma, se em 2008 a Comissão reconhece apenas a necessidade de algum aperfeiçoamento da legislação existente, o Parlamento72 discorda e encoraja a adopção de legislação específi ca, posição que não parece convencer totalmente aquela, considerando o relatório de 2012, muito embora motive algumas alterações legislativas como em matéria de cosméticos e, em elaboração, na área alimentar com deveres de rotulagem e de testes pré-mercado. Em suma, o tratamento fragmentado mantém-se.

Uma das principais vias de regulação da nanotecnologia passa pela extensão do regulamento REACH73 aos nanomateriais por se enquadrarem na sua defi nição de substância apesar de não haver requisitos explicitamente previstos. Aliás, a Comissão no seu segundo relatório de regulação assume que está convencida de que o REACHestabelece o melhor quadro possível para a gestão dos riscos dos nanomateriais quando ocorrem como substâncias ou misturas, mesmo sendo necessários mais requisitos específi cos para os nanomateriais.

A aplicação do REACH obriga à identifi cação da nanosubstância tal como a submissão a vários procedimentos: registo, avaliação, autorização e restrição com base na informação recolhida. Posto de outra forma, as empresas são responsáveis por recolher dados sobre as propriedades e utilizações das substâncias que fabricam ou importam em quantidades iguais ou superiores a uma tonelada por ano, devendo efectuar uma avaliação dos seus potenciais perigos e riscos inerentes às substâncias. Para quantidades iguais ou superiores a dez toneladas por ano, o pedido deve ser acompanhado de um relatório de avaliação da sua segurança química, designadamente apresentando informação sobre o perigo da substância em causa para a saúdehumana, o ambiente e susceptibilidade de bioacumulação. Veja-se

72 European Parliament Resolution, of 24 April 2009, on Regulatory Aspects of Nanomaterials.

73 Regulamento (CE) nº 1907/2006, disponível em http://echa.europa.eu/web/guest/regulations/reach/legislation.

a este propósito que estes patamares quantitativos são desadequados para os nanomateriais, afastando-os de procedimentos que incarnam uma forte preocupação precaucionária, motivadora inclusivamente de uma inversão do ónus da prova74.

Por seu turno, a Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA) e os Estados-Membros avaliam as informações apresentadas de modo a aferir a qualidade dos dossiers de registo e das propostas de ensaios e verifi cam a perigosidade de uma determinada substância para a saúde humana ou para o ambiente. Só depois, o procedimento de autorização visa assegurar que os riscos associados às substâncias que suscitam elevada preocupação são devidamente controlados e que estas são gradualmente substituídas por alternativas adequadas, sem entraves ao bom funcionamento do mercado interno da UE. No entanto, em certas condições, maxime de perigosidade, a imposição de restrições constitui um meio para a protecção da saúde humana e do ambiente face a riscos inaceitáveis. As restrições podem limitar ou proibir o fabrico, a colocação no mercado ou a utilização de uma substância.

Neste sector aplica-se igualmente à nanotecnologia o RegulamentoCRE75 que tem como principal preocupação a comunicação aos consumidores e trabalhadores dos riscos de substâncias químicas, especifi camente através de procedimentos de classifi cação e de rotulagem por via de fi chas de dados de segurança com informação sobre as propriedades físicas, químicas e de risco da substância ou mistura, assim como instruções sobre o seu manuseamento, transporte e descarte, primeiros socorros, incêndios e medidas de controlo de exposição. Para fomentar e melhorar o acesso e a partilha de informação recebida dos produtores e exportadores, prevê-se um inventário de

74 H. PEREIRA DE MELO (s.d.), pp. 11-12.75 Regulamento (CE) nº 1272/2008 (já alterado), disponível em http://echa.

europa.eu/web/guest/regulations/clp/legislation.

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classifi cação e de rotulagem de substâncias notifi cadas e registadas, instrumento fundamental para se poder pensar numa regulação mais sistematizada da nanotecnologia.

Nesta linha de tratamento sectorial e de aproveitamento da legislação existente, recordem-se apenas76:

• A Directiva Quadro nº 89/391/CEE, para a protecção dos trabalhadores (isto para já não entrar em Directivas mais específi cas

como as relativas ao risco de agentes químicos no local de trabalho ou equipamento de protecção) que prevê, por um lado, a obrigação de avaliação do risco por parte dos empregadores e de tomada de medidas para o eliminar se identifi cado e, por outro, de acordo com os artigos 11º e 12º o dever de consulta aos trabalhadores ou aos seus representantes quanto às condições e ambiente de trabalho no caso de planeamento e introdução de novas tecnologias.

• A Directiva nº 2001/95/CE, sobre a segurança geral dos produtos (entre tantas outras sobre produtos).

• As Directivas IPPC e Seveso II, a Directiva quadro da água nº 2000/60 ou a Directiva nº 2006/12/CE sobre resíduos (entre tantas outras), quanto à protecção ambiental.

A União Europeia tem igualmente desenvolvido uma abordagem produto a produto. Em 2008, por exemplo, decidiu-se não isentarde registo o carbono e a grafi te no âmbito do REACH devido apreocupações de segurança em torno de certos nanotubos. No campoda segurança alimentar, a autoridade europeia para o sector, a EFSA, apresenta avaliações científi cas com dúvidas sobre a segurança da nanoprata enquanto suplemento alimentar e sobre o dióxido desilicone nanoestruturado e o nitrido de titânio em materiais de contacto alimentar.

76 Para maiores desenvolvimentos e considerações, vejam-se os dois relatórios de regulação da Comissão e H. PEREIRA DE MELO (s.d.).

5.5. Direito internacional

A regulação das nanociências tem, como se vê, sido sobretudo desenvolvida ao nível nacional e regional (UE), observando-se poucos esforços no plano internacional. Ora, a rápida expansão de produtos contendo nanomateriais com a sua comercialização transnacional e a troca de informação entre cientistas deixa antever a urgência de se começar a preparar uma cooperação e enquadramento internacionais,até porque depois de colocados no mercado os nanomateriais não inventariados e identifi cados são praticamente insusceptíveis de rastreamento e monitorização potenciando confl itos comerciais e medos irracionais.77

A questão de fundo é a de saber qual o melhor nível regulatório para a nanotecnologia, isto é se deve ser uma abordagem de cima (internacional) para baixo (nacional) ou de baixo para cima e, em última análise, se fará sentido sequer equacionar uma qualquer tentativa deregulação transnacional para promover e controlar o desenvolvimento da nanotecnologia. Na verdade, qualquer uma das abordagens tem vantagens e desvantagens (maior ou menor exequibilidade, aceitabilidade, adequação, harmonização, experimentação, aprendizagem, concorrência, custo, confl ito, entre outros) mas na prática observa-se uma tendência para uma solução de baixo para cima.

Com efeito, apenas um debate tímido sobre coordenação internacional foi sendo encetado na OCDE, no PNUA e na OMC. No âmbito da primeira realizaram-se duas conferências sobre a segurança da nanotecnologia e organizaram-se dois grupos de trabalho constituídos por vários stakeholders para a coordenação da investigação em torno da avaliação de risco e para partilha de informação. O seu papel regulatório é pois irrelevante. No caso do PNUA, sobressai, em 2006, a adopção da Strategic Approach to International ChemicalsManagement que abre as portas ao debate sobre a nanotecnologia,

77 R. FALKNER / N. JASPERS (2012).

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conduzindo a recomendações, três anos mais tarde, para aumentar a troca de informação científi ca, reforçar a investigação quanto a aspectos de segurança e promover o diálogo entre governos e interessados.

Já quanto à OMC, possivelmente, neste momento, o melhor fórum para o tratamento dos desafi os da nanotecnologia, sublinhe-se a sua Declaração de Dakar de 2008 sobre nanotecnologia e nanomateriais manufacturados, que exorta uma maior cooperação internacional, em especial na partilha de informação e na avaliação do risco. Entre várias recomendações, de evidenciar o apelo à utilização do princípio da precaução (sem nunca o densifi car) na gestão dos riscos ao longo da vida dos nanomateriais e à análise sobre a exequibilidade do desenvolvimento de códigos de conduta globais. Seria, no entantode esperar por parte da OMC, à luz de experiências anteriores, um maior empenho, preventivo de confl itos mesmo se parte do seu acervo jurídico possa, em teoria, ser aplicado. Nesta linha, convém relembrar que, à semelhança do que sucede no foro nacional, existem instrumentos internacionais susceptíveis de serem estendidos às nanociências, desde convenções ambientais a acordos de não proliferação de armas, passando pela protecção dos direitos humanos.

Em suma, os problemas enfrentados pelo legislador internacional assemelham-se em muito com os do regulador nacional e regional: a falta de informação e a constante evolução científi ca. No entanto, o desafi o é maior e mais oneroso (atente-se aos custos de transacção) pela necessidade de coadunar sensibilidades e expectativas muito diferentes quanto à nanotecnologia, que vão desde a desconfi ança ao maior dos entusiasmos, motivadas quer por percepções mais ou menos distorcidas quer por interesses comerciais. Talvez por esta razão, os esforços internacionais se mostrem muitíssimo incipientes e exploratórios e não haja qualquer dimensão de governança nesta matéria que raramente surge na agenda. Tal não signifi ca, contudo, que a regulação transnacional não faça sentido78.

78 Kenneth W. ABBOTT / Gary E. MARCHANT / Douglas J. SYLVESTER (2006), A Framework Convention for Nanotechnology?, Environmental Law

Veja-se que deixar a regulação em primeira mão aos Estados potencia caminhos diferentes e consequentemente confl ituosos. Os OGM são paradigmáticos. Ora, na breve análise realizada acima, sobre os ordenamentos americano e europeu, pesem as semelhanças, insinuam-se já diferenças, particularmente quanto à densifi cação da precaução, com os europeus mais avessos a riscos. Por outro lado, a opção nacional pode alimentar uma corrida para o fundo, numa concorrência nada saudável, com o abaixamento dos padrões de segurança, em que a descoordenação internacional pode ser catastrófi ca ou, ao contrário, fomentar um proteccionismo estéril com refl exos nefastos na partilha de informação e progresso científi co. Isto claro para não falar da tendência para ignorar os efeitos transnacionais. Afi nal, os cidadãos dos países vizinhos não são eleitores nacionais.

Alinhando pela importância e oportunidade de uma solução internacional coordenada, vários modelos podem ser considerados, de mecanismos de soft law, começando em fóruns informais de discussão ou painéis institucionalizados de peritos para incentivar a partilha de informação sobre a nanotecnologia, os seus riscos e a sua gestão e regulação, a instrumentos de hard law mais ou menos precisos, de uma convenção-quadro a um tratado cheio de obrigações substantivas e procedimentais, integrado numa estrutura institucional com secretariado, painel intergovernamental79.

Do que acima se defendeu a propósito da soft law, também aqui o caminho deverá ser incremental mas no sentido de um tratamento transversal do tema baseado no tipo de tecnologia e não produto--a-produto ou sectorial. Neste momento, e face ao estádio de

Reporter; idem (s.d.), What Does the History of Technology Regulation Teach Us About Nano Oversight?, pp. 14 segs, disponível emhttp://ssrn.com/abstract =147044.

79 Kenneth W. ABBOT [et al.] (s.d.), International Regulatory Regimes for Nanotechnologies, Arizona State University; Kenneth W. ABBOTT / Douglas S. SYLVESTER / Gary E. MARCHANT (2009), Transnational Regulation of Nanotechnology: Reality or Romanticism?, disponível em http://ssrn.com/abstract =1424697.

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conhecimento, além das formas mais moles como grupos de trabalho ou códigos de conduta que preparam o trilho para uma regulação adequada graças às oportunidades de diálogo e de aprendizagem, parece haver condições para se pensar na redacção de uma convenção-quadro80, até para aproveitar o optimismo (volúvel) que reina em torno dananotecnologia antes que ventos de alarmismo e catastrofi smo minem a susceptibilidade de se chegar a um acordo.

Pegando no paradigma do Direito internacional do ambiente (e sem querer aqui entrar na discussão sobre a sua autonomia científi ca), o objectivo deste tipo de instrumento é dar o pontapé de lançamentona discussão, colaboração e na troca e aprofundamento de informação, delimitando e orientando-a, designadamente através da defi nição do seu âmbito de aplicação, de grandes objectivos, da sistematização de princípios e de alguma institucionalização e procedimentos. É, aliás, frequente este modelo de convenção optar por não estabelecer um assinalável número de obrigações substantivas, deixando-as para protocolos subsequentes ou para decisões de conferências das partes que vão aperfeiçoando a malha jurídica.

Uma convenção-quadro, nesta fase, deveria, deste modo, promover o conhecimento e a cooperação entre stakeholders, incluindo o envolvimento de países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, assim como a convergência principiológica e de standards, em especial quanto à gestão do risco. Desta forma, estar-se-ia a construir a base para uma governança internacional em matéria de nanotecnologia capaz de responder à altura dos desafi os81.

80 K. W. ABBOTT / G. E. MARCHANT / D. J. SYLVESTER (2006).81 G. N. MANDEL (2007); K. W. ABBOTT / D. S. SYLVESTER / G. E.

MARCHANT (2009); (2006) e (s.d.).

6. Considerações finais

Para encerrar, deixam-se aqui algumas notas fi nais que pretendem resumir e, ao mesmo tempo, requalifi car as considerações tecidas ao longo das últimas páginas.

Em primeiro lugar, reiterar a importância da atenção e gestão da percepção pública de modo a evitar reacções irracionais ànanotecnologia. O julgamento individual deve ser, preferencialmente, prevenido e preservado e, só depois, corrigido em relação a fenómenos cognitivos, psicológicos e emocionais que geram fenómenos de polarização e de surdez extremas. Infelizmente, o seu combate é complexo, uma vez que as percepções distorcidas se revelam pegajosas e robustas. É pois imperiosa uma intervenção precoce a este nível e que o debate inicial se reja por considerações éticas e de verdade científi ca, mesmo se tal signifi que reconhecer total ignorância. Um cuidado especial com a forma de comunicação, mormente com o seu enquadramento e linguagem – veja-se a tradução do jargão hermético da ciência para um discurso mais próximo dos leigos –,impõe-se de maneira a garantir uma participação alargada e informada no debate. Posto de outra forma, interessa traduzir uma miríade de dados e factos em debate cultural e normativo. Inevitavelmente, o caminho assemelha-se pedregoso.

Tal não signifi ca, porém, que nos devamos render. Um trilho incremental, em que se avança por passos pequenos mas seguros, de um instrumento de soft law com medidas caracterizadas pela sua plasticidade, adaptabilidade, descentralização e inovação para uma hard law com obrigações substantivas e procedimentais, institucionalizadas e acompanhadas de um sistema de cumprimento, possibilita, ainda por cima de forma pouco onerosa, uma produtiva construção da confi ança geradora de consensos e preventora de confl itos.

Daqui se retira que a actual abordagem reguladora da nanotecnologia tem, em parte, falhado, especialmente quando se observa, sobretudo no patamar nacional e regional, um tratamento fragmentado com soluções diferentes para o mesmo nível de risco e um quase silêncio

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nas esferas internacionais. Afi nal, olhando para aqueles que serão, com certeza, os modelos regulatórios – os ordenamentos americanoe europeu –, apesar das semelhanças, indiciam pelas recentesmovimentações precaucionárias europeias uma possível divergência, antevendo-se uma reposição de confl itos tecnológicos anteriores. Mais, a sua tendencial descoordenação revela igualmente os perigos dos potenciais custos sociais e económicos de uma regulação mal desenhada, cimentada em reacções, maus modelos de gestão de risco e em apelos paternalísticos.

Propõe-se, assim e desde já, o desenho de um enquadramento transversal baseado, numa primeira fase, na plasticidade e melhor aceitabilidade de medidas moles que, de forma refl exiva, cooperativa e progressiva devem ir endurecendo harmonizadas graças ao poder das normas sociais e a uma convenção-quadro internacional de natureza essencialmente principiológica cujo cunho ofi cial empresta segurança e seriedade à solução. Os seus objectivos primordiais devem centrar-se na recolha, aprofundamento e partilha de informação e de conhecimento, mormente sobre risco, na resolução de lacunas, na coordenação, envolvimento e acompanhamento dos vários interessados82.

Em suma, tivesse João da Ega escrito (nos dias de hoje) as suas “Memórias de um Átomo”, os tempos de rápida globalização científi cae comercial da nanotecnologia exigiriam, na sua viagem, uma governança internacional nesta matéria de modo a contrariar um diletantismo intelectual e político pervertível, empobrecedor e infrutífero.

82 Gregory N. MANDEL (2009), Regulating Emerging Technologies, Temple University, Research Paper, nº 2009-18; idem (2007).

Capítulo IX

“Frankenorganismos”: os organismos geneticamente modificados (OGM) no Direito internacional, entre a precaução e o desenvolvimento sustentado

Rute Saraiva

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: 1. Introdução; 2. No Direito internacional do ambiente; 3. No Direito internacional económico, a OMC em especial; 4. No Direito internacional dos direitos humanos; 5. Conclusão.

1. Introdução

As profecias malthusianas de escassez de bens para uma população crescente em termos geométricos associadas à fronteira das possibilidades de produção num planeta fi nito vêm sendo adiadas pelo engenho humano graças a inovação e desenvolvimento tecnológico. A biotecnologia e os OGM1 representam mais um passo na revolução verde mas, apesar das promessas de benefícios, a percepção dos riscos conexos, tanto para o ambiente como para a saúde humana, e as preocupações éticas quanto à sua utilização suscitam reacções proteccionistas, por vezes viscerais, baseadas no princípio da precaução que vêm alterando o mercado. Afi nal, perante o alarmismo e resistência declarada dos consumidores, embora com diferenças geográfi cas e demográfi cas,

1 Em especial com a aprovação do Protocolo de Cartagena, é frequente encontrar a referência a organismos vivos modifi cados. Apesar desta ser a terminologia internacional, opta-se por OGM pela sua popularidade, em particular em Portugal.Tal não signifi ca, porém, que ambos os conceitos coincidam. Por exemplo bolachas feitas com cereais transgénicos ou calças com algodão transgénico não constituem organismos vivos (pelo que estarão fora do âmbito de instrumentos como o protocolo de Cartagena).

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a indústria biotecnológica tem optado por redirigir boa parte da investigação e do investimento para os biocombustíveis e alimentação animal 2.

A complexidade e a transversalidade da problemática da biotecnologia e dos OGM, em especial, pela sua dimensão humana, ambiental, alimentar e comercial, já para não mencionar de propriedade intelectual, obriga, num mundo cada vez mais global e na procura de um “jogo de soma positiva”3 de desenvolvimento sustentado entre o crescimento económico, a garantia dos direitos humanos e a protecção ambiental, a um enquadramento jurídico internacional.

Rapidamente se compreenderá que, perante a multiplicidade de interesses em jogo, nem sempre consonantes e em constante mutação, não se torne fácil a construção de uma moldura jurídica fechada que os consiga gerir adequadamente. Mais, num plano de frágil imperatividade e coercibilidade como o do Direito internacional, em que apesar de instrumentos jurídicos de hard law e existência

2 Vários ensaios experimentais observam, a propósito dos OGM, uma discrepânciaentre a disposição declarada e revelada no consumo de OGM, com o seu consumo a ser infl uenciado pelo abaixamento dos preços. Ademais, geográfi ca e demografi camente a aceitação dos OGM demonstra variações. W. K. HALLMAN [et al.] (2003), Public Perceptions of Genetically Modifi ed Foods: A National Study of American Knowledge and Opinion, Food Policy Institute, Cook College, Rutgers – The State University of New Jersey, Pub. nº RR- 1003-004, New Brunswick, New Jersey; Wen S. CHERN [et al.] (2002), Consumer acceptance and willingness to pay for genetically modifi ed vegetable oil and salmon: a multiple country assessment, AgBioForum, 5(3); John G. KNIGHT / Damien W. MATHER / David K. HOLDSWORTH (s.d.), Consumer Benefi ts and Acceptance of GeneticallyModifi ed Food, Marketing Department – Otago School of Business, Dunedin; Jill J. MCCLUSKEY [et al.] (2003), Consumer Attitudes and Willingness to Pay for Genetically Modifi ed Foods: A Cross-Country Comparison, in Biotechnology:Science and Society at a Crossroad, National Agricultural Biotechnology Council; Sylvie BONNY (2003). Why are most Europeans opposed to GMOs? Factors explaining rejection in France and Europe, Electronic Journal of Biotechnology, vol. 6, nº 1.

3 Aguinaldo ALEMAR / Samuel do Carmo LIMA (2006), Desenvolvimento econômico, organismos geneticamente modifi cados e Direito internacional: um jogo de soma zero?, Revista Caminhos da Geografi a, vol. 7, nº 19, pp. 11-12.

de meios de resolução de litígios e de sancionamento, a política da força e dos números ainda impera sobre o estritamente jurídico, não será de estranhar alguma falta de maior substanciação obrigacional e silêncios, por vezes estratégicos, sobre a conjugação das várias fontes de Direito relativos aos diferentes aspectos da questão dos transgénicos.

Sem querer entrar em discussões dogmáticas sobre autonomias científi cas ou terminológicas, que extravasam o cerne deste trabalho, analisa-se a problemática dos OGM na perspectiva dos três principais ramos de Direito internacional invocados pela doutrina e, nas instituições internacionais, pelos stakeholders, a saber, Direito internacional do ambiente, Direito Internacional Económico e Direito Internacional dos direitos humanos. Como fi o condutor deste roteiro, surgem dois princípios omnipresentes no debate – a precaução e o desenvolvimento sustentado –, umas vezes com sentidos convergentes, em que o primeiro é condição do segundo, outras divergentes, em que aquele impede este. Mais do que defi ni-los e recortá-los em abstracto, o que aliás já se tentou noutra sede4 (e que, além disso seriauma empreitada digna de um tratamento individualizado e mais aprofundado), procura-se compreender o seu papel na polémica sobre a biotecnologia.

2. No Direito internacional do ambiente

A Convenção sobre a Biodiversidade5, fruto do ímpeto ambientalista da Conferência do Rio, em 1992, representa o primeiro verdadeiro tratado internacional a abordar de forma holística a biodiversidade, i.e. foge ao parcelamento habitual em termos de espécies, inclusive

4 Rute SARAIVA (2009), A Herança de Quioto em Clima de Incerteza. Análise Económica do Mercado de Emissões num Quadro de Desenvolvimento Sustentado, Tese de Doutoramento, FDUL, pp. 224 segs e 277 segs.

5 http://www.cbd.int/.

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em perigo ou em vias de extinção, ou de habitats ou até mesmo de distinção entre espécies úteis e não úteis para o Homem6, compreendendo a intangibilidade da diversidade biológica e a impossibilidade de proteger individualmente uma espécie desligada de um contextode ecossistema7 e fugindo, assim, à tendência antropocêntrica e estritamente utilitarista dos primeiros esforços conservacionistas8.

Não se retire daqui, contudo, um entendimento ecocêntrico ou de defesa do valor intrínseco da natureza. Ao estender a sua aplicação

desde a conservação e uso sustentados dos recursos bióticos e abióticos à ponderação de garantias de segurança na utilização da biotecnologia e dos OGM, num jogo de equilíbrios delicados entre dois princípios controversos – desenvolvimento sustentado9 e precaução10 – a Convenção inclina-se para um antropocentrismo

6 A título exemplifi cativo, recordem-se a Convenção de 1902 sobre as aves úteis para a agricultura, a CITES, a Convenção de Ramsar ou a Convenção de Bona de 1979 sobre conservação de animais migratórios selvagens.

7 David M. ONG (2010), International Environmental Law governing threats to biological diversity, in Malgosia FITZMAURICE / David M. ONG / Panos MERKOURIS (eds.) Research Handbook on International Environmental Law, Edward Elgar, Cheltenham, pp. 519-522 e 533. Ainda assim, tal não impede, ao longo das várias Conferências das Partes (COP) que se venha progressivamente a deitarum olhar mais específi co, designadamente sobre a biodiversidade agrícola, a biodiversidade insular, a biodiversidade em zonas húmidas, entre outras. Sobre este ponto, Philippe SANDS [et al.] (2012), Principles of International Environmental Law, 3ª ed., Cambridge University Press, p. 462.

8 Paulo CANELAS DE CASTRO (1994), Mutações e Constâncias do Di-reito Internacional do Ambiente, RJUA, nº 2, pp. 146-148; Alexandre KISS / Dinah SHELTON (1991), International Environmental Law, Transnacional Publisher, pp. 33-34.

9 Vejam-se as várias referências a uso sustentável da biodiversidade no Preâmbulo e ao longo da Convenção, e, em particular, a defi nição no artigo 2º e a sua consubstanciação no artigo 10º.

10 Veja-se, em especial, o considerando do preâmbulo que estabelece que “quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científi ca não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça”. Considerando esta formulação

mitigado, ou seja, intergeracional, e aceita um compromisso desustentabilidade (embora não seja claro se forte ou fraca) que mitigaos ensejos puramente conservacionistas. A aceitação dos OGM, mesmo se balizada, reforça esta lógica de procura de “jogo de soma positiva”.

Com efeito, a Convenção sobre a Biodiversidade não adopta uma postura rígida de preservacionismo tipo deep ecology ou de sustentabilidade forte, abrindo-se a desenvolvimentos tecnológicos, até pelo seu potencial de desenvolvimento e de combate da pobreza, embora com algumas cautelas. Aliás, uma das razões por trás da elaboração da Convenção radica nos receios em torno dos impactos dos OGM na biodiversidade e de testes biotecnológicos realizados em países em vias de desenvolvimento.11 No fundo, o desenho alcançado espelha a verifi cação e conjugação de vários factores simultâneos12, a saber a observação de uma redução anormal e de riscos acrescidos para a diversidade biológica; uma procura acrescida de recursos naturais, em especial motivada pela biotecnologia; a concentração da biodiversidade em países menos desenvolvidos e em vias de desenvolvimento; a concentração nos países ricos da pesquisa e desenvolvimento em torno da exploração dos recursos biológicos; e uma divergência na abordagem ético-fi losófi ca quanto ao

como uma das mais puras do princípio da precaução, John M. van DYKE (2004), The Evolution and International Acceptance of the Precautionary Principle, in D.D. CARON / H. N. SCHEIBER (eds.), Bringing New Law to Ocean Waters,Koninklije Brill, p. 60. Especifi camente sobre a relação entre o Princípio da precaução e a Convenção sobre a Biodiversidade, Juan António HERRERA I. (2007), International Law and GMO’s: Can the precautionary principle protect biological diversity?, Boletín Mexicano de Derecho Comparado, año LX, nº 118.

11 Referindo o escândalo de testes americanos de vacinas geneticamente modifi cadas não autorizados na Argentina, em 1986, J. A. HERRERA I. (2007), p. 104.

12 Chidi OGUAMANAM (2013), Biological Diversity, in Shawkat ALAM [et al.] (ed.), Routledge Handbook of International Environmental Law, Routledge, Abington, Oxon, p. 208.

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ambiente, em particular considerando as comunidades locais e indígenas.Em suma, a velha tensão no binómio Economia-Ambiente e na aplicação conjugada dos princípios da precaução e do desenvolvimento sustentado.

A Convenção, que defi ne no seu artigo 2º biotecnologia como qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos ou seus derivados, para fabricar ou modifi carprodutos ou processos para utilização específi ca, procura uma solução compromissória. Por um lado, na alínea g) do seu artigo 8º, estipula, no âmbito da conservação in situ, o estabelecimento de meios para regulamentar, administrar ou controlar os riscos associados à utilização e libertação de OGM resultantes da biotecnologia que, comprobabilidade, provoquem impacto ambiental negativo que possa afectar a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, assim como apresentar riscos para a saúde humana. Por outro lado, o artigo 19º procura enquadrar a gestão da biotecnologia, sobretudo numa justa e equitativa distribuição de seus benefícios e resultados,privilegiando a participação efectiva dos países em desenvolvimento que providenciam os recursos genéticos para essa pesquisa (Estados que a Convenção parece reconhecer como os principais armazéns de biodiversidade e benefi ciários das suas disposições, maxime da soberania sobre os seus recursos biológicos).

Além disso, a Convenção consagra deveres de informação a fornecer ao Estado em que os OGM venham a ser introduzidos sobre a sua utilização e as normas de segurança exigidas para a sua manipulação, bem como sobre os seus potenciais efeitos negativos. Também com preocupações de segurança, insta-se à construção de um protocolo que estabeleça procedimentos adequados, inclusive, em especial, a concordância prévia fundamentada, no que respeita a transferência, manipulação e utilização seguras de todo OGM pela biotecnologia, que possa ter efeito negativo para a conservação e utilização sustentável da biodiversidade.

Em suma, o artigo 19º, para além desta componente programática, consubstancia, aparentemente, uma baixa exigência de precaução ponderada e temperada pelo critério (algo vago) de desenvolvimento

sustentado e de transparência, também patente na redacção do nº 1 do artigo 16º, com a admissão de algum grau de dano ou na alínea g) do artigo 8º com a referência a probabilidades (objectivas)/risco e não a incertezas (como no Preâmbulo). Com efeito, note-se que, ao contrário de quase todos os considerandos do Preâmbulo (por natureza não vinculativos), não se verifi ca uma transposição directa do ponto específi co relativo ao princípio da precaução, da mesma forma que nunca aí se menciona expressamente a biotecnologia ou os OGM.

Não parece, assim e ao contrário do defendido por alguns13, que a Convenção liberte o princípio da precaução de considerações económicas, incluindo dos custos das suas medidas, centrando-seexclusivamente nos aspectos ambientais, uma vez que deve ser compreendido em consonância com as reiteradas referências a uso e conservação sustentáveis e com os objectivos de desenvolvimento dos países mais pobres. Por outras palavras, o articulado distancia-se de uma interpretação anti-económica da precaução, integrando-a, ao contrário, no seio de um desenvolvimento sustentado.

Devido a uma maior procedimentalização operativa, esta leitura nãose assemelha, porém, tão linear no Protocolo de Cartagena referente àBiossegurança, adoptado a 29 de Janeiro de 2000 e em vigor desde 11 de Setembro de 2003, no seguimento do repto lançado pelo já acima mencionado nº 3 do artigo 19º da Convenção sobre a Biodiversidade e acolhido pelas decisões da COP II/V, IV/3, EM-I/1 e EM-I/3, criando esta última um Comité Intergovernamental ad hoc para o Protocolo, o ICCP, com mandato para conduzir a preparação necessária à realização do primeiro encontro das Partes14.

13 J. A. HERRERA I. (2007). 14 De acordo com o artigo 29º, com a entrada em vigor do Protocolo, a COP da

Convenção sobre a biodiversidade funciona igualmente como encontro das Partes (MOP) do Protocolo de Cartagena.

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Este Protocolo15, ratifi cado actualmente por 167 Partes Contratantes, incluindo Portugal desde Setembro de 2004, nasce no âmbito das tensas negociações internacionais em torno da circulação transfronteiriça, usoe manipulação de OGM com efeitos nefastos no ambiente, manifestando além disso preocupações com os impactos na saúde humana. De acordo com o seu artigo 1º, o seu principal objectivo prende-se coma procura de garantia de um nível adequado de protecção, radicado numa abordagem de precaução extraída expressamente do princípio 15 da Declaração do Rio (e igualmente invocada no Preâmbulo), noâmbito de transferência, manuseamento e utilização seguros de OGM resultantes da moderna biotecnologia que possam provocar efeitos adversos na conservação e uso sustentado da diversidade biológica, nãodescurando os riscos para a saúde humana, e focando-se sobretudo nos movimentos transfronteiriços. Exclui-se do seu âmbito, nos termos do artigo 5º, a aplicação aos OGM farmacêuticos para humanos e, de acordo com o artigo 6º, os OGM em trânsito ou destinados a uso contido, tal como defi nidos na alínea b) do artigo 3º.

À primeira vista, o Protocolo apresenta uma componenteprecaucionária muito mais vincada do que a Convenção, não só por deliberadamente assumir que se funda no Princípio 15 da Declaração do Rio mas também por uma menor prevalência do princípio do desenvolvimento sustentado (veja-se o número de vezes que a o adjectivo sustentável é empregue, tanto em termos absolutos como em comparação com a Convenção sobre a Biodiversidade), mesmo se referido en passant no preâmbulo a propósito da relação específi ca entre acordos comerciais e ambientais (e não da biotecnologia de per si, sublinhe-se). Acresce, um nº 6 do artigo 10º que consagra, num tom quase anti-económico, que “a ausência de certeza científi ca devida à insufi ciência das informações e dos conhecimentos científi cos relevantes sobre a dimensão dos efeitos adversos potenciais de um

15 http://bch.cbd.int/protocol/.

organismo vivo modifi cado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica na Parte importadora, levando também em conta os riscos para a saúde humana, não impedirá esta Parte, a fi m de evitar ou minimizar esses efeitos adversos potenciais, de tomar uma decisão, conforme o caso, sobre a importação do organismo vivo modifi cado em questão”.

Note-se, contudo, que a preocupação se centra na nova biotecnologia que se encontra aclarada, nos termos da alínea i) do artigo 3º, como envolvendo técnicas in vitro de ácido nucleico ou a fusão celular paraalém da família taxonómica, que ultrapassem limites de reprodução fi siológica natural ou de recombinação e que não constituam técnicas tradicionalmente empregues na criação e selecção. No fundo, pretende-se, numa única penada, abarcar as incertezas e riscos de uma sociedade de risco tecnológico em perfeita ebulição sem deitar por terra avanços já alcançados e utilizados, com anos de experiência e aparentemente sem consequências nefastas para o ambiente ou para a saúde. Diz-se aparentemente pois o artigo, além de não explicitar o que entende por tradicional e quais os critérios subjacentes à sua defi nição (objectivos – prática reiterada; e/ou subjectivos – convicção do seu uso?) – pese se possa fazer alguma ligação ao saber das comunidades locais e indígenas protegidas pela Convenção da Biodiversidade –, não acrescenta o requisito de inocuidade quanto às técnicas costumadas.

Assim, ou se assume, numa interpretação sistemática, que estas já comprovaram não serem prejudiciais no seu todo ou individualmente (ou pelo menos apresentam níveis aceitáveis de custos ambientais e de saúde), ou que se aceita a sua perigosidade. De qualquer forma, o legislador parece fazer uma diferenciação, já ensaiada noutros instrumentos jurídicos ambientais (como a lógica de grandfathering no comércio de emissões no combate às alterações climáticas), entre o passado e o futuro. Por outras palavras, oneram-se os novos agentese processos económicos com custos precaucionários, facto que, se não devidamente enquadrado em termos de proporcionalidade, nas suas três vertentes de necessidade, adequação e não excesso, se repercute

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num menor desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, económico com refl exos sociais e quiçá, paradoxalmente, até ambientais. Um enquadramento demasiado restritivo arquitectado a partir de uma lógica neofóbica de manutenção do status quo e in dubio pro ambiente pode, de igual modo, potenciar distorções concorrenciais em benefício de agentes e processos anacrónicos com efeitos de estagnação económica e de ameaça ao desejado desenvolvimento sustentado.

Ora, olhando para o Princípio 15 da Declaração do Rio, uma das versões mais repetidas da precaução, esta surge mitigada por quatro critérios cumulativos, dois económicos e dois de tipo científi co/informativo: a medida das capacidades dos Estados; a existência de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental; a ameaça de danos graves ou irreversíveis; a ausência de certeza científi ca absoluta. Ou seja, não se apregoa uma defesa incondicional do ambiente (e da saúde).

Bastante interessante é a recepção da dimensão da irreversibilidade, já ensaiada mais timidamente do ponto 9 do Preâmbulo da Convenção sobre a Biodiversidade.16 A este respeito, Sunstein17, nas suas incursões sobre a questão ambiental, identifi ca duas interpretações possíveis (mas não necessariamente conciliáveis). Por um lado, uma leitura operativa característica da Economia ambiental associada à manutenção de um valor de opção; por outro lado, um entendimento ético de incomensurabilidade qualitativa.

16 Retoma-se, sobre este ponto, R. Saraiva (2009), pp. 160 segs.17 Cass R. SUNSTEIN (2008), Two Conceptions of Irreversible Environ-

mental Harm, The University of Chicago, The Law School, John M. Olin Law & Economics Working Paper nº 407; e (2005), Irreversible or Catastrophic, The Law School, The University of Chicago, Public Law and Legal Theory Working Paper nº 88, Abril ou AEI-Brookings Joint Center Working Paper nº 05-04, Março.

No primeiro caso, recupera um estudo pioneiro e marcante de ARROW e FISHER18 em que os autores, a propósito da opção entrea preservação da fl oresta virgem de sequoias para recreação selvagem ou o seu corte para a indústria madeireira, alertam para a importância de se apurar se as autoridades podem ou não avaliar os custos e benefícios do desenvolvimento proposto. Na sua opinião, vale a pena pagar para esperar a obtenção de mais informação na hipótese do desenvolvimento causar alterações irreversíveis no ambiente, sobretudo com a perda dos benefícios perpétuos resultantes da opção de preservação. Em suma, sugerem que “os benefícios esperados de uma decisão irreversível devem ser ajustados para refl ectir a perda de opções que daí resulta”19, em especial quando as emissões se acumulam durante décadas.

Por outras palavras, mais esforços devem ser desenvolvidos na prevenção de danos irreversíveis do que no caso de reversibilidade:no confronto entre a possibilidade de irreversibilidade ou de reversibilidade e na situação de o decisor político não estar certo dos benefícios e custos da precaução, a ponderação de um valor de opção permite manter alguma fl exibilidade futura à medida que o conhecimento aumenta através do pagamento de um “prémio de irreversibilidade” (evitar danos irrecuperáveis)20. Como resume FISHER, “[q]uando um problema de decisão é caracterizado por (1) incerteza quanto aos custos e benefícios futuros de alternativas, (2) perspectivas para resolver ou reduzir a incerteza da passagem do

18 Kenneth J. ARROW / Anthony C. FISHER (1974), EnvironmentalPreservation, Uncertainty and Irreversibility, Quarterly Journal of Economics, vol. LXXXVIII, Maio.

19 K. ARROW / A. FISHER (1974), p. 319. No mesmo sentido, R. A. POSNER (2004), Catastrophe: Risk and Response, Oxford University Press, Nova Iorque, p. 162.

20 C. R. SUNSTEIN (2008), pp. 9-10; Charles WEISS (2003), Scientifi cUncertainty and Science-Based Precaution, International Environmental Agreements: Politics, Law and Economics, nº 3, p. 138.

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tempo, e (3) irreversibilidade de uma ou mais alternativas, um valor extra, um valor de opção, alia-se à(s) alternativa(s) reversível(is).”

Embora cativante, esta interpretação de pré-compromisso21 envolve alguns problemas, muitos dos quais ainda assim não convencem SUNSTEIN a abandonar a sua concepção de “agir e aprender”. Por um lado, a intervenção pronta pode fomentar o risco moral e uma apatia crescente em relação a passos futuros. Por outro lado, pode gerar desequilíbrios quiçá irreversíveis. Num contexto de escassez, a alocação de recursos para garantir um valor de opção implica a não satisfação de uma outra necessidade, nomeadamente presente, constituindo um custo irreversível22.

A irreversibilidade é, portanto, bilateral. Assim, pode manifestar-se uma tensão quanto à justiça intergeracional e intrageracional: gerações vindouras provavelmente mais sábias e com mais recursos são benefi ciadas em detrimento da geração hodierna, em particular de populações mais carenciadas como aquelas que já hoje seriam favorecidas pela generalização dos OGM e que não têm margem sócio-económica e fi nanceira para enveredar por políticas ambientais agressivas. Destarte, desviar meios para assegurar a possibilidade de escolha no futuro pode signifi car a morte no presente de milhares de pessoas ou a criação de um novo risco. Na sua tentativa arrogante de desempenhar o papel de Deus, o Homem pode tropeçar. Assumindo que o dever ético deve, em primeiro lugar, ser para com a geração actual e atendendo à curva de Kuznets ambiental, prefere-se menos intervenção em nome do futuro e mais investimento no presente, procurando, deste modo, responsabilizar cada geração pelas suas opções e acautelar, em primeira linha, a fl exibilidade presente até porque a relação entre a reversibilidade e a irreversibilidade é linear em termos cronológicos.

21 Anthony C. FISHER (2001), Uncertainty, Irreversibility, and the Timing of Climate Policy, Paper, p. 9.

22 C. R. SUNSTEIN (2008), pp. 10 segs e (2005), pp. 21 segs.

A decisão deve, pois, ser casuística, ponderando a informação sobreas probabilidades e a magnitude dos eventos e das suas alternativas e sobre os custos e benefícios de agir. Assim, mais facilmente a dimensão catastrófi ca (seriedade do risco23) irreversível da biodiversidade no global instiga a um pré-compromisso do que ao desaparecimento do milho ou da soja tradicionais.

A irreversibilidade ecológica prende-se, de forma simples, com o carácter defi nitivo da destruição de um bem ou serviço ambiental, ou seja com a impossibilidade ou elevada onerosidade (monetária, em recursos ou tempo) da sua restauração. Todavia, como recorda Sunstein24, “[q]ualquer morte, de qualquer criatura, é irreversível, e o que é verdade para as criaturas vivas também é verdade para as rochas e frigorífi cos, se forem destruídos, são-no para sempre. E porque o tempo é linear, cada decisão é, num sentido intelegível, irreversível.” Importa, pois, para diferenciar o conceito, sublinhar a gravidade (magnitude) do dano causado de forma a conferir-lhe uma contextualização própria. Num cenário catastrófi co, como o que rodeia os OGM, traduz-se no comprometimento da renovabilidade ecológica.

Nesta linha, e em sentido mais estrito25, refere-se à perda irreparável de um elemento qualitativo único ou infungível que não pode ser compensado nem natural nem pecuniariamente, num alinhamento com a aceitação da sustentabilidade forte se se aceitar a unicidadede todo e cada um dos bens ambientais e da sustentabilidade fraca seapenas se considerarem alguns como fundamentais. Este entendimento, muito pouco operativo e imbuído de considerações éticas, recorda a incomensurabilidade (qualitativa – e não enquanto valor excessivo) da lesão, apontando para o valor intrínseco do bem perdido.

23 C. R. SUNSTEIN (2005), pp. 29 segs.24 C. R. SUNSTEIN (2008), pp. 10 e (2005), p. 20.25 C. R. SUNSTEIN (2008), pp. 17-19.

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De regresso ao Protocolo de Cartagena, uma leitura mais atenta e menos baseada num arquétipo ecoxiita de precaução, graças à re-missão para o Princípio 15 da Declaração do Rio, sugeriria o rece-bimento da formulação de um mais operacional e menos castrador irreversible harm precautionary principle, ou catastrophic harm precautionary principle, mesmo em comparação com a própria Convenção sobre a Biodiversidade. Todavia, este entendimento é esmorecido, mesmo na sua versão menos ingerente proposta por Sunstein e Farber26, não só por ao longo do Protocolo, apesar da referência ao Princípio 15, não se adjectivar de todo os riscos ou adjectivar os efeitos de modo menos restritivo (ex. adversos), como pela amplitude do nº 6 do artigo 10º e pelos próprios termos da procedimentalização da precaução.

Nesta matéria, o Protocolo diferencia, nos nºs 2 e 3 do artigo 7º, o tratamento a dar, por um lado, aos OGM a introduzir no ambiente e, por outro, para fi ns alimentares (humano ou animal) e de processamento e baseia a operacionalização da precaução em dois pilares, a saber o acordo fundamentado prévio (ao primeiro movimento transfronteiriço) e a avaliação do risco, sem vedar, no entanto, no nº 8 do artigo 11º, a tomada adequada de medidas mais restritivas pelos Estados importadores no caso de insufi ciente informação e conhecimento científi cos relevantes quanto aos potenciais efeitos adversos dos OGM.

O acordo fundamentado prévio, tratado nos artigos 7º a 10º e com a informação defi nida no Anexo I, permite não apenas aos Estados importadores conhecerem o que vai dar entrada nas suas

26 C. R. SUNSTEIN (2005), pp. 14-15, 35 segs; Daniel A. FARBER (2011), Uncertainty, The Georgetown Law Journal, vol. 99, pp. 919-920, que defendem medidas agressivas apenas na medida da magnitude dos danos mas aceitando a susceptibilidade de se exigir, se adequado, a realização de testes pós-mercado, numa lógica de monitorização à medida da aprendizagem e até de testes pré-mercado em situações de desconfi ança fundada de efeitos nocivos extremos.

fronteiras como terem tempo para se prepararem para possíveis impactos adversos. Aliás, no pior dos cenários podem, nos termos das alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 10º, com base na informação prévia ou de novas provas científi cas nos termos do artigo 12º, proibir a importação ou solicitar informações adicionais para efeitos de introdução no ambiente, ou ainda activar a cláusula precaucionária do nº 6 que não baliza sequer com critérios de proporcionalidade ou de gravidade dos potenciais efeitos ambientais ou na saúde a sua utilização,já para não mencionar a ausência de previsão de uma qualquer análise custo-benefício ou balanço económico. Afi nal, todo o acto humano (até respirar) tem potenciais impactos ambientais ou na saúde visto que se vive numa sociedade de risco, mas isso não signifi ca que, no cômputo total, o balanço não seja positivo com mais efeitos positivos do que negativos. Curiosa é, com efeito, a tendência observada de apenas haver uma concentração das atenções em impactos adversos, numa espécie de parti pris anti-económico na construção da abordagem precaucionária.

O procedimento implica que o Estado exportador apresente, devidamente atestado, um requerimento escrito ao importador antes da transferência dos OGM para introdução no ambiente. Segundo o artigo 9º, o Estado importador deve, então, no prazo de noventa dias, confi rmar por escrito a recepção da notifi cação, designadamente quanto à oportunidade da informação fornecida e quanto à adopção do procedimento do artigo 10º ou de procedimentos defi nidos pelo enquadramento jurídico nacional. Além disso, o Estado importador tem ainda duzentos e setenta dias para comunicar ao exportador a sua decisão sobre a autorização do movimento transfronteiriço. Todavia, estabelece o nº 4 do artigo 9º, que a não confi rmação da recepção da notifi cação por parte do Estado importador não implica o seu consentimento para um movimento transfronteiriço intencional.

Já os OGM destinados a uso directo, como na alimentação humana ou animal, ou a processamento, embora não sujeitos a este acordo fundamentado prévio, submetem-se, no seguimento do artigo 11º, a um menos burocrático procedimento associado a um Mecanismo

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de Intermediação de Informação sobre Biossegurança, com a Parte que tenha adoptado uma decisão defi nitiva quanto ao uso nacional, incluindo a colocação de OGM no mercado que podem ser objeto de movimento transfronteiriço, a ter de informar a esse respeito, por aquela via, as outras Partes, num prazo de quinze dias.

No que respeita o segundo pilar, sobretudo pensado para OGM a libertar no ambiente, a avaliação de risco, prevista no artigo 15º, permite, com base no procedimento de acordo fundamentado prévio e em conhecimentos científi cos sólidos, orientar a decisão a tomar pelos Estados importadores e, igualmente, antecipar-se e preparar-se para enfrentar eventuais efeitos adversos, recaindo os seus custos sobre os exportadores se assim for entendido. Aliás, esta avaliação de risco é um passo fundamental para prosseguir a sua gestão e estruturar as estratégias e medidas mais adequadas, incluindo evolutivas para acompanhar a alteração do risco. De salientar que o artigo 16º sublinha a proporcionalidade dos mecanismos adoptados, na sua vertente de necessidade no nº 2, de adequação na alínea b) do nº 5 e, de uma mais vaga oportunidade, no nº 3, a propósito de movimentos transfronteiriços involuntários.

Acresce que tal não prejudica a susceptibilidade de as Partes assegurarem que qualquer OGM, importado ou não, passe por um período de observação apropriado ao seu ciclo vital ou tempo de geração antes do seu uso. Por último, realce-se que a avaliação de risco também é exigível para OGM para alimentação ou processamento com as remissões do artigo 11º tanto para o Anexo II (em especial, veja-se a sua alínea j), como para o Anexo III referente às orientações para os procedimentos de avaliação de risco.

Ora, da análise destes dois pilares continua a não ser claro o alcance da precaução no Protocolo de Cartagena. Tanto se apela a vertentes de proporcionalidade, a conhecimentos científi cos ou a critérios mais estritos de danos graves e irreversíveis, como não se qualifi cam os impactos nem se encontra um meio para escrutinar, de forma isenta e de acordo com as melhores práticas, a avaliação do

risco.27 Na verdade, apesar da referência ao Princípio 15 da Declaração do Rio, esta indeterminação e operacionalização da precaução, em especial no plano de libertação no ambiente, que se pode, inclusivamente,revelar demasiado onerosa para os países menos desenvolvidos com processos tecnológicos, de monitorização ou de rotulagem28 (já para não entrar na polémica dos custos humanos por não benefi ciarem dos OGM), acabam por insinuar uma leitura mais pro ambiente do que pro economia ou, posto de outra forma, uma prevalência da precaução anti-económica sobre o desenvolvimento sustentado, o que bem pode explicar a não ratifi cação do Protocolo pelo Canadá, Estados Unidos, Argentina e Brasil (que só depositou um instrumento de aceitação), grandes produtores de OGM.

Não se retire, contudo, daqui um total esquecimento dos aspectos socio-económicos. Afi nal, para lá do que se foi apontando a este respeito, importa atender ao artigo 26º que, além de encorajar as Partes a cooperar no intercâmbio de informações e pesquisas sobre os impactos socioeconómicos dos OGM, especialmente nas comunidades indígenas e locais, possibilita-lhes ponderar, ao tomarem uma decisão sobre importação ou de medidas internas que implementem o Protocolo, de forma compatível com suas obrigações internacionais (leia-se, em particular, decorrentes do universo OMC), considerações socioeconómicas resultantes do impacto dos OGM na conservação e no uso sustentável da biodiversidade, sobretudo no que tange ao seu valor para as comunidades nativas e locais.

Nestes termos, os países menos desenvolvidos e em vias de desenvolvimento podem equacionar o impacto, nos pequenos agricultores e nas populações autóctones, de danos a organismos não

27 J. A. HERRERA I. (2007), p. 109.28 K. D. RAJU (2007), Biotechnology applications in the agriculture sector:

Cartagena Protocol and possible confl ict between international agreements, in K. D. RAJU (ed.), Genetically Modifi ed Organisms: emerging law and policy in India, Tery Press, New Delhi, p. 16.

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defi nidos como alvos ou de contaminação por OGM, desde que se prove cientifi camente o nexo causal e a existência dos efeitos. Não podem, todavia, invocar este artigo para rejeitar OGM com base em considerações socio-económicas não directamente ligadas a impactos sobre a biodiversidade como a crescente dependência em relação às multinacionais da biotecnologia ou a alteração nos modos de vida tradicionais29, argumentos que vêm sendo invocados cada vez mais sob a capa de violação dos direitos humanos de modo a fugir à aparente estreiteza do enquadramento ambiental mas igualmente comercial.

3. No Direito internacional económico, a OMC em especial

As interacções entre os acordos ambientais e o Direito do comércio internacional nem sempre se mostram pacífi cas, uma vez que aqueles, em regra, recorrem a sanções (comerciais) em matéria de importações/exportações e trânsito transfronteiriço em resposta a quebra de normas de defesa ambiental, que se revelam cada vez mais um meio deproteccionismo encapotado. No que respeita os OGM, como analisadoacima, apesar do acordo fundamentado prévio e a avaliação de risco, enquanto operacionalizadores do princípio da precaução, prevê-se, nos artigos 10º, nº 6 e 11º, nº 8 do Protocolo de Cartagena, restrições das importações por motivos de incerteza científi ca quanto aos potenciais efeitos adversos, abrindo, destarte, uma porta para práticas anti-concorrenciais em nome da defesa do ambiente (e da saúde humana). Neste contexto, considerando-se a existência de confl itos de normas entre os vários instrumentos internacionais, da Convençãode Viena de 1969 sobre Direito dos Tratados parece decorrer a

29 Carmen G. GONZALEZ (s.d.), Genetically Modifi ed Organisms and Justice: The International Environmental Justice Implications of Biotechnology, p. 29, disponível em http://ssrn.com/abstract=986864.

prevalência, neste caso específi co, das disposições do Protocolo de Cartagena sobre o GATT 9430.

Ainda assim, e olhando para o Protocolo, além das nem sempre regulares exigências de alguma medida de proporcionalidade nas restrições comerciais, com critérios que vão mudando (oportunidade,necessidade, adequação) e das recorrentes salvaguardas no que respeita o acomodamento dos comportamentos aos objectivos e moldura sistemática do Protocolo (que inclui, o reenvio para a própria Convenção “mãe” sobre Biodiversidade), a única referência expressa à conjugação ambiente-comércio resulta do Preâmbulo com a já mencionada remissão “opaca”31 para o muito popular, mas igualmente indeterminado, princípio do desenvolvimento sustentado.

Realce-se que o artigo 14º foge à questão pois apesar de se referir à conclusão de novos acordos bilaterais, regionais ou multilaterais sobre movimentos transfronteiriços intencionais de OGM, nunca menciona o confl ito entre a componente comercial e ambiental. Da sua redacção, resulta apenas um relembrar do princípio de geral de Direito pacta sunt servanda, em que futuros acordos (envolvendo, como é óbvio, Partes contratantes) deverão ser compatíveis com o objetivo do presente Protocolo e não estipularem um nível de proteção inferior àquele por este provido. Eventuais arranjos deverão ser informados pelas partes através do Mecanismo de Intermediação de Informação sobre Biossegurança. Para além do mais, nestas divagações do Protocolo sobre a compatibilização de instrumentos internacionais não se encontra uma única palavra sobre a relação com outro tipo de acordos mutuamente exclusivos relativos à mesma temática.

30 P. SANDS [et al.] (2012), p. 803.31 P. SANDS [et al.] (2012), p. 803.

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Também obscura, aliás, é a redacção do Protocolo de Nagoya de 2010 sobre o Acesso a Recursos Genéticos e à Partilha Justa e Equitativa dos Benefícios da sua Utilização32 (recentemente aprovado pela União Europeia mas ainda não ratifi cado por Portugal). Pense-se,a título exemplifi cativo, na confl itualidade com o TRIPS, uma vez que este, através do mecanismo de patentes, ao contrário da Convenção sobre a Biodiversidade (artigo 19º, nº 2) que promove os princípios de repartição justa e equitativa dos benefícios e da valorização dosconhecimentos tradicionais desenvolvidos no Protocolo de Nagoya, assegura o monopólio e propriedade a quem detém e desenvolve novos produtos e tecnologias. Ora, o artigo 4º, nº 1 deste Protocolo,a propósito das relações (leia-se possíveis confl itos) com outrosinstrumentos jurídicos internacionais, estipula, num primeiro momento, que as disposições daquele não afectam os direitos e obrigações de qualquer Parte decorrente de um qualquer acordo internacional existente, parecendo pois acautelar os compromissos comerciais assumidos. Porém, num segundo momento, o legislador arranja uma cláusula de salvaguarda inspirada em preocupações precaucionárias ligadas a um princípio de integração, em que excepciona o exercício daqueles direitos e obrigações no caso de poder causar danos ou ameaça séria para a biodiversidade.

Por outras palavras, abre a porta a incumprimentos por pseudo--proteccionismo ambiental (pseudo, porque muitas vezes esconde outras motivações) sobretudo por não precisar melhor as condições da salvaguarda (ex. o que se entende por sério) e por não se defi nirem procedimentos isentos de avaliação dos impactos ambientais. Ou seja, o que o artigo dá com uma mão tira com a outra. Para cúmulo,termina com uma enigmática afi rmação de que não se pretende com esta disposição estabelecer uma hierarquia entre este Protocolo e outros instrumentos internacionais. A estranheza é tanto maior porque não

32 http://www.cbd.int/abs/.

seria, de certeza, esta a melhor sede para tratar do Direito dos tratados (sobre esta matéria, dispõe, aliás e em particular, a atrás invocada Convenção de Viena de 1969). Parece, afi nal, que o legislador lava as mãos nesta questão, acabando por desdizer-se e anular tanto a declaração de respeito dos compromissos assumidos como a boia de salvação.

Esta tensão entre normas comerciais e ambientais não é exclusiva do Direito internacional. É interessante verifi car que, nos últimos anos, a mesma confl itualidade a propósito dos OGM se alastra no seio da União Europeia. Não querendo aqui desenvolver este tópico por não ser a sede apropriada, não se pode deixar de chamar a atençãopara uma recente reviravolta com a transferência dos confl itos comerciais relativos a OGM do plano internacional, em particular envolvendo diferendos com os Estados Unidos, já acalmados por decisões (para)judiciais no âmbito da OMC e que abaixo se abordarão, e pela adopção de um regime jurídico europeu menos penalizador33, para o plano intra-europeu com vários Estados-Membros a arranjarem formas dilatórias para a não aplicação da legislação.34 A atestar este fenómeno registam-se algumas decisões jurisprudenciais35 e as

33 Directivas 2001/18/CE (transposta para o Direito português pelo Decreto-Leinº 72/2003 de 10 de Abril) e 2002/53/CE; Regulamentos 1829/2003/CE, 1830/2003/CE e 1946/2003.

34 Julinda BEQIRAJ (2014), The Genetically Modifi ed Organisms Problem in the EU: Trade obligations, environmental concerns and sovereignty issues, in Vasilka SANCIN /& Maša Kovič DINE (eds.), International Environmental Law: Contemporary Concerns and Challenges in 2014, GV Založba, Ljubljana, pp. 595 segs.

35 Casos T366/03 e T235/04; Casos C-439/05 P e C-454/05 P; C-165/08; C-281/11; C-313/11; C-478/13; C-419/03; C-121/07; C-58/10 a C-68/10; C-542/12 e C-36/11. Note-se que a multiplicação destes casos não impede que também se constate alguma inércia da Comissão em cumprir as suas obrigações legislativas ao abrigo das Directiva 2001/18 sobre OGM. Veja-se, em especial, a decisão no Processo T-164/10 Pioneer Hi-Bred International vs. Comissão, decidido a 23 de Setembro de 2013 e que se segue ao Processo T-139/07 (não publicado). Em Novembro de 2013 a Comissão cumpriu o solicitado.

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duras negociações para nova regulação sobre OGM, especialmente controversas ao nível do Conselho. Nestes moldes, a Comissão, enquanto watchdog comunitário, enfrenta um sério desafi o, sobretudo pelas implicações do não acatamento das normas europeias sobre OGM no mercado interno.

Regressando, porém, à temática do Direito internacional económico, importa, naturalmente, prestar um olhar mais atento à OMC, onde a questão dos OGM tem causado bastante polémica, em especial após a moratória levantada pelos europeus com fundamentos precaucionários aos produtos americanos, canadianos e argentinos, que naturalmente ripostaram em sede própria. De notar, contudo, que apesar de nos preparativos para a Conferência Ministerial de Seattle, em 1999, vários Estados Membros terem proposto a constituição, dentro da OMC, de um grupo de trabalho específi co para os OGM, designadamente paraestudar a sua interligação com os vários instrumentos jurídicos da OMC e propor novas soluções, nunca chegou a ser implementado mesmo depois dos Estados Unidos, no âmbito das negociações agrícolas, terem apresentado uma proposta para medidas transparentes, oportunas e previsíveis de garantia no comércio de produtos desenvolvidos ao abrigo de novas tecnologias36, ou da contestação por parte dos exportadores das restrições comerciais europeias aos OGM.

No assunto em análise, três instrumentos importam, a saber, o GATT de 94, vulgo GATT, o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias e o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio, deixando-se, deste modo, propositadamente de fora, pela natureza diferente das questões suscitadas, o TRIPS37.

36 G/AG/NG/W/15.37 No caso do TRIPS, não é de esperar que seja invocado em disputas de acesso ao

mercado de OGM mas de defesa da propriedade intelectual associada aos OGM. No TRIPS, as Partes podem excluir da patenteabilidade não só plantas e animais mas também processos essencialmente biológicos para a produção animal e vegetal. Todavia, a protecção deve ser prestada aos micro-organismos e aos processos

A ponderação entre a abordagem precaucionária e de facilitação do comércio nesta sede é fundamental, não apenas para a substancialização dos princípios subjacentes, como o desenvolvimento sustentado enquanto meta-princípio hermenêutico de natureza normativa intersticial38, como por funcionar como âncora para futuras evoluções e negociaçõestanto no âmbito do sector económico em questão (neste caso OGM) como do enquadramento jurídico tanto ambiental como comercial. Afi nal, como se escreveu noutra sede39, é frequente observar fenómenos de mimetismo e prolongamento de modelos jurídicos devido a uma racionalidade e vontade limitadas. A disponibilidade de uma certa construção da precaução ou do desenvolvimento sustentado infl uencia as soluções posteriores. Tanto assim é, nesta matéria,

microbiológicos ou/e não biológicos. Por outro lado, o TRIPS possibilita a exclusão temporária da patenteabilidade quando necessário para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal ou para prevenir danos ambientais.

Sobre questões de propriedade intelectual e biotecnologia, ver, entre outros, Sean D. MURPHY (2001), Biotechnology and International Law, The George Washington University Law School, Public and Legal Theory Working Paper nº 08,pp. 26 segs; Satoko KAWAMURA (2011), GMO Trade in the Context of TRIPS: From the Perspective of an Autopoietic System Analysis, Ritsumeikan International Affairs, vol. 10; Ravi Srinivas KRISHNA (2006), Intellectual Property Rights and Bio Commons: Open Source And Beyond, International Social Science Journal, vol. 58, nº 188. Ver também o interessantíssimo caso Monsanto Canada Inc. v. Schmeiser, do Supremo Tribunal canadiano, por envolver direitos de propriedade intelectual sobre produtos contaminados não intencionalmente por OGM.

38 V. LOWE, in A. BOYLE / D. FREESTONE (1999), International Law and Sustainable Development: Past Achievements and Future Challenges, Oxford University Press, p. 31. Também no sentido de um meta-princípio, D. Barstow MAGRAW / L. D. HAWKE, in D. BODANSKY / J. BRUNNÉE /e E. HEY (eds.) (2007), The Oxford Handbook of International Environmental Law, Oxford University Press, p. 638; M. C. Cordonier SEGGER, in M. C. Cordonier SEGGER / C. G. WEERAMANTRY (eds.) (2004), Sustainable Justice: Reconciling Economic, Social and Environmental Law, Martinus Nijhoff, Leiden, p. 588.

39 Rute SARAIVA (2014), Behavioural Economics Insights for International Environmental Law, in Vasilka SANCIN / Maša Kovič DINE (eds.), International Environmental Law: Contemporary Concerns and Challenges in 2014, GV Založba, Ljubljana.

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que, como se viu anteriormente, o próprio Protocolo de Cartagena integra no seu clausulado o famigerado Princípio 15 da Declaração do Rio.

No GATT, em que se conjuga a liberdade das trocas e a diferença de tratamento dos Estados, em determinados aspectos, em função do seu grau de desenvolvimento, encontram-se três disposições da maior importância para a temática dos OGM, a saber os artigos: III relativo à não discriminação entre produtos domésticos e importados, ou seja o princípio do tratamento nacional que obriga à determinação da similaridade entre produtos; XI referente a uma abolição de restrições quantitativas, ainda que com as excepções do seu nº 2 alínea b); e XX, uma cláusula de salvaguarda, excepcionando as regras estabelecidas em nome da defesa da saúde e do ambiente quando devidamente justifi cado40.

Por sua vez, o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS, em inglês) decorre naturalmente da crescente necessidade de maior consubstanciação do artigo XX do GATT, em especial da sua alínea b) referente à protecção da vida e saúde humana, animal ou vegetal (com o qual, inclusivamente, de acordo com o nº 4 do artigo 2º, se presume concordar), e de um longo processo negocial que culmina em Marraquexe com a sua aprovação, apenas possível, pela sua natureza compromissória e linguagem por vezes indeterminada e ambígua. Assim, se, por um lado, olhando logo parao primeiro parágrafo do preâmbulo e para o artigo 2º, o seu objectivo é reconhecer o direito soberano dos Estados em prover o nível de protecção sanitária que considerem adequada – podendo, pois, defi nir os seus próprios padrões de segurança alimentar ou de sanidade animal ou vegetal; por outro lado, visa, em simultâneo, garantir que

40 Laurence BOISSON DE CHAZOURNES / Makane Moïse MBENGUE (2004), GMOs and Trade: Issues at Stake in the EC Biotech Dispute GMOs and Trade: Issues at Stake in the EC Biotech Dispute, RECIEL, 13 (3).

as medidas tomadas não são desproporcionadas, cientifi camenteinjustifi cáveis ou proteccionistas, encorajando para tal, no artigo 3º, as Partes a recorrer a standards internacionais41 sem, porém, deixar de reconhecer a possível insusceptibilidade de cumprimento por parte dos países não desenvolvidos, devido aos custos e exigências institucionais e técnicas, com repercussões no comércio internacional e, inevitavelmente, no próprio grau de desenvolvimento (sustentado) destes Estados.

Contudo, não se impede as Partes de adoptarem medidas com um nível de protecção superior, desde que com sustentação científi ca ou em consequência do grau de protecção considerado adequado pelo Estado Membro, leia-se o nível aceitável de risco42, quando em acordo com a avaliação de risco do artigo 5º e sem colocar em causa a congruência sistemática do SPS. Dito de outra forma, à primeira vista, a precaução é balizada pela proporcionalidade, em

41 Desenvolvidos, em particular, de acordo com o parágrafo 3 do Anexo A ao Acordo, sob o auspício da Codex Alimentarius Commission, International Offi ce of Epizootics e Secretariat of the International Plant Protection Convention, mais conhecidos como “three sisters organizations”. As três vêm-se debruçando sobre OGM. Em 1999, o Codex aprovou orientações quanto à produção, processamento, rotulagem e marketing de produtos alimentares orgânicos de modo a assegurar a escolha informada do consumidor. Ademais, estruturou uma task force ad hoc sobre alimentos biotecnológicos que tem, sobretudo, procurado desenvolver princípios gerais de análise de risco e de orientação do procedimento de avaliação de riscoe examinar os métodos analíticos disponíveis para a detecção de OGM em alimentos. Este esforço é suportado por consultas de peritos conjuntas entre a FAO e a OMS e por grupos de trabalho. Note-se, todavia, que as orientações do Codex 2003 não incluem aspectos ambientais, socio-económicos ou morais. Os princípios de gestão de risco estabelecem que esta deve ser baseada na análise de risco, devendo-se equacionar as incertezas identifi cadas e aplicar as medidas para as gerir. As medidas podem ir desde a rotulagem alimentar a monitorização pós-mercado. Uma comunicação de risco efectiva que envolva uma dinâmica interactiva entre os diversos actores é, igualmente, uma peça fundamental neste processo. A OEI, por sua vez, tem um grupo de trabalho dedicado à biotecnologia, assim como o IPPC.

42 Nota ao parágrafo 5 do Anexo A ao Acordo.

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última análise com fundamento na melhor ciência e/ou avaliação do risco, e, aparentemente, pela liberdade comercial. Com efeito, ao separar o nº 3 do nº 2 do seu artigo 2º, o Protocolo parece sugerir que as restrições proteccionistas são um limite autónomo à abordagem precaucionária e não um mero elemento integrativo, adjectivo e consubstanciador daquela, em especial da proporcionalidade inerente exigida legalmente.

De particular importância, assume, nesta questão, a operacionalizaçãoda precaução através de um procedimento de avaliação de risco estabelecido no já citado artigo 5º, que é defi nido, no parágrafo 4 do Anexo A, como “a apreciação da probabilidade de entrada, estabelecimento ou difusão de uma peste ou doença no território de um importador, considerando as medidas sanitárias ou fi tossanitárias a aplicar, e ainda das suas potenciais consequências biológicas e económicas, ou a estimação dos potenciais efeitos adversos na saúde humana ou animal resultantes da presença de aditivos, contaminantes, toxinas ou organismos patológicos na comida, bebida e produtos alimentares”43.

Antes de avançar, algumas notas se impõem a propósito destadefi nição legal. Em primeiro lugar, saliente-se a referência aprobabilidades sem a sua adjectivação, i.e. não se distingue ou opta por classifi car como objectivas ou subjectivas, apontando tanto para risco como incerteza, com a consequente indefi nição quanto à extensão que se pretende outorgar à avaliação do risco (até porquea própria palavra risco pode, no texto do Acordo, ter múltiplos signifi cados, incluindo incerteza) dando azo ao que Knight intitula de “fatal ambiguity”44. Aliás, a remissão, no artigo 5º, nº 2 para as provas científi cas ou do nº 7 para a sua insufi ciência, pode incluir

43 O itálico é nosso.44 Frank H. KNIGHT (1921), Risk, Uncertainty, and Profi t, Hart, Schaffner

& Marx, Houghton Miffl in Co., Boston, MA.

desde ignorância até ao conhecimento absoluto, passando ainda pela indeterminação e pela ambiguidade.

Em segundo lugar, as probabilidades referem-se não apenas a pestes ou doenças mas também aos seus possíveis efeitos biológicos (leia-se, por maioria de razão, na biodiversidade) e económicos. A este respeito, o nº 3 do artigo 5º, que, estranhamente não especifi ca o que se entende por efeitos biológicos, recorta as potenciais consequências económicas que considera relevantes: o dano potencial em termos de perdas de produção ou vendas com a peste ou doença; os custos de controlo ou erradicação no território do importador e a análise custo-efi cácia relativa das abordagens alternativas de limitação do risco. De sublinhar é que, não só esta parece ser uma lista taxativa (afi nal não se usam expressões como “designadamente” ou equivalentes, nem a conjunção “ou”) e apenas referente aos elementos considerados de relevo (o que signifi ca, a não consideração de aspectos económicos considerados menores – defi nidos por via negativa no artigo, isto é, todos os outros que não aqueles consagrados), como também que se foca, sobretudo olhando para os dois primeiros factores, nos danos omissivos (leia-se que resultam directamente da não aplicação de medidas precaucionárias), sem ponderar claramente os custos emergentes da aplicação destas (sejam administrativos ou técnicos, sejam para o mercado, devido à restrição de entrada) – preferindo-se uma fórmula algo críptica de “análise custo-efi cácia relativa das abordagens alternativas de limitação do risco”.

Acresce que, da perspectiva de custos económicos, a referência ao objectivo de minimização de interferências negativas no comércio (sem a sua adjectivação de internacional como sucede noutras disposições) quanto à delimitação do nível aceitável de risco (subjacente à própria análise de risco) surge num número autónomo, a saber o nº 4, o que esvazia supostamente a tal análise custo-efi cácia da sua ponderação, indiciando que se reduziria apenas à equação de custos directos de implementação.

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Em terceiro lugar, a defi nição da avaliação de risco aponta, na sua segunda parte, para efeitos adversos para a saúde humana ou animal, sem, porém, concretizar melhor o qualifi cativo indeterminado empregue, designadamente em termos de gravidade ou extensão. Mesmo assim, a escolha da adjectivação parece sugerir o afastamento de um irreversible harm precautionary principle ou catastrophic harm precautionary principle. Por outro lado, sublinhe-se que, no seu recorte, não há qualquer referência directa a OGM como origem de externalidades negativas, como aliás, todo ao longo do SPS. A sua inclusão, aqui, resultaria da interpretação (algo forçada) de contaminantes ou de organismos patológicos ou prejudiciais na alimentação (segurança alimentar, em sentido lato) e de protecção quanto a espécies invasoras (pestes, em sentido igualmente muito lato).

O artigo 5º distingue entre a avaliação do risco, a defi nição do nível adequado de protecção sanitária ou fi tossanitária e as medidas apropriadas a este. No primeiro caso, além do acima mencionadono que respeita a equação de efeitos biológicos e económicos, igualmente válida para o último caso, fundamenta-se, nos termos do nº 2, no conhecimento científi co disponível, em métodos e procedimentos considerados relevantes e em factos enquadradores da situação, o que se coaduna com o casuísmo (mais fl exível) e atendimento às melhores práticas internacionais reclamados pelo nº 1. Por sua vez, na determinação do nível adequado de protecção, os nºs 4 e 5 não têm qualquer palavra para limites ambientais ou de saúde mas apenas ligados a aspectos económicos, em especial comerciais. Deste modo, o nº 4 debruça-se sobre a compatibilização com a componente económica do binómio economia-ambiente, ao encorajar a minimização de impactos negativos nas trocas, em geral, e o nº 5 insiste, uma vez mais, no princípio da não discriminação e do não proteccionismo disfarçado.

Quanto às medidas de efectivação do nível adequado de protecção, além de decorrerem da avaliação de risco, têm, de acordo com o nº 6, de assegurar a sua proporcionalidade no plano comercial, considerando a

sua exequibilidade técnica e económica. Em suma, não é protecção ambiental e (fi tos)sanitária a todo o custo, procurando-se equilibrar os interesses comerciais. Ainda assim, da leitura dos nºs 7 e 8 acaba por resultar uma prevalência da protecção ambiental. Afi nal, possibilita-se a tomada provisória de medidas sem fundamentação científi ca sufi ciente, mesmo se instando à obtenção de mais informação e revisão adequada daquelas num período razoável, não se fi xando qualquer sanção para o seu incumprimento.

Mais, o que poderá o direito a um pedido de explicação por parte de um exportador contra medidas restritivas inapropriadas e infundadas do importador? Por outras palavras, no fi nal, tenderá a vencer uma precaução castradora e protecionista contra o jogo de soma positiva que se pretende com o comércio e o desenvolvimento sustentado. No entanto, no caso das hormonas45, a União Europeia, na sua fundamentação, não recorreu ao nº 7 do artigo 5º, por considerar que a proibição instaurada não se tratava de uma medida provisória, preferindo invocar genericamente o princípio da precaução. O Painel e o Órgão de Apelação, apesar de reconhecerem que este princípio da precaução se encontra refl ectido no Preâmbulo e clausulado do Acordo, respectivamente no parágrafo sexto e nos artigos 3º, nº 3 e 5º, nº 7, consideram, contudo, que tal não afasta as obrigações específi cas do SPS. De forma diferente, o Japão, no caso sobre teste de variedade46, alegou especifi camente o nº 7 do artigo 5º. O Painel, porém, à semelhança do Órgão de Apelação, defendeu a violação daquela norma por se apurar que o Japão não tinha activamente procurado informação adicional para rever a medida adoptada, num prazo razoável, cujo recorte deve ser casuístico. Ora, neste caso, pese a medida estar em vigor há duas décadas, a obrigação de a rever data da entrada em vigor do Acordo em 1995.

45 Processos WT/DS26 (EUA) e WT/DS48 (Canadá).46 Processo WT/DS76.

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No que respeita os OGM, em particular, o assunto continua arredado de um debate mais profundo no Comité do SPS. Todavia, regista-se alguma movimentação. Os Estados-Unidos, em 2000, fi zeram circular um estudo que apontava para a inconsistência das notifi cações – afi nal, algumas partes fazem notifi cações ao abrigo deste acordo, outras do Acordo sobre Barreiras Técnicas, e outras ainda de ambos – e a Tailândia levantou a questão das restrições egípcias ao seu atum enlatado por alegadamente ter preocupações quanto à origem geneticamente modifi cada do óleo de soja usado na conserva, invocando a violação dos artigos I, XI e XIII do GATT 1994 e 2º, 3º e 5º e Anexo B do SPS47. A queixa foi resolvida através de um processo de consultas entre ambos os países, não dando consequentemente azo a uma decisão do Painel ou Órgão de Apelação.

Este caso é tanto ou mais interessante por envolver dois países em vias de desenvolvimento que, por essa razão, apresentam difi culdadesfi nanceiras mas igualmente institucionais, tecnológicas e técnicas para lidar com a implementação do SPS e que, alegadamente, poderiam em muito benefi ciar com a introdução e divulgação dos OGM.48 Ora, como acima se sublinhou, o SPS reconhece, logo no Preâmbulo, as implicações das diferenças de desenvolvimento na sua aplicação.Mais, pela sua natureza compromissória e de acordo global, para conseguir o maior número de adesões tem de não só reconhecerexpressamente o estatuto diferenciado dos países em vias dedesenvolvimento e menos desenvolvidos, como dotá-los de um tratamento especial, diferenciado e mais favorável (artigos 10º, 14º e

47 Processo WT/DS205.48 Sobre a especial situação dos países em vias de desenvolvimento e menos

desenvolvidos no seio da OMC e da sua litigância, por todos Gregory C. SHAFFER / Ricardo MELÉNDEZ-ORTIZ (eds.) (2010), Dispute Settlement at the WTO: The Developing Country Experience, Cambridge University Press; Victor MOSOTI (2006), Africa in the fi rst decade of WTO dispute settlement, African Yearbook of International Law, vol. 12, p. 2004.

Anexo B), incluindo assistência técnica prevista no artigo 9º e maior fl exibilidade, designadamente no procedimento de avaliação de risco49. Em suma, uma concretização do princípio de responsabilidade comum mas diferenciada.

Por fi m, no âmbito da OMC, há que considerar o Acordo sobre as Barreiras Técnicas (TBT, em inglês) que permite aos Estados tomarem medidas protectoras e precaucionárias em função de um objectivo legítimo como a defesa da saúde ou do ambiente embora desde que não discriminatórias nem desproporcionais, ou por outras palavras, desde que não constituam meios encapotados de difi cultar o comércio internacional. Note-se, porém, que o TBT, curiosamente, enfatiza menos a necessidade de justifi cação científi ca das medidas precaucionárias do que o SPS, além de as suas medidas não exigirem às Partes a análise das suas regulações com base num risco provável. O limite parece ser mais comercial, isto é de não constituírem um obstáculo ilegítimo às trocas.

A sua aplicação aos OGM tem sido essencialmente discutida quanto às obrigações de rotulagem e à comparação substantiva entre os produtos tradicionais e biotecnológicos de modo a apurar a sua similaridade, conceito central para perceber se os OGM devem ou não ter um tratamento diferenciado. Todavia, ainda não se determinou “ofi cialmente” se uma proibição de GMO pode ser entendida como uma regulação técnica abrangida pelo TBT.

Por fi m, no âmbito do Direito internacional económico é inevitável uma referência ao caso EC-Biotech50, decorrente da moratória europeia aos OGM. De acordo com os queixosos, a medida europeia violaria o

49 Patrick F. J. MACRORY / Arthur E. APPLETON / Michael G. PLUMMER (eds.) (2005), The World Trade Organization: Legal, Economic and Political Analysis, vol. I, Springer, pp. 355 segs.

50 Fala-se no singular pois embora existam três litígios (DS291, DS292 e DS293), constituiu-se, inclusivamente a pedido dos queixosos, respectivamente Estados Unidos, Canadá e Argentina, um Painel de resolução único para lidar com a questão controversa.

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artigo 4º e, em especial, nº 2 do Acordo sobre Agricultura, os artigos I nº 1, III nº 4, X nº 1 e XI nº 1 do GATT, os artigos 2º, nºs 2 e 3, 5º, nºs 1, 2, 5 e 6, 7º e 8º, assim como os Anexos B e C do SPS e os artigos 2º, nºs 1, 2, 8, 9, 11 e 12 e 5º, nºs 1, 2, 6 e 8 do TBT.

Sumariando, o Painel considerou a existência de uma moratória geral de facto: geral por se aplicar a todos os pedidos de aprovação pendentes em Agosto de 2003 à luz do Direito europeu relevante e de facto por não ter sido formalmente adoptada, funcionando através das acções e omissões de um conjunto de Estados Membros e da Comissão. Por outro lado, estabeleceu que a decisão de aplicação de uma moratória era procedimental, com vista a adiar decisões fi nais substantivas de aprovação, não constituindo, por isso, um meio substantivo de assegurar a protecção sanitária e fi tossanitária, pelo que não se trata de uma medida SPS sujeita aos artigos 2º, nº 2 (prova científi ca sufi ciente) e 5º, nº 1 (avaliação de risco) do SPS.

No entanto, esta moratória geral, ao implicar o atraso indevido na conclusão do procedimento de aprovação comunitário quanto a pelo menos um produto biotecnológico, indica uma actuação inconsistente com o Anexo C (1) do SPS e, consequentemente, com o artigo 8º. Aliás, comprovou-se que em 24 dos 27 procedimentos de aprovação observaram-se atrasos indevidos. Todavia, o Painel defendeu que os artigos 5º, nº 1 e 2º, nº 2 eram aplicáveis por não existirem indícios de que a prova era insufi ciente para prosseguir com uma análise de risco para os produtos biotecnológicos sujeitos a medidas de salvaguarda. Destarte, concluiu que nenhuma destas se baseava na avaliação de risco nos termos do artigo 5º, nº 1 e da defi nição do Anexo A ponto 4, pelo que a Europa violava o artigo 2º, nº 2, apesar de não fechar as portas à sua possibilidade noutras situações. Por outro lado, também se estabeleceu que as medidas de salvaguarda caíam fora do âmbito do nº 7 do artigo 5º.

Num breve comentário a esta decisão, não se pode deixar de observar, prima facie, que o Painel preferiu tratar a questão ao abrigo do SPS, e das suas medidas mais exigentes, do que do GATT ou TBT. Por outro lado, decidiu igual e deliberadamente por não se

pronunciar sobre a segurança dos OGM, remetendo a questão para o foro científi co que deverá estar na base das decisões e medidas a tomar. Mais: o Painel fugiu à discussão sobre a similaridade entre OGM e produtos tradicionais assim como sobre o direito de se poder requerer aprovação pré-marketing de produtos biotecnológicos ou até sobre a consistência dos procedimentos europeus de autorização (uma avaliação específi ca por produto) com as obrigações decorrentes no enquadramento da OMC e sobre a susceptibilidade de uma Parte consagrar soluções legislativas mais restritivas do que as outras Contrapartes. Isto é, o Painel, para além de uma abordagem nem sempre clara, escapa de modo intencional às grandes questões envolvendo o comércio dos OGM51.

O Painel, sem entrar pelas questões científi cas e técnicas suscitadas pelas Partes, opina sobre a extensão e forma como estas devem ser equacionadas e tratadas no seio das políticas e enquadramentosnacionais, estabelecendo parâmetros interpretativos para o princípio da precaução e papel do conhecimento científi co no âmbito particular do SPS. Fundamental parece, pois, ser a análise de risco que deveráservir de suporte de medidas de salvaguarda. Todavia, o Painelparece ir, pelo menos parcialmente, ao encontro da posição europeia quando acaba por reconhecer que o nº 7 do artigo 5º representa um direito autónomo dos Estados e não uma excepção aos artigos 2º, nº 2 e 5º, nº 1, o que signifi ca reconhecer a precaução como uma resposta objectiva à insufi ciência de provas científi cas e não como uma abordagem excepcional. Esta não deixa de ser uma posição estranha quando o mesmo Painel, como se viu, considerou o artigo 5º, nº 1 aplicável, revelando mais uma vez a ambiguidade jurídica que se vive em torno dos OGM. Ainda assim, talvez se possa ver

51 Christiane R. CONRAD (2007), The EC-Biotech dispute and applicability of the SPS Agreement. Are the panel’s fi ndings built on shaky ground?, World Trade Review, vol. 6, nº 02, pp. 233-234.

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aqui uma interpretação mais restritiva do nº 7 do artigo 5º pelas implícitas referências cruzadas estabelecidas com o nº 1, apontando para que a prova científi ca será apenas insufi ciente se não permitir a realização de uma análise de risco como defi nida no Anexo A (4).

Por outras palavras, contrariamente a jurisprudência anterior da OMC, o artigo 5º, nº 7, parece excluir qualquer consideração de casos em que, apesar da quantidade do conhecimento científi co permitir uma avaliação de risco, a sua qualidade não é sufi cientemente confi ávelpara possibilitar uma avaliação adequada. De forma simples, se uma avaliação de risco tiver sido conduzida, a Parte não poderá recorrer ao artigo 5º, nº 7, para estabelecer restrições contra os OGM, devendo quanto muito procurar demonstrar a inadequação da avaliação de risco elaborada.

Mais, o Painel determina que a insufi ciência da prova científi ca não depende do nível de protecção que o Estado Membro considera adequado para o seu território, visto que o termo adequado deverá ser interpretado de acordo com o sentido e standards defi nidos no Anexo A (4). Dito de outra forma, o nível de protecção considerado adequado pela Parte é irrelevante para determinar a sufi ciência da prova científi ca ou para a avaliação da existência e magnitude dos riscos. Ou seja, o Painel parece suscitar dúvidas quanto ao anteriormente reconhecido direito dos Estados Membros de adoptarem e manterem o nível de protecção SPS que escolherem e denota alguma relutância em deixar espaço para uma abordagem precaucionaria, até pela interpretação estrita de avaliação de risco que adopta. Em consequência, o artigo 5º, nº 7, só deve ser accionado pela insufi ciência de prova científi ca e não por incerteza científi ca, numa estranha opção que minimiza a própria dinâmica científi ca52.

52 C. G. GONZALEZ (s.d.), p. 36.

Por outro lado, quanto às relações entre os instrumentos jurídicos da OMC e os instrumentos ambientais multilaterais, como a Convençãosobre a Biodiversidade ou o Protocolo de Cartagena (e o Direito internacional dos direitos humanos, acrescente-se), a resposta do Painel não se assemelha completamente esclarecedora. Para efeitos do caso em análise, apesar da aplicação do artigo 31º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, considerou que nenhuma destas convenções auxilia na interpretação das normas da OMC, sem, porém fundamentar adequadamente esta posição e ponderar a cooperação mútua entre regulação comercial e ambiental. O argumento mais signifi cativo para alicerçar esta orientação reside no facto de nem todos os Membros da OMC nem a totalidade das partes envolvidas no processo serem Partes contratantes daqueles tratados ambientais.

Acrescente-se que igualmente a invocação de um princípio geral de Direito internacional de precaução é, à semelhança do decidido no caso das hormonas, desconsiderado sobretudo por não se conseguir apreender a sua natureza jurídica (costume ou princípio geral) e não tomando por isso partido. Esta posição redutora poderá dever-se a uma tentativa de protecção de eco-proteccionismo e terá como consequência, se servir de mote, a uma estagnação do enquadramento da OMC por fechar os olhos à evolução do Direito internacional.53 Mais uma vez, o Painel escapa a tomar posição sobre o estatuto jurídico da precaução.

Em resumo, olhando para o Protocolo de Cartagena e para o SPS e TBT, algumas incongruências sobressaem, levantando dúvidas sobre a melhor forma de lidar com os OGM. Afi nal, apesar de todos reconhecerem a validade de preocupações ambientais e com a saúdehumana, os seus objectivos e prossecução assemelham-se parcialmente

53 C. HENCKELS (2006), GMOS in the WTO: A critique of the Panel’s legal reasoning in EC-Biotech, Melbourne Journal of International Law, vol. 7.

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contraditórios. Veja-se, em especial, que o SPS não tem qualquer referência à gestão do risco e que embora tanto este como o Protocolo de Cartagena prevejam a avaliação do risco não é claro que osstandards utilizados sejam coincidentes e/ou conciliáveis. Mais, como se procurou demonstrar, a própria concretização do princípio da precaução difere, em especial no caso de insufi ciente conhecimento científi co, o que coloca a questão dos OGM num limbo jurídico com inevitáveis refl exos humanos54.

4. No Direito internacional dos direitos humanos

À primeira vista, pode parecer estranho considerar a temática dos direitos humanos a propósito dos OGM. Não obstante, nos últimos anos, esta bandeira vem sendo levantada nos mais diversos debates em torno da sociedade de risco, das alterações climáticas à segurança alimentar, forçando portas e alertando consciências. Basta recordar a entrada da questão ambiental por via dos direitos de personalidade em certos Estados ou a invocação do direito à intimidade da vida privada como via de garantia de um direito ao ambiente no paradigmático Caso López Ostra junto do Tribunal Europeu de Direitos do Homem.

Com efeito, como muito bem aponta Amado Gomes55, assiste-se a uma conversão criativa de clássicos direitos negativos a direitos a pretensões, passando, acrescente-se, por pretensões a direitos e por uma subjectivação das obrigações e tarefas do Estado, num activismo humanista imbuído de considerações éticas. Por outras

54 Também neste sentido, K. D. RAJU (2007), p. 31.55 Carla AMADO GOMES (2009), Escrever verde por linhas tortas: o direito

ao ambiente na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pp. 1-2, disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/CarlaAGEscrever.pdf (também publicado em Textos dispersos de Direito do Ambiente, III, Lisboa, 2010, pp. 135 segs)

palavras, a abordagem dos direitos humanos surge como a última fronteira para o tratamento do risco, incluindo dos OGM, procu-rando alertar para o facto de o risco e a incerteza não serem apenas problemas científi cos, resolvidos à régua ou por equação, mas tam-bém sociais e éticos.

Desta feita, há quem alerte para o facto de a verdadeira dimen-são catastrófi ca da biotecnologia não residir nos riscos científi cos mas na aniquilação do contexto que determina a nossa humani-dade, i.e., o comprometimento do que determina a identidade e o direito individual, a responsabilidade ou até as emoções.56 Ou seja, paradoxalmente, é quando a tecnologia se torna fi ável e funciona que o risco é maior, incluindo para a dignidade humana, devido à alteração de valores e contexto. Por exemplo, a introdução de OGM nos países em vias de desenvolvimento ou menos desenvolvidos pode revolucionar a agricultura, com custos para os pequenos e tradicionais agricultores que serão excluídos e que alimentarão o êxodo rural57. Por outras palavras, as velhas questões ontológicas e morais: de onde vimos e para onde vamos (com os OGM)58?

No debate actual assiste-se à invocação dos direitos humanos (alguns dos quais não necessariamente consolidados no plano jurídico internacional) junto de várias instituições internacionais, inclusive por via de relatórios e solicitações de grupos sociais59, curiosamente,

56 Ver Roger BROWNSWORD (2005), Biotechnology and rights: Where are we coming from and where are we going?, in Mathias KLANG / Andrew MURRAY (eds.), Human Rights in the Digital Age, The Glass House Press, p. 220.

57 S. D. MURPHY (2001), p. 69.58 R. BROWNSWORD (2005), p. 220.59 Por exemplo, relatório da ONG argentina Grupo de Refl exión Rural apresentado

em 2011 ao Comité das Nações Unidas para os Direitos Humanos, invocando, nomeadamente, a destruição da cultura e de comunidades locais, em especial indígenas, devido à monocultura intensiva de soja transgénica; ou o Relatório para o Relator especial das Nações Unidas para a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais das populações indígenas “Social Human Rights in

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quase sempre no sentido da sua interdição, tais como o direito à integridade cultural, o direito a um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, o direito à alimentação adequada ou direitos procedimentais como o direito a uma escolha informada ou à participação. Não seretire, porém, daqui, que necessariamente esta é uma estratégia inócua. A fragmentação excessiva dos direitos humanos, com a construção dogmática e jurídica de direitos ao clima, à energia ou à alimentação (entre tantos outros) e depois a sua derivação cada vez mais apertada, nomeadamente, em alimentação saudável, culturalmente adequada, sem riscos, biológica, livre de OGM, esvazia, ao contrário do desejado, o nível de protecção e o conteúdo dos novos direitos invocados mas também dos tradicionais direitos negativos.

Mais a mais, a colocação dos OGM neste tabuleiro, obriga a considerar a hipótese de um confl ito de direitos, seja do direito à alimentação (imediata – leia-se: não morrer já de fome) contra o direito a uma alimentação adequada, seja de um direito à alimentação contra o direito ao ambiente, seja ainda, numa perspectiva menos discutida, entre o direito à iniciativa privada e ao lucro das empresas de biotecnologia e os direitos de não sofrer dos riscos inerentes àquela actividade, de escolher os riscos a que se quer estar exposto, a participar no desenvolvimento de uma sociedade sem OGM e a um futuro sustentado60 ou entre o direito à informação e o segredo industrial e/ou comercial61.

Colombia: genetically modifi ed organisms and the human rights of indigenous peoples in Colombia”, pela Corporación Grupo Semillas, que aponta para a não audição destas populações quanto à introdução de OGM e os seus efeitos no estilo de vida e cultura indígena. Ver também, C. G. GONZALEZ (s.d.), pp. 20-21.

60 Paul Nicholas ANDERSON (2004), What rights are eclipsed when risk is defi ned by corporatism? Governance and GM food, Theory, Culture & Society, vol. 21 (86), p. 160.

61 Luís Carlos Lopes BATISTA (2010), Contributo para a densifi cação do conteúdo jurídico do princípio da precaução no âmbito dos organismos geneticamente modifi cados, Tese de mestrado, FDUL, 73-74.

Começando com a existência de um direito à integridade cultural, este é reconhecido no Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes. Note-se, ademais, que tanto a Convenção sobre a Biodiversidade como no Protocolo de Cartagena, se verifi ca tal-qualmente uma preocupação com a protecção das comunidades autóctones e indígenas.

Quanto ao direito subjectivo ao ambiente (e deixando aqui cair a propositadamente a perspectiva do dever de protecção ambiental) que poderia servir de arma contra os OGM, a ideia, como se defendeu anteriormente62, desponta com a “primavera silenciosa” de Carson.Além de servir para a afi rmação dos novos Estados, reforçando o seu conquistado direito ao desenvolvimento e de expressar umdescontentamento com o statu quo63, a defesa de um direito ao ambiente pretende envolver e sensibilizar os indivíduos, todos e cada um deles, para o seu papel activo na conservação do planeta.Cativante até porque pode ser percepcionado como um ganho, ao contrário da defi nição de um dever ou da imposição objectiva de uma tarefa, o direito ao ambiente tem sido acolhido em vários instrumentos jurídicos internacionais e nacionais e assumido, desde a mediática Conferência do Rio, como um dado adquirido, inclusive por muita doutrina.

Todavia, examinado mais de perto, o “direito ao ambiente” revela uma complexidade que não compactua com a ligeireza e linearidade da sua aceitação generalizada ao nível discursivo e com a sua invocação constante para justifi car, nomeadamente, medidas de salvaguarda contra OGM. Deste modo, ao analisar a sua consagração jurídica,

62 Retoma-se aqui R. SARAIVA (2009), pp. 204 segs.63 V. PEREIRA DA SILVA (1999), Verdes São Também os Direitos do

Homem, Publicismo, Privatismo e Associativismo no Direito do Ambiente, in Portugal-Brasil Ano 2000, BFDUC, Coimbra, p. 129.

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algumas perguntas incomodativas podem ser levantadas. Por exemplo, reconhece o Direito um direito ao ambiente? Em caso positivo, sob que forma? Será este um direito individual ou colectivo? Será ele um direito universal para todos os homens em todos os tempos e lugares? Deverá ser estendido para lá da esfera humana? No fundo, quem são os benefi ciários? Será ele um direito individualizado ou um acervo de direitos? Deverá ele ter um estatuto separado? Qual o seu âmbito, extensão e conteúdo? Que condições se reconduzem à violação do direito ao ambiente? Quais os mecanismos para a sua efectivação? Como garanti-lo?

Sem pretender, aqui, esgotar assunto tão rico, sublinhe-se que ao nível do Direito internacional não se conhece nenhum instrumento genérico que trate a ligação entre os direitos humanos e o ambiente. Na Proposta de Princípios Legais para a Protecção do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentado apresentada pelo Grupo de Peritos em Direito do ambiente e adoptada pela Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento (WCED) responsável pelo relatório Brundtland, prevê-se que todos os homens têm “um direito fundamentala um ambiente adequado para a sua saúde e bem-estar”64. Em 1989, a Sub-Comissão das Nações Unidas para a Prevenção da Discriminaçãoe Protecção das Minorias (hoje Sub-Comissão da Promoção e Protecção dos Direitos Humanos) nomeia um relator especial para analisar as relações entre os direitos humanos e o ambiente apresentadas, em 1994, no Projecto sobre os Princípios relativos aos Direitos Humanos e ao Ambiente que no seu Princípio 2 estabelece “um direito a um ambiente seguro, saudável e ecologicamente são”65. A Parte II do Projecto esclarece e concretiza com maior detalhe o conteúdo material deste direito e a Parte III prevê direitos procedimentais com ele

64 WCED (1987), Our Common Future, Oxford University Press, Oxford, p. 348.

65 UN Doc E/CN.4/Sub 2/1994, p. 19.

conexos. A Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos recorre ao relatório em reuniões subsequentes, colocando-o mesmo à consideração de Governos e ONG. O trabalho acaba por ser posto de lado depois dos comentários críticos da FAO sobre o seu carácter pouco pragmático e o fi m do mandato da Relatora66.

O Princípio 1 da Declaração de Estocolmo, muito citado apesar de integrar a soft law, não consagra, ao contrário do que algunsdefendem67, um direito ao ambiente autónomo, optando por estabelecer uma conexão com um “direito fundamental à liberdade e a condições de vida satisfatórias”. Se bem que não previsto directamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), nem na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)68, a verdade é que outros instrumentos internacionais, sobretudo de índole regional, se referem ao direito ao ambiente (ou pelo menos a uma ligação entre direitos humanos e ambiente), tais como a Convenção africana de direitos do homem no seu artigo 24º, o Protocolo de 1988 da Convenção americana de direitos do homem de 1969 no seu artigo 11º, o Pacto sobre direitos económicos, sociais e culturais de 1966,

66 L. ELLIOTT (2004), The Global Politics of the Environment, 2ª ed., Palgrave Macmillan, p. 148.

67 M. MELO ROCHA (2000), A Avaliação de Impacto Ambiental como Princípio do Direito do Ambiente nos Quadros Internacional e Europeu, Publicações Universidade Católica, Porto, 19. Difere-se aqui da posição defendida em R. SARAIVA (2001), A Aposta no Desenvolvimento Sustentado. Breve Perspectiva, em especial no Âmbito do Direito Internacional, Tese de Mestrado, FDUL, Lisboa, 127.

68 Nestes dois instrumentos, a doutrina e alguma jurisprudência têm procurado encontrar bases implícitas para o direito ao ambiente, como retirá-lo do direito à vida, do tratamento não degradante, dos direitos relacionados com a vida priva-da, com a actividade processual. Todavia, parece ser necessário um protocolo para esclarecer esta questão e atender às especifi cidades deste direito como a sua ambiguidade entre um direito individual e colectivo. J. F. RENUCCI (1999), Droit Européen des Droits de l’Homme, LGDJ, Paris, 388 ss, realçando o papel construtor e inovador da jurisprudência.

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no seu artigo 12º, a Convenção sobre os direitos da criança de 1989, no seu artigo 24º, nº 2, alínea c) ou a Carta Mundial da natureza, de 1982, no seu artigo Princípio 2369. Em 1984, a OCDE sugere a inclusão de um direito a um ambiente decente, e a Declaração de Haia de 1989 reconhece no seu parágrafo 5 que a degradação ambiental afecta o direito de viver em dignidade num ambiente global viável70. A Convenção de Aarhus relaciona, no seu artigo 1º, os direitos procedimentais de participação e de acesso à justiça e à informação com o direito de cada um das gerações presentes e futuras a viver num ambiente adequado à sua saúde e bem-estar.

Surpreendentemente, nem a Declaração do Rio nem a deJoanesburgo mencionam os direitos ambientais, preferindo a primeira, no seu Princípio 1, a fórmula mais vaga do Homem se encontrar no seio das preocupações do desenvolvimento sustentado e de ter direito a uma vida saudável e produtiva com a natureza. Esta hesitação indicia a incerteza quanto ao lugar dos direitos humanos na questão ambiental e sobre o conteúdo e dimensão que se quer conferir a um direito ao ambiente, em particular num casamento na prática confuso e mal delimitado entre desenvolvimento e ambiente sob as vestes atraentes mas fl uidas do desenvolvimento sustentado. A este propósito, adiante-se que, em matéria de alterações climáticas, o artigo 3º. nº 4 da CQNUAC consagra uns misteriosos direito e dever à promoção do desenvolvimento sustentado (misteriosos devido à difi culdade da delimitação normativa do quid e quantum do desenvolvimento sustentado que mais à frente se tentará desbravar). A propósito dos OGM, nem uma referência.

69 A Carta Africana e o Protocolo Adicional revelam uma perspectiva um pouco diferente na forma de delimitar o direito ao ambiente. A primeira dispõe que os povos têm direito “to a general satisfactory environment favourable to their development”. A segunda, por seu turno, estabelece que todos têm um “right to a healthy environment”. Por outras palavras, enquanto uma encara o direito ao ambiente como um direito colectivo a outra prefere a perspectiva individual.

70 L. ELLIOTT (2004), p. 149.

Com base na soft law acima enumerada, alguma doutrina, sobretudo mais próxima dos ecologistas, defende que o direito a um ambiente limpo e saudável constitui uma norma legal internacional71. Outros, porém, atribuem-lhe um carácter aspiracional72 ou potencial, ou reduzem-no a uma vaga protecção mediata contra danos ambientais através da violação de direitos humanos largamente aceites73, uma vez que não respeita apenas a forma como se trata o ambiente mastambém de como se lida com o outro. Esta parece ser a posição mais adequada face a uma leitura menos emotiva e parcial dos instrumentos e práticas internacionais existentes, salvo no que respeita o âmbitoregional, por exemplo sob a égide da Carta africana de direitos do homem. A multiplicidade de abordagens para a protecção do ambiente, maxime a título subjectivo, e o debate aceso sobre o conteúdo de um direito ao ambiente impedem qualquer pretensão à formação de uma norma consuetudinária. Isto é tanto mais verdade quando se compreende a relutância dos Estados, ainda arreigados à sua sobe-rania, em reconhecer um direito que pode permitir um direito-dever de ingerência ecológica.

71 Por exemplo, M. MELO ROCHA (2000), p. 19. Posição defendida em R. SARAIVA (2001), pp. 127 segs, em que se acrescentava que a sua defi nição permite limitar o domínio reservado dos Estados (na vertente de um direito a um ambiente são e ecologicamente equilibrado) e legitimar a ingerência verde.

72 Carla AMADO GOMES (2007), Risco e modifi cação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, pp. 40 segs; C.IMPERIALI (ed.) (1998), L’Effectivité du Droit International de l’Environnement, Contrôle de la Mise en Oeuvre des Conventions Internationales, Economica, Paris, p. 22.

73 L. ELLIOTT (2004), p. 150; P. BIRNIE / A. BOYLE (1992), International Law and the Environment, Clarendon Press, Oxford, pp. 188-192, defendem que o direito ao ambiente difere de uma visão ortodoxa do Direito internacional com a referência a direitos e obrigações dos Estados. Contudo, reconhecem que a opinião maioritária propugna que o direito ao ambiente não é um direito independente mas derivado de outros direitos previstos internacionalmente. Sobre a controvérsia relativa à existência ou não, no ordenamento internacional, de um direito ao ambiente, por todos M. A. FITZMAURICE (2002), International Protection of the Environment, Recueil des Cours 2001, Martinus Nijhoff, pp. 305 segs.

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Por sua vez, quanto ao direito à alimentação, que pode ser encontrado no artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 11º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, retomando o que se escreveu noutra sede74 e sem querer ser exaustiva75, a defi nição mais difundida e aceite decorre da Declaraçãode Roma de 1996, que o consagra como “right of everyone to have access to safe and nutritious food, consistent with the right to adequate food and the fundamental right of everyone to be free from hunger”76. Jean ZIEGLER prefere recortá-lo de forma mais detalhadae com um maior cuidado quanto à sua componente socio-cultural como “the right to have regular, permanent and unrestricted access, either directly or by means of fi nancial purchases, to quantitatively and qualitatively adequate and suffi cient food corresponding to the cultural traditions of the people to which the consumer belongs, and which ensures a physical and mental, individual and collective, fulfi lling and dignifi ed life free of fear”77. Por outras palavras,

74 Rute SARAIVA (2010), Uma Questão de Peso: Análise Jurídico-Económica da Obesidade, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, Almedina.

75 Por todos, Osvaldo CARVALHO (2013), O direto fundamental à alimentação e a sua protecção jurídico-internacional, in Maria João ESTORNINHO (coord.), Estudos de Direito da Alimentação, ICJP; Luísa NETO (2009), A nutrição como política pública: ainda a garantia ou já a restrição de direitos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

76 FAO (2006), The Right to Food Guidelines. Information Papers and Case Studies, Roma, p. 56, disponível em http://www.fao.org/docs/eims/upload/ 214344/RtFG_Eng_draft_03.pdf.

77 Jean ZIEGLER (2006), The right to food, Report of the Special Rapporteur on the right to food, Economic and Social Council, Commission on Human Rights, E/CN.4/2006/44, 16 de Março, disponível em http://www.righttofood.org/Human%20Rights%20Council%202006.pdf; (2002), The right to food, Report of the Special Rapporteur on the right to food, Economic and Social Council, Commission on Human Rights, E/CN.4/2002/58, 10 de Janeiro, disponível em http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/832c9dd3b2f32e68c1256b970054dc89/$FILE/G0210079.pdf. Note-se que a defi nição do direito à alimentação

inerente à dignidade da pessoa humana e inseparável da justiça so-cial, o direito à alimentação é indispensável para a prossecução e concretização de outros direitos tanto fundamentais como o direito à vida, como económicos, sociais ou culturais, revelando a neces-sária e incontornável interdependência de direitos78.

O direito à alimentação adequada não se resume, desta feita, a um número necessário de calorias, implicando a sua acessibilidade, disponibilidade, continuidade, sustentabilidade e adequação. Por outras palavras, abarca tanto um elemento quantitativo como um elemento qualitativo. No que respeita a este último, várias dimen-sões devem ser equacionadas. A saber, a conformidade em termos nutricionais, de saúde (incluindo a segurança alimentar79), culturais e de não compressão injustifi cada de outros direitos. Ora, se por um lado os OGM poderão responder ao aspecto quantitativo, pela sua alegada maior resistência a pragas e adaptabilidade climática e ao tipo de solo, por outro, a manipulação biotecnológica suscita angústias quanto à sua segurança e implicações para o modo de vida tradicional.

é bem mais restrita no Comentário Geral nº 12 que estipula: “The right to adequate food is realized when every man, woman and child, alone or in community with others, has physical and economic access at all times to adequate food or means for its procurement.”

78 Rolf KÜNNEMANN (2000), The Right to Adequate Food, in Human Rights Resource Center, Circle of Rights: Economic, Social & Cultural Activism: A Training Resource, University of Minnesota; Marc J. COHEN (2003), The Right to Adequate Food and Food Security, apresentação no Congressional Human Rights Caucus Members Briefi ng on World Hunger: Moving Toward Global Food Security, Washington, DC, 21 de Maio; Amartya SEN (2003), O Desenvolvimento como Liberdade, tradução de Joaquim Coelho Rosa, Gradiva, pp. 173-200 e 215-236.

79 Neste âmbito, poder-se-ia colocar a questão de saber se o direito à alimentação se resume apenas a alimentos orgânicos, biológicos e integrais, ou se abrange bens refi nados, processados e até geneticamente modifi cados. Sobre este assunto, Kate CLANCY / Ruth KATZ (2004), Does the right to food means organic food, W.K. Kellogg Foundation.

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Com a sua densifi cação em progresso80, este direito sindicável81, com uma conotação política inegável82, tem igualmente uma dimensão positiva, sendo um direito funcional, um direito-dever cuja efectivação implica para o Estado uma obrigação de concretização progressiva83 de um direito a uma alimentação nutricional e culturalmente adequada,sufi ciente e segura traduzida em três frentes de acção concomitantes a implementar tanto a curto como a longo prazo: respeitar, proteger e satisfazer.

Respeitar, obrigação negativa e limitadora, signifi ca que o Estado deve procurar não tomar medidas que obstruam ou difi cultem o acesso aos alimentos, por exemplo através da privação do acesso à terra ou a inclusão de substâncias nocivas. Proteger, por seu turno, implica que o Estado deva assegurar que ninguém prive outrem de acesso à alimentação, o que inclui um cuidado especial com as grandes multinacionais e preocupações com os direitos dos consumidores. Ora, uma das questões mais polémicas com os OGM prende-se

80 Smita NARULA (2006), The Right to Food: Holding Global Actors Ac-countable Under International Law, Columbia Journal of Transnational Law, vol. 44; FAO (2006); Marc J. COHEN (2003); Jean ZIEGLER (2006); (2003), The right to food, Report of the Special Rapporteur on the right to food, Economic and Social Council, Commission on Human Rights, E/CN.4/2003/54, 10 de Janeiro, disponível http://www.rightofood.org/ECN4200354.pdf; Rolf KÜNNEMANN (2000); Comentário Geral nº 12.

81 FAO (2006); Comentário Geral nº 12; Declaração de Viena e Plano de Acção de 1993. Veja-se ainda a jurisprudência que começa a despontar em alguns Estados como a Índia, a Suíça ou a África do Sul.

82 A comida é política. Recorde-se que a Revolução Francesa foi desencadeada não tanto pela luta por valores mas pela escassez de pão e que a ajuda alimentar é muitas vezes empregue como moeda de troca. Marc J. Cohen (2003), realça, alias, a íntima relação entre democracia e a alimentação.

83 Discute-se se esta obrigação é meramente programática ou directamente vinculativa e o signifi cado da progressividade. Dos vários relatórios de Jean Ziegler ao Conselho Económico e Social e das directivas da FAO (2006) resulta, no seguimento do artigo 2º. nº 1 do Pacto internacional sobre os direitos económicos, sociais e culturais, a obrigação imediata da garantia de um mínimo de subsistência, o princípio da não regressão e a proibição de discriminação e tratamento desigual.

com o perigo de monopolização do mercado agrícola e alimentar, em especial atendendo ao sistema de patentes e ao desenvolvimento de sementes não reprodutivas, num mercado com uma dezena de empresas de biotecnologia, em que 20% se encontra nas mãos da Monsanto e 44% no trio Monsanto, Syngenta e Dupont84. Satisfazer, obrigação positiva, subdivide-se em dois deveres complementares: facilitar e prover. No primeiro, o Estado deve tomar medidas para auxiliar e reforçar o acesso e a utilização dos recursos e dos alimentos, incluindo através do apoio da sociedade civil e da verifi cação de eventuais violações como a discriminação85. Pense-se na política agrária. Já no segundo, as entidades públicas devem fornecer directamente os meios.

Adiante-se, todavia, que esta obrigação da concretização do direito à alimentação deve não só entender-se no âmbito do conceito mais vasto de soberania alimentar86 mas ainda de cooperação internacional. Na sua dimensão interna, impera a lógica da boa governança (good governance), mesmo reconhecendo uma margem de discricionariedade no acompanhamento de todo o processo alimentar (da produção ao consumo), realizada, nomeadamente, através dos princípios de responsabilidade, transparência, participação, descentralização, capacidade legislativa e sindicabilidade independente. A abordagem deverá ser integrada, monitorizada e fi scalizada para uma maior efi ciência e efi cácia. No plano internacional, a assistência fi nanceira e técnica constituem elementos chave.

84 Melissa MORGATO (2013), Os organismos geneticamente modifi cados: algumas questões jurídicas, in Maria João ESTORNINHO (coord.), Estudos de Direito da Alimentação, ICJP, p. 152.

85 Artigo 2º, nºs 2 e 3 do Pacto internacional sobre os direitos económicos, sociais e culturais.

86 Veja-se Jean ZIEGLER (2004), The right to food, Report of the Special Rapporteur on the right to food, Economic and Social Council, Commission on Human Rights, E/CN.4/2004/10, 9 de Fevereiro, disponível em http://www.righttofood.org/ECN4200410.pdf.

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Com efeito, o direito à alimentação, enquanto direito económico e social, tem igualmente uma dimensão internacional, muito debatida em termos doutrinários. Afi nal, os direitos humanos não se limitama uma aplicação meramente territorial criando obrigações para lá das fronteiras dos Estados. Nesta medida, os Estados enquanto partes de instrumentos internacionais protegendo o direito à alimentação encontram-se submetidos às obrigações de respeitar, proteger e facilitar a alimentação, abster-se de medidas danosas para outros Estados e garantir a assistência humanitária. Deve ainda assinalar-se o papel cada vez mais importante de organizações internacionais tanto na esfera da ONU (FAO, UNICEF, PNUD, PMF, UNHCR) como fi nanceiras e comerciais (FMI, Banco Mundial, OMC), assim como de organizações não governamentais e das empresas, muito embora quanto a estas se discuta a problemática da sua vinculação ao Direito internacional87.

Em especial, é de salientar o trabalho do Comité das Nações Unidas para os Direitos económicos, sociais e culturais e da Comissãodas Nações Unidas para os Direitos Humanos. Aquela, inclusivamente,considerando os OGM, defende que o núcleo do direito a umaalimentação adequada implica “the availability of food in a quantity and quality suffi cient to satisfy the dietary needs of individuals, free from adverse substances, and acceptable within a given culture; the accessibility of such food in ways that are sustainable and that do not interfere with the enjoyment of other human rights”88. Aliás, o Relator especial da Subcomissão para a Promoção e Protecção dos Direitos Humanos da Comissão das Nações Unidas para os DireitosHumanos vai mais longe, defendendo que as obrigações dos Estados “require active protection against other, more assertive or aggressive

87 Veja-se a Resolução nº 60/165 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, ou A/58/330 de 28 de Agosto de 2003 parágrafos 43 e 44; o Comentário Geral nº 12; Jean ZIEGLER (2004).

88 General Comment 12, paragraph 8 (E/C.12/1999/5).

subjects – more powerful economic interests, such as protection against fraud, against unethical behaviour in trade and contractual relations, against the marketing and dumping of hazardous or dangerous products. This protective function of the State is widely used and is the most important aspect of State obligations with regard to economic, social, and cultural rights, similar to the role of the State as protector of civil and political rights”89.

Daqui decorre, inevitavelmente, a importância de direitosprocedimentais para garantir a efectividade do direito a umaalimentação adequada, mas tal-qualmente de um direito a um ambientesaudável e ecologicamente equilibrado, como aliás, se retira do princípio 10 da Declaração do Rio, ou a uma integridade cultural.

O acesso à informação de modo a possibilitar uma escolha racional,por trás, por exemplo, das obrigações de rotulagem, recorda a dimensão ética subjacente à verdadeira autonomia dos sujeitos jurídicos. A etiquetagem permite consubstancializar e operacionalizar um direito a uma escolha informada por parte das populações em geral e dos consumidores em particular. Todavia, nem todos têm os mesmos meios ou capacidades para obter e saber interpretar a informação sobre OGM. Tanto é mais verdade considerando os países em vias de desenvolvimento ou menos desenvolvidos que se debatem com limitações institucionais, económico-fi nanceiras, técnicas mas também humanas. Afi nal, os números do analfabetismo e da iliteracia podem ser, nalguns casos, esmagadores.

Mais, num contexto de escassez quase absoluta e de profundanecessidade alimentar, será que haverá mesmo escolha entre o alimento biotecnológico existente ou o “tradicional” inexistente?Parará o consumidor para pensar sobre possíveis efeitos futuros nefastos face a uma situação imediata de sobrevivência? A questão terá pois de ser colocada mais acima, junto ao Governo, ou mesmo

89 E/CN.4/Sub.2/1999/12.

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comunidade internacional, e não junto do elo mais fraco que será o consumidor fi nal.

Assim se compreende a importância atribuída a um outro direito procedimental, a saber o direito à participação democrática (nas decisões sobre a aceitação ou não de entrada dos OGM no mercado ou da sua libertação no ambiente), enquanto expressão de uma necessidade de equidade e justiça e de permitir que, activamente, se tenha uma palavra a dizer sobre o tipo de sociedade em que se quer viver e os riscos que se aceita correr. Também aqui, diferenças nascondições de acesso e exercício deste direito existem tanto interna como internacionalmente (em que a difi culdade, até pelo distanciamento institucional, de participação do cidadão é acrescida)90, já para não mencionar na perspectiva intergeracional. As gerações futuras serão, enfi m, afectadas pelas decisões actuais sobre OGM, o que sublinha mais uma vez a necessidade de compatibilização da tomada de decisão com os princípios da precaução e do desenvolvimento sustentado. Em suma, a democratização na decisão sobre OGM justifi ca-se, tanto por argumentos normativos como pragmáticos (aceitabilidade social e efi cácia)91.

De resto, a experiência vem demonstrando a infl uência e mudançadas políticas públicas e enquadramento jurídico em função do alargamento da participação e do seu recorte, com cenários de endurecimento das exigências para os OGM ou, ao invés, de uma maior fl exibilização92. As lições da psicologia social e cognitiva

90 Catarina FRADE / Inês GAMEIRO (2008), Regulação do risco e participação: o caso dos organismos geneticamente modifi cados, apresentado no workshop do Colóquio Internacional Caminhos de Futuro. Novos mapas para as ciências sociais e humanas, organizado pelo Centro de Estudos Sociais, disponível em http://www.ces.uc.pt/e-cadernos/media/documentos/ecadernos2/Catarina%20Frade%20e%20Ines%20Gameiro.pdf.

91 M. Eduarda GONÇALVES (2008). 92 Jérôme da ROS / Diahanna LYNCH (2001), Science and public participation

in regulating genetically modifi ed food: French and American experiences, Paper prepared for the 7th Biennal International Conference, Wisconsin.

podem ajudar a compreender alguns destes fenómenos, nomeadamente através da agudização social de certos comportamentos intragrupais e do hiato entre leigos e peritos. Em consequência, daqui se devem retirar ilações quanto ao modelo de participação mais adequado para lidar com uma questão tão técnica que, no fi m, pode afectar osdireitos humanos. Soluções integradas mas com degraus que vão desde o mais puro conhecimento científi co, com processos de revisão e confi rmação, até à comunicação e participação do grande público, passando pelo envolvimento dos decisores políticos, um pouco à semelhança do que já acontece com IPCC, poderia ser uma referência para a temática dos OGM nas três fases típicas do processo de decisão em torno de riscos: “1ª A avaliação do risco (fundada na ciência); 2ª A gestão do risco (ou decisão político-administrativa); e 3ª A comunicação do risco (no seio do sistema de avaliação e gestão, e junto do público)”93. Acresce, por esta ser uma matéria de regulatory science e de aconselhamento científi co, a importância da integridade, neutralidade e eticidade do trabalho científi co94.

No que respeita a tomada de decisão sobre OGM, deverá ser olhado, por fi m, o nº 11 do artigo 6º da Convenção de Aarhus, a única disposição existente internacionalmente (aqui ao nível regional) respeitante a interacção específi ca entre os direitos procedimentais e as decisões de autorização de libertação deliberada no ambiente de OGM, postulando a transparência e accountability. A sua consagração faz todo o sentido se compreendermos a importância de escolhas informadas por parte da população e dos consumidores em particular e se atendermos ao facto de a participação pública ter um profundo impacto nas escolhas, estratégias e políticas comerciais, além de uma

93 Maria Eduarda GONÇALVES (2008), Regulação do Risco e “Risco” da Regulação: O Caso dos Organismos Geneticamente Modifi cados, Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina.

94 P. N. ANDERSON (2004), p. 159.

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melhoria nas decisões. Aliás, consegue-se, assim, para lá de uma maior aceitabilidade social das medidas tomadas, uma responsabilização individual pelas decisões, inclusive no caso de provocarem danos ambientais, e diminuem-se os níveis de desconfi ança em torno do enquadramento jurídico dos OGM95.

Do artigo 6º, nº 11, sobressai um direito a participação pública mas com duas restrições: a obrigação das partes limita-se ao que é exequível e apropriado, por um lado, e, por outro, depende das disposições legais nacionais. Dito de outra forma, mais do que uma obrigação, parece ser apenas uma opção deixada aos Estados que podem, se quiserem, alargar as oportunidades de participação pública neste contexto96.

De notar, porém, que apesar na previsão expressa dos OGM no nº 6 do artigo 11º da Convenção de Aarhus, no início, a sua aplicação não se revelou linear, sendo a questão apontada como a tratar e a desenvolver no seio dos Encontros das Partes. Em Abril de 1999 foi constituída uma task force para seguir a evolução do tratamento dos OGM tanto internacional como nacionalmente e para a elaboração de recomendações sobre o tratamento desta matéria no âmbito da Convenção. Resumidamente, resultou evidente a necessidade de clarifi cações quanto às disposições daquela, em especial quanto ao conceito de libertação intencional. Com a criação de um grupo de trabalho sobre OGM, um ano mais tarde, conseguiu-se ajudar as Partes, nos seus Encontros, a discutir a fi xação de directrizes, alcançadas em 2002, em Lucca, com a previsão de um instrumento de soft law, as Orientações sobre o Acesso à Informação, ParticipaçãoPública e Acesso à Justiça respeitando os OGM97. Estas não só fogem

95 Hana MÜLLEROVÁ [et al.] (2013), Public participation in environmental decision-making: implementation of the Aarhus Convention, Ústav státu a práva, Praga, pp. 31-32.

96 Hana MÜLLEROVÁ [et al.] (2013), p. 44.97 Decisão I/4 (ECE/MP.PP/2/Add.5).

a algumas questões mais delicadas como prevêem o aprofundamento do trabalho iniciado, designadamente através da constituição de um novo Grupo de trabalho. Ademais, o carácter não vinculativo do documento indicia a controvérsia da questão com a consequente renitência em aceitar obrigações substantivas e procedimentais efectivas98.

Em 2005, na sequência dos esforços realizados pelo novo grupo de trabalho, alcança-se uma nova decisão99 sobre os OGM, em Almaty, com o intuito de fortalecer a participação pública em torno desta questão, introduzindo para tal um novo artigo 6º bis e um Anexo I bis sobre OGM (ainda não em vigor por falta do número exigido de ratifi cações), com uma aclaração das obrigações e das disposições da Convenção aplicáveis aos OGM. Veja-se que se estende a aplicaçãonão apenas à libertação intencional de OGM no ambiente mas também à sua colocação no mercado, deixando de fora o uso contido.Acresce nesta emenda a especifi cação de requisitos mínimos de participação pública nas decisões de libertação ou marketing de OGM com a preocupação de garantir uma informação prévia e efectiva. Reforça-se a ligação com outros instrumentos internacionais, em particular com o Protocolo de Cartagena, na procura de alguma consistência normativa e aceitam-se excepções opcionais (leia-se na discrição do Estado) no novo anexo: para a libertação no ambiente, se esta, em condições bio-geográfi cas comparáveis, já foi aprovadana regulação nacional da Parte e, cumulativamente, se já existe experiência sufi ciente com a libertação de OGM em ecossistemas semelhantes; para a colocação no mercado, se já foi aprovada no plano nacional ou, em alternativa, se diz respeito a pesquisa ou a levantamentos culturais.

98 Hana MÜLLEROVÁ [et al.] (2013), p. 34.99 Decisão II/1 (ECE/MP.PP/2005/2/Add.2).

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O novo Anexo prevê ainda uma obrigação activa dos Estados--Membros de providenciarem ou tornarem disponível ao público um resumo de cada notifi cação introduzida para obter autorização de libertação intencional de OGM no ambiente ou de colocação no mercado nacional, assim como o relatório de avaliação. Mais, concretiza o patamar de confi dencialidade através da listagem de categorias concretas de informação que não são, em caso algum, classifi cadas como confi denciais.

Note-se, contudo, que todo este novo regime apenas se aplicará às Partes que o ratifi caram, o que signifi ca que dentro da Convenção haverá Partes com obrigações diferentes quanto aos OGM.

Considerando assim a questão dos OGM na Convenção de Aarhus, com as orientações de Lucca e a Emenda de Almaty, são agora equacionáveis tanto o direito de participação pública expressamente previsto, como os direitos de acesso à informação e à justiça, embora neste último caso uma alteração do artigo 9º fosse aconselhável à luz da emenda de Almaty100 de modo a ultrapassar mais uma ambiguidade no regime jurídico dos OGM.

5. Conclusão

Da análise do Direito internacional, constata-se a ausência de um instrumento específi co referente à questão dos OGM, sendo o seu enquadramento uma manta de retalhos com disposições e princípios (convencionais ou consuetudinários) com perspectivas diferentes, nemsempre congruentes nem efectivos, o que difi culta a tomada de decisões quanto ao desenvolvimento futuro da biotecnologia por perpetuar não só um clima de desconfi ança, incluindo teorias da conspiraçãoenvolvendo multinacionais e governos ou de bio-colonialismo, como

100 Hana MÜLLEROVÁ [et al.] (2013), pp. 50-51.

por alimentar incertezas e ambiguidades potencialmente fatais para o investimento em pesquisa, inovação e desenvolvimento biotecnológicossobretudo atendendo aos elevados custos de transacção e de litigação associados. Sobressai, portanto, a necessidade urgente, nesta que é uma questão transversal, de uma preocupação de coordenação entre os diferentes instrumentos e normas. Mais, urge também a coordenação entre os diversos stakeholders ou “comunidade epistémica”101, dos Estados aos consumidores, passando pelas empresas e centros de investigação, alimentando um diálogo entre a ciência, a política, o Direito, o mercado e a ética.

Se para os países desenvolvidos esta indefi nição pode ser uma oportunidade, para os menos desenvolvidos, fragilizados, sem massacrítica sufi ciente, instituições consolidadas e sem, muitas vezes, opções – veja-se em matéria de segurança alimentar –, ela é sem dúvida um problema, sujeitando-os à susceptibilidade de políticas extractivas que ameaçam e condenam um verdadeiro desenvolvimento sustentado.

No contexto da sua correcta prossecução e garantia, no âmbito da problemática dos OGM, é necessário compreender a sua natureza integrativa e de chapéu de outras normas. Por outras palavras, os OGM não podem ser tratados de forma compartimentada, ora como questão ambiental, ora como questão comercial ou agrícola, ora de direitos humanos ou ética ou científi ca ou política. Da mesmaforma, a questão não pode ser compreendida como desenvolvimento (sustentado) versus precaução. Afi nal, esta deve ser operativa daquele, o que signifi ca a sua sujeição a critérios de proporcionalidade ou até mesmo de uma qualquer análise custo-benefício que, embora assentes no conhecimento científi co, devem incluir ponderações éticas.

101 Expressão usada recorrentemente por S. D. Murphy (2001).

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Impõe-se pois uma re-conceptualização da problemática dos OGM de modo a evitar uma qualquer catástrofe ambiental, humana oueconómica: uma regulação assumidamente harmonizadora e integradora, global e participada, em que os vários “ramos” jurídicos se suportam mutuamente e se unem e em que se assuma que, mundialmente, existem diferenças de desenvolvimento e de responsabilidade (e consequentemente de obrigações dos vários Estados).

Capítulo X

Saúde pública, direito penal e “novos riscos”: um triângulo com lados desiguais

Susana Aires de Sousa

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Investigadora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra [linha temática “Pessoa e Direito”]

Sumário: O estudo que ora se apresenta procura relacionar três realidades muito diversas entre si: saúde pública, direito penal e os novos riscos própriosde uma sociedade científi ca e tecnologicamente avançada. De um primeiro ângulo, atende-se à ligação entre saúde pública e direito penal (I). De modo particular, refl ecte-se sobre a dignidade penal da saúde pública enquanto bem jurídico-penal (1) e apontam-se alguns exemplos de concretizações normativas dessa tutela no plano nacional e internacional (2). O segundo ângulo refl ecte a relação entre a saúde pública e os “novos riscos” afi rmados naquela sociedade contemporânea, também chamada de “segunda modernidade” ou “modernidade refl exiva” (II). Num terceiro momento angular, atende-se às soluções jurídicas que têm vindo a ser propostas neste cenário de incerteza, característico desta sociedade do risco (III). A nossa atenção centra-se sobre o princípio da precaução (1), a sua formalização e a sua aplicação, em particular, no âmbito da saúde pública (2). Num último passo, fecha-se o triângulo, desenhando o seu último lado: a relação entre o princípio da precaução, enquanto instrumento de resposta jurídica àameaça contida nos novos riscos, e o direito penal (3). Num juízo comparativo, este último lado mostra-se muito curto, concluindo-se que a eventual relevância jurídico-penal da precaução no âmbito da tutela penal da saúde pública em face de riscos incertos deve ser reduzida e mediatizada, no plano dogmático,

pelos institutos e categorias próprios da doutrina penal (IV).

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I. Saúde pública e direito penal: o primeiro ângulo

1. Saúde pública como um bem jurídico-penal

A saúde pública é reconhecida como um interesse social digno de protecção jurídica. Todavia, no âmbito jurídico-penal discute-se se este valor tem a necessária autonomia e dignidade penal para quepossa ser assumido como um bem jurídico-penal. As difi culdades em admitir a saúde pública como bem jurídico-penal não são despiciendas. À discussão, de carácter mais amplo, inerente à legitimidade a tutela criminal de interesses de natureza difusa ou colectiva1, soma-se a obscuridade e indeterminação da defi nição deste específi co bem. A estas duas questões adiciona-se ainda uma outra: a saúde pública, enquanto bem jurídico-penal, cumpre de forma adequada, nesse contexto, as funções exigidas àquela categoria jurídico-penal? A cada uma destas questões se procurará responder nas alíneas seguintes.

a) No que se refere ao primeiro daqueles pontos, tivemos oportunidade de defender2 que concordamos com aqueles autores que, ao lado dos bens jurídicos individuais ou dotados de referente individual e ao mesmo nível de exigência tutelar autónoma, reconhecem a existência de autênticos bens jurídicos sociais, trans-individuais, transpessoais, colectivos, cujo reconhecimento é imposto pela própria mutação da realidade social. Exige-se, assim, uma refl exão aprofundada por parte da doutrina em torno da categoria “bens jurídicos

1 Para uma exposição sucinta das principais posições doutrinárias e respectivas referências bibliográfi cas veja-se Susana Aires de SOUSA, Os Crimes Fiscais. Análise Dogmática e Refl exão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, Coimbra, Coimbra Editora, 2006 (reimp. 2009), p. 201, e demais referências bibliográfi cas aí indicadas.

2 Cfr. Susana Aires de SOUSA, Os Crimes Fiscais..., op. cit., pp. 291 segs.

colectivos”3. Não sendo este o espaço adequado ao desenvolvimento desta questão, apenas se acrescentam algumas notas que caracterizam esta categoria.

Desde logo, o critério proposto para determinar os contornos de um bem jurídico colectivo ou supra-individual é importado da economia e traduz-se no princípio da não exclusão, segundo o qual são bens colectivos aqueles cuja utilidade aproveita a todos sem que ninguém possa dela ser excluído (inexcluibilidade). A esta nota de inexcluibilidade há-de juntar-se, na sua concretização material, o reconhecimento desse bem como valioso à comunidade. Esse seu carácter valioso pode advir-lhe imediatamente da sua própria essência necessária à sobrevivência humana – é o caso do ambiente – ou, como preferem outros autores, tratar-se de um valor deduzido a partir de bens jurídicos fundamentais a que servem de suporte – seria o caso, v.g., da tutela penal da soberania do Estado4. Nas palavras de Figueiredo DIAS, se o bem jurídico colectivo se realiza numa relação difusa com os usuários, tal não signifi ca um carácter difuso do bem jurídico universal como tal5. O bem jurídico colectivo há-deser dotado de uma tal concretização que lhe permita cumprir as funções reconhecidas àquela categoria, designadamente a de padrão crítico da incriminação.

3 Neste contexto e meramente a título exemplifi cativo refi ra-se o importante contributo da monografi a de Roland HEFENDEHL, Kollektive Rechtsgüter im Strafrecht, Kollektive Rechtsgüter im Strafrecht, Köln / Berlin/ Bonn / München, Carl Heymanns Verlag KG, 2002, para o estudo dos bens jurídicos colectivos.

4 Cfr. António Manuel de Almeida COSTA, Sobre o crime de Corrupção. Breve retrospectiva histórica. Corrupção e concussão. Autonomia “típica” das corrupções “activa” e “passiva”. Análise dogmática destes dois delitos, BFD: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, vol. I, 1984, pp. 81 segs; Artigo 217º, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 748 segs.

5 Jorge de Figueiredo DIAS, Direito Penal, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 150.

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Por fi m, deve ainda acrescentar-se que o reconhecimento de um bem jurídico colectivo, dotado de conteúdo próprio e autónomo, não justifi ca por si só uma tutela penal. Esta só estará legitimada se cumprida na observância dos princípios basilares do direito penal tais como o da ultima ratio e da mínima intervenção penal, que assumem particular relevância no contexto que ora nos preocupa.

b) Mas, será a saúde pública um bem jurídico-penal no sentido acabado de descrever? A doutrina penal tem colocado em evidênciaas difi culdades em determinar os contornos da noção de saúde pública, em particular, devido ao “uso múltiplo”6 do termo, quer pelo legislador, quer pela doutrina. Deparamo-nos assim com uma diversidade de defi nições que, em traços muito largos e simples, podem reconduzir-se a duas tendências principais: por um lado, aqueles autores que referem aquele conceito à saúde individual; por outro lado, os autores que lhe conferem uma total autonomia enquanto bem jurídico-penal7.

Da perspectiva enunciada em primeiro lugar, tendem a esbater-se as diferenças entre saúde individual e saúde colectiva ou pública. A distinção não estaria tanto ao nível do substrato material ou do objecto de protecção, mas antes no sujeito-titular do bem. Ou seja, em ambas se trata de proteger a saúde individual; porém, a saúde pública refere-se a um número elevado e indeterminável de pessoas que constituem a colectividade. Neste sentido, a saúde pública tem

6 A expressão é de Augusto Silva DIAS, Entre “comes e bebes”: debate de algumas questões polémicas no âmbito da protecção jurídico-penal do consumidor (a propósito do Acórdão da relação de Coimbra de 10 de Julho de 1996), in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 486.

7 Cfr. Luz María PUENTE ABA, Delitos Económicos contra los Consumidores y Delito Publicitario, Valencia, Tirant lo Blanch, 2002, p. 87.

vindo a ser defi nida como a soma das saúdes individuais, numa relação de pluralidade-singularidade8.

A segunda daquelas posições procura conceber o objecto tutelado como algo distinto e autónomo da saúde individual. Neste sentido, saúde pública é defi nida como o “conjunto de condições que, de acordocom o desenvolvimento tecnológico e científi co de cada época, garantem um nível de bem-estar, físico e psíquico, à generalidade das pessoas”9. Este conjunto de condições realiza-se através da regulamentação de sectores fundamentais da colectividade como o dos bens alimentares ou o dos medicamentos, mas também de bens de consumo em geral como vestuário, brinquedos, cosméticos, etc. Aquele conceito, enquanto preservação das condições necessárias à saúde da colectividade, engloba as regras de higiene e segurança que estão na base de um entendimento mais restrito de saúde pública como conjunto de regras sanitárias ou de higiene social10.

Uma das razões em que se funda a difi culdade em defi nir saúde pública prende-se, em certa medida, com a extensão e complexidade que este conceito foi adquirindo no fi nal do século XX. Com efeito,a noção de saúde pública tem vindo a ganhar uma acentuada dimensão sistémica, derivada da organização de um sistema público de protecção das condições de saúde da comunidade. Vinca-se cada

8 Cfr. Luz María PUENTE ABA, Delitos Económicos contra los Consumidores, op. cit., p. 87. Também Augusto Silva DIAS, Entre “comes e bebes”..., op. cit., p. 486.

9 Cfr. Winfried HASSEMER / Francisco MUÑOZ CONDE, La Responsabilidad por el Producto en Derecho Penal, Valencia, Tirant lo Blanch, 1995, p. 65. Também Luz María PUENTE ABA, Delitos Económicos contra los Consumidores, op. cit., p. 87.

10 Este último sentido é sublinhado e autonomizado por Augusto Silva DIAS, Entre “comes e bebes”..., op. cit., p. 486. O autor concretiza o “uso múltiplo” do conceito pelo legislador em três signifi cações fundamentais: saúde pública entendida como soma das saúdes individuais; como complexo de condições de vida da comunidade que asseguram e protegem a saúde da pluralidade dos seus membros; e, por fi m, como conjunto de regras sanitárias ou de higiene social.

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vez mais, nos elementos constitutivos daquele conceito, uma actuação organizada tendo por fi m avaliar e melhorar as condições de saúde física e psíquica da comunidade. Neste sentido, a saúde pública surge dotada de uma componente organizatória e de uma compreensão global associada a uma racionalidade própria, cumprida através de uma política estadual ou europeia, que lhe confere autonomia em face da soma das saúdes individuais de cada membro da colectividade. Por outras palavras, o resultado destas parcelas individuais não inclui todo o signifi cado e conteúdo do conceito de saúde pública, desde logo porque lhe escapa a ideia de um todo organizado segundo um conjunto de princípios orientados à prossecução de determinados fi ns de natureza preventiva e, cada vez mais, de carácter prospectivo11, num duplo sentido: antecipando o que se prevê acontecer num futuro mais ou menos próximo e promovendo estratégias de saúde.

É justamente esta nota sistémica que permite compreender também que a noção de saúde pública se vá alterando, refl ectindo as preocupações sociais do seu tempo. Trata-se, neste nosso tempo, da “saúde pública da informação e do conhecimento, da efectividade, da comunicação, da capacidade de negociar e federar interesses, da promoção de uma visão partilhada do tipo de futuro que interessaà maior parte”12. Neste sentido, os fi ns de uma política de saúde pública coincidem não só com o controlo e diminuição do risco de doença, como também com a promoção do nível de saúde daspopulações. Deste modo, o conceito de saúde pública assume hoje um carácter complexo que excede largamente uma defi nição simplista centrada sobre a estratégia de prevenir a propagação de doenças através de um sistema de vacinação. O conceito extravasa igualmente,num outro sentido, a prossecução de uma política sanitária tal como, num exemplo remoto, se propunha no programa da disciplina de

11 Sobre a noção de saúde pública prospectiva, Constantino SAKELLARIDES, Saúde pública prospectiva, RPSP 21 (2003), pp. 3 seg.

12 Cfr. Constantino SAKELLARIDES, Saúde pública prospectiva, op. cit., p. 3.

Higiene individual e social (tida como sinónimo de saúde pública) incluída no plano de estudos do curso de Medicina depois da Reforma da Universidade de Coimbra de 1772 13. A grande diferença em relação à “pré-história e à proto-história da nossa Saúde Pública” está não só no vasto saber científi co como “na vasta rede de produção, validação, comunicação e disseminação do conhecimento (que tem por detrás a cité savante) a par da legitimidade democrática do poder político, nas nossas sociedades abertas, da racionalidade técnico-burocrática do aparelho sanitário e da importância de organizações internacionais, como a OMS, que criámos, sob a égide das Nações Unidas, no pós-guerra”14.

O sistema de saúde pública rompe assim com as fronteiras do próprio Estado – o que é particularmente evidente no âmbito da União Europeia – e assume contornos de política pública que se situam, actualmente, “para lá da prevenção”, tomando como sede o princípio da precaução15.

Deste modo, no século XXI aquele conceito constrói-se em torno de um conjunto de princípios que se concretiza num enquadramento legalmente defi nido e na criação de mecanismos governativos específi cos16. Como exemplo pode apontar-se, no quadro legal português, a Lei nº 81/2009, de 21 de Agosto, que institui um sistema de vigilância em saúde pública17. Quer o carácter complexo,

13 Luís GRAÇA, A Saúde Pública e as respostas sociais (e inteligentes) à crise, RPSP 27 (2009), p. 6.

14 Luís GRAÇA, A Saúde Pública..., op. cit., p. 6.15 António Lobato FARIA, A saúde pública para lá da prevenção: o princípio

da precaução, RPSP 19 (2001), pp. 3 seg. Sobre esta questão veja-se ainda o ponto III deste trabalho.

16 Cfr. Ilona KICKBUSCH, In search of the public health paradigm for the 21st century: the political dimensions of public health, RPSP, número especial 25 anos (2009), p. 17.

17 Cumprindo-se também, por esta via, a exigência decorrente da Lei de Bases da Saúde – Lei nº 48/90, de 24 de Agosto – que na sua Base I, nº 3, estabelece

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englobando diversos actores e saberes (médico, político, social, económico, etc.) num mesmo sistema, quer a natureza antecipatória e de cautela do actual conceito de saúde pública difi cultam, em nosso modo de ver, que a saúde pública, enquanto actuação organizada, possa ser concebida nessa sua globalidade como um bem jurídico-penal, carente de protecção imediata e directa. Trata-se de um interesse juridicamente valioso dotado de uma dimensão e complexidade que tendem a extravasar os limites materiais necessários à categoria de bem jurídico-penal para que possa prosseguir com a destreza necessária a função crítica de delimitação da incriminação18.

Esta breve caracterização da saúde pública constitui um valioso auxílio na resposta à questão anteriormente formulada. Dela se conclui que conceito de saúde pública se identifi ca, em primeira linha, com um sistema de saúde dotado de uma natureza pública, administrativa e de ordenação da população, prosseguindo a qualidade do bem-estar comunitário. Logo, a infracção às normas e deveres pressupostos por um tal sistema, afi rmada a sua necessidade, deve revestir, em primeira linha, a natureza de ilícito de mera ordenação social, ao qual cumpre assegurar uma sociedade organizada por via dos cumprimentos de deveres jurídico-administrativos que impendem sobre o cidadão “administrado”.

como princípio geral a promoção e a defesa da saúde pública efectuadas através da actividade do Estado e de outros entes públicos.

18 Uma outra dimensão problemática associada à tutela da saúde pública encontra-se no confl ito que por vezes se estabelece entre essa protecção da saúde pública e a defesa de outros direitos fundamentais como o direito à liberdade. Sobre esta questão, de modo desenvolvido, Carla Amado GOMES, Defesa da Saúde Pública vs. Liberdade Individual. Casos da Vida de um Médico de Saúde Pública, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1999, pp. 17 segs. Exemplo deste difícil equilíbrio é dado pelo instituto de internamento compulsivo de portador de tuberculose pulmonar. Sobre esta matéria Sónia FIDALGO, O internamento compulsivo de doentes com tuberculose, Lex Medicinae 1 (2004), nº 2, pp. 93 segs.

A intervenção do direito penal apenas se justifi cará na medida em que a conduta em causa perca o seu carácter axiologicamente neutro, próprio da infracção administrativa cuja censura decorre da mera proibição da conduta por razões de organização social, e ganhe uma materialidade eticamente censurável. Ora, em nosso modo de ver, tal só acontecerá perante condutas potencialmente perigosas para a saúde e para a segurança da colectividade. Neste sentido a protecção da saúde pública constitui tutela, ainda que antecipada, da segurança, vida e saúde individual daqueles que integram a comunidade.

c) Deste modo, a saúde pública ganha qualidade de bem jurídico- -penal enquanto meio de antecipação da tutela daqueles bens jurídicos(fi ns) individuais. Porém, uma vez adquirida a sua legitimação material, a saúde pública ganha autonomia, ou seja, torna-se um bem jurídico colectivo, autónomo e diferenciado daqueles interesses individuais. Operigo para estes últimos torna-se, ele próprio, objecto de protecção da incriminação. Nas palavras de Almeida Costa, o perigo converte-se, agora, no elemento fundamentador e constitutivo do próprio bem jurídico19. Esta compreensão da saúde pública como bem jurídico meio permite responder à crítica que se adivinha à sua admissão como objecto de tutela penal, assente na sua natureza demasiado extensa,vaga, e, simultaneamente, “formalizante”, idónea a esvaziar o objecto de protecção de um referente material. Rejeita-se que esta crítica proceda, na medida em que aquela protecção é reconhecida não à saúde pública no seu todo, mas a uma sua dimensão muito concreta: enquanto protecção antecipada de bens jurídicos individuais fundamentais.

19 Cfr. Artigo 217º, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, 1999, p. 750.

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Surge assim uma segunda interrogação: em que se diferencia, nesta dimensão, o bem jurídico colectivo saúde pública, do conjunto de bens jurídicos individuais, integridade física e vida? Da nossa perspectiva, existe, desde logo, uma nota distintiva entre os bens jurídicos individuais e aquele bem colectivo: ao dano individual acrescenta-se um dano comunitário, sentido pela própria colectividade, que se vê ameaçada, evidenciando-se a dimensão social do bemjurídico-protegido20. Não é apenas um conjunto de saúdes individuais que é afectado, mas antes um pedaço da comunidade, por via da ameaça aos seus membros, que é colocado em perigo. Nesta circunstância reside o plus adicional que distingue este bem colectivo da soma dos interesses de titularidade individual. À saúde, na sua dimensão individual, junta-se a saúde na sua dimensão colectiva, entendida como algo mais do que a mera soma das saúdes individuais21, a saber, enquanto “conjunto das condições positivas e negativas que garantem a saúde dos membros da comunidade”22.

Assim, eleger como bem jurídico a tutelar a saúde pública ou a saúde individual pode levar a resultados distintos ao nível da incriminação. E será assim ainda que a tutela dos bens individuais

20 Sublinhando esta dimensão social do bem jurídico colectivo Julio DÍAZ- -MAROTO Y VILLAREJO, El Derecho Penal ante los Fraudes Alimentarios. Responsabilidad por el Producto en la Moderna Sociedad del Riesgo, Cizur Menor, Civitas / Thomson Reuters, 2010, p. 28.

21 Embora referindo-se ao contexto específi co dos crimes de perigo comum, na versão originária do Código penal português, julgamos que podem ser transpostas para este contexto as palavras de Augusto Silva DIAS, Entre “comes e bebes”..., op. cit., p. 487, sem as desvirtuar: “se entendêssemos a saúde pública no âmbito dos crimes de perigo comum como soma das saúdes individuais, estaríamos a aproximar excessivamente o bem jurídico colectivo dos bens jurídicos individuais, relacionando-os como plural e singular, o que se por um lado retiraria ao bem colectivo o carácter de antecâmara de protecção, por outro lado, desvirtuaria os bens individuais, que, por serem objecto de um perigo comum, não podem ‘per defi nitionem’ ser individualizados”.

22 Julio DÍAZ-MAROTO Y VILLAREJO, El Derecho Penal ante los Fraudes Alimentarios..., op. cit., p. 28.

se faça com recurso a delitos de perigo. As duas perspectivas agora enunciadas, podem, no entanto, aproximar-se, sobretudo quando se opte por criminalizar a adequação da conduta à lesão daqueles bens individuais, por via do recurso a crimes de aptidão. Ou seja, quando se incrimine uma conduta concretamente perigosa para a saúde de um número indeterminado de pessoas. Todavia, trata-se de uma aproximaçãomeramente tendencial, uma vez que ainda assim persistem diferençasentre a incriminação de condutas concretamente perigosas para bens jurídicos individuais e a incriminação de condutas que ponham em causa a saúde pública entendida como bem jurídico colectivo. Na verdade, da conduta concretamente perigosa não tem de decorrer necessariamente a lesão da saúde colectiva (uma garrafa de whisky envenenado que se destina a ser servido num bar é adequado a lesar a saúde daqueles que a consomem, mas não põe em causa a saúde da colectividade). Por sua vez, a lesão da saúde pública não implica necessariamente a sua adequação a lesar a saúde individual (v.g. o caso do lote das pílulas de farinha, comercializado no mercado sem a substância activa23). Como refere Silva Dias, “não há, pois, uma

23 Os factos, amplamente divulgados pelos meios de comunicação social brasileiros, expõem-se de seguida em uma breve síntese. Em 1998, a Schering brasileira coloca no mercado um lote de embalagens do anticoncepcional Microvlar, por si produzido,sem princípio activo. Em consequência da entrada no mercado de cerca de 600 mil comprimidos, julga-se que aproximadamente 200 mulheres terão fi cado grávidas, mas somente um número reduzido conseguiu fazer prova em tribunal do uso daquele medicamento, uma vez que muitas dessas mulheres já não dispunham da embalagem, o que difi cultava a prova de que teriam usado aquele produto defeituoso. Segundo a empresa, as pílulas sem princípio activo teriam sido fabricadas para testar uma máquina embaladora do laboratório e, sem que a empresa consiga explicar como, acabaram por ser colocadas no mercado para consumo. Este casodaria origem, no plano civil, à condenação da farmacêutica, confi rmada no fi nal de 2007 pelo Superior Tribunal de Justiça. De acordo com esta decisão, o Laboratório Schering do Brasil, Química e Farmacêutica Ltda., foi condenado a pagar uma indemnização colectiva no valor de um milhão de reais por ter colocado no mercado aqueles lotes defeituosos, provocando gravidez indesejada em consumidoras. Trata-se do Acórdão 2006/0104394-9, de 6 de Dezembro de 2007, julgado pela

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coincidência material-signifi cativa entre a adequação para lesar as condições que formam a barreira de protecção da saúde dos cidadão e a adequação para criar perigo para os bens individuais de um universo mais ou menos amplo de pessoas, o que tem como consequência que a acção lesiva sob um ponto de vista não se apresenta necessariamente perigosa sob outro”24.

A opção legislativa pela tutela penal da saúde pública, entendida no sentido exposto, apresenta um alcance maior do que uma referência da norma incriminadora aos bens jurídicos individuais incapazes de abranger o específi co dano social que aquele conceito impõe. Todavia, uma tal concepção restrita da relevância criminal da saúdepública apresenta-se como um forte contributo para conciliar a necessidade, sentida pela colectividade, de proteger as condições necessárias ao seu bem-estar físico e psíquico, de um lado, e aobservância de princípios basilares do direito penal como o da ultima ratio e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade do facto e a sanção que lhe corresponde, de outro. Compete ao legislador, na eleição e construção das normas incriminatórias, pautar-se pelaobservância daqueles princípios, superando, por esta via, as críticas que têm vindo a ser dirigidas aos delitos contra a saúde pública previstos em alguns ordenamentos jurídicos, de que constitui exemplo o código penal espanhol. Com efeito, no âmbito deste diploma tem-se, desde logo, correctamente sublinhado que um entendimento demasiado amplo do bem jurídico saúde pública diluiu ao nível daquelas normas a distinção entre crime e infracção administrativa, em clara violação

terceira turma daquele tribunal e disponível em http://ww2.stj.jus.br/revista eletronica/ita.asp?registro=200601043949&dt_publicacao=06/12/2007. Acrescente-se, porém, que as decisões individuais sobre este caso continuam nos tribunais civis brasileiros até aos dias de hoje. Sublinhando a contribuição deste caso, pelo seu impacto na opinião pública, na discussão em torno da relevância da falsifi cação e adulteração de medicamentos veja-se Adriana Ruoppoli ALBANEZ, Falsifi cação de medicamentos, XIX Seminário Nacional de Propriedade Intelectual 1999, Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, p. 63.

24 Cfr. Augusto Silva DIAS, Entre “comes e bebes”..., op. cit., p. 488.

daqueles princípios basilares, elevando à categoria de delito a mera infracção de deveres25.

2. A tutela penal da saúde pública: alguns exemplos de concretizações normativas

O legislador português assumiu a saúde pública como interesse que de forma mais ou menos imediata legitima a incriminação. Importa referir algumas dessas concretizações normativas, situadas em três âmbitos distintos: alimentação, propagação de doença e segurança dos medicamentos.

a) Regime jurídico das infracções contra a economia e contra a saúde pública

A legislação portuguesa desse há muito concede alguma auto-nomização às incriminações referentes à protecção da saúde pública. Com efeito, é o Decreto-Lei nº 41 204, de 24 de Julho de 195726, que concede pela primeira vez autonomia formal às incriminações contra a saúde pública e contra a economia27. Entre os crimes contra

25 Winfried HASSEMER / Francisco MUÑOZ CONDE, La Responsabilidad por el Producto..., op. cit., p. 66.

26 Sobre o contexto histórico que envolve este diploma veja-se Eduardo Arala CHAVES, Delitos Contra a Saúde Pública e contra a Economia Nacional, Coimbra, Coimbra Editora, 1961; Jorge de Figueiredo DIAS / Manuel da Costa ANDRADE, Problemática geral das infracções contra a economia nacional, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I, op. cit., pp. 339 segs; Jorge de Figueiredo DIAS, Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e social português, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. I, op. cit., p. 40.

27 De referir que estas incriminações eram julgadas por um tribunal especial – o Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios – que havia já sido criado em

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a saúde pública previam-se a matança clandestina, bem como afalsifi cação e o comércio de géneros alimentícios. Este diploma viria no entanto a ser revogado pelo Código Penal de 1982, nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, e mais tarde substituído pelo Decreto-Lei nº 28/84, de 20 Janeiro que permanece até hoje em vigor. Este diploma constitui a fonte normativa do regime jurídico dos crimes contra a saúde pública e contra aeconomia. Todavia, na sua organização sistemática, o abate clandestino é tido como o único crime contra a saúde pública, previsto e punido com prisão até 3 anos e multa não inferior a 100 dias.

Como se referiu, o abate de reses impróprias para consumo ou em violação das regras sanitárias estava já previsto, com considerável amplitude, nos artigos 13º, 14º e 15º do Decreto-Lei nº 41 204. Em particular, o artigo 14º previa o delito de matança clandestina para consumo público de animais da espécie bovina, ovina, caprina, suína ou equina sem a competente inspecção sanitária, punido com prisão de três dias a seis meses. O mesmo artigo punia ainda, no nº 2, aquele que, tendo conhecimento do carácter clandestino da matança, adquirisse para consumo público a carne das reses abatidas ou os produtos com ela fabricados28.

1930 e que se manteria até 1976. O relatório preambular do Decreto-Lei nº 41 204, de 24 de Julho de 1957, refere-se, no ponto 2, à necessidade de um tribunal destanatureza, optando pela sua manutenção: “Não porque se duvide da razoabilidade da solução oposta (extinção daquele tribunal especial) mas porque se têm as maiores apreensões quanto à oportunidade da extinção do tribunal. De facto, a existência de um tribunal especialmente incumbido de apreciar e julgar os crimes e contravenções contra a saúde pública constitui ainda, como a experiência demonstra, o processo mais efi caz de garantir a severidade com que devem ser punidos os respectivos infractores (...)”.

28 O artigo 13º, com âmbito mais alargado, punia o abate, com conhecimento, de reses impróprias para consumo, sem necessidade de se tratar de consumo público. O segundo número deste artigo estabelecia a mesma pena – prisão de 3 dias a dois anos e multa – para aqueles que, por qualquer modo, aproveitassem para alimentação de outrem a carne das reses impróprias para consumo ou das que houvessem

A tutela da saúde pública por via da criminalização da matança clandestina é importada pelo Decreto-Lei nº 28/84, mas toma agora limites mais apertados. Na verdade, nos termos da estrutura sistemática seguida por aquele diploma, o artigo 22º, referente ao crime de abateclandestino, esgota, como se referiu, os crimes contra a saúde públicaprevistos naquele diploma29. Com efeito, o legislador português concedeu ao direito das contra-ordenações a primazia na defesa da saúde pública. Uma das razões apontadas para a mínima tutela penal cabida à saúde pública prende-se, imediatamente, com a já referida difi culdade de concretização da saúde pública enquanto bem jurídico-penal. À noção de saúde pública é imputada uma pluralidade de sentidos quer enquanto soma das saúdes individuais, quer como

morrido de doença, desde que, num ou noutro caso, conhecessem o seu defeito. Por via desta norma, mais do que a protecção da saúde pública através da punição dainobservância das regras sanitárias, punia-se a impropriedade da carne dos animais abatidos para consumo, como forma antecipada de protecção da saúde dos consumidores. Uma previsão deste tipo não teve correspondência directa no Decreto-Lei nº 28/84, sendo as condutas aí previstas somente parcialmente abrangidas, dada a exigência típica do destino dos bens para consumo público, pelo artigo 24º daquele diploma. Também por esta via se percebe que esta norma, muito embora esteja incluída, do ponto de vista sistemático, entre os delitos contra a economia, tem uma incontornável dimensão na tutela antecipada de interesses pessoais e sociais dos consumidores como a segurança e a qualidade dos bens consumíveis.

29 O sistema jurídico português optou por conceder à saúde pública, entendida como protecção da saúde da comunidade, uma protecção dispersa por vários diplomas extravagantes, de que são exemplo máximo o Decreto-Lei nº 28/84 e o Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, referente ao tráfi co e consumo de estupefacientese substâncias psicotrópicas. Uma compreensão sistemática e estrutural inteiramente diferente é seguida pelo ordenamento jurídico espanhol, que inclui no Título XVIII, referente aos “delitos contra la seguridad colectiva”, um capítulo III dedicado aos “delitos contra la salud pública”, que compreende os artigos 359 a 378, onde se incriminam condutas que têm por objecto de acção principal substâncias nocivas, produtos químicos, medicamentos, alimentos e estupefacientes. Neles se tipifi cam condutas que têm em comum o ataque ao bem jurídico saúde pública, entendido como a saúde da comunidade enquanto conjunto de pessoas que convivem de maneira estruturada e interdependente, cfr. supra, § 7, 1.3.

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conjunto das condições de vida que asseguram e protegem a vida e a integridade física de uma pluralidade de pessoas, quer ainda como conjunto de regras sanitárias ou de higiene social30. As alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 22º do Decreto-Lei nº 28/84 tomam este último sentido como objecto de tutela, punindo o abate de animais para consumo público sem a competente inspecção sanitária ou fora de matadouros licenciados ou recintos destinados a esse efeito pelas autoridades competentes31. Já a alínea c) parece tutelar a qualidade ou propriedade dos bens destinados à alimentação ao proibir o abate para consumo público de espécies não habitualmente usadas para alimentação humana.

b) Crime de propagação de doença contagiosa

O artigo 283º do CP, que tipifi ca o crime de Propagação de doença, alteração de análise ou de receituário, integra no Código Penal o capítulo dos crimes de perigo comum, cuja característica principal reside na ameaça de um dano difuso para um número indiferenciado e indeterminável de objectos de acção representativos de diversos bens jurídicos32. Ou seja, a ameaça simultânea para diversos interesses

30 Cfr. Augusto Silva DIAS, Protecção Jurídico-Penal dos Interesses dos Consumidores, IDPEE (policopiado), Coimbra, 2001, p. 87. Também C. GANZENMÜLLER ROIG / J. FRIGOLA VALLINA / J. F. ESCUDEROMORATELLA, Delitos contra la Salud Pública (I), Barcelona: Bosch, 2000, pp. 23 seg. Sobre a noção de saúde pública enquanto bem jurídico-penal veja-se supra, § 7, 1.5.

31 A dignidade penal destas condutas é desde logo posta em causa por Augusto Silva DIAS, Linhas gerais do regime jurídico dos crimes contra interesses dos consumidores, op. cit., p. 564, também, do mesmo autor, Protecção dos Interesses dos Consumidores, op. cit., p. 87.

32 Cfr. José de Faria COSTA, Artigo 272º, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 866; Paula Ribeiro de FARIA, Artigo 275º, Artigo 277º, Comentário Conimbricense do Código Penal,

jurídicos constitui a nota principal daqueles crimes, distinguindo-se, assim, dos tipos legais centrados sobre a ameaça a um singular bem jurídico (ou ao objecto que o representa). Nas palavras de Faria COSTA, trata-se da distinção “entre o perigo que ameaça singularmente a vida de A, B ou C e o perigo que ameaça simultaneamente a vida de A, B e C”33. Nesta categoria de delitos protege-se, regra geral, a integridade física ou a vida humana, em face de perigos que se tornaram difíceis de controlar em virtude da acção realizada pelo agente. Para além do exemplo tradicional, dado pelo crime de incêndio, podem apontar-se como exemplo de condutas incriminadas os actos de envenenamento de água, de contaminação radioactiva, de explosões, de inundações, ou de propagação de doença contagiosa.

O artigo 283º reúne no seu corpo normativo três tipos legais autónomos – crime de propagação de doença contagiosa, crime de alteração de análise e crime de alteração de receituário – relacionados entre si pela criação de um perigo para a vida ou de um perigo grave para a integridade física de outrem. Para o âmbito deste trabalho a modalidade de conduta mais relevante porque toca de forma directa o conceito de saúde pública é a propagação de doença contagiosa.

No seu conteúdo normativo este preceito pretendeu abranger a difusão ou propagação de doenças contagiosas, isto é a propagação de vírus ou germes patogénicos que possa pôr em perigo a vida e em perigo grave a integridade física das pessoas que pertencem a uma determinada colectividade. O elemento típico propagar é detentor de um sentido expansivo da doença. No conceito de propagar “cabem tanto os chamados casos de ‘guerra biológica’, em que, p. ex., se

tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 889 e 912, respectivamente; Anabela Miranda RODRIGUES, Artigo 280º, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 980; J. M. Damião da CUNHA, Artigo 283º, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 1007.

33 Cfr. O Perigo em Direito Penal..., op. cit., p. 534.

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infectem depósitos de água ou de alimentos, etc., como também a mera transmissão, por qualquer forma de contacto directo, de uma doença a uma outra pessoa”34. No entanto, esta construção típica em torno do acto de propagação tem levantado algumas dúvidas quanto à inclusão no preceito normativo do contágio de pessoa concreta e determinada. Esta questão é de particular relevância em contextos como de transmissão do vírus da sida, questão que tem vindo a ser sublinhada, por exemplo, por Damião da CUNHA. Entende este autor que no caso de transmissão do vírus da sida por via de relacionamento sexual, no âmbito de uma relação estável e baseada numa legítima confi ança, não constitui um acto de propagação, pelo que não estará preenchido o tipo legal de crime. Se a transmissãoocorrer no contexto de uma relação ocasional ou num contexto em que haja possibilidade de posterior transmissão do vírus, então, segundo o autor, já se poderá equacionar a propagação e o preenchimento deste crime35.

Já Augusto Silva DIAS36 considera que fora do âmbito normativo estariam todas as situações de contágio que têm lugar no contexto de contactos sociais directos ou cara a cara, em que a vítima é uma pessoa determinada. O alcance limitado desta norma compreende-se se se atender à projecção colectiva do bem jurídico que, embora de matriz individual (a vida ou a integridade física), tem um carácter pluri-individual, sendo o seu titular um sujeito indiferenciado. Segundo este autor, a contaminação do namorado ou do cônjuge com VIH escapa “à ‘ratio’ dos crimes de perigo comum e são mais

34 J. M. Damião da CUNHA, Artigo 283º, Comentário Conimbricense do Código Penal, op. cit., p. 1009.

35 J. M. Damião da CUNHA, Artigo 283º, Comentário Conimbricense do Código Penal, op. cit., p. 1010.

36 Cfr. Augusto Silva DIAS, Responsabilidade criminal por transmissão irresponsável do vírus da Sida: um olhar sobre o Código Penal português e o novo Código Penal de Cabo Verde, in Colectânea de Textos de Parte Especial do Direito Penal, Lisboa, AAFDL, 2008, p. 97.

adequadamente resolvidas através de tipos que tutelam bens jurídicos individuais de titularidade determinada”37.

Na verdade, a questão inerente a esta discussão prende-se directamente com o objecto de tutela da norma: se é ainda um bem jurídico-individual, ou, diferentemente, se trata de um bem jurídico transindividual ou colectivo, concretizado na saúde pública. Neste sentido, para que haja realização típica, concebe-se a pessoa concreta cuja vida ou integridade é posta em perigo, como representante da comunidade. Esta é a autêntica titular do bem jurídico colectivo – a saúde pública –, bem este que é lesado com a colocação em perigode uma concreta vida ou integridade física. Por sua vez, a vida e a integridade física, enquanto bens jurídicos individuais, seriam mediatamente protegidos através da protecção imediata da saúde pública. Com efeito, é a protecção da saúde pública perante a propagação de uma doença contagiosa que justifi ca que se antecipe a tutela para o momento em que a vida ou a integridade física de alguém é posta em perigo, sem que se aguarde pela sua efectiva lesão. A protecção deste autónomo bem “saúde pública” confere, deste modo, uma ilicitude agravada às condutas típicas que justifi cariaa intervenção do direito penal ainda antes de qualquer lesão da integridade física ou vida, enquanto bens jurídicos individuais38.

c) Convenção Medi-crime

Portugal assinou, em Outubro de 2011, a Convenção do Conselho da Europa sobre a criminalização da falsifi cação de medicamentos e outros crimes semelhantes que constituam ameaça à saúde pública. Esta Convenção entrará em vigor após a ratifi cação de cinco países,

37 Ibidem, p. 84.38 Neste sentido, Susana Aires SOUSA, Medicamentos e responsabilidade

criminal: problemas juridíco-criminais suscitados a partir de uma análise casuística, Lex Medicinae 9 (2008), pp. 92-93.

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incluindo pelo menos três membros do Conselho da Europa. Até ao momento, a Espanha, a Ucrânia e a Hungria já procederam à sua ratifi cação. Outros vinte assinaram este tratado39.

Como seu objectivo principal, a convenção estabelece a prevenção da saúde pública através da criminalização de determinadas condutas de que constitui exemplo máximo a falsifi cação de medicamentos. Entre os seus propósitos incluem-se ainda a protecção dos direitos da vítimas e a cooperação nacional e internacional no âmbito da contrafacção de substâncias medicinais.

No segundo capítulo deste diploma, com a epígrafe “Substantive criminal law”, apresenta-se um conjunto de incriminações a integrar na legislação dos Estados-parte referentes à produção e comercialização de medicamentos e bens equiparados. Os tipos legais, voltados para a tutela da saúde pública, estão previstos nos artigos 5º a 9º deste tratado e são, em traços gerais, as seguintes: falsifi cação e adulteração de medicamentos (artigo 5º); comercialização e tráfi co de medicamentosfalsifi cados (artigo 6º); falsifi cação de documentos (artigo 7º); outros crimes semelhantes (artigo 8º); punição de formas de comparticipação e de tentativa (artigo 9º)40. No relatório justifi cativo deste segundo capítulo, refere-se expressamente que, pressuposta a gravidade das incriminações previstas, aqueles artigos devem valer para situações “em que seja detectada uma ameaça potencial à saúde pública, ainda que não se tenha materializado qualquer dano físico ou psicológico”. Algumas destas condutas não conhecem tipifi cação na legislação portuguesa. Deste modo, no cumprimento dos compromissos internacionais assumidos, Portugal terá de rever a sua legislação penal em matéria de falsifi cação de medicamentos.

39 Estas informações estão disponíveis na página online da Convenção em http://www.coe.int/t/DGHL/StandardSetting/MediCrime/Default_en.asp

40 Cfr. Council of Europe Convention on the counterfeiting of medical products and similar crimes involving threats to public health and explanatory report, Moscow, 28-X-2011, Council of Europe Publishing, pp. 7 segs.

II. Saúde pública e os “novos riscos”: o segundo ângulo

A ideia de que a industrialização ou o avanço do conhecimento comporta riscos não é uma ideia nova, sendo testemunhada em diversos momentos pela história41. De facto, a aceitação do desafi o interposto pelo risco constituiu desde sempre uma condição necessária ao progresso da humanidade. Como forma de garantir a sobrevivência da vida humana, o Homem tem procurado modos de lidar com o risco, agora, por via do recurso à técnica e à ciência. Desde logo, a ciência e a tecnologia foram propiciando conhecimento e meios técnicos que possibilitaram eliminar ou diminuir muitos dos riscos colocados, por exemplo, à saúde humana, com resultados visíveis no aumento da esperança de vida. Se é assim, cabe então perguntar quais as mudanças que levaram, sobretudo desde a última década do século XX, à assunção, no plano sociológico, mas também no plano jurídico, do risco como característica fundamental e decisiva da sociedade actual, a ponto de merecer, na senda da teoria social proposta pelo sociólogo Ulrich Beck, o epíteto de “sociedade do risco” 42-43.

41 Considere-se, por exemplo, os riscos que, no século XVI, as descobertas acarretaram não só para os povos descobertos, mas também para os que chegavam, ambos expostos a um leque de condições (ambientais, físicas, culturais) novas e desconhecidas, ou, em tempos mais próximos, a industrialização que acompanhou a sociedade a partir do século XIX e que obrigaria à própria socialização do risco pelo Estado social e de previdência, através de institutos jurídicos como o seguro ou a responsabilidade (objectiva) pelo risco.

42 A fórmula “sociedade do risco” foi cristalizada, em 1986, pela obra de Ulrich BECK, Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, Suhrkamp Verlag, Frankfurt a. M., 1986 (traduzida, desde logo, em inglês, espanhol e italiano: Risk Society: Towards a New Modernity, Sage Publications, London, California, New Deli, 1992; La Sociedad del Riesgo. Hacia una Nueva Modernidad, Barcelona, Buenos Aires, México, Paidos, 1998; La Società del Rischio, Carocci Editore, Roma, 2000). Como nos dá conta João LOUREIRO, Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco: prevenção, precaução e tecnociência. Algumas questões juspublicísticas, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério

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Apesar de alguma indeterminação que suscitou um fervoroso trabalho de refl exão fi losófi ca, sociológica e jurídica, o conceito de risco surge assim como conceito fundamental na caracterização da sociedade contemporânea44. O risco ganha novos contornos e surge agora como uma ameaça à qualidade de vida e à subsistência da própria vida humana45.

Segundo uma classifi cação de Lau46, tomada por Beck, os riscos socialmente relevantes podem dividir-se em três categorias: os riscos tradicionais (traditionellen Risiken), os riscos do desenvolvimento

Soares, BFD, Studia Iuridica 61 (2001), p. 803, nota 31, embora seja possívelencontrar precursores do conceito, designadamente em Yair AHARONI, The Non-Risk Society, 1981, a obra de Beck, pela sua difusão, infl uência e densifi cação, constitui um marco decisivo na concretização da ideia de “sociedade de risco”. A confi rmação desta ideia encontra-se nas palavras dos autores da introdução à tradução inglesa daquela obra, Scott Lash e Bryan Wynne, que consideram este estudo como um dos estudos de análise social mais infl uentes da Europa, no fi nal do século XX.

43 Na última década do século passado, o conceito de sociedade do risco impôs-se, com enorme sucesso, no domínio das ciências sociais, incluindo as ciências jurídicas e, em particular, o direito penal. Por todos, Eric HILGENDORF, Strafrechtliche Produzentenhaftung in der “Risikogesellschaft”, Berlin, Duncker & Humblot, 1992, pp. 17 segs; Jorge de Figueiredo DIAS, O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, BFD, Studia Iuridica 61 (2001), Coimbra, Coimbra Editora, pp. 583 segs; Augusto Silva DIAS, “Delicta in se” e “Delicta Mere Prohibita”. Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da Reconstrução de uma Distinção Clássica, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 223 segs.

44 Como é sublinhado na doutrina, a etimologia e a evolução do conceito de risco não é isenta de controvérsia, cfr. Carlota Pizarro de ALMEIDA, O Dever de Cuidado como Modelo de Gestão de Risco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Dissertação de Doutoramento (policopiado), 2010, pp. 47 seg.

45 Cfr. , de modo desenvolvido, A Responsabilidade Criminal pelo Produto e o Topos Causal em Direito Penal. Contributo para uma Protecção de Interesses do Consumidor, Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, policopiado (em curso de publicação)

46 Cfr. Risikodiskurse: Gesellschaftliche Auseinandersetzungen um die Defi nition von Risiken, in Soziale Welt 1989, pp. 418-436, apud Eric HILGENDORF, Gibt es ein „Strafrecht der Risikogesellschaft“?, NStZ 1993, p. 11.

industrial (industriell-wolhlfahrtsstatlichen Risiken) e os “novos riscos” (neuen Risiken).

Os primeiros são riscos em regra voluntariamente assumidos e limitados no tempo. Têm pois uma referência pessoal e podem ser individualmente imputados. Como exemplo pode apontar-se o risco em que se incorre numa excursão às montanhas ou numa viagem deaventura ou ainda o assentimento de um paciente na realização de uma delicada intervenção cirúrgica47. Em segundo lugar, elencam-se os riscos próprios do progresso e da sociedade industrial que, tal como os anteriores, se podem referir individualmente ou a um grupo de pessoas perfeitamente identifi cáveis. Todavia, de modo diferente, são riscos cujos custos não são, em regra, individualmente suportáveis, mas antes se transformam em riscos “socializados” e “juridifi cados”, desde logo pela ideia de risco permitido, em actividades consideradas socialmente úteis e necessárias48. Trata-se, portanto, de riscos, em certa medida, controláveis e calculáveis, cujas causas e consequências são ainda possíveis de limitar a um tempo e a um espaço49. Por último, os “novos riscos” distinguem-se pela autonomia, nas suas consequências, em face de qualquer acto humano voluntário. Muito embora assentem em decisões e condutas humanas ou de instituições, estes novos riscos antes confrontam a pessoa assumindo a forma de uma catástrofe ou de um acidente de grandes dimensões. Na medidaem que todos são afectados da mesma forma pelos novos riscos, eles conduzem à perda do signifi cado de pertença a um grupo social, a uma vizinhança, a uma geração (v.g., os riscos inerentes energia

47 Este último exemplo em Maria Elena IÑIGO CORROZA, La Responsabilidad Penal del Fabricante por Defectos de sus Produtos, Barcelona, J. M. Bosch Editor, 2001, p. 24.

48 Cfr. Augusto Silva DIAS, “Delicta in se” e “Delicta Mere Prohibita”..., p. 228.

49 Cfr. Augusto Silva DIAS, “Delicta in se” e “Delicta Mere Prohibita”..., op. cit., p. 229.

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nuclear ou a engenharia genética50). Ora, ainda que de uma perspectivaminimalista e ortodoxa se procure minimizar a quantidade e a qualidade destes novos riscos e das suas fontes, não podem ser desconsideradas características próprias que os individualizam dos riscos “tradicionais”, quer na sua origem quer nas consequências que lhe estão associadas51. Neste sentido, mais do que uma variação do grau de risco associado a estes contextos, é a dimensão das suas consequências que altera a qualidade destes novos riscos.

A partir daquela classifi cação, Beck analisa, na sua famosa monografi a Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere Moderne,as mudanças ocorridas na sociedade contemporânea, sobretudo perante a sociedade industrial afi rmada a partir do século XIX, de modo a justifi car e sustentar a sua qualifi cação como uma sociedade do risco52. Estes novos riscos correspondem ao que Beck designa de segunda modernidade ou modernidade refl exiva, que se distingue da primeira modernidade própria da sociedade industrial da Europa a partir do século XVIII.

A partir da segunda metade do século XX desenvolve-se uma sociedade que Beck defi ne como a “modernização da modernização” ou“segunda modernidade”, ou também “modernidade refl exiva”. Trata-se de um processo no qual são postas em questão, tornando-se objecto de

50 Apud Eric HILGENDORF, Gibt es ein „Strafrecht der Risikogesellschaft?“, op. cit., p. 11. Sobre as notas características destes novos riscos veja-se também, entre nós, Augusto Silva DIAS, “Delicta in se”..., op. cit., pp. 229 segs.

51 Blanca MENDOZA BUERGO, Principio de precaución, derecho penal del riesgo y delitos de peligro, in Principio de Precaucion, Biotecnologia y Derecho, Bilbao-Granada, Editorial Comares, 2004.

52 Cfr. La Sociedad del Riesgo, op. cit., pp. 25 segs. Também Bernardo FEIJOO SÁNCHEZ, Sobre la “Administrativización” del derecho penal en la “sociedad del riesgo”. Um apunte sobre la política criminal a princípios del siglo XXI, in Derecho y Justicia Penal en el Siglo XXI. Liber Amicorum en Homenaje al Profesor Antonio González-Cuéllar García, (coord. J. Díaz-Maroto Villarejo), Madrid: Colex, 2006, p. 142 e nota 13.

“refl exão”, as assunções fundamentais, as insufi ciências e as antinomiasda primeira modernidade, desafi ada por um desenvolvimento desmedido que obedece a uma racionalidade instrumental53. É esta crença num progresso desmedido que conduz ao aparecimento dos “novos riscos” capazes de ameaçar o planeta e a humanidade54. Riscos que Beck caracteriza como inquantifi cáveis, incontroláveis, indetermináveis e não atribuíveis, mas que se tornam “visíveis”. É a própria consciência ou percepção do risco que, abalando a confi ança na segurança, o torna presente e, neste sentido, visível55. Assim, num “processo circular”56, a extensão do conhecimento gera simultaneamente a incerteza e o risco e confere responsabilidade às decisões, transformando o mero azar em risco consciente e provável, embora imensurável. Acrescente-se, a título complementar, que estes novos riscos não substituem os riscos próprios da primeira modernidade, mas a eles se sobrepõem.

Os novos riscos são assim difíceis de controlar uma vez que padecem de um “defi cit de previsão”57 fundamentado na incerteza das suas consequências e na difi culdade em determinar os seus limites. São também transfronteiriços, no seu espaço, e transgeracionais, no seu tempo dada a distância temporal entre a origem do perigo a consciencialização cultural do seu sintoma. Pense-se no uso de pesticidas em alimentos ou nos efeitos da radiação e do dano químico

53 Segundo Beck a a transição para a segunda modernidade enfrentou o desafi o de cinco processos fundamentais: a globalização, a individualização, o desemprego, a revolução dos géneros e os riscos globais da crise ecológica e da turbulência dos mercados fi nanceiros.

54 Cfr. Federico STELLA, Giustizia e Modernità. La Protezione dell’innocente e la Tutella dele Vittime, Milano, Giuffrè Editore, 2002, p. VII.

55 Cfr. Ulrich BECK, Retorno a la teoría de la “sociedad del riesgo”, Boletín de la A.G.E. 30 (2000), p. 10.

56 Cfr. Carlo PIERGALLINI, Danno da Prodotto e Responsabilità Penale. Profi li Dommatici e Politico-criminali, Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2004, p. 7.

57 A expressão é retirada de Carlo PIERGALINI, La responsabilità del produttore..., op. cit., p. 1474.

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no feto e no embrião. É esta dicotomia, afastada temporalmente, entre,por um lado, o risco ignorado mas crescente e, por outro, o seu conhecimento e a respectiva consciencialização cultural que permitecompreender que os perigos sejam internalizados pela indústria e se transformem em desastres económicos potenciais devido a efeitos que perduram no tempo (tome-se, como exemplo, o uso do amianto em edifícios)58.

A ideia de sociedade de risco e as notas que a caracterizam, na síntese de Beck, é facilmente transposta para o âmbito da saúde pública. Com efeito, para além do ambiente, da biomedicina e da genética humana tem sido apontada como domínio paradigmáticodaquelas novas ameaças a saúde das populações, v.g., em casos como o da doença de Creutzfeldt-Jakob, a contaminação do sangue nomeadamente dos concentrados de plasma sanguíneo para hemofílicos,a manipulação genética de alimentos ou ainda a acção dos campos electromagnéticos na saúde humana59. Deste modo, muitas das

58 Retorno a la teoría de la “sociedad del riesgo”, op. cit., p. 17.59 Cfr. João LOUREIRO, Da sociedade técnica de massas à sociedade de

risco..., op. cit., p. 809. Também, Augusto Silva DIAS, Ramos Emergentes do Direito Penal Relacionados com a Protecção do Futuro, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 22, entende que “o consumo, o ambiente e a genética humana são apontadas como áreas privilegiadas de irrupção das ameaças geradas pelos novos riscos. Se dúvidas houvesse acerca disso, acontecimentos alarmantes das últimas décadas como a crise das «vacas loucas», sucessivos desastres ambientais provocados pela poluição industrial, prenúncios de intervenção manipuladora sobre a herança genética humana por parte de médicos pouco escrupulosos no modo como encaram os limites éticos à sua actividade, dissipá-las-iam”. Ainda no plano da biologia, da medicina e da tecno-ciência, José de Faria COSTA, Bioética e direito penal (refl exões possíveis em tempos de incerteza), in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, BFD, Studia Iuridica 98 (2009), vol. I, pp. 111 segs, onde surgem “problemas novos” “atinentes à experimentação de medicamentos em pacientes, aos transplantes de órgãos humanos, à fecundação artifi cial, ao testamento biológico, à colonização humana, à utilização de células estaminais para experiências científi cas tendo em vista a cura de doenças ou à alteração do património genético”.

incertezas levantadas pelos riscos próprios da segunda modernidade projectam-se de forma directa na incerteza dos seus efeitos sobre a qualidade da saúde humana. A saúde pública vê-se também ela confrontada com os efeitos incertos do avanço científi co e tecnológico.

Assim, no contexto da segunda modernidade, entre “Cassandras e Corifeus”60, encontramo-nos numa encruzilhada de possibilidades que em última instância se extremam em duas: por um lado, a inacção pessimista dominada pelo receio e, por outro, a ignorância optimista daqueles perigos.

Por esta via, na passagio do conceito sociológico de risco para a sua relevância jurídica, são por demais evidentes as difi culdades sentidas pelos ordenamentos jurídicos em matéria de defi nição, avaliação e aceitação dos novos riscos, pressupostas a sua intensidade e extensão. O predomínio da técnica esbate as fronteiras entre o que se pode fazer e o que se deve fazer, desde logo porque o “poder de fazer é sobejamente superior ao nosso poder de prever, e como tal, de avaliar e de ajuizar”61. Em causa está a capacidade de um direito pensado no quadro da previsibilidade e numa ética da responsabilidade, construindo as suas regras (para o futuro) com base na experiência (passada) para absorver e gerir o risco. Neste contexto de incerteza e perigo para bens fundamentais, pessoais e colectivos, o direito tem avançado com algumas respostas, entre as quais tem vindo a ganhar espaço o princípio da precaução, situado para além da mera prevenção do perigo62.

60 A expressão é de Giuseppe O. LONGO, La societá del rischio, disponívelem http://www.fondazionebassetti.org/it/focus/2008/02/la_societa_del_rischio.html.

61 GALIMBERTI, Psiché e Techne, apud Carlo PIERGALLINI, Danno da Prodotto..., op. cit., p. 14.

62 Sobre a distinção entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução, João LOUREIRO, Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco..., op. cit., pp. 857 segs.

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III. Saúde pública: novas soluções

1. A gestão dos novos riscos: o princípio da precaução

a) A progressiva consciencialização, ao longo da segunda metade do século XX, da existência de novos riscos decorrentes do progresso técnico, dotados de uma potencialidade lesiva desconhecida da primeira modernidade, fez emergir novas formas de gestão do risco, assente nas ideias de prudência e cautela, entre as quais se destaca o princípio de precaução63. Este princípio corresponde à formalização de uma regra ética (com implicações jurídicas) que, não sendo nova e nutrindo-se na afi rmação dos valores da universalidade, justiça e responsabilidade, se vê agora estruturada sob a forma de princípio normativo64. Trata-se de uma regra referente ao equilíbrio inter-geracional e à ideia de que a provisão das necessidades da geração presente não pode impedir a geração futura de satisfazer as suas65.

Perante uma situação de incerteza científi ca do risco, de imen-surabilidade do dano e de um eventual nexo causal entre um e outro, formulou-se um princípio que se concebe, em primeira linha, como orientação das entidades públicas na gestão de riscos. Neste sentido, quando existam elementos sufi cientemente sérios no sentido de

63 Sobre este princípio e a sua relação com o direito penal veja-se o nosso estudo Risco, precaução e responsabilidade penal no horizonte da incerteza, Estudos em homenagem a José Joaquim Gomes Canotilho, vol. 1, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 683 segs.

64 Sobre as dimensões normativas do princípio da precaução veja-se René von SCHOMBERG, The precautionary principle and its normative challenges, in Implementing the Precautionary Principle. Perspectives and Prospects (org. Elizabeth Fisher, Judith Jones, René von Schomberg), Cheltenham, Edward Elgar, 2006, pp. 19 segs.

65 Cfr. The Precautionary Principle, United Nations Educational Scientifi c and Cultural Organization, COMEST, 2005, p. 18.

uma substância, actividade, ou processo, poder provocar danos irreversíveis nos em determinados domínios como o ambiente e a saúde pública, dita-se como regra que o estabelecimento das contramedidas necessárias não deve esperar o momento de prova absoluta66. Deste modo, o princípio da precaução é, antes de mais, um princípio relativo ao exercício do poder público de regulação em matéria ambiental e de saúde pública em situações em que o conhecimento colectivo sobre os riscos que importam determinadas condutas é cientifi camente incerto67.

A afi rmação no plano epistémico e científi co da incerteza causal, por um lado, e o desenvolvimento das teorias sociológicas do risco e das propostas fi losófi cas em torno de uma ética da responsabilidade, por outro, determinaram uma nova compreensão do conceito de risco, dotada de um alcance alargado e capaz de abranger os riscos imprevisíveis da segunda modernidade. É justamente a urgência de respostas na contenção destes “novos riscos” que está na origem de um novo modelo: o modelo da precaução – por contraponto ao modelo de prevenção associado aos riscos tradicionais –, assente, num primeiro momento, numa ideia de antecipação da protecção do ambiente, mas que depressa se estendeu também à saúde pública.

Todavia, a forma como este princípio pode ser projectado na ordem jurídica implica uma “procedimentalização do direito” que se refl ecte, de modo imediato, em duas etapas: no plano administrativo, conferindo especial relevo à “decisão” da administração que tem de adequar-se à complexidade e à incerteza e, como tal, socorrer-se dos esclarecimentos científi cos disponíveis que possam suportar uma

66 Cfr. Adela CORTINA, Fundamentos fi losófi cos del principio de precaución, in Principio de Precaución, Biotecnología y Derecho (org. Carlos María Romeo Casabona), Bilbao-Granada, Editorial Comares, 2004, p. 5.

67 Cfr. Elizabeth FISHER, Opening Pandora’s Box: Contextualising the precautionary principle in the European Union, University of Oxford Faculty of Law, p. 4, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=956952.

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tal decisão; no plano legislativo, na emergência e na “explosão”68 de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados, afastados de uma estrutura normativa fechada e abertos à ponderação administrativa, necessária à concretização de uma ideia de precaução.

As “perdas de certeza” e o “defi cit de previsibilidade” quecaracterizam a segunda modernidade ou modernidade refl exiva projectam-se assim num novo direito também ele refl exivo, isto é, em regras jurídicas que carecem de uma renovada actualização em face do estado da técnica e do conhecimento científi co, ou ainda,nas esclarecedoras palavras de João LOUREIRO, “no quadro de uma refl exividade do Direito, visto agora como um sistema de aprendizagem, um ‘direito de aprendiz’ (lernendes Recht) marcadopela revisibilidade, para responder, em geral, aos processos de complexifi cação social e, no caso da técnica, à necessidade de adaptação aos standards da técnica e do estado do conhecimento científi co”69.

2. A consagração formal do princípio da precaução: a saúde pública como um dos principais domínios da sua aplicação

Na literatura é comum reportar-se a emergência do princípio da precaução à década de 70 do século XX70. Com frequência se refere que este princípio surge pela primeira vez, enquanto princípio de direito

68 Cfr. João LOUREIRO, Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco..., op. cit., p. 868.

69 Cfr. Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco..., op. cit., p. 868.70 Muito embora a afi rmação do princípio da precaução se situe historicamente

nesta altura, o pensamento da precaução tem uma história bem mais longa. Como nos dá conta o estudo da COMEST sobre aquele princípio, cfr. The Precautionary Principle, op. cit., pp. 7 segs, já em 1854 o “Dr. John Snow teria recomendado a remoção de uma bomba de água de modo a pôr fi m a uma epidemia de cólera. A prova do nexo causal entre a disseminação da cólera e o contacto com a bomba

positivo, no ordenamento jurídico alemão, como Vorsorgeprinzip71, no âmbito do programa governamental alemão de protecção ambiental de 197172. Foi progressivamente incorporado na legislação de outros países europeus como a França, a Dinamarca e a Suécia, não só em legislação relativa ao protecção do ambiente, mas também em matéria de segurança alimentar e de protecção da saúde pública73.

No plano do direito internacional, o princípio da precaução é amplamente reconhecido. São vários os documentos internacionais, sobretudo em matéria de protecção ambiental e da saúde humana, que a ele se referem, sem que, no entanto, se tenha seguido uma noçãoúnica daquele preceito. Não obstante a existência de referências prévias

de água era fraca e não constituía ‘prova para além de dúvida razoável’. Contudo, aquela medida simples mostrou-se muito efi caz na contenção da difusão da doença”. Um outro exemplo, com efeitos desastrosos, é dado pelo uso industrial do amianto ou asbesto, onde a adopção de um pensamento de precaução poderia ter salvado muitas vidas. Com efeito, os relatos dos efeitos nocivos do amianto datam já de 1898, na Inglaterra, onde um inspector de uma fábrica dá conta dos efeitos prejudiciais à saúde derivados do pó de amianto. As notícias sobre estes efeitos foram-se reproduzindo pela Europa durante todo o século XX, mas só nos anos 90 o amianto seria defi nitivamente proibido na União Europeia. Este longo atraso da proibição decorre da ausência de uma prova científi ca clara sobre o nexo causal entre os danos na saúde, designadamente o cancro pulmonar, e a exposição ao amianto.

71 Cfr. Adela CORTINA, Fundamentos fi losófi cos del principio de precaución, op. cit., p. 3; Roberto ANDORNO, Validez del principio de precaución como instrumento jurídico para la prevención y la gestión de riesgos, in Principio de Precaución, Biotecnología y Derecho, op. cit., p. 20; Opening Pandora’s Box..., op. cit. p. 3; Pierpaolo Cruz BOTINI, Crimes de Perigo Abstrato e Princípio da Precaução na Sociedade de Risco, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 65 segs; Augusto Silva DIAS, Ramos Emergentes do Direito Penal..., op. cit., p. 41.

72 Cfr. Michael KLOEPFER, Umweltrecht, Beck, Munich, 1998, p. 166, apud Roberto ANDORNO, Validez del principio de precaución..., op. cit., p. 20. Em sentido crítico, Elizabeth FISHER, Opening Pandora’s Box..., op. cit., p. 3.

73 Cfr. ANDORNO, Roberto, «Validez del principio de precaución...», op. cit., pp. 20-21.

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a este princípio no plano internacional74, a Segunda Conferência Internacional sobre a Protecção do Mar do Norte é apontada como um dos primeiros tratados internacionais que prevê explicitamente a sua concretização. Também a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que teve lugar em 1992 no Rio de Janeiro, conferia ao princípio da precaução um carácter universal e, simultaneamente concretizava um pouco mais o âmbito e os pressupostos daquele princípio75.

No plano do direito europeu, em 1992, o Tratado de Maastricht incluiu expressamente no seu artigo 130º-R o princípio da precauçãoentre os princípios que devem reger a política comunitária de protecção do ambiente. Este princípio foi reiterado, em 1997, pelo Tratado de Amesterdão, no seu artigo 174º. e corresponde actualmente ao artigo 191º, nº 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União76. Ainda no âmbito do direito europeu, a maioria dos estudos sobre o

74 A ideia de precaução é referida pela primeira vez, no plano internacional, na Declaração fi nal da conferência de Estocolmo sobre o meio ambiente humano (1972). Também a Convenção de Viena para a Protecção da Camada do Ozono, assinada em 1985, se refere expressamente, nas suas conclusões, ao princípio da precaução, muito embora sem propor uma defi nição daquele princípio: “Althoughit contained no commitment to take any action to reduce CFC production or consumption, the Vienna Convention was nevertheless an important milestone: nations agreed in principle to tackle a global environmental problem before its effects were felt or its existence scientifi cally proven, probably the fi rst example of the acceptance of the ‘precautionary principle’ in a major international negotiation”(disponível em http://www.dipublico.com.ar/english/the-vienna-convention-for- the-protection-of-the-ozone-layer/).

75 Trata-se do princípio 15 que, na versão em língua inglesa, tem o seguinte conteúdo: “In order to protect the environment, the precautionary approach shall be widely applied by States according to their capabilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientifi c certainty shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environmental degradation”.

76 Sobre os textos de direito comunitário que se referem ao princípio da precaução vide Gabriela Alexandra OANTA, La Política de Seguridad Alimentaria en la Unión Europea, Valencia, Tirant lo Blanch, 2007, pp. 320 segs.

princípio da precaução destacam, pela sua importância, a Comunicação da Comissão Europeia, de 2 de Fevereiro de 2000, que teve por fi m realizar uma espécie de interpretação autêntica daquele princípio77. Como se esclarece no próprio documento, o objectivo da comunicação traduz-se em estabelecer as condições de uma aplicação razoável do princípio da precaução, perante as difi culdades de delimitação que coloca, de forma a evitar que possa servir de cobertura à adopção de medidas proteccionistas pelos Estados membros78. Por fi m, ainda no plano do direito europeu, não pode deixar de se referir que o Conselho da Europa, reunido em Nice, em Dezembro de 2000, aprovou, como anexo do Tratado de Nice, uma Resolução sobre o princípio da precaução que subscreve as condições de aplicaçãoestabelecidas pela Comissão Europeia e reafi rma que aquele princípio se sedimenta progressivamente como princípio de direito internacional nos domínios da protecção da saúde e do ambiente79.

No âmbito da jurisprudência dos tribunais europeus, tem sido concedida uma relevante importância ao princípio da precaução. Alberto Alemanno considera que a manifestação daquele princípio e a sua aplicação pelos tribunais é mesmo anterior à sua inclusão, em 1992, no Tratado de Maastricht80. Neste sentido, quer a jurisprudência

77 Disponível em http://ec.europa.eu/dgs/health_consumer/library/pub/pub07_ en.pdf.

78 Na verdade esta Comunicação teve a sua origem nas divergências entre a União Europeia e a Organização Mundial do Comércio, a propósito das restrições à entrada no espaço europeu de carne de bovino com hormonas, cfr. Maria Alexandra ARAGÃO, Dimensões Europeias do Princípio da Precaução, RFDUP, Ano VII (2010), p. 252. Sobre o signifi cado e importância da Comunicação sobre o Princípio da Precaução veja-se também Elizabeth FISHER, Opening Pandora’s Box..., op. cit., p. 20.

79 Cfr. número 3 daquela Resolução, disponível em http://www.consilium.europa.eu/ueDocs/cms_Data/docs/pressData/pt/ec/00400-r1.%20ann.p0.htm.

80 Cfr. Alberto ALEMANNO, The shaping of the precautionary principle by european courts. From scientifi c uncertainty to legal certainty, The Jean Monnet Working Papers 18 (2008), pp. 1-2 (disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1325770).

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do Tribunal de Justiça, quer as decisões do Tribunal de Primeira Instância contribuíram para concretização do conteúdo do princípio da precaução. Segundo aquele autor, os tribunais europeus tiveram de lidar com algumas questões relacionadas com o princípio da precaução muito antes da sua consagração nos tratados europeus. Com efeito, nos anos 80 do século XX, vários Estados-Membros invocavam razões de saúde pública, em situações de incerteza científi ca, de forma a proibir a inclusão de determinadas substâncias em bens alimentares e, consequentemente, por forma a impedir a importação daquelas substâncias para os seus territórios – o que representava um confl ito com o princípio da liberdade de circulação de bens no espaço comunitário81. A decisão proferida pelo tribunal no caso Kaasfabriek Eyssen82 constitui disso um exemplo ao pronunciar-se acerca da

81 Cfr. Alberto ALEMANNO, The shaping of the precautionary principle by european courts..., op. cit., p. 2.

82 Trata-se da Decisão 53/80, disponível em http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61980J0053:EN:HTML, cujo sumário se transcreve: “the provisions of the EEC treaty regarding the free movement of goods do not, at the present stage of community rules on preservatives in foodstuffs intended for human consumption, preclude national measures by a member state which on the protection of health and in accordance with article 36 of the treaty, prohibit the addition of nisin to processed cheese sold on the domestic market other than processed cheese intended for export to other member states. In view of the uncertainties prevailing in the various member states regarding the maximum level of nisin which must be prescribed in respect of each preserved product intended tosatisfy the various dietary habits, it does not appear that such a prohibition, although restricted only to products intended for sale on the domestic market of the state concerned, constitutes a means of arbitrary discrimination or a disguised restriction on trade between member states within the meaning of article 36 cited above” . Uma breve descrição factual deste caso pode encontrar-se em AlbertoALEMANNO, The shaping of the precautionary principle by european courts..., op. cit., p. 2. Este autor refere ainda um outro caso julgado pelo Tribunal de Justiça, relativo à incerteza dos efeitos de certas vitaminas na saúde das pessoas. Trata-se de mais um caso passado na Holanda, de natureza criminal no âmbito do direito interno. Em causa estava saber se as vitaminas preparadas pelo Sr. Van Bennekom podiam ser consideradas, à luz da legislação nacional, como produto

proibição holandesa do uso de um antibiótico como conservante no fabrico de queijo, motivada pela protecção da saúde. O tribunal considerou que, dada a situação de incerteza científi ca quanto aos riscos daquela substância, deveria conceder-se aos Estados-Membros uma margem de manobra quanto à sua proibição no plano interno por razões de saúde pública, sem que se considere violado o princípio da livre circulação de bens. Esta decisão fundamentou-se no artigo 36º do Tratado da União.

Após a inclusão do princípio da precaução, em 1992, no artigo 174º do Tratado de Maastricht, foram várias as decisões do Tribunal de Justiça que se referem àquele princípio. Entre aquelas que mereceram uma maior visibilidade na literatura sobre aquele princípio, contam-se as decisões relativas à política de precaução, seguida pela Comissão Europeia, em particular por via da Decisão 96/239/EC, de 27 de Março de 1996, relativa às medidas de emergência e de controlo da encefalopatia espongiforme bovina (BSE)83. No contexto da crise das “valas loucas” e da possível ligação da BSE com a variante da doença de Creutzfeldt-Jakob, o tribunal entendeu como razoável, logo

medicinal, não tendo sido observados os necessários requisitos de segurança exigidos para a comercialização daquele produto. O Estado proíbe a sua comercialização e o Sr. Van Bennekom, considerando que não se tratava de um produto medicinal, queixa-se ao tribunal europeu pela limitação imposta à comercialização do seu produto. O tribunal, retomando a argumentação que já havia sido exposta num caso anterior (caso Sandoz), considerou o seguinte: “in a consistent line of decision the court has stated that, in so far as uncertainties persist in the present state of scientifi c research, it is for the member states, in the absence of harmonization, to decide what degree of protection of health and life of humans they intend to ensure, having regard however to the requirements of the free movement of goods within the community”. Trata-se do caso 227/82, de 30 de Novembro de 1983, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61982CJ0227:EN:HTML.

83 Cfr. Roberto ANDORNO, Validez del principio de precaución como instrumento jurídico..., op. cit., p. 23; Alberto ALEMANNO, The shaping of the precautionary principle by european courts..., op. cit., p. 4.

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naquele ano, a proibição de comercialização de carne bovina proveniente do Reino Unido84. De salientar também que, no Acórdão de 5 de Maio de 1998 relativo ao mesmo caso85, o tribunal alarga expressamente o princípio da precaução ao âmbito da saúde pública, não obstante a sua previsão no então artigo 130º do tratado referenteaos princípios relativos à protecção ambiental86. A importância desta decisão advém assim, de forma imediata, da extensão daquele princípio a interesses situados para além da protecção ambiental, tornando-se um princípio igualmente válido e aplicável em matéria de segurança alimentar e de saúde pública87. Adicionalmente, a decisão, sem que o reconheça expressamente, avança ainda com uma enunciação do princípio da precaução e da sua função normativa: entende o tribunal que “quando subsistam incertezas quanto à existência ou alcance de riscos para a saúde das pessoas, as instituições podem adoptar medidas de protecção sem terem de esperar que a realidade e gravidade de tais riscos sejam plenamente demonstradas”88.

Deste modo, a jurisprudência dos tribunais europeus, em conjunto com a comunicação da Comissão sobre o princípio da precaução, permitiram conceder àquele princípio um conteúdo normativo

84 Trata-se do despacho sumário relativo ao Processo C-180/96, disponível em língua portuguesa em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61996O0180:PT:HTML.

85 Disponível em língua portuguesa em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61996J0180:PT:HTML.

86 Cfr. Processo C-180/96, parágrafo 100: “esta análise é corroborada pelo artigo 130. R, nº 1, do Tratado CE, segundo o qual a protecção da saúde das pessoas é um dos objectivos da política da Comunidade no domínio do ambiente. O nº 2 do mesmo artigo determina que essa política, visando um nível de protecção elevado, se baseará designadamente nos princípios da precaução e da acção preventiva e que as exigências em matéria de protecção do ambiente devem ser integradas na defi nição e aplicação das demais políticas comunitárias”.

87 Neste sentido, Roberto ANDORNO, Validez del principio de precaución como instrumento jurídico, op. cit., p. 24; Alberto ALEMANNO, The shaping of the precaution principle..., op. cit., p. 6.

88 Cfr. Processo C-180/96, parágrafo 99.

estabilizado, sendo unânime na literatura actual que aquele princípio “adquiriu no direito comunitário europeu um valor de verdadeira regra do direito de aplicação directa”89. O princípio da precaução constitui hoje um princípio fundamental de direito europeu que há muito extravasou o domínio ambiental, sendo hoje extensivo a matérias tão variadas como a saúde pública, a segurança do consumidor90 ou a nanotecnologia91.

Coloca-se então a questão de saber qual a força jurídica no plano do ordenamento interno de um princípio plenamente reconhecido no âmbito do direito comunitário.

Se bem que este princípio tenha indiscutivelmente ganho o beneplácito do direito e da jurisprudência europeus, está longe de merecer tal distinção pelo direito interno português92. A expressão deste princípio é reduzida à referência em diplomas que transpõem

89 Cfr. Philippe KOURILSKY / Geneviéve VINEY, Le Principe de Précaucion, Rapport au Premier Ministre, Paris, 2000, p. 132, apud Roberto ANDORNO, Validez del principio de precaución como instrumento jurídico, op. cit., p. 25; também Maria Alexandra ARAGÃO, Dimensões europeias do princípio da precaução, op. cit., p. 253.

90 Cfr. A Directiva 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro de 2001, que reforça as disposições anteriores relativas à segurança dos produtos (previstas na Directiva 92/59/CEE do Conselho de 29 de Julho de 1992, transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei nº 311/95), à luz do princípio da precaução, como expressamente se refere na parte introdutória. Esta Directiva foi transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei nº 69/2005, de 17 de Março, relativo à segurança geral dos produtos. Todavia, este diploma não faz qualquer referência directa àquele princípio.

91 Referindo-se à ampla consagração do princípio da precaução no direito europeu, Maria Alexandra ARAGÃO, Dimensões europeias do princípio da precaução, op. cit., p. 253, dá-nos conta que este princípio se encontra “expressamente citado, enquanto princípio, em 76 actos jurídicos de Direito Europeu. Outros 255 actos, cobrindo temas tão variados como a segurança dos produtos, os organismos geneticamente modifi cados, as nanotecnologias, avaliação ambiental de planos e programas, etc., mencionam, se não o princípio, pelo menos estratégias precaucionais”.

92 Sobre a natureza constitucional deste princípio João LOUREIRO, Da sociedade técnica de massas à sociedade de risco..., op. cit., pp. 869 segs.

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directivas europeias e a escassas menções em diplomas autónomos, como por exemplo, a Lei da Água (Lei nº 58/2005, de 29 de Dezembro,alterada pelo Decreto-Lei nº 130/2012, de 22 de Junho); a Lei de Bases da Protecção Civil (Lei nº 27/2006, de 3 de Julho); a Lei da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (Decreto-Leinº 142/2008, de 24 de Julho); o Regime de Prevenção e Controlo Integrados das Emissões Industriais (Decreto-Lei nº 127/2013, de 30 de Agosto ou a legislação relativa aos organismos geneticamente modifi cados, designadamente o Decreto-Lei nº 72/2003, de 10 de Abril93.

Assim, da análise realizada conclui-se que o princípio da precaução constitui hoje um princípio de direito internacional94 e de direito europeu, que tem vindo a ser paulatinamente adoptado pela legislação dos estados nacionais. Este princípio ergueu-se assim como uma das formas de lidar com a imprevisibilidade e irreversibilidade dos novos riscos e foi ganhando progressivamente, não obstante as difi culdades na delimitação dos seus contornos e pressupostos, validade jurídica. Com aplicação primária no domínio da protecção

93 Cfr. Helena MONIZ / Susana Aires de SOUSA, Manifestações do princípio da precaução no direito português, Principio de precaución: proyección en el tratamiento jurídico sancionatorio de la elaboración, comercialización o liberación ilícita de organismos genéticamente modifi cados, coord. Manuel Gómez Tomillo (em curso de publicação).

94 Não obstante as reservas que são dirigidas por alguns países com considerável importância no espaço internacional, documentadas historicamente no caso da carne bovina de animais tratados com hormonas, interposto na Organização Mundial de Comércio, o qual opôs Estados Unidos e Canadá, de um lado, e a União Europeia de outro. Com efeito, a União Europeia proibiu, com base no princípio da precaução, a entrada daquela carne no espaço europeu devido à incerteza quanto aos riscos para a saúde derivados do seu consumo. Da perspectiva da argumentação da União Europeia, este princípio constituía já uma regra de direito internacional consuetudinário. Por sua vez, no entendimento dos Estados Unidos, aquele princípio constituía apenas uma orientação sem a validade de um princípio de direito internacional, cfr. Roberto ANDORNO, Validez del principio de precaución..., op. cit., p. 25.

do ambiente, o princípio estender-se-ia a outros domínios férteis na incerteza científi ca como é o caso da saúde pública e da segurança dos consumidores95.

Mas terá este princípio, enraizado numa ideia de responsabilidade ética, alguma projecção no âmbito do ordenamento jurídico-penal, designadamente enquanto medida de protecção da saúde pública? Pode um tal princípio servir de fundamento a uma responsabilidade jurídica e em particular uma responsabilidade criminal96?

3. Princípio da precaução e direito penal: o último ângulo

À primeira vista, o estabelecimento de uma relação entre o direito penal e o princípio da precaução parece contraditória, uma vez que este princípio se centra na adopção de medidas cautelares que evitema ocorrência de danos graves e eventualmente irreversíveis na comunidade, enquanto, por sua vez, a intervenção penal só se dá depois de o dano ter ocorrido, estando, na sua origem, marcada pela tragédia de chegar demasiado tarde.

95 Em sentido muito crítico quanto à autonomização da ideia de precaução e à sua aplicabilidade directa, atendendo aos riscos por ela implicados, designadamente pela insuportável restrição ao conceito de liberdade, veja-se Carla Amado GOMES, Risco e Modifi cação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do Ambiente, Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas, Lisboa, 2007, pp. 246 segs (disponível online em https://docs.google.com/fi le/d/0B-YPQQ1FFa3CS1p3T1EyUEQyODQ/edit e em versão impressa, em 2007, pela Coimbra Editora).

96 A interrogação que ora se formula enquadra-se numa outra questão de carácter mais amplo, traduzida nas implicações da sociedade do risco no direito penal e, em última instância, na eventual mudança de paradigma de um direito penal liberal e antropocêntrico para um direito penal do risco global. Esta é uma discussão já há muito iniciada na doutrina e cujo estudo extravasa o propósito desta investigação. Veja-se porém, sobre esta questão, Susana Aires de SOUSA, Os Crimes Fiscais..., op. cit., pp. 288 segs e 314 segs; e também o nosso Sociedade do risco: requiem pelo bem jurídico?, RBCC 86 (2010), p. 245.

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Todavia, o direito penal não fi cou imune às inquietas refl exões lançadas pelo actual contexto de incerteza científi ca e, desde há alguns anos, a literatura tem vindo a indagar da função específi ca que corresponderia ao direito penal no contexto da chamada sociedade do risco97. O direito penal vê-se assim confrontado pelo confl ito entre a necessidade e benefícios decorrentes do desenvolvimento tecnológico e a possibilidade e a plausibilidade de novos riscos dos quais pode derivar um resultado massifi cado de perigo ou lesão para bens jurídicos penalmente protegidos.

Ao direito penal compete, no quadro da ordem jurídica, cumprir uma função de segurança e de protecção de bens jurídicos reconhecidoscomo valiosos pela comunidade. Entre as formas de protecção desses bens jurídicos prevêem-se também medidas preventivas, de que constituem exemplo máximo os crimes de perigo. Conforme tem vindo a ser destacado por diversa literatura, as fragilidades na protecção dos interesses ameaçados pela segunda modernidade mereceram ressonância jurídica, muito concretamente no âmbito do direito penal, a dois níveis: por um lado, seguiram-se estudos sobre a necessidade de repensar o modelo clássico e as categorias tradicionais que integram a teoria da infracção criminal; por outro, iniciou-se a discussão, no plano da política criminal, sobre o reforço e extensão da sanção criminal. Com efeito, a consciencialização dos novos riscos e das suas dimensões determinou a “subjectivização” da insegurança ou, nas clarifi cadoras palavras de Blanca MENDOZA BUERGO, “uma elevada sensibilidade ao risco” que, acompanhada de uma sensação de insegurança, “conduzem uma progressiva orientação jurídico-penal ao mero risco e à procura da sua minimização através do direito penal, já que é a ele que se dirigem de maneira prioritária

97 Entre nós, por todos, Jorge de Figueiredo DIAS, O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”, op. cit., p. 591; Augusto Silva DIAS, Ramos Emergentes do Direito Penal, op. cit., pp. 41 segs.

e às vezes quase exclusiva as necessidades especifi camente normativas de segurança”98.

Todavia, a maioria dos autores tende a concordar que é de afastar um direito penal que assegure, em primeiro lugar, as inquietações trazidas pela sociedade do risco, sob pena de dele se exigir mais do que pode dar, transformando-o em direito securitário e controlador,vinculado ao reforço de medidas administrativas99. Porém, também se acrescenta que o direito penal não pode fechar-se às circunstâncias do seu tempo. A resolução de um tal confl ito só pode resolver-se por via do diálogo entre as categorias e princípios que lhe são próprios e as difi culdades de um novo mundo, se necessário repensando aquelas categorias à luz dos novos problemas.

A relação entre o princípio da precaução e o direito penal dá-se, assim, em dois planos distintos. Em primeiro lugar, uma vez que aquele princípio se concretiza numa série de medidas cautelares, coloca-se a questão de saber se é legítimo e justifi cado o recurso ao direito penal como meio de assegurar através das sanções que o caracterizam a prossecução daquelas medidas. Num segundo leque de considerações, importa determinar se o princípio da precaução se projecta sobre alguma das categorias da infracção penal ou se pode de algum modo contribuir para a sua concretização. Neste último caso, é de considerar, por exemplo, o auxílio à concretização e materialização de novos bens jurídicos de natureza colectiva100.

98 Cfr. Principio de precaución, derecho penal del riesgo y delitos de peligro, in Principio de Precaución, Biotecnologia y Derecho, op. cit., p. 443.

99 Blanca MENDOZA BUERGO, Principio de precaución, derecho penal del riesgo..., op. cit., p. 445. Referindo-se, em particular, à incapacidade do direito penal para uma tutela das gerações futuras, José de Faria COSTA, Apontamentospara umas refl exões mínimas e tempestivas sobre o direito penal de hoje, Revista de Legislação e Jurisprudência 139 (2009), pp. 50 seg.

100 Sobre a relação entre o princípio da precaução e outras categorias jurídico-penais, como os crimes de perigo, o nexo de causalidade e de imputação ou ainda a concretização de deveres de cuidado susceptíveis de fundamentar a responsabilidade

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a) No que diz respeito à primeira daquelas questões, é nossa convicção que tal princípio não pode constituir um fundamento directo e exclusivo de uma qualquer criminalização, ainda que se atente à gravidade e extensão dos perigos, sem que se transmute o fi m da intervenção penal. Como argumento avança-se a incompatibilidade entre o modelo de precaução e o modelo da previsibilidade necessária à intervenção penal. Isto é, a relevância criminal de uma condutaassenta numa ideia de previsibilidade, certa ou provável, entre determinada conduta e os seus efeitos. Esta previsibilidade corresponde a um modelo de prevenção capaz de censurar o agente por não evitara realização de uma conduta ou resultado juridicamente desvaliosos. Ora, ao modelo de precaução, em que assenta o princípio com a mesma designação, não corresponde, como anteriormente se desenvolveu, uma qualquer ideia de previsibilidade ou probabilidade mas antes um juízo de plausibilidade101. Este juízo contém em si uma ideia de admissibilidade ou possibilidade: uma hipótese plausível é uma hipótese admissível, possível que não se confunde com uma situação provável ou previsível. O juízo de plausibilidade reveste-se de grande importância na tomada da decisão do ente responsável pela decisão de proibir ou admitir a prossecução daquela actividade, na medida em que é um elemento que deve ser ponderado, e que neste contexto signifi ca uma possível ameaça para bens fundamentais. Mas uma hipótese plausível é insufi ciente para que se possa considerar a realização dessa actividade como criminosa. O direito penal mostra-se desadequado à gestão de riscos plausíveis mas incertos.

criminal, veja-se Susana Aires de SOUSA, Risco, precaução e responsabilidade penal..., op. cit., pp. 699 segs.

101 O princípio da precaução só ganha sentido quando situado no contexto de incerteza científi ca quanto aos riscos que acompanham determinadas condutas ou actividades. Retirando-o deste cenário elimina-se a nota que o distingue, nada se acrescentando ao modelo da previsibilidade.

Neste sentido, a possibilidade séria daquele perigo é condição sufi ciente para a aplicação de medidas administrativas de cautela e de prudência, por exemplo no sentido de proibir ou meramente condicionar a prossecução da actividade (v.g., a produção de um bem), cuja violação deve sancionar-se, em princípio, pela via do ilícito contra-ordenacional, em nome da segurança dos bens protegidos. Deste modo, é ao direito administrativo que cabe em primeira linha concretizar, através daquelas medidas de precaução e da sanção à sua infracção, uma primeira protecção dos bens ameaçados. A imediata intervenção penal, além de desadequada, corresponderia a uma clara violação do princípio da ultima ratio e da mínima intervenção penal.

Porém, também aqui deve valer o conceito de revisibilidade que caracteriza a sociedade do risco. Ou seja, na medida em que o contexto de plausibilidade evolua para um estado de previsibilidade, devido ao desenvolvimento do conhecimento científi co ou, no caso de autorização da actividade, devido à acumulação de resultados práticos que vão sendo conhecidos (v.g., as informações relativas à comercialização do produto), deve a entidade pública averiguar da necessidade de criminalização da conduta.

b) Assim, de uma perspectiva político-criminal, o princípio da precaução, por si só, é insufi ciente para sustentar a criminalização de uma conduta. Porém, do ponto de vista dogmático é possível estabelecer algumas conexões com institutos e categorias jurídico-penais. Uma análise dessas relações pode revelar-se útil na delimitação (negativa ou positiva) e na concretização de algumas dessas categorias. Pensamos, por exemplo, na concretização de interesses colectivos dignos de tutela penal.

O princípio da precaução tem o seu âmbito de aplicação essencial-mente dirigido à protecção antecipada de bens jurídicos de titularidade difusa, como o ambiente, a saúde pública, a segurança ou a identidade genética. Deste modo, por via da tutela destes interesses, é fácil identifi car uma ligação entre este princípio e a categoria jurídico-penal

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de bem colectivo – conceito que, como vimos, tem suscitado a maior discussão no seio da literatura penal, designadamente quanto aos critérios de determinação dos seus contornos e aos limites da admissibilidade da sua protecção penal. Trata-se de interesses que se apresentam, pela sua natureza difusa, com contornos mais vagos e carentes de defi nição. As tentativas de concretização e defi nição destes bens têm-se sucedido na doutrina penal102. Embora o princípio da precaução não possa servir como critério da sua defi nição, na medida em que esses bens pré-existem à sua própria aplicação, ele pode servir desde logo como barómetro na determinação de situaçõesde ataques mais graves a esses interesses. Tal não implica uma qualquer necessidade de proteger criminalmente aqueles bens sempre que se aplique o princípio da precaução; antes se pretende sublinhar que a aplicação daquele princípio denuncia antecipadamente situações de fragilidade ou ameaça, comprovadas cientifi camente, na tutela daqueles bens considerados de relevante valor para a comunidade. Detectada esta fragilidade, cabe aos princípios e critérios estabelecidos pela doutrina penal, obser vado o princípio da necessidade e da mínima intervenção penal, indagar da sua eleição à categoria de bem jurídico-penal.

Por outro lado, a discussão em torno do fundamento e condições de aplicação deste princípio acarretou uma consciencialização dos riscos para determinados interesses e contribuiu para que a comunidade formasse um juízo sobre a necessidade de protecção jurídica de bens que são de titularidade difusa. Ou seja, a afi rmação deste princípiorepresentou um contributo no processo de consenso comunitário sobre o valor daqueles interesses, concedendo-lhe o estatuto de bens

102 No âmbito da literatura portuguesa, entre outras, as monografi as de Jorge de Figueiredo DIAS, Direito Penal, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 133 segs; pp. 58 segs; Augusto Silva DIAS, “Delicta in se”..., op. cit.,pp. 641 segs; José de Faria COSTA, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 174 segs e 251 segs; Susana Aires de SOUSA, Os Crimes Fiscais, op. cit., pp. 201 segs.

jurídicos colectivos “cuja utilidade aproveita a todos sem que ninguém possa dela ser excluído”103. A sua protecção é representada e querida porque cria “espaços de liberdade necessários à realização dos próprios indivíduos”104. E com esta refl exão somos chegados ao ponto fundamental desta conexão, na medida em que este processo de “eticização” de determinados interesses colectivos foi, por exemplo,determinante para a afi rmação e legitimação do ambiente ou mesmo da saúde pública como bem jurídico digno e, em certas situações, carente de tutela penal.

IV. Nota conclusiva

No estudo efectuado procurou-se encontrar a ligação entre três categorias muito heterogéneas: a saúde pública, tida como um interesse valioso à sociedade; “os novos riscos”, próprios da sociedade contemporânea e ameaçadores daquele e de outros interesses colectivos e o direito penal enquanto ramo do ordenamento jurídico que prevê as sanções mais graves e toma como função primária a tutela subsidiária de bens jurídico-penais. Nesta relação triangular, fomos formulando um conjunto diverso de interrogações para as quais nem sempre encontramos as respostas mais satisfatórias.

É a saúde pública um bem jurídico com dignidade penal? Parece-nosque sim: essa sua dignidade é desde logo afi rmada pelo legislador nacional quando toma a tutela deste interesse social como referência legitimadora de incriminações no âmbito do consumo ou dos crimes de perigo comum; mas também tem vindo a ser suportada pelo legislador internacional através da criação de tratados que obrigam os Estados à criminalização de condutas ofensivas da saúde pública, v.g., a recente Convenção Medi-crime, do Conselho da Europa.

103 Cfr. Susana Aires de SOUSA, Os Crimes Fiscais..., op. cit., p. 299.104 Cfr. Roland HEFENDEHL, Kollektive Rechtsgüter im Strafrecht, op.

cit., p. 787.

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Todavia, num segundo momento, importa sublinhar que não cabe ao direito penal uma tutela primária daquele bem. Esta questão foi trazida à boca de cena pelas ameaças à saúde pública e a outros interesses socialmente valiosos (ambiente, identidade genética)sublinhadas no contexto da sociedade do risco. A segunda modernidade, na expressão de Beck, trouxe consigo a percepção de “novos riscos” caracterizados pela sua natureza potencialmente catastrófi ca. Ora, é justamente a consciência desta amplitude de efeitos nefastos que fez emergir uma ética da responsabilidade voltada para a protecção das gerações futuras, na qual se fundamentam algumas respostas jurídicas, fundadas em princípios que têm vindo a conhecer carácter de juridicidade e de legalidade. Entre estes princípios conta-se o princípio da precaução, que constitui uma das principais respostas dadas à incerteza e perigosidade dos “novos riscos” tecnológicos. Trata-se de um instrumento de gestão do risco, dotado de uma clarareferência política, cujo alcance depende em primeira linha deuma decisão pública tomada em condições de incerteza que se sobrepõem à aferição de uma relação causal entre a conduta e os danos à saúde pública ou ao ambiente. Não obstante a sua consagração como princípio positivo na ordem jurídica internacional e na ordem jurídica europeia, o modo de concretização deste princípio pelos diversos Estados soberanos não tem sido uniforme.Poderá o direito penal ser um recurso a utilizar como forma de garantia das medidas cautelares fundadas naquele princípio? Da nossa perspectiva, a incerteza ínsita a um modelo de precaução mostra-se incompatível com o modelo de previsibilidade exigido pela intervenção penal. Assim, a eventual relevância jurídico-penal deste princípio no âmbito da tutela da saúde pública em face de riscos incertos deve ser reduzida e indirecta, mediatizada, no plano dogmático, pelos institutos e categorias próprios da doutrina penal. Assim se fecha este triângulo escaleno, ligando ângulos diferentes mas voltados para uma mesma realidade: a adaptação das respostas jurídicas aos riscos da “segunda modernidade”.

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