direitos reais · | josé alberto vieira – luís menezes leitão 大象城堡 2 parte primeira...
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Jos Alberto Vieira | Lus Menezes Leito
2017/2018
| Jos Alberto Vieira Lus Menezes Leito
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| Jos Alberto Vieira Lus Menezes Leito
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Parte Primeira O sistema de direitos reais1
O sistema normativo ou interno dos Direito Reais: a origem do sistema interno de Direitos Reais encontra-se como sabemos no Direito Romano. A classificao de GAIUS que divide o
sistema normativo do Direito Romano em personae, res e actiones leva a diferenciar o Direito
patrimonial, que estava compreendido na res, a capacidade jurdica e o que hoje abrangemos
no Direito da Famlia, tratado a propsito da personae, e a tutela processual dos direitos,
integrado nas actiones. A res, por sua vez, inclua todos os direitos patrimoniais, ou seja, as duas
grandes categorias de direitos: os direitos reais e os direitos de crdito (obligationes). Esclarea-
se, porm, que a designao Direitos Reais ou Direito das Coisas no era conhecida no Direito
Romano. Oque surge referenciado no Direito Romano a res, designao para a propriedade, e
o ius in re, direitos sobre coisa alheia (direitos reais menores), que mais tarde na doutrina
surgiram mencionados como ius in re (propriedade) e ius in re aliena (direitos reais menores),
por influncia dos romanistas da Idade Mdia. No Direito Romano os direitos reais tinham por
objeto uma coisa e atribuam um senhorio total ou parcial sobre ela, o qual dispensava a
colaborao de uma pessoa, contrariamente s obligationes. conhecida, porm, a perspetiva
dos romanos de olharem os direitos patrimoniais no como direitos subjetivos, mas como aes,
ou seja, no de acordo com a posio jurdica e sim consoante a tutela processual. Enquanto os
direitos pessoais de crdito recebiam tutela atravs da actio in personam, os direitos sobre as
coisas eram defendidos por uma actio in rem. A actio in personam vem a ser intentada quando
o devedor no efetua a prestao a que se encontra obrigado e dirige-se contra o devedor: in
personam. Diversamente, a actio in rem visa atuar a defesa de um direito sobre uma coisa contra
todo aquele que se pe a atuar a defesa de um direito sobre uma coisa contra todo aquele que
se pe a si prprio como obstculo entre o titular do direito real e a sua coisa. Deste modo, esta
ao no vem a ser interposta contra algum que deva realizar uma atividade a favor do autor,
mas contra aquele que lhe impede o gozo de uma coisa, podendo ser dirigida contra quem quer
que seja, isto , contra qualquer um. A actio in rem permitia, assim, ao titular do direito real
perseguir a sua coisa para aonde quer que ela fosse, independentemente da pessoa do
possuidor, o qual , para efeitos de tutela, indiferente. Na ausncia de fontes que enunciem de
um modo ordenado as vrias figuras de direito reais, a natureza real decorre, ao menos num
primeiro momento, da tutela processual da actio in rem. O Direito Romano desenvolveu os tipos
mais importantes de direito reais. No Direito Romano antigo, eram a propriedade, as servides
(servitutes) e o usufruto, com a limitao que o direito de uso. No perodo justinianeu, a
evoluo permite reconhecer igualmente a enfiteuse, a superfcie e, como garantia das
obrigaes, o penhor e a hipoteca. Dentro dos direitos reais, a propriedade no Direito Romano
o direito mais extenso. A contraposio entre as obrigaes e os direitos reais e, em particular,
o desenvolvimento dos tipos de direitos reais constitui uma das mais importantes heranas do
Direito Romano. O sistema normativo de Direitos Reais recebeu um novo influxo com a
codificao civil. disperso das fontes e a sua relativa desorganizao, ou ordenao perifrica
em compilaes, sucedeu uma regulao sinttica constante de um nico diploma legal: o
Cdigo Civil. Historicamente, a primeira evoluo histrica significativa desde o Direito Romano
foi trazida pelo Code Civil Francs de 1804. O Code Civil aparece estruturado em trs Livros, Das
1 VIEIRA, Jos Alberto; Direitos Reais; 2. Edio; Almedina Editores, S.A., Coimbra, fevereiro 2016.
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Pessoas, Dos Bens E Das Diferentes Modificaes Da Propriedade e Dos Diversos Modos De
Aquisio Da Propriedade. Parte-se da noo de pessoa (Livro I), ponto de vista agregador do
sistema, e desta depois para o patrimnio, sem o qual a pessoa no se realiza. O Livro II surge
inteiramente dedicado disciplina dos Direito Reais, embora essa designao no seja usada, e
encontra-se dividido em quatro ttulos, Da Distino Dos Bens, Da Propriedade, Do Usufruto,
Uso E Habitao e Das Servides Ou Servios Fundirios. A posse no surge regulada no Livo II,
mas no Livro II, juntamente com o regime da prescrio. O contedo desta regulao do Code
Civil possivelmente, dentro dos cdigos civis modernos, o que menos recebeu da herana do
Direito Comum. conhecido a forte influncia do costume, especialmente o costume de Paris,
na elaborao das solues normativas do Code. O Code Civil representa uma enorme evoluo
na sistemtica interna do Direito. Aqui a matria encontra a sua unidade mediante pontos de
vista unitrios: a pessoa, o patrimnio e dos modos de aquisio deste. Estes correspondem,
contudo, a uma perspetiva ideolgica marcada do pensamento liberal individualista e menos a
uma preocupao sistemtica. O Code Civil viria a exercer a sua influncia numa Europa em
grande parte dominada pelas armas napolenicas. Contudo, o prestgio alcanado por este
diploma influenciou outros Estados a adotar a codificao segundo o modelo francs. Portugal
foi um deles com o Cdigo de Seabra de 1867. O Code Civil francs marca a primeira fase da
codificao civil e do sistema interno dos Direitos Reais organizado no mbito de um Cdigo Civil.
Essa fase durou quase um sculo. Nesse perodo, que corresponde a todo o sculo XIX,
desenvolve-se na Alemanha uma cincia jurdica com preocupaes sistematizadoras do Direito
Civil. Tendo como percursor Savigny, a cincia jurdica alem do sculo XIX foi desenvolvida pela
pandectstica, por incidir os seus estudos no Direito Romano, nos Digesta ou Pandekten. essa
a cincia a que se deve o Brgerliches Gesetzbuch alemo, mais conhecido pela sigla BGB. O BGB
divide-se em cinco Livros: Parte Geral (I), Direito das Relaes Jurdicas Obrigacionais (II), Direito
das Coisas (III), Direito da Famlia (IV), Direito das Sucesses (V). Esta a denominada
sistematizao germnica do Direito Civil. Ela apresenta-se, na verdade, como um modelo
sistemtico heterogneo. O Direito das Obrigaes e os Direitos Reais recebem o Direito
Romano com as modificaes geradas pelo Direito Comum. No entanto, a classificao entre
direitos de crdito e direitos reais no surge apenas como cultural, ela revela igualmente
formas de manifestao conceituais do direito subjetivo. Por outras palavras, ela tambm
concetual e abstrata. Dentro da conceo kantiana de cincia, a pandectstica moldou o material
jurdico debaixo da noo de relao jurdica, que constitui o conceito sinttico a priori que
viabiliza a cincia do Direito. Cada um dos ramos do Direito Civil surge, pois, estruturado em
volta do conceito de relao jurdica e todos os direitos subjetivos so definidos segundo um
modelo relacional, num passo que se tornara ntido j em Savigny. O BGB j no trata
unitariamente o patrimnio como fonte de aquisio de capital e garantia de responsabilidade,
como faziam o Direito prussiano e o Direito austraco, autonomizando os Direitos Reais como
parte do Direito Patrimonial Privado. Ao mesmo tempo, ele separa os Direitos Reais do Direito
das Obrigaes, como decorria da contraposio romana entre actio in rem e actio in personam
mantida no Direito Comum sob um prisma substantivo. posio individual de uma pessoa
defronte do seu patrimnio, com os seus poderes e deveres, a posio tradicional, o BGB
contrape um direito subjetivo sobre coisas. Esse direito subjetivo, cuja aquisio, contedo e
perda tm a sua sede normativa no Livro II, concretiza a atribuio jurdica de uma coisa a uma
pessoa, diferentemente do direito de crdito, que d a um credor um direito atividade
(prestao) de outra pessoa, e um direito absoluto, contrariamente ao direito obrigacional,
meramente relativo. Os direitos reais tm por objeto coisas. Todavia, para o legislador do BGB
nem todas as coisas constituem objeto dos direitos reais. As coisas incorpreas esto excludas,
restando unicamente as coisas corpreas. Estas so o objeto dos direitos reais. Paradoxalmente,
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o regime das coisas no consta do Livro dedicado aos Direitos Reais, aparecendo como um
trecho da regulao da Parte Geral. Diferentemente do Code Civil francs, que procedeu ao
tratamento dessa parte do Direito Civil como se houvesse apenas o direito de propriedade a
considerar, no confronto do qual os restantes direitos reais constituem meros
desmembramentos, o BGB trouxe, pela primeira vez, uma denominao genrica desta
disciplina normativa: Direito das Coisas. A propriedade perde o estatuto de paradigma central e
emerge como um direito real ao lado de outros, no obstante permanecer como o direito real
mais extenso e importante. O Livro III do BGB no contm qualquer disposio genrica sobre o
Direito das Coisas. Produto de um pensamento sistemtico desenvolvido e de uma doutrina
jurdica que aspirava a conferir carter cientfico ao Direito, o BB irradiou a sua influncia para
fora do domnio tradicional da lngua alem, penetrando mesmo em pases culturalmente
distantes da Alemanha, como foi o caso de Portugal, com o Cdigo Civil de 1966. Depois do BGB,
o Codice Civile italiano de 1942 marcou outra etapa na sistematizao do Direito Civil e dos
Direitos Reais. Nos Direitos Reais, o Codice Civile no emprega nenhuma designao especfica
para este ramo do Direito, preferindo aludir simplesmente propriedade, mantendo a traa de
raiz napolenica. No Livro Terceiro, o Codice apresenta um Ttulo dedicado aos bens, definindo
estes como as coisas que podem constituir objeto de direitos (artigo 810.). O Codice Civile
italiano exerceu um fascnio particular na ltima codificao civil portuguesa. Uma boa parte das
solues que o Cdigo Civil portugus consagra nos regimes jurdicos dos vrios direitos reais
so inspirados no Codice Civile, cuja influencia neste domnio se projeta bem para alm do BGB
alemo.
O sistema normativo portugus de Direitos Reais: a evoluo histrica permite detetar em Portugal tr grandes perodos de evoluo do sistema normativo ou interno de Direitos Reais: o
primeiro perodo dura at primeira codificao civil, e inclui a prtica do Direito Comum e das
Ordenaes do Reino; o segundo perodo coincide com a vigncia do Cdigo Civil de Seabra; o
terceiro perodo comea com a entrada em vigor o Cdigo Civil de 1966 e permanece na
atualidade. O Cdigo Civil de Seabra mescla duas tendncias comuns poca: por um lado, a
tradio romanstica do Direito Comum, por outro, o influxo jusracionalista, recebido atravs da
doutrina francesa e da influncia marcante do Code Civil. Estas tendncias ditaram a sistemtica
do primeiro Cdigo Civil portugus. Assim, o Cdigo de Seabra encontrava-se dividido em quatro
Partes: Parte I, Da Capacidade Civil, Parte II, Da Aquisio Dos Direitos, Parte III, Do Direito De
Propriedade, e Parte IV, Da Ofensa Dos Direitos E Da Sua Reparao. Tal como no Code Civil
francs, a disciplina de Direitos Reais encontra-se no Cdigo Civil de Seabra autonomizada numa
Parte (III) do Cdigo Civil, subordinada, como em toda a codificao de matriz liberal,
propriedade, no lugar central do sistema normativo relativo a este ramo do Direito, embora o
direito de propriedade seja apenas um dos direitos reais a previstos. O exacerbamento da
propriedade no se queda, no entanto, pela tomada da parte pelo todo. Ele est, sobretudo, na
atrao que a propriedade exerce para todas as outras regulaes que possam trazer dentro dos
seus efeitos a aquisio deste direito (as Sucesses, as Obrigaes, etc.) e que so tratadas pelo
prisma de factos aquisitivos da propriedade. A explicao para um tal exacerbamento da
propriedade encontra-se na assimilao desta ao patrimnio, meio de realizao da pessoa
individual. Pessoa e bens (ou patrimnio) so o binmio em que se funda a estruturao do
Direito Civil. Tudo o que so pessoas, cabe na disciplina jurdica dos bens, o mesmo equivale a
dizer, na propriedade. O Cdigo Civil de 1966 corresponde ao incio do terceiro perodo do
sistema interno ou normativo portugus de Direitos Reais. Com ele, o Direito portugus entrou
dentro da terceira sistemtica, impondo definitivamente a evoluo que se fazia sentir no
sistema cientfico ou externo em Portugal desde Guilherme Moreira. Olhado de perto e fazendo
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a comparao com o Cdigo de Seabra, o Cdigo Civil portugus de 1966 pouco inovou a no
ser na arrumao exterior das matrias. Ele adotou, como se sabe, o modelo pandectstico do
BGB alemo, encontrando-se dividido em cinco Livros: o primeiro relativo Parte Geral, o
segundo ao Direito das Obrigaes, o terceiro ao Direito das Coisas, o quarto ao Direito da
Famlia e o quinto ao Direito das Sucesses. Em Direitos Reais, o legislador portugus optou por
uma designao genrica de referncia, Direito das Coisas, como tinha feito o legislador alemo
no BGB. A orientao ideolgica do liberalismo, que v na propriedade o paradigma e matriz
dos direitos patrimoniais, desaparece do Direito portugus. Fruto de uma conceo mais
autoritria do Estado ou qui debaixo de uma moderada influncia de um princpio de funo
social, que um pensamento liberal individualista no poderia tolerar, mas que so sinais de
tempos diferentes, a propriedade surge configurada apenas como um dos direitos reais
constantes do elenco legal. A ordenao interna das matrias tem alguma semelhana com o
BGB. Tambm o Cdigo Civil concentra a disciplina dos direitos reais de gozo no Livro III,
iniciando a regulao com a posse e seguindo com a propriedade, passando para os restantes
direitos reais desta categoria logo a seguir. Como o seu homlogo alemo, o Cdigo Civil de 1966
no dedica qualquer parte geral aos Direitos Reais. No h nenhuma enunciao de princpios
materiais, nenhuma regulamentao de institutos, de conceitos, de factos jurdicos ou
simplesmente de regras com alcance geral. No que no seja possvel descobrir estes elementos
no regime jurdico, na verdade, eles esto l, sobretudo no regime da propriedade, mas com
enfoque neste direito, o que arrasta por vezes problemas interpretativos delicados de extenso
a outros direitos reais. Tal como no BGB, o regime jurdico das coisa ficou fora da sua sede
natural, o Livro III, para ser regulado na Parte Geral como objeto das relaes jurdicas (artigos
202. a 216. CC). Um ponto controverso resulta da definio do objeto dos direitos reais. O
artigo 1303. CC inculca a ideia de que a propriedade incide tambm sobre as coisas incorpreas,
remetendo, no entanto, o Direito de Autor e o Direito Industrial para lei especial. Estamos
defronte de regimes especiais de Direitos Reais que tm coisas corpreas por objeto?
Responderemos adiante negativamente a esta questo, mas a colocao do artigo 1303. CC a
seguir definio do objeto dos Direitos Reais, levada a cabo no preceito anterior em sede de
propriedade (artigo 1302. CC), de molde a levantar interrogaes legtimas. Uma diferena
do nosso Cdigo Civil para o BGB na ordenao das matrias est na colocao dos direitos reais
de garantia no Livro do Direito das Obrigaes (Livro II), assim como na previso das principais
categorias de direitos reais de aquisio, a promessa real e a preferncia convencional com
eficcia real, nesse contexto. O regime jurdico de Direitos Reais perde assim unidade, disperso
por duas sedes distintas: a real, no Livro III, e a obrigacional, no Livro II. Outra diferena de peso
consiste na indiferenciao entre o regime jurdico das coisas mveis e o das coisas imveis. O
Cdigo Civil portugus no possui nada de comparvel ao segundo captulo do Livro III do BGB,
onde se encontra uma extensa regulamentao dos direitos reais sobre imveis. Desde a sua
entrada em vigor, o Cdigo Civil vigente foi apenas objeto de modificaes no Livro III em nove
ocasies. Com exceo da enfiteuse que representa sempre uma diminuio do catlogo legal
de direitos reais de gozo e uma nova restrio da autonomia privada na escolha de formas de
aproveitamento do gozo das coisas corpreas e da propriedade horizontal, cujo regime foi
refundido com alguma profundidade, as modificaes legislativas ao Livro III e ao Livro II, na
matria dos Direitos Reais, foram pontuais e de alcance muito reduzido, podendo-se qualificar
como de pouca monta. O seu impacto no sistema normativo ou interno foi praticamente nulo.
O sistema normativo de Direitos Reias no se confina, no entanto, ao Cdigo Civil. notada, de
resto, a incidncia de normas de Direito Pblico no contedo dos direitos reais, numa
publicizao desta disciplina que no tem parado de crescer, sobretudo na rea urbanstica. Mas
mesmo limitando-nos ao Direito Privado, numerosos diplomas avulsos regem hoje matrias de
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Direitos Reais fora do Cdigo Civil. Ao analisarmos os trs perodos do sistema normativo
portugus de Direitos Reais, ressalta uma indiscutvel tendncia para a estabilidade das solues
materiais, filiadas largamente na prtica do Direito Comum e, por isso, com uma grande
influncia do Direito Romano. Se h domnio normativo onde o Direito Portugus foi fortemente
influenciado pelo Direito Romano, esse domnio o de Direitos Reais. O grande salto qualitativo
do sistema normativo dado do primeiro para o segundo perodo, com a primeira codificao
civil, pois com ela finalmente o pensamento cientfico penetra nele, possibilitando uma
arrumao da matria segundo pontos de vista centrais, que j no so puramente empricos.
A transio do segundo para o terceiro perodo no trouxe qualquer rutura com a situao
anterior. A adaptao terceira sistemtica pandectstica verificou-se principalmente ao nvel
da arrumao exterior das matrias, enquanto ao nvel das solues materiais as mudanas no
so muitas, embora em alguns preceitos se note a forte influncia do Codice Civile italiano. Para
alm da introduo do direito de superfcie, o Cdigo Civil de 1966 retirou a usucapio do
domnio da prescrio e devolveu-a posse, onde tem a sua origem histrica, fazendo cessar a
pertinncia da contraposio entre uma prescrio aquisitiva (a usucapio) e a prescrio
extintiva. Os direitos reais menores deixam de ser qualificados como propriedades imperfeitas,
uma vitria da tentao da onerao sobre a teoria do desmembramento, e alguns direitos reais
foram suprimidos (o censo, o quinho e o compscuo). A revoluo do 25 de abril de 1974, que
impulsionou mudanas em outos setores, passou praticamente ao lado do sistema normativo
dos Direitos Reais. O Decreto-Lei n. 496/77, 25 novembro limitou-se a tocar na redao de dois
preceitos. Tambm o artigo 101., n.2 CRP 1976 proibiu a colonia, direito real de base
consuetudinria da Madeira. Todo o dinamismo legislativo se concentra praticamente nas
sucessivas modificaes do direito real de habitao peridica. Pouca permeabilidade
mudana e a estabilidade da disciplina normativa so as marcas impressivas da vigncia do
Cdigo Civil de 1966 no que respeita ao sistema normativo de Direitos Reais.
O contributo da jurisprudncia portuguesa para o sistema normativo de Direitos Reais: reconhece-se hoje a importncia do contributo jurisprudencial para o desenvolvimento do
Direito, mesmo nas ordens jurdicas de Direito continental. Esse contributo pode ser to rico ao
ponto de j no ser possvel o conhecimento do Direito vigente sem a indagao da
jurisprudncia. Em Cdigos Civis com perodos de vigncia prolongada, a alterao do substrato
de regulao, pelo movimento incessante das relaes da vida e dos circunstancialismos que
levaram sua feitura, pela entrada em vigor de outras leis ou pela alterao das que estavam
em vigor, gera frequentemente a necessidade de diferentes leituras do material normativo,
mesmo quando este permanece aparentemente sem alterao. jurisprudncia cabe ento a
tarefa de fazer evoluir o sistema normativo dentro da sua teleologia e dos seus princpios. Um
Cdigo Civil funciona a princpio como um fator inibidor do desenvolvimento jurisprudencial do
Direito. Ele consolida normalmente os ltimos conhecimentos cientficos e, por isso, a tendncia
inicial de partida para uma exegese dos seus textos. O Cdigo Civil Anotado de Pires de Lima /
Antunes Varela, dado o prestgio dos seus autores e envolvimento do ento Ministro da Justia
Antunes Varela nos trabalhos preparatrios do Cdigo Civil, facilitou uma abordagem
jurisprudencial de tipo positivista. O resultado foi um tom exegtico recorrente, uma utilizao
constante de frmulas repetidas, muitas vezes meras repeties das frmulas literais da lei, uma
adeso geral e acrtica s posies expressadas no Cdigo Civil Anotado, mesmo quando os
fatores em jogo requeriam uma nova abordagem e solues diferenciadas em ateno
evoluo social entretanto registada. Os traos visveis dessa orientao encontram-se na
manuteno de uma orientao subjetivista na posse, na dificuldade de superar as amarras
subjetivistas para reconhecer uma posse fora do mbito dos direitos reais de gozo, na
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persistncia inteiramente desadequada de uma conceo subjetiva psicolgica de boa f em
matria de posse e de acesso industrial, no fraco desenvolvimento dado ao princpio da boa f
nos Direitos Reais, na incapacidade de generalizao de dispositivos normativos de alcance mais
alargado do que o contexto da sua regulamentao. Em matria de posse, a jurisprudncia
manteve a orientao subjetivista, salvo em raras ocasies, exigindo o corpus e o animus, com
frmulas sempre repetidas, mesmo quando o artigo 1253. CC revela a clara insuficincia dessa
teoria para fundamentar todos os casos de deteno. Esta orientao serve igualmente para
recusar a qualificao de posse a situaes em que o Cdigo Civil atribui expressamente tutela
possessria, na locao (artigo 1307., n.2 CC), no comodato (artigo 1133., n.2 CC), na
parceria pecuria (artigo 1125., .2 CC) e no depsito (artigo 1188., n.2 CC), aparentemente
por falta de animus. Registe-se, no entanto, a tomada de decises num sentido diverso. Assim,
o reconhecimento da posse ao promitente-comprador. O mesmo subjetivismo aflora na
conceo relevante de boa f subjetiva em matria de aquisio de posse. O psicologismo
manteve-se arreigado na interpretao do novo Cdigo Civil, como no anterior, apesar do
intenso movimento do Direito no sentido do incremento dos deveres de diligncia das pessoas
e mesmo quando a boa f entendida no sentido psicolgico contraria vetores teleolgicos do
sistema normativo. Se algum adquire a posse de imvel ignorando a situao registal pode
invocar boa f se o titular do direito real for aquele que tiver a inscrio registal a seu favor?
Como compatibilizar essa interpretao com a funo de publicidade que tem o registo predial
(segundo o artigo 1. CRp) e com a presuno de titularidade fixada pelo artigo 7.? Se a
ignorncia voluntria (e, por vezes, conveniente) se sobrepe normal diligncia da consulta do
registo predial, ento o escopo deste fica em larga parte comprometido. Pior do que tudo, esta
orientao mantm uma cultura de laxismo e de ignorncia nas pessoas, uma sndrome de um
Portugal arrasado, subdesenvolvido e atvico. Com coerncia, mas sem uma ponderao
valorativa adequada, a conceo subjetiva psicolgica foi reiterada em matria de acesso
industrial e mantm-se em decises recentes. O Cdigo Civil portugus, como os seus
congneres europeus, no contempla uma parte geral dedicada a preceitos de alcance genrico,
aplicveis a todos os direitos reais ou a uma categoria, nomeadamente, aos direitos reais de
gozo. A disciplina de Direitos Reais inicia-se logo com a posse e continua pelos restantes direitos
reais de gozo, sem um ttulo, captulo ou seco que contenha as disposies gerais deste ramo
do Direito. Apesar disso, reconhece-se que existem preceitos com alcance geral, previstos
normalmente a propsito da propriedade. Defronte desta insuficincia do sistema normativo ou
interno, poder-se-ia esperar algum contributo construtivo da jurisprudncia, com especial
relevo para a matria dos princpios normativos dos Direitos Reais. Em particular, at por
confronto com o ultradinmico Direito das Obrigaes, no esclarecimento de um princpio de
boa f com especificidades relativas a este ramo de Direito. Contudo, tambm aqui o panorama
jurisprudencial revela-se desanimador. Talvez em parte a justificao para isso resida na quase
ausncia de investigao cientifica de temas especficos na rea dos Direitos Reais, muito em
particular no tocante aos princpios deste ramo de Direito. A generalizao de solues
particulares do sistema normativo , em geral, muito reduzida, ou praticamente inexistente.
O sistema cientfico ou externo de Direitos Reais: o sistema cientfico ou externo de Direitos Reais apresenta hoje um notrio e marcado subdesenvolvimento no confronto com a
dogmtica jurdica dos outros ramos do Direito Civil, em particular, com o Direito das Obrigaes.
verdade que ao sistema cientfico cade comunicar o Direito como resulta das fontes do sistema
normativo ou interno e este tem-se pautado por uma considervel estabilidade. Todavia, este
facto, s por si, no explica a inrcia da doutrina jusrealista. Mesmo admitindo que o sistema
cientifico deva permanecer fiel ao sistema normativo, porquanto a doutrina no fonte de
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Direto, isso no impede, de modo algum, todo o trabalho de reduo dogmtica da matria, de
descoberta de novas conexes de sentido propiciadas pelo sistema normativo, de
aperfeioamento dos tipos e dos conceitos atinentes disciplina em causa, interpretao
complementadora das fontes, deteo e supresso de lacunas e, naturalmente, da arrumao
da matria num esquema expositivo que no apenas comunique o Direito como facilite o
encontrar de novas solues requeridas pela dinmica imparvel da sociedade- De resto, tem
sido reconhecido que o sistema externo projeta a sua influncia no sistema normativo e, desta
forma, suscita a sua evoluo, mesmo sem alterao do quadro legislativo. O panorama
cientfico do sistema externo de Direitos Reais afigura-se, porm, desolador. Durante todo o o
sculo XX at meados do sculo XX, as obras de Direitos Reais limitaram-se a expor cada um dos
direitos reais, s vezes, sem uma nica linha introdutria de carter geral, outras, com umas
breves pginas. Antes da pandectstica alem do sculo XIX, o tratamento dogmtico deste ramo
do Direito inclua normalmente a propriedade, a posse e pouco mais, muitas vezes em
conjugao com matrias hoje distribudas por outros ramos, nomeadamente o Direito das
Sucesses. A influncia do Direito Romano permanecia, no entanto, marcante. Em Hugo e Heise
podemos antever o grmen da autonomizao cientfica de Direitos Reais que se seguiria na
Alemanha durante todo o sculo XIX e que resulta de um tratamento expositivo diferenciado
das matrias atinentes a outras partes do Direito Civil, para alm da reduo do tratamento
dogmtico ao regime das coisas corpreas, que implica afastar factos ou institutos que s
indiretamente tm a ver com Direitos Reais, nomeadamente, a aquisio por morte, que
pertence ao Direito Sucessrio. Seria, porm, a pandectstica alem a consolidar
sistematicamente um ramo de Direito, incluindo expressamente outros direitos reais (de gozo e
de garantia), conforme advinha da tradio romanstica, mantida no Direito comum, retirando
propriedade o papel aglutinador e central do regime jurdico dos Direitos Reais como ainda
aconteceria no Code Civil napolenico e nos outros Cdigos Civis que lhe seguiram a matriz,
relegada agora para uma posio de direito real entre outros. Uma anlise superficial sobre as
obras da pandecttica em tema de Direitos Reais revela uma hesitao quanto ao tratamento da
posse, antes da propriedade ou no contexto do regime esta. Alguns autores abordam apenas os
direitos reais de gozo, a maioria, porm, inclui os de garantia. De qualquer modo, a exposio
dos Direitos Reais limita-se praticamente a uma enunciao separada do regime de cada um dos
direitos reais, praticamente sempre na mesma ordem, com a alternncia entre o comeo pela
posse ou pela propriedade. Na viragem do sculo XIX para o sculo XX, e j fora do pandectsmo,
encontramos, em alguns casos, diferenas muito marcantes relativamente abordagem
cientfica anterior. A Endemann deve-se um primeiro esboo de elaborao de uma parte geral
de Direitos Reais. Em contraste claro com as obras da pandectstica, Endemann ocupa os
primeiros vinte e quatro pargrafos da sua obra a destacar aspetos de construo geral de
Direitos Reais. Depois de dois pargrafos introdutrios, sobre as fontes normativas de Direitos
Reais e a regulamentao normativa exterior ao BGB. Outra evoluo igualmente significativa
encontra-se tambm em Heck. Como ele prprio sustentou em defesa dos resultados prticos
da sua orientao metodolgica a jurisprudncia dos interesses a obra Grundriss des
Sachenrechts contm uma abordagem sistemtica de Direitos Reais, com um esboo de
desenvolvimento de uma parte geral, e ostenta, assim, interesse para o desenvolvimento do
sistema externo deste ramo do Direito. Com efeito, no Livro Segundo, intitulado Doutrina Geral,
Heck divide a exposio em quatro ttulos o primeiro ttulo, dividido em trs captulos, incluindo
sobre a determinao do contedo jurdico dos direitos reais, o segundo ttulo tendo por
epgrafe as modificaes dos direitos reais, o terceiro ttulo dedicado proteo dos direitos
reais e o quarto ttulo sobre o registo predial. Embora haja alguns antecedentes anteriores, no
h dvida de que o tratamento dogmtico dos Direitos Reais revela um aprofundamento do
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sistema externo que no se encontra nos seus antecessores. Depois de Endemann e Heck, a
grande tentativa de feitura de uma autntica parte geral dos Direitos Reais pertence a Hermann
Eichler. Este autor ordenou a sua exposio da matria em parte geral e parte especial,
repartindo cada uma delas por volumes diferentes, para acentuar a perspetiva da abordagem,
profundamente inovadora no panorama da doutrina alem do sculo XX. Aps a obra de Eichler,
importa ainda mencionar uma sistematizao geral de Direitos Reais em Hans Stoll. H em Stoll
um tratamento integrado dos direitos reais com base na classificao de direitos reais sobre
coisas imveis e direitos reais sobre coisas mveis que transcende o mbito dogmtico de uma
parte geral. A preocupao deste autor no parece estar somente no revelar dos traos gerais
do regime de Direitos Reais, mas tambm na construo de um sistema expositivo alternativo
da matria este ramo do Direito. Nestes termos, o trabalho de Stoll configura uma rutura clara
com a situao corrente no sistema cientfico dos Direitos Reais e a sua exposio da matria
oferece um grau de elaborao que vai muito alm da enunciao quase emprica do regime de
cada um dos direitos reais. Apesar do reforo destes ltimos autores, a verdade que o sistema
cientfico de Direitos Reais continuou dominado por uma exposio marcadamente emprica,
em que, eventualmente com umas linhas introdutrias dedicadas ao conceito de direito real, s
modalidades de coisas ou a consideraes muito gerais, a doutrina se debrua sobre cada um
dos direitos reais elencados no sistema normativo, sem nenhuma preocupao de efetuar
redues dogmticas do material legislativo, de conferir generalidade a solues previstas a
propsito de um dos direitos mormente a propriedade, mas cujo alcance relativo a todos os
direitos reais ou, pelo menos, para uma categoria deles (direitos reais de gozo, de garantia ou
de aquisio), se suprir referncia incompletas ou de articular as mesmas quando multiplicadas
sem critrio aparente, de eliminar contradies valorativas e de sentido, de colmatar lacunas,
de precisar os conceitos e tipos constantes dos preceitos legais ou impostos pela aplicao dos
mesmos, etc. Os grandes comentrios contm unicamente breves observaes introdutrias de
carter muito geral antes dos desenvolvimentos relativos aos preceitos legais, o que ainda se
poderia explicar pela natureza de comentrio de um regime legal, no fosse tal no suceder com
os outros ramos do Direito Civil, em particular, como o Direito das Obrigaes. E tambm as
obras singulares sobre Direitos Reais continuam a refletir esta tendncia, j herdada da
pandectstica. No muito diferente, mas especfica do espao alemo, a repartio das
matrias com base na classificao entre coisas imveis e coisas mveis, na qual se faz a
exposio do regime jurdico dos direitos reais correspondentes a cada uma das espcies de
coisas, precedida de uma parte contendo o regime comum a elas: o esquema de Fritz Baur.
Outras vezes, renuncia-se mesmo exposio do regime comum, versando separadamente o
regime especfico das coisas imveis e das coisas mveis, como faz Walter Gerhardt, ou tratando
somente o regime de uma dessas espcies, em regra o das coisas imveis. A partir de meados
do sculo XX, nota-se na doutrina alem uma preocupao sistemtica com o isolamento e a
determinao do contedo dos princpios normativos de Direitos Reais. O esquema expositivo
deste ramo do Direito no sofre grandes alteraes e a comunicao de Direitos Reais continua
a ser feita de um modo prevalente co incidncia no regime de cada um dos direitos reais
previstos na lei, mas o alcance da introduo dos princpios normativo no sistema cientfico ou
externo de Direitos Reais supera este, com repercusses esperadas na aplicao do sistema
normativo. Fora do espetro doutrinrio alemo, em Itlia, a colocao da propriedade como
figura central dos Direitos Reais no Codice Civile de 1942 no se afigurou muito propcia a novas
sendas sistematizadoras. Os resqucios do pandectismo permaneceram fortes, certo, mas o
cunho imprimido alternativo ao da terceira sistemtica alem e, por fora da pujana dos
estudos romansticos, uma boa parte das solues do Direito Romano so retomadas. No
essencial, porm, a doutrina, para alm de umas sumrias observaes sobre o conceito de
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direito real, o objeto da proteo jusrealista, o princpio da tipicidade e pouco mais, limita-se a
expor o regime jurdico dos direitos reais, normalmente limitados aos direitos reais de gozo, sem
prejuzo de obras especficas sobre direitos reais de garantia ou temas gerais. Para agravar a
exposio da matria de Direitos Reais pela doutrina italiana feita em muitas obras debaixo da
gide da propriedade. Em Frana, ligada a um Cdigo Civil da primeira gerao, onde a
perspetiva marcadamente ideolgica do liberalismo se sobrepe a uma abordagem cientfica
das matrias, a doutrina continua a desenvolver a disciplina debaixo da referncia central
propriedade, defronte da qual os restantes direitos reais constituem meros desmembramentos.
A orientao dogmtica francesa dos Direitos Reais , de resto, particularmente impermevel
metodologia cientifica iniciada com Savigny e a pandectstica na Alemanha e, por isso, os seus
pontos de contacto com a doutrina alem e mesmo italiana resultam unicamente dos resqucios
histricos do Direito Romano e do Direito Comum. Presa a um mtodo exegtico anacrnico, a
doutrina francesa mostra-se atualmente incapaz de inspirar qualquer reforma que supere o
atraso do sistema cientfico de Direitos Reais. Em Espanha, o cenrio do jusrealismo no difere
muito do que se passa nos outros pases. Num movimento que situamos na obra de Fritz Baur,
mas com antecedentes anteriores, nomeadamente, e pelo menos, em Endemann, os manuais
de Direitos Reais comearam a expor os princpios estruturantes deste ramo de Direito. Em
Portugal, foi no ensino de Direitos Reais da Faculdade de Direito de Coimbra que primeiro
surgiram ecos desta corrente. Henrique Mesquita dedicou quatro pginas a expor os princpios,
concentrando-se no princpio da tipicidade, no princpio da consensualidade e no princpio da
publicidade. Pouco tempo depois, Orlando de Carvalho viria a dedicar maior desenvolvimento
apresentao desta matria. Este professor analisa o princpio que denomina da coisificao,
o princpio da atualidade ou da imediao, o princpio da especialidade ou da individualizao,
o princpio da compatibilidade ou da excluso, o princpio da elasticidade ou da consolidao, o
princpio da tipicidade, o princpio do numerus clausus ou da taxatividade, o princpio da
causalidade, o princpio da consensualidade e o princpio da publicidade. Depois de Henrique
Mesquita e de Orlando Carvalho, tambm Mota Pinto dedicaria um captulo aos princpios
regulamentadores da constituio e da vida dos direitos reais. Recentemente, Santos Justo
continuou essa orientao. Em Lisboa, particularmente no seu ensino da Faculdade de Direito
da Universidade Catlica, Menezes Cordeiro no deixaria de incluir um captulo sobre os
princpios de Direitos Reais, embora apenas explicite trs: a inerncia, a publicidade e a
tipicidade. O impacto da apresentao dos princpios normativos no sistema cientfico de
Direitos Reais de grande extenso, pois so eles, em primeira linha, que constituem os pontos
de vista unitrios que agregam e unem o material normativo do sistema interno. Todavia, esse
impacto no existe somente no sistema explicativo do Direito. A identificao dos princpios
normativos de Direitos Reais pela dogmtica jurdica repercute-se naturalmente ao nvel da
interpretao e aplicao do Direito, ou seja, do prprio sistema normativo, permitindo no s
fundamentar as formulaes existentes, j encontradas, como desenvolver outras, alargando a
capacidade de resposta do sistema normativo a novas situaes emergentes da dinmica da
vida. Constitui um importante passo na construo de um moderno sistema cientfico de
Direitos Reais a individualizao e aprofundamento de princpios normativos. Para alm de
apurar o conceito de direito real e as suas classificaes, indicar o objeto da disciplina e expor
os princpios gerais dos Direitos Reais, h ainda muito trabalho a realizar para se conseguir um
sistema de comunicao efetivo do Direito vigente, que no se limite a dobrar estatisticamente
o sistema normativo, mas opere redues dogmticas do material normativo, precise os
conceitos legais e concretize os tipos utilizados, que proceda a uma arrumao da matria que
tenha em conta a unidade da regulao e a necessidade de encontrar solues coerentes, sem
contradies, que proceda ao tratamento unitrio daquilo que geral, evitando repeties, que
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s geram dificuldades interpretativas, que identifique e integre as lacunas de regulao
eventualmente detetadas, de acordo com os critrios do sistema. Grande parte da
regulamentao geral de Direitos Reais encontra-se hoje no regime do direito de propriedade.
Esta sistematizao profundamente insatisfatria; expor tudo o que geral a propsito da
propriedade, obriga a um constante esforo de separao entre aquilo que o regime especfico
e prprio da propriedade e o que o regime geral de todos os direitos reais ou, ao menos, dos
direitos reais de gozo, gerando, assim, uma potencial e escusada fonte de controvrsia, que s
pode ser prejudicial ao desiderato de uma aplicao uniforme do Direito. Na medida em que se
trate de matria atinente aos direitos reais em geral e no apenas ao direito de propriedade, ela
deve figurar numa parte geral dos Direitos Reais. Mesmo fora do regime jurdico da propriedade
deparamos com regulaes de teor geral dos direitos reais. Ora, se existem factos cuja eficcia
se estende a outros direitos reais, a sua arrumao sistemtica no deve ser a de um direito real
em particular, ainda que haja alguma razo histrica ou outra que o justifique, mas sim a de um
regime geral que tenha em conta o mbito de aplicao dos mesmos. Esta limitao da
ordenao do sistema cientfico no se fica por aqui. O regime de cada direito real de gozo, com
exceo da propriedade, e de garantia, com exceo dos privilgios creditrios e do direito de
reteno tem um preceito sobre os factos constitutivos e extintivos desse direito.
Frequentemente, repete-se em cada um desses preceitos o que consta de outros, quando se
poderia simplesmente indicar numa nica disposio os factos constitutivos e, noutra, os factos
extintivos dos direitos reais, prevendo a propsito do regime de cada um deste os factos
aquisitivos e extintivos especficos. Esta tcnica, que gera uma desnecessria multiplicao de
preceitos, pode sugerir, erradamente, uma tipicidade de factos com eficcia real, que no foi
querida nem consagrada. Em todo o caso, uma enumerao de factos constitutivos e extintivos
a propsito de cada direito real pode induzir um equvoco, o da consagrao de uma tipicidade
de factos com eficcia real, que poderia ter sido evitado num estdio ulterior de
desenvolvimento do sistema cientfico de Direitos Reais. Outro problema que uma deficiente
sistematizao dos factos com eficcia real tem suscitado prende-se com a possibilidade legal
da renncia ao direito de propriedade sobre imveis. A renncia no aparece prevista como
facto extintivo a propsito de todos os direitos reais. A renncia no surge prevista como facto
extintivo da propriedade, como tambm sucede com os outros factos extintivos. O que retira
uma grande parte da fora do argumento sistemtico, invocado por Henrique Mesquita. A
ausncia de uma disposio sobre a extino da propriedade pode explicar a razo porque a
renncia no vem mencionada a propsito, sem envolver com isso a impossibilidade de renncia
do proprietrio de imveis. E eis, de novo, como uma deficiente sistematizao da matria pode
induzir uma resposta incorreta a um problema. O atraso do sistema cientfico de Direitos Reais
s pode ser recuperado com a elaborao de uma parte geral. Nesta so expostos os princpios
gerais deste ramo do Direito, o seu objeto e dispem-se as matrias que so comuns aos direitos
reais ou a uma categoria eles, deixando-se de prever a propsito da propriedade, ou de um
direito real em particular, regimes que, na verdade, os transcendem no seu mbito de aplicao.
Com a parte geral possvel igualmente evitar a disperso sistemtica e a multiplicao de
referncias normativas que s causam problemas interpretativos. Regimes normativos de
aplicao a mais do que um direito real devem encontrar a sua sede na parte geral e no no
interior de um direito real em particular. Na realidade, se as coisas corpreas so o objeto dos
direitos reais, ento este deve ser aludido num regime geral e no no regime da propriedade
como hoje sucede (artigo 1302. CC) que apenas um dos direitos reais, entre outros. Se a
tipicidade constitui um dos princpios estruturantes de Direitos Reais, o lugar correto da sua
previso no sistema normativo o da parte geral e no, uma vez mais, o regime do direito de
propriedade (Artigo 1306. CC). Se h factos jurdicos com eficcia real que so comuns aos
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direitos reais, ou mesmo a uma categoria deles, porqu repetir a sua previso a propsito de
cada um deles, quando para o efeito seria suficiente uma nica disposio normativa? A falta de
uma parte geral de Direito Reais provoca igualmente distores sistemticas. O princpio da
consensualidade, outro dos princpios estruturantes de Direitos Reais, vem previsto no artigo
408., n.1 CC, como se fosse um princpio do Direito das Obrigaes e dissesse respeito
unicamente matria dos contratos. Tratando-se, no entanto, de um princpio de Direitos Reais,
o lugar da sua previso no sistema normativo neste ramo do Direito e no no Direito das
Obrigaes. A elaborao de uma parte geral constitui o nico caminho para a recuperao do
atraso, e mesmo decadncia cientfica, de Direitos Reais e isso mesmo vem sendo
progressivamente reconhecido, sobretudo, em Portugal, por Oliveira Ascenso e Menezes
Cordeiro, no sem que, todavia, se levantem vozes contrrias. Numa perspetiva oposta, de
defesa da linha do ensino tradicional em Portugal e no estrangeiro encontramos Pinto Duarte.
Permitimo-nos discordar abertamente deste autor. A linha de orientao defendida por ele a
grande responsvel pelo atraso existente no sistema cientfico de Direitos Reais, a comear,
desde logo, pela conceo do conceito de direito real e pela incipiente disposio da matria no
sistema normativo. Propugnar a sua adoo constitui um retrocesso e um aniquilamento deste
ramo de Direito, a evitar. O desenvolvimento de Direitos Reais reside justamente na superao
da incapacidade de abstrao que os tratamentos doutrinrios desta disciplina que os
tratamentos doutrinrios desta disciplina persistentemente revelam e do mero empirismo na
ordenao das matrias. E isso apenas se consegue quando o tratamento cientfico supera a
mera abordagem individualizada do regime jurdico de cada um dos direitos reais e ascende aos
traos gerais que ela contm. Foi no espao jurdico portugus, e mais concretamente na
Faculdade de Direito de Lisboa, que mais se avanou na construo de uma parte geral de
Direitos Reais. Como percursor de uma parte geral no sistema cientfico de Direitos Reais, indica-
se, desde j, o nome de Jaime de Gouveia. Segundo o testemunho de Lus Pinto Coelho, foi Jaime
de Gouveia quem introduziu entre ns o estudo de uma teoria geral dos direitos reais. Depois
de Jaime de Gouveia, convm destacar os nomes de Pinto Coelho e Dias Marques. a Oliveira
Ascenso que se deve, no entanto, a elaborao acabada de uma verdadeira parte geral de
Direitos Reais. Ultrapassando os esquemas formais de apresentao baseados no conceito de
direito real, nas suas caractersticas, na classificao dos direitos reais e no regime jurdico das
coisas, Oliveira Ascenso procede a uma intensa reduo dogmtica do material de Direitos
Reais e a um esforo de abstrao generalizadora que abarca, de um modo inovador, no s o
clssico tratamento do conceito e das caractersticas do direito real, mas a tambm as relaes
jurdicas reais, os factos com eficcia real, a violao e a defesa dos direitos reais. Depois de
Oliveira Ascenso, e na mesma senda, destaca-se o ensino de Menezes Cordeiro. Por ltimo, e
j no trilho aberto por Oliveira Ascenso e Menezes Cordeiro, cabe apontar o nome de Carvalho
Fernandes, igualmente com as suas Lies de Direitos Reais. A construo de uma parte geral
de Direitos Reais no constitui qualquer impedimento ao desenvolvimento da parte especial,
dedicada ao estudo individualizado das vrias figuras com natureza real, nem, naturalmente, o
substitui. A parte especial deve continuar a merecer a ateno que merece. Simplesmente, deve
reconhecer-se que medida que evolui a construo de uma parte geral se regista algum
esvaziamento da parte especial, sobretudo, do regime do direito de propriedade, debaixo do
qual usualmente se encontra uma boa parte do regime geral de Direitos Reais. De resto, ao longo
de todos estes anos, foi ~`a parte especial de Direitos Reais que os autores dedicaram a sua
ateno, descurando a construo daquilo que fundamenta justamente a autonomia cientfica
deste ramo do Direito, os princpios normativos de Direitos Reais e demais elementos
agregadores do sistema normativo. Neste estdio de desenvolvimento de Direitos Reais,
justifica-se que a parte geral merea um desenvolvimento superior.
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Seco I Os Direitos Reais2
A categoria de Direitos Reais: os Direitos Reais consistem num ramo do Direito Civil. Fazendo o Direito Portugus parte dos sistemas jurdicos romano-germnicos por oposio aos sistemas
da common law vem buscar os seus quadros jurdicos essencialmente ao antigo Direito Romano,
o mesmo sucedendo com a categoria Direitos Reais. Efetivamente essa categoria tem
essencialmente uma origem histrica. No Direito Romano vigorava a tipicidade da tutela judicial,
ultrapassada nos Direitos Modernos. Tal levava a que se contrapusessem duas categorias
principais de aes:
1. As actiones in personam: destinavam-se a formular uma pretenso contra uma pessoa, que deveria ser consequncia de ser individualmente determinada, no podendo
extravasar da relao obrigacional existente;
2. As actionem in rem: dirigiam-se contra uma coisa, visando estabelecer a sua defesa contra qualquer pessoa que de alguma forma perturbasse o seu aproveitamento pelo titular,
podendo em consequncia o titular perseguir essa coisa, onde quer que ela se
encontrasse.
de notar, desde j, que a posse escapava esta contraposio, na medida em que assentava
noutra categoria processual, os interdicta possessionis. Esta contraposio romana entre
categorias de aes est na origem de outra construo, eta agora em relao a direitos,
estabelecida pelos juristas medievais, a partir o momento em que se abandonou a base
processual em que assentava o Direito Romano. As aes romanas deram assim lugar a categorias
de direitos subjetivos, falando-se em:
1. Iura in personam: os quais deram origem aos direitos de crdito;
2. Iura in rem: os quais deram origem aos direitos reais.
Fala-se, por isso, hoje, em direitos reais, que incidem em coisas, por contraposio a direitos de
crdito, que so direitos dirigidos contra pessoas. A categoria de Direitos Reais tem assim origem
nas actiones in rem, correspondendo atualmente aos direitos que incidem sobre coisas. A sua
atual caracterizao unitria corresponde denominada eficcia real, que consiste na eficcia do
direito contra qualquer pessoa, o que atribui ao direito real cariz absoluto por contraposio com
o direito de crdito, que possui apenas cariz relativo.
Objeto e caractersticas dos Direitos Reais: inicialmente, os Direitos Reais correspondem a uma categoria de direitos subjetivos, mas no a um ramo de Direito objetivo. A sua configurao como
um ramo de Direito objetivo resulta apenas da pandectstica alem, a partir da classificao
germnica do Direito Civil, instituda por Gustav Hugo e Friedrich Karl Von Savigny. Conforme se
sabe, esta classificao distingue, alm de uma parte geral, entre dois ramos de caractersticas
estruturais, as Obrigaes e os Direitos Reais, e dois ramos de caractersticas institucionais, o
Direito da Famlia e o Direito das Sucesses. A autonomizao do ramo dos Direitos Reais tem
assim uma base estrutural: a distino entre direitos de crdito e direitos reais., herdeira da bela
contraposio romana entre as actiones in rem e as actiones in personam. essa classificao que
2 LEITO, Lus Manuel Teles de Menezes; Direitos Reais; 5. edio; Almedina Editores, S.A., agosto 2015.
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est na base da sistematizao do Cdigo Civil, que regula o Direito das Coisas no seu Livro III, nos
artigos 1251. a 1575.. O Livro III no regula, no entanto, todo o sistema de Direitos Reais, uma
vez que se limita, alm da posse, a referir vrios direitos reais de gozo, ficando os direitos reais
de garantia e de aquisio dispersos por outros livros do Cdigo, precisamente, no Livro II, num
captulo denominado Garantias Especiais das Obrigaes (artigos 656. a 753. CC). O Direito das
Coisas consiste assim no Direito que regula a atribuio das coisas corpreas com eficcia real,
ou seja, eficcia absoluta perante terceiros. O Direito das Coisas constitui um ramo de Direito Civil
pelo que partilha das suas caractersticas fundamentais: a liberdade e a igualdade. Por esse
motivo, ficam fora dos Direitos Reais as situaes jurdicas em que a atribuio das coisas no se
realize sob estes parmetros. Ficam ainda de fora dos Direitos Reais as restries ou vinculaes
efetuadas ao titular do direito real por normas de Direito Pblico. Sendo um ramo do Direito Civil,
por razes de especialidade, ficam de fora do mbito dos Direitos Reais as matrias abrangidas
pelo Direito Comercial (artigos 397. e seguintes e 574. e seguintes CCom). Nas Palavras de
Oliveira Ascenso, o Direito das Coisas assim aquele ramo da ordem jurdica que disciplina a
atribuio das coisas em termos reais. Esta formulao constitui, no entanto, uma perfrase para
referir a bvia concluso de que o Direito das Coisas regula a atribuio de direitos reais sobre
coisas corpreas. Trata-se consequentemente de um ramo de Direito cuja unidade resulta de
uma semelhana de consequncias jurdicas geradas a partir da atribuio de direitos reais sobre
coisas corpreas. Sempre que surja estruturalmente a atribuio de coisas corpreas a
determinadas pessoas, essa situao potencialmente regulada pelo Direito das Coisas, o que s
no se verificar se ocorrer a sua absoro por uma instituio pertencente a outro ramo do
Direito. Os Direitos Reais tm, no entanto, uma natureza bastante heterognea, que dificulta a
construo de esquemas comuns, necessria elaborao de uma teoria geral. Por esse motivo
alguns autores tm abdicado de realizar essa construo. Manuel Gomes da Silva salientava que
ao contrrio do que sucedia nas Obrigaes, em que possvel estabelecer uma teoria geral,
porque embora com particularidades de regime todas as obrigaes se reconduzem a um
esquema genrico, nos Direitos Reais tal no seria possvel por no haver dois diretos reais iguais.
Efetivamente, a propriedade e a hipoteca so realidades estruturalmente to diferentes, que essa
heterogeneidade impossibilita a construo de uma teoria geral. Essa posio hoje igualmente
seguida por Pinto Duarte. Pensamos, no entanto, haver toda a vantagem em estabelecer uma
teoria geral dos direitos reais, onde se podem estudar a um nvel mais geral e abstrato todas as
caractersticas comuns a essa categoria. Tal no invalida, no entanto, que depois se estudem com
preciso as especificidades de cada direito real.
A tutela constitucional dos Direitos Reais: os Direitos Reais so objeto de tutela constitucional, dado que o artigo 62., n.1 CRP, estabelece que a todos garantido o direito propriedade
privada e sua transmisso em vida ou por morte, nos termos da Constituio, acrescentando o
n.2 que a requisio e a expropriao por utilidade pblica s podem ser efetuadas com base na
lei e mediante o pagamento da justa indemnizao. Existe assim uma garantia constitucional da
propriedade, a qual se deve considerar como anloga dos direitos, liberdades e garantias,
beneficiando por isso, nos termos do artigo 17. CRP, do regime estabelecido no seu artigo 18..
A tutela constitucional da propriedade deve considerar-se extensiva a todos os direitos reais, e
mesmo a todos os direitos patrimoniais privados, como jurisprudncia constante do Tribunal
constitucional, o qual tem afirmado repetidamente que a tutela do direito de propriedade a que
se refere o artigo 62. CRP no abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a
propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas tambm outros direitos que
normalmente no so includos sob a designao de propriedade, tais como, designadamente, os
direitos de crdito e os direitos sociais (Ac. TC n. 491/02, 26 novembro 2002). Essa garantia
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constitucional da propriedade visa essencialmente permitir aos cidados um espao de liberdade,
no mbito do qual eles podem desenvolver livremente a sua vida, atravs do pleno
aproveitamento dos bens de que so titulares. A proteo da propriedade envolve assim tanto
uma componente esttica, no mbito da qual permitida aos cidados a titularidade dos bens,
como uma componente dinmica, no mbito da qual se permite aos cidados o seu pleno
aproveitamento, designadamente atravs do uso, fruio, transformao e alienao do bem. Ao
tutelar a propriedade privada a constituio assume a proteo da sua dupla vertente de instituto
jurdico e direito individual. A proteo constitucional da propriedade no , porm, absoluta,
existindo alguma margem de liberdade conferida ao legislador ordinrio na conformao do
regime jurdico dos bens. O prprio legislador constitucional prev no artigo 84. CRP o regime
do domnio pblico fazendo ainda referncia o artigo 82. CRP a diversas formas de propriedade
dos meios de produo. Por outro lado, a proteo jurdica da propriedade no unitria,
variando a mesma em funo do tipo de bem em causa, o que permite estabelecer protees
distintas em funo das diversas categorias de bens. O legislador constitucional seguiu uma
conceo pluralista da propriedade, admitindo vrias formas de propriedade sujeitas a regimes
distintos. A garantia constitucional da propriedade no impede ainda o legislador ordinrio de
estabelecer limites propriedade individual. A prpria Constituio estabelece alis, alguns
limites ao direito de propriedade, sendo alguns explcitos como o sancionamento do abandono
dos meios de produo (artigo 88. CRP) e outros implcitos, como o dever de pagar impostos.
Em virtude da garantia constitucional da propriedade, a mesma s pode ser restringida nos casos
expressamente previstos na lei, devendo a restrio ser efetuada de orma proporcional para
salvaguardar direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 18., n.2 CRP), tendo ainda as
restries que operar por via geral e abstrata e respeitar o nlc fundamental do direito (artigo
18., n.3 CRP).
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Parte Segunda Parte Geral
Captulo I As situaes jurdicas reais
A origem histrica do conceito de direito real: os direitos reais remontam ao Direito Romano. Paradoxalmente, porm, os romanos no conheciam a categoria direito real. O
conceito de ius in re s surge com a Glosa medieval. Dentro do prisma processual do seu Direito,
os romanos conheciam apenas as actiones, embora de alguma forma se pudesse dizer que ter
uma actio equivalia titularidade de um direito numa terminologia moderna. Num perodo mais
antigo, havia a actio e a vindicatio, esta ltima dirigida a obter a posse de uma coisa
indevidamente com um terceiro, a primeira com a finalidade de obter o cumprimento de uma
obrigao. A evoluo aglutina a vindicatio na actio, ambas actiones, numa fase inicial
submetidas tramitao da legis actio sacramento, no caso das aes reais, a legis actio
sacramento in rem. As actiones distinguiam-se consoante eram dirigidas a obter o cumprimento
de uma obrigao pelo devedor, actio in personam, ou a obter a coisa de um terceiro, actio in
rem. A actio in rem tinha igualmente uma componente executiva, j que permitia a recuperao
da coisa. A actio in rem baseava-se, por conseguinte, num direito de perseguir a coisa, no de
demandar algum determinado, e, por isso, ela era in rem e no in personam. A pessoa contra
a qual a ao era intentada no estava nunca determinada partida e podia ser qualquer uma
que tivesse a coisa em seu poder. A identificao entre a actio in rem e uma determinada
categoria de direitos (reais) a cuja tutela serve surge apenas com os glosadores. Entenda-se,
porm, que a categoria dos iura in rem no Direito Romano. Os comentadores acolheram e
usaram largamente a noo de ius in re, assim como se serviram da nova expresso ius reale.
Tanto Bartolo como Balso falavam em ius in re e ius reale quando era de esperar o uso da actio
in rem. Na Idade Mdia, porm, o Direito Cannico trouxe alguma obscuridade clareza da
contraposio entre ius in re e ius in personam. Em algumas situaes em que a algum era
conferido determinado benefcio ou oferenda sem que fosse ainda investido na efetiva
titularidade do mesmo admitia-se que pudesse obter tutela judicial contra o oferente e mesmo
no confronto com terceiros. Como no tinha um ius in re e no podia lanar mo da actio in rem,
a doutrina canonista falava ento de um ius ad rem. A pouco e pouco, a doutrina canonista do
ius ad rem ter sido introduzida para indicar o direito entrega da coisa por parte de quem,
tendo direito a essa entrega, no estava investido na posse. O efeito da introduo desta noo
foi uma certa confuso de qualificao do ius ad rem como direito de natureza obrigacional
entrega da coisa ou como direito real, confuso essa que ter comeado a dissipar-se, primeiro,
com a obra de Doneau, em Frana, e depois com os trabalhos da romanstica holandesa do
sculo XVIII e da pandectstica alem do sculo XIX. No sentido que acabou por prevalecer, o ius
ad rem identificava-se com um direito obrigacional entrega da coisa por fora de um vnculo
jurdico, nomeadamente, um contrato. Por isso, Grcio pde contrapor os ius in re ao ius ad rem.
O contributo da romanstica holandesa e da romanstica alem liga-se delimitao do crculo
dos direitos reais existentes. Nessa delimitao duas notas esto sempre subjacentes: o direito
real exerce-se sobre a coisa, surgindo protegido por uma actio in rem. No carece, pois, de
intermediao de um sujeito passivo para o seu exerccio como sucede com as obrigaes.
Vinnen, autor holands do sculo XVIII, defendia que os direitos reais so mltiplos, incluindo
o domnio, tanto direto como til, usufruto, servides, penhor e posse. Huber, por sua vez,
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contrape o ius in re ao ius ad rem, esclarecendo que o primeiro facultas hominis, i rem
competens, sine respectu ad certam personam, noo que Heinecke sufragaria igualmente. A
evoluo entretanto operada permitiu a Pothier sintetizar o resultado:
Olhando para as coisas que esto no comrcio, consideramos duas espcies de
direitos; o direito que ns temos sobre uma coisa, que chamamos ius in rem. O ius
in re o direito que ns temos sobre uma coisa, que chamamos ius ad rem. O ius in
re o direito que ns temos sobre uma coisa, pelo qual ela nos pertence, ao menos
uma certa perspetiva. O ius ad rem o direito que ns temos, no sobre a coisa,
mas somente em relao coisa, contra a pessoa que contratou connosco a
obrigao de a entregar.
Pothier concui que o ius ad rem defendido por uma ao pessoal, sendo o lugar do seu estudo
o Tratado de Obrigaes. A noo de ius ad rem acabaria por desaparecer, tendo hoje um mero
interesse histrico. Contrariamente, o conceito de direito real consolidar-se-ia definitivamente
com os trabalhos da pandectstica alem. Thibaut, ao definir direito real, acentuaria as duas
notas que anteriormente demos conta: todos os direitos reais, dizendo respeito a coisas, esto
ligados a uma vindicao. Puchta deixaria indicado somente o primeiro aspeto: os direitos reais
relacionam-se diretamente com coisas, que so o seu objeto. Todo este percurso preparou o
surgimento das diversas teorias sobre o conceito de direito real.
O conceito de direito real. Noo adotada:
1. Teoria clssica; formulao: a primeira teoria do conceito de direito real vem usualmente denominada como teoria clssica. O seu percursor moderno Grcio. Este
autor afirma que o direito real um direito patrimonial que existe entre a pessoa e a
coisa sem relao necessria a outra pessoa. Na sequncia, os autores da pandectstica
alem, na quase totalidade, apresentariam o direito real como um poder imediato sobre
uma coisa ou como poder direto e imediato sobre uma coisa, formulada que ficaria
associada teoria clssica. Dernburg, j com o campo de fundo da crtica personalista
feita por Windscheid, a definir direitos reais como os que sujeitam diretamente a ns
uma coisa corprea. Esta conceo estaria na base do BGB alemo. Na exposio de
motivos ao Cdigo Civil alemo, pode ler-se que a essncia da realidade reside no poder
direto de uma pessoa sobre uma coisa. E, mais frente, diz-se decisivo somente que
o direito possa ser exercido sem a vontade de um outro, no sendo exigida a existncia
de obrigado. Esclarea-se, em todo o caso, que o poder de que se fala vem entendido
como um poder jurdico e no como um mero poder material. Isso est claro em Puchta:
o resultado desta sujeio (do objeto ao titular do direito) um poder jurdico sobre o
objeto. A teoria clssica teve sucesso em Portugal. Guilherme Moreira foi o seu
primeiro aderente conhecido. Mas na Faculdade de Direito de Lisboa a penetrao
ocorreu igualmente. Jos Tavares, Jos Gabriel Pinto Coelho, Lus Pinto Coelho, Pessoa
Jorge, de uma forma ntida, e Paulo Cunha, de um modo mais mitigado, expressaram a
sua adeso ou simpatia a esta teoria. Alguns autores continuam ainda hoje a definir o
direito real com recurso a frmulas que mantm a fidelidade teoria clssica. Orlando
Gomes afirma que o retorno teoria clssica est prosperando luz de novos
esclarecimentos provindos de anlise mais aprofundada da estrutura dos direitos reais.
Henrique Mesquita, fazendo da possibilidade de uma relao jurdica ente um sujeito e
uma coisa, faz, de algum modo, a apologia da teoria clssica, no obstante a sua ideia
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dos direitos reais como direitos de domnio ou de senhorio, ainda baseada no poder
direito e imediato sobre a coisa.
2. As teorias personalistas: a primeira crtica conceo clssica a de Windscheid. Este autor comea por repudiar que a relao jurdica possa ser concebida entre uma pessoa
e uma coisa. Relembrando o ensinamento de Kant, que o Direito ordena os outros na
relao social, Windscheid diz que a relao jurdica existe sempre entre pessoas. No
pode haver, do ponto de vista lgico, uma relao entre uma pessoa e uma coisa. Na
mesma senda, Fuchs diria, citando Bruns, que entre uma pessoa e coisa no de todo
possvel existir um direito, apenas facto; como o direito respeita a pessoas, apenas
contra pessoas pode ser exercido. E a mesma ideia aparece expressada em Regelsberger.
Windscheid iria, contudo, mais longe. No se limitando a expor o bice lgico da
formulao tradicional, acrescenta que o contedo do direito real s pode ser negativo,
valendo para outras pessoas como obrigao de no impedir a atuao do titular do
direito. O direito real no postula poderes de atuao, apenas impe deveres de
absteno a terceiros. Postas as coisas nestes termos, e dada a projeo deste autor
alemo, no tardaram s surgir adeptos da sua construo. Em Frana, Planiol seria o
expoente desta doutrina, em que o direito real surge, de uma forma totalmente incolor,
vertido na dimenso negativa do lado passivo de uma relao jurdica, a obrigao
passiva universal ou o dever geral de respeito:
um evento jurdico no pode existir entre uma pessoa e uma coisa; seria
um contra-senso. Por definio, todo o direito uma relao entre pessoas.
() Noutros termos, o direito real, como todos os outros direitos, tem
necessariamente um sujeito ativo, um sujeito passivo e um objeto. () Um
direito real, qualquer que ele seja, consiste, assim, numa relao jurdica
estabelecida entre uma pessoa como sujeito ativo e todos os outros como
sujeitos passivos. Esta relao de ordem obrigacional, o mesmo dizer,
tem a mesma natureza das obrigaes propriamente ditas. A obrigao
imposta a todos os outros que no o titular do direito puramente negativa:
ela consiste numa absteno de tudo aquilo que poder perturbar a posse
daquele protegida por lei.
Levada at ao fim, esta teoria apaga a separao entre direitos reais e obrigaes,
reconduzindo aqueles ao mbito do Direito das Obrigaes. o conhecido monismo
personalista. Esta doutrina tambm teve eco em Portugal, no obstante bem menor que
a teoria clssica ou as formulaes mistas. Caeiro da Mata sustenta que os direitos
reais resolvem-se em uma relao entre sujeitos.
3. Teorias mistas: as teorias mistas so aquelas que combinam as perspetivas de outras teorias, procurando tomar o que cada uma delas tem de bom. Quanto ao conceito de
direito real, as teorias mistas conceberam dois lados ou duas vertentes do direito real,
um interno e outro externo, aproveitando a mxima principal das teorias clssica e
personalista. Assim, do lado interno, o direito real seria um poder direto e imediato
sobre a coisa; do lado externo, o direito real teria oponibilidade erga omnes, investindo
todas as outras pessoas no dever de o respeitarem (dever geral de respeito ou obrigao
passiva universal). As teorias mistas do direito real teriam largo sucesso em Portugal.
Entre os seus aderentes contam-se, na Faculdade de Direito de Coimbra, Manuel de
andrade, Pires de Lima, Pires de Lima/Antunes Varela, Almeida Costa, Orlando de
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Carvalho, Mota Pinto e Henrique Mesquita. Na Faculdade de Direito de Lisboa, o sucesso
foi bem menor. Apontamos Jaime de Gouveia . Fora destas duas Universidades,
apontamos Cunha Gonalves.
4. Outras concees: outras concees envolvem o afrouxamento ou mesmo o desaparecimento dos traos tradicionais de caracterizao dos direitos reais em face de
outros direitos, nomeadamente, direitos de crdito. Uma das posies mais conhecidas
a de Demogue. Este autor comea por questionar a classificao clssica dos direitos
em absolutos e relativos, afirmando que a nica diferena que existe entre esses direitos
reside somente na fora que o legislador pretende imprimir tutela respetiva. O direito
absoluto consiste num direito de contedo forte, o direito relativo num direito de
contedo fraco. Para Demogue, no pode haver um direito sobre coisas. O Direito um
fenmeno societrio, supe uma sociedade e a existncia de mltiplas pessoas; estas
surgem como obrigadas nos esquemas de proteo de bens. Uma relao entre uma
pessoa e uma coisa s pode ser uma relao de facto, visto que a relao jurdica se d
entre pessoas. A receo da orientao kantiana do Direito como fenmeno relacional
e a construo de Windscheid como crtica teoria clssica esto bem presentes em
Demogue e servem de campo de fundo estruturao do seu pensamento. Nesta
ordem de ideias, todos os direitos existem contra pessoas; simplesmente, enquanto uns
(os direitos relativos) existem contra uma ou algumas pessoas somente os outros
(absolutos) so oponveis igualmente a todos (obrigao passiva universal). Para
Demogue, os direitos reais constituem obrigaes com um contedo de oponibilidade
mais forte que os direitos de crdito.
5. Crticas das teorias clssica, personalista e mista:
a. Teoria clssica: comeando este ponto com a anlise da teoria clssica, diremos
ser ela que exprime mas de perto a categoria cultural e histrica dos direito reais.
Desde logo, no seu aspeto mais evidente: os direitos reais so direitos sobre
coisas, tm estas por objeto e visam o seu aproveitamento pelo titular. O
conceito de direito real como poder direto ou imediato exprime a diferena com
o direito de crdito, na medida em que aquele no carece da intermediao de
um obrigado para o respetivo exerccio. Uma primeira crtica que se pode
apontar situa-se ao nvel tcnico. O direito real no constitui um poder, mas um
direito subjetivo; os poderes so contedo dos direitos, no se devendo
confundir com estes. Os juristas que do final do sculo XVI ao sculo XIX
definiram o direito real como um poder sob uma coisa no tinham uma
preocupao dogmtica de fazer a diferena entre poder e direito. Tudo o que
eles pretendiam expressar era que o direito real conferia ao titular um senhorio
ou domnio sobre a coisa que a colocava no mbito da vontade. O poder de que
se fala, embora jurdico, como mencionmos anteriormente, um poder da
vontade. O problema que uma tal conceo coloca transcende j o mbito dos
Direitos Reais e entra no mago da teoria geral do Direito Civil pois conduz
discusso sobre se o direito subjetivo consiste efetivamente num poder da
vontade. A segunda crtica prende-se com a afirmada imediao do direito real,
que s existiria nos direitos reais suscetveis de posse, isto , nos direitos reais
de gozo (com exceo das servides negativas), mas no nos direitos reais de
garantia e nas servides negativas. A formulao clssica fundamentalmente
verdadeira quanto ao aspeto que visa salientar. Os direitos reais,
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contrariamente s obrigaes, no supem a existncia de um obrigado e o seu
titular no precisa de ningum para exercer o seu direito. O direito real in rem
e no in personam. Existe, no entanto, uma outra forma de repudir a imediao,
que no passa por salientar que nem todos os direitos reais conferem poderes
de atuao material sobre a coisa, mas sim pela defesa da tese de que h
direitos reais relativos. Assim, Larroumet sustenta que, havendo direitos reais
menores constitudos, existe uma relao entre os titulares, sendo ambos
devedores um do outro. No verdade que o aproveitamento da coisa se faa
atravs de um intermedirio (que seria o titular do direito real maior): o titular
do direito real pode levar a cabe esse aproveitamento sem a colaborao de
ningum. Assim, o exerccio do usufruto ou da servido no pressupe o
proprietrio para nada. Como o direito real recai sore a coisa, toda a
colaborao dispensada. Uma terceira crtica encontra-se em Giorgianni. O
poder direto e imediato no serviria para caracterizar o direito real, porquanto
outros direitos no reais permitiriam ao titular agir da mesma maneira sobre a
coisa:
possvel, por outro lado, indicar situaes jurdicas
tradicionalmente postas fora da categoria dos direitos reais, em
que o instrumento atravs do qual o titular atinge a satisfao do
seu interesse constitudo justamente por um poder imediato
sobre a coisa (de outrem). Tais situaes so a locao, o comodato
e a anticrese.
Apesar do brilhantismo da exposio, ela no convence. Os direitos que
Giogianni sustenta terem imediao sobre a coisa no a tm efetivamente. O
que se passa que no domnio dos denominados direitos pessoais de gozo o
titular a quem haja sido feita a entrega da coisa pode atuar sobre ela, de modo
em tudo semelhante ao dos titulares de direitos reais de gozo, porque tem
posse. Essa posse permite-lhe, inclusive, havendo esbulho, recuperar a coisa do
esbulhador. Ainda assim, a atuao direta sobre a coisa requer que o titular do
direito pessoal de gozo haja sido investido na posse e no a haja perdido.
Ilustremos: o locatrio pode exigir a entrega da coisa ao locador mediante uma
ao de cumprimento, mas no pode faz-lo mediante a reivindicao, o que
aconteceria se o seu direito fosse real. Se a coisa foi entretanto esbulhada ao
locador por um terceiro, o locatrio no pode reivindica-lo deste, como poderia
se o direito fosse real. Depende do locador para obter a coisa locada. Se o direito
do locatrio fosse real, defesa real, nomeadamente, a reivindicao, permitiria
ao locatrio obter a coisa de quem a tivesse, locador ou terceiro, sem depender
do primeiro para conseguir esse efeito. Isto no sucede, porm. A imediao
que Giorgianni descobre nos direitos pessoais de gozo vem da posse, que
constitui um direito real distinto, e no de nenhum daqueles direitos. Sem posse,
o locatrio est dependente da colaborao do devedor/locador para gozar a
coisa. Tudo isto destri o argumento de Giorgianni contra a teoria clssica. Os
direitos pessoais de gozo tm uma mediao no obrigado, que tem sempre de
prestar a coisa ao devedor para que este a goze. Uma ltima crtica teoria
clssica prende-se com a estruturao do direito real num esquema relacional,
em que, todavia, a relao jurdica no se processa entre pessoas, mas sim entre
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um sujeito, o titular do direito, e o objeto deste, a coisa. Sem que tal represente
qualquer forma de adeso teoria personalista, a cuja crtica procederemos de
seguida, uma relao jurdica s pode existir entre pessoas. Nessa parte, a
objeo de Windscheid a esta teoria tem inteira pertinncia.
b. Teoria personalista: no concebemos o Direito como um fenmeno relacional,
de modo a que toda e qualquer forma de proteo jurdica se deva fazer no
quadro tcnico da relao jurdica. A pandectistica alem, importando para o
Direito o postulado Kantiano que a Cincia assente num juzo sinttico a priori
e que a alteridade representa a dimenso geral do Direito, imps o modelo
lgico-jurdico da relao jurdica. Todo o fenmeno jurdico se ordenava neste
modelo relacional, havendo um lado ativo, correspondente a um direito, e um
lado passivo, que, nos direitos absolutos, e mngua de melhor ideia, se
encontraria no resto da humanidade, atravs do esquema tcnico da obrigao
passiva universal ou dever geral de respeito, tantas vezes depois reduzido na
sua extenso, em frmulas sempre variadas, para mitigar ou diluir o absurdo da
conceo. Ora, fora de situaes estruturalmente relativas, como as que
emergem das obrigaes, a atribuio ou disponibilizao de bens s pessoas
no gera, no imediato, deveres jurdicos para terceiros, pelo menos no deveres
jurdicos especficos, direcionados ao respeito da situao jurdica concreta
reconhecida pelo Direito. Naturalmente, a existncia de um direito subjetivo
determina um espao de aproveitamento exclusivo de um bem e isto implica
que todos os outros devem respeitar a atribuio normativa operada a favor do
titular. Isso no quer dizer, no entanto, que cada situao jurdica integre na
esfera jurdica de cada ser humano. Cada pessoa deve respeitar os direitos dos
outros. Trata-se, porm, de um dever genrico, no enquadrado em qualquer
relao jurdica, e cuja violao suscita o desencadear dos mecanismos
repressivos e de reparao da ordem jurdica. Esse dever, precisamente por ser
genrico, no se contraparte a nenhuma situao jurdica particular, seja a sua
natureza real seja outra qualquer. Os direitos reais constituem situaes
jurdicas absolutas, no existindo um lado passivo a considerar, apenas o
contedo de aproveitamento do bem que a ordem jurdica dispensa, como no
pode deixar de ser numa situao jurdica ativa. Desta forma, a noo tcnica
de direito real s pode ser positiva, a vertente de aproveitamento da coisa que
este direito confere ao titular e no negativa. A construo concetual do direito
real no pode estar no realar do momento imperativo da sano, a
oponibilidade aos terceiros, que pode at no existir ou ser somente eventual.
Mas isso o que sucede com a teoria de Windscheid, e de todos os outros que
o seguiram. Como explica Larenz,
a tnica desloca-se, para Windscheid, da possibilidade do domnio
sobre um objeto para a possibilidade de se impor judicialmente uma
injuno da ordem jurdica contra outrem, o que ele designa por
pretenso. O efeito da propriedade v-o ele no tanto no poder do
proprietrio de decidir o que quiser acerca da coisa (de dispor dela,
fctica ou juridicamente), mas na mera possibilidade de excluir os
outros da mesma coisa.
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Definir o direito real pelo seu pretenso lado negativo equivale a deixar na
sombra todo o contedo de significado do representado pela possibilidade de
aproveitamento de uma coisa corprea que o direito real propicia. D-se, como
diz Larenz, um esvaziamento de sentido do conceito de direito real ou tira-se a
ele o seu contedo positivo, nas palavras de Ruggiero. O direito real no alude
mais ao poder dado ao titular de atuar ou tirar vantagem da coisa, apenas
exprimindo o dever de todos os outros respeitarem a atribuio feita pela
ordem jurdica. A descaracterizao do direito real afigura-se evidente e no
carece de mais explicaes. Deste ponto de vista, a conceo clssica revela a
sua superioridade. Atente-se igualmente em que, desta forma, se dilui a
possibilidade de distinguir os direitos reais de todos os outros direitos absolutos.
Se estes so definidos exclusivamente por vincularem toda a massa de seres
humanos ao seu respeito, no h como separar um direito real de um direito de
patente ou de um direito de personalidade. Levada at ao fim, esta conceo
leva diluio da fronteira entre crditos e direitos reais, como o trabalho de
Demogue bem ilustra.
c. Teoria mista: desta doutrina disse j Gomes da Silva que ela
cai em todos os erros em que caram as duas doutrinas anteriores,
s aproveitando o que elas tm de mau: quanto clssica a relao
com a coisa, quanto personalista o aspeto negativo.
Na verdade, esta doutrina efetua um casamento contra natura. Combina uma
teoria que procede a uma relao entre um sujeito e uma coisa com outro que
parte da viso do direito como fenmeno relacional entre pessoas e tudo molda
ao conceito intersubjetivo de relao jurdica. A ideia, no fundo, consiste em
manter simultaneamente a essncia do direito real, o domnio da atuao sobre
a coisa, com o momento imperativo e sancionatrio do Direito, a vinculao dos
outros, entendida de modo mais ou menos amplo, a no interferirem no
senhorio do titular do direito. Se cada uma das doutrinas, individualmente
tomada, era suscetvel de crticas, a sua combinao s as potencia. Nenhum
direito subjetivo tem um lado interno e um lado externo, mas sim uma dada
estrutura que repousa no objeto e contedo do mesmo. O direito real nem
sempre admite uma atuao direta do titular sobre a coisa e no postula
qualquer relao jurdica com o resto da humanidade, mesmo que, num esforo
de racionalizao do absurdo, se d desta a dimenso restrita dos que esto no
espao territorial da ordem jurdica onde a coisa se encontra.
6. Tentativas de superao:
a. Gomes da Silva: depois de fixar o conceito de direito subjetivo e,
nomeadamente, fazer a destrina entre direito e poder, Gomes da Silva afirma
que
s pode ser direito real o que representa a afetao da coisa a um
fim.
E continua:
o bem afetado pela lei realizao de certo fim a prpria coisa.
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Tecnicamente superior, esta noo no confunde o direito com o poder,
mantm o paradigma do direito real como direito sobre uma coisa e afasta a
conexo intersubjetiva da relao jurdica, que no surge efetivamente
implicada no direito real. Como pontos negativos, apontamos dois. O primeiro
reside na falta de explicitao do objeto. Mencionar simplesmente a coisa abre
a porta a concees amplas que envolvem as coisas incorpreas. Ora, apenas as
coisas corpreas podem ser objetos dos direitos reais. E se isto assim, deve
ser precisado na noo de direito real. O segundo ponto negativo reside na
ligao entre a afetao da coisa e o fim. O direito subjetivo representa um
espao de liberdade no aproveitamento do bem. Atua essa liberdade o titular
do direito real que no faz utilizao nenhuma da coisa, sujeitando-se
inclusivamente extino do direito. Parece, no entanto, que a afetao a um
fim acaba por implicar uma espcie de vinculao do titular ao mesmo, em jeito
de delimitao negativa do direito, o que levaria a distinguir exerccios lcitos,
porque conformes ao fim, seja ele qual for, e exerccios ilcitos, por no o
realizarem. Mesmo que no haja sido esse o sentido pretendido por Gomes da
Silva, a criao de um nexo entre o aproveitamento e o fim sugere sempre
limitada, interna (delimitao negativa do direito) e externamente (limites), mas
no genericamente pelo fim do direito real. Estas reflexes aconselham que a
noo de fim fique afastada da noo de direito real. Por muito que nos
esforcemos, no encontramos nenhum resqucio de finalidade no regime
jurdico de todos os direitos reais, em particular, dos direitos reais de gozo. Cada
titular de direito real tem um dado contedo de aproveitamento da coisa que a
lei lhe confere e que faz uso dentro da margem de livre arbtrio que o direito
comporta.
b. Oliveira Ascenso: Oliveira Ascenso apresenta a seguinte noo de direito real:
direitos reais so direitos absolutos, inerentes a uma coisa e
funcionalmente dirigidos afetao desta aos interesses do
sujeito.
Oliveira Ascenso parece rejeitar uma definio baseada apenas na
considerao do objeto dos direitos reais, introduzindo tambm aspetos de
contedo, que so realmente caractersticas ou consequncias do conceito,
elevadas, contudo, ao mbito da definio do mesmo. uma tcnica perigosa,
pois se a caracterstica se revela no verdadeira, a noo fica comprometida. A
primeira nota distintiva apontada por Oliveira Ascenso a de que o direito real
absoluto, no sentido de no integrao numa relao jurdica. Julgamos,
todavia, que, em vez de questionar a natureza jurdica da posse com base neste
argumento, o que se deveria perguntar era se luz do regime jurdico a falta de
absolutidade, no sentido de oponibilidade erga omnes, compromete a natureza
real, isto , se os direitos reais so sempre absolutos, e no, pura e
simplesmente, usar o conceito pr-dado de direito