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Classes e lutas sociais Celso Frederico Professor da ECA-USP

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Classes e lutas sociais

Celso Frederico Professor da ECA-USP

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1

Classes e lutas sociais

Introdução

Há diferentes modos de definir classes sociais.

Para o marxismo, elas se definem a partir do lugar que os indivíduos ocupam nas

relações de produção, mais precisamente pela posição perante os meios de produção

(proprietários/não-proprietários). As classes, assim, são entendidas como um

componente estrutural da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, como sujeitos

coletivos que têm suas formas de consciência e de atuação determinadas pela dinâmica

da sociedade.

Numa perspectiva oposta, a sociologia empírica prefere estratificar a sociedade,

usando como critério o nível de renda e os padrões de consumo. Em assim fazendo,

chamam de classes sociais o que a rigor são apenas camadas e segmentos da sociedade.

Tal concepção, utilizada frequentemente pelas pesquisas de opinião, que, volta e meia,

aparecem nos jornais, tem o grave inconveniente de aproximar abstratamente pessoas e

grupos sociais cujas condições de vida e reivindicações são muitas vezes opostas.

Abstraída da referência à produção, classe social passa a ser um conceito meramente

descritivo, bem ao gosto dos publicitários que segmentam a sociedade em suas

campanhas de venda. Desse modo, igualam os diferentes, transformando-os em “nichos

do mercado” a serem devidamente seduzidos na condição de “consumidores” passivos.

A definição marxista é mais objetiva e mais dinâmica, já que atenta não só às

conformações concretas dadas pela inserção no processo produtivo e nas relações de

propriedade como, também, ao caráter histórico em que a produção social se realiza.

Essa última característica faz com, a rigor, só se possa falar em classes sociais, strictu

senso, com a plena consolidação do modo de produção capitalista. O desenvolvimento do

capitalismo, com sua lógica implacável, tende a polarizar a sociedade em duas classes

antagônicas: a dos proprietários dos meios de produção e dos trabalhadores

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assalariados. As demais categorias de trabalhadores – seja o campesinato ou a pequena

burguesia urbana – são vistas como resquícios de formações sociais anteriores que

persistirão enquanto o capitalismo não se desenvolver plenamente.

O lugar ocupado na produção abre horizontes distintos para a ação coletiva. O

próprio desenvolvimento da sociedade, segundo Marx, explica-se pelo confronto

permanente entre as duas classes.

A tese da polarização da sociedade em duas classes – proprietários e não

proprietários dos meios de produção – foi criticada por diversos autores que, ao

contrário de Marx, previam o crescimento dos setores intermediários (a classe média).

Esta, dizem eles, tende a se tornar majoritária e acarretará o fim do antagonismo social,

que, nos primórdios do capitalismo, opunha os pólos extremos da pirâmide social.

Paralelamente, a progressiva melhoria das condições de vida da classe operária irá cada

vez mais aproximá-la desses estratos intermediários, aumentando a identificação com a

ordem social capitalista e sepultando os sonhos da revolução social. Essa crítica à

concepção marxista foi formulada, em registros teóricos diferentes, já a partir do século

XIX.

A discussão sobre o desenvolvimento das classes, portanto, foi um “problema” para

as ciências humanas, que, desde a origem até os dias atuais, se debatem para tentar

solucioná-lo. Aqui, vale a frase de Hegel: “o problema da história é a história do

problema”. Vamos, portanto, retomar o fio da história para melhor entender a querela

sobre esse difícil “problema”.

1 Capitalismo, Estado, classes sociais

Se a conformação das classes sociais depende do desenvolvimento da sociedade

capitalista, é preciso atentar antes de qualquer outra coisa à forma como o capitalismo

se implanta numa determinada sociedade.

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Diversos autores aplicam a expressão “via prussiana” (ou o seu equivalente

gramsciano “revolução passiva”) para entender o Brasil: os momentos mais importantes

de nossa história foram marcados pela composição das elites e pela exclusão da

participação popular. Da independência ao fim do regime militar, as transformações

modernizadoras foram realizadas “pelo alto”. A própria industrialização não se deu num

confronto da burguesia com o mundo agrário. Ao contrário, foi o capital da cafeicultura

que bancou o desenvolvimento industrial. Desde o início, portanto, não tivemos uma

oposição aberta entre uma “burguesia progressista” e os “retrógrados latifundiários”.

A essa característica soma-se a forma como se deu a abolição da escravatura e o

destino reservado aos antigos escravos. Último país a pôr fim ao escravismo nas

colônias, o Brasil herda uma tradição de brutalidade nas relações de trabalho que irá

persistir no capitalismo industrial. Essa tradição faz com que o trabalho manual seja

considerado uma atividade desprezível e, em contrapartida, o trabalho intelectual,

privilégio das classes altas, uma atividade honorífica e que, portanto, não precisa ser

bem remunerada. Quanto aos antigos escravos e seus descendentes, não encontrando

lugar no mercado de trabalho, ficaram desde então condenados à marginalidade e ao

nosso racismo “cordial”.

A industrialização nascente precisava de mão-de-obra e, para isso, recorreu ao

trabalho dos imigrantes europeus que trouxeram para cá as formas de consciência e

organização do movimento anarquista. Os primeiros jornais dos trabalhadores, escritos

em italiano e espanhol, testemunham o isolamento dessa classe social em formação. O

desenvolvimento da indústria e o impacto causado pela revolução russa de 1917

propiciarão a entrada em cena dos comunistas. Uma peculiaridade sempre assinalada

pelos historiadores é que o comunismo, no Brasil, não foi o resultado de uma cisão da

social-democracia, como na Europa, mas um desdobramento do anarquismo. Depois,

com a entrada dos tenentes no Partido Comunista e de seu líder, Luiz Carlos Prestes,

outra peculiaridade irá se refletir no movimento operário e em sua organização política:

a forte presença dos militares.

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As greves operárias nesse período eram consideradas uma “questão de polícia”.

Para entendermos essa frase, é preciso lembrar que o liberalismo então vigente

mantinha o Estado afastado das relações trabalhistas. Tais relações ocorriam na esfera

do direito privado. Uma greve, assim, era interpretada como perturbação da ordem

pública a ser reprimida pela ação policial.

A ausência do Estado não se verificava apenas no mercado de compra e venda da

mercadoria força de trabalho, mas na própria economia. O livre jogo de um mercado não

regulamentado, como se sabe, levou à grande crise de 1929, à revolução de 1930 e à

saída de cena dos liberais.

A década de 30 foi marcada por profundas alterações na forma de atuação do

Estado. Este não se limitou a interferir momentaneamente nos rumos da economia, mas

a executar uma ação coesa em todas as franjas da vida social. Para o bem e para o mal,

Vargas criou o moderno Estado brasileiro e pôs em movimento um plano que fez com

que o Brasil se tornasse o país capitalista que mais se desenvolveu no século XX.

A presença do Estado manifestou-se plenamente nas relações de trabalho, através

de uma impressionante criação de leis e decretos que se cristalizaram, em 1943, na

Consolidação das Leis do Trabalho. A presença do Estado nas relações de trabalho

significa, antes de tudo, a admissão legal de que as partes envolvidas – os compradores e

vendedores da mercadoria força de trabalho – não são sujeitos iguais. O reconhecimento

do trabalho assalariado como a parte mais fraca da transação impôs limites legais à

voracidade do capital. Por outro lado, a luta operária logo se encarregou de desmascarar

esse formalismo jurídico, ao evidenciar que o que se passa no mercado de trabalho não é

uma mera troca de equivalentes entre cidadãos livres, mas uma relação de exploração

entre classes, dissimulada sob o manto do contratualismo.

Após a intervenção estatal, as relações de trabalho saíram da esfera do direito

privado e passaram a existir no terreno conflitivo do direito público. A presença estatal

politizou o mercado de trabalho que se transformou no campo de batalha das classes

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antagônicas e não mais na esfera privada dos litígios individuais. Assim, de “caso de

polícia”, o movimento operário transformou-se num “caso político”, num ator

privilegiado das lutas sociais.

2 A herança getulista

A “intromissão” do Estado nas relações de trabalho propiciou críticas tanto dos

liberais quando de segmentos da esquerda. Em uníssono, essas críticas confluíram na

constatação das óbvias semelhanças entre a nossa C.L.T. e a “Carta del Lavoro” de

Mussolini. A presença estatal, assim, foi vista como decorrente de uma concepção

autoritária que enquadrava o movimento sindical nas malhas do Ministério do Trabalho.

No plano teórico, essa interpretação serviu para os primeiros trabalhos acadêmicos

realizados na USP sobre o sindicalismo, nos quais a história do movimento operário era

analisada tendo como chave explicativa a ação do Estado, e não a dinâmica da luta de

classes. No plano político, serviu de base para diversas correntes políticas – do antigo

anarquismo ao PT, passado pela Igreja Católica – levantarem a bandeira da “liberdade

sindical” e incentivarem a luta operária fora da instituição sindical (através de

comissões de fábrica, trabalho de bairro etc.).

Não há dúvida sobre o fato de a CLT ter se inspirado nos fascismo italiano. Mas,

esse transplante foi benéfico ou prejudicial para o movimento operário?

Antes de enfrentarmos essa questão, convém esclarecer que a analogia entre

varguismo e fascismo, tão disseminada entre nós, é um equívoco que gerou prejuízos à

historiografia do movimento operário e à própria ação política. Coube ao crítico literário

Alfredo Bosi1 o mérito de ter posto as coisas nos seus devidos lugares. Segundo sua

cuidadosa pesquisa, o movimento revolucionário de 30 foi guiado pela filosofia

positivista que chegou ao Rio Grande do Sul através do Uruguai e Argentina. Uma vez no

poder, esse ideário serviu para guiar de modo coerente a formação do Estado brasileiro

1 BOSI, Alfredo. A arqueologia do Estado-providência. In: ______: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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moderno. Quem passou pelos textos de Durkheim deve se lembrar de sua concepção

organicista, que via a sociedade como um conjunto de partes integradas, reservando ao

Estado o papel de “cérebro”. A história pós-30 foi o desenvolvimento de uma idéia

filosófica aplicada ao conjunto da vida social. O Estado deixa de lado o não-

intervencionismo pregado pelos liberais e promove o desenvolvimento econômico do

país. Os sindicatos passaram a abarcar o conjunto da classe operária urbana, deixando

de ser “sindicatos de minorias militantes”. Entendido como instrumento gerador da

coesão social, deveria servir para fermentar a solidariedade entre os trabalhadores e ser

um órgão de colaboração com o Estado. Paralelamente à criação dos sindicatos oficiais,

foi implantada uma rede de proteção social, expressa nas leis trabalhistas e na

instituição do salário mínimo (cujo patamar, até hoje, é uma reivindicação inalcançável:

necessitaria de um aumento de aproximadamente 300%).

A herança getulista foi um tema que propiciou discussões apaixonadas no

movimento operário. O controle ministerial sobre os sindicatos durante a ditadura

militar serviu para desarticular o movimento operário2. Essa constatação foi a principal

referência do “novo sindicalismo”, que, em sua fase inicial, levantou as bandeiras contra

o controle estatal, a unicidade sindical e o imposto compulsório. Bandeiras que guardam

uma incômoda semelhança com o receituário liberal...

Não por acaso, em seu discurso de despedida do senado, Fernando Henrique

Cardoso anunciou que seu governo iria marcar o fim da era Vargas. De fato, a ofensiva

neoliberal fez o que pôde para desmanchar a antiga ordem, começando pela privatização

das companhias estatais. E o primeiro governo Lula, para surpresa geral, fez uma

reforma da previdência cortando os “privilégios” dos funcionários públicos, sem que a

CUT, que muitos analistas consideravam uma central majoritariamente formada por

aquela categoria, “abrisse a boca”. Mas, afinal, como explicar essa nova forma de

assujeitamento do sindicalismo ao Estado?

2 As divergências táticas no interior do movimento operário, durante a ditadura militar, tiveram como referência básica a interpretação sobre a estrutura sindical. Veja-se, a propósito, a documentação reproduzida em Celso Frederico, A esquerda e o movimento operário, 3 volumes (o primeiro volume publicado pela Ed. Novos Rumos, 1987; e os demais pela Oficina de Livros, 1990 e 1991).

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Quando se olha para o passado do “novo sindicalismo”, vem a lembrança das

grandes greves operárias e o sentimento, por todos compartilhados, de que o

movimento operário vivia o seu momento de redenção. Passados mais de 20 anos, pode-

se dizer, sem demérito do heroísmo daqueles militantes, que as greves não anunciavam

a nova era, mas, ao contrário, fechavam um ciclo histórico. Elas foram o último suspiro

do sindicalismo da era fordista.

3 Tempos modernos

Durante as décadas de 1970 e 80, o Brasil viveu um descompasso em relação ao

que se passava nos países desenvolvidos. Nestes, o processo de reestruturação

produtiva produziu um enfraquecimento progressivo do sindicalismo, que viu desabar o

número de associados e seu poder de barganha. Enquanto isso, no Brasil, com a agonia

da ditadura militar, assistíamos a uma retomada da atividade associativa. Pouco a pouco,

os antigos dirigentes pelegos foram substituídos pela aguerrida militância. O número de

sindicatos e associações profissionais teve um notável crescimento. Formaram-se as

centrais sindicais. No campo, o MST surgiu com inesperada força. As greves pipocaram

em todo o país.

Entretanto, a parte não pode ficar indiferente à movimentação da totalidade:

participante do sistema mundial de produção de mercadorias, o Brasil conheceu

tardiamente a reestruturação produtiva. Os efeitos foram devastadores, pois ocorridos

numa economia que atravessara duas décadas de recessão. O berço do “novo

sindicalismo”, São Bernardo, foi atingido diretamente pelo “enxugamento” das

montadoras e pela diminuição do número de trabalhadores. A ação sindical, até então

viabilizada pela concentração operária em algumas poucas fábricas, viu ruir esse

“exército” pronto para ser mobilizado. A tática do confronto cedeu lugar ao sindicalismo

de negociação – tarefa facilitada pela chamada “crise das utopias” e pela cristalização de

uma pesada burocracia sindical que manipulava cifras milionárias, inimagináveis para

os antigos pelegos.

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O “enquadramento” do sindicalismo na nova ordem realizou-se em nome do

pragmatismo “realista”. Mas, afinal, o que é essa “realidade” em nome da qual se

arquivou o processo de emancipação?

Não por acaso, um dos temas mais importantes da atualidade diz respeito ao

trabalho: ele deixou de ser a fonte geradora do valor das mercadorias? Estamos

assistindo ao “fim do trabalho” e à decomposição final das classes sociais?

Responder de modo positivo a essas questões leva automaticamente a constatar a

fase terminal da classe operária e de suas lutas, já que não haveria mais a identificação

dos indivíduos com esse ator coletivo. A antiga “comunidade de destinos” teria cedido

lugar ao “salve-se quem puder” dos indivíduos atomizados, precarizados etc., em suas

relações individuais com o onipresente mercado. Curiosamente, essa posição encontrou

abrigo não só em concepções teóricas refinadas que partem da ideia de que o valor

(portanto: o trabalho socialmente necessário) deixou de ser o estruturador da vida

social, como também no neoanarquismo que pretende fazer a “crítica do trabalho”.

Responder de modo negativo, contudo, significa fechar os olhos perante as

transformações históricas em curso. É preciso, pois, entendermos o que se passa na

realidade.

O antropólogo Lévi-Strauss, referindo-se a uma das especificidades do Brasil,

afirmou que nós passamos da barbárie à decadência sem termos conhecido a civilização.

Esse descompasso da periferia atualiza-se nas questões que envolvem o mundo do

trabalho: a globalização impõe-se na periferia após essa ter padecido de décadas de crise

prolongada em suas frágeis economias; os direitos do trabalho estão ameaçados antes

de sua plena efetivação; a burocratização do sindicalismo e a corrupção dos sindicalistas

realizaram-se com uma rapidez espantosa e com uma desfaçatez de fazer corar os

antigos pelegos; a legislação social de Vargas ameaça a chegar ao fim antes de ter

estabelecido os direitos de trabalho no campo; a formação do agrobusiness impôs-se ao

campo tendo como pano de fundo a ausência da reforma agrária, o que explica o inchaço

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das cidades e a marginalidade; a participação política, tão promissora nos primeiros

anos do restabelecimento da democracia, sofreu um refluxo já a partir das discussões

sobre a constituinte, quando a ação dos lobbies sobrepôs-se à ação dos sujeitos coletivos;

as campanhas políticas, antes que pudessem se tornar um instrumento de

esclarecimento, foram capturadas pela despolitizadora estratégia mercadológica; os

partidos políticos, rapidamente, aderiram em uníssono às teorias sobre o “fim das

ideologias”; a discussão sobre a urgência do desenvolvimento econômico para

tornarmo-nos contemporâneos do primeiro mundo e da “sociedade do conhecimento”

(seja lá o que essa expressão queira dizer) esbarra na nova forma assumida pelo valor:

aquela realizada pela “força objetivada do conhecimento”, transformado em “força

produtiva imediata”, como havia previsto Marx3, e que hoje se materializa nas patentes.

A nossa, digamos assim, “modernidade à brasileira” contém o pior dos dois

mundos: as desvantagens do subdesenvolvimento, que não chegou a conhecer o Welfare

State, acrescidas da selvageria do capitalismo financeirizado. A crise de acumulação,

vivida pelo sistema mundial de mercadorias, acena para um longo período de barbárie

na periferia, cuja face mais visível é o desemprego e suas sequelas: a marginalidade e a

violência urbana. A nova etapa vivida pelo capitalismo tardio produziu uma alteração na

estrutura da sociedade e, portanto, nas classes sociais, e exige, com lógica implacável, a

total submissão dos antigos Estados-Nacionais.

Nesse momento, vale a frase: “o velho já morreu, o novo ainda não nasceu”.

Períodos de transição costumam produzir reflexos deformados na consciência das

pessoas. Aqueles que só veem o lado subjetivo celebram a “crise das identidades”. Os

outros, que querem ser objetivos, mas confundem a realidade com os dados empíricos

dispersos, constatam que a “crise do emprego” é o mesmo que a “crise do trabalho”. Para

esses, que ainda permanecem no discurso racional, vale a pena contra-argumentar:

nunca, em toda a história da humanidade, se trabalhou tanto como nos dias atuais. O

economista Richard Freeman calcula que “com a entrada de China, Índia e antigos

3 Cf. Karl Marx. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (borrador). 1987-1858. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1972. p. 230. v. II.

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componentes do bloco soviético na economia mundial resultou, por volta de 2000, na

duplicação do número de trabalhadores integrados à economia globalizada, para um

total próximo de 3 bilhões” 4. A competição desenfreada pelos postos de trabalho, como

era de se esperar, gerou um achatamento generalizado dos salários. Trabalha-se mais e

se ganha menos: os aposentados voltam ao mercado de trabalho e o trabalho infantil é

uma benção para a subsistência das famílias pobres.

Por outro lado, a informática permite ampliar o trabalho para fora da unidade

produtiva. Assim, quando acionamos nossa conta bancária no computador e realizamos

transações, estamos trabalhando de graça para o capital. A mesma coisa tende a se

multiplicar fazendo do cyberespaço não mais a esfera da “reinvenção das identidades”,

segundo os apologistas das maravilhas da esfera virtual, mas um prolongamento da

jornada de trabalho. Numa universidade particular de S. Paulo, o endereço eletrônico

dos professores foi posto pela direção à disposição dos alunos que, a qualquer momento,

podem escrever solicitando esclarecimentos. O professor on-line, assim, fica 24 horas à

disposição, sendo para isso controlado pela direção do estabelecimento 5.

A proletarização geral – a subordinação de todos ao capital – atesta a inevitável

polarização das classes sociais, e não o mundo afluente da “classe média” triunfante,

como imaginavam os teóricos da sociedade pós-industrial. O que está acontecendo, hoje,

não é a “crise do trabalho”, mas a subordinação completa do “processo de trabalho” ao

“processo de produção”. A crise não é do trabalho, como parece à primeira vista, e sim

do emprego – aquela relação jurídica garantida pela mediação estatal. Por isso mesmo,

as palavras antigas ganharam novos significados: reforma, nos tempos do governo

Goulart, significava principalmente reforma agrária. Hoje, em tempos de “pirataria

semântica”, a palavra é empregada para justificar o desmonte da rede social montada

4 Samuel Brittan. Globalização reduz salário de trabalhador do Ocidente. O Estado de São Paulo, p. B12, 5 de novembro de 2006. 5 Francisco José Soares Teixeira, num estudo pioneiro e ainda inédito, chama essa nova forma de extração da mais-valia de “cooperação complexa”. Essa forma de produção desterritorializada graças à internet situa-se, historicamente, na sequência das antigas formas estudadas por Marx: a cooperação simples, a manufatura e a grande indústria. O capital revela-se como uma força social totalmente impessoal (o mercado) e os trabalhadores ficam relegados à condição de “clientes”. Cf. Cooperação complexa. Fronteira limite do capital.

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após a revolução de 30. Ora, todo esse processo de reestruturação produtiva e sua

expressão ideológica – o neoliberalismo – são manifestações da luta de classes. Esta

expressão é sempre plural: não fala de uma única classe, subentendendo-se sempre a

classe operária, mas de uma relação entre as duas classes fundamentais da sociedade

capitalista. A classe dominante, hegemonizada pelo capital financeiro, está na ofensiva.

Os seus interesses estratégicos levaram à progressiva substituição da mais-valia

absoluta pela relativa. Se todo o segredo da economia, como ensinava Marx, resume-se à

economia de tempo, a substituição do trabalho vivo (capital variável) pelas máquinas

(capital constante) é um processo inexorável – reside aí a crise do emprego e o

desmonte das leis de proteção ao trabalho. E, contra elas, não há programas de

“requalificação profissional” capaz de inserir a totalidade dos desempregados, mas

apenas uma minoria escapará da condição de “material descartável”.

Nessa nova configuração, a luta de classes ganha tons dramáticos e um novo campo

de batalha. Ela não se trava apenas nas “plantas industriais”, no “chão da fábrica”, como

gostam de dizer os sociólogos do trabalho, mas principalmente na completa captura dos

aparatos estatais. Por isso, o que está em jogo hoje é o controle do fundo público, que

compreende as verbas milionárias do PIS/PASEP, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, o

FGTS e o Sistema S. Segundo os cálculos de Salvadori Dedecca, esses fundos

“correspondem a 3% do PIB brasileiro. Isto é, nós temos uma arrecadação anual de 3%

para realizarmos políticas de emprego e proteção do emprego” 6.

Resta saber se essa montanha de dinheiro será empregada para financiar a

expansão do capital e socorrer bancos quebrados ou para minorar as condições de vida

da população carente. O controle do fundo público, portanto, tornou-se uma esfera

explosiva a separar interesses contraditórios. De um lado, a nossa burguesia,

acostumada a usar o Estado em benefício de seus interesses, fala na necessidade de

desenvolvimento de olho no fundo público; de outro, os interesses da massa de

assalariados coincidem com os da burguesia sobre a necessidade de desenvolvimento,

6 Claudio Salvadori Dedecca. Sistema público de emprego no Brasil. CONGRESSO NACIONAL. SISTEMA PÚBLICO DE EMPREGO. TRABALHO E RENDA, 1., 2004, Guarulhos. Anais... Guarulhos, 2004. p. 35.

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mas exigem a combinação do desenvolvimento econômico com distribuição de renda e –

mesmo tendo consciência de seus limites – a criação de empregos. Essas exigências

redefinem o papel do serviço social, com bem observou o economista Francisco José

Soares Teixeira: “faz-se mister integrar as políticas de geração de emprego e renda com

as de assistência social. Para tanto, é preciso mudar o seu caráter assistencialista e

transformá-las em políticas voltadas para a construção dos direitos fundamentais da

pessoa humana” 7.

Os dados estão lançados, e o momento decisivo da disputa será o segundo mandato

de Lula em que a disputa do fundo público se dará juntamente com a nova reforma da

previdência e as reformas trabalhista e sindical. Com “o pessimismo da inteligência e o

otimismo da prática”, convém ir à luta lembrando o ensinamento dialético de Brecht: “as

contradições são as esperanças”.

7 Francisco Teixeira. Sistema público de emprego. Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2005. p. 44.

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Referências

BOSI, Alfredo. A arqueologia do Estado-providência. In: ______: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BRITTAN, Samuel. Globalização reduz salário de trabalhador do Ocidente. O Estado de São Paulo, p. B12, 5 de novembro de 2006. DEDECCA, Claudio Salvadori. Sistema público de emprego no Brasil. CONGRESSO NACIONAL. SISTEMA PÚBLICO DE EMPREGO. TRABALHO E RENDA, 1., 2004, Guarulhos. Anais... Guarulhos, 2004. p. 35. FREDERICO, Celso. A esquerda e o movimento operário, 3 volumes (o primeiro volume publicado pela Ed. Novos Rumos, 1987; e os demais pela Oficina de Livros, 1990 e 1991). MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (borrador). 1987-1858. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1972. p. 230. v. II. TEIXEIRA, Francisco. Sistema público de emprego: Caminhos, Descaminhos... Novas Esperanças? In: RABELO, Jackline; FELISMINO, Sandra Cordeiro (Org.). Trabalho, Educação e a Crítica Marxista. Fortaleza: Editora Universidade Federal do Ceará - UFC, 2006. p. 167-184. ______. Cooperação complexa. Fronteira limite do capital. Disponível no blog do autor: http://fcojoseteixeira.blogspot.com/2007/04/cooperao-complexa-fronteira-limite-do.html. Acesso em: 30 mar. 2009.