discurso das mídias

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r I 1 _, PATRICK CHARAUDEAU DISCURSO DAS MÍDIAS ANGELA M. S. CORRÊA Tradução editoracontexto

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autor: Patrick Charaudeau

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  • r I 1

    _,

    PATRICK CHARAUDEAU

    DISCURSO DAS MDIAS

    ANGELA M. S. CORRA Traduo

    ~ editoracontexto

  • O que quer dizer informar

    Dos efeitos de poder sob a mscara do saber

    "Para que serve a informao, ento? Vamos percorrer trs respostas possveis. A mais inconfessvel concerne a nossos interesses de puro

    consumidor, voyeur solitrio do espetculo da atualidade. [ ... ] H, tambm, menos inconfessveis, os interesses do torcedor ou do

    voyeur coletivo. [ ... ] H, enfim, totalmente confessveis (mas que no interessam a quase

    ningum), os interesses do cidado. [ ... ] O voyeur, o torcedor, o cidado tm l suas razes e no se trata de

    desconsider-las. So as razes do perverso, do tribal e do cvico."

    Serge Daney, ''A quoi sert l'information?", Libration, 30/07/91.

  • ---

    Informao como ato de comunicao

    Se existe um fenmeno humano e social que dependa precipuamente da linguagem, o da informao. A informao , numa definio emprica mnima, a transmisso de um saber, com a ajuda de uma determinada linguagem, por algum que o possui a algum que se presume no possu-lo. Assim se produziria um ato de transmisso que faria com que o indivduo passasse de um estado de ignorncia a um estado de saber, que o tiraria do desconhecido para mergulh-lo no conhecido, e isso graas ao, a priori benvola, de algum que, por essa razo, poderia ser considerado um benfeitor.

    Essa definio mnima, por mais altrusta que parea, suscita problemas considerveis: quem o benfeitor e quais so os motivos de seu ato de informao? Qual a natureza do saber a ser transmitido e de onde ele vem? Quem esse outro para quem a informao transmitida e que relao mantm com o sujeito informador? Enfim, qual o resultado pragmtico, psicolgico, social desse ato e qual seu efeito individual e social?

    Qualquer que seja a pergunta que se faa a respeito da informao, volta-se sempre para a questo da linguagem. A linguagem no se refere somente aos sistemas de signos internos a uma lngua, mas a sistemas de valores que comandam o uso desses signos em circunstncias de comunicao particulares. Trata-se da linguagem enquanto ato de discurso, que aponta para a maneira pela qual se organiza a circulao da fala numa comunidade

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  • social ao produzir sentido. Assim, pode-se dizer que a informao implica processo de produo de discurso em situao de comunicao.

    Entretanto, verdade que a questo da informao tomou feies particulares desde o momento em que foi levantada, no somente como objeto de diferentes teorias (teoria matemtica, teoria ciberntica, teoria cognitiva da informao), mas tambm no mbito de uma atividade socioprofissional. Eis que um fenmeno geral, oriundo de uma atividade suscetvel de ser realizada por todos (informar algum de alguma coisa), parece transformar-se no domnio reservado de um setor panic:ular, as mdias, cuja vocao essencial seria informar o cidado. Assim sendo, surge um questionamento que toma ares de acusao, como, alis, acontece cada vez que uma atividade discursiva que pode ser praticada por todos (contar, descrever, explicar, ensinar etc.) torna-se apangio de um grupo particular: que pretenso essa de se dizer especialista da informao? Por que atribuir informao um domnio reservado? Por que tal exclusividade) Assim, essa atividade encontra-se na mira da crtica social, obrigando seus atores a se explicar, obrigando as mdias a produzir, paralelamente ao disc:urso de informao, um discurso que justifique sua razo de ser, como se alm de dizer "eis o que preciso saber", as mdias dissessem o tempo todo: "eis porque temos a competncia para informar".

    UM PONTO DE VISTA INGNUO Existe um ponto de vista ingnuo a respeito da informao. No em razo

    de seu objetivo tico (formar o cidado), mas do modelo de comunicao social que lhe subjacente, o qual, mesmo no sendo explicitado, tido como uma evidncia. Esse modelo- que, alis, o mesmo do senso comum-corresponde a uma viso tecnicista do mundo social que coincide com a das primeiras teorias da informao, 1 cuja ingenuidade tem sido aponuda com frequncia. Segundo esse modelo, tudo acontece como se houve~se, entre uma fonte de informao (que poderia ser a prpria reaJidade, ou qualquer indivduo ou organismo dispondo de informaes) e um receptor

    1 Schannon H., Thorie mathmatique de 14 communication, CEPL, Paris, 1975. Essa teoria m"-t

  • Com relao ao receptor, haveria o problema da difoso da informao. No poder difundir uma informao no poder fazer saber - logo, urna vez mais, no poder informar. Em consequncia, surge a necessidade de organizar um sistema de distribuio em direo ao alvo que se quer atingir. Quando, nesse sistema, se interpem elementos que impedem seu bom funcionamento, trata-se de "censura difuso".

    Com relao instncia de transmisso, haveria o problema do trata11!e"tto da informao. Isso implicaria efetuar um tratamento que no a desvirt~se. que assegurasse a maior transparncia entre a informao que se apresenta. como um "estar a" e a instncia de recepo que deve decodific-la tal e qual. Da a introduo de tcnicas (quase sempre ligadas ao domnio da imeligncia artificial) destinadas ora a definir a unidade de informao para poder contabiliz-la, ou mesmo "comput-la'' (velho sonho da mquina humana), ora a medir o impacto do modo de tratamento junto aos receptores3 para poder. conjugando os dois tipos, variar a performance da mensagem informat[va segundo a quantidade dessas unidades e a fora desses impactos.

    Todos esses problemas so reais, mas so apresentados de maneira muito restritiva e, sobretudo, so simplistas demais, pois no levantam as questes de fundo que concernem natureza dessas trs instncias (fonte/transmissio) receptor) e as relaes que elas mantm entre si. As questes so temveis e as respostas complexas.

    VERDADEIROS PROBLEMAS

    A informao no existe em si, numa exterioridade do ser humano, como podem existir certos objetos da realidade material (uma rvore, a chuva, o Sol) cuja significao, certamente, depende do olhar que o homem lua sobre esses objetos, mas cuja existncia independente da ao humana. A informao pura enunciao. Ela constri saber e, como todo saber, depende ao mesmo tempo do campo de conhecimentos que o circunscrere, da situao de enunciao na qual se insere e do dispositivo no qual poaa em funcionamento. Antes de defini-la de maneira mais precisa, evoquerrm; os verdadeiros problemas suscitados pelo fato de informar.

    3 Ver, a esse respeito, os estudos de "impacto", desenvolvidos particularmente nos Estados Unido>.

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    Com relao fonte, para alm da questo de saber qual a natureza da informao, coloca-se uma primeira questo que concerne sua validade, isto , o que constitui seu valor de verdade.4 Essa questo suscita, ento, uma srie de indagaes: o que a "autenticidade" de um fato? O que a "verossimilhana'' de um fato? Qual a sua "pertinncia'' enquanto fato de informao? Tais indagaes correspondem a questes que o receptor poderia formular: "ser que isso existe?" ( "existencialmente" verdadeiro?); "ser que isso possvel?" ( possivelmente verdadeiro?); "ser que isso

    -precisa ser comunicado?" (ser pertinente?). H uma segunda questo que se coloca a resp~ito da fonte; trata-se da seleo da informao, seleo que se op~ra num conjunto de fatos que parecem impossveis de transmitir em sua totalidade. Em que campo de significao social deve efetuar-se a seleo e, no interior desse campo, com que critrios de importncia ou de prioridade? Em funo de que so definidos esses critrios? Dos interesses do mediador? Dos interesses do alvo? E ento, afinal, h ou no garantias contra a subjetividade, ou contra a possvel manipulao do mediador?

    Com relao ao receptor, a questo saber o que ele e como atingi-lo, pois, como dissemos, o receptor nunca apenas o alvo ideal visado pelo fornecedor da informao. Sendo assim, conveniente, na anlise de todo ato de informao, distinguir efeito visado e efeito produzido, e, por conseguinte, levantar uma nova srie de questes: que efeito visado quando se quer informar e que tipo de destinatrio o alvo? Se a pertinncia de uma informao depende das hipteses que podem ser feitas sobre o no saber do destinatrio (no se informa a algum que j sabe), sobre o interesse que a notcia pode despertar (no se informa a algum que no quer ser informado) e sobre sua aptido em compreender (no se informa da mesma maneira, mas sim de acordo com a competncia que se atribui ao interlocutor), de que meios dispe o informado r para conhecer o estado do alvo? Que provas tem sobre ele,5 e na ausncia delas, no estaria na contingncia de fabricar seu alvo e lhe impor uma informao? A mesma informao ter o mesmo efeito num espao que seja privado (informao confidencial de pessoa a pessoa

    4 Veremos mais adiante que o valor de verdade depende tambm do alvo e da maneira de tratar a informao. 5 Examinando-se os numerosos estudos de impacto que foram realizados, principalmente nos Estados

    Unidos, conclui-se que esses estudos tentam, sem sucesso, responder a essa questo.

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  • ou destinada a circular num pequeno grupo) e num espao pblico (avisos, placas, outdoors, mdias)? Pode-se controlar o destino de uma informao quando ela recebida, recolhida e posteriormente retransmitida fora do dispositivo inicial (o que acontece frequentemente com o vazamento de informao)? No poderia produzir efeitos imprevistos de rumor ou boato? Enfim, uma acumulao muito grande de informao no acabaria por produzir um efeito de saturao contraprodutivo?6

    Com relao ao tratamento da informao, h o problema da extenso, uma vez resolvidas as questes precedentes. O tratamento a maneira de fazer, o modo pelo qual o sujeito informado r decide transpor em linguagem (e tambm iconicamente, caso possa recorrer imagem) os fatos selecionados, em funo do alvo predeterminado, com o efeito que escolheu pr()duzir. Nesse processo, est em jogo a inteligibilidade da informao transmitida, e como no h inteligibilidade em si, esta depende de escolhas discursivas efetuadas pelo sujeito informado r. Ora, toda escolha se caracteriza por aquilo que retm ou despreza; a escolha pe em evidncia certos fatos deixando outros sombra. A cada momento, o informador deve perguntar-se no se fiel, objetivo ou transparente, mas que efeito lhe parece produzir tal maneira de tratar a informao e, concomitantemente, que efeito produziria uma outra maneira, e ainda uma outra, antes de proceder a urna escolha definitiva. 7 A linguagem cheia de armadilhas. Isso porque as formas podem ter vrios sentidos (polissemia) ou sentidos prximos (sinonmia); tem-se realmente conscincia das nuances de sentido de cada uma delas> Alm disso, um mesmo enunciado pode ter vrios valores (polidiscur.rividade): um valor referencial (ele descreve um estado do mundo), enunciativo (diz coisas sobre a identidade e as intenes dos interlocutores), de crena; tem-se conscincia dessa multiplicidade de valores? Enfim, h tambm o fato de que a significao posta em discurso atravs de um jogo de dito e no dito,

    6 "A superinformao causa perda de memria", disse Frdric Rossi f, diretor de filmes de iic:io, de documentrios e de reportagens para a televiso.

    7 Questo angustiante raramente colocada pelos profissionais das midias (exceto para a escolha dos titulas, talvez), raramente tratada nas escolas de jornalismo, sob o pretexto de que a informao tem pressa, que difundi-la com urgncia sempre essencial. Mas talvez, tambm, por uma razo mais fundamental, que trmsparece nesta reflexo de um jornalista: "Se parssemos para pensar sobre os efeitos de nossa maneira de escrever,

    n~o escreveramos mais nada".

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    de explcito e implcito, que no perceptvel por todos: tem-se conscincia dessa multiplicidade de efeitos discursivos?8

    Comunicar, informar, tudo escolha. No somente escolha de contedos a transmitir, no somente escolha das formas adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, isto , no fim das contas, escolha de estratgias discursivas. Jean-Luc Godard, sempre presente para dizer o que no se diz, deu um conselho queles que estavam empenhados em comemorar o centenrio do cinema: "No digam: 'este ano vamos projetar 365 filmes dos nnos Lumiere', mas sim: 'no vamos projetar os 1035 filmes dos irmos Lumiere'." , pois, impossvel alegar inocncia. O informador obrigado a reconhecer que est permanentemente engajado num jogo em que ora o erro que domina, ora a mentira, ora os dois, a menos que seja to somente a ignorncia.

    8 Como se pode observar nesta manchete de jornal: "Chirac-Jospin. O debate entre candidatos cavalheiros" (Lbraton, 3105195). O que se deve entender? Que eles foram corteses? Que, no geral, no apresentaram propostas divergentes? Que eles tm o mesmo programa, o mesmo projeto poltico? Que no h mais antagonismo poltico como antigamente e que tudo muda, at o conflito poltico? Que so duas personalidades que se equivalem, "farinha do mesmo saco"? Que o jornal Lbraton, sem dvida, muito ctico a respeito de poltica?

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  • Informao como discurso

    O discurso no a lngua, embora seja com ela que se fabrique discurso e que este, num efeito de retorno, a modifique. A lngua voltada para sua prpria organizao, em diversos sistemas que registram os tipos de relao que se instauram entre as formas (morfologia), suas combinaes (sintaxe) e o sentido, mais ou menos estvel e prototpico de que essas formas so portadoras segundo suas redes de relaes (semntica). Descrever a lngua , de um modo ou de outro, descrever regras de conformidade, a serem repertoriadas em gramticas e dicionrios.

    J o discurso est sempre voltado para outra coisa alm das regras de uso da lngua. Resul~adacombinao das circunstncias em que se fala ou escreve (a identidade daquele que fala e daquele a quem este se dirige, a relao de intencionalidade que os liga e as condies fsicas da troca) com a maneira pela qual se fala. , pois, a imbricao das condies extradiscursivas e das realizaes intradiscursivas que produz sentido. Descrever sentido de discurso consiste, portanto, em proceder a uma correlao entre dois polos.

    No mbito da informao, isso equivale a se interrogar sobre a mecnica de construo do sentido, sobre a natureza do saber que transmitido e sobre o efeito de verdade que pode produzir no receptor.

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    __________________________________ Informao como discurso

    MECNICA DE CONSTRUAO DO SENTIDO: UM DUPLO PROCESSO

    O sentido nunca dado antecipadamente. Ele construdo pela ao linguageira do homem em situao de troca social. O sentido s perceptvel atravs de formas. Toda forma remete a sentido, todo sentido remete a forma, numa relao de solidariedade recproca. O sentido se constri ao trmino de um duplo processo de semiotizao: de transformao e de transao. 1

    - O processo de transformao consiste em transformar o "mundo a significar" em "mundo significado", estruturando-o segundo um certo nmero de categorias que so, elas prprias, expressas por formas. Abrange categorias que identificam os seres do mundo nomeando-os, que aplicam a esses seres propriedades qualificando-os, que descrevem as aes nas quais esses seres esto engajados narrando, que fornecem os motivos dessas aes argumentando, que avaliam esses seres, essas propriedades, essas aes e esses motivos modalizando.2 O ato de informar inscreve-se nesse processo porque deve descrever (identificar-qualificar fatos), contar (reportar acontecimentos), 'rexplicar (fornecer as causas desses fatos e acontecimentos).

    O processo de transao consiste, para o sujeito que produz um ato de linguagem, em dar uma significao psicossocial a seu ato, isto , atribuir-lhe um objetivo em funo de um certo nmero de parmetros: as hipteses sobre a identidade do outro, o destinatrio-receptor, quanto a seu saber, sua posio social, seu estado psicolgico, suas aptides, seus interesses etc.; o eftito que pretende produzir nesse outro; o tipo de relao que pretende instaurar com esse outro e o tipo de regulao que prev em funo dos parmetros precedentes. O ato de informar participa desse processo de transao, fazendo circular entre os parceiros um objeto de saber que, em princpio, um possui e o outro no, estando um deles encarregado de transmitir e o outro de receber, compreender, interpretar, sofrendo ao mesmo tempo uma modificao com relao a seu estado inicial de conhecimento.

    Precisemos, para no deixar dvidas, que o processo de transao que comanda o processo de transformao e no o inverso. A finalidade

    1 Ver igualmente "Une analyse smiolinguistique du discours", em Les analyses du discowrs en France, revista Langages n. 117, Paris, Larousse, 1995.

    2 Nossa Grammaire du sem et de l'expression, Hachette, Paris, 1992, foi elaborada em torno dessas categorias.

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  • do homem, ao falar, no a de recortar, descrever, estruturar o mundo; ele fala, em princpio, para se colocar em relao com o outro, porque disso depende a prpria existncia, visto que a conscincia de si passa pela tomada de conscincia da existncia do outro, pela assimilao do outro e ao mesmo tempo pela diferenciao com relao ao outro.3 A linguagem nasce, vive e morre na intersubjetividade. falando com o outro - isto , falando o outro e se falando a si mesmo- que comenta o mundo, ou seja, descreve e estrutura o mundo. O esquema seguinte representa esse processo aplicado ao discurso informativo. Nesse discurso o "mundo a significar" pode ser considerado um "mundo a descrever e comentar", e o "mundo significado", um "mundo descrito e comentado":

    Figuro 2

    Mundo Instncia Mundo Instncia Mu ~do o descrever ..___ de produo ~ descrito

  • depreendidos, para estabelecer hierarquias, conjuntos e subconjuntos, isto , construir taxionomias.

    Como o sujeito constri esses conhecimentos? No ponto de convergncia de uma dupla aprendizagem:

    Pela aprendizagem que se desenvolve atravs das prticas da experincia, s quais se aplica uma observao na empiria do senti r, do ver e do ouvir, no jogo dos erros e dos acertos, na predio das percepes, e que permite ao sujeito depreender recorrncias no interior desses fenmenos, e construir assim uma explicao emprica do mundo fenomenal. E pela aprendizagem dos dados cientficos e tcnicos que tentam explicar o mundo a partir do que no visvel e se torna apreensvel com o auxlio de um instrumental intelectual (clculo, raciocnio, discurso de explicitao mais ou menos vulgarizados).

    Esses conhecimentos so considerados suficientes para dar conta dom undo da maneira mais objetiva possvel. Sabe-se, evidentemente, que eles passam pelo filtro da experincia social, cultural, civilizacional, o que os relativiza -apesar do sonho dos seres humanos de descrever o mundo como alguma coisa de universal que no dependa da prpria contingncia humana. 5 De todo modo, os conhecimentos, por oposio s crenas (ver adiante), beneficiam-sede um preconceito favorvel de "objetividade" e de "realismo", o que constitui uma espcie de garantia quanto estabilidade da viso estruturada do mundo.

    A categorizao desses conhecimentos se d de acordo com a suposta natureza do que percebido e segundo a maneira pela qual aquilo que percebido descrito. So trs as categorias de base:

    existencial: a percepo mental determinada pela descrio da existncia de objetos do mundo em seu "estar a", estando em algum lugar (o espao), num certo momento (o tempo) e num certo estado (as proprieda4es), com traos que identificam e caracterizam esses objetos em sua factualidade. Quando esse tipo de percepo e de descrio se inscreve numa enunciao informativa, serve para esclarecer uma conduta desejada ou imposta. Pode apresentar-se sob uma forma discursiva de definio (dicionrios e manuais tcnicos) ou indicaes factuais: dizer a hora, indicar uma direo, anunciar atravs de placas,

    5 Esse universal, num imaginrio religioso, da ordem do divino, e num imaginrio laico, da ordem da cincia

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    cartazes ou pela imprensa (as pginas de classificados dos jornais, por fornecerem listas de ofertas de emprego, imveis, encontros ou diversas manifestaes culturais). evenemencial: a percepo mental determinada pela descrio do que ocorre ou ocorreu, isto , do que modifica o estado do mundo (dos seres, de suas qualidades, dos processos nos quais esto implicados). Essa descrio s pode ser feita sob o modo da maior ou menor verossimilhana, dependendo do consenso que pode estabelecer-se, no interior de- uma comunidde social, sobre a maneira de compartilhar a experinda do mundo e represent-la. Quando esse tipo de percepo e de descrio se inscreve numa enuniao informativa, serve para fazer

    ver ou imaginar (atravs de uma reconstituio) o que se passa ou se passou, chamando a ateno ora para o prprio processo da ao (um acidente, um bombardeio, a assinatura de um ato de paz), ora para uma declarao (entrevista coletiva, discursos oficiais, trecho de entrevista), ora para a identificao dos atores implicados (o agente, as vtimas ou beneficirios, os aliados ou oponentes), ora para as circunstncias materiais (no espao e/ou no tempo). explicativa: a percepo mental determinada pela descrio do porqu, do como e da finalidade dos acontecimentos, isto , dos motivos ou intenes que presidiram o surgimento do acontecimento e de seus desdobramentos. Quando esse tipo de percepo e de descrio se inscreve em uma enunciao informativa, serve para fornecer ao destinatrio os meios (os argumentos) at ento desconhecidos para ele, para tornar inteligveis os acontecimentos do mundo, ou seja, com fundamento na razo.

    Saberes de crenas So os saberes que resultam da atividade humana quando esta se aplica

    a comentar o mundo, isto , a fazer com que o mundo no mais exista por si mesmo, mas sim atravs do olhar subjetivo que o sujeito lana sobre ele. Uma tentativa no mais de inteligibilidade do mundo, mas de avaliao quanto sua legitimidade, e de apreciao quanto ao seu efeito sobre o homem e suas regras de vida.

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  • As crenas do conta do mundo quanto maneira de proceder regulao das prticas sociais, ao se criarem normas efetivas de comportamento, e tambm quanto aos discursos de representao produzidos no mbito do grupo social, para avaliar esses comportamentos, criando-se, assim, normas ideais. Estas apontam no apenas para os imaginrios de referncia dos comportl.mentos (o que se deveria fazer ou no fazer), mas tambm para os imaginrios de justificativa desses comportamentos (se do bem ou do mal).

    As crenas dependem, pois, de sistemas de interpretao: h sistemas que avaliam o possvel e o provdvel dos comportamentos em dadas situaes, procedendo por hipteses e verificaes que permitem, em seguida, fazer predies ("se ele o nomeou ministro, porque era seu amigo", "se engordou, porque tem o hbito de beber"); outros h que apreciam os comportl.mentos segundo um julgamento positivo ou negativo, em confronto com normas que foram estabelecidas socialmente, procedendo a afirmaes que ganham valor de evidncia sob diferentes pontos de vista: tico (o que bom ou mau), esttico (o que belo ou feio), hednico (o que agradvel ou desagradvel), pragmtico(oquetilouintil,eficazouineficaz),sobaformadejulgamentos mais ou menos estereotipados que circulam na sociedade (intertextualidade), e que representam os grupos que os instauraram e servem de modelo de conformidade social (o guia de saber se comportar e julgar).

    Quando essas crenas se inscrevem numa enunciao informativa, servem para fazer com que o outro compartilhe os julgamentos sobre o mundo, criando assim uma relao de cumplicidade. Ou seja, toda informao a respeito de uma crena funciona ao mesmo tempo como interpelao do outro, pois o obriga a tomar posio com relao avaliao que lhe proposta, colocando-o em posio reativa - o que no necessariamente o caso da informao que se refere aos conhecimentos. Ao se dizer "Nova York uma cidade estranh', interpela-se duplamente o interlocutor: no s sobre o fato de ele conhecer ou no Nova York, mas tambm sobre a adeso ou rejeio apreciao proposta.

    Representaes

    A questo implcita para os saberes de conhecimento tanto quanto para os saberes de crena diz respeito relao percepo-construo que

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    o ser humano mantm com o real. Trata-se aqui de uma problemtica da "representao". Esse conceito muito discutido nas cincias humanas e sociais, particularmente na Antropologia Social, na Sociologia e na Psicologia Social.6 Para alm das diferenas que se prendem aos pressupostos tericos dessas disciplinas, guardaremos alguns pontos comuns que nos so teis para compreender os problemas da informao.

    As representaes, ao construrem uma organizao do real atravs de imagens mentais transpostas em discurso ou em outras manifestaes comportamentais dos indivduos que vivem em sociedade, esto includas no real, ou mesmo dadas como se fo~sem o prprio real.7 Elas se baseiam na observao emprica das trocas sociais e fabricam um discurso de justificativa

    . -dessas trocas, produzindo-se um sistema de valores que se erige em norma ' de referncia. Assim elaborada uma certa categorizao social do real,

    a qual revela no s a relao de "desejabilidade" que o grupo entretm com sua experincia do cotidiano, como tambm o tipo de comentrio de .inteligibilidade do real que o caracteriza- uma espcie de metadiscurso revelador de seu posicionamento. Em resumo, as representaes apontam para um desejo social, produzem normas e revelam sistemas de valores.

    Os saberes de conhecimento e de crenas constroem-se, pois, no interior desse processo de representaes, mas a fronteira entre eles difcil de determinar. Isso significa que um enunciado aparentemente simples como "essa mulher poderos' depende, para sua interpretao, de numerosos entrecruzamentos entre os discursos de representaes que so produzidos, numa dada sociedade, tanto sobre a mulher quanto sobre o poder. Essa fronteira , entretanto, necessria. Ela pode ser tnue, varivel, pode deslocar-se, mas ela que confere troca social a iluso de inteligibilidade do mundo. Nessas condies, nosso direito indagar sobre os efeitos interpretativos produzidos por algumas manchetes de jornais (ou mesmo sobre determinada maneira de comentar a atualidade) quando estas, em vez de inclinar-se para saberes de conhecimento ("o presidente da comisso entrega o relatrio ao

    6 Nas cincias cognitivas tambm, mas como processo de percepo e ativao de procedimentos intelectivos (A. V Cicourel), de que no nos ocuparemos aqui.

    7 Trata-se de uma das concepes, atualmente bastante adotada por correntes da Sociologia (P. Bourdieu), pela Psicologia Social (Moscovici) e pela Antropologia Social (G. Balandier), que consiste em afirmar que as representaes produzem sentido. A outra concepo, na linha da teoria marxista da ideologia, considera as representaes como um duplo que racionaliza o real, mascarando-o.

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  • primeiro-ministro"), pem em cena saberes de crena que apelam para a reao avaliativa do leitor ("o presidente da comisso entrega uma bomba ao primeiro-ministro").8 Assim, como se v, so as palavras que apontam para as representaes. 9 No debate poltico a respeito de trabalhadores, e segundo o contexto em que se insere, o emprego dos qualificativos "estrangeiros", "imigrantes", "clandestinos", "pardos", revela as crenas em que se baseia o pensamento em foco.

    Palavras usadas em situaes recorrentes pelos mesmos tipos de locutores acabam por tornar-se portadoras de determinados valores. No inocente utilizar o termo "globalizao" (por remeter a um pensamento liberal de direita) em oposio a "internacionalizao" (que remete a um pensamento social de esquerda). A menos que essas crenas sejam expressas de maneira implcita: o que poderia haver, aparentemente, de mais incuo do que esta reflexo feita por um apresentador de telejornal, como concluso a uma reportagem sobre o conflito na ex-Iugoslvia: "E tudo isso acontece a duas horas de avio de Paris?" o que haveria de mais objetivo, mais, transparente e explcito, pois remete a um conhecimento verificvel. Entretanto, esse enunciado, aparentemente to neutro, mobiliza universos de crena suscetveis de produzir uma interpretao como: "a guerra est nossa port', "a ameaa iminente", "isso concerne a todos ns".

    EFEITOS DE VERDADE

    No se deve confundir valor de verdade e efeito de verdade, embora nos dois casos se esteja diante de um julgamento epistmico, pois o homem tem necessidade de basear sua relao com o mundo num "crer ser verdade". uma questo de _verdade, mas tambm uma questo de crena.

    Verdade e crena, tal como a distino que operamos entre dois tipos de saber, esto intrinsecamente ligadas no imaginrio de cada grupo social. Isso quer dizer que no existe uma definio universal. Nas sociedades ocidentais, 10 por exemplo, a verdade depende da crena de que ela preex:iste

    8 Aqui, "bomba" significa "relatrio que provoca o efeito de uma bomb'. 9 Tais representaes so tratadas por ns em termos de "imaginrios". 10 Diferentes, por esse ponto de vista, das sociedades primitivas ou mgicas.

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    sua manifestao, e que e a se encontra em esta o e pureza e mocenCia, e de que sua descoberta se faz ao trmino de uma pesquisa na qual o homem seria, ao mesmo tempo, o agente (movido pelo desejo de saber) e o beneficirio (ele descobre a resposta pergunta: "quem sou eu?"). Nota-se que essa questo da verdade est marcada pela contradio: a verdade seria exterior ao homem, mas este s poderia atingi-la (finalmente constru-la) atravs de seu sistema de crenas. Disso decorre uma tenso entre o polo da verdade e o da crena. Ora o homem procura meios para fundar um sistema de valores de verdade, ora ele se conforma com seus efeitos. . -O valor de verdade no de ordem emprica. Ele se realiza atravs de

    uma construo explicativa elaborada com a ajuda de uma instrumentao cientfica que se quer exterior ao homem (mesmo que seja ele quem a tenha construdo), objetivante e objetivada, que pode definir-se como um conjunto de tcnicas de saber dizer, de saber comentar o mundo. A utilizao dessa instrumentao permite construir um "ser verdadeiro" que se prende a um saber erudito produzido por textos fundadores.

    O efeito de verdade est mais para o lado do "acreditar ser verdadeiro" do que para o do "ser verdadeiro". Surge da subjetividade do sujeito em sua relao com o mundo, criando uma adeso ao que pode ser julgado verdadeiro pelo fato de que compartilhvel com outras pessoas, e se inscreve nas normas de reconhecimento do mundo. Diferentemente do valor de verdade, que se baseia na evidncia, o efeito de verdade baseia-se na convico, e participa de um movimento que se prende a um saber de opinio, a qual s pode ser apreendida empiricamente, atravs dos textos portadores de julgamentos. O efeito de verdade no existe, pois, fora de um dispositivo enunciativo de influncia psicossocial, no qual cada um dos parceiros da troca verbal tenta fazer com que o outro d sua adeso a seu universo de pensamento e de verdade. O que est em causa aqui no tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de "credibilidade", isto , aquilo que determina o "direito palavr' 12 dos seres que comunicam, e as condies de validade da palavra emitida.

    11 "A verdade sai da boca dos inocentes." J definimos esta simbologia em La paro/e conjisque, un genre tlvisuel: !e talk show, Paris, Dunod, 1997.

    12 Ver "Ce que communiquer veut dire", na revista Sciences Humaines n. 51, junho 1995.

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  • Cada tipo de discurso modula seus efeitos de verdade de uma maneira particular. O discurso de informao modula-os segundo as supostas razes pelas quais uma informao transmitida (por que informar?), segundo os traos psicolgicos e sociais daquele que d a informao (quem informa?) e segundo os meios que o informador aciona para provar sua veracidade (quais so as provas?).

    Por que informar?

    Esses efeitos variam em funo de ter havido ou no um pedido prvio de informao, pois o pedido determina a finalidade intencional do ato de informar.

    Se a informao foi pedida, ela pode ser proveniente de um indivduo que precisa de elementos de informao para nortear sua conduta (saber a hora, comparecer a um lugar determinado para executar uma tarefa no mbito profissional etc.), completar seu saber (saber o nome de um novo ministro, do autor de uma citao etc.) ou formar uma opinio sobre o valor dos fatos e gestos dos indivduos ("ser que ele sabe de algum fato novo para o relatrio da CPI?"). Entretanto, o pedido de informao pode ser pressuposto pela prpria organizao da vida social, que exige que os contribuintes, os cidados, os indivduos em sua vida particular, sejam informados sobre seus direitos, seus deveres e os meios de que dispem para aplic-los. Eis por que existem lugares de informao sua disposio, que funcionam em servios pblicos ou privados.

    De qualquer forma, com a demanda explcita ou implcita, trata-se de uma intencionalidade de pedido, na qual o solicitante que, ao pedir, atribu[ ao informador em potencial um saber e uma competncia: um pedido partt dizer do primeiro que pressupe um poder de dizer do segundo e que, ao mesmo tempo, provoca um dizer deste ltimo. Sendo assim, instaura-se uma relao de solicitante a solicitado cujo vnculo depende da situao de troca. preciso, pois, conhecer os dados do contrato de comunicao13 e os cdigos da boa educao (rituais linguageiros) em vigor na sociedade em que se efetua o pedido, sem os quais se produzem reaes de incompreenso-como as que podem ocorrer nos encontros interculturais. Esse tipo de

    13 Para essa noo, ver seo "O contrato de informao miditico", captulo "Do contrato de comunicao em geral"

    50

    --

    relao explica por que toda recusa em fornecer uma informao pode ser considerada pelo solicitante uma afronta: ele no teria sido reconhecido como digno de ser informado.

    Se a informao no foi pedida, h dois casos tpicos que so possveis cada um suscetvel de desencadear no informado certas hipteses

    interpretativas: o informador transmite uma informao por iniciativa prpria, ou ento obrigado a isso.

    Falar por iniciativa prpria: o informado fica na posio de perguntar qual o motivo que anima u informador ("O que est por trs do que ele

    .- diz?"). Pode construir uma hiptese de gratuidade altrusta: o informador procura avisar o outro sobre uma ameaa que pode atingi-lo, ou dizer smplesmente alguma coisa que poderia ajud-lo, ser til para ele. Nesse caso, a informao considerada benfica, mas ao mesmo tempo o informado se torna devedor do informador. O informado pode tambm fazer uma outra hiptese: o informador age por interesse pessoal. Ele estaria procurando se proteger, evitar um mal-entendido, procurar um aliado, conseguir um favor, e fazer com que o outro se torne seu devedor. Nesse caso, a informao pode despertar suspeita: informar poderia corresponder a uma estratgia de despistamento (fazer crer na importncia de uma notcia para no abordar certos temas de discusso) ou mesmo de intoxicao (vazamento proposital de informaes) ou de barrigas (plantar uma notcia falsa). Pois, afinal, por que dar uma informao que ningum est pedindo? O segredo no seria o mais conveniente? No seria porque, ao fazer uma revelao ou uma denncia, o sujeito constri para si uma imagem de virtude?

    O informador fala porque obrigado (constrangido e forado): o informado levado a fazer a hiptese de que, da parte do informado r, haveria de incio o desejo de reter a informao: seja porque ele no queria informar, por razes tticas que exigem que se deixe o outro na ignorncia a fim de evitar o surgimento de um contrapoder (frequente no domnio poltico) ou simplesmente a fim de se preservar (no se mostrar) ou de preservar seus familiares e amigos (no denunciar, no ferir); seja porque no podia informar, em nome do interesse geral (segredo de Estado, segredo econmico para evitar a concorrncia etc.) ou em nome de uma causa ideolgica, por exemplo, para no desencorajar as energias militantes. Essa obrigao de informar pode ter origem em grupos de presso (como ocorre no que as

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  • mdias designam como "mundo dos negcios"), em autoridades ameaadoras (quando se trata de extorquir informao em nome do bem comum), num indivduo ou numa instncia qualquer que ajam por chantagem (como os informantes da polcia), no prprio sujeito que se impe uma regra moral (o dever de informar em determinadas circunstncias, que se ope reg::-a do segredo, como ocorre com todo jornalista num regime poltico de censura), ou em uma regra intelectual (o dever de resolver uma contradio, o que justifica investigaes e perquiries).

    preciso ainda acrescentar que uma informao extorquida pode ter o crdito de um efeito de verdade (o informador no poderia se esquivar), a menos que participe de uma ttica, de um clculo em segundo grau: como o interlocutor sabe que sou obrigado a informar e me d crdito, posso aproveitar-me da situao para lhe passar uma falsa informao.

    Quem informa? O crdito que se pode dar a uma informao depende tanto da prJsio

    social do informador, do papel que ele desempenha na situao de troca, de sua representatividade para com o grupo de que porta-voz, quanto do grau de engajamento que manifesta com relao informao transmitida:

    O informador tem notoriedade: essa posio pode produzir um efeito duplo. Em verdade, toda pessoa que tem notoriedade uma pessoa pblica, e por isso sua posio social exige que o informador nessa condio no esconda informaes de utilidade pblica - o que Lhe confere certa autoridade e faz com que, quando ele informa, o que diz pode ser considerado digno de f. Entretanto, por outro lado, por conta dessa posio, pode-se atribuir-lhe intenes manipuladoras, que fazem com qu o que ele disser seja, ao contrrio, suspeito pelas razes tticas evocadas anteriormente. 14 Pode acontecer tambm que essa notoriedade esteja ligada a certas profisses, s quais se d um crdito "natural"15

    14 Receber um folheto de informaes sobre a Unio Europeia, planejado e redigido pelo servio de inocmao dessa instituio, produz um duplo efeito: esse servio o mais indicado para dar informaes exata

  • A esses diferentes status acrescenta-se o grau de engajamento do informador. Trata-se de uma atitude psicolgica da parte do informador que teria interesse no valor de verdade da informao que transmite, o que o levaria a defend-la ou critic-la de maneira parcial. Para que essa atitude produza efeito sobre quem recebe a informao, preciso que seja marcada discursivamente. Assim, dois casos podem apresentar-se:

    O informador no explcita seu engajamento: a informao dada como evidente, 18 sem contestao possvel. Essa posio de apagamento do sujeito e de aparente neutralidade do engajamento produz efeito de objetivao e de autenticao. O sujeito que fala traz uma informao como se a verdade no pertencesse a ele e s dependesse de si mesma. uma das caractersticas do discurso populista. Mas basta que se possa provar a falsidade da informao para que o informador seja desacreditado e taxado de mistificador.

    O informador explcita seu engajamento sob o modo da convico, 19 afirmando a confiana que deposita em sua fonte. A informao produz, ento, efeito paradoxal: o informado r, comprometendo-se com o valor de verdade de sua informao ("Estou certo de que ... ", "Estou convencido de que ... ", "Juro que ... ") insiste em manifestar sua adeso e sua sinceridade, mas, ao mesmo tempo, seu engajamento aponta para uma convico que lhe prpria, e no para a evidncia20 de seu dizer. Basta que se possa tax-lo de ignorncia ou de ingenuidade ("Mas como voc ingnuo, meu caro!"), para que a explicitao de seu engajamento se volte contra ele, fazendo desmoronar todo o valor de verdade de seu dizer.

    O informador explcita seu engajamento, mas dessa vez sob o modo da distncia, expressando reserva, dvida, hiptese, e mesmo suspeita. 21

    18 Isso se faz atrav~ de marcas "delocutivas" de apagamento dos traos discursivos de personalizao (ver nossa Grammaire du sem et de l'expression, Paris, Hachette, 1992, p. 619).

    19 Isso se faz atravs de marcas "elocutivas" (pronomes pessoais, verbos de modalidade, advrbios etc.; ver Grammaire du sem et de l'expression, Paris, Hachette, 1992, p. 599).

    2 Fizemos a distino entre a categoria da "evidncia'' e a da "convico" na Grammaire du Jms et de l'expression (pp. 601 e 619). A primeira depende de um isso, um sujeito de saber onisciente; a segunda depende de um eu particular, um sujeito de saber subjetivo.

    21 As mdias so ambivalentes com relao a esse posicionamento. Por um lado, jogam com

  • '

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    um real de suposio, de ordem altica, sendo a verdade alguma coisa da ordem do possvel. Os meios discursivos utilizados para entrar nesse imaginrio remetem ao procedimento de reconstituio, que diz: "eis como isso deve ter acontecido". Da as sondagens, os testemunhos, as reportagens e todo um trabalho de investigao destinado a restabelecer o acontecimento tal como ele teria ocorrido.

    A explicao caracteriza-se pela possibilidade de se determinar o porqu dos fatos, o que os motivou, as intenes e a finalidade daqueles que foram os protagonistas. O ideal de uma boa explicao consiste em poder remontar origem dos fatos; a verdade de ordem epistmica se confunde aqui com o conhecimento original. Os meios discursivos utilizados para entrar nesse imaginrio remetem ao procedimento de elucidao, que diz: "eis porque as coisas so assim". Da recorrer-se no s palavra de especialistas, peritos e intelectuais, que so considerados capazes de trazer provas cientficas e tcnicas, como tambm, numa outra perspectiva, a uma exposio de opinies diversas, atravs de entrevistas, interrogatrios, confrontos e debates, de modo a fazer surgir uma verdade consensual.

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    .-

    As mdias diante do discurso da informao

    Definir o sentido do ato de discurso como o resultado de um duplo processo de transformao e de transao de saber que produz efeitos de verdade permite anular a contradio destacada por Umberto Eco entre as diferentes teorias da informao, 1 pois algumas defendem um ponto de vista quantitativo e outras um ponto de vista qualitativo. O ponto de vista quantitativo, diz ele, baseia-se na noo estatstica de "no probabilidade": uma informao tanto mais forte quanto menor a probabilidade de sua apario para um determinado destinatrio. O ponto de vista qualitativo baseia-se na noo de inteligibilidade, ligada, por sua vez, noo de ordem: uma informao, para ser apreendida, precisa inscrever-se num sistema de conhecimento j organizado, ordenado (Branch system);2 quanto mais facilmente a informao se integrar ao sistema, melhor ela ser apreendida. Nota-se, ento, a contradio: por um lado a informao seria medida por seu grau de no previsibilidade, por outro, ela seria julgada quanto sua banalidade (posto que o sistema deve ser saturado).

    1 A obra aberta, 8. ed., Perspectiva, So Paulo, 2001. Destaque-se que os promotores so os seguintes: S. Goldman, N. Wiener, R. Shannon e W Weaver. Teoria ciberntica exposta por N. Wiener ( 1950).

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  • Na verdade, somente o receptor est em posio de julgar o tear de uma informao, restando ao emissor to somente fazer uma aposta sobre sua validade (e no sobre seu valor). O receptor pode considerar uma intrmao detentora de um alto grau de imprevisibilidade do ponto de vista factual e, ao mesmo tempo, integr-la perfeitamente a seu sistema de conhecimentos, com um alto grau de inteligibilidade. Processo de transformao e processo de transao esto intrinsecamente ligados nesse jogo de passagem da ordem (estabilidade do sistema) desordem3 (instabilidade do sistema) e da desordem ordem, o que caracteriza de maneira geral todo processo de construo do sentido, e mais particularmente o da construo da informao.

    A definio proposta anteriormente tem duas consequncias. A primeira que a informao, apesar do fato de que isso seja pouco satisfatrio, no mensurvel quantitativamente.4 Ela s pode ser verificada atravs de seus efeitos, e estes s podem ser apreendidos com seriedade atravs de uma abordagem qualitativa. A segunda que no se percebe claramente a utilidade de se fazer uma oposio entre informao e comunicao, como o caso de algumas propostas de estudo.5

    UMA FINALIDADE AMBGUA

    Dizamos, a respeito da identidade do informador, que as mdias apresentam-se como um organismo especializado que tem a vocao de responder a uma demanda social por dever de democracia. Justifica-se assim a profisso de informadores que buscam tornar pblico aquilo que seria ignorado, oculto ou secreto. Essa profisso se define como devendo exercer uma funo de servio: um servio em benefcio da cidadania.

    Entretanto, trata-se de um organismo que se define tambm atravs de uma lgica comercial: uma empresa numa economia de tipo liberal e, por conseguinte, em situao de concorrncia com relao a outras empresas com a

    3 Conceitos tomados de emprstimo teoria dos gases e transpostos metaforicamente nos modelos CJbernticos da comunicao, segundo Eco, op. cit., e que aplicamos ao domnio da inteligibilidade discursi>a

    4 O que no significa que em determinados casos no se possa recorrer a um estudo quantitativo para obter dados sobre as circunstncias nas quais a informao produzida (ver o estudo de P. Chara.udeau, G. Lochard e J. C. Soulages sobre "A construo temtica do conflito na ex-Iugoslvia pelo> telejornais franceses ( 1990-1994) ", na revista Mots, n. 47, junho 1996, Paris, Presses de la Fondation des Sciences Politiques.

    5 De analistas, mas sobretudo dos prprios profissionais da mdia, como destaca Y. Lavo in e em "A menmorfose da informao", tudes de communication, n. 15, Bulletin du Cerrei c, Universit de Lille, 1994.

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    finalidade. Por essa lgica, cada uma delas procura "captar" uma grande se no a maior parte, do pblico. Sendo assim, no se pode insistir,

    relao a tais organismos, na hiptese de gratuidade, e menos ainda de jlantropia, que evocamos acima; sua atividade, que consiste em transmitir informao -que tanto pode ser dada espontaneamente quanto procurada ou provocada-, torna-se suspeita porque sua finalidade atende a um interesse diferente do servio da democracia. O imperativo de captao a obriga a recorrer seduo, o que nem sempre atende exigncia de credibilidade que lhecabenafunode"servioaocidado" -semmencionarqueainformao,

    pelo fato de referir-se aos acontecimentos do espao pblico poltico e civil, -nem sempre estar isenta de posies ideolgicas.

    ~Acrescentemos a isso que a informao miditica fica prejudicada porque os efeitos visados, correspondentes s intenes da fonte de informao, no coincidem necessariamente com os efeitos produzidos no alvo, pois este reconstri implcitos a partir de sua prpria experincia social, de seus conhecimentos e crenas. Segundo o contexto no qual aparece, uma informao pode produzir um efeito de banalizao, de saturao, de amlgama ou, ao contrrio, de dramatizao. Se as manchetes dos jornais so diferentes, porque, para se diferenciar do concorrente, cada jornal deve produzir efeitos diferentes. Imaginemos como seria uma imprensa com manchetes idnticas em todos os jornais, com nmeros sem comentrios, transcries de decretos, citaes in extenso.

    No h "grau zero" da informao. As nicas informaes que se aproximam do grau zero, entendido este como ausncia de todo implcito e de todo valor de crena, o que seria caracterstico da informao puramente factual, so aquelas que se encontram nas pginas de anncios dos jornais: os programas dos cinemas, dos teatros e de outras manifestaes culturais; as farmcias de planto, os diversos anncios classificados etc. No que concerne s informaes de carter explicativo, essas tambm no podem pretender a uma espcie de grau zero, que implicaria um carter de unicidade: a pretenso de ser a nica explicao vlida. Isso porque a informao no escapa a um outro paradoxo: cada vez que se d uma explicao, esta sempre pode ser submetida a uma outra inquirio, numa cadeia infinita de "porqus", tendo cada explicao "seu lado de sombr'.6

    6 Como est exposto por M. Mouillaud em 'Tinformation ou la part de l'ombre", tudes de communication n. 15, Bulletin du Cerreic, Universit de Lille, 1994.

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  • Os acontecimentos que surgem no espao pblico no podem ser reportados de maneira exclusivamente factual: necessrio que a informao seja posta em cena de maneira a interessar o maior nmero possvel de cidados-o que no garante que se possam controlar seus efeitos. Sendo assim, as mdias recorrem a vrios tipos de discursos para atingir seus objetivos.

    A INFORMAO NA MULTIPLICIDADE DOS DISCURSOS

    Convm comparar o discurso informativo com outros que Jhe so prximos e com os quais confundido: os discursos propagmdista, demonstrativo e didtico.

    Discurso informativo e discurso propagandista7 tm em comum o fato de estarem particularmente voltados para seu alvo. O propagandista, para seduzir ou persuadir o alvo, o informativo, para transmitir-lhe saber. Em ambos, a organizao do discurso depende das hipteses feitas a respeito do alvo, especificamente a respeito dos imaginrios nos quais este :se move. Assim, tais hipteses constituem filtros que relativizam a verdade do mundo comentado. Constata-se que, se necessrio analisar os fatos de discurso numa perspectiva pragmtica, isto , em relao com a ao ou com os atos que os acompanham, 8 deve-se evitar a ingenuidade de pensar que discurso e ao se ligam por uma relao de causalidade direta. Justamente, os discursos informativo e propagandista so os representantes do fenmeno estritamente linguageiro de fazer passar a comunicao pelo filtro dos imaginrios caractersticos da instncia de produo e da instncia de recepo.9 Vrios estudos cientficos realizados nos Estados Unidos sobre o impacto das campanhas de publicidade admitem que no se podem postular relaes d~ causa e efeito sistemticas entre as intenes publicitrias e os

    7 O discurso propagandista compreende tanto o "publicitrio" quanto o "poltico", embora com e;pecificidades (para a diferena ver nosso artigo "Le discours publicitaire, un geme discursif", na revista -''drcope, :1. 8, setembro 1994, CRDP Versailles.)

    8 M. Mathien destaca, assim como tantos outros, que "toda teoria da informao deve ser colocada em relao com uma teoria da ao, ou dos atos, seja na escala de um indivduo, de uma institui.o ou de um sisrema social", Les journalistes et le systme mdiatique, Paris, Hachette-Communication, 1992. Ver tambm "La thorie de !'agir communicationnel", de Habermas.

    9 Para uma diferena entre os conceitos de "comunicao" e "ao", "visada" e "objetivo", ver nos se u, dialogue dans un modele de discours", em Cahiers de linguistique franaise n. 17, Universit de Geneve.

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    --

    efeitos produzidos nos consumidores potenciais. 10 Isso ainda mais patente no que concerne ao discurso informativo. A relao entre os efeitos visados e os efeitos produzidos bastante frouxa, muitas vezes retardada, no raro

    d. , . 11 inesperada, ou mesmo contra ttona. Entretanto, esses dois tipos de discursos distinguem-se pelo processo de

    veridio. No discurso propagandista, o status da verdade da ordem do que hd de ser, da promessa: um dom mgico oferecido ("a eterna juventude", pelo publicitrio, ou o "bem-estar social" pelo poltico), cuja realizao benfica pra o alvo s se concretizar se este se apropriar do dom. 12 No discurso informativo, o status da verdade da ordem do que jd foi: algo

    ~con!eceu no mundo, e esse novo c~nhecimento proposto no instante de sua transmisso-consumao. Num discurso propagandista, no h nada a provar: o modelo proposto o do desejo. Num discurso de informao, preciso, ao contrrio, provar a veracidade dos fatos transmitidos: o modelo proposto o da credibilidade.

    Discurso informativo e discurso cientfico tm em comum a problemtica da prova. Mas enquanto o primeiro se atm essencialmente a uma prova pela designao e pela figurao (a ordem da constatao, do testemunho, do relato de reconstituio dos fatos), o segundo inscreve a prova num programa de demonstrao racional. A tecnicidade desse programa impede que ele seja desenvolvido num discurso informativo cujo alvo seja muito amplo. Com efeito, o interesse principal do discurso demonstrativo reside na fora argumentativa de seu contedo, como se o destinatrio fosse secundrio,

    13

    ou melhor, como se houvesse o pressuposto de que o destinatrio j

    10 Ver "Pour en savoir plus", que se segue ao artigo "Qu'est-ce qu'un bilan de campagne publicitaire", de Baudru e Chabrol, na revista Mscope n. 8, setembro 1994, CRDP Versailles.

    11 Entre outras razes, o que justifica, ao mesmo tempo, a especificidade de uma cincia da linguagem ante as outras cincias humanas e sociais, e a necessria inrerdisciplinaridade entre elas.

    12 Por um "suposto" ato de consumo, no caso da comunicao publicitria; por um ''suposto" aro de adeso (voto), no caso da comunicao poltica. Mas verdade que as manchetes de certos jornais e sobretudo de revistas assemelham-se cada vez mais aos apelos dos slogans publicitrios; principalmente aqueles que, sob a forma interrogativa, interpelam o leitor. A manchete de uma revista semanal "Como resistir crise?" assemelha-se fortemente a um apelo do tipo "Como eliminar suas rugas numa noite?" para promover um creme anti-rugas. A diferena reside no fato de que a manchete s pretenderia ao status de "conselho"' enquanto o apelo publicitrio se apresenta como vendedor de um sonho.

    13 Evidentemente, o destinatrio no secundrio, pois o sujeito argumentativo s pode argumentar em funo do que supe ser o saber do alvo - ainda que fosse o de uma comunidade cientfica -, e porque necessrio que ele consiga que o alvo compartilhe de sua demonstrao.

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  • interessado de antemo pela proposta do cientista ou do especialista e de que possui um saber tambm especializado. O discurso informativo, contrastivamente, no pode partir desse pressuposto; deve ser organizado levando-se em conta a dissimetria que existe entre o informado r detentor de saber e o informado que se supe em estado de ignorncia. Ora, na maioria das vezes, o informador no tem conhecimento nem do teor do saber de seu destinatrio, nem do que o afeta emocionalmente, nem dos motivos e interesses que o animam.

    Discurso informativo e discurso didtico aproximam-se, embora com diferenas, na atividade de explicao. No uma explicao demonstrativa, como a que se encontraria numa obra cientfica, mas uma explicao explicitante. Esses dois tipos de discursos tm alvos bastante amplos, no especializados, logo, no precisam revelar uma verdade, mas somente coloc-la em evidncia num quadro de inteligibilidade acessvel a um grande nmero de indivduos. Essa atividade a "vulgarizao". Ora, toda vulgarizao , por definio, deformante. Ela depende do alvo construdo pelo sujeito que coma ou explica: quanto mais amplo for o alvo, tanto no plano sociolgico quanto no intelectual e cultural, maior a necessidade de que o saber que deu origem informao seja transformado, ou mesmo deformado, para parecer acess(vel ao alvo. Isso explica, em parte, que a vulgarizao praticada pela televiso seja mais deformante do que a praticada pelo rdio ou pela imprensa.

    A vulgarizao, nas mdias, no se limita a procurar "explicar com simplicidade", como se diz com frequncia nas escolas de jornalismo. Alis, explicar com simplicidade no pode ir alm da utilizao das categorias de pensamento mais comuns possveis a uma populao em seu conjunto: esquemas de raciocnio simples, ou mesmo simplistas, saberes amplamente compartilhados (lugares-comuns, esteretipos) que pouco tm a ver com o que norteou a explicao original, tcnica ou especializada. Quanto mais uma explicao for precisa e detalhada, inscrevendo-se numa reflexo sistmica pela ao de um especialista, menos ela ser comunicvel e explorvel fora do campo de inteligibilidade que a produziu. Mas, alm disso, como a vulgarizao miditica constantemente atravessada por uma visada de captao, isso tende a transform-la numa vulgarizao dramatizada. Desse ponto de vista, pode-se dizer que as mdias trapaceiam cada vez que uma explicao apresentada como a decodificao simplificada de uma verdade

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    --

    como acessvel a todos e a mesma para todos graas ao efeito mgico

    * *

    *

    Dentre esses diferentes tipos de discursos, o informativo tem uma posio central, na medida em que os discursos demonstrativo, didtico e propagandista_ compreendem de algum modo uma parte de atividade

    -informativa. E .isso confere ao sujeito que procura seduzir, persuadir, de~onstrar ou explicar uma posio forte de autoridade, pois em todos os casos detentor de um saber que o outro no possui.

    O discurso informativo no tem uma relao estreita somente com o imaginrio do saber, mas igualmente com o imaginrio do poder, quanto mais no seja, pela autoridade que o saber lhe confere. Informar possuir um saber que o outro ignora ("saber"), ter a aptido que permite transmiti-lo a esse outro ("poder dizer"), ser legitimado nessa atividade de transmisso ("poder de dizer"). Alm disso, basta que se saiba que algum ou uma instncia qualquer tenha a posse de um saber para que se crie um dever de saber que nos torna dependentes dessa fonte de informao. Toda instncia de informao, quer queira, quer no, exerce um poder de fato sobre o outro. Considerando a escala coletiva das mdias, isso nos leva a dizer que as mdias constituem uma instncia que detm uma parte do poder social. 14

    Voltando hiptese levantada no incio, a verdade no est no discurso, mas somente no efeito que produz. No caso, o discurso de informao miditica joga com essa influncia, pondo em cena, de maneira varivel e com consequncias diversas, efeitos de autenticidade, de verossimilhana e de dramatizao.

    14 Dos quais mostraremos os limites, no "Balano crtico".

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  • _Gneros e ti pologias

    A noo de gnero, como a de tipologia que lhe correlata, vem sendo bastante debatida j h algum tempo e se refere a aspectos da realidade linguageira bastante diferentes uns dos outros. Originria da retrica antiga e clssica, 1 abundantemente utilizada pela anlise literria com mltiplos critrios, retomada pela lingustica do discurso a propsito de textos no literrios,2 essa noo tambm est presente na anlise das mdias, acompanhada de qualificativos que a especificam segundo o suporte miditico: os gneros jornalsticos (entenda-se a imprensa escrita), os gneros televisivos, os gneros radiofnicos.

    No entraremos nos detalhes de uma discusso que se estenderia por mais de um captulo, mas convm fazer aqui algumas precises sem as quais no se pode compreender verdadeiramente o mecanismo da escritura miditica.3

    1 Na qual essa distino se limita a trs "gneros oratrios" (deliberativo, judicirio, epidtico). 2 Sobre critrios diversos de caractersticas estruturais dos textos: gneros cientfico, didtico, publicitrio etc., ver

    Dicionrio de anlise do discurso, So Paulo, Contexto, 2004. 3 "Escritura" entendida aqui no sentido do que preside produo do discurso em situao de comunicao, cujo

    resultado o texro.

    203

  • GNERO

    No retomaremos essa noo segundo a tradio literria em razo da multiplicidade dos critrios que utiliza e que no so de muita valia para a anlise dos discursos no lit~rrios,4 pois h gnero e gnero. Um gnero constitudo pelo conjunto das caractersticas de um objeto e constitui uma classe qual o objeto pertence. Qualquer outro objeto tendo essas mesmas caractersticas integrar a mesma classe. Para os objetos que so textos, trata-se de classe textual ou de gnero textual.

    Condies para uma teoria dos gneros

    Trs aspectos devem ser tomados em considerao para determinar uma classe textual: o de lugar de construo do sentido do texto, o de grau de generalidade das caractersticas que definem a classe, o do modo e organizao discursiva dos textos.

    O lugar de construo do sentido corresponde definio que demos na introduo geral: lugar da produo, lugar da recepo, lugar do produto acabado. Nos lugares de produo e recepo, a anlise chegaria a modos de fabricao dos textos, por um lado, de reconhecimento de textos de outro, segundo parmetros prprios a cada um deles. Como prova disso, na produo, os termos utilizados pelos profissionais do jornalismo quando se trata de determinar tipos de escritura ou de encenaes de programas de televiso, e na recepo, as classificaes efetuadas pelos institutos de sondagem ou de medida de audincia. Essas denominaes no coincidem nem entre si nem com as definies dadas por semilogos e analistas do discurso. 5 Alm disso, nada indica que essas categorias possam ser consideradas gneros, embora constituam um princpio de classificao. 6 Em tdo caso, o lugar de pertinncia que escolhemos aqui o do produto

    4 Ver esses critrios em "Les condirions d'une rypologie des genres rlvisuels d'information". RfJeaux n. 81, Paris, CNET, 1997.

    ' Basta, para isso, examinar o emprego do termo talk show. Ver La paro/e confisqu(, Oj>. cir. 6 Ver a tentativa bastante promissora de Guy Lochard nos "Areliers de recherche mchodologiquede l'ina" (Relatrio

    1996) e em "Les images la rlvision. Repere pour un sysreme de classificarion", revista MEl iMdiations et Informarions), n. 6, Paris, I:Harmarran, 1997. Alm disso, preciso lembrar que, de llma outra maneira, os guias de redao elaborados por profissionais ou por escolas de jornalismo partici j>~m de uma tipologia de produo (porque esto no fazer), assim como de uma ripologia do produto acabado (porque esto no dizer).

    204

    acabado, aquele no qual se configura um texto portador de sentido como resultado de uma encenao que inclui os efeitos de sentidos visados pela instncia miditica e aqueles, possveis, construdos pela pluralidade das leituras da instncia de recepo numa relao de cointencionalidade.

    O grau de generalidade das caractersticas textuais tem igualmente sua importncia porque quanto mais gerais forem, menos so discriminantes. Isso ocorre com as grandes funes da linguagem, como as de Jakobson (emotiva, conativa,fdtica, potica, referencial, metalingustica),? de Halliday (instrumental, interacional, pessoal, heurstica, imaginativa, ideacional,

    int~rpessoa/).8 Do mesmo modo, h classificaes que se baseiam num certo nmero de princpios gerais de organizao dos textos (princpios

    - de coerncia, de coordenao, de conclusividade comunicativa, de composio macroestruturante). Num grau menor de generalizao, encontram-se os princpios de classificao um pouco mais operatrios, mas que fornecem ainda classes de atos de linguagem9 (mais do que de textos) muito amplas, como prope Bakhtin, 10 entre gneros primrios, simples, e gneros secuntirios, complexos, classificao que se baseia em condies de interao espontneas ou institucionais. a oposio entre textos dialgicos e textos monolgicos baseada numa diferena de situao de troca - se essa inclui ou no o direito alternncia do turno de fala; 11 tambm a oposio entre oralidade e escrituralidade que se baseia nas diferenas da materialidade linguageira e das condies de produo. Nesse grau de generalidade das classes, coloca-se o problema de saber se as caractersticas que as definem so propriedades constituintes ou especficas. Como propriedades constituintes, definem grandes classes antropolgicas (o ato de linguagem humano em oposio a outras linguagens ou a outros comportamentos humanos); como propriedades especficas, podem ter o papel de traos definidores de um ato de linguagem ou de um texto, cuja conjuno poder especificar

    7 Ver Jakobson, R. Essais de linguistique gnrale, Paris, Minuir, 1963. 8 Ver Halliday, M.A.K., "The functional basis of language", em Bernsrein, D. (ed.), Class, codes and conrrol,

    vol. 2, London, Rourledge and Kegan Paul, 1973; "Dialogue wirh H. Parrer", em Parret, H. (ed.), Discussing language, Mouron, La Haye, 1974.

    9 Aqui, "aro de linguagem" no tomado no sentido da filosofia analtica, mas numa acepo ampla de

    produo linguageira. 10 Bakhtin, M. Esthtique de la cration verba/e, Paris, Gallimard, 1984. 11 Ver Charaudeau, P., 'Tinterlocution comme interaction de strargies discursives", revista Verbum, T. VII,

    Fase. 2-3, Universir de Nancy n, 1984.

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  • um tipo; por exemplo, um tipo de texto poderia ser caracterizado pelos traos: "oralidade" + "dialogismo" + "dominante conativ' +"em situao espontne'. Entretanto, no certo que um conjunto de traos definidores seja suficiente para constituir um gnero.

    A questo dos critrios de organizao dos textos ainda mais crucial, pois se trata de escolher entre dois objetos: o discurso como procedimento de organizao ou o discurso como texto configurado. As tipologias que propem distinguirtextos "narrativos", "descritivos", "argumentativos", "explicativos"12 etc. ou textos "injuntivos", "declarativos", "promissivos" so tipologias de procedimentos discursivos. Mas esses tipos no so necessariamente distintivos dos tipos de texto. Na verdade, muitos textos so compsitos do ponto de vista dos procedimentos de organizao; eles podem, em algumas de suas partes, ser ora descritivos, ora narrativos, ora argumentativos. Certamente poder-se-ia constatar que alguns procedimentos so dominantes em tal tipo de texto: por exemplo, os verbetes de dicionrio so predominantemente descritivos, as placas de trnsito so, na maioria, injuntivas. Entretanto, no certo que se possa fazer dessas dominantes um princpio de definio dos gneros. O mesmo ocorreria com os gneros audiovisuais: distines entre ao vivo e diferido, continuidade e montagem, tipos de roteirizaiio, regimes de exibio etc. so procedimentos de organizao da semiologia visual que no podem ser denominados gneros propriamente ditos, embora, tambm aqui, possam existir coincidncias.

    Gnero informao miditica

    Propomos definir o gnero de informao miditica segundo o resultado do cruzamento entre um tipo de instncia enunciativa, um tipo de modo discursivo, um tipo de contedo e um tipo de dispositivo:

    o tipo de instncia enunciativa caracteriza-se pela origem do sujeito falante e seu grau de implicao. A origem pode estar na prpria mdia (um jornalista) ou fora da mdia (um poltico, um especialista, uma personalidade convidada a falar-escrever na mdia). Essa origem

    12 Ver Adam, J. M., Les textes: types et prototypes, Nathan Universit, Paris, 1994; Hamon, P. An.t~vse du descriptif, Paris, Hachette-Universit, 1981.

    206

    marcada pela maneira pela qual identificado o autor do texto (escrito ou oral) e pelo lugar da mdia onde est inserido. Isso permite distinguir, por exemplo, o texto escrito por uma personalidade do mundo poltico ou intelectual (instncia externa) e que aparece numa tribuna, do editorial escrito pelo diretor de um jornal (instncia interna). o tipo de modo discursivo transforma o acontecimento miditico em notcia atribuindo-lhe propriedades que dependem do tratamento geral da informao. Os modos discursivos organizam-se em torno de trs categorias de base definidas anteriormente: "relatar o acontecimento", "comentar o acontecimento", "provocar o acontecimento". Isso permite distinguir, por exemplo, a reportagem ("aconteimento relatado"), o editorial ("aconte-cimento comentado") e o debate ("acontecimento provocado"). o tipo de contedo temdtico constitui o macrodomnio abordado pela notcia: acontecimento de poltica nacional ou estrangeira, acontecimento esportivo, cultural etc. Isso permite fazer uma distino que nem sempre fica clara nas mdias entre seo e rubrica. A seo procede a um recorte do acontecimento em macrotemas correspondendo a grandes reas de tratamento da informao ("Poltic', "Exterior", "Sociedade", "Esportes", "Cultur'); a rubrica corresponde combinao de um modo discursivo com um tema particular que se situaria no interior de uma seo (por exemplo, na seo "Cultur', as rubricas: cinema, teatro, artes plsticas). Mas certo que a denominao instvel e que se fala, no uso corrente como no profissional, tanto da rubrica das "amenidades" quanto da rubrica ou seo "exterior", ou da rubrica "cultura e cinem'. De qualquer maneira, da combinao entre modo discursivo e tema que se pode distinguir subgneros. Assim, possvel diferenciar tipos de debate segundo o tema, que pode ser ligado a um universo cultural, cientfico ou de sociedade.13

    o tipo de dispositivo, por sua materialidade, traz especificaes para o texto e diferencia os gneros de acordo com o suporte miditico (imprensa, rdio, televiso). Isso permite distinguir, por exemplo, uma entrevista radiofonica de uma entrevista televisionada pela simples presena da imagem nesta ltima e suas mltiplas incidncias nos papis desempenhados por entrevistador e entrevistado.

    13 Ver La tlvision. Les dbats culturels,"Apostrophes", Paris, Didier rudition, 1991.

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  • Discurso das

    UMA TIPOLOGIA DOS TEXTOS DE INFORMAO MIDI TICA

    O que tipologia?

    Tipologia o resultado de uma determinada classificao dos gneros. Para construir uma tipologia necessrio operar uma escolha das variveis que se decide levar em conta, pois difcil construir uma tipologia com muitas variveis. O problema, no caso, a eficcia do modelo proposto: ao se buscar integrar o maior nmero de variveis possveis em nome da complexidade dos gneros, ganha-se em compreenso, mas perde-se em legibilidade, pois pelo fato de ser complexa, a representao da ti pologia torna-se inoperante; ao se reter um nmero limitado de variveis, ganha-se

    L 208

    Reportagem

    Ttulos e composio Ml

    Investigao

    Figura 6

    Instncia interna ( + engajada)

    t Editorial Crnica

    {cinema, livro)

    Comentrio-Anlise (de jornalistas especializados)

    ~ E ntrll\i9:o-Debote

    AR (-engajada) AC (- engaja-:;:da-,) -------- ~p

    Notas-boxes (despachos) i

    Anlises de especialistas exteriores

    I

    Instncia externa ( + engajado)

    Tri bLn 'J -:pinifio Tri bl u-poltico

    ----------------------------------Gneros e tipologias

    em legibilidade, mas perde-se em compreenso, pois a tipologia torna-se redutora. Pode-se, entretanto, escapar a esse dilema procedendo a uma hierarquizao: constri-se uma tipologia de base, em seguida, inserindo-se outras variveis no interior dos eixos de base, constroem-se tipologias sucessivas que se encaixam no modelo de base. Ser esse nosso princpio de tipologizao dos gneros: uma tipologia de base que entrecruza os principais modos discursivos do tratamento da informao ("acontecimento relatado", "acontecimento comentado", "acontecimento provocado") colocados sobre

    - _um eixo horizontal, e os principais tipos de instncia enunciativa (instncia de "origem extern', instncia de "origem intern'), s quais superpe-se um grau de engajamento (+I-), colocados sobre um eixo vertical.

    Comentrios

    O eixo horizontal da tipologia no graduado entre dois polos opostos. Trata-se do eixo no qual se situam os modos discursivos em trs grandes zonas: numa extremidade, o "acontecimento relatado", zona na qual se impe o acontecimento exterior; na extremidade oposta, o "acontecimento provocado", zona na qual se impe o mundo miditico; entre as duas, o "acontecimento comentado", pois este pode abarcar os outros dois.

    O eixo vertical ope duas zonas de instanciao do discurso miditico, de acordo com as intervenes que partem de jornalistas ou de pessoas exteriores ao organismo de informao. Em cada uma dessas zonas inscreve-se um eixo graduado que representa o grau de engajamento, maior ou menor, da instncia de enunciao. Entenda-se por engajamento o fato de que o enunciador manifeste mais ou menos sua prpria opinio ou suas prprias apreciaes na anlise que prope, ou na maneira de encenar o acontecimento (como nas entrevistas ou debates).

    Na zona superior, temos o editorial e a crnica, que se incluem na categoria "acontecimento comentado" e aparecem na parte superior do eixo. Ttulos, composio da primeira pgina e perfis encontram-se na zona de "acontecimento relatado", mas integrando elementos de comentrio mais ou menos explcitos, da porque se acham entre AR (acontecimento relatado) e AC (acontecimento comentado), com um grau mdio de engajamento. Os comentrios e anlises dos especialistas jornalistas situam-se no meio do eixo horizontal porque se incluem na categoria de "acontecimento comentado",

    209

  • e esto colocados numa altura mdia porque, embora os jornalistas sejam especialistas, eles so analistas engajados. A reportagem est mais alinhada com "acontecimento relatado" e a investigao (ou pesquisa) est mais orientada para uma problemtica, logo, mais prxima do "acontecimento comentado". Mas bem difcil estabelecer uma distino quanto ao grau de engajamento, que depende do modo de presena do jornalista em sua enunciao. Digamos que, idealmente, na investigao o jornalista deveria estar mais apagado do que na reportagem. 14 A posio do gnero entrerJista-debate se justifica pelo fato de que a instncia miditica que monta todas as peas do acontecimento pela exibio espetacular da palavra, mesno quando essa instncia deva obrigatoriamente fazer o jogo da transparncia.

    Na zona inferior, destacaremos somente que os especialista>-anaiistas so geralmente especialistas de cincias humanas e sociais ou tcnicos num domnio particular, da o seu menor engajamento. Nas tribunas de opinido, em contraste, os que fazem intervenes so especialistas exteriores instncia miditica, engajados em suas declaraes: comentam o acontecimento e, muitas vezes, ao faz-lo, o provocam. 15 Quanto aos polticos, tambm instncia externa, apesar de todo o desejo que teriam de proceder a uma anlise oh j etiva dos fatos, expressam sempre um ponto de vista partidrio (engajamento +).

    Esses diferentes gneros so fundadores dos modos de escritura jornalstica (oral ou escriturai) qualquer que seja o suporte miditico. Embora nem todos estejam igualmente presentes nos diferentes suportes, cada um deles portador de especificidades: o rdio, por exemplo, desenvol\'eu o modo entrevista jogando com as sutilezas da voz; a televiso conferiu ao debate o que ele no tinha na escrita, a saber, alternncias de rplicas diretas e regulao das intervenes por encenaes diversas, oferecendo em espetculo uma democracia miditica. Esses diferentes suportes tratam a reportagem, a investigao, o perfil, a anlise etc. cada um sua maneira, constituindo assim subgneros.

    Deve-se notar, igualmente, que se esses gneros so inerentes ao discurso jornalstico, tambm certo que eles podem mudar com o tempo, de acordo com a prpria evoluo da tecnologia dos suportes, com as modas vigentes

    14 Essa distino ainda mais difcil de estabelecer para a televiso. 15 Com efeito, muitos acontecimentos so provocados pelos debates que aparecem nas mdias (o GATTe a ex

  • Sobre alguns gneros e variantes de gneros

    Os gneros de informao so, como j demonstramos, o resultado do entrecruzamento das caractersticas de um dispositivo, do grau de engajamento do sujeito que informa e do modo de organizao discursivo que escolhido. Alm disso, como o contrato miditico se desdobra numa relao triangular entre uma instncia de informao, um mundo a comentar e uma instncia consumidora, trs desafios esto presentes na construo de qualquer gnero de informao: um desafio de visibilidade, um desafio de inteligibilidade e um desafio de espetacularizao, que fazem eco dupla finalidade de informao e de captao do contrato.

    O desafio de visibilidade faz com que as notcias selecionadas pela instncia miditica sejam percebidas o mais imediatamente possvel, com que elas possam atrair o olhar ou a ateno e que possam ser reconhecidas simultaneamente em sua distribuio temtica. Esse desafio corresponde ao que se costuma chamar de "efeito de .anncio", indispensvel para que se produza a entrada dos Ali Babs, que so os consumidores de notcias na caverna da informao miditica, e cria uma estruturao "sinptic' do processo evenemencial.

    O desafio de inteligibilidade leva, por um lado, a operar hierarquizaes no tratamento das notcias, tratadas ou como acontecimento relatado ou como acontecimento comentado ou provocado. Por outro lado, leva a trabalhar a encenao verbal (a escritura), visual (a montagem icnico-verbal) e auditiva (a fala e os sons) de tal maneira que d a impresso de que

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    o contedo da informao acessvel. Esse desafio cria uma estruturao "taxionmic' do processo evenemencial.

    O desafio de espetacularizao leva a trabalhar essas diferentes encenaes, de tal maneira que, no mnimo, elas suscitem interesse e, na melhor das hipteses, emoo. Esse desafio cria uma estruturao imaginria do processo evenemencial.

    Esses trs desafios coexistem e se misturam intimamente nos dispositivos, tanto na primeira pgina dos jornais, dos semanrios e das revistas, quanto na composio dos telejornais e'de algumas reportagens. Alguns dispositivos, no entanto, esto mais ligados do que outros ao cumprimento desses desafios.

    ENTREVISTA: PALAVRA DA INTERIORIDADE

    Ao descrever um dos dispositivos do contrato miditico, assinalvamos que a caracterstica principal do suporte rdio, "a voz", instaurava uma relao muito particular entre instncia miditica e receptor: a de uma intimidade e conivncia intelectual, ausentes tanto da imprensa quanto da televiso. Intimidade, no melhor e no pior, porque a voz revela audio, atenta ou inconsciente, os movimentos da afetividade, sentimentos favorveis ou desfavorveis, o tremor das emoes, frieza ou paixo, as vibraes do esprito, sinceridade ou mentira. Conivncia (ou rejeio) porque a voz se manifesta numa relao de oralidade que implica, segundo modos de regulao diversos, trocas de rplicas, logo, dilogo. A unio dessas duas caractersticas, situao dialgica e relao de intimidade, explica porque a mdia rdio seja, por excelncia, a mdia da entrevista. No se trata, evidentemente, de excluir o rdio de outras especificidades, tais como o boletim de informao, o dossi de imprensa' ou o relato,2 mas esse gnero talvez o que mais contribui para a deliberao democrtica pelo fato de ser palavra pura e palavra questionada.

    Dentre as diferentes situaes dialgicas, existem trs que esto prximas umas das outras, a entrevista, o bate-papo e a conversa, que, no entanto,

    1 Ver "Approche du phnomene citationnel dans un corpus radiophonique", por Claquin, Franoise. Dissertao de DEA, Universit de Paris v.

    2 Ver "Le rcit radiophonique et son coute", por Anne-Marie Houdebine, em Aspects du discours radiophonique, Didier rudition, Paris, 1984.

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  • merecem ser diferenciadas. De maneira geral, essas situaes tm em comum o fato de serem uma forma de troca linguageira na qual os dois parceiros esto fisicamente presentes um diante do outro3 e tm direito a uma alternncia nos turnos de fala. Elas se distinguem pelo modo de regular essa alternncia. O bate-papo supe que os dois parceiros tm igualdade de status, que eles tratam do mesmo tema com uma competncia que se supe igual e com n. 53, P:Lris, Eres 1989.

    7 Essa situao se produz nas investigaes, na consulta mdica, nas experimentaes ciendfia_, etc., qualquer que seja a sua denominao.

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    bem comum'', pelo fato de que sua presena no rdio o consagra nesse papel; o terceiro de um "Estou aqui para ouvir alguma coisa de interesse geral que me seja dada como uma revelao", pelo fato de que ele est ali para saber. A partir destas condies de base so postas em cena diversas variantes de entrevistas:

    a entrevista poltica, que se define pelo propsito de concernir vida cidad, e pela identidade do entrevistado. Este, enquanto convidado, um ator representante de si mesmo ou de um grupo que participa da vida poltica ou cidad, e que tem um certo poder de deciso ou de presso. Ele sabe que-o que disser ser-interpretado de maneiras diversas, razo pela qual no pode se permitir dizer as coisas como ele pensa. O entrevistador, por seu turno, tenta tirar do convidado o mximo de informaes e fazer aparecer as intenes ocultas deste, com o auxlio de um jogo de questionamento sutil alternando, ou misturando, falsa inocncia, falsa cumplicidade, provocao, e trazendo luz as posies contraditrias do convidado; mas ele deve, sobretudo, parecer srio e competente, mostrando que conhece bem o domnio em questo. A entrevista poltica um gnero que se presume pr disposio da opinio pblica uma srie de julgamentos e de anlises que justifiquem o engajamento do entrevistado. Esse gnero se baseia ento num "-preciso-dizer-a-qualquer-preo".

    a entrevista de especialista (ou de expertise), que se define por um propsito tcnico concernente a diversos aspectos da vida social, econmica e cientfica. Um especialista, sbio, experto, geralmente desconhecido do grande pblico (a no ser que se trate de um habitue), cuja competncia seja reconhecida ou suposta, convidado para responder a questes tcnicas, esclarecer um problema, orientar o debate pblico sobre o tema tratado, sabendo que deve simplificar sua explicao para torn-la acessvel a no especialistas. O apresentador representa ento o papel do questionador ingnuo, como se ocupasse o lugar do cidado de base, de tradutor (atravs de reformulaes) para simplificar ainda mais a explicao, de animador, para tornar a entrevista viva e atraente, fragmentando-a em nome de regras profissionais. A entrevista de expertise um gnero que se resume a fornecer opinio pblica um conjunto de anlises objetivas, trazendo a prova de sua legitimidade pelo "saber" e pelo "saber dizer".

    a entrevista de testemunho, que se define por seu propsito, de ser ora o relato de um acontecimento considerado suficientemente interessante para ser tratado pelas mdias, ora uma breve opinio emitida em relao aos fatos da

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  • atualidade. O entrevistado, na maior parte do tempo, annimo, tendo 0 papel de testemunhar por ter sido observador ou vtima do acontecimento em questo. Presume-se que relate apenas o que viu-ouviu e nada mais, sem julgamento de valor e se possvel com emoo, a menos que ao se considerar representante do cidado mdio, sinta-se legitimado para reagir. Em alguns casos presume-se que a testemunha represente uma categor[a de indivduos (o trabalhador das minas, o pastor )8 cujo destino tenta -se definir ao produzir uma "histria de vid' .9 O entrevistador tambm faz o jogo da emoo pela maneira de fazer perguntas ou de fazer comentrios, mas, alm disso, contribui para fragmentar ainda mais a entrevista, pois um bom testemunho deve ser breve. A entrevista de testemunho um gnero que se presume confirmar a existncia de fatos e despertar a emoo, trazendo uma prova de autenticidade pelo "visto-ouvido-declarado". a entrevista cultural, que se define igualmente por seu propsito que trata, no caso, da vida literria, cinematogrfica, artstica, procurando penetrar os mistrios da criao. O convidado, geralmente autor de obras publicadas (ou simplesmente um crtico), tem maior ou menor notoriedade, mas, de todo modo, fica consagrado pelo simples f.to de ter sido convidado. O entrevistador representa vrios papis discursivos, de intimidade, de conivncia, de entusiasmo, visando, pelo conhecimento que possui a respeito da obra do autor, arrancar uma ex-pltcao que seria suscetvel de revelar os arcanos do mistrio da criao artstica, como se esta dependesse de uma intencionalidade consciente. Com isso, o convidado, protegendo o seu mistrio, tenta escapar o tempo todo ao questionamento no qual o entrevistador quer encerr-lo. A entrevista cultural um gnero que se presume enriquecer os conhecimentos do cidado, e que se justifica pela resposta pergunta: .. Como que ele faz?" que se ope ao "Como funciona?" do especialista. a entrevista de estrelas: seu propsito diz respeito vida das personalidades do mundo do espetculo (atores, cantores etc.). O convidado, mais ou menos em evidncia, est obrigado a aparecer na mdia e fazer uma boa figura para alimentar sua notoriedade; ele se presta, com maior ou menor boa vontade, s perguntas do entrevistador, que procura faz-

    8 Como no programa Radioscopies de Jacques Chance!. 9 Ver nosso 'Tinterview mdiatique: qui raconte sa vie?", Cahiers de smiotique textu.el, n. 8-9, Universit de

    Paris x, 1986.

    216

    lo falar de sua vida particular. Este ltimo, com efeito, baseando-se no conhecimento e no convvio com o mesmo meio artstico, utiliza estratgias discursivas ora de conivncia e de seduo, 10 ora de provocao, e mesmo de impertinncia e insolncia, 11 para tentar penetrar no espao privado e no universo de intimidade do convidado.12 Pode-se dizer que esse gnero exibe opinio pblica uma srie de apreciaes emocionais visando a suscitar um "prazer culpado" .13

    Problemas de credibilidade

    A entrevista jornalstica, radiofnica ou televisiva um gnero que -obedece a um conjunto de limites. H um problema de credibilidade no subgnero poltico, na medida em que se pode prever antecipadamente as perguntas e as respostas: perguntas provocadoras mas pouco convenientes do entrevistador, com direito de resposta difcil de levar a bom termo, respostas de defesa, de esquiva ou de contra-ataque do entrevistado, quer sejam governantes no poder ou membros da oposio. Trata-se de uma mecnica "previsvel demais para ser honest', isto , para ser credvel.

    Problema de credibilidade igualmente na medida em que as entrevistas de testemunho (e em alguns casos tambm as de expertise) destinadas a autenticar os fatos so mais pretextos do que provas: a fragmentao da entrevista (brevidade no tempo e interrupo das respostas por comentrios), a acumulao das testemunhas de opinio (entrevista de rua) mais ou menos selecionadas em funo do interesse das respostas, produzem um efeito de "entrevistas-libis" da informao.

    O gnero esbarra tambm numa contradio que tem a ver com o valor simblico que se atribui fala numa dada comunidade cultural. Quanto mais complexo o fenmeno a explicar, tanto mais o pensamento profundo e necessita de um tempo de fala mais longo. O que profundo e complexo no pode ser expresso brevemente. O saber precisa de tempo e de silncio.

    10 Os animadores desse tipo so Michel Drucker e Jos Artur. 11 Como Jos Artur, Pierre Bouteiller, Gilbert Denoyan. 12 V-se o mesmo em entrevistas feitas durante os telejornais, como aconteceu numa derrapagem memorvel de

    Patrick Poivre D'Arvor ao entrevistar a comediante Batrice Dalle. 13 "Culpado" porque o contrato miditico de informao s deve abordar o espao pblico. Mostrando o espao

    privado dos indivduos, as mdias colocam o receptor na posio de voyeur.

    217

  • Mas, por outro lado, quanto mais longo o tempo de fala, tanto mais a ateno e mesmo o interesse decrescem, ainda mais porque, na informao miditica, supe-se que o pblico-alvo deva ser captado o tempo todo. Isso, muitas vezes, resolvido por uma diferenciao de pblicos segundo as estaes de rdio (France lnter/France Culture) ou pelos tipos de programas (Pop Club/ Radioscopie) nos quais os entrevistadores do uma importncia maior ou menor ao silncio ou continuidade da palavra do entrevistado.

    Enfim, coloca-se a questo, para os entrevistadores, de saber em que medida legtimo apoiar-se em rumores ou esteretipos para fazer reagir os entrevistados. Rumores e esteretipos14 so fenmenos diferentes, mas os dois resultam de discursos que circulam nos grupos sociais, os quais se constituem e se fixam - ainda que temporariamente - em discursos de evidncia. O simples fato de inseri-los numa pergunta os reifica e lhes confere um certo valor de verdade em nome do qual "no h fumaa sem fogo".

    DEBATE UMA ESPETACULARIZAO DO CONFLITO \'ER3AL

    O debate tambm um gnero central, particularmente na releviso francesa. No se deve consider-lo num sentido restrito e incluir, por exemplo, s o que a televiso chama de debate. Pode haver debate, por exemplo, nos programas de atualidades, nos talk shows, nos programas polticos, culturais, esportivos etc. Estudamos esse gnero em duas ccasies, sob formas diferentes: o "debate cultural"15 e o talk show, 16 o que nos permitir retomar os componentes que correspondem s variveis des~e gnero.

    O debate uma forma que, como todos sabem, rene uma srie de convidados em torno de um animador para tratar de um determinado tema, e completamente organizado e gerenciado pela instncia miditica. Desse ponto de vista, ele est situado na parte superior (instncia interna) direita (acontecimento provocado) de nossos eixos de tipologizao: 17

    14 Estes esto presentes em perguntas gerais e convencionais do tipo: "Ser que, depois de rodos es:s filmes, voc compreende melhor os homens?"; "O sistema educativo bom ou ruim?"; "A violncia te caLSl .nedo~

    " No Centro de Anlise do Discurso da Universidade de Paris XIII. Ver La tli!JisiMz. Le5 t:bats culturels. "Apostrophes", op. cit.

    16 No Centro de Analise do Discurso, em colaborao com o Grupo de Pesquisa sobre a Fala, d;;. UnJYersidade de Paris VIII, o que resultou em duas publicaes: Paroles en images, images de paroles, op. cit. e Lapzca:e co>ljisque, um genre tlvosuel: le talk show, op. cit.

    17 Ver a figura 6 no captulo precede