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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DISCURSOS E PRÁTICAS DE MATERNIDADE: OLHARES SOBRE AS
REITERAÇÕES E INSURGÊNCIAS DE MULHERES POBRES
Socorro Letícia Fernandes Peixoto1
Antônio Cristian Saraiva Paiva2
Resumo: Essa pesquisa se origina da minha experiência com mulheres pobres num serviço de obstetrícia
em uma maternidade pública, em Fortaleza, a qual despertou-me o desejo de entender as lógicas das
ações construídas por mulheres-mães, inclusive de gerações diferentes, que desafiam modelos de
maternidade privilegiados nos discursos médicos e estatais, permeados por regulações biopolíticas do
corpo e da subjetividade femininas. Esse estudo, como parte da pesquisa de doutorado em curso,
investigará discursos e experiências sobre maternidade, sob um olhar interseccional de raça/etnia,
geração, classe, sexualidade (Brah, 2006; Piscitelli, 2008). Os sujeitos da pesquisa são mulheres pobres,
especificamente aquelas que subvertem o ideal de maternidade, mediante práticas “insurgentes” que
potencializam novos modos de subjetivação femininos. Pautar-se-á nas observações das convivências
entre mulheres neste hospital, onde a ritualidade do parto ganha concretude. O trabalho de campo foi
iniciado com as mulheres já fora do hospital, visando constituir um campo de interações entre as mulheres
gestantes ou puérperas e mulheres mais velhas, sendo suas mães ou sogras, a fim de adentrar nas
narrativas de suas trajetórias de vida. Indaga-se: como essas mulheres organizam a experiência da
maternidade? Como as trocas intergeracionais sobrevêm através da “agência coletiva” (Mahmood, 2006)?
De que modo são capturadas pelos agenciamentos médico-estatais das suas maternidades e de que modos
os subvertem?
Palavras-chaves: Maternidade. Mulheres pobres. Corpo. Agência feminina
Este artigo constitui-se como parte inicial da minha pesquisa de doutorado e visa
compreender os discursos e práticas de maternidade apresentados nas trajetórias sociais
das mulheres pobres, sob olhar interseccional de gênero, classe, geração. A
maternidade, ao longo da história, tem sido objeto regulado pelos discursos médicos e
estatais. Desse modo, mediante a circulação de saberes e poderes, representações são
construídas e reconstruídas em torno dessa experiência tendo como base as disposições
dos contratos binários de gênero e a garantia da reprodução humana, a partir do sistema
cultural de cada lugar.
Para tanto, intento relacionar os discursos normativos estatais relativos à
maternidade e as lógicas que perpassam a vida das mulheres mães, em contextos de
pobreza. Apoio-me nos estudos de gênero vinculados às epistemologias feministas
contemporâneas articuladas às ideias foucaultianas e às teorias desconstrutivistas que
posicionam-se criticamente diante das concepções universais de sujeito racional
iluminista e moderno. Não obstante, os estudos sociológicos e antropológicos pós-
1 Doutoranda em Sociologia, Universidade Federal do Ceará- UFC, Fortaleza, Brasil. 2 2 Pós Doutor em Sociologia, Universidade Federal do Ceará- UFC, Fortaleza, Brasil.
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coloniais de base feminista enfatizam as diferenças de costumes, vozes e pontos de
vistas femininos.
Pretendo compreender tanto as formas pelas quais os mecanismos de
normatização operam na vida das mulheres inculcando um modo de desenvolver a
maternidade, a partir do controle dos seus corpos, quanto perceber as linhas de fuga, os
novos modos de subjetivação possíveis que essas mulheres desenvolvem em contextos
adversos de privações materiais e simbólicas.
Inicialmente, discorro brevemente sobre os enunciados e práticas hegemônicas
na sociedade moderna ocidental e suas inscrições nos corpos femininos, com ênfase nos
aspectos relacionados à construção de um modelo de maternidade hegemônico e os
tensionamentos a esse modelo. Num segundo momento, recorro aos momentos
preliminares da minha pesquisa de campo e apresento trechos de narrativas de algumas
experiências de maternidade das mulheres em contexto de pobreza, inclusive de
gerações diferentes.
Arrisco-me pois, a apontar alguns aspectos ambivalentes presentes nas falas das
mulheres pobres que ora reiteram discursos hegemônicos próximos ao ideal materno,
ora se dobram sob formas possíveis e reais de ser mãe. Essas narrativas são marcadas
por contextos de desigualdades de classe social, somados às agências femininas e às
minhas incursões por esses territórios, em especial, o Morro da Vitória situado na
periferia de Fortaleza.
Maternidades: entre consensos e dissidências
Os discursos sobre os corpos femininos fizeram-se presentes nos mais diferentes
momentos históricos da humanidade. Na era moderna, dada as mudanças históricas,
econômicas, sociais e culturais pelas quais passaram a sociedade ocidental, novos
enunciados e práticas são gestados baseados em formas sutis de poderes que passam a
controlar a vida dos indivíduos e das populações. Nesse sentido, o controle sobre a
sexualidade e o corpo feminino ocorreram em meio a elaboração de novos saberes,
baseados no modelo biomédico que tanto autorizavam e padronizaram modelos de viver
a sexualidade, a contracepção, a reprodução, como criminalizam práticas que se
contrapõem ao saber hegemônico.
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Nesse artigo, o corpo, longe de ser um receptáculo da cultura, é situado como
um agente que produz e recebe discursos. (Almeida, 2004). Portanto, produz sentido e
tem uma agência. Ao abordar as esferas discursivas sobre os corpos femininos, ao
contrário de reificar a dicotomia entre linguagem e experiência, procuro compreendê-las
como faces que se interpenetram.
Nas sociedades modernas ocidentais o corpo está diretamente relacionado com a
noção de indivíduo, o corpo encerrado em um eu faz fronteira com um outro. Desse
modo, as transformações pelas quais o mundo moderno passou, no tocante às
revoluções burguesas, a materialidade das relações sociais estabelecidas no mundo
industrial e o avanço do individualismo como estrutura social potencializaram a
conformação do corpo do sujeito moderno restrito a si mesmo, cuja noção de pessoa
cristaliza-se em torno de um eu.
Foucault (1987) relata que a partir do século XVII, com a emergência das
sociedades burguesas modernas, uma nova anatomia política passou a ser gestada, a
partir de minucioso processos de controle das operações do corpo. O denominado poder
disciplinar intenta técnicas e métodos de sujeição constante dos corpos, adestrando-os e
tornando-os dóceis e economicamente úteis. Esse “investimento político e detalhado do
corpo” (1987, p. 120) não cessaram de ganhar vários campos, como se tendesse a
alcançar o corpo social inteiro.
O desenvolvimento desse poder sobre a vida se expressa nas disciplinas do
corpo e nas regulações da população. Esses dois polos se estendem de forma interligada,
mediado por relações. O primeiro denominado de biopoder centra-se no corpo como
unidade dos indivíduos, como máquinas, no seu adestramento, no crescimento paralelo
de sua docilidade e utilidade. O segundo polo, chamado pelo autor de biopolítica centra-
se sobre a população, no corpo espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser
vivo e como suporte a processos biológicos.
Foucault (1987) aposta em práticas e relações de poder que se exercem em
níveis variados e tecem uma rede produtiva sob uma eficácia produtiva que atravessa o
corpo social. O caráter relacional do poder em Foucault (2007) comporta um conjunto
de relações de forças que são apresentadas pelo autor como resistências, pontos móveis
e transitórios que se distribuem pela estrutura social.
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Nessa ótica, o poder está imbricado nos regimes de verdade que são produzidos
pelos discursos científicos e institucionais de cada sociedade. Esses discursos circulam a
partir dos agentes sociais que ora disciplinam os corpos individuais, a exemplo da
ciência médica e da medicalização dos corpos, ora regulam as populações, tais como os
grupos profissionais inseridos nas instituições disciplinares.
Foucault (2014) retorna à moral greco-romana antiga e refere-se às artes da
existência, sendo estas práticas refletidas e voluntárias em que os sujeitos não somente
fixam regras de conduta, como também procuram modificar-se em seu singular e fazer
de sua vida uma obra portadora de valores estéticos. É mister destacar que essa moral
não é endereçada às mulheres, mas sim orientada para os homens, portanto, pensada,
escrita e ensinada para os homens. Com o Cristianismo, as artes das existência e as
técnicas de si perderam muita importância, sendo integradas no exercício do corpo
pastoral e, posteriormente, em práticas de tipo educativo, médico e psicológico. Em
relação aos domínios das sexualidade, o casamento monogâmico heterossexual era
direcionado à função procriadora.
Os discursos que imperavam nas sociedade modernas ocidentais sobre os corpos
femininos davam destaque a sexualidade feminina destinada a procriação. Esses corpos,
nesse período, deveriam ser privados de quaisquer gozo que “desordenassem” o modelo
de familiar nuclear moderna, sob a égide do poder masculino. Um novo sentimento de
família é gestado a partir dos investimentos médicos e estatais. A família nuclear
moderna ao ser considerada a partir de então, a esfera de socialização primária das
crianças reverbera um sistema de alianças voltado para a descendência, baseado no
controle higiênico dos corpos dos indivíduos dada as exigência da sociedade industrial.
Esses discursos pautados no controle dos corpos femininos são instituídos pela
Igreja, pela ciência, pela medicina, pela família e mobilizam agenciamentos que
produzem uma eficácia simbólica, uma vez que seus efeitos de verdade produzem ora
“adesão” das mulheres, ora as resistência femininas ao instituído.
Em relação à maternidade sabe-se que mediante um trabalho de inculcação que
perpassa a ritualidade do parto, constrói-se culturalmente uma posição de privilégio
dentro do universo feminino. Destaco pois, que essa demarcação institui uma
naturalidade ao “ser mãe” (inclusive, pelos atos de fala) ao que arbitrariamente foi
construído pela cultura que vincula o feminino ao materno. Essa construção não foi
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somente imposta às mulheres, mas contou com sua incorporação, legitimando um
devotamento aos filhos, em que tudo o que subverte a essa premissa é tido como
ilegítimo, estigmatizado e tido como anormal.
Badinter (1995) relata que o amor materno, no fim do século XVIII, parecia ser
um conceito novo, o qual impulsionava um sentimento que outorgava às mulheres,
inicialmente àquelas pertencentes as classes burguesas, a desempenharem ações de
completa devoção à sobrevivência das crianças. A autora (1985) em consonância com
os argumentos de Donzelot (2001) expõe que, ao longo do século XIX, a mulher passou
a ser a responsável direta pelo bem-estar dos filhos. Nessa ordem, o bebê e a criança
transformaram-se em figuras centrais de preocupação materna. Essa nova mãe tornou-se
a responsável pela saúde e educação do filho.
No Brasil, o modelo de família nuclear moderna importado do seio da
burguesia europeia no século XIX coexistiu com os códigos atualizados da família
patriarcal do período colonial. Durante a Colonização brasileira e com o apoio da Igreja,
dos teólogos, moralistas, confessores e médicos desenvolveram dispositivos que
favoreciam a domesticação feminina, a normatização de seus corpos e almas,
esvaziando qualquer saber ou poder ameaçador, dentro da família.
Assim, à santa-mãezinha cabia os papeis de gestoras da vida privada, de
administradora do cotidiano doméstico e dos cuidados permanentes com a prole. Essas
atividades faziam com que as mulheres exercessem poderes discretos e informais na
sociedade colonial, pondo relativamente em xeque os poderes masculinos. Os filhos
validavam o papel social da mulheres enquanto mãe e a ausência temporária ou
definitiva do pai favorecia solidariedades e redes de apoio entre as mulheres.
As realidades fecundas das mulheres mães no Brasil compreendia uma
diversidade de práticas, inclusive de resistência ao modelo ideológico instituído de
compreensão hegemônica de maternidade. As mães solteiras, geralmente pobres e
chefes de família, eram muitas vezes consideradas mulheres seduzidas e desonradas,
sujeitas a abandono, dada a prole irregular e a ausência de companheiro. Essas mulheres
se dividiam entre os cuidados com seus filhos e a luta pela sobrevivência de sua família.
(Del Priori, 2009)
As prostitutas eram vistas como aquelas que, moralmente estigmatizadas,
podiam persuadir institucionalmente a norma. As mulheres tidas como inférteis também
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sofriam classificações morais, seus corpos eram confinados ao isolamento, uma vez que
eram tidas como doentes de paixões e melancolia.
As transformações que gradativamente ocorreram com a ascensão do
capitalismo e o advento do individualismo trouxeram repercussões nas transformações
familiares, nas novas formas de conjugalidades, na inserção das mulheres no mercado
de trabalho. A partir dos anos 1960, o movimento feminista provocou avanços no
processo reflexivo e crítico das mulheres, sendo um importante agente dessas
transformações no mundo social.
Badinter (2011) retrata que os anos 1970 foram marcados por um grito
reivindicador das mulheres: Primeiro eu!. Assim, as mulheres reivindicavam a
dessacralização da maternidade e davam vida aos desejos femininos. Quarenta anos
depois, a denominada pela autora como “ideologia naturalista’ não permite mais esses
excessos, a criança não é mais fruto do acaso ou de um “acidente”, mas resultado de
uma escolha livremente consentida. À criança deu-se o primeiro lugar.
Diante da diversidade de aspirações femininas, a maioria das mulheres
ocidentais tem em princípio a possibilidade de escolher entre os interesses de mulher e o
desejo de maternidade. Por um lado, elas querem os meios de independência, a
possiblidade de se afirmar profissionalmente e uma vida conjugal e social realizadora.
Por outro, a experiência da maternidade buscam todas as alegrias e o amor que uma
criança encarna. (Badinter, 2011)
Os corpos femininos, em contextos contemporâneos, ao serem interpelados pelos
discursos heteronormativos, transitam entre reiterações vinculadas aos múltiplos
domínios masculinos no que se refere à sexualidade, às relações familiares e de trabalho
e escapam a essas reproduções, ao desenvolverem práticas de solidariedades femininas
ou assumirem desejos e sexualidades “desviantes” do modelo social. Novos modos de
subjetivação são construídos dada a capacidade de ação do sujeito no movimento
híbrido que lhe é próprio, dentro e fora da ordem discursiva. (Souza, 2013)
Falar sobre as experiências de maternidade por mulheres das classes populares,
requer uma escrita vinculada a uma campo de produção de conhecimento que tensiona a
ideia da existência de uma mulher universal. Logo, coaduna-se com as críticas efetuadas
pelas atuais epistemologias feministas ao proporem a desestabilização dos enunciados
eurocêntricos e androcêntricos modernos. Esse estudo parte do pressuposto que as
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mulheres, enquanto múltiplos sujeitos, estão situadas em contextos culturais diversos,
cujas histórias carregam assimetrias de poder, entrecruzadas pelas relações de gênero,
classe, raça geração. A experiência da maternidade não atinge da mesma forma todas as
mulheres, mas provoca modos de subjetivação decorridos das posições que ocupam no
mundo social e dos cruzamentos dos marcadores da diferença.
O interesse em estudar as experiências e trânsitos de maternidades de mulheres
ocorreu, incialmente, pela minha inserção como assistente social num serviço de
obstetrícia em uma maternidade pública, em Fortaleza, no qual despertou-me o desejo
de entender as lógicas das ações construídas por mulheres-mães, inclusive de diferentes
gerações, que desafiam modelos de maternidade privilegiados nos discursos médicos e
estatais, permeados por regulações biopolíticas do corpo e da subjetividade femininas.
Esse hospital-maternidade carrega consigo cenários de práticas e saberes
científicos que produzem regimes de verdade sobre a maternidade, afinal é nesse lugar
que a ritualidade do evento do parto ganha concretude. Além disso, caracteriza-se por
um local de presenças femininas constantes e de simultaneidades geracionais, em que se
encontram mulheres jovens gestantes ou puérperas (a maioria pertencentes às classes
populares), bem como mulheres mais velhas, que estão na condição de acompanhantes
das pacientes, sendo geralmente suas mães ou sogras. No entanto, as entrevistas ainda
serão inicializadas no hospital, uma vez que o projeto foi aprovado recentemente pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.
Os discursos médicos e estatais circulantes nesse lugar produzem efeitos de
verdades sobre os comportamentos femininos de controle de seus corpos e dos cuidados
com as crianças. Não obstante, chama-me a atenção as mulheres parturientes que não se
adequem as normatividades disciplinares do que é considerado como uma boa mãe, a
exemplo das mulheres mães dependentes químicas, adolescentes de pouca idade, mães
com transtornos mentais, com vínculos conjugais instáveis.
Entretanto, o trabalho de campo da pesquisa de doutorado ora em curso foi
iniciado com as mulheres já fora do hospital, na comunidade Morro da Vitória3. Nesse
3 A comunidade Morro da Vitória constitui-se em uma área localizada nas dunas de Fortaleza, no bairro
Vicente Pinzon, mais precisamente, nas proximidades do novo farol do Mucuripe. Essa comunidade,
denominada também de Farol Novo, é considerada uma das áreas de risco mais populosas de Fortaleza,
tendo cerca de 1.100 famílias em situação de vulnerabilidade social. (Jornal Diário do Nordeste, 2007).
No tocante à história da comunidade Morro da Vitória, sabe-se que a mesma é fruto de um processo de
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primeiro momento da pesquisa de campo tenho buscado constituir interações entre esses
sujeitos, através das minhas observações das convivências femininas neste local. Nas
narrativas, pretendo compreender tanto as formas pelas quais os mecanismos de
normatização operam na vida das mulheres dispondo-as a desenvolver um modo de ser
mãe, quanto a perceber as novas formas de subjetivação possíveis que essas mulheres
desenvolvem em contextos adversos de privações materiais e simbólicas. Realizei até
então, quatro entrevistas com mulheres dessa comunidade.
Arrisco-me pois, a apontar alguns aspectos de ambivalências presentes nas falas
das mulheres pobres. Por um lado, percebi narrativas ancoradas ao modelo ideal da
maternidade, fruto das convenções tradicionais e, por outro compreendi algumas
práticas que subvertem ao ideal materno, produzindo novos domínios de existência e as
práticas possíveis e reais, de ser mãe, em trajetórias marcadas pelos efeitos de suas
posições de gênero e classe. As recorrências encontradas nas falas das mulheres se
mesclam às singularidades de cada experiência e as formas de interpretação destas pela
entrevistada.
Fernanda4 é divorciada, foi casada formalmente uma vez e teve duas uniões
estáveis. Tem três filhos e dez netos. Atualmente, reside com uma neta que “cria desde
pequena”, mas ressalta que os filhos moram todos por próximos de sua casa.
Eu tinha que vinte e poucos anos. E aí foi o tempo que eu comecei a trabalhar
na vida. Ficar com os meninos [filhos] só, tudo pequeno. Mas aí, eu era assim
trabalhava durante o dia de faxina nas casas, é... Lavando roupa, quando não
era, [eu] ia ajudar em restaurante de amiga minha, aqui pela Beira-Mar,
lavando prato nas pias. E à noite eu ia pros bares do Castelo [bairro próximo]
e era garçonete. Porque eu era a confidente daquele marido amargurado, que
vinha tomar uma cervejinha pra desopilar, contar o que passava. Só que o que
passavam pra mim não era relatado pra mais ninguém. Eles confiavam muito,
né... Mas eu não era mulher de programa, não. Eu era mais de ajudar. Porque
assim, através dali eu trazia o alimento dos meninos, entendeu? ... Olha, eu
acredito que de todas essas circunstâncias, esses atropelos, esses vendavais e
todo esse sofrimento, que eu sofri para criar os meus filhos... Oh, como eu
sofri, sofri muito. Agora é porque eu nunca fui assim de passar, de reclamar.
Não, eu fui de agir, ação.
ocupação, ocorrido em 2001. Esse processo de ocupação foi bastante tenso, uma vez que desenvolveram-
se fortes embates entre a comunidade e o poder público à época por meio da Secretaria de Infraestrutura
do Estado. Essa ocupação foi noticiada nos jornais de grande circulação da cidade, sobretudo, dada a
repressão policial e as tentativas de expulsão das famílias do local. 4 Todos os nomes das mulheres expostos nesse trabalho são fictícios.
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A chefia feminina e a falta de responsabilização paterna pelos filhos convocam
as mulheres informantes a buscarem estratégias de sobrevivência, na maioria das vezes,
trabalhos precários e temporários. As mulheres pobres passam a ser corresponsáveis
pelo enfrentamento das questões estruturais de pobreza, dada pouca efetividade das
políticas públicas. Rosa, outra mulher entrevistada, ressalta “Eu me considero, né, porque,
acima de tudo o que eu passei e o que eu deixei de passar, eu nunca deixo os meus filhos...
passar necessidade”. Percebo, com isso, que essas mulheres desenvolvem suas agências
ao se autoafirmarem como autônomas e construírem formas criativas de enfrentamento.
Conforme Klein (2010), a maternidade torna-se foco de investimento em nossa
cultura, mobilizando-se em torno dela sentidos múltiplos, conflitantes e convergentes.
Assim, quando o alvo é histórias de crianças em situações de miséria, violência,
fracasso escolar, por exemplo, torna-se frequente que instituições como a escola, a
igreja, a mídia, o governo e outras organizações sociais articulem como principal
explicação para isso o fracasso das relações familiares, destacando principalmente a
ausência ou o descaso materno/feminino.
Rosa, 43 anos, solteira, teve união estável de 15 anos, é recicladora de lixos, tem
12 filhos e 4 netos. Esta constrói um discurso do sentido da maternidade bem próximo
das convenções sociais que abrigam “modelos” maternos baseados em reciprocidades
emocionais. A partir das narrativas das mulheres, a maternidade é uma experiência que
marca as trajetórias das mulheres. Esse acontecimento é transposto à sua condição de
avó.
Ser mãe é bom. Você ter, você ter os seus filhos, ter respeito por ele e ele por
você é bom demais. Porque graças a Deus, eu tenho os meus. A gente quebra
cabeça, mas é porque tem que quebrar mesmo... Eu já tenho 12 [filhos], tá
bom demais.... Não tem diferença nenhuma [ser avó], é a mesma coisa.
Entendeu? Porque é o tipo da coisa, por que se uma criança daquela dali
[aponta para a neta] não tem nada e eu tendo eu não vou deixar a minha neta
passar fome.
É importante ressaltar que utilizo-me da concepção de experiência, a partir de
Scott (1999) ao remeter-se a esse conceito como como constituintes dos sujeitos, ou
seja, os sujeitos são constituídos através da experiência. Esta é ao mesmo tempo
interpretação e algo que precisa de interpretação, sendo assim não auto evidente e nem
definida, mas sempre contestável e política.
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Nos territórios de pobreza, a maternidade confere um valor às mulheres e
garante um status de “respeitabilidade” feminina entre seus pares. “Ser mãe de família”
dentre tantos enunciados produzem representações do feminino baseadas nas
moralidades de gênero, as quais erguem âncoras classificatórias dos corpos e
comportamentos das mulheres. A maternidade talvez apareça menos como uma escolha
e mais como fruto de uma circunstância em determinado momento de suas trajetórias de
vida. Nesse intercurso, as mulheres pobres vivem um cotidiano de práticas ordinárias
que circunscrevem o seu contexto social e cultural. As proles numerosas, a presença
constante dos netos, sobretudo das mulheres mais velhas e as brevidades dos vínculos
podem ser algo recorrente nas trajetórias femininas.
Ao mesmo tempo, pressuponho que, resguardando seus contextos e
particularidades, as mulheres pobres têm desenvolvido recursos e capacidades que
reinterpretam os agenciamentos e convocam outros sentidos e experiências que
irrompem a matriz hegemônica heterossexual orquestrada e também capturada pelo
mercado. As trocas femininas intergeracionais, sobretudo entre mães mais velhas e
filhas adultas com filhos pequenos promovem “agências coletivas” (Mahmood, 2006).
Num jogo híbrido de presenças e ausências, acredito que novos processos de
subjetivação femininos são materializados corporalmente provocando múltiplos e
potentes deslocamentos entre os gêneros. No entanto, um caminho longo de pesquisa
precisa ser percorrido na potente busca de achados sobre as formas de vivências da
maternidade nas trajetórias das mulheres pobres.
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Discourse and practice of maternity: perspectives on the reiterations and
insurgencies of poor women
Abstract:
This research stems from my experience with poor women in an obstetrics service at a
public maternity hospital in Fortaleza, which has awakened my desire to understand the
logic of the actions of womem-mothers, even of different generations, who challenge
models of maternity privileged in medical and state discourses, permeated by
biopolitical regulations of the female body and subjectivity. This study, as part of the
ongoing doctoral research, will investigate discourses and experiences about
motherhood, under an intersectional look at race / ethnicity, generation, class, sexuality
(Brah, 2006; Piscitelli, 2008). The research subjects are poor women, specifically those
who subvert the ideal of motherhood, through "insurgent" practices that potentiate new
modes of feminine subjectivation. It will be based on the observations of the
coexistence among women in this hospital, where the rituality of childbirth gains
concreteness. The field work was started already with the women outside the hospital,
aiming to constitute a field of interactions between pregnant or postpartum womem and
older women, being their mothers or mothers-in-law, in order to enter the narratives of
their life trajectories. The question is: how do these women organize the experience of
motherhood? How do intergenerational exchanges come through the "collective
agency" (Mahmood, 2006)? In what ways are they captured by the medical-state
assemblies of their maternities and in what ways do they subvert them?
Keywords: Maternity. Poor women. Body. Female agency.