dissertação dislexia 2010

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1 OLGA VALÉRIA CAMPANA DOS ANJOS ANDRADE I NSTRUMENTALIZAÇÃO P EDAGÓGICA PARA A VALIAÇÃO DE C RIANÇAS COM R ISCO DE D ISLEXIA Marília 2010

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OLGA VALRIA CAMPANA DOS ANJOS ANDRADE

I NSTRUMENTALIZAO P EDAGGICA PARA A VALIAO DE C RIANAS COM R ISCO DE D ISLEXIA

Marlia 2010

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OLGA VALRIA CAMPANA DOS ANJOS ANDRADE

I NSTRUMENTALIZAO P EDAGGICA PARA A VALIAO DE C RIANAS COM R ISCO DE D ISLEXIA

Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao da Faculdade de Filosofia e Cincias Jlio de Mesquita UNESP - Marlia (SP), para obteno do ttulo de Mestre em Educao. rea de concentrao: Ensino na Educao Brasileira.

ORIENTADORA: Dra. Simone Aparecida Capellini CO-ORIENTADOR: Dr. Paulo Srgio T. do Prado

Marlia 2010

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OLGA VALRIA CAMPANA DOS ANJOS ANDRADE

I NSTRUMENTALIZAO P EDAGGICA PARA A VALIAO DE C RIANAS COM R ISCO DE D ISLEXIA

Dissertao de mestrado apresentada para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

BANCA EXAMINADORA

Orientador:_________________________________________________________________ Dra. Simone Aparecida Capellini - Universidade Estadual Paulista Campus Marlia

2 Examinador:______________________________________________________________ Dra. Clara Regina Brando de vila - Universidade Federal de So Paulo

3 Examinador:______________________________________________________________ Dra. Tnia Moron Saes Braga - Universidade Estadual Paulista Campus Marlia

Marlia, 04 de outubro de 2010.

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DEDICATRIA

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Ao meu esposo, Paulo Estevo, pelo apoio incondicional durante todo o percurso, compartilhando sempre os momentos de alegrias e angstias. Sem a sua ajuda e presena constante o caminho teria sido muito mais rduo.

Aos meus filhos, Andr e Jos Vtor, pela compreenso, apoio e pacincia que tiveram nos longos finais de semana sem a presena e a comida da me. Espero ter sido um bom exemplo para impulsion-los na busca de novos conhecimentos.

Aos meus pais, Geraldo e Slvia, que com amor, carinho e dedicao sempre me incentivaram e me apoiaram nos estudos.

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AGRADECIMENTOS

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Ao Colgio Criativo, onde foi realizado este estudo, em especial direo do colgio que me apoiou durante todo o processo e s professoras e alunos do ensino fundamental I que contriburam grandemente com a pesquisa. banca examinadora composta pela Dra. Clara Regina Brando de vila e pela Dra. Tnia Moron Saes Braga, por aceitarem participar desta banca, Dra Flvia Helosa dos Santos, por sua carinhosa receptividade minha pesquisa e contribuio em algumas dvidas e Dra. Maria de Lourdes Morales Horiguela por ter sido uma das professoras que muito contribuiu com minha formao acadmica.

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

minha orientadora Dra. Simone Aparecida Capellini, que foi desde o incio a minha maior fonte de inspirao e conhecimento, desde o processo de seleo e preparao para o mestrado at a concluso deste trabalho. Tive muito orgulho em ser sua aluna e orientanda e fiquei muito feliz em poder contar com a sua valiosa experincia, que s me fez crescer como pesquisadora. Obrigado por sua enorme generosidade!

Ao Dr. Paulo Srgio Teixeira do Prado por sua valiosa orientao, pela credibilidade que depositou no meu trabalho e pela chance que proporcionou minha vida profissional. Transformou o meu sonho em realidade. Obrigado pela sua amizade!

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RESUMO

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A dislexia do desenvolvimento no ambiental, mas sim uma desordem neurolgica de origem gentica que afeta em pases desenvolvidos 8-10% das crianas que, despeito de uma inteligncia normal e oportunidades adequadas, apresentam uma inesperada dificuldade de aquisio da leitura-escrita. Prejuzos no processamento fonolgico, incluindo a conscincia fonolgica (refletir sobre os sons das palavras tais como rimas, aliteraes e fonemas), a memria verbal de curto-prazo e a nomeao rpida, dificultam as converses letra-som e representam os principais fatores de risco para a dislexia. No Brasil grande parte dos alunos encaminhados a atendimento especializado no apresenta realmente qualquer distrbio, fato que sobrecarrega o sistema pblico alcunhado de sndrome do encaminhamento. Este problema causado principalmente porque o sistema educacional brasileiro e as concepes pedaggicas predominantes no enfatizam (at mesmo inibem) as relaes grafo-fonolgicas na alfabetizao, nem a formao qualificada dos educadores sobre os diferentes transtornos de aprendizagem e suas manifestaes. A conjuno desses dois fatores culmina numa quase ausncia de critrios bem definidos e instrumentos pedaggicos de rastreamento dos fatores de risco para as dificuldades de leitura que orientem a adoo adequada dos encaminhamentos. Portanto, a presente pesquisa possui dois estudos. O Estudo 1 voltado para uma ampla reviso da literatura sobre a relao entre linguagem oral e escrita, os processos envolvidos na leitura-escrita e suas implicaes para a alfabetizao e para os transtornos de aprendizagem, objetivando proporcionar aos educadores uma viso cientfica e crtica da rea e do debate em torno da escolha dos mtodos de ensino da leitura-escrita. Conclumos que as evidncias da psicolingustica experimental dos ltimos 40 anos convergem num consenso de que a leitura-escrita depende crucialmente da nfase na relao letra-som e das habilidades fonolgicas, cujos dficits representam os principais fatores de risco para a dislexia. Testes precoces de rastreamento fonolgico em conjunto com a avaliao da histria familial, educacional e do desenvolvimento da criana podem aperfeioar o reconhecimento de fatores de risco sendo muito importantes para a identificao precoce e preveno das dificuldades de leitura. O Estudo 2 um trabalho emprico voltado para a capacitao do professor na compreenso do problema da dislexia, tendo como objetivo a elaborao de ferramentas de rastreamento na forma de atividades pedaggicas coletivas que confiavelmente avaliem as habilidades fonolgicas em pr-leitores e leitores iniciantes reconhecidas como bons preditores da futura aquisio da leitura-escrita. Com base em tarefas fonolgicas clssicas conhecidas como categorizao de sons e no protocolo Capellini e Smythe (2008), comprovadamente eficaz na deteco de fatores de risco em crianas brasileiras, ns desenvolvemos e testamos algumas atividades pedaggicas coletivas

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facilmente aplicveis em sala de aula, doravante denominadas de tarefas FAE (ferramentas alternativas do educador), como potenciais instrumentos de rastreamento para ajudar na identificao de crianas em risco de desenvolver dificuldades na leitura-escrita. As tarefas FAE consistiram basicamente no pareamento entre figuras e de figuras com palavras que apresentam similaridades fonolgicas no incio (aliterao) ou no final (rima) e foram aplicadas em 45 crianas no incio da alfabetizao de ambos os gneros com idade mdia de 7 anos e 4 meses, juntamente com o protocolo Capellini e Smythe (2008). O protocolo Capellini e Smythe comprovou sua eficcia confirmando que a conscincia fonolgica, a memria de trabalho verbal e a nomeao rpida consistem nos principais fatores de risco para a dislexia e com as quais as FAE apresentaram suas mais fortes correlaes, alm da discriminao fonmica. No surpreendentemente, portanto, as tarefas FAE tambm foram fortemente correlacionadas com a leitura-escrita. Conclumos que escolares em risco de dislexia podem ser eficazmente identificados por meio de ferramentas pedaggicas cientificamente desenvolvidas, testadas e adaptadas para a realidade educacional brasileira, um promissor campo de pesquisa com potencial para ajudar a evitar a sndrome do encaminhamento, bem como indicar as tendncias terico-empricas mais adequadas para orientar nossa educao.

Palavras-chave: Avaliao. Leitura. Transtornos de aprendizagem. Conscincia fonolgica. Rastreamento. Dislexia.

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ABSTRACT

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Dyslexia is not environmental, it is a neurodevelopmental condition with a genetic origin affecting 8-10% of children in developed countries who, despite normal intelligence and adequate opportunities have unexpected and severe difficulties in literacy acquisition. Dyslexia is causally associated with disruptions on phonological processing, namely, phonological awareness (the ability to consciously think upon structural features of spoken language such as onset-rime and phonemes), verbal working memory and rapid automatic naming, resulting in severe difficulties in establisghing letter-sound relations. In Brazil, many children are mistakenly labeled as having learning disabilities and improperly referred each year to specialized public services without actually presenting any problem, thus overloading the public system and making too many children left behind. This highly undesirable picture reflects the educators lack of a good theoretical and empirical knowledge on the different types and manifestations of learning disabilities (hence, their difficulties to differentiate between reading difficulties caused by environmental factors and dyslexia) as well as the almost absence of collective screening instruments that improve recognition of risk factors for reading difficulties early on literacy acquisition. All these problems rest in part on the fact that Brazilian educational system does not prioritize literacy methods that emphasize letter-tosound correspondences neither the high-quality training for teachers and educators with respect to learning disabilities. Therefore, the present research addresses these two basic problems by being divided into two different but related studies. The first study constitutes a detailed review of the literature on the cognitive processes involved in reading and their implications for literacy acquisition, aiming to provide educators with a scientific and critical view of the debate around the choice of a literacy method, whether those emphasizing lettersound correspondences (code-emphasis methods) or those emphasizing extraction of meaning directly form the text (meaning-emphasis methods). We conclude from the last 40 years of experimental research in psycholinguistics that a great consensus has emerged for a definite advantage for code-emphasis approaches and for the crucial role of phonological abilities to the acquisition of literacy whose deficits represent the main risk factor underlying dyslexia. Our second study is aimed at to develop screening tools in the form of collective pedagogical activities which could reliably measure phonological abilities in beginning readers and prereaders which are known to predict future literacy acquisition. Early phonology screening tests in conjunction with evaluation of a child's developmental, educational, and family histories, can increase recognition of risk factors and holds great promise for the early identification and prevention of reading disabilities. Building on classical phonological tasks broadly known sound categorization and the phonological tasks from the Capellini and

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Smythe (2008) protocol, proved to be effective in detecting risk factors in Brazilian children, we developed and tested the potential use of some collective pedagogical activities easily applicable in the classrooms, named FAE tasks (abbreviation of the Portuguese alternative tools for educators), as screening instruments that help to identify children at risk for reading disabilities. FAE tasks consisted basically of matching pictures and pictures to spoken words according to their phonological similarity in the onset (alliteration) or rhyme and, jointly with Capellini and Smythe protocol, were given to 45 beginner readers on the first grade, of both genres and 88 months on average. The results confirmed both the efficacy of the protocol Capellini and Smythe and of the FAE tasks, by revealing that phonological awareness, verbal working-memory and rapid automatized naming were those variables that more strongly correlated with reading and writing abilities, as well as with FAE tasks. It is not, therefore, surprising that FAE tasks also were strongly correlated with literacy skills. We conclude that research aimed at scientifically developing and testing collective pedagogical activities easily applicable by teachers in classrooms, which could serve as screening tools for early identification and prevention of risk factors for dyslexia, holds great promise in the field.

Keywords: Assessment. Literacy. Learning disability. Phonological awareness. Screening. Dyslexia.

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LISTA DE TABELAS

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Lista de Tabelas

TABELA 1 Habilidades avaliadas pelo Protocolo Cognitivo-Lingustico de Capellini e Smythe, (2008) TABELA 2 Descrio das tarefas FAE e as respectivas habilidades envolvidas

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TABELA 3 Pontuao mnima e mxima, mdia e desvio padro em cada tarefa do protocolo Capellini e Smythe, ( 2008). TABELA 4 Correlao entre as habilidades de leitura e escrita e os subtestes do protocolo Capellini e Smythe (2008) TABELA 5 Pontuao mnima e mxima, a mdia, a mediana e o desvio padro em cada tarefa FAE TABELA 6 Correlao entre as tarefas FAE e os subtestes do protocolo Capellini e Smythe (2008) TABELA 7 Correlao entre tarefas FAE e as habilidades de leitura e escrita do protocolo Capellini e Smythe (2008)

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LISTA DE ABREVIATURAS

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Lista de Abreviaturas

AL CF DD DF EC EP EPS ER ES ESC FAE IDT LPC LPM LPS MID MTV MV RAN D RAN F RM RPS RT SS TTL WL

Aliterao Cpia de Figuras Dislexia Desenvolvimental Discriminao Fonmica nfase no Cdigo Escrita de Palavras Escrita de Pseudopalavras Erros de Rotao nfase no Significado Escore Composto Ferramenta Alternativa do Educador International Dyslexia Test Leitura de Palavras Corretas Leitura de Palavras por Minuto Leitura de Pseudopalavras Memria Indireta de Dgitos Memria de Trabalho Verbal Memria Visual para Formas Nomeao Rpida de Dgitos Nomeao Rpida de Figuras Rima Repetio de Pseudopalavras Ritmo (Cpia de Ritmo) Segmentao Silbica Tempo Total de Leitura Whole Language

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SUMRIO

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SUMRIO

1 INTRODUO

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2

ESTUDO 1: REVISO DA LITERATURA 2.1 Introduo: o debate na alfabetizao, entre teorias e evidncias... 2.2 Objetivo 2.3 Mtodo 2.4 Os Fundamentos Bsicos da Lingustica Moderna 2.5 As abordagens lingusticas de Piaget e Vygotsky 2.6 A psicolingustica chomskyana 2.7 Os Fundamentos da Abordagem scioconstrutivista na Alfabetizao 2.8 Relao entre a fala e a escrita na Quarta Conferncia NIHCD de 1972 2.9 Conscincia Lingustica: a origem do conceito de conscincia fonolgica e da abordagem com nfase no cdigo 2.10 A Natureza da Escrita, dos Processos de Leitura e seus Transtornos 2.11 Discusso 2.12 Concluso

25 26 34 34 35 44 58 67 82

117 139 150 154

3 ESTUDO 2: INSTRUMENTALIZAO PEDAGGICA PARA AVALIAO DE CRIANAS COM RISCO DE DISLEXIA 3.1 Introduo 3.2 Objetivo Geral 3.3 Objetivos Especficos 3.4 Material e Mtodo 3.4.1 Participantes 3.4.1.2 Critrios para seleo 3.4.2 Procedimentos Metodolgicos 3.4.2.1 O Protocolo Capellini e Smythe (2008) 3.4.2.2 Ferramenta Alternativa do Educador: tarefas FAE 3.4.3 Anlise Estatstica 3.5 Resultados e Discusso 3.5.1 Correlao entre habilidades fonolgicas e de leitura-escrita no Protocolo Capellini e Smythe 166 157 158 160 160 160 160 161 161 161 164 165 166

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3.5.2 Correlao entre as FAE e as habilidades de processamento fonolgico 3.5.3 Correlao entre as FAE e as habilidades leitura e escrita

171 173

4 CONCLUSO

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REFERNCIAS

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APNDICES

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ANEXOS

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1 INTRODUO

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No cenrio educacional brasileiro dos ltimos 20 anos, pode-se verificar um grande e crescente nmero de escolares que apresentam deficincia de leitura. Inmeros so os fatores para o fracasso na aquisio dessa habilidade, mas, entre eles, podemos destacar um significativo nmero de crianas com risco de dislexia. Outros fatores esto subjacentes ao fracasso no ensino da leitura e escrita, dentre os quais podemos destacar fatores socioeconmicos, fatores educacionais ou metodolgicos, fatores de ordem emocionalafetiva, bem como fatores individuais dos aprendizes representados pelos transtornos de aprendizagem de origem constitucional, isto , de origem gentico-neurolgica destacando-se a dislexia, o transtorno do dficit de ateno e hiperatividade (TDAH) e o clculo matemtico (discalculia). Nesse contexto, portanto, fundamental distinguirmos a dificuldade de aprendizagem do distrbio ou transtorno de aprendizagem. A dificuldade de aprendizagem um termo mais abrangente para designar dificuldades originadas tanto do aprendiz, particularmente problemas emocionais e comportamentais, quanto de fatores extrnsecos como os contedos, o professor, os mtodos e ambiente fsico e social da escola, caracterizando-se como um problema mais acadmico. Em contraste, distrbio de aprendizagem um termo mais restrito usado para nos referirmos a certas dificuldades de origem intrnseca ao indivduo, isto , de origem gentico-neurolgica e que so mais especficas a determinados domnios cognitivos, tais como a leitura-escrita (dislexia) ou ao clculo matemtico (discalculia) (CAPELLINI et al., 2007). O fato que ainda existe muita confuso terminolgica entre distrbios de aprendizagem e dificuldades de aprendizagem no Brasil, isto , ambos os termos so frequentemente usados como sinnimos (CAPELLINI et al., 2009). Embora haja um grande nmero de crianas com dificuldades de aprendizagem, poucas realmente possuem distrbios. Diferenciar entre uma dificuldade e um distrbio de aprendizagem no uma tarefa fcil para o professor, uma vez que a dificuldade envolve alm de fatores intrnsecos (comportamentais e emocionais), vrios fatores extrnsecos (socioeconmicos e pedaggicos). Para saber se uma criana que no aprende possui uma dificuldade ou um distrbio de aprendizagem, necessrio uma srie de observaes complexas. E estas incluem uma anlise cuidadosa do rendimento escolar do aluno e em quais domnios ele demonstra mais dificuldades, do seu comportamento, do seu ambiente socioeconmico e familiar e assim por diante. Em outras palavras, o professor necessita tanto de conhecimento adequado para diferenciar entre dificuldades e distrbios de aprendizagem, bem como conhecer os aspectos particulares dos diferentes distrbios e, alm disso, de ferramentas psicopedaggicas adequadas para realizar a

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tarefa de rastreamento de crianas com dificuldade ou em grupo de risco. Se levarmos em considerao a realidade socioeconmica em que se insere grande parte das escolas pblicas, acarretando dificuldades no s para os alunos, mas tambm para o trabalho do professor, esta tarefa se torna ainda mais rdua. Alm dos problemas inerentes existncia desses dois tipos gerais de causas normalmente subjacentes ao baixo desempenho no aprendizado escolar em qualquer sociedade, a saber, as dificuldades e os distrbios, encontramos dois agravantes importantes. O primeiro, o crescente nmero de escolares com baixssimo desempenho em leitura, cuja causa podemos atribuir a fatores no somente socioeconmicos, mas principalmente educacionais-metodolgicos (BRASIL, 2003b; BELINTANE, 2006). O segundo, a falta de preparo psicopedaggico dos professores para enfrentar efetivamente esses problemas. Desse modo, vemos recrudescer ainda mais o quadro de confuso entre dificuldades e distrbios, uma vez que estamos criando uma falsa percepo de que muitas crianas com baixo desempenho na aquisio da leitura e escrita apresentam dislexia. Essa falsa percepo tem contribudo para o que muitos chamam de sndrome do encaminhamento, isto , o encaminhamento frequente e desnecessrio de um grande nmero de crianas que so inadequadamente consideradas portadoras de distrbios de aprendizagem, particularmente dislexia, sobrecarregando o sistema pblico especializado. Outros dois problemas atrelados ao despreparo psicopedaggico e sndrome do encaminhamento so: a) a rotulao indevida de muitas crianas, que gera problemas de estigma e autoestima (uma vez que o prprio processo diagnstico no pode ser feito pelo professor e sim por uma equipe multidisciplinar), e b) levam o professor a no ter uma postura de responsividade, que uma atitude de colaborar no processo de identificao e interveno precoce, isto , se eximindo na busca de uma soluo mais efetiva e pontual do problema. Uma vez bem identificados os problemas acima, pareceria natural o delineamento de solues, no fossem certos entraves capitais abaixo descritos:

Negao sistemtica de fatores biolgicos ou constitucionais nos

problemas de aprendizagem; Crena de que a alfabetizao deve ser realizada por meio de mtodos

que enfatizam a palavra inteira e textos e que mtodos que enfatizam o cdigo, isto , as relaes grafo-fonolgicas, so altamente prejudiciais ao aprendizado da leitura.

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Crena de que a dislexia no existe atribuindo-se os problemas de

leitura inteiramente a fatores sociolgicos ou educacionais; nesse sentido a dislexia poderia ser uma consequncia de mtodos que enfatizam o cdigo. Pouca familiaridade dos educadores com o conhecimento cientfico; Falta de ferramentas objetivas e prticas para identificao, pelos

educadores, de crianas potencialmente dislxicas.

Portanto, a presente pesquisa possui dois estudos principais. O Estudo 1 voltado para uma ampla reviso da literatura sobre a relao entre linguagem oral e escrita, os processos envolvidos na leitura-escrita e suas implicaes para a alfabetizao e para os transtornos de aprendizagem, objetivando proporcionar aos educadores uma viso cientfica e crtica da rea e do debate em torno da escolha dos mtodos de ensino da leitura-escrita. O Estudo 2 um trabalho emprico voltado para a capacitao do professor na compreenso do problema da dislexia, tendo como objetivo a elaborao de ferramentas de rastreamento na forma de atividades pedaggicas coletivas que confiavelmente avaliem as habilidades fonolgicas em pr-leitores e leitores iniciantes reconhecidas como bons preditores da futura aquisio da leitura-escrita Acreditamos que este material facilitar a interao do professor com os profissionais responsveis pela diagnose e interveno teraputica deste distrbio e sua participao nos processos de identificao e eventual interveno no ambiente escolar. As ferramentas diagnsticas so denominadas Ferramentas Alternativas do Educador e doravante referidas como FAE.

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2 ESTUDO 1

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2.1 Introduo: o debate na alfabetizao, entre teorias e evidncias... Ou se decodifica e no se compreende Ou se adivinha, mas no se l. Ou ensina-se a ler pelo significado, Ou das partes chega-se a palavra. Ou a escrita a transcrio (ainda que incompleta) da oralidade Ou uma entidade prpria, radicalmente diferente... Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...

Parafraseando a grande poetisa Ceclia Meirelles, que nos fala poeticamente do benefcio da dvida em seu poema Ou Isto ou Aquilo (MEIRELLES, 1990), trazemos o elemento dvida como um comportamento recorrente (e nada benfico) na mente dos educadores brasileiros, especialmente os que esto com a misso de alfabetizar, visto que reina em nosso pas uma grande crise no cenrio da educao, cujos planos idealizados e gestados pelo governo parecem no dar conta da eliminao do analfabetismo funcional. De acordo com o site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP), o relatrio nacional do Programa Internacional de Avaliao Comparada do ano de 2000 (PISA), cuja principal finalidade produzir indicadores sobre a efetividade dos sistemas educacionais, avaliando o desempenho de alunos na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupe o trmino da escolaridade bsica obrigatria na maioria dos pases (OECD, 2000) o Brasil foi o pior pas do mundo em leitura e compreenso de texto. Em 2003 ficou entre os quatro piores e em 2006 em 49 lugar entre cinquenta e seis pases, porm esta aparente melhora se deveu incluso de novos pases com mdia mais baixa e a queda na mdia de outros, como a Argentina, pois infelizmente a mdia brasileira mostrou tendncia negativa (OECD, 2003). No centro desta dvida acima mencionada h o debate entre duas abordagens distintas de alfabetizao, tambm presente h muitos anos em outros pases como EUA, Frana, Marrocos e Japo, abordagens caracterizadas primariamente pelo tipo de unidade de processamento da linguagem que enfatizado no ensino, isto , se nas unidades menores (letras ou slabas) ou maiores (palavras e textos), bem como nos pr-requisitos e respectivos procedimentos pedaggicos utilizados durante o aprendizado (BENTOLILA; GERMAIN, 2005).

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De um lado do debate esto as abordagens de alfabetizao que se focam nas unidades menores da linguagem oral (fonemas e slabas) e escrita (letras e combinaes de letras) a maioria sem significado (pois algumas palavras so monossilbicas) enfatizando-se o pareamento dessas unidades, isto , as relaes grafo-fonolgicas. Por isso, estas abordagens so referidas como mtodos de acesso indireto ao significado (BENTOLILA; GERMAIN, 2005) ou com nfase no cdigo (RAYNER et al., 2001). Do outro lado do debate esto as abordagens que sustentam que as crianas podem aprender a ler to naturalmente como aprendem a falar e sendo a compreenso o principal objetivo da leitura, o ensino da leitura e escrita deve se basear no uso de textos ao invs de unidades menores, buscando-se o significado desde o incio. Estas abordagens so conhecidas como mtodos de acesso direto ao significado (BENTOLILA; GERMAIN, 2005) ou simplesmente com nfase no sentido (RAYNER et al., 2001). As abordagens com nfase no significado tm sua principal representao na concepo conhecida como Whole Language, em portugus Linguagem Global, (BENTOLILA; GERMAIN, 2005; veja tambm BELINTANE 2006). A viso de decodificao das abordagens com nfase no cdigo reconhece que a fala e a leitura devem seguir caminhos desenvolvimentais muito diferentes. Nesta perspectiva enquanto a fala perfeitamente natural, uma parte integral da especializao da criana para a linguagem, a escrita uma inveno cultural e no natural, um cdigo biologicamente secundrio especializado em representar visualmente a fonologia da linguagem oral e, portanto, totalmente dependente dela para sua plena aquisio. Em contraste, o Whole Language parte da premissa de que o aprendizado da fala e da leitura so exemplos inteiramente comparveis e paralelos do desenvolvimento da linguagem e consequentemente entende que aprender a ler pode e deve ser to fcil e natural como aprender a falar. Dentre as principais crticas feitas abordagem com nfase no cdigo, destacamos: a) a nfase no cdigo desconsidera o trabalho fundamental da compreenso no processo de leitura porque a nfase nas unidades menores desvia a ateno do aluno das unidades significativas (palavras) e do contexto significativo para as unidades menores no significativas (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985); b) devido s inmeras irregularidades das relaes grafo-fonolgicas encontradas nas escritas alfabticas, o aprendizado do significado das palavras pelo reconhecimento de seu formato global seria muito mais eficiente porque no requer o gasto adicional de processos envolvidos na decodificao grafo-fonolgica (SMITH, 1973; FERREIRO; TEBEROSKY, 1985; FERREIRO, 2004). Por outro lado, dentre as principais crticas feitas s abordagens com nfase no significado esto: a) errado pensar que a aquisio da linguagem escrita to natural quanto a aquisio da linguagem oral

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porque a escrita, alm de ser uma inveno cultural recente reconhecidamente a representao grfica da fonologia da lngua e dependente das habilidades lingusticas (particularmente a conscincia fonolgica) do leitor; b) as abordagens com texto inteiro, sem ensinar explicitamente as relaes grafo-fonolgicas, no so suficientes para uma leitura compreensiva e autnoma porque no permitem a leitura de palavras escritas encontradas pela primeira vez, alm do que a demanda mnemnica visual num processo estritamente global invivel; c) ao contrrio da abordagem com nfase no cdigo, as abordagens com nfase no significado carecem de fundamentao cientfica slida e no encontram suporte nas investigaes empricas da psicolingustica (LIBERMAN; LIBERMAN, 1990; RAYNER et al., 2001). No Brasil, a alta taxa de repetncia na primeira srie, que em 1981 alcanava a cifra dos 70%, foi um dos fatores que mais impulsionou a adeso das abordagens alfabetizadoras de base construtivista, particularmente as baseadas nas noes defendidas por Ferreiro e Teberosky (1985), as quais vm fundamentando a redefinio e a reorganizao das polticas educacionais e prticas pedaggicas at hoje (MACHADO; CARVALHO, 2002). Machado e Carvalho (2002) notam que o documento introdutrio dos Parmetros Curriculares Nacionais para a primeira etapa do ensino fundamental dedica em torno de sete pginas apresentao dos princpios scioconstrutivistas e de seu valor para a prtica de educao, uma evidncia inequvoca de que tais orientaes j dominam a poltica educacional brasileira, direcionando a formao e atuao dos professores, tanto de escolas pblicas quanto particulares. A opo pela abordagem com nfase no significado e pela noo de que a unidade de aprendizagem da leitura deve ser o texto e no as unidades menores so bastante explcitas nos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997, p. 35-36) o qual enfatiza que no possvel tomar como unidade bsica de ensino nem a letra, nem a slaba, nem a palavra, nem a frase que descontextualizados, pouco tm a ver com a competncia discursiva, que questo central, e, portanto, a unidade bsica de ensino s pode ser o texto. O documento abre uma exceo em que palavras ou frases podem ser enfocadas em situaes didticas especficas que o exijam (BRASIL, 1997, p. 35-36). A adoo da abordagem com nfase no significado tambm se explicita no Programa de Formao de Professores Alfabetizadores (PROFA), um curso com durao de 200 horas com material de suporte (vdeos e material impresso) produzido pelo MEC e utilizado para formar alfabetizadores desde o incio de 2001, em parceria com municpios, estados e universidades (BRASIL, 2003a, M1U9T13, p. 1-5). No mdulo 1 desse programa (PROFA) h uma srie de relatos na sesso Trajetria profissional das professoras do Grupo-

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Referncia e caracterizao das turmas de alunos, nos quais inmeros professores contam suas experincias iniciais com o construtivismo por meio dos cursos proporcionados pelo projeto chamado de Centro de Formao e Aperfeioamento do Magistrio (CEFAM) (BRASIL, 2003a, M1U1T6), o qual foi implantado gradualmente a partir de 1983, pelo Ministrio da Educao junto s secretarias de educao dos estados, visando promover a reviso curricular dos cursos de formao de professores e redimensionar a habilitao do magistrio a fim de responder s necessidades de ensino das sries iniciais da escola bsica (CAVALCANTE, 1994). Ao longo de todo o material do PROFA enfatiza-se que na alfabetizao, a proposta o uso de textos e no de slabas ou palavras soltas (BRASIL, 2003a, M1U5T4), pois [...] Ningum pode extrair informaes do texto escrito decodificando letra por letra, palavra por palavra (BRASIL, 2003a., M1U7T8), reiterando que falso pensar que ler baseia-se na relao grafema-fonema e que a compreenso vem depois da decodificao (BRASIL, 2003a., M1U7T9, p. 1); ao contrrio, no material do PROFA enfatiza-se que o melhor caminho para o fracasso na aquisio da leitura Garantir que as regras de fonologia sejam aprendidas e usadas (SMITH, 1999; BRASIL, 2003a. M1U9T13). Em consonncia com o exposto nos pargrafos anteriores, Belintane (2006) nota que a nfase no significado suplantou a nfase no cdigo no mbito pedaggico brasileiro desde o incio da dcada de 1970. Entretanto, apesar da adoo da abordagem com nfase no significado h pelo menos 30 anos, o Brasil ainda no solucionou os problemas de alfabetizao anteriores que assolam o pas de forma ainda mais perturbadora, com ndices ainda mais insatisfatrios, nos dias de hoje. Como aponta Claudemir Belintane (2006), um autor construtivista e que apoia as abordagens de Emlia Ferreiro:

[...] apesar da importncia desse movimento de renovao da educao, as avaliaes nacionais e regionais evidenciam um quadro no muito diferente do que j se exibia nas dcadas de 1970 e 1980. Se antes preponderava a evaso escolar, hoje preponderam as imensas dificuldades de leitura e as defasagens nas correlaes esperadas de competncia/srie (ou ciclo). As avaliaes nacionais de 2003 (BRASIL, 2004) evidenciam um percentual de 55,4% de alunos que apresentam problemas srios de leitura, sendo que 18,7% deles foram classificados no nvel muito crtico. Segundo o SAEB (p. 34), tais alunos no desenvolveram habilidades de leitura mnimas condizentes com quatro anos de escolarizao; no foram alfabetizados adequadamente; no conseguem responder os itens da prova. (BELINTANE, 2006, p. 263).

Como podemos depreender das prprias palavras de Belintane, ocorreu uma mudana qualitativa nos problemas educacionais: se na dcada de 70 tnhamos a evaso escolar como

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o principal problema, hoje o problema maior est nas crianas que esto frequentando a escola, refletido na enorme discrepncia entre competncia de leitura/srie. Portanto o quadro atual sugere que o problema no de evaso, mas sim um problema metodolgico. Dados do Instituto Nacional de Educao e Pesquisa revelam que entre 2002 e 2004, 59% dos alunos da 4 srie do ensino fundamental no possuam competncias elementares para a escrita, dos quais 22,2% no estavam alfabetizados, conforme Capellini (2007). Portanto, vemos que alm da pssima avaliao internacional, as prprias avaliaes nacionais apontam um claro fracasso nessa rea e por isso, outras propostas tm sido apresentadas oficialmente s entidades governamentais, apontando para mudanas apoiadas em linhas ou concepes contrrias s propostas pedaggicas scioconstrutivistas que atualmente vigoram no ensino pblico por meio dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1997, 2003a). Por exemplo, a Cmara dos Deputados, por meio de sua Comisso de Educao, apresentou um documento para fundamentar propostas visando contribuir para um avano neste debate e para as polticas e prticas educacionais no Brasil, mormente no campo da alfabetizao (BRASIL, 2003b). Este documento apresenta um grande corpo de estudos desenvolvidos em vrios pases os quais indicam que as abordagens com nfase no cdigo so as mais recomendveis para a alfabetizao. O grupo de trabalho incluiu neste documento algumas das maiores autoridades em psicolingustica do Brasil e do mundo, dentre elas Marilyn Jaeger Adams (EUA), Roger Beard (Inglaterra), Fernando Capovilla (Brasil), Cludia Cardoso-Martins (Brasil), Jean-Emile Gomberg (Frana), Jos Morais (Blgica) e Joo Batista Arajo e Oliveira (Brasil). Entretanto, intelectuais adeptos dos princpios scioconstrutivistas tm contestado as assunes cientficas e as propostas contidas neste documento (BELINTANE, 2006; BAJARD, 2006). Algumas principais crticas esto que o documento reducionista por focar somente na decodificao e sofre de avareza epistemolgica no sentido de desprezar a interdisciplinaridade, a heterogeneidade e a complexidade dos processos e das diversidades culturais e socioeconmicas e baseia-se na importao de estudos estrangeiros que podem no ser recomendveis para o portugus brasileiro (BELINTANE, 2006, p. 271-273). Outros enfatizam a impropriedade epistemolgica do documento e da abordagem com nfase no cdigo em geral, por considerar as cincias humanas epistemologicamente equivalentes s cincias do mundo fsico e por se basear numa viso eurocntrica, mecanicista e caricatural da escrita, a qual, alm de esquecer seu aspecto semntico, falha do ponto de vista histrico sobre a natureza e a evoluo da escrita ( FERREIRO, 2004; BAJARD, 2006)

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Tambm de suma importncia neste contexto o fato de que dentro desta grande quantidade de crianas que no aprendem a ler e escrever em um nvel mnimo satisfatrio, como mostram as estatsticas do pas acima citadas, um significativo nmero corresponde a crianas portadoras de dificuldades e transtornos de aprendizagem, incluindo crianas dislxicas (o principal foco deste trabalho) e crianas com dficits de ateno e/ou hiperatividade. A dislexia do desenvolvimento, como demonstra uma imensa gama de estudos ao redor do mundo, uma desordem de origem gentico-neurolgica que parece afetar de modo especial a aquisio da leitura e escrita em 5% a 17% da populao (percentual que varia dependendo da cultura e da regularidade da ortografia); isto , a dislexia principalmente caracterizada por uma discrepncia na qual crianas que apesar de uma inteligncia normal, oportunidade e motivao adequadas e ausncia de qualquer dficit sensorial ou dano neurolgico aparentes, encontram srios e persistentes problemas na aquisio da leitura e escrita (SHAYWITZ, 1998; SNOWLING, 2000; PAULESU, 2001; CAPELLINI; NAVAS, 2009; CAPELLINI et al., 2009). Desse modo crucial destacar que a dislexia pode ocorrer independentemente da inteligncia, da cultura, da lngua, do sistema de escrita, bem como do mtodo de alfabetizao e de fatores socioeconmicos (ZIEGLER; GOSWAMI, 2005) e est associada principalmente a dficits em tarefas relacionadas ao processamento da linguagem oral, mormente em tarefas de anlise e segmentao fonolgica, memria de trabalho verbal e nomeao (RAMUS et al., 2003; GALABURDA, CESTNICK, 2003), sintomas que so universais e se originam do desenvolvimento prejudicado do sistema fonolgico (ZIEGLER; GOSWAMI, 2005, p. 4). Do ponto de vista do educador, entretanto, faz-se necessrio, urgentemente conhecermos pontos fundamentais sobre a aquisio desta competncia, a leitura e a escrita, pois os mtodos abordados podem fazer uma fundamental diferena no resultado final da aprendizagem dos alunos brasileiros, quer tenham sinais preditores de dislexia ou no. Enquanto debates calorosos so travados pelos estudiosos no assunto, temos do outro lado o professor, que parece acompanhar (ou no) esse debate educacional histrico buscando formao e informao, pois no resta dvida a esse pblico interessado de que a prtica docente est no centro dessas discusses. Aps esta breve reviso das duas correntes opostas no centro do debate sobre qual seria a melhor forma de se abordar a alfabetizao, voltamos s dvidas com as quais abrimos esta seo: Ou se decodifica e no se compreende. Ou se adivinha, mas no se l. Ou ensinase a ler pelo significado, ou das partes chega-se a palavra. Ou a escrita a transcrio (ainda que incompleta) da oralidade ou uma entidade prpria, radicalmente diferente... Ou isto ou

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aquilo: ou isto ou aquilo... (MEIRELLES, 1990). Em um recente documento da Unesco, Bentolila e Germain (2005) notaram que esse conflito muitas vezes reflete pontos de vista polticos e ideolgicos opostos em relao ao sistema de educao e algumas vezes princpios tericos opostos derivados da pesquisa. Assim, a escolha do mtodo parece depender de vrios fatores, incluindo o objetivo definido de aprendizagem; a extenso na qual a pesquisa levada em conta; a ideologia dominante; o treinamento do professor e a organizao escolar. (BENTOLILA; GERMAIN, 2005). Portanto, ao invs de tentarmos responder diretamente a estas questes, comearemos por indagar o porqu deste debate e em que bases terico-empricas estas duas linhas conflitantes construram seus argumentos. Afinal, o aprendizado da leitura um processo natural no qual as crianas extraem o significado diretamente do texto por meio da construo de hipteses e adivinhao pouco envolvendo a transcodificao ortogrfico-fonolgica? Ou, ao contrrio disso, a leitura um processo de decodificao ortogrfico-fonolgica para a obteno de significado a partir da fonologia? Estas so questes muito instigantes que s podem ser orientadas e resolvidas por investigaes empricas criteriosas. Por meio de uma reviso na literatura cientfica em lingustica, arqueoantropologia da escrita, psicolingustica e neurobiologia da leitura e da escrita, analisaremos os resultados das mais recentes pesquisas desta rea com o objetivo de sustentarmos cientificamente a proposta educacional apresentada neste trabalho, a saber, em forma de instrumentalizao pedaggica para crianas em risco de dislexia, bem como deixarmos fundamental contribuio para todos os professores alfabetizadores que estando em sala de aula, tero sob sua responsabilidade grupos de crianas com diferentes necessidades, incluindo-se neste grupo as crianas com dificuldades na aquisio da linguagem. Ressaltamos que hoje cada vez mais se faz necessrio que o professor tenha em sua formao um conjunto de conhecimentos que o capacitem a avaliar e intervir, dentro do seu campo de atuao, nas inmeras situaes adversas aprendizagem. Nessa realidade a formao pedaggica deve ir alm de um conjunto de teorias ou concepes de educao que falam muito sobre o que aprendizagem, mas muito pouco sobre o que ensinar, como se ensinar e que mecanismos so importantes o professor conhecer para incrementar suas estratgias de ensino. Essencial para clarificar as principais questes deste debate uma discusso sobre as possveis relaes entre a linguagem escrita e a linguagem oral e, para isso, essencial conhecermos as principais teorias lingusticas e o modo e o grau com que as abordagens de alfabetizao nelas se fundamentam. Particularmente, devemos discutir um pouco mais detalhadamente a teoria biolgica da linguagem de Noam Chomsky (1957, 1959, 1965).

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Chomsky props que os seres humanos possuem certos conhecimentos lingusticos inatos, incluindo a especificao de uma fontica e uma gramtica universal, de modo que combinamos as palavras em dois nveis: no nvel superficial da estrutura, representado pela fontica e sintaxe (regras fonotticas da fonologia e regras sintticas) e no nvel do significado (representado pela semntica). Conforme Cagliari (2004) a teoria chomskyana proporcionou um grau de descrio, explicao e formalizao dos dados da linguagem jamais atingido antes, fazendo da Lingustica uma cincia que procura estudar no s as lnguas, mas a prpria mente humana (p.41). De fato, a teoria chomskyana desencadeou uma srie de investigaes que culminaram em teorias empiricamente embasadas sobre os principais processos envolvidos tanto na linguagem oral quanto na leitura-escrita, constituindo-se numa referncia fundamental para as mais diversas reas da psicologia incluindo a psicologia evolucionria (PINKER, 1994; HAUSER, CHOMSKY, FITCH et al., 2002) e neurocincia cognitiva (KUHL et al., 2001; GAZZANIGA, IVRY, MANGUN, 2006). E estes estudos tambm formam a base terico-emprica da abordagem com nfase no cdigo (KAVANAGH, MATTINGLY, 1972; LIBERMAN; MATTINGLY, 1985; LIBERMAN; LIBERMAN, 1990). Entretanto, interessante notar que, no obstante seu forte cunho biolgico, a teoria chomskyana , paradoxalmente, tambm considerada pelos principais autores das abordagens com nfase no significado, particularmente Kenneth Goodman (veja DOMBEY, 2004) e Ferreiro e Teberosky (1985), como um marco da nova psicolingustica e principal suporte para suas reivindicaes, para a noo piagetiana de uma criana inteligente e ativa na construo de seus prprios significados e, finalmente, para a viso vygotskyana de que a criana deve aprender a ler to naturalmente quanto aprende a falar (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985; DOMBEY, 2004). Portanto, devido importncia da teoria chomskyana para ambas as abordagens, com nfase no cdigo e com nfase no significado, trataremos de descrev-la tanto sob uma perspectiva terico-emprica quanto histrica. Ns iniciaremos com os primrdios da lingustica moderna descrevendo como os aspectos mais bsicos da semitica lingustica saussureana esto relacionados s vises sobre a linguagem dos autores mais influentes na educao brasileira, Piaget e Vygotsky. Em seguida descreveremos brevemente a lingustica de Noam Chomsky dentro deste contexto para depois analisarmos de uma forma mais fundamentada cada uma das abordagens de alfabetizao. Tambm detectamos que neste debate as questes centrais giram em torno de qual a verdadeira natureza da escrita alfabtica (se ela um cdigo eminentemente fonolgico ou ideogrfico), quais os processos cognitivos fundamentais envolvidos na leitura (se um acesso direto ao significado ou se

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depende da prvia realizao fonolgica) e, finalmente, se a leitura um processo de adivinhao ou realizada palavra por palavra. Sendo assim, dividiremos as sees de acordo com estas questes fundamentais.

2.2 Objetivo

Neste estudo procuramos realizar um trabalho de reviso da literatura em torno do debate entre duas concepes tericas relacionadas pedagogia da alfabetizao. Uma concepo acentua a importncia da nfase no cdigo (relaes grafo-fonolgicas) e outra enfatiza os significados prvios construdos pelo leitor e suas habilidades em utiliz-los no aprendizado da leitura e escrita derivando significados diretamente da informao visual sem necessidade da decodificao grafo-fonolgica. O objetivo geral deste estudo apresentar uma abordagem crtico-cientfica, fornecendo aos professores/educadores elementos cientificamente embasados que permitam uma postura mais crtica e reflexiva sobre as questes que envolvem a aprendizagem da leitura e escrita, bem como sobre distrbios de aprendizagem que comprometem a aquisio da leitura e da escrita.

2.3 Mtodo

O mtodo deste estudo consiste na reviso e discusso dos principais trabalhos da rea da semitica e semiologia representados pelos estudos de Charles Sanders Peirce (1839-1814) e do linguista e filsofo suo Ferdinand de Saussure (1857-1913), respectivamente. Em seguida revisamos e discutimos os principais estudos da lingustica moderna a partir do estruturalismo de Saussure, passando pelo trabalho de Leonard Bloomfield e culminando com a psicolingustica de Noam Chomsky. Porm, antes de introduzirmos nesta reviso a teoria de Noam Chomsky ns revisamos os principais aspectos da teoria de Jean Piaget e Lev Semenovitch Vygotsky, os dois maiores expoentes da teoria scioconstrutivista que predomina na educao brasileira e os quais so usados como suporte terico-emprico pelos autores da abordagem de alfabetizao com nfase no significado. Dentro desta primeira parte da reviso discutimos as diversas relaes entre as teorias scioconstrutivistas e a semitica de Peirce e o estruturalismo de Saussure. Aps havermos proporcionado um razovel suporte terico da lingustica e das teorias scioconstrutivistas ns encerramos nosso estudo lingustico da reviso com a teoria psicolingustica de Noam Chomsky, uma abordagem fundamental para compreendermos as

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abordagens scioconstrutivistas atuais da alfabetizao, bem como para compreendermos como se deu o desenvolvimento da psicolingustica moderna. Em seguida fazemos uma reviso e discusso dos principais aspectos da abordagem scioconstrutivista da alfabetizao com nfase no significado, particularmente das suas origens nos escritos de seus dois principais autores Kenneth Goodman e Frank Smith. Dentro desta anlise destacamos o aspecto sui-generis desta abordagem que apesar de se basear numa psicologia scio-histrica que veementemente nega qualquer aspecto inato na cognio se baseia, no entanto, fortemente na teoria inatista de Noam Chomsky para justificar suas principais reivindicaes. Finalmente encerramos a reviso das abordagens scioconstrutitivas expondo as reinvindaes de Emlia Ferreiro e Ana Teberosky baseadas em seu estudo da psicognese da lngua escrita nas crianas utilizando o mtodo clnico piagetiano. Dada a importncia da nova psicolingustica chomskyana para ambas as abordagens com nfase no cdigo e com nfase no significado ns nos empenhamos em fazer uma reviso e discusso relativamente exaustiva dentro de uma abordagem histrico-cronolgica do desenvolvimento da nova psicolingustica moderna desencadeada pela teoria chomskyana. Inspirados na prpria reivindicao de Ferreiro e Teberosky (1985) de que a nova psicolingustica chomskyana revolucionou e ampliou o campo da psicolingustica definitivamente para horizontes surpreendentes, cujo marco foi a 4 conferncia promovida pelo Instituto Nacional da Sade e Desenvolvimento da Criana, cuja sigla em ingls NIHCD, ns iniciamos a reviso da nova psicolingustica dando nfase a esta conferncia. Finalmente, ns fizemos uma reviso e discusso dos principais estudos sobre o desenvolvimento lingustico e da escrita na criana alavancados pela 4 conferncia do NIHCD e liderados por Isabelle Liberman e colegas do Laboratrio Haskins, por Jos Morais e colaboradores da Universidade de Bruxelas (conhecido como o grupo de Bruxelas), e por Peter Bryant e Lynette Bradley e colaboradores, bem com Usha Goswami e colaboradores, todos ento na Universidade de Oxford (conhecidos como o grupo de Oxford). A parte final desta reviso constitui-se da anlise e discusso dos principais estudos sobre o processamento da escrita envolvendo os mtodos de rastreamento ocular da leitura e os estudos das bases neurobiolgicas da linguagem oral e escrita, incluindo estudos de leso, tcnicas eletrofisiolgicas como potenciais relacionados a eventos e, finalmente, de neuroimagem.

2.4 Os Fundamentos Bsicos da Lingustica Moderna

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2.4.1 A Semitica e a Semiologia

As razes da lingustica moderna esto na semitica e semiologia, termos de origem grega em que semio deriva do grego semeion, que significa sinal e se referem aos estudos sobre os sistemas de significados construdos pelo homem. A Semitica e Semiologia tornaram-se cincias autnomas com os estudos paralelos no incio do sculo XX do filsofo, fsico e matemtico americano Charles Sanders Peirce (1839-1814) e do linguista e filsofo suo Ferdinand de Saussure (1857-1913), respectivamente. Embora sejam termos permutveis, Semiologia um termo que surgiu na Europa e foi criado por Saussure para definir a teoria geral dos sinais, ao passo que semitica (do grego semeiotik ou "a arte dos sinais ou signos"), embora tenha sido um termo empregado na antiguidade grega pelo mdico grego Galeno e por filsofos mais recentes como o empirista ingls John Locke (1632-1704), est principalmente ligado a Peirce e se refere ao estudo de todos os sistemas de atribuio de significados pelo homem aos fenmenos do mundo que o cerca, isto , a todo sistema de signos ou sgnicos subjacente aos fenmenos culturais da humanidade.

2.4.2 A Semitica de Peirce Para Peirce a semitica a cincia dos signos onde signo (ou representmen), [...] aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para algum, [...] alguma coisa, seu objeto (PEIRCE, 2005, p. 46). Peirce prope que um signo uma estrutura tridica, isto , composto por trs elementos inter-relacionados. O primeiro membro (ou elemento) o signo em si mesmo (ou representmen), isto , a coisa que representa algo para algum. O segundo elemento o objeto representado e o terceiro elemento ocorre quando ao dirigir-se a algum o representmen [...] cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido que o terceiro elemento da trade, o interpretante do primeiro signo (PEIRCE, 2005, p. 46). Em suma, Peirce prope uma noo de signo como uma estrutura tridica, caracterizada pela relao solidria entre trs elementos inter-relacionados e interdependentes, de modo que para que algo possa ser um signo esse algo (representmen) deve representar alguma outra coisa, o objeto do signo, para a mente de algum que chamada de interpretante (que a ideia do significado na mente do sujeito) (SANTAELLA, 1983; PEIRCE, 2005). Por exemplo, a pintura de um cavalo seria o representmen ao passo

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que o ente real cavalo que inspirou a pintura seria o objeto e, finalmente, o significado ou a ideia do cavalo seria o interpretante. A paixo de Peirce pela taxonomia (cincia da classificao) o levou a uma enorme gama de combinaes de elementos que sua classificao tridica permitiu por meio de suas divises e subdivises, levando Peirce a uma tipologia extremamente complexa com muitos milhares de tipos de signos (aproximadamente 59.000 tipos de signos) e, portanto, praticamente invivel (CHANDLER, 2002). Entretanto, quando consideramos a relao do signo com o objeto que ele representa, Peirce nos oferece uma classificao bastante simples, interessante e til, na qual o signo pode ser icnico, indicial ou simblico (SANTAELLA, 1983; PEIRCE, 2005). Para os fins de nosso trabalho vamos resumir estas classes com base apenas na relao do signo com o objeto que ele representa. Assim, ao representar um objeto o signo (representmen) pode ser icnico, indicial ou simblico. O signo um cone quando possui qualidades sensrio-perceptivas semelhantes ao objeto, como fotografias, pinturas, esttuas, etc. O signo um ndice quando possui uma conexo existencial ou de contiguidade perceptiva com o objeto que ele representa, mas no necessariamente uma semelhana, tais como os troves representam chuva, a fumaa que representa o fogo, as pegadas de um ente vivo que representa sua passagem por aquele lugar, etc. E, finalmente, o signo um smbolo quando ele estabelecido por conveno (arbitrariamente) e no possui necessariamente uma relao icnica ou indicial com o objeto que ele representa. (SANTAELLA, 1983; PEIRCE, 2005). A concluso mais importante para ns a respeito da semitica de Peirce que nela todo pensamento um signo (PEIRCE, 2005) e se inicia desde as primeiras impresses fenomenolgicas (sensrio-perceptivas) que mais tarde se materializam em aes e perceptos estveis que se tornam imagens ou representaes mentais, isto , uma ideia do objeto e, portanto, um pensamento-signo (SANTAELLA, 2001, p. 199-200). Assim, a noo de signo proposta por Peirce no logocntrica, ou seja, centrada na palavra (do grego logos = palavra), de forma a restringir o pensamento a uma forma exclusivamente verbal ou proposicional (SANTAELLA, 2001, p. 55), em contraste Semiologia de Saussure em que todos os processos sgnicos so estudados com base na significao das palavras. O signo em Peirce vai muito alm dos signos verbais de modo que sua noo de linguagem to abrangente que pode ser tomada como uma filosofia do pensamento, pois na sua viso o pensamento em si uma forma lingustica, um ato sgnico. Por exemplo, o poeta e semitico Dcio Pignatari, criador do poema-cdigo e um dos principais nomes da poesia concreta no Brasil, sustenta que dentre as principais finalidades da Semitica esto a indagao sobre a natureza dos signos e as

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relaes entre cdigos de linguagens diferentes, incluindo cdigos verbais (que so smbolos), cdigos icnicos, etc.. Desse modo a Semitica Serve para ler o mundo no-verbal: ler um quadro, ler uma dana, ler um filme e, portanto, acaba de uma vez por todas com a ideia de que as coisas s adquirem significado quando traduzidas sob a forma de palavras (PIGNATARI, 2004, p. 20). Em suma, na viso peirceana a linguagem qualquer sistema de atribuio de significados e os signos podem ter a forma de palavras, imagens, sons, odores, sabores, atos ou objetos (CHANDLER, 2002) e a semitica pode ser considerada como a cincia de todas as lnguas (SANTAELLA, 1983), incluindo a linguagem verbal, a msica, etc. (SANTAELLA, 2001). Nesse sentido, a linguagem verbal apenas uma das vrias formas de linguagem e todas as palavras e sentenas da linguagem oral e escrita so apenas um grupo de signos simblicos. Veremos, logo mais, que as concepes piagetianas da origem do pensamento e da linguagem so incrivelmente semelhantes ao conceito de signo na semitica peirceana.

2.4.3 A Semiologia de Saussurre Embora o termo semiologia seja normalmente vinculado tradio lingustica saussureana e o termo semitica tradio peirceana, nos dias de hoje o termo semitica mais usado como abrangendo o campo todo (CHANDLER, 2002). Se para Peirce a semitica era a doutrina formal dos signos intimamente relacionada lgica, para Saussure a semiologia era a cincia que estuda o papel dos signos como parte da vida social humana. Se para Peirce a noo de Linguagem abrangente, pois o pensamento , por si mesmo, uma forma lingustica ou, mais precisamente, um ato sgnico, para Saussure o estudo da linguagem natural a melhor forma de se estudar os signos porque consiste no mais importante e perfeito de todos os sistemas de signos, e sua semiologia fornece uma contribuio especfica para a lingustica como tal. (CHANDLER, 2002). No obstante Saussure considerasse a semiologia como o estudo das leis e regras que estruturam todo e qualquer sistema de signos e considerasse a lingustica como somente um ramo da semiologia, a linguagem natural, por permear todos os aspectos das relaes sociais, o mais importante entre todos os sistemas de sinais, consistindo na representao mais fiel s leis e regras subjacentes semiologia como um todo (SAUSSURE, 1970). Saussure considerava que a linguagem, alm de ser uma faculdade humana, isto , ser da prpria natureza humana, seria o mais sofisticado e estruturado sistema de leis e regras para a articulao de significados, susceptvel de ser decomposta em elementos significantes mais

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simples. Em outras palavras, para Saussure o estudo da linguagem seria a forma mais apropriada de se estudar a natureza do problema semiolgico e que o estudo da estrutura lingustica seria o prprio estudo da semiologia (CHANDLER, 2002). Saussure tornou a lingustica uma cincia com a publicao pstuma compilada por seus seguidores do Curso de lingstica geral no incio do sculo XX e assim inaugurou a lingustica estrutural que se tornou a base da Lingustica Moderna. A viso saussureana de que a linguagem seria uma faculdade natural (embora a lngua fosse uma conveno) (SAUSSURE, 1970, p. 17-18) caracterizada por um signo lingustico baseado na unio de uma imagem acstica (significante) com o sentido (significado) e por uma bateria combinatria de elementos definidos e finitos (SANTAELLA, 1983), apresentando, assim, uma estrutura que poderia ser estudada de forma autnoma e separada dos aspectos histricos e sociais, exerceu um enorme impacto na pesquisa lingustica desde ento. Se a semitica peirceana toda costurada em tricotomias, a semiologia saussureana toda fundamentada em dicotomias. Dentre as vrias distines conceituais importantes em Saussure iniciaremos aquela entre diacronia e sincronia. Saussure argumentou que a lingustica da sua poca era uma lingustica diacrnica (do prefixo grego dia = atravs de, e do grego khrnos = tempo) muito preocupada com as mudanas que a lngua sofria ao longo do tempo, pois ele defendia uma lingustica sincrnica (do prefixo grego sin = associao, ao conjunta) que se dedicasse ao estudo da lngua como um sistema num dado momento do tempo (SAUSSURE, 1970). A diferenciao entre diacronia e sincronia est atrelada a uma outra importante distino saussureana entre os elementos externos ou de fora da lngua que no dizem respeito ao organismo interior do idioma (como histria, etnologia, geografia, etc.) e os elementos internos ou de dentro da lngua. Ao descartar os aspectos externos e defender que a lingustica deveria privilegiar o estudo da lngua em si mesma e por si mesma, isto , se focar na estrutura interna da lngua que contm as regras do jogo lingustico, Saussure se coloca em posio contrria aos linguistas da poca, inaugura a sua semiologia e estabelece o nascimento da lingustica moderna (FERREIRA, 1999, p. 126-127). Para capturar a essncia dos aspectos semiolgicos (ou semiticos) da linguagem, isto , das leis e regras que estruturam a semiologia lingustica, Saussure fez o que hoje a famosa distino entre langue (linguagem) e parole (fala). A langue refere-se ao sistema de regras e convenes subjacentes a todas as lnguas do mundo e, portanto, independe e pr-existe ao idioma (fala). A parole se refere ao uso do cdigo ou sistema de signos lingustico por um idioma particular (SAUSSURE, 1970, p. 16).

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Assim, na semiologia saussureana tradicional, as estruturas e regras de um sistema de signos so mais importantes do que as performances ou prticas especficas (que so meros exemplos de seu uso). Por isso, Saussure se focou na langue ao invs da parole (CHANDLER, 2002), cuja essncia , em contraste a Peirce, um sistema de signos baseado numa relao didica, isto , uma relao entre dois elementos: significante-significado. Para Saussure o signo lingustico , acima de tudo, uma entidade mental em que o significante um nome ou palavra, no somente na sua forma acstica, mas principalmente na forma de imagem acstica ou impresso psicolgica dos sons lingusticos decorrente da experincia sensorial. O significado, por sua vez, no uma coisa ou objeto como na concepo peircena, mas sim um conceito ou ideia. (SAUSSURE, 1970, p. 15, 16, 23-24, 66, 119). Ainda com relao ao signo lingustico sumamente importante a distino saussureana entre signo natural ou motivado e signo arbitrrio ou convencional, este ltimo uma caracterstica necessria da linguagem. No signo lingustico o significante (imagem acstica da palavra) sempre arbitrrio e no motivado, mas no no sentido de que sua escolha simplesmente casual (pois a palavra sempre est previamente determinada por uma conveno social) e sim que ele (o significante) no tem nenhuma ligao causal ou natural com o significado. Em outras palavras a relao entre o significante e o significado sempre ser arbitrria de modo que palavras de lnguas diferentes totalmente distintas podem representar o mesmo significado (SAUSSURE, 1970, p. 83 apud CARVALHO, 2003). Numa analogia grosseira com o signo tridico de Peirce (signo/representmen-objetointerpretante), poderamos dizer que Saussure o simplifica ou o reduz a uma dade baseada na relao do signo (ou representmen) com o objeto. Desse modo o significante saussureano, por ser sempre uma palavra estabelecida por conveno, equivale na tipologia peirceana a um smbolo. O significado em Saussure, por outro lado, une num s termo as noes peirceanas de objeto (coisa representada) e interpretante (ideia dessa coisa na mente de algum) (PEIRCE, 2005, p. 46), pois no se reduz a um objeto, mas acima de tudo uma ideia ou conceito do objeto. Portanto, com relao s linguas naturais Saussurre prope que o signo no constitui apenas um nome (significante), mas tambm a representao fonolgica do nome na mente a qual representa no apenas uma coisa, mas principalmente uma ideia (significado). O princpio de arbitrariedade, embora seja uma propriedade do significante, s faz sentido quando relacionado ao significado e, portanto, um conceito relacional inextricavelmente ligado ao significado. H um outro conceito, o de linearidade, que est estritamente ligado ao plano da expresso e percepo, isto , ao plano sensvel dos significantes, das imagens acsticas como palavras, slabas e fonemas. O termo linearidade

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reflete o princpio de que essas unidades so emitidas, segundo Saussure, em ordem linear sob certas regras que ele denominou de relaes sintagmticas. Saussure definiu o sintagma como a combinao de formas mnimas numa unidade lingustica superior, num sistema de relaes de funo e dependncia (CARVALHO, 2003). Com o estabelecimento do signo lingustico (significante-significado) e da anlise detalhada das regras gerais de estruturao dos significantes, Saussure inaugurou o que hoje conhecido como lingustica estrutural. Conforme destaca Santaella, a grande revoluo saussureana foi estender o estudo da lingustica para alm das fronteiras das gramticas de lnguas particulares (do portugus, do francs, do ingls, etc.) e, pela primeira vez, propor em bases precisas os princpios cientficos e metodolgicos para investigar a linguagem como um sistema ou estrutura de leis e regras especficas e autnomas subjacentes a todas as lnguas do mundo (SANTAELLA, 1983, p. 16-17). Santaella (1983) explica que a viso saussureana estrutural da lngua implica numa interao e interdependncia entre os elementos da lngua de tal modo que cada elemento, desde as unidades maiores como sentenas e palavras at s unidades menores como os fonemas, adquire um valor ou funo por oposio a todos os outros, num sistema de regras combinatrias precisas que Saussure chamou de sistema de valores diferenciais. Nessa estrutura combinatria, a substituio de um simples fonema /p/ da palavra pente pelo fonema /d/ altera o som global da palavra e seu significado, gerando uma nova palavra dente. Embora a viso original de sintagma parea contemplar somente as relaes no plano mrfico (palavras) e sinttico (sentenas), no seu sentido lato o sintagma toda e qualquer combinao de unidades lingusticas na sequncia de sons da fala (CARVALHO, 2003). Essa abordagem influenciou vrias escolas estruturalistas que deram continuidade ao pensamento de Saussure, dentre elas a escola fonolgica de Praga liderada por Roman Jakobson e Nicolai Trubetskoi, o estruturalismo norte-americano de Leonard Bloomfield, e at mesmo a psicolingustica chomskyana. A grande contribuio da escola fonolgica de Praga foi abordar o fonema no somente sob o aspecto perceptivo e, alm de consider-lo como a menor unidade de anlise, o definiu como um grupo caracterstico de propriedades perceptivas e motoras, isto , um fenmeno fonoarticulatrio. Esta escola estabeleceu uma distino, que Saussure ainda no havia estabelecido claramente, aquela entre o som material, chamado de fone e objeto de estudo da fontica e a imagem acstica, denominada de fonema (CARVALHO, 2003; VAZ; RAPOSO, [20--]). O linguista e behaviorista norte-americano Leonard Bloomfield (1887-1949) adotou os conceitos de Saussure e os conjugou com os princpios tericos da psicologia behaviorista, diferenciando-se de Saussure principalmente por negar quaisquer traos mentalistas na lngua

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na noo de significado como ideia ou conceito, concebendo a linguagem toda como um fenmeno puramente fsico. Assim, Bloomfield se dedicou exaustivamente descrio precisa dos padres sonoros e regularidades das lnguas, bem como a identificao de estruturas constituintes como um meio de anlise sinttica (VAZ; RAPOSO, [20--]). Em suma, como notou Carvalho (2003), conceitos tais como signo lingustico baseado na relao significante-significado, a arbitrariedade do significante, o significante como imagem acstica (atualmente denominada de representaes fonolgicas), as distines fontica-fonologia e fone-fonema, as noes de morfema e grafema e a noo combinatria do sintagma como base da sintaxe, so categorias lingusticas extremamente frteis, todas decorrentes do pensamento de Saussure e hoje definitivamente incorporadas s cincias da linguagem (CARVALHO, 2003). Incluindo a lingustica ps-saussureana de Noam Chomsky e os prprios estudos ps-chomskyanos (HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002;

OSTERHOUT et al., 2006).

2.4.4 A relao entre a linguagem oral e escrita na Semitica e Semiologia

Uma vez que para Peirce um smbolo um signo que se refere ao objeto por meio de uma conveno ou lei e, portanto, que todos os sinais convencionais, incluindo a linguagem oral e escrita, so smbolos, ele caracteriza os signos lingusticos de uma forma muito semelhante a Saussure (CHANDLER, 2002). Ainda de forma muito semelhante a Saussure, Chandler (2002) nota que em uma de suas raras referncias noo de arbitrariedade dos smbolos Peirce tambm confirma que eles so arbitrrios. Com relao ao que a linguagem escrita representa, Peirce tambm em uma de suas poucas observaes a esse respeito parece ter deixado claro que a escrita representa a fala e no diretamente o significado. Esses aspectos podem ser notados no pargrafo abaixo:

Todas as palavras, sentenas, livros e outros signos convencionais so smbolos. Falamos de escrever ou pronunciar a palavra homem, mas isso apenas uma rplica ou materializao da palavra que pronunciada ou escrita. A palavra, em si mesma, no tem existncia, embora tenha ser real, consistindo em que os existentes devero se conformar a ela. um tipo geral de sucesso de sons, ou representamens de sons, que s se torna um signo pela circunstncia de que um hbito ou lei adquirida levam as rplicas, a que essa sucesso d lugar, a serem interpretadas como significando homem. Tanto palavras quanto signos so regras gerais, mas a palavra isolada determina as qualidades de suas prprias rplicas. (PEIRCE, 2005, apud SANTAELLA, 2004, p. 135-136).

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Como se v Peirce argumentou que a palavra pronunciada ou escrita so apenas rplicas ou materializao do signo palavra, que consistem numa sucesso de sons ou representamens de sons, respectivamente. Portanto, Peirce se refere palavra escrita como um signo constitudo de signos menores cujos objetos de representao so os sons constituintes da palavra oral. Em suma, para Peirce a linguagem escrita representa o oral. No prximo pargrafo veremos que a viso da lingustica estrutural a mesma, s que os linguistas estruturalistas so mais explcitos a esse respeito. As abordagens metodolgicas e propostas da lingustica estruturalista tambm contemplaram o fenmeno da escrita. Saussure destacou a primazia da linguagem oral como uma faculdade natural humana e, portanto, como uma faculdade primria e com primazia em relao escrita. Saussure inclusive atacou veementemente como a tirania da escrita o fato de que a teoria lingustica da poca tomava como objeto de estudo a linguagem escrita ao invs da linguagem oral (OLSON, 1994). Na realidade desde Saussure a linguagem oral tem sido vista como uma atividade primria, enquanto que a escrita seria uma atividade secundria linguagem oral, uma mera transcrio da fala, uma noo antiga j proposta por Aristteles (OLSON, 1994). Leonard Bloomfield afirmou que a escrita meramente uma forma de se registrar a linguagem por formas visveis (BLOOMFIELD, 1933, p. 21, apud OLSON, 1994), e que ao ler, mesmo silenciosamente, o leitor reproduz os aspectos fonoarticulatrios da fala na codificao da mensagem (Bloomfield, 1955, p. 103, apud MATTINGLY, 1972). Bloomfield tambm trabalhou especificamente com a aquisio da leitura-escrita sustentando que este um cdigo que deve ser bem dominado (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985) e que o ideal que as crianas possuam um total domnio do nome das letras antes que se inicie a alfabetizao (GROFF, 1999). Desde Saussure at os nossos dias a grande maioria dos estudos lingusticos sobre a leitura e escrita tem enfatizado basicamente que a linguagem oral uma atividade lingustica primria e que a escrita uma atividade lingustica secundria cuja aquisio e pleno domnio esto relacionados s habilidades lingusticas primrias do leitor (KAVANAGH; MATTINGLY, 1972; SNOWLING, 2000; TREIMAN; KESSLER, 2005; ZIEGLER; GOSWAMI, 2005). A exceo a este pensamento so as formulaes tericas dos principais autores da abordagem com nfase no significado, particularmente de Frank Smith, Kenneth Goodman e Jean Foucambert (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985; BENTOLILA; GERMAIN, 2005). Nas prximas sees analisaremos as contribuies para a lingustica moderna das teorias de Piaget, Vygotsky e Chomsky, respectivamente.

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2.5 As abordagens lingusticas de Piaget e Vygotsky

As teorias de Piaget e Vygotsky so as mais influentes na educao brasileira, incluindo as questes relacionadas alfabetizao. Portanto, para situarmos melhor a discusso sobre concepes de alfabetizao e discuti-las luz dos mais recentes e importantes trabalhos cientficos sobre esse assunto, faz-se necessrio que recapitulemos alguns aspectos de suas abordagens, mormente aquelas relacionadas linguagem e alfabetizao. Como no poderia deixar de ser, as concepes de Peirce e Saussure permeiam as concepes lingusticas de Piaget e Vygotsky. Entretanto ns iremos notar que uma parte importante da concepo de Piaget sobre a linguagem e seu desenvolvimento parece estar fundamentada na concepo de Peirce de que linguagem toda funo semitica em geral e que a linguagem oral apenas uma forma de pensamento em signos. Por outro lado, Vygotsky parece mais influenciado pela tradio lingustica saussureana ao atribuir linguagem um status superior na construo dos significados, embora discorde dela quando vai mais alm ao reivindicar que a palavra e o significado formam uma unidade de pensamento verbal. Com base na noo de unidade do pensamento verbal, Vygotsky (trabalho original publicado em russo em 1934) critica veementemente a validade do signo lingustico saussureano significante-significado que, segundo ele, sugere uma separao ou quebra dessa unidade, acarretando funestas consequncias para o estudo da lingustica, levando os pesquisadores a se focarem nas unidades de som sem nenhuma relao com o significado e negligenciar o papel cognitivo do desenvolvimento da linguagem (VYGOTSKY, 1986). A esta altura, entretanto, j se torna importante destacarmos a oportuna diferenciao feita por Elliot (1981) ao comparar as abordagens lingusticas de Piaget e Vygotsky com as de Noam Chomsky, para a estendermos a todos os outros estudiosos, cujos esforos so mais especificamente voltados para o estudo da linguagem em si, como o caso de Saussure e outros linguistas. Enquanto nos estudos de Chomsky suas observaes sobre o desenvolvimento da linguagem so um subproduto de seus esforos para desenvolver uma teoria da linguagem (ELLIOT, 1981, p. 46), as observaes de Piaget e Vygotsky sobre o desenvolvimento da linguagem (particularmente a fala egocntrica) refletem mais o interesse desses autores pelas possveis relaes entre a linguagem humana e outros tipos cognitivos e sociais de conhecimento e o modo como tal relao se modifica durante o desenvolvimento (ELLIOT, 1981, p. 42, 45). Nesse sentido as concluses de Piaget e Vygotsky so frequentemente resgatadas e confrontadas nas discusses sobre as relaes entre pensamento e linguagem, tais como se o pensamento precede a linguagem ou o oposto e at que ponto [...]

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o pensamento se origina na linguagem ou a linguagem se constri sobre as realizaes cognitivas, ou se [...] pode uma descoberta lingustica dar origem a um desenvolvimento intelectual ou, em vez disso, se [...] a linguagem apenas verbaliza uma compreenso que j foi estabelecida no verbalmente (ELLIOT, 1981, p. 45). nessa perspectiva que esses dois autores scioconstrutivistas deram suas maiores contribuies para pensarmos sobre a linguagem e tambm nela que reside uma de suas principais divergncias. Nas vises clssicas do desenvolvimento intelectual humano de Piaget (1970a,b) e Vygotsky (1978) e at mesmo do fundador da psicanlise Sigmund Freud (1856-1939), no h nada de inato, isto , os neonatos saem do tero somente com um grupo mnimo de reflexos (choro, suco, apreenso, movimentos bsicos dos membros, etc.) e uma motivao para aprender (ANDRADE, 2006a,b). O beb no possui nem percepo e nem memria, pois sua experincia do mundo visual consiste de uma tbua sensorial, ou seja, uma srie de imagens bidimensionais passageiras que mudam com cada movimento do objeto ou das sacadas visuais. Para ambos, somente aps um longo perodo de experincias sensriomotoras, aproximadamente por volta dos dezoito meses de idade, que a criana se torna capaz de representar mentalmente o mundo em termos de conceitos (objetos, eventos, etc.) e de pensar sobre ele. Para Piaget o pensamento surge por volta de um ano e meio de idade quando a criana adquire a permanncia do objeto, a capacidade de representar mentalmente objetos e aes por meio de imagens mentais que, a partir de ento, construiro o pensamento lgico. Para Vygotsky, a formao do pensamento, essa transferncia [...] dos padres de comportamento para os processos internos [...] ocorre atravs da fala (VYGOTSKY, 1986, p.35).

2.5.1 A importncia da fala egocntrica para Piaget e Vygotsky

Um aspecto fundamental das teorias de Piaget e Vygotsky foi a observao do fenmeno lingustico caracterstico das crianas em idade pr-escolar que Piaget denominou de fala egocntrica e o qual foi assumido mais tarde por Vygotsky (PIAGET, 1986; VYGOTSKY, 1986). Piaget notou que uma parte significativa da fala das crianas prescolares era dirigida a quem quer que estivesse num raio de alcance auditivo e no dava nenhuma mostra de que a criana estivesse tentando levar em conta o conhecimento ou os interesses de um ouvinte especfico (ELLIOT, 1981, p. 43). De acordo com Vygotsky (1986, p.26), o que o mais impressionou Piaget na fala egocntrica foi a forma como a criana se centrava no seu prprio ponto de vista [...] em parte porque a criana fala somente sobre ela

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mesma, mas principalmente porque ela no tenta se colocar no ponto de vista de seu ouvinte, um egocentrismo manifestado [...] tanto literalmente, em termos perceptivos, quanto figurativamente, em termos do conhecimento que ela presumia ser possudo pela segunda pessoa (ELLIOT, 1981, p. 43). Entretanto, h uma diferena fundamental entre Piaget e Vygotsky sobre o papel da fala egocntrica e da linguagem no desenvolvimento cognitivo. Em Piaget a linguagem no determina o pensamento e nem tem grande influncia no seu desenvolvimento, mas simplesmente uma expresso do pensamento de modo que a fala egocntrica reflete as formas de lgica da criana qualitativamente distintas da lgica dos adultos. Para Vygotsky a linguagem que determina o pensamento e a fala egocntrica um marco do processo de desenvolvimento lingustico e cognitivo, no qual os pensamentos verbalizados vo, aos poucos, se tornando fala interna que no incio servem tanto ao pensamento autstico quanto ao pensamento lgico e mais tarde torna-se em pensamento verbal (VYGOTSKY, 1986, p. 3435).

2.5.2 A fala egocntrica em Piaget

Inicialmente, a fala egocntrica fez com que Piaget abordasse questes de ordem lgico-verbal ou lgico-conceitual para explicar o desenvolvimento cognitivo da criana enfatizando os fatores sociais e culturais no desenvolvimento do pensamento (MONTOYA, 2006, p. 120). Entretanto, houve uma mudana posterior de perspectiva na qual a importncia decisiva e explicativa da linguagem na formao do pensamento lgico (MONTOYA, 2006, p. 121) deu lugar interpretao da fala egocntrica no como um aspecto do desenvolvimento da linguagem, mas sim como reflexo do desenvolvimento dos processos perceptivos e cognitivos ainda em construo na criana os quais tambm se caracterizavam por um egocentrismo cognitivo que Piaget denominou de centrao (termo usado para se referir especificamente aos aspectos cognitivos no-lingusticos) (PIAGET, 1970). Veremos que na nova e definitiva viso piagetiana, a linguagem apenas mais um produto do pensamento do que a causa dele. Conforme nota Montoya, (2006) para Piaget o pensamento no deriva da estrutura da linguagem (p. 124), mas sim o contrrio, isto , a aquisio da linguagem est [...] atrelada constituio da capacidade humana de representar, isto , de diferenciar significantes e significados e por isso, ao exerccio da funo simblica (p. 123). Subjacente a essa nova interpretao da fala egocntrica e da relao entre linguagem e pensamento est um conceito sumamente importante da teoria piagetiana

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que um sistema de signos que Piaget denomina de funo semitica, cuja compreenso condio fundamental para entendermos a abordagem lingustica de Piaget. Lima (1999) coloca de forma clara a viso piagetiana de que Na raiz da linguagem est a funo semitica a capacidade simblica de representar o mundo atravs de imagens mentais de objetos e aes (imitao diferida), a qual surge somente por volta de um ano e meio de idade quando a criana adquire a permanncia do objeto (conceber que um objeto ainda existe ou pensar sobre ele aps ser retirado do contato sensorial). Assim, a funo semitica" de Piaget pode ser definida como a relao smbolo (imagens mentais) real (objetos e aes), a qual define o prprio conceito de pensamento, um conceito de signo em que as imagens mentais, isto , o prprio pensamento, so os smbolos substitutivos do real (LIMA, 1999, p. 57, 100, 200). A funo semitica, portanto, um conceito de signo muito semelhante ao da semitica de Peirce, onde todo pensamento ocorre em signos (SANTAELLA, 2001, p.39), isto , todo pensamento um signo, um objeto ou algo que pela experincia perceptiva passou a ser representado na mente da pessoa, mesmo que parcialmente (PEIRCE, 2005). Para Piaget a linguagem oral apenas uma manifestao da funo semitica (LIMA, 1999) no seu nvel mais alto, na qual as palavras faladas so signos que se acoplam aos smbolos (imagens mentais) formando uma superestrutura da funo semitica definida pela relao signo (palavra) smbolo (imagens mentais) real. Se retirarmos o real dessa superestrutura da funo semitica temos a linguagem oral definida como signo (palavras faladas)-smbolo (imagens mentais), um sistema de signo lingustico praticamente idntico relao didica saussureana significante-significado. De qualquer modo a linguagem oral em Piaget no tem a mesma importncia que em Saussure (que a tomou como o paradigma dos sistemas de significao), mas apenas um subproduto de um sistema lingustico no logocntrico, bem nos moldes peirceanos, no qual o pensamento-signo da funo semitica no s independe da linguagem como tambm a sua prpria origem. Em suma, parece provvel, ento, que a noo de funo semitica de Piaget tenha sido baseada na semitica de Peirce, em que o pensamento humano concebido como semiose ouprocesso de formao de signos (SANTAELLA, 2001).

Portanto, na compreenso da funo semitica, sua gnese e sua relao com a linguagem oral, que entendemos que a linguagem para Piaget se fundamenta, desde o incio, nas imagens mentais de objetos e aes [...] assimilados em funo dos esquemas sensriomotores de modo que a palavra se limita quase a traduzir, neste nvel, a organizao de esquemas sensrio-motores [...] (PIAGET, 1978, apud MONTOYA, 2006, p. 123).

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2.5.3 A fala egocntrica em Vygotsky

Vygotsky, em contraste a Piaget, considera que a linguagem que d origem ao que ele chama de funes mentais superiores, isto , percepo, memria e pensamento e, desse modo, caracterizou o desenvolvimento cognitivo em trs estgios de desenvolvimento lingustico. De acordo com Vygotsky, a funo primria da fala incluindo a fala egocntrica, em qualquer poca da vida, essencialmente social (VYGOTSKY, 1986, p. 35). O primeiro estgio representa a fala puramente social ou comunicativa at por volta de 3 anos de idade e no relacionada ao intelecto, pois caracterizada por ser eminentemente voltada para o mundo externo com funes eminentemente pragmticas como controlar o comportamento dos outros, obter alimentos, expressar pensamentos simples e emoes como o choro, riso, etc.. Um exemplo da fala neste estgio : Eu quero mam. No segundo estgio, entre os 3 e 7 anos, alm da fala social tambm aparece a fala egocntrica, em que a criana fala tambm consigo mesma, independentemente se h ou no um interlocutor presente. Normalmente as crianas vo falando enquanto elas vo realizando as coisas e funciona como uma tentativa de guiar o prprio comportamento (como contar em voz alta, falar enquanto separa objetos, etc.) (VYGOTSKY, 1986, p. 35-36). na fala egocntrica que surge a primeira divergncia interpretativa entre Vygotsky e Piaget, na qual voltaremos nossa ateno nos prximos pargrafos. Como notou Vygotsky (1986, p. 29), para Piaget a fala egocntrica no tem nenhuma utilidade bvia principalmente porque diminui com a idade at desaparecer quase que completamente; no tpica das crianas em idade escolar e no se relaciona de nenhuma forma com o pensamento egocntrico do raciocnio abstrato. Entretanto, Vygotsky notou que se fossem acrescentadas algumas dificuldades ou frustraes nas atividades piagetianas de investigao da linguagem egocntrica, tais como a criana ficar sem papel ou sem certo lpis de cor no transcorrer da atividade do desenho, seria possvel observar um papel muito mais relevante da fala egocntrica e, portanto, da linguagem no desenvolvimento do pensamento (VYGOTSKY, 1986, p. 30-31). Por exemplo, aps ter quebrado a ponta do lpis quando desenhava a roda de um bonde uma criana de cinco anos e meio falou consigo mesma quebrou e, aps vrias tentativas frustradas de tentar terminar o desenho, a criana passou a conversar intensamente consigo mesma (para Vygotsky uma manifestao da fala egocntrica) enquanto mudava seus planos, trocou o lpis por aquarelas [...] e comeou o desenho de um bonde quebrado aps um acidente, continuando a falar consigo mesma de tempos em tempos sobre a mudana em sua pintura (VYGOTSKY, 1986, p. 31). Vygotsky

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citou esta passagem como evidncia inequvoca de que a fala egocntrica, espontnea e inconsciente, no pode ser considerada apenas como um mero subproduto do pensamento, ou simplesmente como um acompanhamento que no interfere com a melodia, uma vez que a orientou na mudana de seus planos (VYGOTSKY, 1986, p. 31), e conclui:

Quando as circunstncias a foram parar e pensar, provvel que ela pense em voz alta. A fala egocntrica, desgarrada da fala social em geral, com o tempo leva fala interna, a qual serve tanto ao pensamento autstico quanto ao lgico. (VYGOTSKY, 1986, p. 35).

Como notou Elliot (1981, p. 44) Na fala egocntrica, a funo da fala da criana passa de social e comunicativa a individual e auto-reguladora.. Assim, o produto final desse desenvolvimento seria uma fala interna ligada de forma inextricvel e indissolvel com o pensamento, formando uma unidade de pensamento verbal (VYGOTSKY, 1986). Nesse sentido, toda forma superior de pensamento (funes mentais superiores) tal como percepo, memria e pensamento passam a se basear exclusivamente na linguagem e constituir o pensamento verbal, o qual tem uma origem social. Vygotsky reivindicou como fato inquestionvel que o desenvolvimento do pensamento determinado pela linguagem, isto , pelos instrumentos lingusticos do pensamento e pela experincia sciocultural da criana (VYGOTSKY, 1986, veja tambm ELLIOT, 1981, p. 44). Finalmente, no terceiro estgio a fala interna est totalmente desenvolvida e a fala social mais sofisticada e normalmente ocorre na presena de um interlocutor. A fala interna orienta e organiza nossos pensamentos e comportamentos, permitindo-nos engajar em todas as formas de funes mentais superiores, como fazer conta de cabea, usar relaes lgicas de memria e sinais internos, etc. (ANDRADE, 2006a).

2.5.4 Piaget e a linguagem escrita

Piaget no se dedicou e no produziu nada sobre a natureza do sistema de escrita, sua relao com os sistemas de significao e linguagem oral (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985, p. 13, 28). Entretanto alguns autores piagetianos fazem incurses tericas sobre esse tema (LIMA, 1999), enquanto outros, como Ferreiro e Teberosky (1985), foram mais longe ao desenvolverem estudos empricos especificamente voltados para examinar o desenvolvimento dos esquemas lgicos em crianas a partir de 4 anos de idade, envolvidos na leitura e escrita.

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Uma vez que as abordagens e concepes sobre a leitura e escrita de autores scioconstrutivistas sero analisadas com mais detalhes posterioremente, iremos nos ater somente em como alguns autores piagetianos, particularmente Lima (1999) e Ferreiro e Teberosky (1985) relacionam alguns aspectos da teoria piagetiana com a leitura e escrita. Na viso piagetiana a linguagem escrita apenas mais um dos muitos objetos das aes sensrio-motoras da criana (LIMA, 1999, p. 107). no desenvolvimento da funo semitica, por meio dos jogos simblicos (desenhos, manipulao de figuras, etc.), que a criana aprende a usar a escrita como um objeto que representa outro: [...] o cdigo grfico funciona como significante da realidade [...] uma forma de substituir o real (LIMA, 1999. p. 105). Se tomarmos esta sentena no sentido estrito tem-se a ideia de que a palavra escrita remete diretamente ao significado sem necessitar de sua converso grafo-fonolgica. Entretanto a relao entre a linguagem escrita e o signo lingustico no fica muito clara em Lima (1999), pois se por um lado ele se refere escrita como desenhos convencionais e codificados que representam os sons da linguagem (LIMA, 1999, p. 200), por outro afirma que o cdigo grfico funciona como significante da realidade [...].uma forma de substituir o real (LIMA, 1999, p. 105). Ferreiro e Teberosky (1985, p. 64) tambm oferecem uma abordagem piagetiana da leitura-escrita com base no conceito de funo semitica, a partir do segundo ano de vida como um desenvolvimento das aes sensrio-motoras:A linguagem, o jogo simblico, a imitao diferida, a imagem mental e a expresso grfica envolve a funo semitica. Na posse dela a criana capaz de usar significantes diferenciados, sejam estes smbolos individuais ou sinais sociais (FERREIRO & TEBEROSKY, 1985, p.64).

Assim como Lima (1999, p.105), Ferreiro e Teberosky (1985) afirmam que a escrita um significante, um substituto (significante) que representa algo (p. 64), porm foram mais explcitas ao assumirem que, diferentemente da viso saussureana de que a escrita representa a fala, ler no decodificar a escrita em fonologia (p. 34), pois [...] a linguagem escrita no representa primariamente os sons da fala, mas sim que prov ndices sobre o significado (p. 272). Como podemos notar claramente, essas concepes de autores piagetianos sobre a natureza da escrita vo numa outra direo em relao s concepes de escrita na tradio saussureana da lingustica estrutural. Essas concepes tambm esto intimamente ligadas a abordagens pedaggicas e psicopedaggicas de tradio scioconstrutivista.

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2.5.5 Vygotsky e a linguagem escrita

Se o interesse de Piaget pela linguagem escrita foi praticamente nulo, Vygotsky manifestou um claro interesse sobre a linguagem escrita, principalmente porque para Vygotsky a linguagem escrita seria simplesmente uma forma de linguagem oral codificada em sinais visuais. A lgica subjacente forma como Vygotsky aborda a escrita um tanto bvia. Se para ele a palavra oral, por meio da fala interna, a base do pensamento, de modo que palavra e significado constituem uma s unidade de pensamento verbal, necessariamente ele v a natureza da escrita nos mesmos moldes que os linguistas da tradio saussureana, isto , como um cdigo de representao visual dos sons da fala (SAUSSURE, 1970;

BLOOMFIELD,1933; MATTINGLY, 1972). Em outras palavras, se a palavra oral e o sentido formam a unidade de pen