dissertação kosi omi
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Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixáO uso da Agua no terreiro de Iya Naso Oká Salvador BahiaTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE CINCIAS EXATAS
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM
MODELAGEM EM CINCIAS DA TERRA E DO AMBIENTE-PPGM
CLUDIA OLIVEIRA DOS SANTOS
Kosi omi, kosi orix. Sem gua, sem orix.
Modelagem etnoecolgica sobre uso da gua no Il Ax Iy Nass Ok /
Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia
FEIRA DE SANTANA - BAHIA
2009
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CLUDIA OLIVEIRA DOS SANTOS
Kosi omi, kosi orix. Sem gua, sem orix.
Modelagem etnoecolgica sobre uso da gua no Il Ax Iy Nass Ok /
Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Modelagem em Cincia da Terra e
do Meio Ambiente da Universidade Estadual de
Feira de Santana.
Orientador: Prof Dr. FBIO PEDRO SOUZA DE FERREIRA BANDEIRA
FEIRA DE SANTANA - BAHIA
2009
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Ficha catalogrfica - Biblioteca Julieta Carteado da Universidade Estadual de Feira de
Santana.
Santos, Cludia Oliveira dos.
Kosi omi, kosi orix. Sem gua, sem orix: Modelagem etnoecolgica sobre uso da gua
no Il Ax Iy Nass Ok/Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia./Cludia Oliveira
dos Santos Feira de Santana, 2009.
1x, fls + anexo
=
Dissertao (Mestrado): DEXA/UEFS 30.10.2009
Orient.: Bandeira, Fbio Pedro Souza de Ferreira
1. gua 2. Candombl 3. Etnoecologia I. Ttulo
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CLUDIA OLIVEIRA DOS SANTOS
Kosi omi, kosi orix. Sem gua, sem orix
Modelagem etnoecolgica sobre uso da gua no Il Ax Iy Nass Ok /
Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Modelagem em Cincia da Terra e
do Meio Ambiente da Universidade Estadual de
Feira de Santana.
Feira de Santana, 29 de Outubro de 2009
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof Dr Fbio Pedro Souza de Ferreira Bandeira
Universidade Estadual de Feira de Santana/ UEFS
__________________________________________
Prof Dr Carlos Csar Ucha de Lima
Universidade Estadual de Feira de Santana / UEFS
____________________________________________
Prof. Dr Antnio Almerico Biondi Lima
Universidade Estadual de Feira de Santana / UEFS
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Ao meu irmo Clebson (Keu) minha mais
profunda saudade, saudade sem fim... Sempre
foi um cara do bem, entusiasta, determinado,
sonhador, um guerreiro, apaixonado pela
vida. Dedico a ele esta vitria.
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AGRADECIMENTOS
Esta uma parte difcil, onde posso cometer o erro de esquecer algum. Vejo a trajetria
trilhada e queria saber o nome de cada um que cruzou meu caminho, dos motoristas de nibus
que me conduziram tantas vezes nessas idas e vindas de Salvador at Feira de Santana at o
pessoal da cantina que muitas vezes me serviu um lanche na hora da fome. Bem, mas vamos
l.
Quero agradecer primeiramente a Deus, que aprendi a tambm chamar de Olodumar.
Obrigada meu Deus por cada instante, pelas inspiraes, pelas pessoas que encontrei nessa
caminhada, por cada dorzinha de cabea, obrigada por esta realizao!
Agradeo s instituies. Obrigada Universidade Estadual de Feira de Santana, na pessoa da
professora Majorie Nolasco coordenadora da PPGM, por acreditar nessa pesquisa e estimular
meu retorno ao mundo acadmico. Agradeo professora Graa, da Biblioteca Julieta
Carteado, pela grande generosidade em nos ajudar na reviso das referncias desta
dissertao. Obrigada ao Instituto de Gesto das guas e Clima, na pessoa do gestor pblico e
tambm professor, Julio Cesar de S da Rocha, pelo investimento feito nas pessoas, mediante
parceria com a universidade visando qualificar os seus quadros para melhor servir
sociedade. Obrigada a Conder por ceder as fotos que nos ajudaram a retratar um pouco como
era a rea do entorno do Terreiro da Casa Branca.
Muito obrigada aos professores da PPGM da UEFS com os quais cursei disciplinas e que de
uma forma ou de outra me ajudaram no amadurecimento da pesquisa. Obrigada aos meninos
da PPGM, Tiago e Juciane, pelo apoio e disponibilidade em nos ajudar sempre. Obrigada aos
meus companheiros (as) de curso e em especial s meninas: Viviane, Patrcia, Ftima, Oriana.
Obrigada mais que especial a rika e famlia (Nilson, Geovana e Guilherme) que tantas vezes
nos abrigaram em sua casa com tanto carinho. Obrigada a Andra Freitas pela ajuda na
ilustrao sobre ciclo hidrolgico, a Ana Chrie e Batrice pela contribuio na traduo do
resumo, a Camilo pela ajuda no tratamento de imagens antigas do entorno do terreiro.
Obrigada imensamente aos professores Almerico Biondi Lima e Jos Geraldo Marques que
cumpriram um papel fundamental nessa construo, atuando, considero, como co-
orientadores na pesquisa. Emprestaram-me livros, instruram-me, me abraaram, me
acolheram. Obrigada ao professor Ucha pelo incentivo, sempre.
Muito obrigada ao meu pr Fbio Bandeira. Mais que um orientador, tornou-se um grande
amigo. Afinal, foram tantos os aconselhamentos, foram tantas as palavras amigas e
consoladoras diante de minhas angstias.
Muitssimo obrigada ao povo da Casa Branca, com quem aprendi um pouco, dentro das
minhas limitaes, sobre Candombl e aprendi muito sobre f, solidariedade, respeito aos
preceitos da religio, ancestralidade e aos orixs. Obrigada a todos que me ajudaram nesses
dois anos de pesquisas nos concedendo entrevistas, permitindo nosso ingresso na
comunidade. Quero fazer um agradecimento especial Ekedy Sinha, uma pessoa adorvel.
Uma sbia que tem pacincia de explicar, pacincia para orientar sobre o Candombl e est
sempre com os braos abertos para abrigar em seu colo todos aqueles que dela se aproximam
buscando uma palavra de carinho, um pouco de paz. No toa chamada por muitos como
Me Sinha. Obrigada a Arielson da Conceio, Ogan Lo, presidente da Associao So
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Jorge do Engenho Velho, rduo defensor do Candombl e guardio da Casa Branca, pela
acolhida.
Obrigada aos meus amigos Tati, Glad, Pati, Teotnio e Henrique que sempre esto do meu
lado.
Quero agradecer minha famlia, minha razo de ser. Obrigada minha av Maria. Mulher
guerreira, 89 anos de idade. No teve a chance de estudar, no aprendeu a identificar no papel
as palavras, mas com seus exemplos tem sido a grande professora na escola da minha vida,
nos repassados valores como: tica, dignidade, respeito ao prximo, solidariedade,
generosidade, humildade e tantos outros.
Obrigada a minha me, dona Terezinha, minha linda, minha inspirao para vencer e saber
que esse vencer simplesmente ser feliz. Obrigada a meu pai, seu Bartolomeu, homem com
princpios slidos, tico, honrado, trabalhador. Obrigada aos meus irmos Carlton, Maria
Aparecida, Clebson (in memorian) e Evellyn por serem como so, junto comigo, uma corrente
inseparvel. Obrigada tambm aos meus cunhados Roberto, Luciana e Sheilinha e aos meus
sobrinhos: Andressa, Bruna, Beatriz, Breno e Clarissa pelas alegrias que me do.
Ao meu amor Valderi mais que obrigada. Chegar at aqui ter ainda mais a certeza de que fui
abenoada por Deus ao conhec-lo. Chegar at aqui saber que amor se consolida com gestos
de solidariedade, de cuidado, de delicadeza, quando se anda de mos dadas, em reciprocidade,
sobretudo, nos momentos mais difceis. Chegar at aqui saber que posso ir para onde quiser
desde que voc esteja sempre ao meu lado, amor.
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RESUMO
Esta pesquisa se baseia na anlise da relao entre tradies religiosas (ritos e mitos) da
Comunidade de Terreiro Il Ax Iya Nass Ok/Casa Branca, em Salvador, considerado o
mais antigo do pas, e a proteo dos recursos hdricos, com uma abordagem etnoecolgica,
mediante pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, abordando a temtica com poucos
estudos e sem registro no Terreiro em foco. Foram utilizadas tcnicas etnogrficas, como
entrevistas semiestruturadas com 15 religiosos do Terreiro e observao participante do ciclo
religioso da Casa Branca, no perodo de junho a dezembro de 2008. A pesquisa revelou,
portanto, como os saberes que so transmitidos de uma gerao a outra, a partir de mitos e
ritos esto relacionados sustentabilidade da gua, elemento sagrado para o povo de santo, e
por serem considerados modelos de representao da realidade, como contribuem para que
iniciadas e iniciados tenham uma relao diferenciada com os recursos hdricos ao ponto de
proteg-los e conserv-los dentro e fora do terreiro.
Palavras-chave: gua, Candombl, sustentabilidade hdrica.
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ABSTRACT
This research is based on the analysis of the relationship between religious traditions (rituals
and myths) in the Community of Terreiro Il Ax Iya Nass Ok / Casa Branca in Salvador,
Brazil, considered as the oldest in the country, and their protection of water resources, within
an ethno-ecologic approach, by the means of qualitative research of the case study type,
addressing the issue with little study and no record in the referred Terreiro. Ethnographic
techniques, such as semi structured interviews with 15 religious of the Terreiro and
participative observation of the religious cycle at Casa Branca from June to December 2008.
The research revealed, thus, how the knowledge which is transmitted from one generation to
another through myths and rituals is related to the sustainability of water, sacred element for
the people of the saint, since they are considered as models of representation of reality, how
they contribute to the initiates having a differentiated relationship with the water resources so
much that they keep them and protect them inside and outside of the Terreiro.
Key words: water, Candombl, sustainability of water
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LISTA DE FIGURAS E QUADRO
Figura 1 - Grfico sobre a distribuio da gua existente no planeta......................................31
Figura 2 - Esquema sobre previso do que dever acontecer no mundo devido s mudanas
climticas segundo do IPCC...................................................................................33
Figura 3 - Esquema sobre causas e consequncias da escassez hdrica...................................34
Figura 4 - Esquema sobre situao da gua no Brasil e distribuio para os diversos
usos..........................................................................................................................38
Figura 5 - Mapa da diviso hidrogrfica da Bahia em 26 Regies de Planejamento e Gesto
das guas.................................................................................................................40
Figura 6 - Mapa sobre potencial de terras para irrigao na Bahia (PERH, 2000)..................41
Figura 7 - Mapa sobre a qualidade da gua dos rios na Bacia Hidrogrfica do Recncavo
Norte e Inhambupe ..................................................................................................43
Figura 8 - Mapa sobre balano hdrico na Bahia. Nas reas em vermelho, regies com saldo
de balano hdrico menor que 0,0 m/s...................................................................43
Figura 9 - Fundamentos, objetivos e diretrizes da Lei das guas..........................................51
Figura 10 - Esquema com os instrumentos da Poltica Nacional de Recursos
Hdricos.................................................................................................................52
Figura 11 - Esquema com a composio do Sistema Nacional de Gerenciamento dos
Recursos Hdricos.................................................................................................54
Figura 12 - Fotos dos Encontros pelas guas 2007.........................................................56 e 57
Figura 13 - Esquema sobre o significado da gua na viso do povo de santo.........................78
Figura 14 - Esquema sobre os orixs das guas.......................................................................81
Figura 15 - Fotos areas do Barraco (A), de rvores sagradas e que revelam a expanso
urbana no entorno do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho..............86 e 87
Figura 16 - Fotos do telhado do barraco, da casa da famlia da palha e o assentamento de
Oxossi ladeados por construes de casas.....................................................87 e 88
Figura 17 - Foto do assentamento de Exu dentro do barraco do Terreiro da Casa
Branca....................................................................................................................88
Figura 18 - Foto do altar que fica dentro do barraco..............................................................89
Figura 19 - Foto da porta de acesso ao corredor do barraco onde fica, por exemplo, o quarto
de Oxal..................................................................................................................89
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Figura 20 - Fotos da cadeira da yalorix e da porta do quarto de Xang e das
yabs......................................................................................................................90
Figura 21 - Foto do barraco com destaque para a imagem que simboliza Loguned e os
atabaques...............................................................................................................90
Figura 22 - Imagem da planta do Barraco e fotos da coroa de Xang e de uma tela com
figura de Xang (D) ......................................................................................91 e 92
Figura 23 - Placa na entrada do Terreiro da Casa Branca que mostra o tombamento do espao
como Patrimnio Histrico e Etnogrfico do Brasil............................................95
Figura 24 Organograma sobre a composio do sistema hierrquico do Terreiro da Casa
Branca do Engenho Velho ..................................................................................96
Figura 25 - Imagem area da parte da frente do Terreiro onde est o Rio Lucaia e foto do l
local datada de 1959 ............................................................................................98
Figura 26 - Fotos areas do Terreiro da Casa Branca de 1976, 1980, 1989, 1992 e 1998.
Mostram a expanso urbana no entorno da Casa Branca e como as construes
vo substituindo a vegetao.......................................................................99 e 100
Figura 27 - Fotos da frente do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho. As duas mostram
como o rio Lucaia foi transformado em esgoto..................................................101
Figura 28 - Fotos da fonte de Oxum do Barco (A e B), da Fonte de Oxum (C e D), (E) da
fonte de Oxumar e (F) da Fonte de Oxum, Nan e Iemanj, no Espao Vov
Conceio..................................................................................................104 e 105
Figura 29 - Modelo com a sequncia de obrigaes com uso da gua nos rituais do Il Iy
Ax Nass Ok ..................................................................................................108
Figura 30 - Modelo que mostra a relao dos orixs com a gua doce na viso de iniciados e
iniciadas do Terreiro da Casa Branca.................................................................115
Figura 31 - Modelo que indica a relao dos orixs com a natureza e qual a relao das
divindades com a gua conforme entendimento de iniciados do Il Ax Iy Nass
Ok......................................................................................................................117
Figura 32 - Modelo que indica o papel do orix Oxumar no movimento das guas...........119
Figura 33 - Modelo do ciclo hidrolgico conforme Hidrologia............................................120
Figura 34 - Modelo que mostra como os orixs so visto nos elementos da natureza segundo
entendimento de autoridade religiosa da Casa Branca........................................121
Figura 35 - Foto da representao de Indanc.......................................................................122
Figura 36 - Foto do Barco de Oxum da Casa Branca ...........................................................123
Figura 37 - Foto da fonte ornamental de Oxum....................................................................123
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Figura 38 - Fotos da casa de Oxum e das quartinhas com gua sagrada..............................124
Figura 39 - Escadarias que do acesso entrada principal do barraco................................125
Figura 40 - Fotos do machado de duas lminas de Xang, do arco e flecha de Oxossi e do
assentamento de Exu...........................................................................................126
Figura 41 - Fotos do assentamento de Xang Air e da fonte de Oxumar .........................127
Figura 42 - Fotos dos alguids com acass que so distribudas em alguns lugares do Terreiro
para agradar os orixs................................................................................127 e 128
Figura 43 - Fotos dos assentamentos de Ossain e Irco..............................................128 e 129
Figura 44 Fotos dos assentamento de Ogun e das ys........................................................129
Figura 45 - Fotos da casa da famlia da palha e assentamento de Exu com quartinhas com
gua sagrada.......................................................................................................130
Figura 46 - Fotos dos assentamento de Oxossi e Ibualama, com quartinhas e purres onde
so preparados os banhos de folha.....................................................................130
Figura 47 - gua no assentamento de Exu dentro do barraco............................................131
Figura 48 - Modelo sobre a distribuio da gua sagrada no espao geogrfico do Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho..........................................................................132
Figura 49 - Fotos da porta dos fundos do barraco, assentamento da ancestralidade estrutura
de madeira onde feita a casa para a sada de Oxal..........................................139
Figura 50 - Modelo que retrata a circulao da gua na cerimnia de guas de Oxal e sua
transformao do estado sagrado para divino.....................................................142
Figura 51 - Fotos da retirada da gua da Fonte de Oxum para anlise
bacteriolgica......................................................................................................150
Quadro 01 - Resultados da anlise da qualidade da gua da Fonte de Oxum, conforme anlise
da Embasa..........................................................................................................150
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SUMRIO
1 INTRODUO...........................................................................................................15
2 PROBLEMATIZAO E METODOLOGIA.........................................................20
2.1. AS DESCOBERTAS DO SAGRADO.........................................................................23
2.2. O PERCURSO METODOLGICO ............................................................................25
2.3 OS SUJEITOS DA PESQUISA....................................................................................29
3 PANORAMA DA ESCASSEZ HDRICA...............................................................31
3. 1 A GUA NO MUNDO...............................................................................................31
3. 2 ABUNDNCIA E ESCASSEZ HDRICA: BRASIL DAS CONTRADIES.......36
3.3 BAHIA: POTENCIALIDADES E VULNERABILIDADES HDRICAS................40
3.4 TRATADOS E CONVENES INTERNACIONAIS: UM OLHAR PARA A
SUSTENTABILIDADE..............................................................................................44
4 A POLTICA DAS GUAS ......................................................................................50
4.1 A LEI DAS GUAS E OS INSTRUMENTOS DE CONTROLE DOS
USOS............................................................................................................................50
4.2 COMUNIDADES TRADICIONAIS: A CARTA PELAS GUAS COMO
INSTRUMENTO DE INCLUSO NA GESTO DOS RECURSOS
HDRICOS....................................................................................................................55
5 CANDOMBL: UMA BREVE INTRODUO......................................................66
5.1 CANDOMBL: HERANA TNICA E RELIGIOSA................................................66
5.2 MITOS E RITOS: MODELOS DE REPRESENTAO DA REALIDADE..............72
5. 3 DIVINDADES E NATUREZA....................................................................................75
5.4 ORIXS DAS GUAS ...............................................................................................80
6 RESULTADOS E DISCUSSES. O TERREIRO DA CASA BRANCA..............86
6.1 O LUGAR DA PESQUISA.........................................................................................86
6.2 A CASA BRANCA E A RELAO COM O MEIO AMBIENTE, O ANTIGO
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RIO: SIGNIFICADO E TRANSFORMAES AO LONGO DO TEMPO...............94
6.3 USO MGICO RELIGIOSO DA GUA NA CASA BRANCA..............................104
6.4 GUA: A DIMENSO DO SAGRADO NA CASA BRANCA...............................112
6.5 GUA NO ESPAO SAGRADO..............................................................................121
6.6 GUA NOS MITOS E RITOS DA CASA BRANCA...............................................133
6.7 RITUAL DE GUAS DE OXAL: GUA SAGRADA E DIVINIZADA.............136
6.8 FESTA PBLICA: REVERNCIA COLETIVA A OXAL...................................143
6.9 AS FESTAS DE OXUM.............................................................................................144
6.10 A POLUIO DA FONTE E A LIMITAO RITUAL..........................................149
6.11 A CONSERVAO DOS RECURSOS HDRICOS................................................153
7 CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................157
REFERNCIAS ...................................................................................................................166
ANEXO..................................................................................................................................174
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INTRODUO
A crise da gua de distribuio, conhecimento, acesso, recursos - pauta cada vez
mais frequente na agenda mundial e apontada como um problema que j afeta as atuais e
compromete as futuras geraes e todas as formas de vida no planeta. Valorizada e respeitada
em todas as religies e culturas, a gua tambm se tornou smbolo de equidade social na
medida em que a crise da gua de distribuio, conhecimento, acesso, recursos veio
baila (SELBORNE, 2002).
Necessria em todos os aspectos da vida, a gua est vinculada e imbricada ao
processo de desenvolvimento global, seja como insumo fundamental para produo nas
diversas indstrias ou pela produo agrcola, por sua influncia sobre a sade
(ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS - ONU; WATER FOR PEOPLE, WATER FOR
LIFE: EXECUTIVE SUMARY OF THE UN WORLD WATER DEVELOPMENT REPORT
- WWAP, 2003), ou ainda, em meio do debate sobre a sustentabilidade do desenvolvimento.
Bem finito que corresponde a apenas 3% de toda a gua doce existente no planeta cada vez
mais escasso em funo de questes como a poluio e merecedor do cuidado por parte de
toda a humanidade.
No contexto mundial cuja tendncia a de que guerras passem a ser mais freqentes
em funo da gua, necessrio um olhar sobre esse bem que deve ser de uso comum nos
seus mais diferentes aspectos. Por isso, o interesse em pesquisar a relao do povo de santo
com a gua, por meio do Il Ax Iy Nass Ok tambm conhecido como Terreiro da Casa
Branca, em Salvador. Dessa relao surge a questo: As tradies religiosas, os ritos e mitos,
contribuem para que as pessoas tenham uma postura diferenciada no trato com a gua
cotidianamente dentro e fora do Terreiro?
Antes de adentrar no foco da pesquisa, de procurar respostas para questionamentos
como estes, no entanto, apresentado, no segundo captulo, o percurso metodolgico, como
foi o contato com a religio de matriz africana, os mtodos utilizados na pesquisa, o perfil das
pessoas entrevistadas. Em seguida, no terceiro captulo, faz-se uma abordagem quanto ao
panorama da gua no mundo. Uma pesquisa foi realizada sobre a disponibilidade de gua no
planeta, buscando na literatura, pases onde as populaes sofrem com a falta de gua, onde
h conflitos por causa dela. Este captulo apresenta, minimamente, um diagnstico sobre a
escassez hdrica que est associada seja a questes de ordem climtica, de m distribuio, de
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16
uso excessivo dos recursos hdricos para atividades das mais diversas, como indstria e
agricultura, ou est relacionada ainda poluio.
Esta contextualizao incitou ir alm com o levantamento de dados sobre a situao da
escassez hdrica no Brasil, pas com a maior disponibilidade hdrica do mundo - entre 12 e
16% das reservas hdricas do planeta -, e onde milhares de pessoas enfrentam esse problema.
(REBOUAS, 2004, p.145). Foi necessrio compreender um pouco dessa realidade neste pas
para entender porque com tanta abundncia de gua, h escassez.
Foram levantados dados sobre disponibilidade hdrica na regio do Semi-rido
Brasileiro que agrega os estados nordestinos e parte de Minas Gerais e onde vivem cerca de
34 milhes de pessoas. Uma regio que tem 24% da populao urbana do pas (IBGE, 2000) e
a mais afetada pela escassez dos recursos hdricos. Da mesma forma, foi feito uma pequena
pesquisa para mostrar, minimamente, qual a situao dos recursos hdricos na Bahia maior
estado do Nordeste, apresentando dados sobre as potencialidades e vulnerabilidades hdricas e
a escassez hdrica no estado decorrente de fatores como a poluio das guas superficiais e
subterrneas.
Importante tambm, nesse cenrio, foi apresentar iniciativas adotadas em nvel global,
como tratados e convenes, retratando alguns aspectos de como est ocorrendo essa
mobilizao planetria, nacional e em nveis locais numa tentativa de assegurar guas em
quantidade e qualidade para as atuais e futuras geraes. Reporta-se, nessa perspectiva,
Conferncia de Estocolmo em 1972, Eco 92 e s Agendas 21.
Para contribuir com o maior entendimento quanto aos instrumentos de controle do uso
das guas no Brasil e na Bahia, destacou-se no quarto captulo, a Poltica Nacional de
Recursos Hdricos e o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hdricos. Como um dos
fundamentos desta Poltica a gesto participativa das guas, foi feita uma abordagem, ainda
neste captulo, sobre formas de incluso de povos e comunidades tradicionais na Gesto dos
Recursos Hdricos da Bahia, com foco na elaborao da Carta pelas guas. Este documento
foi produzido durante os chamados Encontros pelas guas 2007 que reuniram comunidades
de terreiro, pescadores e marisqueiras, povos indgenas, povos do campo, quilombolas e os
segmentos criana, juventude e mulheres, que juntos, abordaram seus modos de se relacionar
com a gua e propuseram diretrizes para as polticas pblicas das guas ao governo do Estado
da Bahia em uma ao fomentada pelo prprio Estado, por meio do seu rgo gestor de
recursos hdricos.
No quinto captulo, buscou-se compreender mais sobre o Candombl, as diferentes
naes, minimamente retratar essa herana tnico-religiosa, sua resistncia ao longo dos
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17
sculos. Fez-se necessrio, portanto, buscar bases conceituais sobre essa religio de matriz
africana, sobre suas caractersticas mais marcantes e como os ritos e mitos, modelos de
representao da realidade, ajudam a manter as tradies e so fundamentais para que elas
sejam passadas de gerao em gerao. Obviamente, nesse mbito, pesquisou-se sobre as
divindades cultuadas no Candombl e, sobretudo, a relao destes com a natureza focando os
orixs das guas, do ponto de vista do Candombl de Tradio Ketu.
A posteriori, no sexto captulo, comeam a ser apresentados resultados efetivos da
pesquisa, mais notadamente sobre o Terreiro da Casa Branca, a caracterizao da rea, as
origens do Terreiro, como foi instalado onde est at hoje s margens do Rio Lucaia, no
bairro do Rio Vermelho. Recorreu-se literatura existente sobre a Casa Branca e a iniciados
do Terreiro para verificar a relao desta comunidade com a natureza, com a gua e
particularmente com o rio que margeia o Terreiro, para tentar descrever o seu significado para
as prticas rituais do il ax e as transformaes que este manancial passou ao longo do
tempo. Outra abordagem repercute como a poluio do rio contribuiu para a mudana de
comportamento no uso das guas superficiais do ponto de vista domstico e nas prticas
rituais do povo de santo do Terreiro.
Em seguida, no stimo captulo, so destacadas situaes de como se d o uso mgico
religioso da gua na Casa Branca, a gua na dimenso do sagrado para iniciados, como a gua
est distribuda no espao sagrado.
O oitavo captulo revela como a gua est presente nos mitos e em ritos da Casa
Branca, a exemplo do ritual de guas de Oxal e nas festas de Oxum e de Oxum do Barco.
Modelos so elaborados neste e em outros captulos para auxiliar na compreenso do uso da
gua do ponto de vista do sagrado, como est presente nos rituais, como a gua delimita
simbolicamente a presena dos orixs nos assentamentos, como estabelece o vnculo entre as
divindades e como os orixs so vinculados tambm a outros elementos da natureza.
Ainda no oitavo captulo, mais resultados da pesquisa: a influncia do Candombl no
uso da gua por parte dos iniciados dentro e fora do Terreiro, como iniciados se relacionam
com a gua no cotidiano, quais suas atitudes no uso domstico, fora do Candombl. Para
responder a outras perguntas norteadoras da pesquisa, o estudo mostra dados sobre a poluio
da fonte sagrada e as implicaes disso nos rituais.
Deve-se salientar, que embora seja foco de vrias pesquisas no campo antropolgico,
sociolgico e outros, o Candombl uma fonte rica para o desenvolvimento de pesquisas
ambientais na atual conjuntura, quando a humanidade alertada sobre a necessidade de
redimensionar suas atitudes com relao a gua. Muitos so os estudos sobre o Candombl,
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18
mas h poucas pesquisas focando o tema gua nessa perspectiva etnoecolgica, ou seja,
considerando a relao de iniciados com a gua a partir de suas crenas, saberes, valores e
sentimentos.
A maneira como tratar a natureza e especialmente a gua um norteador para a
manuteno das tradies das diferentes naes do Candombl, seja Angola, Congo, Jeje,
Nag, Keto e ou Ijex. Quando os africanos aportaram nos portos brasileiros para serem
negociados como mercadorias, trouxeram consigo todo o fervor da suas religiosidades,
crenas e f; trouxeram seus deuses, os orixs dos bosques, dos rios e do cu africano
(BASTIDE, 1958). E a partir do modo que cada um tinha de reverenciar o sagrado, se
consolidou no Brasil o Candombl, para uns, o local onde so realizadas as festas
(CARNEIRO, 1948), para outros um ambiente que tornou-se, ao longo dos sculos, um
espao de resistncia para a luta seja contra a opresso e preconceitos (SILVEIRA, 2006),
seja pela afirmao de direitos ou simplesmente pela preservao de tradies pautadas no
culto ancestralidade.
Essas tradies so passadas de gerao em gerao entre pais, mes, filhos e filhas de
santo, ekedes, ogans, ebomis e outros, em uma dimenso solidificada pela troca de
experincia, pela vivncia e respeito ao sagrado, aos orixs, no caso da nao ketu, objeto
deste estudo. Sodr (2002) afirma que a herana cultural repassada faz da tradio um
pressuposto da conscincia do grupo e a fonte de obrigaes originrias, que se reveste
historicamente de formas semelhantes a regras de solidariedade".
No relacionamento do povo de santo com a natureza h implicaes profundas, pois os
orixs so a representao da terra, do ar, do fogo e tudo o que h no universo, do arco-ris
(Oxumar) s plantas (Ossain). Mais do que isso: Pelo simbolismo do Candombl, os filhos
(as) de santo tm vnculos de obedincia com os orixs. s divindades esto atreladas as
condutas ticas e morais dos indivduos.
Uma vez nas comunidades, os iniciados assimilam princpios que delimitam a maneira
com que as pessoas se relacionam com as guas. Esto na viso do Candombl coisas que se
aprendem na mitologia e as prticas ritualsticas reafirmam. Portanto, ao serem intimamente
subordinados aos preceitos e orientaes dos seus orixs, os indivduos moldam suas condutas
no que diz respeito totalidade da vida. So os orixs que permeiam os valores ticos, morais
e, sobretudo, espirituais de cada um. Assim, um filho de Oxum, por exemplo, pode assimilar a
partir do perfil do prprio orix percepes e valores diferenciados quanto gua. O mesmo
pode acontecer com os filhos de Oxal e assim por diante.
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19
No Candombl de origem keto, que cultua os orixs, quatro divindades,
especialmente, so relacionadas diretamente s guas: Oxum, senhora das guas doces,
Iemanj, deusa das guas Salgadas, Nan, considerada a grande me, av e senhora dos
manguezais, dos lamaais e das reas midas. Alm dessas, Oxal outra divindade da guas
celestes, considerado pai da criao, pai de todos os orixs. Para esses orixs so
direcionados pedidos, agradecimentos, louvores, numa sublimao, crena e respeito s foras
que as guas impem e contm.
E em funo desta relao ancestral, em funo dos ritos e mitos, das tradies
passadas de gerao em gerao, por serem os orixs representao da natureza, h um trato
diferenciado de iniciados do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho com a gua? o que
esta pesquisa pretende esclarecer, dando uma contribuio para que se conhea mais a religio
de matriz africana, suas tradies e, sobretudo, contribua para atitudes sustentveis no uso da
gua que sirvam de referncia para dentro e para fora da comunidade em estudo.
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20
2 PROBLEMATIZAO E METODOLOGIA
Sendo a gua um recurso natural escasso, faz-se necessrio buscar alternativas de
enfrentamento ao problema e que visem o uso racional de modo a assegur-lo em quantidade
e qualidade para as atuais e futuras geraes. Sabe-se que a gua elemento dotado de
simbolismos para povos e comunidades tradicionais1. E enquanto elemento sagrado para o
povo de santo, a gua doce norteia a vida religiosa nas comunidades de terreiro. Nas naes
de tradio ketu usada em todas as prticas rituais e a prpria representao de Oxum, a
divindade da fertilidade que domina e reina sobre as guas doces. Mas, por ser elemento
sagrado h um comportamento diferenciado do povo de santo no trato cotidiano com a gua?
A pergunta serviu de base para a realizao desta pesquisa. E depois desta, muitas
outras surgiram como uma necessidade de verificar como se d no contexto do Candombl, a
relao com a gua. Esta relao baseada em tradies religiosas (mitos e ritos) influencia no
comportamento de iniciados com o uso da gua? A dimenso do sagrado contribui para que
iniciados tenham uma atitude sustentvel no modo de lidar com a gua dentro e fora do
Terreiro?
Neste contexto, um desafio posto era verificar como, de fato, essa relao do povo de
santo com a gua e quais as implicaes disso na sustentabilidade hdrica. Deste modo, o
objetivo desta pesquisa mostrava-se bem claro: analisar o papel das tradies religiosas (ritos
e mitos) relacionadas gua doce na proteo e conservao dos recursos hdricos no Terreiro
Il Ax Iya Nass Ok/ Casa Branca.
Para tanto, era preciso identificar e descrever tradies religiosas (ritos e mitos) com
uso da gua doce neste Terreiro; analisar o papel dos rituais e mitos envolvendo a gua doce e
formas de transmisso do conhecimento na Casa Branca; analisar a receptividade dessas
prticas tradicionais junto a iniciados e de que maneira essas prticas so incorporadas no
modo de lidar com os recursos hdricos no cotidiano e analisar o estado de conservao da
gua da fonte do Terreiro e as implicaes nas prticas rituais.
E qual a metodologia deveria ser aplicada para alcanar esses objetivos? A princpio,
a metodologia para o desenvolvimento de uma pesquisa como esta foi antes de qualquer coisa,
1 Para Diegues (2007, p.1) a gua um dos elementos centrais para a reproduo material e simblica dos povos indgenas e comunidades tradicionais, um elemento presente em mitos de criao das prprias
sociedades.
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21
um desafio de vida. Percorrer esse caminho metodolgico no foi tarefa das mais fceis,
sobretudo, em funo da conexo necessria entre as reas das mais distintas, cincias exatas,
humanas, sociais, ambientais, para uma pessoa com a minha formao profissional e
acadmica, sempre voltada rea de comunicao.
Outro desafio foi ter de mergulhar em um universo completamente novo e
desconhecido para mim: o Candombl com toda a sua riqueza e profundidade. A maior
dificuldade, talvez, nessa trajetria metodolgica, tenha sido a de estudar a relao entre o uso
sagrado da gua e a proteo dos recursos hdricos em uma comunidade de terreiro; temtica
pouco estudada mesmo sendo o Candombl um espao que, historicamente, vem atraindo a
ateno e sido objeto de estudos principalmente antropolgicos, sociolgicos e etnolgicos,
includo a sacralidade da gua, mas no nesta perspectiva etnoecolgica.
Um procedimento analtico, de fragmentao do todo, com vistas a uma explicao
parcial de um fenmeno, no parecia to simples diante da complexidade do tema, diante de
tantas particularidades. Afinal, nem tudo poderia ser acessado e visto por mim, a exemplo do
uso da gua na maioria das prticas rituais, restritas a iniciados. E como perceber,
compreender a dimenso religiosa do uso da gua nesse contexto? Como dimensionar essa
relao religiosa com a gua e a influncia no comportamento cotidiano das pessoas,
considerando os valores coletivos e individuais, a f, as vivncias e os sentimentos, como
explicita Marques (1999, p. 136).
Para mim, o nosso trabalho enquanto o de etnoeclogos no somente o da
prospeco do conhecimento, posto que ele deve lidar, tambm, com a
prospeco dos sentimentos e com a prospeco dos comportamentos que
intermediam as relaes entre os seres humanos e os demais componentes do
ecossistema no qual eles esto includos ou dos ecossistemas dos quais eles dependem.
Como mergulhar nesse universo de saberes tradicionais e responder a questionamentos
como esses em to curto espao de tempo nos dois anos que um curso de mestrado permite?
Como entender a dinmica dessa relao onde os orixs, o mundo invisvel orienta as
prticas em um terreiro e as condutas dos iniciados? Como conduzir esse processo em um
percurso metodolgico atrelado a regras do segredo, pois no Candombl nem tudo pode ser
visto e nem tudo que visto pode ser falado?
Ainda hoje, nos Candombls do Brasil, procura-se ensinar que a experincia
a chave do conhecimento, que tudo se aprende fazendo, vendo,
participando. Cada coisa no seu devido tempo. Assim, o conhecimento do
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velho o conhecimento legtimo, ao qual se chega ao longo de toda uma
vida (PRANDI, 2005 p. 44).
A partir desse pressuposto, relato alguns dos nossos passos, experincia, que nos
conduziram ao despertar para a relao do povo de santo com a gua, as implicaes disso nas
questes ambientais, o amadurecimento para o tema e as abordagens metodolgicas possveis.
Questes que aliceraram a pesquisa qualitativa e que nos inspirou delimitao do tema, a
construo e estruturao da pesquisa, a definio da base conceitual, como por exemplo a
descoberta da religio e aproximao da comunidade.
O interesse em fazer um mestrado na rea ambiental surgiu a partir da nossa relao de
trabalho na assessoria de comunicao do rgo gestor das guas na Bahia, o Instituto de
Gesto das guas e Clima (ING), antiga Superintendncia de Recursos Hdricos. Cada vez
mais, diante de cenrios de escassez hdrica e conflitos de uso, era provocada por mim mesma
para desenvolver uma pesquisa que contribusse a um despertar quanto necessidade de
proteo dos corpos dgua.
De tudo que pensei, no imaginava o foco alcanado, at que me envolvi na
coordenao de Comunicao dos Encontros pelas guas 2007, uma srie de reunies
temticas com povos e comunidades tradicionais da Bahia e outros segmentos para a
elaborao de diretrizes s polticas de recursos hdricos na Bahia. A primeira reunio
temtica foi denominada de Encontros das Comunidades de Terreiros pelas guas que reuniu
diferentes naes em Salvador.
Apesar de saber a importncia da gua para diferentes religies e culturas e do sentido
de purificao e sacralidade, nunca tinha visto uma reverncia s guas como a que foi feita
por diferentes naes no Encontro das Comunidades de Terreiro daquele ano, o que nos
conduziu a uma reflexo quanto dimenso diferenciada que o povo de santo demonstrava ter
quanto gua.
Naquele espao de dilogo, a viso da gua transcendia a noo de bem econmico, ou
bem de uso comum a todos, como geralmente ocorre em discusses acadmicas ou mesmo de
cunho poltico ou domstico. A gua, era tratada na dimenso do divino, era saudada como
divindades, por exemplo, ora como Oxum (gua doce) hora como Iemanj (gua salgada). A
gua recebia ali uma valorao simblica.
O que para muitos poderia ser considerado apenas como um lquido indispensvel para
a manuteno da vida no planeta, percebia que entre o povo de santo reunido era classificado
como algo transcendente. O encontro serviu para nos instruir, minimamente, quanto
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premissa de que a gua elemento sagrado para o Candombl; o que nos provocou profundas
reflexes e encantamento.
A partir de ento, inquietaes foram surgindo, a principal delas motivou a elaborao
desta pesquisa: ser que em funo dessa reverncia que o povo de santo tem com a gua,
existe uma relao diferenciada no uso da gua no cotidiano, de tal modo que assuma uma
postura de proteo e conservao das guas?
O primeiro passo nessa jornada desafiadora foi me dirigir a um Terreiro. Segui, ento,
em direo Casa Branca apontada por muitos estudiosos do Candombl como a me de
todos os ils do Brasil, a mais antiga do pas. um Terreiro que tem filhos e filhas espalhados
pelo mundo afora e respeitado nacional e internacionalmente, inclusive, pelo esforo de
manter a cultura e identidade dos antepassados mediante o culto aos orixs. Alm disso, a
Casa Branca foi um dos Terreiros envolvidos na organizao dos Encontros pelas guas.
Na Casa Branca fui recebida com carinho para uma reunio. Apresentei minhas
inquietaes, ansiedade e desejo de trabalhar o tema na comunidade. A primeira coisa que nos
foi alertada era a de que poderia encontrar dificuldades. Chamaram minha ateno quanto s
limitaes impostas pelo fato de no ser iniciada e que mesmo se fosse, no teria como
registrar tudo que visse no il ax, principalmente, os rituais. Aqui nem tudo que visto pode
ser falado. As coisas do Candombl a gente aprende vendo e ouvindo. Para conhecer, escute
mais do que fale, alertou uma ekede nos dando as boas-vindas para o trabalho de pesquisa.
Se voc chegou at aqui foi porque Oxal permitiu, seja bem-vinda, acrescentou.
Comecei ento, a estudar sobre Candombl para desenvolver o projeto de pesquisa.
Havia possibilidades de inscrever o projeto em vrias linhas de pesquisa como antropologia e
sociologia, mas um convnio entre a Universidade Popular das guas (Unihidro) e a
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), responsvel pelo mestrado em
Modelagem das Cincias da Terra e do Ambiente, surgiu como uma grande oportunidade para
abordar o tema de maneira transversal e interdisciplinar. Ento, ao nos inscrever no processo
seletivo, o projeto foi submetido banca de seleo do Mestrado em Modelagem das Cincias
da Terra e do Ambiente, como um dos requisitos para a nossa aprovao no processo seletivo.
2.1 AS DESCOBERTAS DO SAGRADO
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A partir de ento um longo caminho tem sido percorrido em busca do conhecimento
sobre essa religio que est diretamente ligada s origens do povo brasileiro. Ao mesmo
tempo em que freqentava as aulas para a obteno dos crditos e trabalhava dois turnos,
geralmente mais de oito horas por dia, passei aos poucos a freqentar o Candombl,
sobretudo, as festas pblicas dedicadas aos orixs.
Consequentemente, o percurso metodolgico era mais e mais refinado. Uma pesquisa
qualitativa era evidente, pois como afirmam Marshall e Rossman (1989: 46), a pesquisa
qualitativa tem uma superioridade metodolgica em situaes como: Quando a pesquisa no
pode ser realizada de modo experimental, por razes prticas ou ticas e quando a pesquisa
tem por objetivo aprofundar processos complexos, como o caso da relao sagrada com a
gua e as implicaes no uso cotidiano. Desta forma, buscamos respaldo na pesquisa
descritiva e exploratria, considerando que a primeira suscita preciso nos detalhes e a
segunda, tambm proporciona que se estabelea um vnculo com os entrevistados de maneira
ao aprofundamento quanto s suas percepes sobre dados fenmenos.
Uma pesquisa qualitativa de natureza exploratria possibilita familiarizar-se
com as pessoas e suas preocupaes. Ela tambm pode servir pra determinar
os impasses e bloqueios, capazes de entravar um projeto de pesquisa em
grande escala. Uma pesquisa descritiva colocar a questo dos mecanismos e
dos atores (o como e o o qu dos fenmenos); por meio da preciso dos detalhes, ela fornecer informaes contextualizadas que podero servir de
base para pesquisas explicativas mais desenvolvidas. Entretanto, ela , a
maior parte do tempo, completa em si mesma, e no tem obrigatoriamente
necessidade de ser continuada por outros pesquisadores, por meio de outras
tcnicas (DESLAURIERS et al., 2008, p. 130).
Na busca do como o povo da Casa Branca se relaciona com a gua e porque essa
relao passa pelo sagrado passei mais e mais a freqentar o Candombl. Pouco a pouco fui
entendendo que era com msica, dana, comida, muita alegria e f que se reverenciavam as
divindades. Percebi, que naquela ambiente de tantos segredos e condutas, a yalorix a
grande lder espiritual, a quem todos deveriam pedir beno. Aprendi que abenoar uns aos
outros era uma prtica que denotava respeito e os laos de irmandade entre os membros da
comunidade. Compreendi que os Orixs ocupavam espaos distintos no terreno, que cada um
tinha seu assentamento representado por casa, por rvores, por objetos. Fui percebendo que os
orixs estavam diretamente ligados natureza e que a gua era algo fundamental,
imprescindvel para a existncia do Candombl. Tanto que era comum ouvir: Com a gua
limpamos todos os males, com a gua curamos todas as doenas.
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Por todos os lados, as quartinhas demonstram que ali havia segredos, mensagens que
nos desafiavam conhecer e entender essa relao entre uso ritual e uso cotidiano. Um mundo
novo se descortinava para mim e na metodologia, tanto a observao direta quanto a
observao participante eram cada vez mais evidentes e necessrias. Uma das primeiras
experincias vivenciadas na Casa Branca foi a participao no ritual de guas de Oxal. A
Casa Branca estava tomada de gente. Muitos filhos do il ax que moram fora em outros
estados ou pases estavam l. As casas de pessoas que moram na comunidade hospedavam os
que vieram de longe. Todos estavam de branco e pareciam em estado de concentrao. O
silncio predominava e durante toda a noite em que se reverenciou Oxal, pouco se falava.
E como no podia usar lpis, papel, mquina fotogrfica ou qualquer outra forma de
registro, ficava atenta a tudo que ocorria e tudo era uma provocao. Como se manter
eqidistante, com um olhar de pesquisadora, sem se arrepiar diante da beleza do Al
estendido pelo barraco na sada de Oxal do seu quarto?
Durante toda a noite e a madrugada, havia um ordenamento que mostrava a unidade e
profundo envolvimento das pessoas no ritual. No era preciso dizer o que cada um deveria
fazer. A maneira como carregar a gua para Oxal subindo e descendo os degraus que ligam a
fonte de Oxum a casa onde estava Oxal, exigia um esforo muito grande, principalmente dos
mais idosos. Alm do mais, era preciso evitar que a gua fosse derramada das quartinhas.
Percebi que a gua era muito valiosa para aquelas pessoas. Restava entender o grau dessa
valorao e se a sacralidade interferia no comportamento e trato cotidiano destas com a
gua, como afinal se dava essa relao ambiental a partir da dimenso do sagrado.
2.2 O PERCURSO METODOLGICO
No caminho metodolgico que ia sendo construdo, surgiu a necessidade de submeter
o projeto de pesquisa apreciao e aprovao do Comit de tica da Universidade Estadual
de Feira de Santana. Era preciso mais esse respaldo acadmico para um projeto dessa
envergadura. O projeto foi aprovado e o caminho metodolgico comeava a ser mais definido.
Um enfoque metodolgico convencional, baseado na cincia ortodoxa no parecia
mesmo o mais apropriado. O manejo da gua em um Candombl de Terreiro e sua
repercusso na vida domstica das pessoas, considerando as implicaes disso para a proteo
e o uso sustentvel das guas, no eram derivados de um conhecimento baseado
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exclusivamente em fatos objetivos, verificveis e aferidos universalmente2. Porm, havia ai
outro desafio, como atesta Bandeira (1999, p. 128):
A eficincia desse conhecimento local, prtica e de carter adaptativo embora ela, s vezes, possa mesmo modificar e gerar novas hipteses sobre
os fenmenos e processos naturais portanto, pode mudar de acordo com as mudanas e condies do entorno cultural e ambiental (ou seja, no
esttico). Alm disso, esses conhecimentos, prticas e crenas so o que
permite a produo e reproduo dessas culturas e dessas sociedades atravs
do tempo.
Entender como se d essa relao entre comunidade tradicional e o meio ambiente em
que vive, exigiu a busca pelo enfoque etnoecolgico, por ser epistemologicamente um campo
de estudo interdisciplinar que busca entender as diferentes culturas e sociedades atravs do
tempo e sua inter-relao com a natureza, usando como ferramentas terico-metodolgicas,
distintos campos cientficos como a antropologia, geografia, sociologia e ecologia
(BANDEIRA, 1999, p. 119).
O antroplogo estruturalista francs Lvi-Strauss (1989) em O Pensamento Selvagem
rompeu com correntes tericas da antropologia baseada no evolucionismo social de Tylor e
Spencer, que consideravam as sociedades no-ocidentais como primitivas, sem capacidade
de organizao social e poltica. Ele faz uma anlise do que classifica como cincia do
concreto, um novo modo de perceber o universo dos povos indgenas, inclusive do Brasil,
onde estudo vrios grupos do Xingu.
Apesar de o autor apresentar as mesmas bases epistemolgicas da cincia moderna,
baseada em mtodos de observao, essa leitura contribuiu para reforar o entendimento de
que no possvel estudar os mitos, os sistemas de crenas e a cosmoviso do Candombl a
partir de epistemologias ocidentais.
Era preciso compreender melhor a etnoecologia, buscar bases de sustentao para essa
rea que vem respaldando academicamente estudos que buscam entender e apreender
conhecimentos e saberes de civilizaes historicamente consideradas marginais e que so
direcionados, sobretudo a povos indgenas. Buscamos assim, referncias em Toledo para
quem a etnoecologia no uma disciplina (1997), mas uma abordagem terico-metodolgica
para o estudo da relao sociedade-natureza:
A etnoecologia o estudo dos conhecimentos, estratgias, atitudes e
ferramentas que permitem as culturas rurais produzir e reproduzir as
2 Ver Bandeira e El-Hani (1998)
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condies materiais de sua existncia social atravs de um manejo
apropriado dos recursos naturais (TOLEDO, 1987, apud BANDEIRA, 1999,
p. 117).
Estudar a gua numa comunidade de terreiro exigia a compreenso da etnoecologia
conforme define Nazarea (1999):
Como uma forma de ver as relaes entre os seres humanos e o mundo
natural [...] uma poderosa perspectiva da qual se pode compreender o
reconhecimento e o manejo dos recursos: os esquemas, scripts e planos de
ao que orientam os povos no mundo e determinam a produtividade,
equidade e sustentabilidade de suas prticas.
Nazarea pontua que a etnoecologia oferece uma estrutura til para analisar problemas
relacionados com o manejo ambiental, sustentabilidade da agricultura, conservao da
biodiversidade e direitos de propriedade intelectual, bem como promove uma compreenso
bsica do homem no ambiente.
Podia-se, ento, chegar a delimitaes mais precisas sobre o problema3 desta pesquisa,
para entender melhor como se d essa relao entre a comunidade de terreiro, considerando a
diversidade social e cultural, os sistemas de crena, os ritos e mitos e o uso da gua do ponto
de vista sagrado e domstico. O conhecimento tradicional da Comunidade de Terreiro em
estudo nos conduziria a explicaes/interpretaes sobre o fenmeno observvel, ou seja, o
uso da gua a partir de regras de condutas pautadas no culto e crena aos orixs. O
conhecimento tradicional integra os sistemas de crenas religiosas e morais com o manejo
(GADGIL et al., 1993).
Isso me fez refletir sobre a necessidade da aplicao de mtodos mais recentes, como
as observaes direta e participante. Metodologicamente, a observao direta era necessria
porque a pesquisa exigia-nos um contato maior com a comunidade, conhecer suas prticas,
rotinas, de maneira que pudesse observar e fazer os registros livre dos fenmenos observados
em campo. Mas observar apenas, sem estar presente em alguns rituais talvez no nos
conduzisse a outras respostas que precisvamos.
Portanto, havia a necessidade da observao participante. Atravs desse mtodo, o
pesquisador pode obter informaes sobre o cotidiano da comunidade, pode se envolver
totalmente, permitindo a anlise de dentro da realidade observada, facultando perceber a
maneira como um elemento da cultura, lastreado no senso comum, no coletivamente aceito e
3 Chevrier ( 1993, p. 50) afirma que um problema de pesquisa se concebe como uma separao consciente,
que se quer superar, entre o que ns sabemos, julgamos insatisfatrio, e o que ns desejamos saber, julgando
desejvel.
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legitimado, desenvolve o conhecimento, neste caso a respeito das guas no seu meio
(ALBUQUERQUE et al., 2004, p. 48 - 51).
Como a pesquisa tomou como referncia os mitos e ritos como modelos de
representao da realidade, a observao participante ocorreu durante a realizao do rito de
guas de Oxal e das festas de Oxum do Barco e de Oxum; festas onde mais
significativamente o uso da gua explicitado. Participamos tambm de outras festas pblicas
como Festa de Oxossi e Obaluai.
Seguindo o caminho metodolgico traado, comeamos a partir do envolvimento com
a comunidade e participaes em festas rituais, fazer anotaes no dirio de campo eletrnico.
No era permitido uso de lpis ou papel para quaisquer anotaes no Terreiro, nem o registro
fotogrfico no local no momento das festas e rituais. Por isso, aps participar de qualquer
atividade no terreiro, me debruava no computador para descrever o que ficara registrado na
minha memria recente. As anotaes eram separadas por data, cronologicamente.
De tudo que via e ouvia, sentia que era impossvel compreender a relao do povo de
santo da Casa Branca com a gua apenas por meio da observao seja direta ou participante,
em funo de vrias razes j citadas como o desconhecimento dos rituais e proibio de
presenciar muitos deles por no ser iniciada. Alm disso, no poderia entrar na casa das
pessoas e ficar o tempo todo observando e aferindo como elas usam a gua em seus
domiclios.
Na coleta de dados, foram necessrias ainda, entrevistas semi-estruturadas, atravs das
quais formulamos algumas perguntas sobre o tema que serviram como norteadoras das
entrevistas, mas que possibilitavam outras perguntas a partir dos elementos que surgiam ao
longo das entrevistas. Este um dos procedimentos muito usados para a coleta de dados em
pesquisas etnobotnicas e que se adequam perfeitamente temtica estudada, pois as
perguntas so parcialmente formuladas pelo pesquisador antes de ir ao campo, apresentando
grande flexibilidade, pois permite aprofundar elementos que podem ir surgindo durante a
entrevista (ALBUQUERQUE et al., 2004, p.41).
As entrevistas foram feitas em locais e horrios marcados de acordo com a
convenincia dos entrevistados em momentos sem a presena de terceiros. Apenas duas delas
foram feitas fora do Terreiro, mas tambm em funo das necessidades dos entrevistados.
Utilizando a metodologia de bola de neve um entrevistado indicou o outro e assim
sucessivamente. Essa metodologia usada para a seleo intencional de informantes, que so
tambm considerados especialistas locais (ALBUQUERQUE et al., 2004, p.26-27). No
caso das comunidades de terreiro, buscou-se, a princpio, lideranas religiosas com muitos
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anos de iniciao, vivncia e conhecimento sobre o Candombl e que gozam de grande
respeito e reconhecimento na comunidade. A perspectiva inicial era a de que 30 pessoas
participassem das entrevistas, mas a partir da tcnica qualitativa baseada no consenso dos
informantes, o nmero de 15 entrevistados foi considerado satisfatrio na medida em que
passou a ocorrer a repetio das respostas.
Sem sombra de dvida, essas tcnicas esto assentadas na idia de que
cultura conhecimento compartilhado. Esta idia foi desenvolvida como
teoria do consenso cultural por antroplogos cognitivos na dcada de 80. A
teoria do consenso cultural assume que: a) existe uma resposta culturalmente correta para uma dada questo; b) cada informante responde
independentemente de outro informante; c) a probabilidade que um
informante responder corretamente uma questo em um domnio de
conhecimento reflete a competncia do informante do domnio (REYES-GARCIA et al., 2004, apud ALBUQUERQUE et al., 2004, p.23)
Consequetemente, o estudo de caso foi o meio apropriado e eficaz para a realizao
desta pesquisa. Por meio do estudo de caso, segundo Yin (1994) possvel compreender e
explicar dinmicas estabelecidas em atividades da vida real, cuja complexidade no pode ser
abordada por designs do tipo experimental. O estudo de caso, ainda segundo o autor, permite
descrever e compreender o contexto da vida real no qual ocorreu, ou ocorre, uma dada
interveno. E ainda, possibilita avaliar e compreender uma determinada interveno num
dado contexto real, explorando as situaes em que os seus resultados no so
suficientemente claros, mas so especficos.
2.3 OS SUJEITOS DA PESQUISA
Para este trabalho, foram entrevistadas 15 pessoas: quatro ekedes, cinco ogans, uma
ebomi, duas ias, uma abi, um babalorix e uma yamor. O babalorix, a yamor e uma das
ekedes entrevistados foram de outros terreiros, mas tm ligao com a Casa Branca porque
so filhos e ou filhas de iniciados da Casa Branca. Dos entrevistados, quatro so pessoas com
mais de 50 anos de iniciao, uma tem mais de 40 anos de iniciada, uma tem 34 anos de
iniciada, outra 30 anos, outra 29 anos. Trs pessoas tm entre sete e 21 anos de iniciao, a
outra com sete anos de iniciao e duas menos de dois anos. Apenas uma das entrevistadas
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no iniciada, mas tem cinco anos de freqncia na Casa Branca. Destes, todos tm um orix
que possui ligao com a gua, principalmente Oxal e Oxum.
A maioria, como percebe-se nos nmeros, tem cargos e status religioso no Terreiro.
Optou-se por este critrio por serem pessoas com grande vivncia e sabedoria tanto no que se
refere religio quanto s prticas rituais da Casa Branca, podendo assim conferir maior
respaldo para a pesquisa.
Antes de toda entrevista, os entrevistados leram e assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido tomando conhecimento sobre o assunto e autorizando a
participao na pesquisa.
Metodologicamente, o prximo passo foi adentrar ainda mais no foco de estudo e
especificar as relaes existentes com o uso da gua na Casa Branca, para posterior
sistematizao e anlise dos fenmenos. Para tanto, buscou-se sempre respaldo de lideranas
da comunidade para que pudessem permitir e validar nossas visitas comunidade, nossos
contatos com as pessoas, a participao em rituais pblicos e mesmo no ritual de guas de
Oxal, restrito a iniciados e poucos convidados geralmente adeptos de outras naes ou
simpatizantes da religio.
Uma das pessoas com grande respeito na comunidade e com mais de 50 anos de
iniciao foi nosso ponto focal, o entrevistado principal ou entrevistado chave que colaborou
mais efetivamente com a pesquisa, contribuindo para dirimir dvidas sobre rituais da Casa
Branca e quanto modelagem desenvolvida a partir das percepes dos entrevistados. Foi
uma necessidade para entender o sistema de crenas, aquele conhecimento passado dos mais
velhos para os mais novos.
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3 PANORAMA DA ESCASSEZ HDRICA
3.1 A GUA NO MUNDO
A gua regula os ciclos biogeoqumicos. imprescindvel para os organismos vivos, o
equilbrio na terra, a sustentao, manuteno e interligao dos ecossistemas. Princpio
elementar da vida e de toda a biodiversidade; constitui 75% do corpo humano.
Academicamente ou instintivamente, todos sabem da interdependncia da vida com relao a
gua seja para saciar-se ou para os diversos usos, domsticos, industriais, para a agricultura;
que garanta a produo de alimentos, a vida nos rios, a perpetuao das espcies.
De toda gua existente no planeta, 97% esto nos oceanos. Apenas 3% da gua
disponvel no globo doce, isto , tem baixa concentrao de sais e, portanto, apropriada
para tornar-se potvel, com sabor, odor e especificidades qumicas, fsicas e biolgicas
prprias para ser ingerida . Do total de gua doce existente no planeta, 2,4% esto nas regies
polares ou geleiras; 0,5% esto nos aqferos (guas subterrneas) e somente 0,1% refere-se
s guas superficiais encontradas na atmosfera, rios e lagos (HAMBLIN, 1992 p. 570). Veja
no grfico da Figura 1:
Figura 1 - Este grfico mostra a distribuio da gua existente no planeta. Em vermelho o volume referte s guas superficiais
e vapor dgua atmosfrico. Elaborado por SANTOS, C.O (2008)
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A gua se renova no globo terrestre a partir do ciclo hidrolgico4. Estima-se que a
terra possui 1,4 bilho de km de gua nos estados slido e lquido (VILLIERS, 2002, p.54).
Mas, no contexto de mudanas climticas, de acelerao do aquecimento global, mais do que
estatsticas hidrogeolgicas, esses nmeros sobre a disponibilidade de gua no planeta devem
ser levados em conta.
Pesquisas feitas por mais de 2 mil cientistas que compem o Painel
Intergovernamental Sobre as Mudanas Climticas (IPCC), vinculado Organizao das
Naes Unidas5 e divulgadas em fevereiro de 2007 revelam que todos os ecossistemas esto
sofrendo alteraes em virtude das mudanas climticas provocadas pela acelerao do
aquecimento global. O aquecimento global um fenmeno decorrente do efeito estufa que
vem sendo acentuado pelo aumento do volume de gs carbono (CO2) lanado na atmosfera
principalmente devido queima de combustveis fsseis, como o petrleo e carvo mineral.
De acordo com o IPCC, por ano so emitidas 8,8 bilhes de toneladas de carbono, o
equivalente a 32,3 bilhes de toneladas de CO2 e mais 7,2 bilhes de toneladas referentes
queima de combustveis fsseis. Cerca de 60% desse total absorvido pelos oceanos e pela
biosfera e o restante fica na atmosfera por um tempo em mdia de 150 anos (Angelo, 2008,
p.30).
Para o IPCC, da revoluo industrial, final do sculo XVIII, at o ano de 2005, a
concentrao de CO2 no ar aumentou 99 partes por milho (PPM), passando de 280 ppm para
379 ppm. O que mais alarma a comunidade cientfica que nos ltimos 650 mil anos, o CO2
jamais tinha superado as 300 ppm na atmosfera. Se a emisso de CO2 continuar aumentando
na mesma proporo em relao era pr-industrial, chegando entre 500 e 550 ppm no ar, a
temperatura da terra dever ficar at 4C mais alta at o ano de 2100 (Angelo, 2008, p.20-59).
Veja as previses quanto s consequncias das mudanas climticas no futuro segundo o
IPCC, na Figura 2:
4 Rutkowski conceitua ciclo hidrolgico como fenmeno basicamente caracterizado pela evaporao,
transpirao e precipitao que promove a partir disso, a reposio da gua nos rios, lago, aqferos e mares
(1999). Considera-se que o ciclo hidrolgico s possvel devido a distncia entre a terra e o sol, o que faz
com que a gua seja encontrada nos estados slido, lquido e gasoso. 5 Ver mais em: O Aquecimento Global, de Cludio Angelo, 2008, Publifolha, da srie Folha Explica.
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Figura 2 - Este esquema mostra a previso do que dever acontecer no mundo devido s mudanas climticas segundo o
IPCC. Elaborado por SANTOS, C.O (2008)
A conseqncia disso so alteraes climticas como secas e furaces intensos,
ocorrncia de chuvas cidas, aumento da temperatura, secas mais intensas e prolongadas,
enchentes, derretimento das calotas polares e outros impactos que podem provocar
instabilidade nos ciclos biogeoqumicos, causar a extino de espcies6, reduzir os ndices de
chuva e contribuir para aumentar tambm a escassez de gua no planeta.
Vrios pases africanos dependem da agricultura irrigada pelas chuvas, que poder sofrer perdas de 50% j em 2020, segundo o IPCC. Em 2020, de 75
milhes a 250 milhes de africanos estaro expostos a uma escassez de gua
aumentada devido mudana climtica (ANGELO, 2008, p. 77).
No cenrio apresentado, estima-se, por exemplo, que a gua dos rios alimentados pelo
degelo do Himalaia, que beneficiam 40% da populao mundial, no existam mais at 2050,
pois j esto recuando rapidamente devido s mudanas climticas. A situao dever levar ao
colapso a agricultura na ndia e China. A escassez da gua nos dois pases mais populosos do
mundo pode tambm provocar uma crise planetria sem precedentes na disputa por alimentos
(ANGELO, 2008, p. 76).
Nos locais mais longnquos ou at nos grandes centros urbanos, a falta de acesso a
esse bem natural e, em uma escala mais dramtica, a escassez7da gua um problema que j
conduz a uma crise global, ao ponto de a Organizao das Naes Unidas instituir a dcada da
gua, de 2005 e 2015. At 2015, os 191 Estados que elencaram os objetivos para o
6 Relatrio do IPCC, 2007, indica que de 20 a 30% das espcies do planeta correro o risco de extino se a
temperatura da terra ultrapassar os 1,5% Angelo, 208, p.63 . 7 Embora possa estar sendo acentuada em conseqncias das mudanas climticas provocadas pelo aquecimento
global (IPCC), a escassez hdrica no um problema atual. Civilizaes antigas como Egito e China, a ndia e
a Mesopotmia, chamadas de civilizaes hidrulicas, experimentaram ascenso e declnio devido ao uso abusivo da gua (DREW, 1986, p. 206).
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desenvolvimento do milnio, devem reduzir em 50% o nmero de pessoas que no tm acesso
gua no planeta8. A escassez, ressalta-se, provocada em parte pelas condies de clima
adversas, principalmente, nas regies ridas, semi-ridas e sub-mida seca, parte pela
poluio dos mananciais ou pela m distribuio dos recursos hdricos.
A problemtica sobre a disponibilidade de gua doce est refletida na realidade atual.
Calcula-se que 1,4 bilho de pessoas, o que equivale a 25% da populao existente, ainda no
tm acesso regular ao abastecimento. De acordo com a Organizao das Naes Unidas
(ONU) cada ser humano precisa de 20 a 50 litros de gua diariamente para os diversos usos,
beber, cozinhar, tomar banho, lavar roupas e utenslios.
Das 14 naes do Oriente Mdio, nove vivem situaes de escassez. Pases como
Kuwait, Emirados rabes, Ilha Bahamas e Faixa de Gaza esto na lista dos que tm um
elevado ndice de escassez hdrica. A disponibilidade de gua por pessoa nesses pases varia
de 10 a 66 litros por ano (GUA, 2006, p. 17). Observe na Figura 3, as principais causas e
consequncias decorrentes da escassez hdrica segundo o IPCC.
Escassez Hdrica
Poluio
1,4 bilhes
sem acesso
gua potvel
no mundo
Atinge 14 das
9 naes do
Oriente
Mdio
Na frica 12
pases vivem
sob tenso
Na China 60
milhes so
atingidos
300 pases
tem guas
fronteirias
Explorao
excessiva
Mudanas
climticas
Distribuio desigual
Figura 3 - Causas e consequncias da escassez hdrica. Esquema elaborado por SANTOS, C.O (2008)
O cenrio ainda mais crtico em pases como Jordnia, Israel, Gaza, Chipre, Malta e
Pennsula Arbica, onde todas as reservas de gua doces superficiais e subterrneas foram
esgotadas. As previses so a de que at 2012, o Marrocos, Arglia, Tunsia e Egito estejam
8 Dcada da gua. Disponvel em: . Acesso em: 03 dez. 2008.
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na mesma situao. As guas do lago Chade que j foi apontado como uma das nascentes do
Rio Nilo, decrescem 100 metros por ano (VILLIERS, 2002, p. 29-39).
Na frica, 12 pases, entre os quais, Qunia, Ruanda, Burundi e Malaui, totalizando
mais de 250 milhes de habitantes, vivam sob tenso no suprimento de gua. As previses so
as de que at 2025, esses quatro pases enfrentem uma crise extrema no suprimento da gua e
que at 2025 passe para 1 bilho o nmero de pessoas atingidas pelo problema (SELBORNE,
2002, p. 46).
Na Nambia, a situao j catica. O pas o mais rido do extremo sul da frica,
um dos mais secos do mundo, no tem rios perenes e os que existem ficam secos na maior
parte do ano. Cerca de 80% da gua da chuva registrada em Nambia evapora e apenas 1%
realimenta os aqferos. A escassez hdrica uma ameaa para a permanncia da populao
no local e de quase todo o continente africano, exceto as bacias do Congo, Nger e Zambezi.
Em 1980 uma seca atingiu a maior parte da frica, chegando a causar a morte de milhes de
pessoas (VILLIERS, 2002, p. 29-38).
Conflitos e guerras tm sido travados em funo da escassez por toda parte. Na China,
pas mais populoso do mundo, a escassez de gua j atinge 60 milhes de pessoas,
principalmente os habitantes das reas mais secas das plancies do norte. Falta gua em 400
das 668 cidades da regio e conflitos no campo tm sido recorrentes (BURKE, 2003, p. 90 A).
Outro agravante: Na China, 80% dos 50 mil quilmetros dos principais rios no tm mais
peixes devido poluio (VILLIERS, 2002, p. 87-142).
Conflitos entre pases fronteirios tambm tm sido desencadeados. Em mais de 300
pases as guas superficiais so originrias de outras fronteiras. o caso da Sria e Turquia. A
seca e a explorao das guas subterrneas fizeram com que Rio Khabour, principal afluente
do Rio Eufrates na Sria, secasse por mais de cinco anos e como o aqufero do Eufrates fica no
pas vizinho, Turquia, a questo um divisor poltico entre as duas naes (BOUGUERRA,
2004, p. 93). Os rios Tigre e Eufrates tambm so assuntos de segurana nacional na Sria,
Turquia e Israel. E as guas do Ganges so objeto de cobia e disputa entre a ndia e
Bangladesh e motivam prtica de guerrilha entre os militantes de Tmil Nadu e Karnataka.
(VILLIERS, 2002, p. 29-43)
Cerca de 98% das guas do Turcomenisto so originrias de outros pases; assim
como 97% das guas do Egito; 95% da Hungria; 95% da Mauritnia e 89% da Holanda. Os
pases a jusante, geralmente, sofrem as conseqncias de problemas como a reduo do fluxo
fluvial, o assoreamento normalmente ocasionado pela construo de represas, o uso da gua
para irrigao, a poluio causada pela indstria ou uso de agrotxico na agricultura e at
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mesmo salinizao dos rios, entre outros. So medidas adotadas pelos pases e que geram
conflitos pelo uso da gua junto aos pases montante (SELBORNE, 2002, p. 62-63).
As guas do Rio Colorado, no Mxico, so to exploradas pelos norte-americanos que
ameaam o abastecimento para milhares de pessoas na pennsula mexicana de Baja
Califrnia. Em 2001, o Ministrio das Relaes Exteriores do Mxico elaborou um protesto
contra o projeto norte-americano de explorao da Bacia do Colorado. No Mxico, a
contaminao dos recursos hdricos pelas usinas estrangeiras, tem feito com que as mes
substituam a gua por refrigerantes para os seus bebs. Acredita-se, que a guerra do Ir-
Iraque, em 1980, teve como uma das motivaes o controle do delta mesopotmico de Chatt-
el-Arab (BOUGUERRA, 2004, p. 94).
At mesmo internamente nos Estados Unidos h conflitos por causa do uso da gua.
O norte tem resistncia em desviar gua da Califrnia, do Oregon e Washington, para o sul. A
poluio industrial e o lanamento de esgotos sem tratamento comprometem mananciais
como os lagos Michigan, Huron, Erie, Ontario, o sul da baa da Gergia, a baa de So
Francisco e Los Angeles, o rio Hudson, em Nova York. (VILLIERS, 2002, p. 87-142).
Percebe-se, desta forma, que a escassez hdrica est associada a fatores climticos e
outros como explorao excessiva dos recursos hdricos, da distribuio desigual deles e ainda
poluio dos mananciais. Em 1997, a Population Action International afirmou que 436
milhes de pessoas no mundo j viviam em estado crtico de falta de gua. Segundo as
Naes Unidas, um em cada cinco pases est vulnervel a sofrer com a falta de gua dentro
de 25 anos (VILLIERS, 2002, p. 29-42).
3.2 ABUNDNCIA E ESCASSEZ: O BRASIL DAS CONTRADIES
Mesmo no Brasil, que possui a maior disponibilidade hdrica do mundo - entre 12 e
16% das reservas hdricas do planeta -, milhares de pessoas enfrentam a escassez hdrica e
convivem com a desigual distribuio de gua. O pas tem uma taxa de 35 mil m/ano por
habitante,9 o maior rio do planeta, o Amazonas com mais de 6 mil km de extenso.
9 Rebouas ( 2004, p.145) cita levantamento das Naes Unidas nos seus pases membros que aponta o volume
de 2000 m/hab/ano como o suficiente para o gozo da qualidade de vida moderna e desenvolvimento
sustentvel.
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Dentre os aqferos existentes no territrio nacional, o Guarani se destaca por ser o
maior das Amricas e um dos maiores do mundo. Dos 1,2 milhes de km, distribudos entre
o Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, 71% ou o equivalente a 840 mil km do aqfero
esto distribudos entre os estados brasileiros de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Gois,
So Paulo, Santa Catarina, Paran e Rio Grande do Sul (GUA, 2006, p 23).
Apesar de tanta riqueza de guas superficiais e subterrneas, o Brasil tem um histrico
de escassez desde os tempos do imprio. A criao da floresta da Tijuca e da Floresta das
Paineiras, em 1861, foi uma medida tomada por D. Pedro II para proteger e aumentar o
volume dos mananciais que abasteciam a capital do Imprio. Esta foi uma reao
degradao dos mananciais devido excessiva explorao dos corpos dgua; fato que levou a
capital do Imprio a enfrentar uma escassez de gua (CENTRO DE CONSERVAO DA
NATUREZA, 1966; DEAN, 1996).
Em pleno Sculo XXI, com a expanso urbana, o crescimento desordenado das
cidades, o aumento da populao, a acelerada demanda e uso intensivo e exaustivo dos
recursos hdricos, sobretudo, pelas atividades econmicas, o cenrio de escassez est posto e
de forma alarmante. E assim, mesmo nesse Brasil de guas em abundncia; pas que tem
uma rea de 8.574.403,5 km2, segundo o IBGE (2000) e que registra chuvas regulares entre
1.000 e 3.000 mm/ano em mais de 90% do seu territrio (REBOUAS, 2004, p. 39).
Essas so evidncias de que o panorama de escassez da gua no Brasil, assim como
em vrias partes do mundo, est associado a questes como irregularidade no abastecimento
da gua, crescimento urbano e das populaes e tambm falta de qualidade da gua. Mesmo
na regio com maior riqueza de biodiversidade do mundo, o Norte brasileiro, onde est a
maior bacia hidrogrfica do mundo, a Amaznica, 30% da populao no tm acesso gua
potvel. No Sudeste, a escassez de gua para consumo humano pode atingir mais de 40
milhes de pessoas em uma dcada, principalmente nas regies metropolitanas de So Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte, regies onde rios como o So Francisco nas cidades de
Itana, Betim e Extrema esto poludos por resduos industriais e domsticos.10
Em todo o pas, os corpos dgua esto cada vez mais poludos.11
De toda a gua
existente no pas, 70% destinado ao agronegcio, 20% para a indstria e 10% para consumo
10
Fonte: Frum Social Mundial. Disponvel em: . Acesso em: 3 jan. 2009 O Estado real das guas e da biodiversidade no Brasil 2004/2008, editado pela Defensoria da gua, da Confederao Nacional dos Bispos do Brasil, como resultado da campanha da fraternidade intitulada gua, fonte da vida. O relatrio envolveu 10 mil parquias em todas as regies do pas e apresenta o registro de 454.235 notificaes de conflitos pelo uso da gua no territrio nacional. 11
Rutkowski (1992 p. 1) em estudo sobre bacia ambiental, afirma que a falta de gua potvel e o sobrar de
esgotos fazem parte do cotidiano das regies urbanizadas no pas ao longo dos sculos.
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humano, gerao de energia, pesca e turismo. E so os maiores consumidores os maiores
poluidores dos recursos hdricos. As causas so diversas. Esto mais relacionadas aos lixos
txicos, destinao ilegal de resduos industriais e de indstrias de fundio, contaminao
por derivados de petrleo, destinao de resduos de indstrias de alimentos, contaminao
por atividades siderrgicas e petroqumicas, despejos de esgotos urbanos e rurais e a
existncia de lixes em mais de 4.700 municpios.
Menos de 3% dos lixes enquadram-se na categoria aterros controlados. H registros de 20.760 reas contaminadas com mais de 5 milhes de
pessoas afetadas... O agravante est na falta de controle ambiental quanto
gerao, tratamento e destinao final de resduos gerados no processo
produtivo, normalmente acumulados nas margens de cursos de gua (O
ESTADO REAL..., 2004/2008)
Segundo o Estado Real das guas no Brasil 2004/2008, 70% das guas superficiais do
Brasil so imprprias para o consumo humano e a previso a de que at 2012, 90% das
guas superficiais do pas estaro imprprias para o contato humano. Levantamento da
prpria organizao afirma que de 1994 a 2004, a contaminao dos mananciais brasileiros,
incluindo, rios, lagos, lagoas e oceanos, cresceu 500%. Observe na Figura 4, um panorama
sobre os recursos hdricos no Brasil.
Figura 4 - Esquema apresenta a situao da gua no Brasil e distribuio para os diversos usos, conforme o Estado Real das guas no Brasil 2004/2008. Elaborado por SANTOS, C.O (2008)
Alm desse contexto de m distribuio dos recursos hdricos e, principalmente, da
poluio que compromete os mananciais e aumenta os riscos de escassez hdrica no Brasil,
outro cenrio que em todo o pas h muitos ecossistemas em situao de estresse hdrico, ou
seja, praticamente mortos porque os recursos naturais esto sendo saturados a partir,
sobretudo, do uso excessivo para abastecimento e irrigao. A bacia do Rio Piracicaba um
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desses casos. Parte das suas nascentes foi revertida para o abastecimento de gua potvel para
So Paulo e Regio Metropolitana. Na bacia, a extrao muito maior do que a capacidade de
reposio (RUTKOWSKI, 1999, p. 20).
A regio do Semirido brasileiro que agrega os Estados Nordestinos e parte de Minas
Gerais e onde vivem cerca de 34 milhes de pessoas, 24% da populao urbana do pas
(IBGE, 2000), a mais afetada pela escassez dos recursos hdricos. Tem ndices
pluviomtricos abaixo dos 900 mm/ano e outras caractersticas geoclimticas desfavorveis.
Registra altas temperaturas, baixas amplitudes trmicas e elevadas taxas de evapotranspirao
que, geralmente, superam os totais pluviomtricos irregulares, conduzindo a taxas negativas
no balano hdrico da regio. Trata-se, portanto, de uma rea vulnervel, em que a
sazonalidade inter-anual das chuvas pode acarretar condies extremas, caracterizando
perodos crticos de seca (ATLAS NORDESTE, 2006, p. 24).
A incidncia de secas peridicas torna a regio ainda mais vulnervel escassez e
consequentemente aos conflitos em torno do uso da gua. Esse quadro de seca no semi-rido
nordestino foi registrado pela primeira vez na "Histria da Companhia de Jesus no Brasil",
quando o padre Serafim Leite, em 1559, citou a seca na Bahia. Outro jesuta, Ferno Cardim
em 1587, tambm fez registros da seca na Bahia e em Pernambuco. As secas de 1915, 1919,
1930/32 e 1958 tambm tiveram registros como as maiores do sculo XX. Para esses eventos
extremos, foram organizadas 500 mil frentes de servio. Entre 1979 e 1983, o Centro
Aeroespacial de Campinas (SP) previu a seca e chegou a fazer uma levantamento na poca
que inclua 3,1 milhes de pessoas nas frentes de trabalho (PLANO NACIONAL DE
COMBATE DESERTIFICAO E MITIGAO DOS EFEITOS DA SECA, 2006)12
.
Acredita-se que as condies de sustentabilidade hdrica da regio do Semi-rido
Nordestino sejam agravadas por vrios fatores, entre eles, as mudanas climticas, que
devero contribuir com o aumento significativo da temperatura e com a diminuio de
precipitaes e da umidade do solo. Tambm devem sofrer conseqncias devido a
intervenes humanas no ambiente (REBOUAS et al., 1999, p. 522). De acordo com o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, at o final do Sculo XXI, as temperaturas podem
aumentar de 2C a 5C no semi-rido, a evaporao aumentar e a disponibilidade hdrica ser
reduzida; a diminuio das chuvas diminuir a vazo dos rios e limitar a diluio dos esgotos
comprometendo a gerao de energia (GREENPEACE, 2006, p. 53).
12 Programa Nacional de Combate Desertificao e Mitigao dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil). Disponvel
em: . Acesso em: 13 dez. 2009.
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Na atualidade, 2.200.000 domiclios no Nordeste j no dispem de gua de boa
qualidade. Homens, mulheres e crianas costumam percorrer 3 km por dia, em mdia, em
direo aos audes ou outros tipos de mananciais para encontrar gua para consumo humano e
dessedentao animal (PAN Brasil, 2006).
3.3 BAHIA: POTENCIALIDADES E VULNERABILIDADES HDRICAS
Maior estado do Nordeste, a Bahia tem grande potencial hdrico. Dividido em 26
Regies de Planejamento e Gesto das guas, como apresenta o mapa da Figura 5, o Estado
cortado por centenas de rios, entre os maiores esto o Paraguau, Real, Itapicuru, Contas,
Pardo, Jequitinhonha e So Francisco, esses dois ltimos de domnio Federal (PLANO
PLURIANUAL, 2008-2011, p.445).
Figura 5 - Mapa da diviso hidrogrfica da Bahia em 26 Regies de Planejamento e Gesto das guas. BAHIA. Instituto de Gesto das guas e Clima. Tilha das guas. Salvador: ING (2009)
S de aquferos, a Bahia tem 567.000 km. Os maiores so o Urucuia, com 75.000
km, o Aqfero de Irec, com 20.000 km e o Aqfero Tucano e Recncavo, com 43.000
km (PLANO ESTADUAL DE RECURSOS HDRICOS, 2000)
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A riqueza hdrica do Estado no o torna imune questo da escassez. A Bahia est
vulnervel e sofre com o problema assim como a maior parte dos estados nordestinos e as
causas da escassez so vrias. A escassez hdrica est ligada, por exemplo, ao acesso. Na
Bahia, a falta de abastecimento atinge 24,9% da populao13
e est relacionada m
distribuio: 60% da gua na Bahia utilizada na irrigao (ATLAS NORDESTE, 2006, p.
35).
A maior parte do territrio baiano tem baixo, restrito ou mdio potencial de terras para
irriga