dissertacao machado de assis critico da imprensa cronicas

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MARCOS FABRÍCIO LOPES DA SILVAMACHADO DE ASSIS, CRÍTICO DA IMPRENSA:o jornal entre palmas e piparotesBelo Horizonte 2005Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras – Estudos Literários. Área de concentração: Literatura Brasileira

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MARCOS FABRCIO LOPES DA SILVA

MACHADO DE ASSIS, CRTICO DA IMPRENSA:o jornal entre palmas e piparotes

Belo Horizonte 2005

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MARCOS FABRCIO LOPES DA SILVA

MACHADO DE ASSIS, CRTICO DA IMPRENSA:o jornal entre palmas e piparotes

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Letras Estudos Literrios. rea de concentrao: Literatura Brasileira Linha de pesquisa: Literatura, Histria e Memria Cultural. Orientadora: Profa. Dra. Constancia Lima Duarte

Belo Horizonte 2005

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Cada um de ns um pedao do espelho divino.Para meus pais Deusina e Marco: Me, voc a estrada que guia os meus passos. Pai, voc as placas que orientam o meu caminho. Para meus irmos Carlos Felipe e Joo Pedro: lies vivas de autenticidade e meiguice. Para minha esposa Elisngela: Nas alturas do amor e sem medo da queda, descubro o teu interior, encanto maior que me eleva. (Elis, obrigado pelo apoio irrestrito, pela reviso da dissertao e pela organizao do anexo)

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Louvando quem bem merece...Professora Constancia Lima Duarte: pela orientao cuidadosa e sincera, pelo companheirismo e por dividir comigo a grandeza da humildade intelectual. O professor Eduardo de Assis Duarte: pelo companheirismo e pela fora de vontade canalizada para valorizar a literatura afro-descendente, na qual a obra de Machado de Assis est inserida. O professor Dalmir Francisco: pela sincera amizade e por me contar com sabedoria o outro lado da nossa histria: preto no branco, sem esquecer do passado. A professora Marli Fantini: por acreditar neste trabalho desde os primeiros passos. Equipe da Ps-Lit, pelo apoio moral e burocrtico. Pessoal da Biblioteca da FALE, pelo zelo com a informao. Professores da Graduao do Curso de Jornalismo no UniCeub, em Braslia-DF: Antonio Teixeira de Barros, grande amigo e pesquisador (a quem devo gratido pelos meus primeiros estmulos em matria de iniciao cientfica, e pela construtiva orientao da monografia de concluso de curso intitulada Como a crnica machadiana l o jornal), Verenilde dos Santos Pereira, um rio sem fim de leveza humana (pela amizade e por me levar nas asas da fico), Lunde Braghini Jr, grande pensador radical (por me apresentar pela primeira vez as crnicas de Machado de Assis) e Elen Geraldes (por me mostrar as luvas de pelica necessrias ao exerccio crtico sofisticado). Professor e filsofo portugus Jos Trindade dos Santos: pelo conhecimento transmitido com paixo. Companheira Gabriela Korssy: parceira presente nos primeiros estudos a respeito da crnica de Machado de Assis. Minha famlia: aos mortos, mais vivos do que nunca em minha memria: v Rosa e vov Levi. Aos que continuam vivos, sado o meu padrinho e tio Nlson e a minha madrinha e tia Socorro. Destaco ainda a tia Creusa Paixo, pela educao sentimental, e a tia Ana Maria, pelo amor e apoio incondicionais e por acreditar nos meus sonhos. Quanto aos primos e primas, grande abrao ao Marcelo, a Aline, ao Maurcio e ao Flvio, grande quarteto de almas bacanas e um beijo na Carol: tua carta dizendo que sou um exemplo de sonhador salvou a minha vida em um momento bastante delicado. Dudu, o teu jeito moleque me encanta.

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Meus amigos, fundamentais para a formao do meu carter: Gustavo Lucas, Jlio Maria, Fabiano O Silva, Thiaguinho, Juliana, Elizeu, Tatyanna, Llian Beraldo, Ana Lcia (mais que perfeita), Raquel Brandim , Panda e Ivo. Amigos que me abraaram com muita sensibilidade nestas lindas montanhas das Minas Gerais: Adriana, Thiago, Natlia (trio movimento ternura), Francys, Lilian, Mariana, Ceclia, Rafaela, Anselmo, Bira, Luza Anglica, Cristiano Ordones, Guilherme Terra, Everton Pires e Marcelina. Meus amigos do NEIA pela energia da Ptria dos Quilombos que no se d por vencida: Aline, Rosrio, Dani, Eduarda, Zlia, Rodrigo e Lus. Sado especialmente o meu parceiro Adlcio, companheiro de composies musicais, intelectuais e que, com muito carinho, ofereceu gentilmente a sua competncia para a traduo do resumo desta dissertao. Equipe da Manso Vida: Alexandre, Brbara, Ivan, Iuri e demais companheiros. Adna, meu espelho com reflexo. Colegas da Assessoria de Imprensa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), onde comecei a minha carreira jornalstica: Lo (editor-mestre), J Oliveira, Abade, Alexandre, Manoela, Vera, Rosa Maranho, Piau, Wanderley, Edmar, Huda, Francisco e Ftima. Colegas do Servio de Ao Continuada da Secretaria de Estado de Assistncia Social (antiga SEAS): ris, Gilmar, Vanessa, Rosa, Breno, Daniel Francisco, Daniel Prazeres, Rafael, Osana, Pollyana, Roslia, Vitria, Manoel, Conceio e Fbio. Amigo e artista plstico Demtrius Cotta pelo companheirismo e pela arte da capa e das fotos referentes a esta dissertao. Carlos Vieira pela co-autoria na arte da capa e das fotos contidas nesta dissertao. Equipe de profissionais da Faculdade Promove de Sete Lagoas-MG e aos meus alunos de Publicidade e Propaganda.

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ResumoEsta dissertao tem como objetivo analisar as crnicas de Machado de Assis, publicadas em jornais na segunda metade do sculo XIX, a fim de destacar a atuao do jornalista/cronista como admirador da imprensa e crtico do jornal. As ocasies em que o nosso escritor aplaude a imprensa equivalem aos momentos de palmas. nesta fase que Machado de Assis elabora o conceito de repblica do pensamento, conferido ao jornal. Partindo deste princpio, as crnicas ressaltam que o direito democrtico da informao inseparvel da vida republicana, ou seja, da existncia do espao pblico das opinies. De acordo com o escritor, cabe ao jornalismo, enquanto esfera pblica das opinies, viabilizar o acesso de todos, em iguais condies, coisa pblica, apoiado no princpio universal dos direitos. Os piparotes, por sua vez, representam a reprovao de Machado de Assis frente aos deslizes de carter tico e editorial, cometidos pelos jornais. Devido constante presena do papel do jornalismo e de suas estratgias discursivas nas crnicas de Machado de Assis, este estudo busca comprovar que o nosso escritor foi um destacado crtico da imprensa. Tal atuao marcante precisa ser reconhecida e enaltecida nos estudos envolvendo a formao da imprensa brasileira e as discusses contemporneas a respeito de um jornalismo de qualidade, guiado pela tica.

Palavras-chave: Machado de Assis; crnica; jornal ; crtico da imprensa

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AbstractThis dissertation aims to analyze Machado de Assis chronicles of the late XIX century, in order to point out his work as a journalist/chronicler as a critique and an admirer. The palmas (applause) moments are related to his constructive criticism to the press. From these occasions the writer creates the concept of republic of thought related to the importance of the press as democratic arena. This concept has shown up that the right to information cannot be detached from the republics life, or as it desired, a public space for free speech. According to the writer, journalism could be seeing as this desirable arena, giving free access to information related to the res publica in equal conditions to all citizens. This is also based on the universal principle of rights. Also according to Machado de Assis, the piparotes in the other hand, stand for his reproval to the editorial and ethics flaws committed by newspapers. Due to the importance of journalism and its discursive strategies to Machados texts, this work intends to demostrate that he was an outstanding critique of the press. Such exceptional criticism must be recognized by the press research field, specially concerning the formation of the Brazilian press, and the contemporary discussions concerning press quality as a journalism supported by ethic principles.

Key words: Machado de Assis; chronicle; newspaper; press critique.

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ndiceIntroduoEntre palmas e piparotes

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I Captulo A reforma pelo jornalA modernizao e a crnica no Brasil A crnica: tudo comeou numa conversa de vizinhas Museu de grandes novidades Lugar de jornalista na rua! Nos caminhos da esttica da recepo Ares de conselheiro do leitor Razes do leitor brasileiro A mistura do til e do ftil A imprensa como repblica do pensamento

2931 33 37 46 51 56 64 66 77

II Captulo A reforma no jornalDo entusiasta ao fiscal tico A opinio pblica: uma metfora sem base Soberba, generalizao apressada e notcia inventada Espreme que sai sangue!: o jornalismo com sede de violncia Liberdade submetida propriedade O mal do oficialismo

8385 91 95 98 115 119

ConclusoMachado de Assis e a imprensa: uma relao pendular

130132

BibliografiaBibliografia de Machado de Assis Bibliografia sobre Machado de Assis Bibliografia geral

135135 138 141

Anexo ( parte)Seleo das crnicas estudadas de Machado de Assis

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Introduo

A primeira propriedade do jornal a reproduo amiudada, o derramamento fcil em todos os membros do corpo social. Assim, o operrio que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai l encontrar ao lado do po do corpo, aquele po do esprito, hstia social da comunho pblica. A propaganda assim fcil; a discusso do jornal reproduz-se tambm naquele esprito rude, com a diferena que vai l achar o terreno preparado. A alma torturada da individualidade nfima recebe, aceita, absorve sem labor, sem obstculo aquelas impresses, aquela argumentao de princpios, aquela arguio de fatos. Depois uma reflexo, depois um brao que se ergue, um palcio que se invade, um sistema que cai, um princpio que se levanta, uma reforma que se coroa.Machado de Assis, em A reforma pelo jornal, de 23/10/1859.

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Entre palmas e piparotes...

Machado de Assis, crtico da imprensa: o jornal entre palmas e piparotes se prope revelar e analisar uma faceta pouco estudada do escritor: a do cronista que se debrua sobre as proezas e mazelas do jornalismo. Gnero hbrido que se posiciona entre o jornalismo e a literatura, a crnica foi utilizada por Machado de Assis como meio para se comunicar com os seus leitores, entre 1859 e 1900. Em seu tempo, a profisso de jornalista no era regulamentada e no havia muita diferenciao entre a atividade de literato e a de cronista. Pode-se dizer que o escritor se encontrava num entre-lugar, numa fronteira, transportando idias de um lado para o outro, enriquecendo o cronista com o homem das letras e vice-versa. Ao longo de sua intensa trajetria como jornalista/cronista, Machado escreveu tambm sobre a prpria atividade, diagnosticando problemas e sugerindo solues para uma adequada atuao da imprensa. Enquanto as palmas representam as ocasies em que o cronista aplaude a imprensa de forma entusiasmada, os piparotes1 podem muito bem simbolizar um misto de petelecos e cascudos desferidos por Machado de Assis aos que cometem abusos de poder nos jornais, quando estes cometiam deslizes de carter tico e editorial. As crticas machadianas direcionadas imprensa variavam de tom, ora eram feitas de forma enrgica, ora, de forma sutil. Na juventude, nosso escritor foi um dos responsveis pela formao e consolidao da imprensa no Brasil, considerando-a, conforme o exposto na crnica O jornal e o livro, de 10 e 12/01/1859, a verdadeira forma da repblica do pensamento2. Mais tarde, com a experincia adquirida na prtica jornalstica, ele atuouTermo resgatado do prprio vocabulrio machadiano, expresso nas advertncias ao leitor em Memrias Pstumas de Brs Cubas: A obra em sim mesma tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te no agradar, pago-te com um piparote, e adeus (1997: 513) (grifo meu). 2 Esta definio machadiana de jornalismo incentivou a realizao de um trabalho de iniciao cientfica, em parceria com a pesquisadora Gabriela Krossy. Fizemos uma srie de apontamentos sobre a contribuio da utopia de Machado de Assis o jornalismo como repblica do pensamento na aura romntica que confere ao jornalista uma espcie de complexo de Clark Kent, tendo em vista a sua misso enquanto super-heri de reformar o mundo, ao noticiar destemidamente a verdade em nome do povo, ente idealizado que passa a confundir-se com o pblico leitor/receptor. Aproveitando aquela impresso em particular, aliado ao estudo das caractersticas do jornalista e do cronista, destacado em outras crnicas de Machado de Assis, no que tange liberdade de estilo e busca pela informao, sistematizei tais estudos na monografia de concluso do curso de jornalismo, Como a crnica machadiana l o jornal, defendida em novembro de 2001.1

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em outra frente: colaborou de forma atuante para a consolidao do jornalismo, cobrando em nome da populao a dvida democrtica contrada pela imprensa, visto que esta atividade, ao invs de se pautar pela possibilidade de interveno social, tomada enquanto linha de mudana, havia privilegiado em seu certame noticioso os donos do poder e o sensacionalismo. Alm da admirao que tenho pela obra machadiana, as crnicas, em especial, ocuparam um papel importante na minha formao como jornalista. Dentre os diversos artigos que fundamentam a formao da imprensa brasileira, um texto A reforma pelo jornal3, publicado no peridico O Espelho, em 23 de outubro de 1859, e um jornalista Machado de Assis me marcaram como tatuagem. Percebi ali uma concepo de jornalismo que at hoje traduz as minhas intenes quanto ao ofcio que escolhi exercer. Na crena machadiana, o jornalismo no Brasil oitocentista funcionaria como agente capaz de popularizar o saber, que antes se concentrava nas mos de poucos, e de interferir nas decises polticas, econmicas e sociais de uma nao, ao ambientar o esprito democrtico e desarticular a organizao desigual e sinuosa da sociedade (1997: 964). Naquele artigo, nosso escritor realizou, de forma mais acentuada, uma propaganda positiva da imprensa. Era preciso legitim-la como uma necessidade vital, pois caberia a ela reformar a sociedade brasileira, que se encontrava no abismo da escravido e do analfabetismo. Na referida crnica, Machado descreveu o jornalista como um personagem mpar (um heri), motivado por vnculos de paixo e estoicismo que o levam busca da verdade e ao exerccio da profisso, entendida como misso repleta de responsabilidade social. Porm, aps construir tal paradigma, o escritor elabora um parecer bastante realista a respeito da atividade da imprensa no pas: o jornal aqui no est altura da sua misso (1997: 964). Ainda moo, constata-se que o cronista j utilizava a sua pena para expor os valores e mtodos da imprensa brasileira no tocante sua filosofia editorial, para que o pblico leitor avaliasse tais condutas e pudesse conhecer os meandros do ofcio jornalstico.3

Li esta crnica pela primeira vez na disciplina Formao da imprensa brasileira, lecionada no segundo semestre de 1999, pelo professor Lunde Braghini Jnior, quando cursava Jornalismo no Centro Universitrio de Braslia UniCEUB.

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A leitura de A reforma pelo jornal nos permite compreender um importante perodo da histria da imprensa brasileira, passada a limpo pela pena de um dos nossos maiores cronistas. Aquele texto serviu para despertar uma curiosidade em mim: ser que existiriam outras crnicas em que Machado de Assis revelasse os seus mtodos de fazer jornalismo? Caso houvesse, ser que no estaria na hora de incluir Machado de Assis no rol de jornalistas que j se debruavam sobre o papel tico da imprensa, baseado no equilbrio entre a ampla liberdade de informar e a responsabilidade no exerccio dessa liberdade? Se o meu primeiro contato com a crnica machadiana foi marcado em grande valia pelo elogio do escritor imprensa, as crnicas de 14/03/1885 e de 16/09/1894 expuseram uma sofisticada crtica ao sensacionalismo, principal alvo de Machado de Assis no tocante luta pela tica e pela qualidade editorial, no trabalho jornalstico. O contato com as crnicas at aqui mencionadas e com outros textos de Machado que lidaram com a imprensa me permitiu articular o pensamento de um homem das letras que ora se empolgava com o poder revolucionrio da imprensa, ora presenteava aqueles que feriam a tica jornalstica com uns petelecos. Ou melhor: piparotes. Considerando o fato recorrente de que o papel social do jornalismo e do jornalista serviu de tema para muitas crnicas de Machado de Assis, possvel afirmar que o nosso escritor atuou como crtico da imprensa? Responder a esta indagao motiva este trabalho, que tem como objetivo geral estudar a crtica realizada por Machado em suas crnicas, imprensa de seu tempo. Esta dissertao procura atuar em dois objetivos especficos: o de se debruar sobre as crnicas que o autor de Iai Garcia escreveu a respeito do jornal, do jornalista e da imprensa em geral; e o de analisar as fases da trajetria de Machado cronista: a primeira, fascinado com o poder do jornal, depois, atuando como crtico ferrenho da imprensa. Se existe diferena entre essas fases, no h oposio, mas sim desabrochamento, amadurecimento. Essas duas linhas de fora se afirmam e se negam, mas tambm se combinam, se enroscam, se enlaam, ocasionando a principal tenso dramtica do jornalismo concebida por Machado de Assis. Concordo com a anlise de Afrnio Coutinho, a respeito da trajetria dos romances machadianos, que, a meu ver, pode ser estendida no que tange evoluo perceptiva do cronista a respeito do jornalismo: o desenvolvimento de Machado de Assis um longo processo de

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maturao, ao longo do qual vai acumulando experincia e fixando vivncias, que geraro o seu credo espiritual e esttico e sua concepo tcnica (1966: 15). fascinante saber, conforme analisa o crtico literrio Barreto Filho, que, no ofcio de cronista, Machado de Assis comea a ouvir o seu demnio interior e a se expressar de acordo com a vontade de seu prprio esprito: surgir do cronista o contador de histrias da cidade, pilhrico, irnico, amargo ou evocativo (1997:100). A escolha do tema justifica-se tambm pela importncia histrica das crnicas machadianas para o estudo da formao da imprensa brasileira, e pela atualidade das questes suscitadas, ao longo desses textos, para a compreenso das virtudes do jornalismo e tambm dos seus defeitos. Outro motivo que me levou a escolher tal abordagem foi uma observao feita por um importante estudioso da obra machadiana, John Gledson: espantoso como se tem estudado pouco, de maneira mais sria, o jornalismo de Machado (1986:115). Marco Antonio Maschio Cardozo Chaga, em sua tese Folhetim (1977-1989) Rapsdia de uma dcada perdida (2001), considera Machado de Assis e o argentino Domingos Faustino Sarmiento (1811-1888) como dois nomes fundamentais para que se compreenda o papel do periodismo cultural e literrio na Amrica Latina. Para Chaga, a compreenso do jornalismo enquanto fenmeno poltico pode ser percebida de forma indireta nos textos machadianos, pois o cronista via o jornal como um veculo irnico que, ao mesmo tempo em que fornecia entretenimento, possua uma incrvel inclinao crtica. J nos textos de Sarmiento, Chaga verifica, de forma direta, uma concepo do jornalismo como instrumento de libertao poltica do julgo colonial (...). Nesta perspectiva, ns temos uma verso dramtica sobre o papel que o periodismo deveria desempenhar, tanto como um meio de nos libertar, quanto uma meta para nos guiar rumo nossa emancipao.(CHAGAS, http://www.cce.ufsc.br/~nelic/Tese_Marco?index_ tese. htm). Se levarmos em conta principalmente as crnicas de encantamento de Machado em relao imprensa, no esquecendo contudo de considerar os textos que revelam momentos de iluses perdidas, advindas de um jornalismo que comeava a ser calcado pelo pragmatismo e pelo sensacionalismo, perceberemos que, tambm de forma

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direta, o cronista confere ao jornalismo um papel poltico preponderante, como tribuna ampliada das diversas correntes de idias, de aes e de poder no Brasil oitocentista. Por pretender estudar os parmetros estabelecidos por Machado de Assis em busca do correto exerccio do jornalismo, busco, numa expresso literria ainda pouco estudada do autor a crnica , as pontuaes a respeito do papel social da imprensa, da relevncia da funo do jornalista e do folhetinista, alm de verificar um amadurecimento progressivo do cronista carioca em relao a sua noo de jornalismo, quando passa a desempenhar a funo de crtico da imprensa. Maria Nazar Lins Soares comenta como se deu esse processo de maturao da expresso machadiana a respeito do jornal: Essa linguagem [a da imprensa] ele conheceu nos seus efeitos ltimos, como qualquer leitor assduo de jornais, e ele foi um; mas sobretudo viu-a nascer, acompanhou as circunstncias de sua implantao nas redaes de jornais em que trabalhou. Compreende-se, portanto, que no lhe escaparia esse gnero de linguagem, que ademais da inautenticidade expressiva trazia consigo ou denunciava a inautenticidade moral: a imprensa, em vez de cumprir a tarefa de formar opinio, limitava-se prtica do embuste. Preocupado com problemas de expresso, o escritor descobre-lhes as implicaes ticas, diagnosticando uma efemeridade moral pelos sintomas que o estilo deixa entrever (SOARES, 1968: 40). Esse trabalho de resgate das crnicas machadianas necessrio, pois as anlises feitas por Machado de Assis mostram um pioneirismo na arte de radiografar a imprensa brasileira, apontando seus vcios e virtudes. As questes suscitadas podem muito bem fazer parte do debate contemporneo sobre o fazer jornalstico. As crnicas de Machado de Assis descrevem um perodo muito importante da histria do Brasil: a formao da imprensa, que marca o incio da modernidade, e o conseqente surgimento do observador crtico, responsvel por avaliar e fiscalizar a atuao do jornal no cenrio social. No escusado lembrar que, por mais de quarenta anos (1859-1900), Machado exerceu regularmente a funo de cronista nos mais diversos peridicos fluminenses. O seu trabalho como jornalista/cronista na imprensa brasileira realizou o seguinte percurso:

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Peridico: Perodo:

O Espelho 11/09/1859 a 23/10/1859 Aquarelas (11/09/1859 a 30/10/1859) Os imortais (18/09/1859 a 25/09/1859) A reforma pelo jornal (23/10/1859)

Seo:

Assinatura/Pseudnimo

Sem assinatura

Peridico: Perodo:

Dirio do Rio de Janeiro 1/11/1861 a 05/05/1862; 12/06/1864 a 16/05/1865; 05/03/1867 a 12/03/1867. Comentrios da semana (1/11/1861 a 05/05/1862) Ao acaso (crnicas da semana) (12/06/1864 a 16/05/1865) Cartas Fluminenses (05/03/1867 a 12/03/1867) Gil (1/11/1861 a 1/12/1861) M.A. (16/12/1861 a 24/12/1861; 1/04/1862 a 05/05/1862) Job (05/03/1867 a 12/03/1867)

Seo:

Assinatura/Pseudnimo:

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Peridico: Perodo:

Semana Ilustrada 08/12/1861 a 26/06/1864; 22/10/1871 a 02/02/1873. Crnicas do Dr. Semana (08/12/1861 a 26/06/1864) Badaladas (22/10/1871 a 02/02/1873) Dr. Semana (08/12/1861 a 26/06/1864; 22/10/1871 a 02/02/1873) Dr. Semanopatha (15/03/1863)

Seo:

Assinatura/Pseudnimo:

Peridico: Perodo: Seo: Assinatura/Pseudnimo

O Futuro 15/09/1862 a 1/07/1863 Crnicas (15/09/1862 a 1/07/1863) Sem assinatura

Peridico: Perodo:

Ilustrao Brasileira 1/07/1876 a 04/1878 Histria dos quinze dias (1/07/1876 a 1/01/1878) Histria dos trinta dias (02/1878 a 04/1878) Manasss (1/07/1876 a 04/1878)

Seo: Assinatura/Pseudnimo:

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Peridico: Perodo: Seo: Assinatura/Pseudnimo:

O Cruzeiro 02/06/1878 a 1/09/1878 Notas Semanais (02/06/1878 a 1/09/1878) Eleazar (02/06/1878 a 1/09/1878)

Peridico:

Gazeta de Notcias 02/07/1883 a 06/11/1885; 12/09/1886 a 24/10/1886; 1/11/1886 a 24/02/1888; 05/04/1888 a 29/08/1889; 24/04/1892 a 28/02/1897; 04/11/1900 a 11/11/1900. Balas de Estalo (02/07/1883 a 06/11/1885) Gazeta de Hollanda (1/11/1886 a 24/02/1888) A+B (12/09/1886 a 24/10/1886) Bons Dias! (05/04/1888 a 29/08/1889) A Semana (24/04/1892 a 28/02/1897; 04/11/1900 a 11/11/1900) Lelio (02/07/1883 a 06/11/1885) Malvlio (1/11/1886 a 24/02/1888) Joo das Regras (12/09/1886 a 24/10/1886) Boas Noites (05/04/1888 a 29/08/1889) (annimo) (24/04/1892 a 11/11/1900)

Perodo:

Seo:

Assinatura/Pseudnimo:

Os nomes das colunas nas quais eram publicadas as crnicas e o uso de pseudnimos so peas fundamentais para compreender o jornalismo de Machado de Assis. Destaco algumas sees que j carregavam nos seus ttulos o perfil editorial do cronista. Em Aquarelas, por exemplo, Machado usa o disfarce do artista, que utiliza cada cor segundo a tonalidade que pede o assunto tratado. Comentrios da semana prope uma crnica que, mesmo diante de uma economia verbal e de uma necessidade de se ajustar a um espao restrito no jornal, possa dentro da sua ligeireza e versatilidade oferecer uma interpretao crtica aos fatos reportados. Por meio de Ao acaso (crnicas

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da semana), o jornalista vai avanar na anlise de acontecimentos de causa ignorada, ao mesmo tempo que persegue, a esmo, as pobres ocorrncias do nada, as midezas que no ocupam as grandes atenes. Cartas Fluminenses pode ser lida como uma pardia das Cartas Chilenas, de Toms Antnio Gonzaga (1744-1810), obra-chave do arcadismo, marcada pela stira e pelos ataques ao despotismo de Lus da Cunha Meneses, governador de Minas Gerais entre 1783 e 1788. Nestas crnicas, Machado de Assis alimentava-se de uma crtica picante de erros de polticos e da poltica brasileira, oferecendo textos que mais se assemelhavam a cartas abertas dirigidas populao. A seo Crnicas do Dr. Semana expe o articulista capaz de fazer um diagnstico da semana, por meio de um exame clnico dos acontecimentos. Badaladas remonta expresso dar ao badalo, o que significa tagarelar. Alm disso, o ttulo faz aluso ao som do badalo, que pode sugerir que Machado de Assis procurava fazer barulho em suas crnicas, como forma de chamar a ateno dos leitores para os destaques da semana. Histria dos quinze dias revela o cronista como aquele que precisa selecionar os assuntos que vo entrar para a Histria. Notas semanais o momento em que Machado atua como colunista, produzindo pequenas histrias ou compartimentos mesclados de informao e opinio em uma mesma crnica. Em referncia quelas bombinhas que fazem alguns rudos quando atiradas ao cho, Balas de estalo atende ao mesmo princpio semntico de Badaladas, como resultado de crnicas que produzem som ao se chocar com as estruturas rgidas do poder. A+B revela um jornalista responsvel por somar cada elemento ou cada assunto a fim de associar notcias que se encontram dispersas, em estado bruto. Bons Dias! o cumprimento que o cronista faz questo de dar ao leitor antes de comear a empreitada jornalstica, que serve tambm para estreitar os vnculos com os leitores no transcorrer da conversa textual. A Semana apela para a noo de que, no espao de sete dias, Machado precisa transmitir ao leitor o retrato daquele perodo. Segundo Raimundo Magalhes Jnior (1956) e Eduardo de Assis Duarte (2005), a utilizao de pseudnimos por Machado de Assis poderia ser explicada de diversas formas, dentre as quais a utilizao de um procedimento da fico em que o autor se esconde atrs de uma persona, o disfarce de autoria como proteo do anonimato perante a censura, o gesto de legtima defesa em favor da liberdade da

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expresso e, por fim, a comprovao da natureza autoritria do Imprio e da classe senhorial, obrigando a maioria dos jornalistas a apelarem para essa estratgia. Tendo em vista o clima de opresso que marcou o tempo do Imprio, Machado de Assis assim como outros jornalistas utilizavam o pseudnimo em defesa da sua integridade fsica e moral. Como funcionrio pblico, caso expusesse sua identidade, nosso escritor teria grande chance de perder o emprego. O pseudnimo permitiu que Machado disfaradamente pudesse efetuar suas crticas ao poder, sem colocar em risco o seu sustento. Tal atitude teve como parmetro uma srie de episdios em que os opositores do regime oficial foram vitimados pela censura. Magalhes Jnior conta um episdio que ilustra muito bem esses atentados liberdade de imprensa, ocorridos no Imprio: Tavares Bastos, um dos grandes talentos do seu tempo, parlamentar ilustre com a viso de autntico estadista, fra despojado de seu emprego na Secretaria da Marinha, como castigo pelas crticas que fizera ao almirante Joaquim Incio de Barros, mais tarde Visconde de Inhama, quando era este Ministro da Marinha. Embora amigo pessoal do Imperador, que o recebia em So Cristvo na intimidade, para com ele discutir em longos seres as tradues das Fbulas de La Fontaine, o Baro de Paranapiacaba fra demitido, em 1886, pelo Baro de Cotegipe, ento presidente do Conselho, de seu alto cargo no Ministrio da Fazenda, o de diretor do Contencioso, por ter se manifestado publicamente favorvel abolio da escravatura. E s depois de alcanado esse objetivo, pela lei de 13 de maio de 1888, veio ele a ser readmitido, por interferncia direta do Imperador junto a Joo Alfredo (1956: 6). Alm do objetivo poltico, cada pseudnimo revela um tipo de assinatura que vai motivar um certo estilo, dependendo das intenes de Machado quanto sua filosofia editorial. As iniciais M.A., por exemplo, podem significar no primeiro momento o prprio nome do nosso escritor. Acontece que, na crnica de 11 de setembro de 1864, escrita para o Dirio do Rio de Janeiro, o cronista explica que as iniciais significam muito abelhudo ou muito amvel. Alis, tais atitudes vo marcar Machado de Assis no conjunto de suas anlises, incluindo a as situaes em que ele delicado com a imprensa e tambm atrevido ao expor as mazelas daquele veculo de comunicao. Outro ponto importante a ser destacado a intertextualidade existente entre as crnicas de Machado de Assis e as de Jos de Alencar. O fato de Machado destacar

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Alencar como chefe de nossa literatura, em Balas de estalo de 16/12/1883, revela a reverncia e a influncia deste nas manifestaes literrias daquele. As conversas com Alencar na livraria de Baptiste Louis Garnier foram determinantes para que Machado lapidasse a sua expresso como escritor, incluindo a sua atuao marcante como cronista. O autor de Memrias Pstumas de Brs Cubas retrata esses dilogos como memorveis: sentados os dois, em frente rua, quantas vezes tratamos daqueles negcios de arte e poesia, de estilo e imaginao, que valem todas as canseiras deste mundo (apud VIANNA FILHO, 1981: 136). A morte de Alencar, em 12 de dezembro de 1877, abalou Machado no s por ter perdido um amigo, mas tambm, por perder uma referncia que fora crucial em seus primeiros passos como escritor e jornalista: Jamais me esqueceu a impresso que recebi quando dei com o cadver de Alencar no alto da essa, prestes a ser transferido para o cemitrio. O homem estava ligado aos anos das minhas estrias. Tinha-lhe afecto, conhecia-o desde o tempo em que ele ria, no me podia acostumar idia de que a trivialidade da morte houvesse desfeito esse artista fadado para distribuir a vida (apud VIANNA FILHO, 1981: 337) (grifo meu). Enquanto jovem, Machado de Assis vai ser contemporneo de um Alencar com carreira jornalstica j consolidada, e aclamado pela opinio pblica como o grande cronista do Rio de Janeiro de seu tempo. Como parmetro estilstico, h momentos em que Machado vai parodiar certos lugares textuais j visitados anteriormente por Alencar. Entretanto, isso no representa uma limitao temtica e de expressividade, em que Machado se comporta como refm, reproduzindo meramente, sem subverter, a dinmica do ofcio do cronista, construda pelo autor de O Guarani. Tanto que, com o transcorrer da experincia machadiana no jornalismo, ele consegue desenvolver uma identidade prpria nos seus escritos, apresentando um mrito singular diante dos leitores e no se acomodando, portanto, na sombra deixada por Jos de Alencar. A fim de estabelecer o corpus para o desenvolvimento dessa dissertao, foi feita uma seleo das crnicas de Machado de Assis conforme a constatao de dois momentos que englobam a postura do cronista em relao ao jornalismo: a fase de encantamento em relao imprensa e o perodo em que Machado atua como crtico da imprensa.

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Inicialmente, foi realizada uma leitura completa das suas crnicas para detectar as que se referiam ao jornal, e imprensa como um todo. Foram selecionadas quarenta e duas crnicas para formar o corpus de anlise da dissertao. So elas, listadas por ordem cronolgica, respeitando a seqncia de ttulo da coluna/nome da crnica4 (publicao, cidade, data): O jornal e o livro (Correio Mercantil, RJ, 10 e 12/01/1859), A reforma pelo jornal (O Espelho, RJ, 23/10/1859), Aquarelas/O folhetinista (O Espelho, RJ, 30/10/1859), Comentrios da semana (Dirio do Rio de Janeiro, RJ, 29/12/1861), Ao acaso (Dirio do Rio de Janeiro, RJ, 11/09/1864), Histria de quinze dias/Analfabetismo (Ilustrao Brasileira, RJ, 15/08/1876), Histria de quinze dias/O boi (Ilustrao Brasileira, RJ, 15/08/1876), Histria de quinze dias/Touradas (Ilustrao Brasileira, RJ, 15/03/1877), Histria de quinze dias/ O nascimento da crnica (Ilustrao Brasileira, RJ, 1/11/1877); Notas Semanais (O Cruzeiro, RJ, 16/06/1878); Notas Semanais (O Cruzeiro, RJ, 14/07/1878); Notas Semanais (O Cruzeiro, RJ, 21/07/1878); Notas Semanais/O ofcio do cronista (O Cruzeiro, RJ, 14/08/1878); Notas Semanais/O vulgo e o intelecto (O Cruzeiro, RJ, 1/09/1878), Balas de estalo (Gazeta de Notcias, RJ, 24/11/1883), Balas de estalo (Gazeta de Notcias, RJ, 16/12/1883), Balas de estalo (Gazeta de Notcias, RJ, 17/02/1885), Balas de estalo (Gazeta de Notcias, RJ, 14/03/1885), Balas de estalo (Gazeta de Notcias, RJ, 03/04/1885), Gazeta de Holanda (Gazeta de Notcias, RJ, 27/09/1887), Bons Dias!/O cronista se apresenta (Gazeta de Notcias, RJ, 03/04/1885), Bons Dias! (Gazeta de Notcias, RJ, 11/05/1888), Bons Dias! (Gazeta de Notcias, RJ, 26/06/1888), Bons Dias! (Gazeta de Notcias, RJ, 1/07/1888), Bons Dias! (Gazeta de Notcias, RJ, 29/07/1888), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 30/04/1892), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 14/05/1893), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 06/08/1893), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 10/09/1893), A Semana/Pergunta e resposta (Gazeta de Notcias, RJ, 05/11/1893), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 26/11/1893), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 1/01/1894) A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 1/07/1894), A Semana/Cano dos piratas (Gazeta de Notcias, RJ, 22/07/1894), A Semana/ O punhal de Martinha (Gazeta de Notcias, RJ,4

Escolhidos sob o critrio de indicao temtica (PAIXO, 1994: 10), os ttulos que acompanham essas crnicas foram indicados pela Folha de So Paulo, responsvel por uma coletnea de crnicas de Machado de Assis. Exceo a essa regra, so os ttulos O folhetinista, O jornal e o livro, A reforma pelo jornal, Cano de piratas e O punhal de Martinha.

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05/08/1894), A Semana/ O cronista e a semana (Gazeta de Notcias, RJ, 16/09/1894), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 11/11/1894), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 13/09/1896), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 06/12/1896), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 31/01/1897), A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 14/02/1897) e A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 28/02/1897). As crnicas foram ento organizadas em dois grupos. O primeiro, constitudo por O folhetinista, O jornal e o livro e A reforma pelo jornal, que ilustram a fase de encantamento do jornalista em relao imprensa. O segundo, formado pelas crnicas destacadas das colunas Histria de quinze dias, Notas Semanais, Balas de estalo, Gazeta de Holanda, Bons Dias! e A Semana, que revelam a atuao de Machado na funo de crtico da imprensa, quando o jornalismo praticado se enveredava pelos caminhos tortuosos do sensacionalismo e da manuteno do status quo. Constatei que a crtica tradicional da obra machadiana, em sua grande maioria, no se ocupa em estudar as crnicas de Machado de Assis, sob o vis de destac-lo como crtico da imprensa. Parece-me que a idia de crnica como gnero menor contribui para que esta seja ignorada ou minimamente analisada pelos crticos. Entretanto, Antonio Candido (1992) lembra que o escritor colaborou com o amadurecimento da crnica no pas, abrasileirando esta expresso hbrida entre o jornalismo e a literatura. Davi Arrigucci Jr. (1985) considera que Machado de Assis, ao praticar o folhetim, mostra-se escriba de coisas midas, e comenta: Machado se afina pelo tom menor que ser, da para frente, o da crnica brasileira, voltada para as miudezas do cotidiano, onde acha a graa espontnea do povo, as fraturas expostas da vida social, a finura dos perfis psicolgicos, o quadro dos costumes, o ridculo de cada dia e at a poesia mais alta que ela chega alcanar (...) (ARRIGUCCI JR, 1985: 48). Diferentemente de Candido e Arrigucci Jr., que oferecem uma crtica panormica sobre a crnica machadiana, John Gledson (1986) realizou uma densa leitura alegrica das crnicas de Machado que tratam da questo da Abolio, refutando a velha opinio de que o nosso escritor teria ficado alheio s questes polticas e sociais do seu tempo. Foi uma tentativa louvvel de mostrar que a crnica no deve ser descartada da anlise da obra machadiana. Por sua vez, Roberto Schwarz (2000b), um profundo

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conhecedor da obra machadiana, comenta, sem se aprofundar, que o cronista se desilude com os ventos liberais e com os ideais do progresso e da igualdade difundidos pela imprensa, visto que esta aparece no Brasil do sculo XIX como um dado essencialmente poltico. Em parte, a observao de Schwarz faz sentido, pois, Machado de Assis realmente migra do otimismo (na primeira fase em que se ocupa em contar os louros da imprensa) para a temperana (quando passa a criticar severamente o mau jornalismo). Porm, preciso deixar claro que, ao criticar o jornal, Machado de Assis no deixa de acreditar numa imprensa mais justa em sua misso de informar e formar comportamentos. A potencialidade da imprensa faz com que o cronista no a deixe ficar conformada ou habituada em adotar linhas editoriais ou juzos de valor que prejudiquem a qualidade da informao veiculada. O cronista reconhece que a imprensa pode fazer muito mais pelo bem-estar da sociedade. Em meio vasta fortuna crtica do autor, selecionei algumas publicaes que considerei mais pertinentes ao meu estudo. Dentre as obras consultadas, destaco algumas, que passo a comentar rapidamente. A primeira Crnica: arte do til e do ftil?, de Wellington Pereira (1994), que, ao analisar as crnicas publicadas em A Semana (1892-1897), percebe que h no jornalismo de Machado algo destoante para sua poca, considerando o modelo jornalstico em que estava inserido. O ensasta sustenta a idia de que o cronista se distancia das caractersticas do jornalismo do sculo XIX em dois nveis: a) Machado pratica uma certa arqueologia cultural, aproximando elementos da cultura superior, especificamente, os modelos da tragdia, enquanto gnero literrio, dos fatos cotidianos, atravs de uma releitura das notcias, e dos fatos diversos; b) a informao assume novos valores nos escritos machadianos na imprensa diria. Machado de Assis no tem a preocupao de localizar a informao, mas de torn-la mais transparente possvel (PEREIRA, 1994: 61). Pereira ainda observa que Machado promove um desmonte da linguagem dos jornais da sua poca, e amplia o universo de informaes jornalsticas, no tomando como base os enunciados ideologicamente determinados. Ele comenta que, nas crnicas do escritor, h uma preocupao esttica, uma possibilidade de testar as variantes da informao que chega ao leitor (PEREIRA, 1994: 61). Tambm revela que o cronista vai desconstruir o altar que separa jornalista (quem sabe) do leitor (quem escuta), ao

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promover uma relao afetiva e franca entre eles. Em meio ao relato noticioso, o cronista conversa com o leitor tratando-o como amigo ou como obtuso, dependendo do seu conhecimento sobre o assunto que est em pauta. Em pleno sculo XIX, Machado de Assis j estava preocupado em facilitar o entendimento de suas crnicas pelo leitor e em aproximar-se deste, ao estabelecer um pacto entre autor e leitor. Outra ensasta consultada foi Jeana Laura da Cunha Santos (2001), que faz uma aproximao entre Machado de Assis cronista e o filsofo e radialista Walter Benjamin. Segundo ela, ambos buscavam no atrs do tempo aquilo que podia engrossar a compreenso do instante para empurr-lo para a frente, sempre para a frente da histria, na busca de um futuro redimido. Tal onda deveria acordar a humanidade de seu sono coletivo capitalista, sacudi-la e emancipla de vez da histria oficial e do tempo cronolgico dos relgios oficiais (SANTOS, 2001: 90). De acordo com a pesquisadora, diante da velocidade proporcionada pelas inovaes tecnolgicas e pelo progresso, as crnicas de Machado de Assis, assim como os ensaios de Walter Benjamin, estavam cata de imagens alegricas que pudessem ser fotografadas por eles, com o objetivo de fazer a humanidade refletir e pensar duas vezes antes de empenhar os ensinamentos da experincia em troca da moeda mida do atual. Ressalto ainda os trabalhos de Marlia Rothier Cardoso (1990) e de Lcia Granja (2000), que estudam diretamente a atuao de Machado de Assis como jornalista. Considero a tese A Gazeta de bruxo, de Marlia Rothier Cardoso, como um dos trabalhos mais elaborados a respeito de Machado de Assis jornalista. A tese foi decisiva para me auxiliar na constatao de que Machado, no primeiro passo, confiou no potencial transformador do progresso no qual a imprensa funcionaria como fora civilizatria, e, depois, passou a compor um discurso de questionamento de todos os ideais novos e de relativizaes de todas as expectativas. Neste momento, o jornalista chama a ateno dos pecados cometidos pela imprensa do seu tempo. Por sua vez, ao estudar as crnicas iniciais de Machado de Assis, no jornalismo de engajamento liberal que exerceu no Dirio do Rio de Janeiro, Granja considera que o cronista antecipa procedimentos que utilizar mais tarde, na sua escrita de romancista consagrado, tais como o narrador no confivel. De acordo com a autora, graas abertura do gnero, a crnica estimulou o

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exerccio da flexibilidade e da inveno: o narrador irnico machadiano origina-se no comentrio da crnica. Tal posicionamento ratificado em um outro estudo de Jeana Laura da Cunha Santos, no qual ela mostra que Memrias Pstumas de Brs Cubas um amontoado de crnicas e sub-enredos, constatando que o convvio de Machado com a atividade jornalstica contribuiu para o salto estrutural e crtico que foi Memrias (1999: 114). Como vimos, portanto, no se pode restringir o campo de atuao da crnica machadiana a um mero laboratrio ficcional para o desenvolvimento do romance. preciso desmontar a velha idia de que o romance machadiano a obra-prima ou o produto final resultante dos sucessivos ensaios ou rascunhos que seriam as crnicas. Valentim Facioli (1982) suspeita que, antes mesmo da publicao de Memrias pstumas de Brs Cubas, obra divisora de guas da literatura brasileira, Machado de Assis, por volta de 1874, j adotava o estilo jornalstico dentro do romance. Roberto Schwarz, em Um mestre na periferia do capitalismo, informa que existem fortes indcios de que o carter pouco srio da crnica, com intuito de recreio (2000a: 231), possa ter servido de suporte formal para o desenvolvimento da ironia com que Machado retrataria, em Memrias Pstumas de Brs Cubas , a elite burguesa do perodo, e seu af pela importao de novidades. J Ubiratan Machado afirma categoricamente que a prtica jornalstica diria exerceu uma influncia sensvel sobre a atividade de Machado como escritor. Obrigou-o a escrever com simplicidade e graa, a evitar os colarinhos do estilo grave (1998:21). Outro ponto de apoio ao estudo das crnicas de Machado de Assis foi a pesquisa de Mrcio Ccero Cavallini (1999) que, a exemplo de Lcia Granja, dedicou-se ao estudo da militncia liberal de Machado no Dirio. Porm, ele se ateve ao ponto-devista histrico-poltico deste momento, diferentemente da pesquisadora, que abordou o tema mais centrado nas questes literrias. Cavallini analisa como no caso dos liberais do Dirio o conceito de povo assume um valor revolucionrio. depositado nele todo o anseio da liberdade e da democracia. Por isso, os prprios liberais, com os quais simpatizava Machado de Assis, deveriam se colocar ao lado do povo, como seus representantes polticos, em oposio ao despotismo conservador.

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Jlio Csar Frana Pereira (2001) tambm traz importante contribuio ao estudo do jornalismo machadiano. O pesquisador destaca a atuao do cronista no Gazeta de Notcias, ltimo jornal em que trabalhou. Fundamentado na teoria do narrador de Walter Benjamin, ele posiciona Machado como cronista tico por excelncia, por ter exercitado uma escrita de resistncia ao declnio das experincias intercambiveis e ao fim da arte de narrar, desempenhando o papel de conselheiro e de transmissor de um saber alheio aos discursos hegemnicos da poca. Nesse momento, j no se avista o jovem Machado que via no jornal uma tribuna privilegiada para a reforma do gosto do pblico. A discusso econmica que dominava as pginas dos jornais, fundada em aspectos tcnicos insondveis para os no especialistas, mascarava os reais problemas e despolitizava o debate de idias. Enfadado pelo destino que as coisas tomavam, o escritor confessa nada entender de finanas, como j havia dito anteriormente sobre a poltica. Machado passa a admitir que seu conhecimento tornava-se infecundo, e ele no podia mais exercer o papel do crtico de uma sociedade regida por uma lgica e por uma moral alheias sua atitude tica diante do mundo. Sem ignorar as causas pelas quais o autor pra de escrever regularmente para jornais em 1897, tais como, problemas de sade, ceticismo, sensao de dever cumprido, tdio controvrsia e incompatibilidade com o governo republicano, o pesquisador apresenta uma hiptese ousada para tal postura: o abandono da produo cronstica pode ter sido um desvio deliberado em direo narrativa ficcional. O escritor teria avistado, no romance, condies de ao tica e de experimentao esttica que a crnica no mais propiciava (PEREIRA, 2001:6). No poderia deixar de destacar ainda o estudo sobre a Gazeta de Notcias, realizado por Marialva Barbosa (2000), que tambm analisou a atuao de outros jornais matutinos existentes no Rio de Janeiro, entre 1880 e 1920. Ela aponta que a Gazeta de Notcias tinha como diferenciais de mercado o estilo popular, o valor literrio respaldado no elenco de consagrados escritores e a inaugurao do sistema de venda de exemplares avulsos, por meio de jornaleiros, que gritavam o nome do jornal por todos os cantos da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a pesquisadora, popularizar significava valorizar o grotesco, o violento, as matrias policiais. Essa valorizao, muitas vezes levada ao extremo, faz com que os fatos policiais, as tragdias do cotidiano, as

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catstrofes sejam, de fato, o assunto principal (BARBOSA, 2000: 14). Conforme verificaremos mais adiante, Machado de Assis dedicou uma srie de crnicas da Gazeta para criticar o sensacionalismo praticado pela imprensa em nome dessa suposta popularizao. Infelizmente, tal atitude tica no sequer mencionada no livro de Barbosa, constituindo uma grave lacuna ao estudo. No captulo dedicado ao perfil dos principais jornalistas daquela poca, Machado de Assis no se encontra na lista da historiadora, mesmo sendo um cronista de destaque e scio da Gazeta. Em todo o livro, resta apenas o seguinte registro: nesse jornal Machado de Assis escreve os seus Bons Dias e Boas Noites, desde 1882 (BARBOSA, 2000: 43). Busquei o arcabouo terico oferecido por Alberto Dines (1982) para balizar a hiptese de que Machado de Assis pode ser considerado um dos pioneiros no exerccio da observao crtica da imprensa, exercendo a funo de crtico do jornal. Os trabalhos de Ciro Marcondes Filho (1989 e 2000) relativos, respectivamente, periodizao das etapas histricas do desenvolvimento da imprensa no Brasil e analise do discurso da imprensa sensacionalista, serviram como parmetro para contextualizar as linhas editoriais contemporneas ao jornalismo exercido por Machado de Assis, alm de me auxiliar no destaque do cronista como patrulheiro da tica jornalstica. Esta dissertao dispe de dois captulos em seu desenvolvimento: I) A reforma pelo jornal e II) A reforma no jornal. No primeiro, destaco a fase em que o jornalismo recebe as palmas de Machado de Assis, que acredita na imprensa como um veculo democrtico e moderno, capaz de promover mudanas significativas e positivas na vida do cidado comum. No segundo, apresento um Machado de Assis mais tarimbado em relao ao jornalismo, que desenvolve crnicas capazes de relatar uma imprensa distante dos pressupostos da repblica do pensamento. O sensacionalismo o principal alvo de sua crtica aos jornais que adotam esse modelo editorial. Outros deslizes cometidos pela imprensa, tais como a generalizao apressada, a soberba, a inveno de notcias, a falta de estilo ao contar histrias, a excluso de leitores devido ao analfabetismo, a falcia da opinio pblica, o erotismo de publicidade, um certo gosto em endossar a opinio dominante no passaram despercebidos pela pena do cronista. Para aqueles ou aquelas que tm curiosidade em conhecer as crnicas de Machado de Assis, cabe alertar que a Obras completas de Machado de Assis, da editora

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W.M. Jackson Inc. (1938) e (1955), rene um maior nmero de crnicas que a Obra completa organizada por Afrnio Coutinho, e publicada pela editora Nova Aguilar (1997). Para complementar a tarefa de resgate dos textos jornalsticos de Machado, vale consultar tambm as antologias, como o caso de Machado de Assis: crnicas escolhidas, organizada por Fernando Paixo pela Editora tica (1994). Como os textos machadianos selecionados para compor esta dissertao encontram-se distribudos de forma esparsa, eles foram reunidos em um anexo que acompanha este trabalho. Antes de analisar as crnicas de Machado de Assis a respeito do jornal, do jornalista e da imprensa em geral, e de verificar as fases de sua trajetria de cronista, considero necessrio resgatar as noes machadianas do gnero crnica como meio de expresso, alm de destacar os diversos tipos de leitor flagrados pela lente enigmtica do nosso autor. As observaes do romancista a respeito do jornalismo ganham um colorido todo especial por serem feitas a partir de uma reflexo sobre as caractersticas do gnero crnica e da necessidade de aproximar o jornalista do pblico leitor. Para que Machado de Assis alcanasse o nvel de transcendncia em matria de crtica imprensa, foi preciso que ele tomasse conta tambm dos conceitos que cercavam o seu ofcio de cronista, culminando em um exerccio de apurada metalinguagem.

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I Captulo

A reforma pelo jornal

O jornal a verdadeira forma da repblica do pensamento. a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, a literatura comum, universal, altamente democrtica, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idias e o fogo das convices.Machado de Assis, em O jornal e o livro, de 10 e 12/01/1859.

Vivemos seis dias a espreitar os sucessos da rua, a ouvir e palpar o sentimento da cidade, para os denunciar, aplaudir ou patear, conforme o nosso humor ou a nossa opinio, e quando nos sentarmos a escrever estas folhas volantes, no o fazemos sem a certeza (ou a esperana!) de que h muitos olhos em cima de ns. Cumpre ter idias, em primeiro lugar; em segundo lugar exp-las com acerto; vesti-las, orden-las, e apresent-las expectao pblica. A observao h de ser exata, a faccia pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe, uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral domstica e solturas da Rua do Ouvidor...Machado de Assis, em O ofcio do cronista, de 14/08/1878.

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A modernizao e a crnica no BrasilAntes de analisar propriamente as crnicas machadianas, vejamos um pouco da histria deste gnero. Comecemos retratando um pouco a histria do jornalismo e as mudanas nele operadas na segunda metade do sculo XIX, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e, que, inevitavelmente, chegariam a passos curtos aqui no Brasil. Segundo Eleazar Diaz Rangel, em A notcia na Amrica Latina: mudanas de forma e contedo (1981), em seu princpio, o jornalismo era um instrumento nas lutas sociais e polticas, identificado com os partidos, difusor de opinio, escrito em estilo literrio que apenas reservava espaos para a informao. Na segunda metade do sculo XIX, o surgimento de vrios inventos e inovaes tecnolgicas (o telgrafo em 1840, a rotativa em 1864, o cabo submarino em 1850, a expanso das linhas frreas de 1828-1850, o linotipo em 1886, o aperfeioamento da fotografia em 1897), o crescimento da populao urbana, a diminuio do analfabetismo e o desenvolvimento do correio aumentaram sensivelmente a circulao dos jornais. Essas mudanas refletiram-se no contedo: se nos sculos XVIII e comeo do sculo XIX a opinio tinha espao garantido, ela comearia a perder terreno e a ser desvinculada da informao. A separao entre informao e opinio veio a se consolidar no sculo XX e, desde ento, os fatos passam a ser considerados sagrados e a opinio entendida como livre, cabendo ao leitor tirar as prprias concluses a respeito da notcia dada. Estes princpios so a base da doutrina da objetividade que marcou o fim de uma poca na qual a notcia sempre se encontrava salpicada de comentrios do autor. Neste sentido, a linguagem literria e a informao comentada cedem espao para a estrutura conhecida como pirmide invertida, onde os fatos mais importantes so concentrados no primeiro pargrafo do texto jornalstico. Mas, se esta era uma tendncia dos novos tempos modernos, demorou um pouco para que tal estrutura fosse plenamente adotada pelos jornais brasileiros. Assim, escritores como Machado de Assis, Jos de Alencar, Raul Pompia, Jos Verssimo, entre outros, continuaram fazendo seu jornalismo com um vis predominantemente literrio, no perodo de transio entre o Segundo Imprio e o comeo da Repblica. Esta tendncia jornalstica era profundamente marcada pela crnica, gnero um pouco difuso

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como podemos constatar seguindo a leitura do artigo de Marlyse Meyer a respeito do folhetim. Segundo a autora, imitando o que j acontecia em Paris, sob a rubrica variedades, publicava-se, nas folhas nacionais, matrias traduzidas, resenhas, folhetins literrios (o romance-folhetim), crnicas, etc. Neste sentido, tanto o conceito de crnica quanto o que ela designa por folhetim impreciso aqui no Brasil. Conforme Meyer, a crnica se abrigaria sob a denominao folhetim: so movedias (...) as fronteiras entre os numerosos escritos abrigados no hospitaleiro folhetim (1992: 127). Depois de traar todo o percurso do folhetim, Meyer fala dos outros textos: Ces vadios, livres farejadores do cotidiano, batizados com outro nome vale-tudo: a crnica. Ces sem dono, tambm, que so na maior parte annimos ou assinados com iniciais. Envergonhados, quem sabe, de um escrito que no se enquadra propriamente num gnero, que quase uma fala, coisa de casa, useira e vezeira, literatura de p-de-chinelo. O que no pejorativo (...) (1992:128). Como a prpria etimologia revela, a crnica (do grego choruns) faz parte da histria do tempo vivido. uma escrita do tempo e sobre o tempo, ou seja, alm de incorporar o tempo em sua forma estrutural, ela tambm discorre sobre o tempo, misturando fico e histria. Segundo Margarida de Souza Neves, se em sua acepo original, aquela da linhagem dos cronistas coloniais, ela [a crnica]pretende-se registro ou narrao dos fatos e suas circunstncias em sua ordenao cronolgica, tal como estes pretensamente ocorreram de fato, na virada do sculo XIX para o sculo XX, sem perder seu carter de narrativa e registro, incorpora uma qualidade moderna: a do lugar reconhecido subjetividade do narrador (1992: 82). Gnero literrio difundido no Rio de Janeiro na virada do sculo, a crnica, alm de uma narrativa do cotidiano, apresenta-se como relato de um tempo social. Ela retrata em flashes todo o processo de modernizao do perodo e ela prpria propaga-se atravs de um veculo bem ao estilo do tempo: o jornal. A crnica se espelha no modelo parisiense e se difunde sobretudo no Rio de Janeiro, sntese e microcosmo do Brasil (NEVES, 1992: 84). Margarida de Souza Neves destaca a convergncia entre todos os cronistas da poca ao retratar o tempo como transformao em direo ao novo. O

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bond, por exemplo, seria utilizado como uma alegoria do progresso. Fotos, enfim, de um tempo de mudana, a que Machado, sem dvida, foi um dos melhores retratistas.

A crnica: tudo comeou numa conversa de vizinhasAs crnicas de 1/11/1877, 14/08/1878, 05/04/1888 e 16/09/1894 so marcados pelo exerccio da metalinguagem. Nesse sentido, Machado de Assis aproveitou aquelas oportunidades para especular a respeito da origem do gnero assim como para caracterizar as estratgias utilizadas na apurada observao e julgamento dos fatos da semana. Buscou tambm compartilhar com o leitor o seu estilo de fazer crnica, apresentando certas particularidades no trato com o pblico, deixando explcitas suas preferncias temticas, pois nem tudo o que era destaque no noticirio era de seu agrado. Apurei da leitura dessas crnicas que, antes de Machado de Assis se enveredar para o fogo cruzado das discusses sobre o papel da imprensa, foi necessrio a ele conhecer o funcionamento do gnero que marcou a expresso jornalstica do sculo XIX: a crnica. Explicando esses meandros, o autor de Dom Casmurro pretendia mostrar ao leitor os princpios norteadores do ofcio dos cronistas, esses beneditinos da histria mnima e cavouqueiros da expresso oportuna, segundo os retrata Machado em O ofcio do cronista (1994: 31). No texto de 1/11/1877, Machado de Assis conta um episdio que pode ser a princpio trivial e comezinho, mas em busca do pitoresco ou do irrisrio no cotidiano de cada um (SABINO, 1965: 174), ele, como bom cronista que , acabava ciscando questes filosficas: em primeira instncia, discute a noo de felicidade, e, como conseqncia, a idia de que tudo relativo. Eis o enredo do texto em questo: o cronista vai a um enterro. L fazia um calor dos diabos, o que lhe rendeu uma insatisfao generalizada com o tempo. Acontece que o cronista e os demais estavam usando chapus, o que pelo menos atenuava os efeitos do sol. Em situao pior, revela o cronista, estavam os coveiros, que tinham a cabea descoberta e estavam suados por causa do sol e do trabalho exaustivo com a enxada. Terminado o enterro, o cronista e os outros voltariam para as suas casas ou reparties, enquanto os coveiros continuariam envolvidos naquela rotina e sofreriam ainda mais com o calor. A histria serviu para

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exemplificar a

filosofia que Machado de Assis quis sustentar: a verdade mais

incontestvel que achei debaixo do sol, que ningum se deve queixar, porque cada pessoa sempre mais feliz do que outra (1994: 14). O texto em questo pode muito bem servir de exemplo de crnica metafsica, segundo antiga classificao de Afrnio Coutinho, que situa Machado de Assis junto com Carlos Drummond de Andrade nesse estilo, porque eles encontrariam sempre ocasio e pretexto nos fatos para dissertar ou discretear filosoficamente (COUTINHO, 1971: 121). necessrio salientar que, antes de o jornalista narrar o episdio mencionado, ele inicia a crnica com uma divagao sobre o surgimento do gnero. Esse o primeiro assunto que Machado vai tratar em O nascimento da crnica. Como salienta Massaud Moiss, o cronista busca desentranhar do acontecimento sua poro imanente de fantasia (1985: 247). Ele parte da sua ndole contemplativo-devaneante (DRUMMOND apud S, 1987: 16) para construir uma verso subjetiva a respeito das razes da crnica. Machado parte do princpio de que a crnica comea despretensiosa, como quem no quer nada, para depois abocanhar o mundo, atravs de palpites sobre todo e qualquer assunto: H um meio certo de comear a crnica por uma trivialidade. dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do leno, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenmenos atmosfricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrpolis, e la glace est rompue; est comeada a crnica (MACHADO DE ASSIS, 1994: 13) (grifo do autor).

A passagem demonstra a coerncia de Machado de Assis quanto descrio do estilo do cronista, que ele acabou adotando. No fragmento da crnica acima citada, publicada em 1877, perodo em que o jornalista completava trinta e oito anos e j era um cronista reconhecido ele trouxe novamente o mesmo painel que havia traado aos vinte anos sobre o ofcio do cronista e de sua liberdade em atuar nos diversos assuntos. Tratase de um retorno s origens, revivendo o que marcou, desde o princpio de carreira, o seu ingresso precoce na discusso sobre o exerccio da prpria profisso, conforme

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demonstra esta passagem de O folhetinista (Aquarelas, O Espelho, RJ, 30/10/1859): o folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal; salta, esvoaa, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; at mesmo a poltica (1997: 959). Poderse-ia dizer que o jornalista, agindo desse modo, conseguiu atar as duas pontas da vida (MACHADO DE ASSIS, 1997: 810), tal como desejou Dom Casmurro, personagem da fico machadiana, ao escrever seu livro de memrias. Trazendo baila esse motivo ficcional, penso que Machado de Assis conseguiu restaurar, nos anos da maturidade, a juventude. Alm da variedade temtica e da desenvoltura interpretativa que exigem do cronista uma aptido especial, oportuno salientar que, desde seu nascimento, a crnica encontra-se umbilicalmente atada ao tempo. De fato, o cronista aquele que narra a experincia contida na tradio, entendida como um tecido de experincias ancestrais que, ao serem recolhidas e narradas pelo cronista, desenham um horizonte de esperanas futuras. A exigncia de superao e negao do passado, imposta por um tempo em progresso, arruna a experincia do tempo e com ela a tradio. Na modernidade vive-se a experincia no tempo, experincia que se extingue no instante fugaz em que vivenciada e que, portanto, no pode ser comunicada. O tempo esvaziado de suas experincias e homogeneizado quanto ao ritmo veloz com que nele se repete a irrupo da novidade. Dar ouvidos tradio estar em desacordo com a moda, tornar-se anacrnico. Em O cronista se apresenta, de 05/04/1888, Machado de Assis se configura como um relojoeiro extenuado e descrente de sua tarefa: eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relgios deste mundo no marcam a mesma hora, descri do ofcio (1994: 105). Doravante, o ofcio do cronista deve enfrentar a transitoriedade e a contingncia prprias da modernidade. O prprio gnero deve, portanto, ser reinventado: a nica explicao dos relgios era serem iguaizinhos, sem discrepncia; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque to certo pode ser o meu relgio, como o do meu barbeiro (...) foi por essas e outras que descri do ofcio; e, na alternativa de ir fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; mais fcil e vexa menos (1994: 105-106).

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Machado de Assis parece ter tomado para si a tarefa de atualizao da crnica num contexto de relgios descompassados. Bem entendido, atualizar-se s condies modernas no significa render-se a elas. Assim, num sculo utilitrio e prtico, conforme ele mesmo avaliou em A Semana, de 30/04/1892, a crnica machadiana proporciona o encontro entre o til e o ftil. De fato, ela nasce sob o signo da desconversa. Esta se inicia no slido terreno da notcia, dos ltimos acontecimentos da semana, da novidade dos faits-divers teis e srios , para escapar em seguida para o solo movente e aparentemente desimportante e ftil da profecia dos fatos, ou sua filosofia. A crnica machadiana opera, assim, o parto srio e singular do srio, consorciado com o frvolo (1997:959), conforme o prprio jornalista avaliou o gnero em O folhetinista, de 30/10/1859. Consrcio que aparece com toda clareza quando o autor tem de fazer a crnica de uma semana sem novidades. Este o momento por excelncia da arte da desconversa. Na falta de fatos relevantes, o narrador assunta a prpria crnica. Ao indagar sua origem, desvela seu carter errante. Tratar-se-ia de um tipo de conversa vadia, no mais das vezes ociosa, em que se transita de um a outro tema, desse ao seguinte, para ento voltar ao primeiro sem o maior constrangimento. De acordo com o texto O nascimento da crnica, de 1/11/1877, este gnero lhe parece uma autntica conversa de comadres: No posso dizer positivamente em que ano nasceu a crnica; mas h toda a probabilidade de crer que foi coetnea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente comearam a lastimar-se do calor. Uma dizia que no pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar das ervas s plantaes do morador fronteiro, e logo s tropelias amatrias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fcil, natural e possvel do mundo. Eis a origem da crnica (1994: 14). O bate-papo entre as vizinhas pode ser interpretado como uma alegoria do gnero crnica, pois ambos esto marcados por elementos pertencentes oralidade, tais como a variedade temtica dos assuntos de uma conversa e a sintaxe desestruturada, solta. No por se aproximar mais da conversa informal do que do texto escrito, adverte

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Jorge de S (1999), que a crnica deixa de ser uma elaborao literria, pois no se limita, simplesmente, transcrio de um bate-papo. A conversa entre as vizinhas, marcada pela variedade de assuntos, pelo tratamento ntimo e tom informal, pode representar um possvel contato almejado por Machado de Assis com seus leitores. A relao entre o cronista e o leitor ser estudada, posteriormente, ainda neste captulo.

Museu de grandes novidadesMachado de Assis transforma a novidade e a atualidade numa espcie de barulho de fundo que alimenta a crnica, mas no encerra, em si, seu sentido. Segundo Calvino (1993: 15), a transformao da atualidade em barulho de fundo uma caracterstica dos clssicos, sendo responsvel por seu carter trans-histrico. A passagem realidade da crnica, na qual a atualidade ocupa a posio de barulho de fundo, pode ser claramente percebida nas crnicas semanais publicadas poca da Revolta da Armada. Imagine-se o cenrio: o Rio de Janeiro sitiado pelas esquerdas estacionadas na Baa da Guanabara, que exigiam a renncia de Floriano Peixoto; disparos, exploses, boatos, enfim, um cenrio repleto de novidades. Porm, levando-se em conta o texto de A Semana, de 26/11/1893, aos olhos do cronista as novidades aparecem como mera repetio: tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo (1955: 429). Se a novidade mera repetio, que dizer dos jornais que tm por tarefa repetir a novidade? Que me diriam eles [os jornais] que no fosse velho? A guerra to velha como a paz. Os prprios diabos so decrpitos (1955: 429). Com sua metralhadora cheia de fatos, o jornal se constitui como um museu de grandes novidades. A acelerao do tempo e do movimento moderno ambos elevados ao paroxismo na iminncia de um conflito armado no causa mais que enfado ao cronista. A decrepitude dos jornais revela-se na repetio de eventos que so, eles prprios, repeties corriqueiras. Contudo, o enfado sentimento particular do cronista. Toda

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populao do Rio de Janeiro parece viver em constante aflio e ansiedade: nsia de informaes. Machado de Assis recorda-se ento de um certo personagem de Jos de Alencar, que passava a perguntar: que h de novo?. Este era o aspecto de seus contemporneos, que em qualquer lugar e a qualquer hora indagavam acerca das novidades. Diante da ansiedade da populao carioca, o cronista passa do enfado irritao, em A Semana, de 05/11/1893: Que h de novo? Ningum sai de casa que no oua a infalvel pergunta, primeiro ao vizinho, depois ao prprio condutor do bond. (...) Quis vingar-me; mas onde h tal ao que nos vingue de uma cidade inteira? No podendo queim-la, adotei um processo delicado e amigo (1997: 588) (grifo do autor). Que processo seria este? Ora, espera-se do cronista a narrao dos acontecimentos da semana, ou seja, das ltimas ocorrncias de seu tempo. Mas se sobre tais ocorrncias no h mais que repetio, o cronista ir recorrer a novidades ultrapassadas como forma de denunciar a ausncia de sentido do presente. Assim, Machado de Assis retira do tempo uma sucesso de catstrofes, execues, guerras, naufrgios, de maneira a fazer da anacronia a matria da crnica. Eis um exemplo pinado da referida crnica: Na quarta-feira, mal sa rua, dei com um conhecido que me disse, depois dos bons dias costumados: Que h de novo? O terremoto. (...) Mas onde foi? Foi em Lisboa. Em Lisboa? No dia de hoje, 1 de novembro, h um sculo e meio. (...) Meio embaraado, o meu interlocutor seguiu caminho, a buscar notcias mais frescas. Peguei em mim e fui por a afora distribuindo o terremoto a todas as curiosidades insaciveis. Tornei satisfeito casa; tinha o dia ganho (1997: 589). O recurso anacronia distancia o cronista ironicamente de uma atualidade sem sentido, colocando-a na posio de barulho de fundo e denunciando seu carter estritamente reiterativo. O tom zombeteiro adotado pelo cronista se deve prpria trivialidade das curiosidades insaciveis. Contudo, o cronista no pode prescindir da

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novidade e, diferentemente do curioso, ele a retira de sua trivialidade e transforma o repetitivo em inusitado. A anacronia, o deslocamento metonmico e a ironia so responsveis pelo distanciamento que o cronista mantm com a realidade. Uma realidade que no oferece abrigo a um homem relegado posio de espectador, incapaz de nela encontrar o menor vestgio de sentido: a realidade seca, a cincia fria, diz o cronista. Neste contexto, Machado de Assis parece ter proposto a reinveno de um gnero que em grande medida fra, at ento, responsvel pela produo de sentido. A crnica no mais seria tarefa de relojoeiros, cujo ofcio era o de acertar os relgios do mundo. Doravante, o prprio sentimento do mundo a mundanidade dever ser regenerado no espao da crnica. este sentimento de estar no mundo, de extrair-lhe algum sentido que ento ir distinguir o cronista do restante da multido moderna. Modstia s favas, o cronista sublinha sua presena singular. Vamos crnica Bons Dias, de 11/05/1888, para atestar esse fato: Vejam os leitores a diferena que h entre um homem de olho aberto, profundo, sagaz, prprio para remexer o mais ntimo das conscincias (eu, em suma), e o resto da populao. Toda a gente contempla a procisso na rua, as bandas e bandeiras, o alvoroo, o tumulto, e aplaude ou censura, segundo abolicionista ou outra cousa; mas ningum d a razo desta cousa ou daquela cousa; ningum arrancou aos fatos uma significao, e, depois, uma opinio. Creio que fiz um verso (MACHADO DE ASSIS, 1997: 488). Se Machado de Assis reinventa a crnica, atualizando-a consoante as exigncias da modernidade, a crnica, por seu turno, recria um espao de experincias no qual se pode produzir sentido. Ou, como prefere o autor, onde ainda possvel fazer um verso. Na crnica emerge um evento que, por mais banal ou corriqueiro que seja, ilumina todo o texto. O momento em que o tempo estanca uma eventualidade e, como dir o velho Machado em A Semana, de 10/09/1893: o eventual seduz-nos como um pedao de mistrio (1955: 377). O eventual, o ftil, o frvolo e o misterioso parecem constituir uma mesma dimenso do real abandonada por um sculo excessivamente utilitrio e prtico. O alvo da crnica machadiana, de sua tartamudez, parece ser a restituio desta dimenso to prenhe de experincias comunicveis. como espao de experincias, ainda que frgil e delicado, que a crnica abre ao leitor a face mundana da vida ao

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oferecer um lugar que possibilite a formao de uma opinio; quando nada, a possibilidade de um olhar ftil e incondicionado do real. Um olhar, quem sabe, a partir do qual o leitor possa criar o seu prprio horizonte de esperanas. A mundanidade da crnica machadiana no reside no fato de falar do mundo, da vida dos sales ou teatros, mas sim no convite que faz ao leitor a ocupar seu lugar no mundo, a interromper uma vida marcada pela absoro imediata da novidade e por comportamentos automticos. O cronista retira seu leitor do interior da torrente de acontecimentos no qual este no faz mais que observar inerte o prprio progresso e o convida a participar da singular experincia de viver a eventualidade, de arrancar-lhe sentido. Seu ceticismo, no entanto, no deve ser desvinculado da tarefa a que se dedica em sua obra literria e em sua atividade jornalstica: a formao da conscincia crtica do leitor. A imagem do receptor perplexo suas referncias ao leitor obtuso ou penetrante, leitora indiscreta etc. caracteriza uma das suas estratgias do seu discurso irnico, que exige do leitor real resposta s provocaes suscitadas pelo texto. Ceticismo no sinnimo de pessimismo. Uma coisa no acreditar nas mudanas, outra no compartilhar da ingenuidade que no percebe os obstculos reais mudana. E aqui se enquadra o que chamamos de projeto tico da narrativa machadiana, cujo ncleo despertar o senso crtico do leitor. Sua arte deixa que o leitor tambm trabalhe na leitura, fazendo-o pensar por si. Suas frases conduzem o pensamento do autor, mas no encerram uma sentena. Tal intercmbio de experincias entre o cronista e o leitor , a meu ver, um marco do projeto jornalstico machadiano. Retomando o texto O nascimento da crnica, de 1/11/1877, a conversa descontrada de vizinhas a escarafunchar as ocorrncias do dia pode representar um modelo ideal de como deveria ser feita a aproximao do jornalista com o seu pblico. A oralidade (simbolizada no bate-papo das vizinhas) como marca textual foi uma meta perseguida por Machado de Assis, na medida em que ele buscava nas crnicas se desvencilhar de um estilo rebuscado e prolixo da imprensa da poca (MAGALHES JR, 1957; PEREIRA, 1994) para se aproximar do universo do leitor, atravs de uma desenvoltura expressiva e descontrada no tocante linguagem. Tal objetivo reiterado em O ofcio do cronista, de 14/08/1878, quando Machado apresenta ao leitor a sua forma de se expressar: aproveitamos a ocasio, que nica; deixemos

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hoje as unturas do estilo; demos a engomar os punhos literrios; falemos fresca de palet branco e chinelas de tapete (1994: 30). Se visitarmos as caractersticas do gnero, apontadas por Massaud Moiss, observaremos que: A subjetividade da crnica (...) explica que o dilogo com o leitor seja o seu processo natural. Fletido ao mesmo tempo para o cotidiano e para suas ressonncias nas arcas do eu, o cronista est em dilogo virtual com um interlocutor mudo, mas sem o qual sua (ex)incurso se torna impossvel. Na verdade, trata-se de um procedimento dicotmico, uma vez que o dilogo somente o pelo leitor implcito: monlogo enquanto auto-reflexo, dilogo enquanto projeo, a crnica seria, estendendo o vocbulo que Carlos Drummond de Andrade utiliza na designao do processo de relao verbal com o interlocutor, para o texto na sua totalidade um monodilogo. Simultaneamente monlogo e dilogo, a crnica seria uma pea teatral em um ato superligeiro, tendo como protagonista sempre o mesmo figurante, ainda quando outras personagens interviessem. O cronista, em monodilogo, se oferece em espetculo ao leitor, dotado que este de uma afinidade eletiva, graas sua sensibilidade rica e apetente de comunho (MOISS, 1994: 255256). Atravs do monodilogo, Machado de Assis quis falar fresca com o leitor e revelar o tipo de pblico ao qual imagina se dirigir: Sendo positivo que nenhum cidado correto almoa agora como nos demais dias, conto no ser lido com o repouso do costume. Na verdade, mal se pode crer que o leitor tenha tempo de tomar o seu banho frio, beber s pressas dois goles de caf, enfiar a sobrecasaca, meditar a sua chapa de eleitores, e encaminhar-se s reunies. Pode ser que leia antes, s carreiras, o jornal que lhe for mais simptico; mas, uma vez feita essa orao mental, nenhuma obrigao mais o retm fora da arena, onde os partidos vo pleitear amanh a palma do triunfo (1994: 30). Por essa descrio, notamos que Machado de Assis estava atento ao dia-a-dia do leitor e ciente de que, devido ao mundo do trabalho e das preocupaes cotidianas, o pblico acaba lendo o jornal s pressas, sem aquela devida ateno. Mesmo assim, no calor da hora, o leitor faz a sua orao mental para se inteirar dos diversos assuntos que tomam a cena urbana, como o caso do pleito poltico, que acabara ocorrendo no dia seguinte crnica.

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Na esteira da noo de jornal construda em A reforma pelo jornal, de 1859, Machado de Assis refora em O ofcio do cronista, de 1878, a idia de que ler um jornal o mesmo que fazer uma orao mental. Nesta prtica, o leitor se alimenta da hstia social da comunho pblica (MACHADO DE ASSIS, 1997: 964). Essa foi a metfora escolhida por Machado com o objetivo de posicionar a prtica da leitura do jornal como um ato sagrado de busca da verdade. Vale a pena ressaltar que, segundo Mrio Hlio, foi Hegel quem aproximou a leitura do jornal de uma orao (1994:123). E, como Hegel, Machado de Assis concebeu uma aura divina ao jornalismo, destacando-o como uma espcie de fiat humano (1997:963). Esta imagem se apropria do faa-se a luz, presente em Gnesis, o livro da origem do mundo ao qual o cronista faz referncia. Foi pela palavra que Deus criou o mundo. Acredita Machado que pelo jornal, atravs da captao da experincia mltipla dos diversos agentes sociais pela palavra, que o homem vai reformar o mundo. A orao mental tambm pode ser entendida atravs de uma comparao entre o momento da reza, que pode ser feita silenciosamente ou sussurrada, e a leitura de um jornal, que tambm se realiza dessas maneiras. Ainda em O ofcio do cronista, Machado de Assis se vale dessa oportunidade para falar da importncia do cronista para a sociedade. mais uma forma de legitimar o jornalismo, pontuando-o como canal no qual todas as correntes de idias e sensaes podem atuar. Ele utiliza a ironia e o paradoxo para descrever as razes que movem o trabalho daqueles que se ocupam em observar e comentar o espetculo do contraditrio do presente, em sua verso urbana na tribuna ampliada dos jornais (PORTELLA, http://www.academia.org.br/biogra4.htm). Para tanto, o narrador faz uma pergunta e, em seguida, aponta a resposta: que monta uma pgina de crnica, no meio das preocupaes do momento? Que valor poderia ter um minuete no meio de uma batalha, ou uma estrofe de Florian entre os dois cantos da Ilada? Evidentemente nenhum (1994: 30). Acontece que, na seqncia do texto, Machado de Assis vai discorrer sobre a atividade de montar uma pgina de crnica. Se a crnica no tem importncia, ento porque a sua estrutura justamente o tema central do texto? , no mnimo, paradoxal e irnico. Para Brayner, a ironia uma das figuras de linguagem mais recorrentes em toda a obra machadiana. Segundo ela:

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A fora da ironia jaz no antigo e sempre atual prazer humano em fazer contrastar a Aparncia com a Realidade, isto , no conflito de dois significados dentro de uma estrutura dramtica peculiar. De incio, um significado a aparncia apresenta-se como verdadeiro; entretanto, o aproveitamento contextual deste nvel faz gradativamente surgir um outro lado da moeda a realidade diante da qual o primitivo significado surge como falso e limitado, sendo essencial a percepo desta duplicidade fundamental para a compreenso de qualquer ironia (BRAYNER, 1976: 100). Atravs da ironia, Machado de Assis aparentemente apresenta ao leitor a idia de que a crnica desnecessria para depois fisg-lo, ao contar os bastidores da montagem da crnica. Essa tarefa de acompanhar os humores da cidade rdua e requer um talento especial do cronista: Vivemos seis dias a espreitar os sucessos da rua, a ouvir e palpar o sentimento da cidade, para os denunciar, aplaudir ou patear, conforme o nosso humor ou a nossa opinio, e quando nos sentarmos a escrever estas folhas volantes, no o fazemos sem a certeza (ou a esperana!) de que h muitos olhos em cima de ns. Cumpre ter idias, em primeiro lugar; em segundo lugar exp-las com acerto; vesti-las, orden-las, e apresent-las expectao pblica. A observao h de ser exata, a faccia pertinente e leve; uns tons mais carrancudos, de longe em longe, uma mistura de Geronte e de Scapin, um guisado de moral domstica e solturas da Rua do Ouvidor... (MACHADO DE ASSIS, 1994: 31). Nesta passagem, o cronista ressalta que a funo de opinar uma funo social por excelncia. Junto a um fato se levanta uma tomada de posio fundamentada sobre a realidade e como reflexo da personalidade: a opinio , por isso, juzo e sentimento (BENEYTO apud BELTRO, 1980: 23). Ao descrever suas condutas como cronista, Machado monodialoga com o leitor, evidenciando que o jornalista no um narrador neutro, imparcial e objetivo dos fatos. O cronista revela portanto que a verdade transparente no existe e que resultado inevitvel (e, por isso, tico assumi-lo) da parcialidade e da subjetividade do informador. Essa maneira de fazer jornalismo Machado considera o direito que o pblico tem de saber o que o jornalista pensa e qual a sua posio a respeito da notcia dada, o que se configura como uma informao a mais para que o leitor possa tirar suas prprias concluses. O nosso escritor tambm destaca o dever que o jornal tem de exercitar a opinio com a reta inteno de orientao do leitor.

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Assim, a notcia apresentada como opinio, que deve possibilitar a formao de outras. Este ponto de vista machadiano encontra eco na prtica jornalstica contempornea, considerando por exemplo a obra A prtica da reportagem, do jornalista Ricardo Kotscho (1989). A exemplo de Machado, ele um ferrenho crtico dos conceitos de neutralidade e objetividade jornalstica, considerando-os umas bobagens que inventaram para domesticar os profissionais que no se dobram aos poderosos de planto, porque tm um compromisso maior com seu tempo e sua gente (KOTSCHO, 1989: 8). Mais prudente, a meu ver, no caloroso debate da objetividade jornalstica, talvez seria a substituio deste termo para honestidade da informao. Compreendo que o jornalista tem de lutar consigo mesmo para saber dosar informao e emoo na medida certa em cada matria. Na transmisso da histria, o jornalista deve possuir um impulso de orientar o leitor. Para tanto, deve buscar ao mximo distanciar-se de seus preconceitos, sem contudo omitir a sua linha analtica ou metodologia de informao. Tal sentimento estaria pautado pela moderao ou equidade, o que muito diferente dos conceitos de neutralidade e imparcialidade, que alimentam os mitos de que a narrativa jornalstica um espelho da realidade e o jornalista uma entidade racional capaz de testemunhar com iseno os acontecimentos a serem abordados. No h como o jornalista ficar insensvel aos sentimentos de tristeza e de alegria que se alternam nos trabalhos de cobertura. Afinal, ele antes de mais nada um ser humano igual aos seus leitores, e precisa transmitir no s as informaes, mas tambm as emoes dos acontecimentos que est cobrindo. Machado de Assis admite no referido trecho de O ofcio do cronista que o fato publicado no jornal vem com as marcas do cronista, que ora aplaude, ora critica, dependendo da natureza do episdio enfocado e at do humor de quem escreve. obrigao do jornalista denunciar tambm as injustias, aponta Machado. Sua opinio deve ser explcita no relato, pois a pretendida impessoalidade apresenta como resultado um discurso esvaziado, que acaba por ocultar o processo social que possibilitou a notcia. Tanto Machado de Assis como Ricardo Kotscho, cada qual no seu tempo, apontam para o fato de que o jornalista no deve ter medo de tomar posio, mesmo que alguns jornalistas de proveta qualifiquem isso de brega: denunciando o que h de ruim e errado, louvando o que bem merece (KOTSCHO, 1989: 15).

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Machado de Assis, como vimos, se insurge contra o objetivismo e o factualismo, reivindicando sua independncia enquanto jornalista em relao aos fatos, alm de revelar ao pblico suas preferncias temticas e o seu modo de fazer jornalismo, conforme aponta a seguinte passagem da crnica de 10 de julho de 1892: Eu, quando vejo um ou dois assuntos puxarem para si todo o cobertor da ateno pblica, deixando os outros ao relento, d-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo cena to-somente a arraia-mida, as pobres ocorrncias do nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada annima, a estatstica morturia, as tentativas de suicdio, o cocheiro que foge, o noticirio, em suma. que eu sou justo, e no posso ver o fraco esmagado pelo forte. Alm disso, nasci com certo orgulho que j agora h de morrer comigo. No gosto que os fatos e os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu que os hei de enfeitar com dois ou trs adjetivos, uma reminiscncia clssica, e os mais gales do estilo. Os fatos, eu que hei de declarar transcendentes: os homens, eu que os hei de aclamar extraordinrios (1997: 541). Acresce-se, ainda, que, na concepo machadiana, a realidade no raro quimrica. O real pode ser o que parece real. Machado de Assis recusa o ideal de observao cientfica e a tradio descritivista da realidade. No sentido oposto, sua seleo valorativa e sua nfase na imaginao sero tidas como desfiguradora e falsificadora do mundo exterior pelos adeptos do realismo escola, cuja orientao, embasada na concepo positivista e naturalista do conhecimento, pressupe a existncia de leis e de costumes inacessveis s deformaes pessoais, capazes de informar cientificamente a realidade. Este mesmo procedimento condena os juzos de valor, as interpretaes, as opinies. A verdade se encontra no mundo dos fatos e dos acontecimentos, fora da mente humana, que ilusria. A imaginao constitui um desvio. A crnica fundada na imaginao passa a ser identificada como fuga, descompromisso e alienao. A narrativa machadiana subverte a relao tradicional entre fico e histria. A nfase na imaginao liberta a fico de seu papel subordinado, conferindo-lhe autonomia suficiente para buscar inspirao na realidade social.

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Lugar de jornalista na rua!No faltava a Machado de Assis a conscincia do progressivo papel do pblico, entidade plural, no destino dirio dos peridicos (PORTELLA, http://www.academia.org.br/biogra4.htm). Retomando a crnica O ofcio do cronista, vale destacar que o autor de Iai Garcia carrega a esperana de que o leitor esteja sempre atento e seja exigente na apurao do contedo de suas crnicas. H muitos olhos em cima de ns (MACHADO DE ASSIS, 1994: 31). assim que Machado de Assis sente o seu receptor: um pblico vigilante e curioso. No texto anteriormente mencionado, o fato que sair nas folhas volantes resulta do encontro entre as idias do jornalista e os estmulos do mundo exterior, que devem ser expostos com acerto de medida, refinado estilo e preciso na ordem dos argumentos. Para Machado, a observao do periodista deve atender um rigor tico e esttico na montagem da crnica, trazendo humor e esprito crtico ao leitor. Levando em considerao ainda a presente crnica, noto que Machado foi defensor da idia de que lugar de jornalista na rua, observando os acontecimentos em loco para depois transmiti-los no papel. Tanto que mais tarde, em A Semana (Gazeta de Notcias, RJ, 11/11/1894), ele vai reclamar do telgrafo, que j trazia a notcia preparada pelas agncias para o jornalista, sem que este precisasse sair da redao para apur-la. Segundo Marlia Rothier Cardoso, em Gazeta de bruxo, a crnica em questo atesta um novo ciclo da imprensa brasileira frente a essa inovao tecnolgica. Recentemente, Silviano Santiago apontou o telgrafo como um dos mecanismos responsveis pela desliteraturalizao da grande imprensa em fins do sculo 19 (2004: 160-161). A desconfiana do telgrafo por parte do cronista ocorre porque ele percebe que a telegrafia (...) substitui o prestgio do relato elaborado e transmitido distncia do fato pela banalidade simultnea e fragmentria da notcia (CARDOSO, 1990: 30). A anlise de Cardoso baseia-se na seguinte observao do cronista: no tnhamos ainda este cabo telegrfico, instrumento destinado a amesquinhar tudo, a dividir as novidades em talhadas finas, poucas e breves (1955:224). Machado de Assis atesta que o telgrafo transforma o jornal em mais um rgo de informao e menos num rgo opinativo. De acordo com essas palavras, o jornalista tambm se preocupa com o fenmeno da

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acelerao do tempo que modifica o significado e o valor do espao enquanto suporte da matria impressa. Quando soube, atravs do telgrafo, que a imprensa da Bahia estava reivindicando junto ao governo a priso do pregador Manuel da Benta Hora, Machado de Assis se posicionou contra o ato, denunciando que tal atitude representava a falta de tolerncia religiosa no Brasil oitocentista. Ele aproveitou a oportunidade para debicar sobre outros assuntos alm desse, passando anlise dos efeitos da telegrafia para o jornalismo. Machado comenta em A Semana, de 13/09/1896, que o telgrafo uma inveno econmica, deve ser conciso e at obscuro. O estilo faz-se por extenso em livros e papis pblicos, e s vezes nem a. Mas ns amamos os ricos vesturios do pensamento, e o telegrama vulgar como a tanga, mais parece despir que vestir (1955: 274-275) (grifo meu). Ao utilizar o pronome que indica a fala da primeira pessoa do plural, o cronista refora que no s ele, mas tambm os leitores, preferem textos jornalsticos que sugerem e contornam os fatos, proporcionando a possibilidade de que sejam lidos nas entrelinhas os ricos vesturios do pensamento, a fatos auto-explicativos, objetivos ao extremo e que substituem a rica narrativa por um simples registro de acontecimentos. Isso feito em nome de uma clareza que, na verdade, cega os olhos do leitor, pois anula as sensaes de mistrio e a existncia de lacunas que fazem parte da relao do sujeito com o mundo. Retomando, mais uma vez, a crnica O ofcio do cronista, de 14/8/1878, observo uma coerncia na reclamao de Machado em relao ao telegrama, por mostrar que esse instrumento se assemelha a uma tanga, por despir mais que vestir o enredo da