dissertação mestrado em heidgger

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  • Universidade Federal da Paraba UFPB

    Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes - CCHLA

    Programa de Ps-Graduao Strictu Sensu em Filosofia / Mestrado - PPGF

    Antnio Geraldo de Oliveira Seixas

    HEIDEGGER E O FENMENO ORIGINRIO DA VERDADE (a)lh/qeia):

    Uma investigao acerca da postulao ontolgica da verdade.

    Joo Pessoa

    2012

  • Antnio Geraldo de Oliveira Seixas

    HEIDEGGER E O FENMENO ORIGINRIO DA VERDADE (a)lh/qeia):

    Uma investigao acerca da postulao ontolgica da verdade.

    Dissertao apresentada Coordenao do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Filosofia PPGF, do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes CCHLA da Universidade Federal da Paraba UFPB, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    Professor Orientador: Dr. Robson Costa Cordeiro

    Joo Pessoa 2012

  • S462h Seixas, Antnio Geraldo de Oliveira. Heidegger e o fenmeno originrio da verdade

    (a)lh/qeia): uma investigao acerca da postulao ontolgica da verdade/ Antnio Geraldo de Oliveira Seixas.- Joo Pessoa, 2012.

    114f. Orientador: Robson Costa Cordeiro Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA 1. Heidegger, Martin, 1889-1976 crtica e interpretao.

    2. Filosofia. 3. Ontologia. 4. Sentido da Verdade(Ser e Tempo). 5. Alethia. 6. Hermenutica. UFPB/BC CDU: 1(043)

  • Dissertao apresentada pelo aluno Antnio Geraldo de Oliveira

    Seixas ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Filosofia / Mestrado do Centro de

    Cincias Humanas, Letras e Artes - CCHLA da Universidade Federal da Paraba (UFPB) em

    05 de novembro de 2012, as 14:00 horas, na sala 506, sob o ttulo HEIDEGGER E O

    FENMENO ORIGINRIO DA VERDADE (a)lh/qeia): Uma investigao acerca

    da postulao ontolgica da verdade, tendo sido APROVADA COM DISTINO,

    conforme a apreciao da Banca Examinadora constituda pelos Professores:

    _____________________________________________ Prof. Dr. Robson Costa Cordeiro (Orientador / UFPB)

    _____________________________________________ Prof. Dr. Miguel Antonio do Nascimento (Membro / UFPB)

    _____________________________________________ Prof. Dr. Francisco Jos Dias de Moraes (Membro / Externo / UFRRJ)

    Joo Pessoa

    2012

  • Dedicatrias

    A meus filhos Vctor e Vincius, pelas muitas horas que se

    sentiram privados de nossa companhia. Todas, no entanto,

    em funo de um exemplo e em prol de um sonho.

    A minha esposa Niedja, companheira de todas as dificuldades, que mesmo comprometendo

    seus projetos pessoais, sempre, de maneira dedicada e incondicional, soube me incentivar e

    compreender o necessrio afastamento.

    A minha me Josinette e meu pai Gensio (in memoriam), pela vida e pela educao que,

    com muito esforo, conseguiram me propiciar.

    A minha sogra Natrcia (in memoriam) e a meu sogro Ialter (in memoriam), pelo apoio, que

    nas horas difceis, sempre me dispensaram.

  • Agradecimentos

    Coordenao do Mestrado de Filosofia, a qual, na pessoa da servidora Ftima

    Medeiros, agradecemos pela forma como

    sempre fomos atendidos.

    Aos meus professores, que com inteligncia e dedicao, nos orientaram, para que um

    sonho fosse realizado.

    Aos meus colegas de turma, que em todos os momentos souberam transmitir a

    solidariedade e a sabedoria daqueles que no fazem do conhecimento um alicerce para o

    orgulho e para a prepotncia.

    Em destaque, ao amigo Edson Alexandre Arajo DAlbuquerque, que na sua

    simplicidade contribuiu com a realizao desse trabalho.

    Em especial, agradecemos Profa. Dr a. Ana Thereza Drmaier pela introduo ao

    pensamento de Heidegger.

    Ao Prof. Dr. Robson Costa Cordeiro pelo pronto atendimento quando solicitado para que

    nos orientasse neste trabalho.

    Nosso muitssimo Obrigado!

  • No creias, artista, que seja o trabalho o que te pe prova. No s o que pretendes ser nem s a pessoa por quem este ou aquele te toma, por estar mal informado, enquanto ela no se tornar natureza para ti, de modo que no possas fazer outra coisa seno conservar-te nela. Trabalhando assim, s a lana arremessada com maestria. Leis recebem-te das mos da lanadora e precipitam-se contigo no alvo. O que seria mais seguro que o teu voo? Consista a tua prova, porm, no fato de que nem sempre s arremessado. No fato de que a arremessadora Solido h muito no te escolhe; olvida-se de ti. Este o tempo das tentaes, quando te sentes inutilizado, incapaz (Como se o manter-se preparado no constitusse ocupao bastante!). Ento, quando ests deitado de uma maneira que no to pesada, as distraes exercitam-se em ti e procuram descobrir alguma outra coisa a que te possas dedicar. Como se te tornasses a vara de um cego, uma dentre as barras de uma grade ou o basto do equilibrista. Ou, ainda, elas se erguem e plantam-te no solo do destino, de modo que te acontea o milagre das estaes e faas brotar pequenas folhas verdes de felicidade...Ento, oh, frreo ser: deita-te pesadamente. S uma lana. S uma lana. S uma lana!.

    Rainer Maria Rilke. O testamento, So Paulo, Editora Globo, 2009, p. 69 e 71.

  • Resumo

    SEIXAS, Antnio Geraldo de Oliveira. HEIDEGGER E O FENMENO ORIGINRIO

    DA VERDADE (a)lh/qeia): Uma investigao acerca da postulao ontolgica da

    verdade: Em foco a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia da Universidade Federal da

    Paraba - UFPB, Joo Pessoa. 2012. 114 p. Dissertao (Mestrado em Filosofia) -

    Universidade Federal da Paraba - UFPB, Joo Pessoa. 2012.

    A presente dissertao tem por escopo fazer uma investigao acerca do sentido de verdade

    no pensamento de Martin Heidegger (1889-1976), mais precisamente na obra Ser e Tempo

    (1927), que nos permita delimitar os contornos da questo da verdade em relao a outras

    questes conexas a ela: a questo do conhecimento, a questo da verdade enquanto

    concordncia e, enfim, a sua relao com a questo primordial do pensamento heideggeriano,

    que a questo do sentido do ser. Pretende, tambm, mostrar de que modo Heidegger

    estabelece uma concepo da verdade que resgata etmologicamente o sentido original da

    palavra grega a)lh/qeia. esta mesma concepo que, alm desse resgate, abre a

    perspectiva hermenutica atravs da assuno da estrutura do como hermenutico enquanto

    fundamento do logos aponfntico, do qual o enunciado, em seu aspecto lgico-formal,

    apresenta-se como uma derivao.

  • Abstract

    SEIXAS, Antnio Geraldo de Oliveira. HEIDEGGER AND THE PHENOMENON

    ORIGINARY OF TRUTH (a)lh/qeia): The investigation about of the ontological

    postulation of truth: Focus on the conclusion of the Master of Philosophy, Federal

    University of Paraba - UFPB, Joo Pessoa. 2012. 114 p. Dissertation (Master of Philosophy)

    - Federal University of Paraba - UFPB, Joo Pessoa. 2012.

    This dissertation aims at making an investigation about the meaning of the truth in Martin

    Heideggers thought (1889-1976), more precisely in the work Being and Time (1927) that

    allows us to define the contours of this question of the truth concerned to other issues which

    are related to it: the question of the knowledge, the question of the truth as concordance and

    finally its relation with the primordial question of his thinking, whichs the question about the

    meaning of being. If also intends to show how Heidegger sets a conception to etymologically

    recover the original meaning of the greek word a)lh/qeia. This is the same concept that,

    beyond this redemption, opens the hermeneutic perspective through the assumption of the

    structure of the hermeneutic how as the basis of apophantic logos, which the statement, in

    his formal-logical aspect, presents itself as a derivation.

  • Sumrio

    Introduo ................................................................................................................ 10

    1 A questo primordial e seu horizonte ................................................................. 14

    2 Conhecimento, pr-compreenso e ser .............................................................. 25

    3 Ser e Tempo e a verdade (a)lh/qeia)

    ...................................................................35

    3.1 A originria relao entre ser e verdade ...................................................... 42

    3.2 Do Dasein a ontologia fundamental como analtica existencial .............. 48

    4 Do conceito tradicional de verdade e sua crtica com base no fenmeno do

    desvelamento (a)lh/qeia) e do logos apofntico 55

    5 Do logos apofntico ao logos hermenutico a partir da constituio

    existencial da abertura, da cotidianidade e decadncia ........................................ 75

    Concluso ................................................................................................................ 103

    Referncias .............................................................................................................. 111

  • 10

    Introduo

    O presente estudo tem por objetivo a realizao de uma investigao centrada no

    mbito das idias expressas na obra Ser e Tempo de Martin Heidegger (1889-1976),

    publicada em 1927, especificamente, no que tange questo do sentido de verdade em sua

    perspectiva ontolgica fundamental e sua relao com a perspectiva tradicional que entende

    verdade como correspondncia ou adequao. Em seguida, superada essa questo inicial,

    encaminhar-se para aquilo que efetivamente fundamenta o sentido ontolgico de verdade

    uma perspectiva hermenutica.

    Inicialmente, no se pode deixar de destacar o fato de que a relao da verdade com a

    coisa pode ser estabelecida de duas formas: numa primeira forma, a verdade do conhecimento

    consistiria na concordncia do contedo do pensamento (expresso numa proposio) com um

    determinado objeto (a coisa). Essa concepo, tomando-se como referncia o pensamento,

    pode ser caracterizada como conceito transcendente de verdade; em uma segunda forma,

    contraposta a essa, a verdade no seria extrada de uma relao entre um pensamento e algo

    que lhe transcendente, mas seria definida no interior do prprio pensamento: a verdade

    imanente, neste caso, seria a concordncia do pensamento consigo mesmo uma concepo

    de verdade puramente formal.1

    Nessa investigao, o que pretendemos expor como Heidegger elabora sua

    compreenso de verdade e por que ela representa um aprofundamento em relao tradicional

    idia segundo a qual a verdade seria uma propriedade das proposies ou dos juzos, ou seja,

    seria a relao entre aquilo que se diz e aquilo que se verifica na realidade (adequao com a

    coisa ou objeto), ou uma relao imanente do pensamento (expresso por uma proposio ou

    juzo) consigo mesmo.

    Neste contexto, nossa proposta ser a de realizarmos uma apresentao do que

    impulsiona o pensamento de Heidegger, ou seja, a questo que representa e orienta todo o seu

    pensamento a questo do sentido do ser. Como bem atesta Peraita, toda a obra filosfica de

    Heidegger gira em torno da questo do sentido do ser, [...].2 A partir da questo primordial

    do ser, procuraremos mostrar um horizonte no qual possvel identificar o questionamento

    acerca da verdade e de seu fundamento hermenutico.

    1 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p.119. 2 toda la obra filosfica de Heidegger gira en torno a la cuestin del sentido del ser, [...]. (PERAITA, Carmen

    Segura. Heidegger y la metafsica. Madrid: Editor literrio Fernando Bodega Quiroga, 2007, p.21. Disponvel em , traduo nossa).

  • 11

    Heidegger, no 1o do primeiro captulo de Ser e Tempo, que se intitula: Necessidade,

    estrutura e primado da questo do ser, constata categoricamente que embora nosso tempo se

    arrogue o progresso de afirmar novamente a metafsica, a questo aqui evocada caiu no

    esquecimento.3 Ou seja, quando da publicao de Ser e Tempo (1927) essa era a viso que

    Heidegger tinha da questo fundamental e seu constitutivo esquecimento, apesar do fato de

    que a metafsica e seus progressos terem sido afirmados mais uma vez. Quando se diz

    afirmados mais uma vez em funo das caractersticas mais marcantes da prpria

    investigao metafsica, pois como afirmava Kant em relao a essa cincia metafsica: ela

    um mar sem margens no qual o progresso no deixa vestgio algum e cujo horizonte no

    encerra nenhuma meta visvel pela qual seja possvel perceber at que ponto dela nos

    aproximamos.4

    Dessa forma, seria o esquecimento da questo do ser, como fenmeno constitutivo do

    prprio sentido do ser, o acontecimento que impossibilitou a colocao do problema do tempo

    da forma como Heidegger o visualiza. Seria o esquecimento da questo do ser o

    esquecimento, tambm, da questo do tempo em sua perspectiva heideggeriana. certo que a

    questo do ser iniciou a arrancada da prpria filosofia e nesse sentido, enquanto busca da

    verdade, a prpria filosofia seria fundamentalmente perpassada por uma relao originria

    entre ser e verdade. Todavia, em relao ao problema do tempo, este no foi vislumbrado e

    nem colocado pela tradio da forma como Heidegger o abordou, exceo de Kant, mas

    que, mesmo assim, ao ter se aproximado da questo da temporalidade, recuou. Significa dizer

    que Heidegger seria o primeiro a perceber esse vnculo entre ser e tempo. Assim, a questo do

    tempo no foi esquecida, na realidade ela no havia sido colocada da forma como Heidegger a

    colocou, diferentemente do que aconteceu em relao questo do ser.

    Ser que tal esquecimento da questo do ser e a no colocao do problema do tempo

    seriam os eventos que em certa medida impossibilitaram a colocao do problema da

    verdade? Entendemos que sim, e tomando-se, portanto, essa premissa como verdadeira que,

    seguindo essa linha de raciocnio, deve-se evidenciar que o que se busca o resgate da

    questo esquecida e, nesse percurso, esperamos conseguir estabelecer uma relao entre a

    questo do ser e o fenmeno originrio da verdade.

    Como se v, nossa inteno no refazer o trajeto heideggeriano que se encaminha na

    direo da possibilidade de mostrar e dizer que ser significa tempo. No se trata disso. O

    objetivo identificar em que ponto do percurso se d a necessidade de abordar a questo da

    3 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrpolis: Editora Vozes, 2006, p.37. Coleo Pensamento Humano. 4 KANT, Immanuel. Progressos da Metafsica. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Edies 70, 1995, p. 11.

  • 12

    verdade naquilo que ela apresenta de mais natural: a condio de se perceber que no

    conhecimento, em sentido epistemolgico, que a verdade se apresenta como uma

    objetividade. Na verdade, esse conhecimento privilegia a forma temporal presente. No

    entanto, a epistemologia no esquece o tempo, mas faz dele um uso tcito. A cincia conhece

    na instncia presente do tempo. Mas a partir disso, ns poderamos perguntar: como

    possvel o tempo presente? O que o presente? A prpria idia de tempo parece negar algo

    como presente e por que no dizer que parece negar algo tambm como a idia de eternidade.

    Pois, a eternidade apenas seria assim caracterizada se levassemos em conta a idia de que a

    prpria eternidade s se d em funo de ser algo que no muda no prprio tempo, e sendo

    assim, o prprio tempo seria condio de possibilidade da mesma.

    Entendemos, em funo do exposto, como necessria para nossa investigao a

    introduo de algumas consideraes em torno da forma como Heidegger vislumbra a questo

    do conhecimento e como este se relaciona com a pr-compreenso e com ser. Pois no

    conhecimento que se evidencia a afirmao h muito tempo aceita e no problematizada de

    que o enunciado seria o lugar da verdade. Tudo isso guarda uma estreita relao com a

    questo primordial e a encaminha na direo do problema da verdade. Nesse sentido, afirma

    Heidegger,

    [...] h muito tempo, o enunciado vale como o lugar prprio e primrio da verdade. Esse fenmeno se acha to intimamente acoplado ao problema do ser que a presente investigao ter de se deparar necessariamente, em seu curso, com o problema da verdade.5

    importante ressaltar o que estaremos fazendo: uma busca cujo objetivo identificar

    os contornos da questo principal, a saber, a questo em torno da verdade. Ou seja, num

    primeiro momento partiremos da questo fundamental do pensamento de Heidegger o

    sentido do ser , para em seguida, atravs do problema do conhecimento, realizarmos sua

    conexo questo-objeto a questo da verdade.

    Em seguida, faremos uma apresentao mais detalhada acerca da questo da verdade

    no pensamento de Heidegger procurando mostrar, especificamente, em que sentido ela

    representa um aprofundamento daquilo que a tradio entende por verdade em seu sentido de

    correspondncia, seja ela transcendental ou imanente.

    Alm disso, entendemos ser importante e interessante que se faa uma demonstrao

    de que a perspectiva heideggeriana da verdade no representa uma aniquilao da abordagem 5 HEIDEGGER, 2006, p. 216.

  • 13

    epistemolgica entendida como objetividade ou substancialidade, mas que, no entanto, a

    entende como um modo derivado, no originrio. E mais, reafirmar a distino central em

    relao a cada uma das perspectivas (ontolgica fundamental e epistemolgica): a de que o

    ser na perspectiva ontolgica fundamental no poder ser objeto de conhecimento de forma

    estritamente epistemolgica, ou seja, em sentido ontolgico fundamental ser no pode ser

    entificado (objetificado), o que evidentemente no corroborado pela perspectiva

    epistemolgica, uma vez que a mesma caracterizada pela objetivao cientfica. Nesse

    sentido, a cincia reconhece a instncia ou aspecto temporal do presente como o mbito no

    qual se constitui o conhecimento em sentido epistemolgico. Como nos ensina Safranski:

    A objetivao cientfica [...] para Heidegger um fugir da temporalidade inquietante do Dasein [...]. Cincia a forma culta e metodicamente executada da coisificao (verdinglichkeit) cotidiana do Dasein. Mas nesse corao de pedra que Heidegger quer mexer.6

    Assim, o que a perspectiva ontolgica fundamental quer dizer que a objetivao

    cientfica resultante da postura epistemolgica no suficiente para a compreenso do que

    seja conhecimento em sentido ontolgico. A epistemologia no esgota ser, no consegue

    transformar ser em o ser (pura objetividade). Em resumo: ser no objeto de conhecimento

    enquanto este seja entendido em sentido epistemolgico.

    O que a perspectiva ontolgica da verdade enquanto fenmeno originrio, que se

    apresenta como uma unidade fenomenolgica entre o desvelamentoe e o velamento, vai abrir

    a perspectiva hermenutica que fundamenta, atravs da estrutura do como hermenutico, o

    logos apofntico, do qual o enunciado, em seu aspecto lgico-formal, seria um fenmeno

    derivado.

    6 SAFRANSKI, Rdiger. Heidegger Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. So Paulo: Gerao

    Editorial, 2000, p. 191.

  • 14

    1 A questo primordial e seu horizonte

    sempre bom lembrarmos que a questo que permeia toda a filosofia de Heidegger

    a questo acerca do sentido do ser. Todas as demais questes so provocadas por ela ou dela

    derivadas. Ela a questo fundamental: o sentido do ser.

    Em sua metafsica, Aristteles afirma que o ser se diz em mltiplos significados, mas

    sempre em referncia a uma unidade e a uma realidade determinada.7 Portanto, o problema

    : qual seria essa unidade misteriosa do ser para que ele possa ser dito de mltiplos modos?

    Logo, em funo desse mistrio que a questo fundamental apresenta-se como bice a toda

    e qualquer investigao de cunho metafsico.

    Para a questo do sentido do ser, enquanto uma perspectiva, Heidegger nos mostra

    analiticamente que esse termo geral envolve quatro problemas bsicos: 1) a diferena

    ontolgica, 2) a articulao bsica de ser, 3) o carter verdadeiro de ser, 4) a regionalidade do

    ser e a unidade da idia de ser.8

    Ser e Tempo , verdadeiramente, a colocao, estruturao e orientao dessa questo

    e seus problemas. nela que Heidegger, de forma inovadora, poca, desenvolve toda uma

    exposio que redimensiona e reorienta o entendimento do que seja a compreenso, mais

    especificamente a pr-compreenso. Esta reorientao por si s j representa um ponto

    polmico no que se refere ao problema que envolve a epistemologia tudo isso, em funo do

    tipo de aprioridade dessa mesma compreenso e, tambm, em relao a sua aproximao

    com o questionamento sobre a verdade.

    A questo do ser, aps a constatao, evidenciada por Heidegger, de seu

    esquecimento, por ele revigorada. No entanto, para que possamos entend-la, julgamos

    necessrio identificar como se d tal esquecimento. Para tanto, de forma sucinta, servimo-nos

    das palavras do prprio Heidegger:

    No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que no apenas declara surpflua a questo sobre o sentido de ser, como lhe sanciona a falta. Pois se diz: ser o conceito mais universal e mais vazio. Como tal, resiste toda tentativa de definio. Esse conceito mais universal e, por isso, indefinvel, prescinde de definio. Todo mundo o emprega constantemente e tambm compreende o que ele, cada vez, pretende designar. Assim o que, encoberto, inquietava o filosofar antigo e se mantinha

    7 ARISTTELES. Metafsica. 2. Edio. So Paulo: Edies Loyola, 2005, p. 131, (libro IV, cap. II). 1003b 35. 8 The general term being includes these four basic problems: 1) the ontological difference, 2) the basic

    articulation of being, 3) the veridical character of being, 4) the regionality of being and the unity of the idea of being. (HEIDEGGER, Martin. The Metaphysical Foundations of Logic. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1992, p. 153, traduo nossa).

  • 15

    inquietante, transformou-se em evidncia meridiana, a ponto de acusar quem ainda levantasse a questo de cometer um erro metodolgico.9

    Ser o que est presente em tudo, em todo agir, em todo fazer, em tudo que , mas

    no se esgota em nenhuma dessas coisas. Esse o modo como Heidegger vai entender esta

    questo do ser, diferentemente da tradio que compreendia o ser como conceito mais

    universal, abstrato e vazio, e deste modo resistente a qualquer perspectiva de definio. Para a

    tradio, nesse contexto, seria suprfluo investigar-se sobre o sentido do ser. Identificada a

    forma como esse esquecimento se manifesta, Heidegger passa tarefa de reelaborar e

    levantar a questo, de recolocar a questo a partir do solo de seu esquecimento, este que a leva

    a ser considerada como algo por si s evidente. Mas como que se levanta a questo?10.

    Citando Pasqua,

    [...] levantar a questo do ser pressupe o ser, de uma certa forma j acessvel. Procurar-me-ias se no me tivesses j encontrado? Perguntava Pascal. Ao interrogarmo-nos sobre o que o ser , no estaremos ns, de facto, perante uma compreenso prvia do , ainda que sem saber o que ele significa realmente? .11

    Tal problema no novo. Toda abordagem epistemolgica com ele se defronta.

    Aristteles, quando afirma, no livro I da Metafsica, que: Todos os homens, por natureza,

    tendem ao saber12 revela esse carter originrio e natural ou essencial em relao natureza

    do conhecimento. A possibilidade de naturalmente postular o saber j revelaria um pr-saber.

    Em Plato, esse problema surge no Mnon (80d-e) e assim se apresenta:

    Mnon. E de que modo procurars, Scrates, aquilo que no sabes absolutamente o que ? Pois procurars propondo-te procurar que tipo de coisa, entre as coisas que no conheces? Ou, ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como sabers que isso que encontraste aquilo que no conhecias? Scrates. Compreendo que tipo de coisa queres dizer, Mnon. Vs quo erstico esse argumento que ests urdindo: que, pelo visto, no possvel ao homem procurar nem o que conhece nem o que no conhece? Pois nem procuraria aquilo precisamente que conhece pois conhece, e no

    9 HEIDEGGER, 2006, p. 37. 10 PASQUA, Herv. Introduo leitura do Ser e Tempo de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, p.

    17. 11 Ibid, p. 17. 12 ARISTTELES, 2005b, p. 03. (Livro I, captulo I). 980a.

  • 16

    de modo algum preciso para um tal homem a procura nem o que no conhece pois nem sequer sabe o que deve procurar.13

    Esclarecendo-se ainda um pouco mais, didtica a lio de Folscheid e Wunenburger

    quando fazem referncia ao trecho do dilogo Mnon acima citado:

    [...] s se pode aprender aquilo que no se sabe. Mas, se no se sabe o que se vai aprender, como ento saber o que ? Como saber onde encontrar aquilo que se deve aprender? Com efeito, impossvel a um esprito buscar tanto o que ele sabe como o que ele no sabe, j que ele no tem necessidade de buscar o que j sabe, posto que o sabe, e j que no sabe o que buscar do que no sabe, posto que o ignora.14

    Desde j salientamos que a distino da abordagem heideggeriana em relao a essa

    questo epistemolgica a de que sua busca no se concentra numa tradicional

    transcendncia ou formalidade, seu foco, especificamente em sua analtica existencial, o ser

    do ente a que denominou Dasein. Portanto, sua abordagem ontolgica, ela busca o ser do

    ente enquanto tal. E no solo de uma ontologia fundamental que a questo do sentido do ser

    colocada.

    Aprofundando-se um pouco mais na elaborao da questo e investigando-se sua

    natureza, Heidegger nos ensina: Todo questionar um buscar. Toda busca retira do que se

    busca a sua direo prvia. Questionar buscar cientemente o ente naquilo que ele e como

    ele .15 Ou seja, de um modo ou de outro, necessrio que tenhamos uma compreenso

    prvia do ser, necessrio que estejamos sempre nos movendo numa certa compreenso do

    ser. Mais uma vez ressurge o aspecto originrio atravs da abertura que um questionamento

    exige para que possa ser colocado. necessrio um pr para que a questo possa ser

    desenvolvida, necessrio um ponto de apoio do qual a questo se desenvolva. Portanto, vale

    o que afirma Heidegger:

    Enquanto busca, o questionar necessita de uma orientao prvia do que se busca. Para isso, o sentido de ser j nos deve estar, de alguma maneira, disposio. J se aludiu que sempre nos movemos numa compreenso de ser. dela que brota a questo explcita do sentido de ser e a tendncia para o seu conceito. No sabemos o que diz ser. Mas j quando perguntamos o que ser, mantemo-nos numa compreenso do , sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse . Ns nem sequer conhecemos

    13 PLATO. Mnon. 2a. edio. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio e Edies Loyola, 2001, p. 81. 14 FOLSCHEID, Dominique; WUNEMBURGER, Jean-Jacques. Metodologia Filosfica. So Paulo: Martins

    Fontes, 1999, p. 184, nota de rodap. 15 HEIDEGGER, 2006, p. 40.

  • 17

    o horizonte em que poderamos aprender e fixar-lhe o sentido. Essa compreenso vaga e mediada de ser um fato.16

    O fato da compreenso pr-ontolgica necessita de uma anlise. ele que estabelece

    j de incio um problema para o qual Ser e Tempo ter que buscar uma orientao. Ou seja,

    uma certa compreenso de ser um fato e esse fato um pr- (Da) que se revela como

    aspecto central e constitutivo do carter ontolgico da estrutura por Heidegger denominada

    como Dasein.17 Tal fato pode ser desdobrado em duas vertentes: a dos seres-simplesmente-

    dados dentro do mundo, aos quais podemos nos referir com a expresso factualidade como

    representativa da condio de que estes entes, apesar de serem, so sem mundo; e, por outro

    lado, Heidegger utiliza a expresso facticidade para caracterizar a factualidade do Dasein.

    Facticidade no fatualidade do factum brutum de um ser simplesmente dado, mas um

    carter ontolgico da presena assumido na existncia, embora desde o incio, reprimido.18

    No entanto, que estrutura essa? Que conceito tal estrutura representa?

    No que se refere a Heidegger, considerar Dasein como um conceito [...] em Ser e Tempo j constitui um problema e de modo algum uma evidncia. Sem dvida, Dasein um termo decisivo em Ser e Tempo. Mas decisivo precisamente por indicar a condio existencial de possibilidade de um pensamento que no se define e nem se esgota com a racionalidade categorial dos conceitos. Distintamente de um conceito, que sntese do mltiplo e diverso numa universalidade, Dasein indicao de experincia, onde compreender no diz agarrar a realidade com esquemas j dados, mas deixar-se tomar pelo que faz a compreenso buscar compreender.19

    natural e at intuitivo que ao se falar do Dasein se faa uma remisso imediata ao

    conceito de homem. No entanto, tal associao perigosa, pois no podemos pensar Dasein

    apenas como um ser-simplesmente-dado. O Dasein possui um privilgio ontolgico se

    comparado ao homem, conceitualmente falando, enquanto uma qididade. O perigo se

    estabelece, mais precisamente, em virtude da originariedade hermenutica do Dasein frente ao

    homem como objeto de uma antropologia. Dasein permite a anlise das condies

    transcendentais e no meramente histrico-culturais. Nesse sentido, ser-simplesmente-dado

    uma modificao ontolgica a qual todo ente, inclusive Dasein, pode assumir em uma dada

    compreenso. Quando compreendido apartado de um mundo, quando pensado sem mundo,

    16 HEIDEGGER, 2006, p. 41. 17 INWOOD, Michael. Dicionrio Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 170. 18 HEIDEGGER, 2006, p. 194. 19 Ibid, p. 16-17, apresentao de Mrcia Schuback.

  • 18

    Dasein simplesmente-dado. Ser-simplesmente-dado, ser-a-mo, realidade, possibilidade, so

    modificaes ontolgicas cuja dificuldade de entendimento se estabelece pelo fato de no

    serem modificaes a partir de um ser primordial. O ser dos entes se constitui sempre como

    modificao. Assim, o que mais caracteriza o ser-simplesmente-dado sua ruptura com a

    referencialidade (mundo), ser um sem mundo. Portanto, aquele privilgio ontolgico

    que, possibilitando uma primordial relao com ser, distingue originariamente Dasein como

    abertura da qual as modificaes ontolgicas so derivaes. Nas palavras de Peraita:

    O que Heidegger quer dizer que, sendo um ente, pertecendo ao ntico, o Dasein singular porque ontolgico: no porque desenvolve uma ontologia, uma teoria explcita do ser do ente, seno porque seu modo de ser prprio tal que se relaciona com o ser de uma forma exclusiva: compreendendo-o. Esta possibilidade de compreender, de estar constitutivamente relacionado com o ser, Heidegger a entende como abertura do Dasein [...].20

    , pois, Dasein, enquanto ente privilegiado, que pe a pergunta pelo sentido do ser

    que deve ser investigado e analisado. E dessa forma que Heidegger se expressa quando se

    refere ao ente a ser investigado.

    O ente que temos a tarefa de analisar somos ns mesmos. O ser deste ente sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto , sendo, este ente se relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser, a presena [Dasein] se entrega responsabilidade de assumir seu prprio ser. Ser o que neste ente est sempre em jogo.21

    Nesse sentido, quando se diz que Dasein , o que se quer dizer que Dasein

    sendo, ele no sentido de no poder ser entificado; ou seja, Dasein sempre numa relao

    com o ente, e dessa forma ele sendo. esse ente (Dasein) que mostra a diferena

    ontolgica. Dasein ntico e ontolgico, mas as primazias (ntica e ontolgica) so relativas

    questo do sentido do ser e no ao Dasein propriamente dito. Enquanto ente, Dasein, como

    todo ente, . Porm, o ser de um ente, seja ele Dasein ou no, nunca um ente. No caso

    especfico do Dasein, a essncia deste ente est em ter de ser.22 Essa essncia h que ser

    20 Lo que quiere decir Heidegger es que, siendo un ente, perteneciendo a lo ntico, el Dasein es singular porque

    es ontolgico: no porque desarrolle una ontologia, una teoria explcita del ser del ente, sino porque su modo de ser prprio es tal que se relaciona con el ser de una forma exclusiva: comprendindolo. Esta possibilidad de comprender, de estar constitutivamente relacionado con el ser, la entiende Heidegger como apertura del Dasein [...]. (PERAITA, 2007, p. 77, traduo nossa).

    21 HEIDEGGER, 2006, p. 85. 22 Ibid., p. 85.

  • 19

    concebida a partir de seu ser a existncia. Esta, entendida no no sentido de ser

    simplesmente dado da ontologia tradicional, mas como constituio que possibilita os modos

    do ser. Dessa maneira, h que se caracterizar o privilgio do Dasein como ente que

    essencialmente existe e nessa existncia compreende ser. Dasein compreende o ente

    enquanto tal. Nenhum outro ente possui esse carter, bem verdade que podemos dizer que

    certos animais compreendem certas coisas, mas jamais compreendem o ente enquanto tal.

    Portanto, o contexto deste privilgio o da colocao da questo do sentido do ser. No ,

    pois, um privilgio em si, mas no interesse do objeto da investigao.

    necessrio, no entanto, destacar a posio heideggeriana no que diz respeito

    relao ser-ente. Heidegger distingue perfeitamente ser e ente, mas o ser nunca concebido

    como independente do ente, e essa forma de colocar a relao ser-ente exclui qualquer

    entendimento da mesma como a instaurao de um dualismo. Ou seja, como afirma

    Heidegger: O ser dos entes no em si mesmo um outro ente.23 E mais: Ser sempre ser

    de um ente.24 Poderamos at pensar em uma analogia entre o inteligvel e o sensvel do

    platonismo e o ser e o ente na perspectiva heideggeriana. No entanto, a distino se d no

    aspecto daquilo que se entende como transcendncia: para o platonismo, grosso modo, ela

    seria uma esfera distinta em relao ao mundo sensvel; para Heidegger ela seria imanente, a

    transcendncia, a ascenso para alm do ente no todo, acontece no mundo e portanto ser-

    no-mundo.25

    Logo, justamente aquele privilgio que vai destacar Dasein da esfera ntica

    enquanto ente que, alm de ntico, ontolgico. Na precisa lio de Pggeler:

    No 4, Heidegger demonstra que dentro do ntico ou ente h um determinado ente que possui primazia [privilgio], se a questo do ser tiver de ser colocada. Este ente o homem [Dasein], na medida em que ele . A existncia distinta perante outros entes, por ela no ocorrer simplesmente entre outros entes, mas porque para ela no seu ser se trata desse ser. A existncia e somente ela! tem uma relao de ser e, por conseguinte, uma compreenso do ser. Ela em si-mesma compreendedora do ser, ontolgica, ainda que esse ser-ontolgico no seja tambm expressamente um compreender assimilado e desenvolvido, mas uma compreenso do ser por desenvolver, .26

    23 HEIDEGGER, 2006, p. 41. 24 Ibid., p. 44. 25 PGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 93.

    Coleo Pensamento e Filosofia. 26 Ibid., 2001, p. 52.

  • 20

    Encarar o homem apenas em seu aspecto ntico perder de vista a sua

    existencialidade. O ntico refere-se a toda modificao ontolgica: ser-simplesmente-dado,

    ser-a-mo, realidade, possibilidade, historicidade, cultura, etc. J o ontolgico caracteriza-se

    por compreender ser. Dessa forma os entes enquanto tais (modificaes ontolgicas), so,

    mas apenas Dasein existe. Se continuarmos a explorar esse conceito de existncia veremos

    que o Dasein sendo essencialmente existncia s possvel como ser-no-mundo. Mas o que

    significa ser-no-mundo? um a priori, alm de ser um fenmeno que se caracteriza por ser

    unitrio. A impossibilidade de dissolv-lo em elementos, que podem ser posteriormente

    compostos, no exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compem essa

    constituio.27 O ser-no-mundo , sem dvida, uma constituio necessria e a priori da

    presena [Dasein], mas de forma alguma suficiente para determinar por completo o seu ser.28

    Dasein constitutivamente ser-no-mundo. Nesse sentido, alm do Dasein ser sempre meu

    (carter ftico), sua essncia est em ter de ser (carter existencial) tarefa de ser. Essa

    existncia no concebida, portanto, como um quid ou substncia, ela sempre situada, ou

    seja, no emprica nem puramente racional, ftica.

    No entanto, antes de prosseguirmos nossa investigao, vejamos, mais uma vez, qual a

    essncia da primazia29 da qual esse ente portador:

    Esta primazia tripla: 1) a existncia tem uma primazia ntica entre todo o ente ela caracterizada por ter uma relao com o ser, por ser determinada pela existncia; 2) com fundamento neste ser determinado pela existncia, ela em si prpria ontolgica, compreendedora do ser, e tem por isso uma primazia ; 3) com fundamento na sua compreenso do ser, ela compreende o seu prprio ser e o ser do ente no prprio da existncia assim a condio ntico-ontolgica da possibilidade de todas as ontologias.30

    Normalmente soa at estranho falar de Dasein como portador de algo. necessrio

    que no confundamos Dasein com alguma espcie de subjetividade posta. Tal entendimento

    viciaria o termo e levaria consigo tambm o ser-no-mundo, pois esse mundo passaria a ser

    entendido como mundo-circundante. Dessa forma cairamos novamente na tradicional relao

    continente-contedo. Devemos nos afastar desse entendimento, pois ele representa um

    27 HEIDEGGER, 2006, p. 98-99. 28 Ibid, p. 99. 29 Para esse termo, talvez fosse melhor utilizarmos a expresso privilgio. Pois, primazia deve ser entendida em

    relao ao primado ntico-ontolgico da questo do sentido do ser e no como um privilgio do Dasein, propriamente dito. A primazia ou primado no do Dasein e sim da questo. Se bem que o prprio Dasein que pe a questo, e assim, de forma indireta, poderamos aceitar tal primado como relativo ao Dasein.

    30 PGGELER, 2001, p. 52-53.

  • 21

    empecilho para a nossa investigao. No se pode pensar Dasein e ser-no-mundo como

    entidades dadas. Portanto, devemos frisar que no podemos aplicar a esse ente os mesmos e

    tradicionais mtodos empregados ao longo da tradio. Nesse sentido que,

    Heidegger reter do mtodo fenomenolgico a idia de que preciso ir prpria coisa. Esta no a conscincia intencional ou o ego transcendental, mas sim o ser. Assim, a fenomenologia eleva-se a uma ontologia. Agora, ter de o verdadeiro sentido do ser em geral, a partir de uma analtica do ente. Portanto, primeira vista a filosofia de Heidegger anuncia a diferena ontolgica entre o ser e o ente. [...]. O ser no o ente e, contudo, o ente !31

    H, no entanto, um destaque a ser feito no que diz respeito a um aspecto fundamental

    para o Dasein: que , justamente, esse revelar-se como um ente que est essencialmente

    referido a seu prprio ser, sua prpria possibilidade e que, em ltima instncia, s

    enquanto poder-ser. Significa dizer que a essncia do Dasein existir. Enfim, a natureza

    do Dasein poder-ser. Surge agora um problema que se revela atravs da necessidade de uma

    abordagem metodolgica que nos propicie alcanar a originariedade do Dasein em sua mais

    prpria natureza a existncia. Para tal intento que Heidegger faz uso da fenomenologia

    entendendo que,

    [...] a esse ente no se deve aplicar, de maneira construtiva e dogmtica, nenhuma idia de ser e realidade por mais evidente que seja. Nem se devem impor presena categorias delineadas por tal idia. Ao contrrio, as modalidades de acesso e interpretao devem ser escolhidas de modo que esse ente possa mostrar-se em si mesmo e por si mesmo. Elas tm de mostrar a presena tal como ela antes de tudo e na maioria das vezes, em sua cotidianidade mediana.32

    Diante disso, e mais profundamente, preciso reafirmar a originariedade que se busca

    na medianidade com o auxlio da fenomenologia em sua vertente hermenutica. Alm disso:

    A no uma estrutura que se privilegie inicialmente em detrimento de outras, j que indica por sua vez e justamente o conjunto, [...] dos modos de ser reais e possveis do homem [Dasein], como uma espcie de mdia estatstica das maneiras com que os homens individuais se determinam no mundo.33

    31 PASQUA, 1997, p. 09. 32 HEIDEGGER, 2006, p. 54. 33 VATTIMO, Gianni. Introduo a Heidegger. 10a edio. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 23.

  • 22

    J ficou claro que a abordagem fenomenolgica a utilizada por Heidegger no

    desentranhamento da questo. Portanto, a juno do objeto a ser analisado e a

    fenomenologia como mtodo resulta na analtica existencial, que tem um objetivo especfico:

    analisar de forma originria o Dasein em seu ser enquanto ente, e isto quer dizer que no se

    pode partir de posies preconcebidas a fim de podermos deixar que o ente em sua primazia

    (ou melhor, privilgio)34 se revele a partir de si mesmo.

    De acordo com isto, os caracteres que a anlise do ser do homem [Dasein]35 por de manifesto no podero entender-se como o conjunto de que determinam a realidade do homem [Dasein], mas apenas como possveis maneiras de ser. Se, com a tradio filosfica, chamamos aos modos mais gerais em que se determina o ser das coisas simplesmente-presentes (isto , os modos mais gerais de a realidade se estruturar como Vorhandenheit, os modos (possveis) de ser do homem [Dasein], que se manifestaro por meio da anlise da existncia (que Heidegger chama ), denominar-se-o, por sua vez, (Existenzialen).36

    Mas, especificamente, o que vem a ser um existencial? De forma direta, podemos

    dizer que existencialmente, na perspectiva heideggeriana, o homem estaria voltado no para

    o quid das coisas enquanto objetividades ou propriedades de algo categorialmente dado, mas,

    pelo contrrio, estaria voltado para a relao com seu ser. Nesta forma categorial, podemos

    recuperar a idia do que seja o esquecimento do ser para Heidegger. Tal esquecimento

    mostra-se, no caso mais comum, atravs de uma determinao metafsica do ser que privilegia

    uma determinada modificao ontolgica a objetividade (ser-simplesmente-dado). Tudo

    isso visto por Heidegger como uma compreenso que valoriza apenas um aspecto do tempo

    o presente. As coisas, sob esse aspecto, so tratadas de forma categorial e revelam-se na

    forma daquele esquecimento. Para ns, do ponto de vista dos existenciais, interessa uma

    investigao que se atenha no ao quid categorial dos objetos, mas sim ao modo, ao como dos

    objetos. Alm disso, quando se fala de existenciais, no h como deixarmos de mencionar, no

    escopo da analtica existencial, o existencial que desenvolve um papel fundamental em

    relao a qualquer vertente que se venha a investigar no pensamento heideggeriano - a

    compreenso. Assim, Dasein, enquanto ente que em seu ser representa o cerne da analtica 34 Ver nota de rodap nmero 29. 35 Originalmente, na traduo, o termo utilizado homem. O acrscimo [Dasein] visa esclarecer a distino entre

    Dasein e homem. Por que Dasein no homem? Porque o fenmeno da compreenso pr-ontolgica que precisa de anlise para ser colocada a questo do ser no pode ser entendido como propriedade ou atributo racional, mas como locus em que os entes vm luz. A compreenso um fenmeno dinmico pelo qual tudo o que o em seu sentido e no em sua substancialidade.

    36 VATTIMO, 1996, p. 25-26.

  • 23

    existencial, est no mundo como ser-no-mundo, antes de mais e fundamentalmente, como

    compreenso.37

    A estruturao de ser-no-mundo (In-der-welt-sein) fundamentalmente como

    compreenso, a qual Heidegger concede o estatuto de aprioridade ou originariedade,

    estabelece uma perspectiva que relaciona de maneira originria o ente e seu ser. Essa estrutura

    ser-no-mundo no possui, no entanto, o sentido de condio de possibilidade tal qual expresso

    na teoria transcendental de Immanuel Kant (1724-1804) ou no sentido da reduo eidtica e

    transcendental atingida na fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938). O seu sentido

    puramente ontolgico. Nesse sentido, a superao dessas perspectivas pode ser expressa de

    vrias formas: em relao a Kant, na posio do eu transcendental, surge em Heidegger a

    existncia;38 no caso de Husserl, fundando a intencionalidade da conscincia na abertura-

    de-mundo que a torna possvel, permitiu um efetivo acesso ao fenmeno do Mundo, que

    escapou fenomenologia husserliana.39 Ou seja, o conceito de conscincia substitudo

    pelo de abertura.40 Todavia, bastante problemtico afirmar que Heidegger inaugura um

    sentido de aprioridade estranho tradio transcendental. O ponto central : como o

    existencial abertura seria mais originrio que o eu transcendental? Essa uma questo que

    poder ser conduzida no sentido de uma metaontologia, e como tal caindo-se novamente no

    mbito de uma transcendentalidade. Mas essa outra questo.

    Voltando-se ao nosso caminho, na ontologia fundamental, solo dessa abertura

    expressa por ser-no-mundo, que ser definitivamente afirmada a impossibilidade que envolve

    o problema do ser como tradicionalmente colocado pela metafsica, uma vez que defende a

    idia de que ele s poder ser colocado a partir da compreenso cotidiana que Dasein tem do

    ser. Sendo assim, a ontologia fundamental no comea com generalidades, mas com o que h

    de mais concreto e imediato: o ser cotidiano do Dasein. No entanto, no h que se confundir

    analtica existencial com ontologia fundamental, pois,

    [...] ontologia fundamental e analtica existencial no se identificam: a ontologia fundamental a pergunta pelo sentido de ser e por isso vai mais alm que a analtica existencial. A analtica existencial investiga a

    37 VATTIMO, 1996, p. 33. 38 PGGELER, 2001, p. 75. 39 MORUJO, Carlos. Verdade e liberdade em Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 89.

    Coleo Pensamento e Filosofia. 40 STEIN, Ernildo. Sobre a Verdade Lies preliminares ao pargrafo 44 de Ser e Tempo. Iju: Editora

    Uniju, 2006, p. 75.

  • 24

    existncia, o tipo de ser de Dasein, ocupa-se das estruturas da existncia tal como se oferecem ao ponto de vista da atitude natural41

    O que percebemos a importncia que a ontologia fundamental desempenha em Ser e

    Tempo. Essa importncia evidente, pois em Ser e Tempo que Heidegger vai demonstrar

    que o Dasein possui um fundamento ntico-ontolgico. Analisando-se o papel desempenhado

    pela ontologia fundamental no permetro do projeto Ser e Tempo que se pode vislumbrar

    para onde o projeto se encaminha:

    A ontologia fundamental foi um modo transicional de superar a ontologia tradicional, por meio do questionamento do seu fundo e fundamento. Ela afasta-se, portanto, alcanando o outro lado da DIFERENA ontolgica, o ser. Assim como a ontologia tradicional PROJETA os entes para a entidade, ns agora tambm projetamos a entidade como ser para a sua verdade. A ontologia fundamental metaontologia.42

    Portanto, o que se percebe que, no limite da investigao ontolgica fundamental,

    Heidegger vai propor uma nova investigao, cujo tema seria o ente na sua totalidade uma

    metaontologia. Nesse sentido:

    Metaontologia s possvel na base e na perspectiva da radicalizao da problemtica ontolgica [...]. Pensar o ser como o ser de seres e conceber radicalmente e universalmente o problema de ser significa, ao mesmo tempo, tomar os seres em sua totalidade a luz da ontologia.43

    Assim que, sob essa nova perspectiva, deve-se abrir o pensamento para o

    entendimento da relao entre Ser e Verdade.

    41 [...] ontologia fundamental y analtica existencial no se identifican: la ontologia fundamental es la pregunta por

    el sentido del ser e por eso va ms all de la analtica existencial. La analtica existencial investiga la existncia, el tipo de ser del Dasein, se ocupa de las estructuras de la existncia tal como se oferecen al punto de vista de la actitud natural. (PERAITA, 2007, p. 81, traduo nossa).

    42 INWOOD, Michael. Dicionrio Heidegger. Traduo de Lusa Buarque de Holanda, Reviso tcnica de Mrcia S Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2002, p. 132.

    43 Metontology is possible only on the basis and in the perspective of the radical ontological problematic []. To think being as the being of beings and to conceive the being problem radically and universally means, at the same time, to make beings thematic in their totality in the light of ontology. (HEIDEGGER, 1984, p. 157, traduo nossa).

  • 25

    2 Conhecimento, pr-compreenso e ser

    Em Ser e Tempo questiona-se sobre o ser dos entes. No entanto, a obra publicada

    num contexto no qual traos da filosofia transcendental kantiana so evidentes. Para

    Heidegger, ser condio de inteligibilidade dos entes. Nesse sentido, Heidegger funda um a

    priori distinto da filosofia transcendental de Kant, tratando-se no de uma forma a priori

    necessria para a constituio da experincia possvel, mas de um a priori ontolgico,

    condio de inteligibilidade daquilo que ntico.

    O problema kantiano, em suma, : mostrar como so possveis juzos sintticos a

    priori e em que se baseia a validade desses juzos. A soluo a teoria do idealismo

    transcendental a realidade como uma construo do sujeito transcendental. Tal soluo

    suscita vrias reaes ao problema dos juzos a priori: uma delas se inicia em consideraes

    absolutamente distintas das de Kant e d-se levando-se o conceito de sujeito transcendental ao

    ponto central da questo - em relao a ele tudo que existe relativo e tudo que real deve-se

    considerar imanente. Nesse sentido, o mtodo redutivo fenomenolgico de Husserl chega

    conscincia transcendental purificada como plo subjetivo da realidade, um resduo

    ineliminvel depois de todo o aniquilamento do mundo em pensamento e da qual o que resta

    do mundo surge como uma realizao intencional. Como se v, Husserl no sepulta o mundo

    o faz em pensamento apenas suspende a tese do mundo natural.

    Aps essa pequena digresso, de cunho introdutrio, onde torna-se evidente a questo

    da fundamentao da verdade em torno da filosofia transcendental kantiana e da

    fenomenologia de Husserl, necessrio apresentarmos o apriorismo heideggeriano,

    relacionando desde j esse tema com o da verdade. Para tanto,

    [...] necessrio retornar, ali em 1927 e ao redor, a discusso dos neokantianos em torno da questo de se existe um tipo de verdade que no apenas verdade das proposies, verdade simplesmente do proferimento de sentenas, mas uma verdade que seja vista como condio de possibilidade para podermos entender o que propriedade (verdadeiro e falso) de uma proposio. Essa a questo: uma espcie de verdade fundante. Uma verdade que nos d, como depois Heidegger dir, as condies transcendentais da verdade. Ou que confirme, [...], que toda verdade existencial, toda verdade fenomenolgica tem o carter de ser uma veritas transcendentalis, de ser uma verdade transcendental.44

    44 STEIN, 2006, p. 19.

  • 26

    O que se busca, portanto, algo que originariamente anterior ao conhecer em seu

    sentido epistemolgico. Nessa perspectiva que Heidegger funda um apriorismo que

    determina, como conseqncia, o conhecer como um modo derivado de ser.

    [...] conhecer um modo de ser da presena enquanto ser-no-mundo, isto , que o conhecer tem seu fundamento ntico nesta constituio de ser. Contra esta indicao do achado fenomenal de que conhecer um modo ontolgico do ser-no-mundo, poder-se-ia objetar que, com uma tal interpretao do conhecimento, aniquila-se o problema do conhecimento [...].45

    Isso no significa, porm, que o problema do conhecimento seja uma questo desfeita,

    pois,

    [...] deve-se admitir que o conhecer em si mesmo se funda previamente num j-ser-junto-ao-mundo, no qual o ser da presena [Dasein] se constitui de modo essencial. Mas esse j-ser-junto-a no , de incio, apenas agarrar com rigidez algo simplesmente dado.46

    por isso que importante, nesse ponto, ns constatarmos que: a diferena ontolgica

    mostra uma distino fundamental relacionada ao ente e ao ser. No diferena entre sujeito

    e predicado, entre sujeito e objeto, mas diferena entre ser e ente.47 Essa distino

    fundamental, principalmente em relao questo do conhecimento, pois esta questo em

    Heidegger s pode ser colocada a partir do ente (entificao ou objetificao), ou seja, o ser-

    simplesmente-dado (Vorhandenheit). No entanto, ser simplesmente dado, na verdade, no

    traduz muito bem Vorhandenheit, pois vorhanden, Vorhandenheit diz literalmente estar diante

    da mo, como algo que pode ser agarrado, apreendido, determinado.48 Assim, como o

    problema do ser precisa de um ponto de partida, outro no poderia ser seno o fato da pr-

    compreenso de ser. No entanto, onde que ela se d em sua total e neutra abrangncia? Na

    cotidianidade. nela, atravs da analtica existencial, que o conhecimento se mostra como

    modo derivado de acesso ao real. Em sua essncia, o real s se torna acessvel como ente

    intramundano.49

    Esse mostrar-se derivado, portanto, representa uma restrio da abertura que ser-no-

    mundo constitutivamente . O conhecimento, como j frisamos, necessita de entificao e

    45 HEIDEGGER, 2006, p. 107. 46 Ibid, p. 108. 47 STEIN, 2006, p. 143. 48 HEIDEGGER, 2006, p. 25, apresentao de Mrcia Schuback. 49 Ibid, p. 271.

  • 27

    nesse sentido seria tambm uma forma de esquecimento do ser por privilegiar um aspecto

    determinado do mesmo. O conhecimento seria uma viso permanente do ente.

    A interpretao do conhecimento como viso exigia que somente se poderia conhecer o que estava ali adiante, o ente. Assim como teve lugar, na opinio de Heidegger, o que poderamos denominar a reduo ntica que bloqueia qualquer perspectiva de compreenso da diferena ontolgica. Mas precisamente esta diferena a que Heidegger quer resgatar ao voltar a colocar a pergunta pelo ser.50

    Dessa forma, percebe-se claramente a caracterstica principal que esse conceito

    procura destacar: a objetividade. Nesse contexto que tradicionalmente se insere a questo da

    verdade, ou seja, no mbito da relao sujeito-objeto. Todavia, no mbito dessa relao que

    se colocam algumas questes que, na perspectiva de Heidegger, precisam ser pensadas:

    Como este sujeito que conhece sai de sua esfera interna e chega a uma outra esfera, a externa? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhec-lo, sem precisar arriscar o salto numa outra esfera?51

    Essa dicotomia, sujeito-objeto, recoloca a questo do mundo exterior contrapondo-se a

    um mundo interior, ou uma subjetividade. Pois,

    [...] logo que o fenmeno do conhecimento do mundo se apresenta em si mesmo, sempre recai numa interpretao formal e externa. Um indicador disso a suposio, hoje to corrente, do conhecimento como uma relao de sujeito e objeto, que se mostra to verdadeira quanto vazia. Sujeito e objeto no coincidem porm com presena [Dasein] e mundo.52

    A constatao de que tudo estaria reduzido a uma relao dessa natureza e, assim,

    reduzido esfera dos entes, o que significaria isto em relao ao ser? Que o ser para ns

    uma noo, ao mesmo tempo bvia e vaga, isto , o esquecimento do ser, [...].53 No entanto,

    a nossa pesquisa procura justamente vislumbrar a partir desse solo a perspectiva que se

    50 La interpretacin del conocimento como visin exiga que solamente se pudiera conocer lo que estaba all

    delante, el ente. As es como tuvo lugar, en opinin de Heidegger, lo que podramos denominar la reducin ntica que bloquea cualquier atisbo de comprensin de la diferencia ontolgica. Pero precisamente esta diferencia es la que quiere rescatar Heidegger al volver a plantear la pregunta por el ser. (PERAITA, 2007, p. 52, traduo nossa).

    51 HEIDEGGER, 2006, p. 107. 52 Ibid., p. 106. 53 VATTIMO, 1998, p. 87.

  • 28

    encaminha rumo a uma descrio fenomenolgica que mostrar em ltima instncia a

    fundamentao da verdade para alm de uma perspectiva tradicional e para alm de uma viso

    puramente ntica. Nossa perspectiva essencialmente ontolgica e em ltima instncia se

    mostrar hermenutica.

    Aqui se apresenta uma necessidade,

    [...] que a de no desenvolver mais o mundo como um quid, como um objeto, mas como um como, como um wie e isto ele [Heidegger] aprendeu com Husserl. [...] esse mundo prtico, [...] que um dado [no sentido de faticidade], mas um como. Trata-se de uma questo metodolgica. Ele utiliza, no comeo dos anos 20, a expresso ein Grundwie, um como fundamental, que depois no desenvolvimento da analtica ele vai chamar o como hermenutico, que antecede o como apofntico. Deve-se perceber a violncia que Heidegger teve de praticar para introduzir este como hermenutico contra todas as pretenses de ver o mundo como um quid, como um algo. No um como produzido pelo processo de reduo transcendental, mas um como desde sempre j em operao, em explicitao. Portanto, no um como que eu inicio por um processo de reflexo, mas um como onde eu me movimento numa circularidade da qual jamais consigo saltar fora. Em Heidegger a questo ser basicamente eu compreendo o ser enquanto me compreendo e vice-versa. Ele liga a questo do como questo do ser. O ser no mais um algo que se descreve ou sobre o qual se faz uma teoria, mas algo que se desvela, algo que se abre, que se revela aparecendo a todas as opes de metfora que Heidegger elabora. O mundo no se mostra no enunciado, mas neste como prtico, via mtodo.54

    Tal circularidade, que compreende compreendendo-se, poderia tambm ser entendida

    no apenas como uma circularidade hermenutica, mas atravs tambm de um conceito mais

    abrangente, qual seja: uma espiral hermenutica na qual no se estabeleceria nenhuma relao

    entre o fato dela se desenvolver ascendentemente ou descendentemente e as idias de

    evoluo ou no-evoluo. O que se deve destacar nesta analogia to somente o fato de que

    partindo-se de uma compreenso j estabelecida, Dasein jamais perpassa o mesmo ponto, no

    mesmo plano, mas em um ponto superior ou inferior, e aqui mais uma vez vale destacar que

    no h nenhum juzo de valor associado aos conceitos de superior ou inferior. Ou seja,

    Dasein, em seu modo que compreende ser, nunca o mesmo. a tese heracltica do tudo flui

    no mesmo rio entramos e no-entramos; somos e no somos55 e no se pode entrar duas

    vezes no mesmo rio.56

    54 STEIN, 2006, p. 87-88. 55 ANAXIMANDRO, PARMNIDES, HERCLITO. Os pensadores Originrios.:3a edio. Petrpolis:

    Editora Vozes, 1999, p.71. frag. 49a de Herclito. Coleo Pensamento Humano. 56 Ibid, p. 83 frag. 91 de Herclito.

  • 29

    Vejamos, agora, como se d para Heidegger, em relao ao Dasein, o processo

    cognitivo:

    [...] a presena [Dasein] no sai de uma esfera interna em que antes estava encapsulada. Em seu modo de ser originrio, a presena j est sempre fora, junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo j descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente a ser conhecido no uma espcie de abandono da esfera interna. De forma nenhuma. Nesse estar fora, junto ao objeto, a presena est dentro, num sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, ela mesma que, como ser-no-mundo, conhece. E, mais uma vez, a percepo do que conhecido no um retorno para o casulo da conscincia (Bewusstsein) com uma presa na mo, aps se ter sado em busca de apreender alguma coisa. De forma nenhuma. Quando, em sua atividade de conhecer, a presena percebe, conserva e mantm, ela, como presena, permanece fora.57

    Mas ainda, para que possamos relacionar conhecer e ser-no-mundo, diz Heidegger:

    Conhecer [...] um modo da presena [Dasein] fundado no ser-no-mundo. por isso

    tambm que, como constituio fundamental, o ser-no-mundo requer uma interpretao

    preliminar.58 Tal interpretao preliminar nos coloca mais uma vez diante da compreenso

    ou pr-compreenso:

    O conhecimento no um ir do sujeito para um simplesmente-presena ou vice-versa, a interiorizao de um sujeito (originariamente separado) por parte de um sujeito originariamente vazio. O conhecimento antes articulao de uma compreenso originria em que as coisas esto descobertas. Esta articulao chama-se interpretao [...].59

    Porm, esse pr da compreenso nos revela exatamente o fato de que o conhecimento

    no poder ser outra coisa seno a articulao de uma pr-compreenso em que o estar-a j se

    encontra sempre, [...].60 Essa articulao, dando origem a uma interpretao, que em sua

    caracterstica pode ser inadequada, pode nos revelar de forma evidente o lugar de onde

    nascem os problemas dos quais a metafsica tradicional no conseguiu se libertar. Nesse

    sentido

    [...] s se conhece a constituio da presena e, na verdade, como algo evidente por si mesmo, na pregnncia de uma interpretao inadequada. Desse modo, esta interpretao torna-se o ponto de partida evidente para

    57 HEIDEGGER, 2006, p. 109. 58 Ibid, p. 109. 59 VATTIMO, 1996, p. 36. 60 Ibid., p. 42.

  • 30

    os problemas da epistemologia ou metafsica do conhecimento. Pois, o que mais evidente do que um sujeito referir-se a um objeto e vice-versa?61

    o entendimento do significado de compreender (verstehen) que nos permite o acesso

    a uma nova perspectiva. Ele adquire em Heidegger, importante que se diga, um estatuto

    distinto daquele ao qual estamos tradicionalmente habituados. A compreenso no seria mais

    entendida como um processo ou funo e, dessa maneira, claramente associada a um conceito

    epistemolgico. Heidegger desenvolve uma nova perspectiva na qual a compreenso seria

    ontolgica e no epistemolgica.

    Com o termo compreender, designamos um existencial fundamental; no se trata nem de um tipo de conhecer determinado, distinto, por exemplo, de explicar e conceituar, e nem, sobretudo, de um conhecer em geral, no sentido de apreender tematicamente. Ao contrrio, compreender constitui o ser do pre na medida em que uma presena, com base na compreenso, pode, em existindo, formar as mltiplas possibilidades de viso, circunviso e mera visualizao. Enquanto descoberta compreensiva do incompreensvel, todo explicar tem suas razes no compreender primordial da presena.62

    Essa abordagem inovadora no sentido de que introduz a diferena ontolgica, que

    no considera to somente a dimenso ntica perspectiva emprica da realidade dos entes.

    Distingue tambm uma dimenso considerada primordial a dimenso ontolgica do ser. No

    entanto, justamente essa dimenso ontolgica do ser que por Heidegger denunciada como

    esquecida.

    nesse ponto que a compreenso desenvolve um papel fundamental no que tange

    questo do ser em seu sentido ontolgico. Ela no , como dissemos anteriormente, um

    processo ou funo de carter epistemolgico, sem dvida muito mais, um momento

    primordial do existir, um compreender ontolgico, uma constituio ontolgica fundamental

    caracterizada pela abertura de uma possibilidade interna de compreenso do ser, por isso

    mesmo, denominada de pr-compreenso.

    A abertura prvia da perspectiva, em que acontece a liberao dos entes intramundanos que vm ao encontro, nada mais do que o compreender de mundo com que a presena [Dasein], enquanto ente, j est sempre em relao.63

    61 HEIDEGGER, 2006, p. 105. 62 Ibid., p. 421. 63 Ibid., p. 136.

  • 31

    Antes que Dasein teorize ou exponha no discurso o mundo, ele j possui uma

    compreenso de si, dos utenslios com que lida, como j vimos, um como hermenutico,

    uma estrutura mais originria que o como apofntico.

    Essa estrutura originria representa para Heidegger a arma com a qual pretende atacar

    a fortaleza, to solidamente edificada ao longo do tempo, da metafsica tradicional, que se

    expressa a partir desse refgio do qual se defende e no qual durante muito tempo se abrigou: o

    senso comum.

    Poderemos dizer que Heidegger pretende romper o crculo da certeza. Isso significa romper o crculo no qual se movem as teorias da verdade, o crculo da adequao, em que uma certa ligao afirmada e no se problematizam as condies de possibilidade desta relao.64

    O que o senso comum assegura, atravs desse refgio naquilo que no originrio e

    sim derivado, um estreitamento perspectivo que resulta mais uma vez no problema da

    relao sujeito-objeto. Toda essa fuga em busca de um porto seguro, de um refgio, pode ser

    traduzida e expressa pelo processo de afastamento do mundo que vai desaguar nos conceitos

    de mundo exterior e mundo interior. No entanto, inicialmente, Heidegger est interessado em

    saber como que o fenmeno unitrio ser-no-mundo esquecido.

    O que se deve no provar que e como um mundo exterior simplesmente dado, e sim demonstrar por que a presena [Dasein], enquanto ser-no-mundo, possui a tendncia de primeiro sepultar epistemologicamente o mundo exterior em um nada negativo para ento permitir que ele ressuscite mediante provas. A razo disso reside na decadncia da presena e no deslocamento a motivado da compreenso primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado. Se, nessa orientao ontolgica, o modo de colocar a questo for crtico, encontra ento um mero interior enquanto o nico ser simplesmente dado certo e seguro. Aps a degradao do fenmeno originrio do ser-no-mundo, desdobra-se, com base no que resta, ou seja, no sujeito isolado, a correlao com o mundo.65

    O que se percebe o estabelecimento da tradicional relao de um sujeito que

    caracteriza-se como polo interior, e o mundo enquanto uma exterioridade em relao quele.

    Essa compreenso, que distorce e encobre a originariedade de ser-no-mundo, refere-se ao

    homem como um eu pr-fixado que se relaciona de forma cotidiana com o mundo. A

    diluio de ser-no-mundo, portanto, se d atravs do mergulho na cotidianidade. Nela o

    64 STEIN, 2006, p. 124. 65 HEIDEGGER, 2006, p. 275.

  • 32

    Dasein, como ser-no-mundo, perde-se no oceano ntico das proposies e enunciados. No

    entanto, o que o seduz de forma to arrebatadora a ponto de esquecer-se daquilo que lhe

    mais original? Que vantagem esse estado apresenta? De incio, a prpria instrumentalidade do

    enunciado enquanto algo entificado nos d a comodidade de se poder manuse-los inclusive

    de forma demonstrativa. Assim, segundo as prprias afirmaes de Heidegger:

    A vantagem do enunciado consiste nesse nivelamento que transforma o como originrio da interpretao, guiada pela circunviso, no como de uma determinao do que simplesmente dado. Somente assim o enunciado adquire a possibilidade de pura visualizao demonstrativa. Dessa maneira, o enunciado j no pode negar a sua provenincia ontolgica de uma interpretao compreensiva. Chamamos de como hermenutico-existencial o como originrio da interpretao que compreende numa circunviso e(rmhnei/a), em contraste ao como apofntico do enunciado.66

    Todo esse nivelamento em si mesmo constitutivo dessa compreenso originria uma

    vez que, segundo Heidegger, esse como apofntico do enunciado proveniente daquela

    interpretao compreensiva o como hermenutico-existencial. No entanto, apesar dessa

    provenincia representar um estreitamento da perspectiva originria e estabelecer um vnculo

    derivado com aquilo que mais adiante vai se configurar como a relao sujeito-objeto, como

    dissemos, o homem, enquanto um eu, passaria a cotidianamente relacionar-se com mundo.

    Todavia, preciso pontuarmos que tal cotidianidade no representa um fechamento absoluto

    para aquilo que lhe originrio. E justamente na analtica existencial que se desenvolve no

    mbito da cotidianidade ou medianidade, que Heidegger vai, como ponto de partida,

    encaminhar a questo do ser fundando uma ontologia fundamental na qual se abre um novo

    horizonte de originariedade que se revela como condio de possibilidade de tudo aquilo que

    ntico, inclusive a prpria enunciao de algo.

    Quando Heidegger substitui as categorias pelos existenciais, mostra como essa atividade de predicar, de pronunciar algo sobre algo, exige um retorno a uma dimenso mais radical, anterior, que justamente aquilo que condio de possibilidade de se poder pronunciar algo sobre algo.67

    Este lugar originrio tambm o lugar da verdade. Dessa forma, pensando-se o ser do

    ente como transcendncia imanente e, juntando-se a isso o fato de apenas atravs da

    66 HEIDEGGER, 2009, p. 220. 67 STEIN, 2006, p. 139.

  • 33

    fenomenologia sermos capazes de fazer ontologia que se pode afirmar que enquanto verdade

    fenomenolgica, toda verdade (em sentido original) transcendental.

    [...] toda verdade fenomenolgica verdade transcendental, [...] Ser e Tempo no um conjunto de proposies de ordem emprica ou de ordem puramente lgica. O que Heidegger pretende mostrar a que o mtodo fenomenolgico com que trabalha tem profundo parentesco com o mtodo transcendental, mas que, no entanto, h uma diferena entre o mtodo fenomenolgico e o mtodo transcendental, no sentido de que h uma inteno explcita, em todo Ser e Tempo, de fazer com que todos os enunciados emanados atravs do mtodo fenomenolgico no sejam enunciados simplesmente referidos subjetividade, mas sejam enunciados referidos a uma espcie de substituto da subjetividade que Heidegger denomina o Dasein, com a sua condio de ser-no-mundo. [...]. Percebe-se imediatamente uma transcendentalidade sem sujeito, no sentido clssico das filosofias da representao e da conscincia. A verdade fenomenolgica, portanto, uma verdade transcendental, mas no uma verdade transcendental assim como ela aparece na Idade Mdia e, sobretudo, como se faz ver na Filosofia clssica alem, especialmente em Kant.68

    Nesse sentido que se estrutura uma relao que absorve tanto esse novo conceito

    de verdade em sua originariedade como o entendimento de que conhecer ou o conhecimento

    apenas se estabelece em funo dela. Ou seja, conhecer e ser esto relacionados de forma

    derivada, uma vez que, desde sempre estamos j na verdade. Nesse contexto, a pr-

    compreenso caracteriza-se como o existencial que possibilita essa mesma relao. Assim,

    vejamos o que nos ensina Morujo, quando a este fenmeno se refere:

    Se a verdade o lugar da nossa residncia, se o nosso destino estarmos nela, ou para a aceitarmos ou para a recusarmos, porque a verdade no pode ser definida como adequao de um enunciado a um estado-de-coisas. Esta a concepo ntica da verdade, porque relaciona dois entes de natureza diferente, um dos quais, o enunciado, procura conformar-se com as coisas, ou seja, referir-se a elas para dizer o que elas so, tal como elas so.69

    Dessa forma, que, poca da publicao de Ser e Tempo (1927), Heidegger nos

    apresenta uma nova perspectiva, essencialmente distinta da perspectiva que se fundamentava

    numa ciso ou ruptura entre sujeito e objeto (herana da modernidade). Essa mesma

    perspectiva, de carter eminentemente epistemolgico e superada por Heidegger ao recolocar

    a questo em bases ontolgicas, pode ser expressa de maneira sinttica na idia de que o ser

    68 STEIN, 2006, p. 154-155, citando Heidegger. 69 MORUJO, 2000, p. 139-140.

  • 34

    entendido no como fundamento e sim como horizonte. E nesse horizonte que o conhecer se

    desenvolve.

  • 35

    3 Ser e Tempo e a verdade (a)lh/qeia)

    Nesta investigao, durante todo o nosso percurso inicial, fomos muitas vezes levados

    a reconhecer que Dasein, essencialmente existncia (em sentido existencial)70, est

    constitutivamente relacionado a uma condio ou disposio primordial (ou originria) de ser.

    Nosso objetivo nessa parte inicial dessa seo o de investigar, de forma preliminar, a

    possibilidade dessa disposio, como primordialidade, tambm se prestar ao esclarecimento

    da questo relacionada ao binmio verdadeser. No toa que mais uma vez a ela

    disposio primordial retornamos: [...] como dizia Plato, podemos reconhecer o

    verdadeiro quando o encontramos, porque de alguma maneira j o conhecemos.71

    A nossa questo agora se volta para aquele mbito que representa a premissa bsica de

    nossas investigaes: a relao entre ser e verdade. Mas para que possamos, de maneira

    segura, dar o primeiro passo em direo ao estabelecimento da natureza dessa mesma relao,

    necessrio que busquemos um ponto de partida que nos coloque efetivamente no bojo da

    questo. Para tanto, mais uma vez, vamos trilhar este caminho atravs das palavras de

    Heidegger. Nelas ele nos informa das trs teses tradicionalmente caracterizadoras da essncia

    da verdade.

    Trs teses caracterizam a apreenso tradicional da essncia da verdade e a opinio gerada em torno de sua primeira definio: 1. O lugar da verdade o enunciado (o juzo). 2. A essncia da verdade reside na concordncia entre o juzo e seu objeto. 3. Aristteles, o pai da lgica, no s indicou o juzo como o lugar originrio da verdade, como tambm colocou em voga a definio da verdade como concordncia.72

    A discordncia de Heidegger acerca dessas teses recai diretamente sobre a idia de

    verdade como concordncia e para question-la procura recuperar etimologicamente o sentido

    expresso atravs da palavra grega a)lh/qeia.

    A idia de concordncia no , de forma alguma, a idia primria no conceito de a)lh/qeia. O ser verdadeiro do lo/goj enquanto a)lh/qeu/ein diz: retirar de seu velamento o ente sobre que se fala no legein como a)pofai/nesqai e deixar e fazer ver o ente como algo

    70 O conceito existencial de existncia significa o ser si mesmo do homem medida que est relacionado no

    com o si mesmo individual, mas com o ser e a relao com o ser. (INWOOD, 2002, p. 59). 71 VATTIMO, 1996, p. 34. 72 HEIDEGGER, 2006, p. 284.

  • 36

    desvelado a)lhqe/j), em suma, des-cobrir. Do mesmo modo, o ser falso yeu/desqai diz enganar no sentido de en-cobrir: colocar uma coisa na frente de outra ( maneira de deixar e fazer ver) e assim prop-la como algo que ela no .73

    J a partir desse ponto fica mais uma vez evidente que a essncia da verdade entendida

    como uma relao entre coisas j dadas no se sustenta sob o ponto de vista ontolgico

    fundamental. Atravs do regresso etimolgico ao sentido original da palavra grega

    a)lh/qeia, possvel construir ou reconstruir uma concepo de verdade distinta da

    tradicional. Ser verdadeiro j no teria mais o sentido de uma concordncia, de uma

    propriedade, mas sim, de um estado.

    O enunciado verdadeiro significa: ele descobre o ente em si mesmo. Ele enuncia, indica, deixa ver (a)poqansij) o ente em seu ser e estar descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) do enunciado deve ser entendido no sentido de ser-descobridor. A verdade no possui, portanto, a estrutura de uma concordncia entre conhecimento e objeto, no sentido de uma adequao entre um ente (sujeito) e um outro ente (objeto). Enquanto ser-descobridor, o ser-verdadeiro s , pois, ontologicamente possvel com base no ser-no-mundo. Esse fenmeno, em que reconhecemos uma constituio fundamental da presena, constitui o fundamento do fenmeno originrio da verdade.74

    Diante dessa confirmao que Heidegger, mais uma vez retorna quela constatao

    originria o ente que possui o privilgio ontolgico enquanto compreende seu prprio

    ser e a partir dessa abertura, tornada possvel por essa mesma compreenso, que de

    maneira derivada pode dar-se qualquer outro tipo de relao.

    Heidegger parte da concepo, comum na tradio metafsica, da verdade como conformidade da proposio com a coisa. [...] esta conformidade s possvel se o prprio ente for j acessvel, s se estiver aberto um mbito dentro do qual o estar-a [Dasein] pode relacionar-se com o ente.75

    Todo esse entendimento, acerca da primordialidade de algo que fundamente a

    possibilidade de haver o estabelecimento de uma relao do tipo sujeito-objeto, pode ser

    encarado como uma mudana de perfil daquilo que chamamos verdade. Tradicionalmente, o

    conceito de verdade est associado caracterstica de a mesma se comportar como uma

    73 HEIDEGGER, 2006, p. 72-73. 74 Ibid., p. 289. 75 VATTIMO, 1996, p. 78.

  • 37

    propriedade do juzo. Tudo isso nos leva a uma srie de interrogaes que, de forma

    metdica, podem nos orientar e ajudar no entendimento da proposta heideggeriana referente

    verdade. Assim:

    Se verdade encontra-se, justificadamente, num nexo originrio com o ser, ento o fenmeno da verdade remete ao mbito da problemtica ontolgica fundamental. Desse modo, j no se deveria encontrar esse fenmeno no seio da anlise fundamental preparatria, na analtica da presena? Que nexo ntico-ontolgico a verdade estabelece com a presena e com sua determinao ntica, que chamamos de compreenso de ser? Ser que tomando isso por base poder-se-ia mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo por que ser correlaciona-se necessariamente com verdade e vice-versa?76

    Eis de forma lapidar a questo acerca da concepo de verdade em Heidegger. Desde

    j, no entanto, como bem nos informa o prprio Heidegger: A definio proposta da

    verdade no um repdio tradio mas uma apropriao originria [...].77 Essa mesma

    tradio que, tendo privilegiado um modo de ser que se entende como presente constante,

    cunhou para a metafsica ocidental a relao entre ser e verdade. Verdade, para Heidegger,

    assume um outro sentido, aquele que a entende como um modo de ser descobridor. Ser esta

    uma nova verdade, ou ser um antigo sentido de verdade agora resgatado?

    Ser e verdade [...] significam o mesmo; o ser do ente a sua descobertura [ou seu desvelamento], a sua verdade: ens et verum convertuntur. Na associao metafsica de ser e verdade, o ser pensado como presencialidade contnua, a verdade igualmente como o que presente continuamente para o conhecimento ou, a partir do conhecer, como adequao ao que continuamente presente.78

    , portanto, para alm dessa perspectiva tradicional de verdade que temos de lanar

    nosso olhar. Uma concepo de verdade que entende a mesma como uma propriedade no

    suficiente para do ponto de vista ontolgico esgotar o sentido da questo primordial a

    questo do sentido do ser e sua relao com a questo correlata da verdade. necessrio

    ento que a verdade assuma a sua condio e primazia ontolgica. necessrio que atravs de

    um modo prprio de ser, o de ser Dasein descobridor, possa se estabelecer o estatuto

    ontolgico da verdade.

    76 HEIDEGGER, 2006, p. 283. 77 Ibid., p. 290. 78 PGGELER, 2001, p. 90.

  • 38

    [...] somente com a abertura da presena [Dasein] que se alcana o fenmeno mais originrio da verdade. [...]. Sendo essencialmente a sua abertura, abrindo e descobrindo o que se abre, a presena [Dasein] essencialmente verdadeira.79

    Essa idia de que Dasein essencialmente verdade, pe de imediato a originariedade

    da relao ser-verdade, ou seja, em seu ser, Dasein sempre verdadeiro no sentido de sempre

    estar remetido para a verdade. A idia bsica a de que ser e verdade se encontram nessa

    abertura que compreende ser e que assim podemos afirmar a co-originariedade da relao ser-

    verdade. a partir dessa originariedade que se entende a possibilidade de se poder realizar

    enunciaes.

    Toda essa nova perspectiva que se abre com a idia de um lugar originrio para a

    verdade, e em conseqncia disso tambm para o ser, nos faz indagar: onde que Heidegger

    pretende chegar? Tal pretenso, nas palavras de Stein, indica que:

    [...] o que Heidegger pretende realmente uma grande subverso da tradio filosfica, recolocando a questo da verdade no mais sub specie aeternitatis, numa espcie de horizonte da intemporalidade, numa espcie de horizonte de necessidade lgica ou de formas puras ou de idealidade. Heidegger quer abordar a questo da verdade no mbito das condies existenciais de possibilidade.80

    Voltando-se novamente s nossas indagaes, nosso prximo passo ser o de

    entendermos a seguinte questo: Se para a tradio o enunciado o lugar da verdade, e

    conseqentemente da falsidade, como que essa nova perspectiva vai tratar, no a questo da

    verdade, mas a questo da no-verdade? O que significa a no-verdade? Porm, antes de

    respondermos a esse questionamento ser importante entendermos, de forma embrionria, a

    relao que h entre verdadeiro/falso e descobrir/encobrir. Na prpria lio de Heidegger:

    O enunciado no o lugar primrio da verdade. Ao contrrio, o enunciado, enquanto modo de apropriao da descoberta e enquanto modo de ser-no-mundo, funda-se no descobrimento ou na abertura da presena. A verdade mais originria o lugar do enunciado e a condio ontolgica de possibilidade para que o enunciado possa ser verdadeiro ou falso (possa ser descobridor ou encobridor). Compreendida no sentido mais originrio, a verdade pertence constituio fundamental da presena [Dasein].81

    79 HEIDEGGER, 2006, p. 291. 80 STEIN, 2006, p. 20. 81 Ibid., p. 297.

  • 39

    Nesse sentido, o enunciado funcionaria, numa viso reducionista, como a substncia

    primeira aristotlica. S ele capaz de suportar os contrrios (verdadeiro/falso). O enunciado,

    usando-se a linguagem heideggeriana, transforma-se em um ente, uma objetividade. Como

    nos ensina Heidegger: [...] o enunciado pronunciado transforma-se em um ser simplesmente

    dado, o ente discutido.82

    Voltando-nos agora questo da no-verdade, podemos nos aprofundar um pouco

    mais. Que fenmeno esse?

    Do ponto de vista ontolgico-existencial, o sentido completo da sentena: a presena e est na verdade tambm inclui, de modo igualmente originrio, que a presena e est na no-verdade. Todavia, somente na medida em que a presena se abre que ela tambm se fecha; e somente na medida em que, com a presena, j sempre se descobriram os entes intramundanos que eles, enquanto encontro possvel dentro do mundo, j se velaram (encobriram) e distorceram.83

    A estranheza causada por essa nova perspectiva acerca do problema da verdade

    aumenta ainda mais quando associa-se verdade a no-verdade. Como possvel

    entendermos isso? O caminho para tal entendimento aquele j indicado anteriormente, qual

    seja: a anlise etimolgica da palavra que nos deu a origem para o nosso conceito de verdade -

    a)lh/qeia. Essa estranheza compartilhada por Vattimo quando se questiona a respeito da

    relao verdade/no-verdade:

    Como pode a no-verdade pertencer essncia da verdade? Se concebemos a verdade como abertura originria e desvelamento, a no-verdade conceber-se-, por conseguinte, como obscuridade e ocultamento. Um testemunho do vnculo subjacente entre verdade e no-verdade justamente a prpria palavra grega a)-lhqeia, que est constituda pelo a privativo, indicando assim que a manifestao da verdade como desvelamento pressupe um esconder-se, um ocultar-se originrio, de que procede a verdade.84

    Esse testemunho, ao qual nos remete a palavra grega a)-lhqeia, representa um

    pressuposto que se expressa atravs da hiptese de que na antiguidade grega haveria uma

    interpretao acerca dessa palavra que poderia ser encarada como aquilo que permaneceu

    oculto no pensamento metafsico tradicional: a verdade do ser, como verdade originria, seria 82 HEIDEGGER, 2006, p. 295-296. 83 Ibid., p. 293. 84 VATTIMO, 1996, p. 82.

  • 40

    des-ocultamento. bem verdade, que essa hiptese desenvolvida por Heidegger levanta mais

    uma vez a questo da no-verdade: Estaria ela relacionada com a falsidade? Parece-nos que

    no. Sua aproximao se d atravs do ocultamento. Falsidade surge to somente aps a

    enunciao, aps a entificao. O oculto nesse sentido estaria associado ao que o ente no ,

    ou aquilo que no pde ser enunciado. Este ocultamento da totalidade do ente, precisamente

    enquanto os entes individuais se manifestam e se revelam, a no-verdade, que

    essencialmente conexa com a verdade.85

    Portanto, o ente mostra-se atravs de seu des-ocultamento. Mas da mesma forma ele se

    mantm em seu ocultamento, ou seja, Dasein em sua abertura est primordialmente na

    verdade e na no-verdade. Como dissemos, fazendo-se ver fenomenologicamente falando

    que se d o verdadeiro e o no-verdadeiro. Logo, a verdade seria no um acordo ou uma

    adequao, mas, como a palavra grega a)lh/qeia anuncia, des-velamento, des-

    ocultamento. O verdadeiro o que, tendo a possibilidade de se mostrar, se mostra, se expe, e

    em conseqncia pode ser enunciado. Sem dvida que h um sentido do

    Ser, [...], que nos desorienta, na medida em que o Ser nunca se nos revela totalmente.86 Todo

    esse cenrio est fundamentalmente estruturado na relao que se estabelece entre abertura de

    Dasein e verdade. Na precisa lio de Peraita,

    [...] a abertura de Dasein constitui um elemento fundamental de Ser e tempo, que facilita a compreenso daquilo que Heidegger entende que seja o fenmeno originrio da verdade. H uma relao fundamental entre abertura de Dasein e verdade: o Dasein essencialmente verdadeiro, no em sentido epistemolgico de que conhea a verdade, seno em sentido ontolgico, posto que a abertura constitutiva da existncia humana condio de toda verdade, abre a possibilidade de que as coisas e ela mesma apaream sendo o que so, sejam descobertas (uma vez mais, se mostra aqui a concepo da verdade como a)lh/qeia).87

    Essa abertura constitutiva, apesar de pr-compreender ser, em nenhum momento

    permite que o mesmo seja completamente des-ocultado. Nesse sentido, fazendo-se uma

    relao entre ocultamento e no-verdade, a no-verdade aquilo mesmo que impede que o