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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA ESPACIALIZAÇÃO E TERRITORIALIZAÇÃO DA LUTA PELA TERRA: A FORMAÇÃO DO MST - MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA NO ESTADO DE SÃO PAULO BERNARDO MANÇANO FERNANDES

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

    ESPACIALIZAO E TERRITORIALIZAO DA LUTA PELA TERRA: A FORMAO DO MST - MOVIMENTO DOS TRABALHADORES

    RURAIS SEM TERRA NO ESTADO DE SO PAULO

    BERNARDO MANANO FERNANDES

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

    ESPACIALIZAO E TERRITORIALIZAO DA LUTA PELA TERRA: A FORMAO DO MST - MOVIMENTO DOS TRABALHADORES

    RURAIS SEM TERRA NO ESTADO DE SO PAULO

    BERNARDO MANANO FERNANDES

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Geografia da F. F. L. C. H. da Universidade de So Paulo, sob a orientao do Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira.

    So Paulo, maro de 1994.

  • Para Irineo Manano (in memorian) e para Leonor Fernandes Manano, camponeses sem terra que migraram para a cidade na esperana de uma vida melhor. Para Ana, minha companheira de vida e de esperana.

  • AGRADECIMENTOS Para a realizao desta dissertao contamos com a valiosa contribuio de muitos companheiros que, de diferentes formas, participaram dessa caminhada. Aos mestres: Ariovaldo Umbelino de Oliveira, por me ensinar os caminhos do aprender, da pesquisa e da construo do conhecimento. Pelo apoio e disponibilidade constantes com que contei durante esses oito anos de trabalho. Regina Sader, pelas experincias vividas na sala de aula e na Pr-Amaznia Maranhense. Pelas contribuies durante o exame de qualificao. Lilian Coltrinari, por ter me iniciado na pesquisa. Pelo carinho e pelas cobranas que me fizeram pesquisador. Arlete Moyss Rodrigues, com quem, durante dois anos na Diretoria Executiva da AGB, aprendi lies de vida e de poltica. Companheira de luta na cidade e no campo que, tambm, muito contribuu durante o exame de qualificao. Aos trabalhadores rurais Sem Terra: Laudenor, Segura, Cida, Joo Savedra, Luiz Sinzio, Dona Tereza, Joo Calixto, Joo Loureno, Ulisses, Jorge, Lafaiete dos assentamentos de Sumar I e II. Lourival e Bernardo do assentamento de Porto Feliz. Ben, Adelino, Joo Pereira, Z Carlinho e Cida do assentamento Pe. Josimo Tavares dos Santos. Geraldo e Genivaldo do Projeto Liberdade. Delwek do assentamento Pirituba - rea I. Serrinha da rea III. Edilson da rea IV e a Dona Ilda e o Hlio da rea V. Man Carrasco, Angelito e Valentin do Assentamento Santa Clara. Deolinda, Z Rainha, Valter, Bil, Mineirinho, Zelitro, Venzel, Mrcio, Cleuza e Neuza do acampamento Unio da Vitria. Joo Pereira, Daniel e Z Alencar do ex - acampamento Joo Batista da Silva. Miguel do acampamento da fazenda Jangada. Vilma e Toninho Werneck do assentamento da fazenda Ipanema.

  • Pela pacincia e carinho com que me hospedaram em suas casas ou em seus barracos e por concederam as entrevistas. Pelas suas memrias vivas que consultei vrias vezes durante a realizao desse trabalho. Quero agradecer tambm pelos documentos cedidos. Aos companheiros da Secretaria Estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em So Paulo: Estevo e Deise, pelas entrevistas e pelos documentos cedidos e enviados. Por ter me confiado este material de grande importncia para a execuo desse trabalho. Angelo Perugini, pelas entrevistas e pela alegria. Ao Casa Grande, Jnio e Ademir, pelas informaes a qualquer momento. Aos companheiros da Secretaria Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Joo Pedro, pela entrevista sobre a histria do MST, pelos textos enviados e tambm claro pelas piadas. Tunico e Neuri, pelas contribuies que trocamos, principalmente os vdeos e as fotos. Aos companheiros do Coletivo Nacional de Educao e do DER: Edgar e Roseli com quem tenho trocado experincias nos caminhos do saber, nos encontros, nas escolas de assentamentos e de acampamentos. Aos companheiros do Coletivo Estadual de Educao: Vilma, Cida, Dirceu, Genivaldo, Gilberto, Zelitro, que, durante a realizao de seus trabalhos, tiveram tempo para responder a todas as perguntas e, com muita pacincia, estiveram sempre disposio. Aos companheiros da CPT: Padre Naves e Frei Pedro pelas lies de vida e de esperana durante essa caminhada. E por falar em caminhada, agradeo tambm o Pe. Z Alves pelo nosso estradar. Ao Pe. Joo pela ateno durante as entrevistas demoradas. Aos colegas da Faculdade de Cincias e Tecnologia: Raul, juntos na mesma caminhada, estudando e debatendo Lefebvre e Raffestin. Thomaz, companheiro de pesquisa, pelas discusses que nunca terminamos.

  • Magaldi, pelo apoio, carinho e confiana. Eliseu, Carminha, Jairo, Mrcio, Margareth, Armando, Ftima, Neide, Joo Lima, Messias, Claudemira, Chico e Miguel que, de diversas formas, me apoiaram durante o perodo de elaborao dessa dissertao. Denise, Lcia, Ana e Dirce, pelo apoio e o carinho que foram fundamentais no perodo de gestao deste trabalho. Mrcia, Lindomar, Rose e Lucilene que no processo de realizao de suas monografias, tambm contriburam para a realizao deste trabalho. Aos funcionrios da biblioteca da FCT, que no mediram esforos para localizar e conseguir muitos livros e teses utilizados neste trabalho. Ao pessoal do Xrox que sempre esteve de prontido para me atender. Aos companheiros pesquisadores e batalhadores dessa vida: Sonia Bergamasco e Terezinha DAquino, pelos dados da Pesquisa "Anlise e Avaliao dos Projetos de Reforma Agrria e Assentamentos no Estado de So Paulo" e tambm pelas excelentes indicaes sobre a bibliografia referente pesquisa. Rene Parren da Parquia Nossa Senhora das Graas em Andradina, memria viva da histria da luta pela terra no estado de So Paulo, pela pacincia em me atender em todos os momentos que eu precisei. Agradeo tambm pelos documentos que me foram enviados. Lurdes Azedo, pelas informaes e pelo dados sobre a luta pela terra no Pontal. Meire Orlandini, pelos processos e outros documentos que foram de grande importncia para compreendermos o lado da "justia". Glria Miller, pela disponibilidade e ateno com que leu e releu esse trabalho. Maria Antonia, pela companhia na caminhada de construo de nosso prprio espao. Manuel Egdio, pela ateno e o apoio que me ajudaram a "fechar a porteira", dando a forma final para essa dissertao. E por fim, CAPES, pelo auxlio financeiro via bolsa de estudos, sem a qual a realizao dessa pesquisa no seria possvel.

  • NDICE INTRODUO................................................................................................................... 12

    Os conceitos de espao social e lugar social.................................................................... 12 O ponto de partida e de retorno........................................................................................ 19

    1 - AS TRANSFORMAES RECENTES NA AGRICULTURA E A LUTA PELA REFORMA AGRRIA....................................................................................................... 24

    1.1 - O desenvolvimento do capitalismo na agricultura. ............................................... 24 1.2 - O regime militar e sua poltica de desenvolvimento agropecurio.......................... 26 1.3 - O aumento da intensidade do carter concentrador da terra.................................... 32 1.4 - As transformaes recentes na agricultura paulista................................................. 36 1.5 - A luta pela terra, pela reforma agrria e para construir a democracia. .................... 46

    2 - A GNESE DO MST NAS NOVAS FORMAS DE LUTA PELA TERRA. ............... 57

    2.1 - As novas formas de luta no campo e na cidade. ...................................................... 57 2.2 - CEBs: lugar social e espao de socializao poltica. ............................................. 61 2.3 - A gnese do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra................... 65

    3 - A FORMAO DO MST NO ESTADO DE SO PAULO (1979/80 - 1985/86). ...... 77

    3.1. - Os caminhos da luta pela terra. ............................................................................... 77 3.2 - Os posseiros da Primavera. ...................................................................................... 79 3.3 - O Movimento dos Sem Terra do Oeste do Estado de So Paulo............................. 85 3.4 - Tem grilo no Pontal ................................................................................................. 90 3.5 - Pirituba: a primeira ocupao. ............................................................................... 101 3.6 - O Movimento dos Sem Terra de Sumar............................................................... 103 3.7 - Na caminhada da luta pela terra: as novas formas de aprendizado. ...................... 114

    4 - A FORMAO DO MST NO ESTADO DE SO PAULO (1985/86 - 1992/93). .... 120

    4.1 - A espacializao da luta pela terra na territorializao do MST. .......................... 120 4.2 - Promisso: da terra prometida terra definitiva.................................................... 122 4.3 - A luta pela fazenda Timbor: Grupo V - Projeto Liberdade. ................................ 128 4.4 - De volta Pirituba: o acampamento Olvio Albani. .............................................. 133 4.5 - A conquista da fazenda Ipanema. .......................................................................... 136 4.6 - O MST no Pontal do Paranapanema...................................................................... 137 4.7 - Getulina: o acampamento fazenda Jangada. .......................................................... 157

    5 - ESPACIALIZAO E TERRITORIALIZAO DA LUTA PELA TERRA. ......... 168

    5.1 - A multidimensionalidade do espao de socializao poltica................................ 168 5.2 - O espao comunicativo.......................................................................................... 170 5.3 - O espao interativo ................................................................................................ 173 5.4 - O espao de luta e resistncia. ............................................................................... 178 5.5 - A territorializao da luta pela terra e da luta pela reforma agrria ...................... 181

    BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 194

  • NDICE DE TABELAS Tabela 1 - Os maiores latifundirios do Brasil ......... 35Tabela 2 - Assentamentos rurais realizados no Estado no Estado de So Paulo

    (1980-1985) .....................................................................................

    41Tabela 3 - Regio do Pontal do Paranapanema reas de terras devolutas e a

    discriminar ...........................................................................................

    127Tabela 4 - Brasil Assentamentos de reforma agrria (1995) ............................. 183Tabela 5 - Estado de So Paulo Assentamentos reforma agrria (1980-

    1993).....................................................................................................

    184Tabela 6 - Estado de So Paulo Reassentamentos rurais (1983-1992) ............. 185Tabela 7 - Estado de So Paulo Acampamento do Trabalhadores Rurais Sem

    Terra ....................................................................................................

    186

    NDICE DE FOTOS Foto 1 - Local onde foi montado o acampamento da gleba Macali - Ronda

    Alta/RS..................................................................................................... 67

    Foto 2 - O grupo IV na via Anhanguera - incio da caminhada............................. 125

    Foto 3 - Assentamento Pe. Josimo - a primeira colheita de arroz.......................... 127

    Foto 4 - Assentamento Pe. Josimo - inaugurao da COPAJOTA........................ 127

    Foto 5 - Segunda Ocupao da fazenda So Bento............................................... 144

    Foto 6 - Reocupao da fazenda So Bento (barraco modular) ............................ 152

    Foto 7 - Reocupao da fazenda So Bento (ao fundo o assentamento Santa Clara)........................................................................................................ 152

    Foto 8 - Reocupao da fazenda So Bendo (trabalho de mutiro)....................... 154

    Foto 9 - Reocupao da fazenda So Bento (plantar e defender a terra)............... 155

    Foto 10 - Reocupao da fazenda Cana................................................................. 156

    Foto 11 - Ocupao da fazenda Jangada (a fronteira entre o espao de luta e resistncia e a base militar)...................................................................... 161

    Foto 12 - Ocupao da fazenda Jangada (incio do enfretamento).......................... 162

    Foto 13 - Ocupao da fazenda Jangada (trabalhador devolvendo a bomba de gs lacrimognio)............................................................................................ 162

    Foto 14 - Despejo das 2.500 famlias... 163

  • NDICE DE FIGURAS Figura 1 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na

    luta pela terra (1980) ...........................................................................

    186

    Figura 2 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1983) ........................................................................... 187

    Figura 3 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1984) ........................................................................... 187

    Figura 4 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1985) ........................................................................... 188

    Figura 5 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1986) ........................................................................... 188

    Figura 6 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1987) ........................................................................... 189

    Figura 7 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1988) ........................................................................... 189

    Figura 8 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1989) ........................................................................... 190

    Figura 9 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1990) ........................................................................... 190

    Figura 10 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1991) ........................................................................... 191

    Figura 11 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1992) ........................................................................... 191

    Figura 12 - Estado de So Paulo Territorializao dos movimentos sociais na luta pela terra (1993) ........................................................................... 192

    Figura 13 - Acampamentos no Estado de So Paulo Fevereiro de 1994 ............. 192

  • NDICE DE GRFICOS Grfico 1 - Brasil Aumento percentual do nmero de estabelecimentos e da

    rea ocupada (1940-1970) .................................................................. 33Grfico 2 - Brasil Aumento percentual do nmero de estabelecimentos e da

    rea ocupada (1970-1985) .................................................................. 33Grfico 3 - Estado de So Paulo - Aumento percentual do nmero de

    estabelecimentos e da rea ocupada (1970-1985) .............................. 37Grfico 4 - Estado de So Paulo Pessoal ocupado nos estabelecimentos

    agrcolas (1970-1985) ......................................................................... 39Grfico 5 - Estado de So Paulo Pessoal ocupado nos estabelecimentos com

    menos de 100 ha (1970-1985) ............................................................ 39Grfico 6 - Estado de So Paulo Diferena percentual da condio do

    produtor segundo a propriedade das terras (1970-1985) .................... 40Grfico 7 - Estado de So Paulo Nmero de estabelecimentos segundo a

    condio do produtor posseiro (1970-1985) ....................................... 42Grfico 8 - Estado de So Paulo Fluxos migratrios por situao domiciliar.... 44Grfico 9 - Estado de So Paulo Crescimento populacional (1940-1991) ......... 44Grfico 10 - Estado de So Paulo Componentes do crescimento populacional

    (1940-1991) ........................................................................................ 45Grfico 11 - Estado de So Paulo Distribuio temporal do nmero de projetos

    de assentamentos implantados (1980-1995) ....................................... 185

  • SIGLAS UTILIZADAS NA DISSERTAO ABRA - Associao Brasileira de Reforma Agrria. ACISO - Ao Cvico Social. AGB - Associao dos Gegrafos Brasileiros. AGB.PP. - Associao dos Gegrafos Brasileiros - Seo Local Presidente Prudente. APEOESP - Associao dos Professores do Ensino Oficial do Estado de So Paulo. CAIC - Companhia Agrcola, Imobiliria e Colonizadora. CATI - Coordenadoria de Assistncia Tcnica Integral. CEBs - Comunidades Eclesiais de Base. CESP - Companhia Energtica de So Paulo. CODASP - Companhia de Desenvolvimento Agrcola do Estado de So Paulo. COE - Comando de Operaes Especiais. CNBB - Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil. CONTAG - Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. COPAJOTA - Cooperativa de Produo Agropecuria Pe. Josimo Tavares. CPT - Comisso Pastoral da Terra. CUT - Central nica dos Trabalhadores. DAF - Departamento de Assentamentos Fundirios. DIRA - Diviso Regional Agrcola. DRF - Departamento de Regularizao Fundiria. EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria. FCT - Faculdade de Cincias e Tecnologia - UNESP. Campus de Presidente Prudente. FEPASA - Ferrovia Paulista S/A. FETAESP - Federao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de So Paulo. FIBGE - Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. GEBAM - Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas. GERA - Grupo Especial da Reforma Agrria. GETAT - Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins. IAF - Instituto de Assuntos Fundirios. IBAD - Instituto Brasileiro de Aco Democrtica. IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrria. INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria. INDA - Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrrio. INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. ITESP - Instituto de Terras do Estado de So Paulo. IPES - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. LBA - Legio Brasileira de Assistncia. MARA - Ministrio da Agricultura e Reforma Agrria.

  • MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra. MASTES - Movimento dos Agricultores Sem Terra do Sudoeste do Paran. MASTRO - Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paran. MEAF - Ministrio Extraordinrio de Assuntos Fundirios. MIRAD - Ministrio da Reforma e do Desenvolvimento Agrrio. MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetizao. MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. PCB - Partido Comunista Brasileiro. PC do B - Partido Comunista do Brasil. PIN - Plano de Integrao Nacional. PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro. PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrria. PROCERA - Programa Especial de Crdito para a Reforma Agrria. PROTERRA - Programa de Redistribuio de Terras e de Estmulo Agricultura do Norte e Nordeste. PRRA - Plano Regional de Reforma Agrria. PT - Partido dos Trabalhadores. PTB - Partido Trabalhista Brasileiro. SAA - Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de So Paulo. SEADE - Fundao Sistema Estadual de Anlises de Dados. SEAF - Secretaria Executiva de Assuntos Fundirios. SJ - Secretaria da Justia e da Defesa da Cidadania - Estado de So Paulo. SPVA - Superintendncia do Plano de Valorizao Econmico da Amaznia. STF - Superior Tribunal Federal. STR - Sindicato dos Trabalhadores Rurais. SUPRA - Superintendncia de Poltica da Reforma Agrria. UDR - Unio Democrtica Ruralista. UNESP - Universidade Estadual Paulista. USP - Universidade de So Paulo.

  • 12

    INTRODUO

    Os conceitos de espao social e lugar social.

    "Social space implies a great diversity of knowledge".

    Henri Lefebvre (1974) 1991: 73

    O objetivo dessa introduo refletir sobre as noes e ou conceitos de

    espao social e lugar social no processo de construo das formas de organizao dos

    movimentos sociais. A importncia da reflexo sobre esses conceitos se coloca,

    principalmente, em funo do surgimento de inmeros movimentos sociais a partir de

    meados da dcada de 70, e da necessidade de reflexes tericas sobre suas prticas. No

    desenvolvimento do processo de construo de novas formas de organizao social,

    durante a represso executada pelos governos militares e conseqentemente em funo do

    avano das lutas populares, diversos cientistas sociais estudaram esses movimentos com o

    objetivo de compreender a emergncia desses novos sujeitos sociais. Diante desse processo

    as pesquisas avanaram at a (re)elaborao de vrias teorias sobre movimentos sociais1.

    Para compreender a emergncia dos novos movimentos sociais2

    fundamental considerar a existncia de uma nova realidade materializada pelas

    experincias construdas no cotidiano da vida desses sujeitos. esta forma de

    desenvolvimento do processo de construo e transformao da realidade, produzida pela

    materializao da existncia social, que entendemos como espao social.

    Para justificar essa afirmao de grande importncia analisar o conceito de

    espao social, refletindo sobre seus significados de acordo com as transformaes recentes.

    nesse processo de transformao que emergem novos campos de investigao, cujo

    quadro de referncias exige a constante anlise e elaborao terico-metodolgica. Desta

    forma, os trabalhos realizados a fim de contribuir para a compreenso dos diversos

    significados emergentes tm fundamentado as pesquisas em diferentes reas do

    conhecimento.

  • 13

    Para a reflexo sobre a noo de espao social, tomamos como referncia

    The Production of Space de Henri Lefebvre. Para este autor,

    [...] o espao social no um objeto entre outros objetos, no um produto entre outros produtos: antes, este concebe objetos produzidos e encerra suas inter-relaes na sua coexistncia e simultaneidade - sua ordem relativa e relativa desordem... A forma do espao social o encontro, a reunio, simultaneidade. Mas que reunio? Ou o que reunio? A resposta tudo o que est no espao, tudo o que produzido pela natureza ou pela sociedade, igualmente atravs de sua cooperao ou atravs de seus conflitos. Tudo: vida, existncia, coisas, objetos, trabalho, sinais e smbolos [...] O espao social per se imediatamente trabalho e produto - uma materializao da existncia social". (Lefebvre, (1974) 1991: 73, 101 e 102). (Traduo nossa).

    Da mesma forma tambm entendemos o espao social como realidade

    produzida pela materializao da existncia social atravs do trabalho. Para Lefebvre na

    forma do espao social que a sociedade e a natureza, em suas relaes de cooperao e de

    conflito, geram "a vida, a existncia, as coisas, os objetos, o trabalho, os sinais e os

    smbolos". O que explica o seu processo de desenvolvimento ininterrupto. Esta definio

    de espao social possui uma amplitude e complexidade prprias do processo em

    movimento. Contudo, ao analisarmos o processo em movimento, temos que,

    necessariamente, encontrar um ponto de partida. Esta uma tarefa difcil: compreender um

    processo em movimento. Para tanto, temos que dar conta das diferentes noes que nos

    permitam acompanhar o processo. Para realizar este trabalho indispensvel estudar

    as noes de espao social, lugar social e movimento social, nas suas interaes.

    Portanto, a direo do ponto de partida que, de certa forma, distingue os trabalhos

    dos cientistas que estudam os movimentos sociais - que so a vida do processo.

    procura de um ponto de partida, e de retorno, resolvemos optar pelo

    prprio processo. Um caminho para estudar um processo em movimento atravs de suas

    relaes. nas relaes que encontramos a gnese em contnua transformao da

    realidade, ou seja, tempo/espao imediatos.

    A partir dessas concepes, entendemos que o processo de

    produo/transformao do espao social realizado pelo movimento da sociedade que,

    por sua vez, acontece atravs das relaes sociais na interao sociedade/espao. Esta

    interao acontece atravs do trabalho. A produo do espao possui a dinmica do

    movimento da sociedade. Dessa forma, no espao social que esto reunidas todas as

    coisas e relaes para a sua produo/transformao. Neste sentido, o espao social

  • 14

    produzido pela sociedade, que nele se reproduz, nos diversos nveis de relaes sociais e,

    assim, se desenvolve atravs da poltica, da economia e da cultura, etc.

    Nesse contexto, o nosso interesse particular entender o processo de

    desenvolvimento das formas de organizao construdas por um movimento social, atravs

    de conflitos e de enfrentamentos realizados nos diversos nveis das relaes sociais. Para

    compreender melhor este processo, procuramos estudar neste trabalho as dimenses do

    espao social. Estas dimenses tm a sua origem no prprio desenvolvimento das aes

    organizadas por sujeitos sociais na construo, conquista e controle do seu prprio espao,

    como espao de socializao poltica3. Durante o processo, o espao social se concretiza

    em lugares sociais, construdos/conquistados na interao do movimento tempo/espao,

    onde so geradas as formas de organizao dos movimentos sociais, que se desenvolvem

    at as ocupaes reveladas pelos acampamentos realizados na luta pela terra. O movimento

    social deste estudo o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

    O espao social se concretiza geograficamente como lugar social no

    processo de construo da luta. O lugar social se revela como conquista das condies

    essenciais para o prprio movimento em transformao. O lugar social fundamental para

    a prpria reproduo do espao social que o produz, pois a que se desenvolvem as

    experincias que permitem conquistar o espao social e transform-lo. nesse processo

    que as lutas avanam e desenvolvem as formas de organizao social. De acordo com

    Silva, o lugar social "manifestao do espao social, que contm a conscincia social, a

    sociedade, o trabalho. O social produz o lugar social e produzido por este, atravs do

    trabalho social" (Silva, 1991: 30). (Grifo nosso).

    Os movimentos sociais, ao construrem a sua forma de organizao,

    produzem o seu prprio espao. Esse espao social produzido/construdo possui mltiplos

    significados que podem ser compreendidos pelo seu dimensionamento. O

    dimensionamento do espao social nas lutas populares produzido pelas prticas sociais,

    construdas na sua essncia: o movimento, em seu prprio tempo, ou seja, no tempo das

    experincias concretas - a prxis - durante o processo de luta e resistncia. Produzir o seu

    prprio espao significa necessariamente possuir um determinado controle sobre o seu

    tempo, pois o espao e o tempo so as formas fundamentais, as condies bsicas da

    existncia humana (Oliveira, 1982: 96-108). No capitalismo4, historicamente, o trabalho

    marcado pela concepo dominante de espao/tempo, assim o seu controle expressa tanto

  • 15

    domnio quanto resistncia (Spsito, 1992: 91). So, portanto, dimenses da construo do

    processo poltico-cultural de resistncia da luta popular, desenvolvidas no enfrentamento

    contra uma determinada concepo de "progresso" da sociedade que priva poltica,

    cultural, social e economicamente a maior parte dos trabalhadores. O estudo de suas

    dimenses de grande importncia para se compreender melhor o conceito de espao

    social nesse processo. Logo, movimento social, espao social e lugar social so noes

    interativas e fundamentais, que contribuem com a compreenso de parte das

    transformaes da realidade contempornea. exatamente neste ponto que se

    justifica a realizao de novos estudos para a reflexo sobre o espao social. Do nosso

    ponto de vista, esta uma questo emergente e o seu estudo se faz necessrio para que

    possamos avanar em nossas pesquisas. Durante a realizao de nossa prxis, levantamos a

    questo da importncia de se compreender o espao social na histria de formao de um

    movimento social, sem fragment-lo e hierarquiz-lo, por entendermos que - dentro desse

    campo de investigao - a Geografia deve continuar contribuindo, junto com outras

    cincias, para o entendimento dos movimentos sociais.

    No capitalismo, o processo de produo do espao social determina as suas

    formas atravs das relaes sociais, que so compreendidas na trade formada pelo capital,

    trabalho assalariado e propriedade fundiria. Nesta trade esto assentadas "as trs grandes

    classes em que se divide a sociedade burguesa moderna". (Marx, 1977: 27). Para

    explicitar esta relao, contamos com a contribuio de Lefebvre:

    "Estes trs elementos reunidos na sociedade esto representados como separados, e sua separao tem um sentido objetivo, posto que cada grupo parece receber uma parte determinada da "renda" global da sociedade. Existe, pois, a aparncia alienada das relaes sociais, aparncia que desempenha um papel "real". a iluso da separao no seio de uma unidade, a da dominao, do poder econmico e poltico da burguesia5". (Lefebvre, (1972) 1976: 37). (Traduo nossa).

    As relaes sociais se realizam no processo desigual e contraditrio do

    desenvolvimento do capitalismo na produo do espao, ou seja, so relaes de

    dominao, expropriao e explorao por parte dos capitalistas e proprietrios de terras

    e de subordinao, resistncia e libertao por parte dos trabalhadores. Uma das formas de

    dominao o controle do espao/tempo. A dominao tem como contraparte o processo

    de resistncia e confronto, resultando num conflito permanente entre as classes. Essa

    relao, alm de estar presente no processo produtivo, se exterioriza atravs das prticas

  • 16

    sociais. So relaes inerentemente contraditrias e, portanto, conflituosas e a sua

    dinmica se desenvolve e se explicita no processo de produo do espao. "Assim o espao

    tem a propriedade de ser materializado por um processo social especfico que reage a si

    mesmo e a esse processo. , portanto, ao mesmo tempo objeto material ou produto, o

    meio de relaes sociais, e o reprodutor de objetos materiais e relaes sociais.

    Dessa maneira, Lefebvre baseia a multiplicidade da articulao sociedade-espao numa

    relao dialtica". (Gottdiener (1985) 1993: 133). Logo, no interior desse processo

    desigual que se desenvolvem a explorao econmica, a excluso cultural e a dominao

    poltica, gerando os conflitos e as mais diversas formas de resistncia. Conseqentemente,

    esse processo representa o fenmeno histrico da luta entre as classes. exatamente a luta

    que forma a classe trabalhadora. So as suas experincias que constroem as prticas sociais

    e que produzem as dimenses do espao social. Dessas experincias nascem o

    conhecimento, a conscincia, a forma de organizao e a resistncia, enfim, a identidade de

    classe, desmitificando a aparncia e transformando/conquistando uma nova realidade

    social. Neste sentido de grande importncia o trabalho de Thompson, quando afirma:

    "No vejo a classe como uma "estrutura", nem mesmo como uma "categoria", mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrncia pode ser demonstrada) nas relaes humanas... Pois estou convencido de que no podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formao social e cultural, surgindo de processos que s podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considervel perodo histrico." (Thompson, (1963) 1987: 9-12). (Grifos nossos).

    Partindo dessa concepo, para entendermos esse processo, fundamental

    analisar a luta numa perspectiva dialgica, como afirma Martins ao enfatizar que "nem

    sempre temos tido a humildade de reconhecer que o movimento, o desenrolar da Histria,

    o fazer-se, representam para os cientistas sociais desafios tericos e metodolgicos que

    no podem ser enfrentados com esquematismos e menos ainda com os esquematismos

    estruturalistas que baniram a concepo de contradio e a de processo". (Martins, 1984:

    13). Portanto, ao trabalharmos com a idia de processo no estudo da formao de um

    movimento de trabalhadores na luta pela terra, torna-se fundamental compreender a

    interao espao social/movimento social/lugar social. Esse deve ser o caminho para se dar

    conta da concepo dialtica de processo.

    desse ponto de vista que pretendemos estudar esse processo, ou seja,

    entendendo o espao social como realidade produzida pelas relaes sociais entre as

  • 17

    classes, e o lugar social, onde se desenvolvem as experincias que constroem o Movimento

    em questo.

    Segundo Gottdiener, a idia de "processo nos torna conscientes das foras

    que reduzem o espao aos blocos de reproduo reprodutveis, homogneos, da sociedade

    de massa exigidos pelas foras dominantes. Consequentemente, em resposta ao espao

    abstrato, que fragmentado, homogneo e hierrquico, reafirma-se na sigularidade do

    espao personalizado e coletivizado, e surgem conceitos orgnicos de integrao espacial

    como espao pessoal, espao social, a imagem do espao, espao residencial e mesmo

    espao global.

    Segundo Lefebvre, essa designao ativa de espao, essa diviso e

    reivindicao do espao por uma multido de atores e instituies produziu uma "exploso

    de espaos" - a articulao mltipla das relaes sociais estratificadas com o espao. Essa

    exploso de distines espaciais muito bem afinadas entre pessoas e grupos da sociedade

    resulta num caos de espaos contraditrios que proliferam as fronteiras em que aparece o

    conflito scio-espacial. No se pode reduzir tal conflito a meras reflexes da luta de

    classes ou ao seu deslocamento para domnios fora do local de trabalho, como afirmam

    muitos marxistas, mas ele representa, em vez disso, diferenas concretas entre pessoas em

    consequncia da dominao do espao abstrato sobre o espao social em nossa sociedade

    atual. Incontveis exasperaes sociais permeiam as relaes sciais em cada nvel: o

    pessoal, o comunal, o regional e o global. Como assinala Lefebvre:

    Nem o capitalismo nem o Estado podem manter o espao catico e contraditrio que produziram. Somos testemunhas, em todos os nveis, dessa exploso de espao. No plano do imediato e do vivido, h uma exploso de espao por todos os lados, seja ele espao vivo, espao pessoal, espao escolstico, espao de priso, espao de exrcito ou espao de hospital. Em toda parte, as pessoas esto compreendendo que as relaes espaciais so tambm relaes sociais [...] Para Lefebvre, o conflito produzido pelos antagonismos espaciais atravessa as linhas de classe, porque no produzido apenas por relaes de produo. A principal contradio espacial da sociedade a confrontao entre espao abstrato, ou a exteriorizao de prticas econmicas e polticas que se originam com a classe capitalista e com o Estado, e o espao social, ou o espao de valores de uso produzidos pela complexa interao de todas as classes na vivncia diria". (Gottdiener, (1985) 1993: 130-131).

    Esta anlise da produo do espao de Lefebvre feita por Gottdiener de

    grande contribuio para nossa reflexo sobre os significados do conceito de espao social

    e as suas dimenses, na perspectiva de compreender o seu status dialtico. Desta forma,

  • 18

    para trilhar o caminho do pensamento de Lefebvre, "devemos superar dialeticamente o

    pensamento funcionalista da anlise marxista e transformar seus conceitos pela

    introduo de uma dimenso espacial. Como Lefebvre afirma:

    Hoje, as transformaes cientficas e tecnolgicas do mundo moderno tornam inevitvel um reexame do pensamento marxista. Eis minha teoria: Todos os conceitos marxistas so considerados a um nvel superior sem qualquer estgio num desaparecimento da teoria. O reexame dos conceitos marxistas se desenvolve otimamente quando se leva em plena conta o espao. Segundo Lefebre, porm, para levar a cabo essa reformulao terica, o pensamento marxista deve renunciar sua nfase sobre o economicismo... De fato, segundo ele, a soluo humanista implica um fim da alienao atravs de uma abordagem revolucionria da vida cotidiana e da produo do espao". (Gottdiener, (1985) 1993: 133-134).

    Tendo como ponto de partida estas reflexes tericas, estudamos a gnese e

    a formao do MST no conjunto das transformaes recentes da agricultura. Dessa forma,

    no primeiro captulo procuramos analisar no interior do processo de desenvolvimento do

    capitalismo o aumento da intensidade do carter concentrador da terra, a partir da

    implantao da poltica de desenvolvimento agropecurio pelos governos militares. Nesse

    captulo estudamos, tambm, as transformaes recentes na agricultura paulista e, neste

    contexto, o surgimento das novas lutas pela terra e a luta pela reforma agrria.

    No captulo 2, estudamos a gnese do MST no processo de construo das

    novas formas de luta no campo e na cidade. Analisamos tambm a importncia histrica

    das CEB's como lugar social e espao de socializao poltica.

    No terceiro e quarto captulos analisamos dois perodos do processo de

    formao do MST/SP. O primeiro perodo corresponde desde sua gnese, na luta dos

    posseiros da Primavera, passando pelas diferentes experincias dos movimentos sociais na

    luta pela terra, at a emancipao do Movimento nos anos 1985/86. No segundo perodo,

    de 1985/86 at 1992/93, estudamos o processo de espacializao da luta pela terra na

    territorializao do MST.

    No captulo 5, continuando a reflexo iniciada nesta introduo, procuramos

    sistematizar as nossas anlises sobre as experincias do MST durante a construo de sua

    forma de organizao social no processo de luta pela terra. Neste processo so construdas,

    em determinados lugares sociais, as dimenses do espao de socializao poltica,

    necessrias para o desenvolvimento das experincias, da formao, da luta e da resistncia

    na conquista de fraes do territrio, que permitem a espacializao de prticas e formas

  • 19

    de luta e, conseqentemente, a territorializao do MST. Estudar o processo de

    espacializao e territorializao o objetivo deste trabalho.

    Assim reencontramos o nosso ponto de partida e de retorno, ou seja: o real e

    a anlise do processo.

    O ponto de partida e de retorno.

    A necessidade dessa reflexo sobre os conceitos de espao social e lugar

    social, nasceu quando iniciei as pesquisas sobre o MST, em 1986, observando o

    desenvolvimento das suas lutas, participando das reunies nas comunidades eclesiais de

    base, nos diversos acampamentos, nos assentamentos, nos sindicatos, no partido, nas

    escolas, nas Secretarias de Estado, no Palcio do Governo, com os latifundirios. E mais,

    participando das caminhadas, das celebraes, das romarias, dos encontros estaduais, dos

    encontros nacionais, dos congressos, visitanto acampamentos e assentamentos,

    entrevistando, conversando, fotografando, filmando, registrando, lendo e analisando seus

    escritos, suas histrias; acompanhando, muitas vezes, as ocupaes, etc. A minha presena

    constante no processo de espacializao da luta ocorreu por dois motivos: primeiro, pelo

    interesse em entender os novos movimentos sociais que emergiam com uma dinmica

    incrvel e, por essa razo, chamava a ateno dos pesquisadores e da sociedade em geral.

    "Questionadores da alienao, da opresso, do autoritarismo, os novos movimentos

    sociais suscitam, sob vrios ngulos e abordagens a surpresa de muitos pesquisadores -

    que se interrogam sobre o significado, as origens e os objetivos dessa experincia de base,

    de autogesto e desalienao". (Scherrer-Warrem e Krischke, 1987: 8-9). Dessa maneira

    estudei essa luta, com o objetivo de compreender a sua dinmica nos diversos nveis das

    relaes sociais e na construo do espao social.

    O outro motivo foi a minha participao como membro da diretoria da AGB

    - Associao dos Gegrafos Brasileiros - Seo So Paulo (1986-1988), Diretoria

    Executiva Nacional (1988-1990), AGB - Presidente Prudente (1990-1992) e Comisso de

    Assuntos Agrrios da AGB Nacional (1990-1992; 1992-1994). Como membro desta

    entidade, que apia a luta pela reforma agrria, tinha o compromisso de estar, ao mesmo

    tempo, participando e, tambm, pela minha prpria formao, analisando, refletindo, enfim

    pesquisando a luta em movimento.

  • 20

    Na vivncia cotidiana dessa experincia, fui assumindo um compromisso

    com as famlias de trabalhadores que faziam e fazem a luta. Fui conscientizando-me da

    importncia da minha participao como pesquisador na prpria luta. E, como pesquisador,

    tive sempre a preocupao de, ao retirar destas pessoas ou da realidade que elas construam

    e constroem os elementos para a minha reflexo e estudo, tambm, contribuir com as

    mesmas na compreenso e registro de sua prpria histria. Dessa experincia resultaram

    alguns textos6, vdeos7 e um livro paradidtico sobre o tema reforma agrria8. Neste

    trabalho participei da elaborao de dois livretos sobre a histria da luta dos assentamentos

    de Sumar II e Porto Feliz9, um vdeo documentrio sobre a caminhada das famlias do

    assentamento Pe Josimo, em Promisso, outro vdeo sobre a luta pela terra no Pontal do

    Paranapanema - SP e diversos audiovisuais (slides) e ensaios fotogrficos10 sobre a luta

    pela terra, realizada pelo MST nos Estados de So Paulo e Rio Grande do Sul.

    Recentemente tenho pesquisado e colaborado com o Setor de Educao do MST,

    participando como membro do Coletivo Nacional de Educao em trabalhos como a

    elaborao de uma proposta curricular e de livros paradidticos para as escolas de

    assentamentos e acampamentos. Estes trabalhos tm me permitido acompanhar a luta em

    movimento.

    O procedimento metodolgico desenvolvido nesta pesquisa se deve, antes

    de mais nada, ao avano dos estudos sobre pesquisa participante. Dessa forma, permito-me

    fazer o uso devido das palavras de Oliveira em sua anlise sobre os trabalhos dos

    gegrafos nas ltimas dcadas. Alguns gegrafos procuraram "avanar em direo a uma

    posio mais crtica na geografia agrria brasileira frente questo agrria. Uns

    preferiram o "milagre brasileiro" e tiraram proveito, idolatrando-o ou procurando o

    caminho de um cincia neutra, quantitativa, pragmtica e engajada. Ns outros,

    preferimos ajustar contas com as nossas conscincias. Preferimos colocar as coisas no

    lugar. Preferimos o caminho da identificao de nossa produo com os interesses da

    maioria da populao trabalhadora do pas. E esse quadro que tem se imposto a ns

    gegrafos desse pas. Uns engajam-se no sistema, procurando desenvolver trabalhos que

    visem sua "santificao cientfica"; outros colocam-se do outro lado, inevitavelmente

    contra o estado de coisas vigentes. Esse posicionamente de luta contra a dominao em

    todos os nveis, coloca-nos a necessidade de compreender o desenvolvimento do modo

    capitalista de produo na formao social capitalista no Brasil". (Oliveira, 1991: 10-11).

  • 21

    No desenvolvimento do trabalho de campo, assim como em qualquer das

    pesquisas sobre as lutas populares, praticamente impossvel no participar, no se

    "envolver com o trabalho popular na produo do conhecimento sobre a condio da

    vida do povo". (Brando, 1987: 24). Nesta condio, em contato direto com o movimento

    do real, atravs de nossos estudos, fui apreendendo como o espao de socializao poltica

    e porque no - de luta - construdo interativamente com a formao dos sujeitos, em

    determinados lugares sociais. Nesses lugares so elaboradas as dimenses do espao social

    na produo do conhecimento e do interesse de transformao de suas realidades. Resolvi,

    ento, estudar o espao social para alm do nvel econmico e assim contribuir para a

    compreenso do processo de transformao do espao geogrfico. Pois como afirma

    Gottdiener em sua leitura de Lefebreve "O espao uma localizao fsica, uma pea de

    bem imvel, e ao mesmo tempo uma liberdade existencial e uma expresso mental. O

    espao ao mesmo tempo o local geogrfico da ao e a possibilidade social de engajar-

    se na ao... Essa idia fundamental para a noo de prxis de Lefebreve, que apresenta

    vantagens com relao a outras atitudes marxistas frente luta poltica [...] (O espao)

    ao mesmo tempo um meio de produo como a terra e parte das foras sociais de

    produo como espao. Como propriedade, as relaes sociais podem ser consideradas

    parte das relaes sociais de produo, isto , a base econmica. Alm disso, o espao

    um objeto de consumo, um instrumento poltico, e um elemento na luta de classes.

    (Gottdiener, 1993: 127). (Grifos nossos). Diante dessa experincia de vida e da reflexo,

    entendo o espao social e o lugar social como instrumentos de anlise importantes no

    estudo das formas de organizao dos movimentos sociais. Tendo o espao social como

    ponto de partida e de retorno pretendemos compreender melhor a sua interao na luta dos

    trabalhadores, contribuindo para com estes e, conseqentemente, para com a sociedade.

    Nos meus estudos fui aprendendo que o espao social, quando conquistado pelos

    trabalhadores na luta pela terra, enquanto espao de socializao poltica possui diversas

    dimenses, ou seja, multidimensional. Conforme compreendemos esta questo, temos

    que entender a relao imediata entre espao e sociedade; logo, as relaes sociais no

    podem ser entendidas como uma coisa esttica ou estruturada, porque preciso

    compreender o seu movimento. Assim, tentamos ir alm da anlise funcionalista da luta de

    classes e de uma viso economicista desta luta. Percebemos ao analisar os espaos sociais

    em questo que, em vez de separar as classes para entend-las, precisamos analis-las em

    sua relao no cotidiano. Como dizem os trabalhadores Sem Terra: "a negociao na

  • 22

    base do pau e da prosa". Por essa razo, no tomamos o caminho da fragmentao (nem

    do espao, nem dos sujeitos e nem das relaes), mas sim o caminho da interao na

    perspectiva de entender o enfrentamento e o conflito, e procurar contribuir para com a

    compreenso deste movimento, nas novas formas de organizao social realizadas e

    realizadoras da dinmica do espao social nas suas diversas dimenses.

    Frente a essa realidade, minha maior preocupao era construir um caminho

    terico-metodolgico para entender o processo de construo do espao social e, ao

    mesmo tempo, compreender como estes sujeitos organizados num movimento social

    (MST), elaboram seus conhecimentos, constroem as dimenses do espao de socializao

    poltica, espacializam suas prticas e territorializam a luta. Entender este processo,

    significa mobilizar recursos tericos que permitam decifrar as suas falas e seus atos.

    (Martins, 1981: 17). Significa sobretudo entender a sua resistncia expropriao dentro

    do processo contraditrio de reproduo capitalista ampliada do capital. (Oliveira, 1981:

    7).

    Uma primeira discusso sobre esta preocupao foi feita em Fernandes,

    1992. As idias contidas neste texto provocaram debate com diversos colegas, das vrias

    reas do conhecimento, que trabalham com esta questo. Este debate permitiu o acesso a

    um grande nmero de pesquisas e a uma imensa bibliografia sobre movimentos sociais e

    espao social que nos ajudaram na realizao desse trabalho.

    Notas.

    1 - Ver Gohn, M. da G. - Movimentos Sociais e Luta pela Moradia, especificamente: p.p. 21-50. Edies

    Loyola. So Paulo, 1991; Scherer-Warren, I. - Redes de Movimentos Sociais, especificamente; p.p. 13-25.

    Edies Loyola/Centro Joo XXIII. So Paulo, 1993. Ver tambm Frank, A. G. e Fuentes, M. - Dez teses

    acerca dos movimentos sociais. In Lua Nova No. 17, p.p. 19-48. Cedec/Marco Zero. So Paulo, 1989.

    2 - O conceito de movimento social aqui compreendido como uma forma de organizao da classe

    trabalhadora, a partir das camadas populares, Gohn, 1991: 9, ou dos grupos populares, Camacho, 1987: 217,

    ou setores populares, Scherer-Warren, 1993: 112.

    3 - Utilizamos o conceito de espao de socializao poltica nesse trabalho como espao social

    construdo/conquistado/controlado pelos trabalhadores em luta pela terra. Este conceito foi extrado do

    trabalho de Grzybowski, 1987: 59.

  • 23

    4 - Uma anlise histrica do controle do tempo no capitalismo feita por E. P. Thompson em "Tiempo,

    disciplina de trabajo y capitalismo industrial". In Tradicin, revuelta y consciencia de clase, p.p. 239-293.

    Editorial Crtica. Barcelona, 1979.

    5 - Neste ponto fundamental lembrar a crtica de Lefebvre: "da mesma forma que a burguesia coloca a

    separao aparente na unidade das relaes sociais, tambm alguns cientistas fragmentam o espao, assim

    como os proprietrios fundirios que dividem, parcelam, cada um a sua maneira. Cada um deles opera

    num espao abstrato, dentro de sua zona de influncia".(Lefebvre, (1972) 1976: 17).(Traduo nossa).

    6 - Ver Fernandes, B. M. - "Da terra prometida terra definitiva" - Na criao do "territrio liberado" a

    realizao da reforma agrria. In Anais do VIII Encontro Nacional de Gegafos. Salvador - BA, 1990. p.p.

    697-712. AGB - Associao dos Gegrafos Brasileiros; Fernandes, B. M. - O Movimento dos Trabalhadores

    Rurais Sem Terra e a territorializao da luta pela terra no Brasil. Trabalho apresentado na Conferncia "A

    Questo Regional e os Movimentos Sociais no Terceiro Mundo", promovida pela Comisso do

    Desenvolvimento do Terceiro Mundo da Unio Geogrfica Internacional e publicado no Boletim de

    Geografia Teortica Vol. 22, nmeros 22-24, p.p. 34-39. Rio Claro, 1992; Fernandes, B. M. - "Amassando a

    massa" - para uma crtica ao conceito de massa. Mimeo. Presidente Prudente, 1993.

    7 - Ver vdeo "Caminhos da Terra". Produo de Fujimoto, E. K. e Fernandes, B. M. Vertevdeo. So Paulo,

    1988; Ver tambm "Tem Grilo no Pontal". Produo de Fernandes, B. M. Vdeofilm. Presidente Prudente,

    1993.

    8 - Fernandes, B. M. e Portela, F. - Reforma Agrria. Editora tica. So Paulo, 1990.

    9 - Ver "Terra no se ganha, Terra se conquista - a caminhada do Movimento dos Sem Terra de Sumar II" e

    "Terra no se ganha, terra se conquista - a caminhada do Movimento dos Sem Terra de Sumar III",

    publicao conjunta da AGB-SP e MST-SP. So Paulo, s.d.

    10 - Com relao produo de fotografias, um dos trabalhos mais importantes foi a realizao da mostra

    fotogrfica "A luta pela terra no Pontal do Paranapanema", patrocinada pelo Sindicato dos Bancrios de

    Presidente Prudente e CUT So Paulo. Presidente Prudente, 1993.

  • 24

    1 - AS TRANSFORMAES RECENTES NA AGRICULTURA E A LUTA PELA

    REFORMA AGRRIA.

    1.1 - O desenvolvimento do capitalismo na agricultura.

    "Na verdade a questo agrria engole a todos e a tudo, quem sabe e quem no sabe,

    quem v e quem no v, quem quer e quem no quer".

    Jos de Souza Martins, 1994, p. 12-13.

    Nesse captulo analisamos, no interior do processo de desenvolvimento do

    capitalismo, o perodo da histria da agricultura brasileira entre 1965 a 1985, em que

    aconteceram as transformaes recentes na agricultura, com a implantao de uma poltica

    de desenvolvimento agropecurio pelos governos militares. Sobre esse contexto daremos

    nfase, especialmente, questo da propriedade e dos conflitos fundirios.

    Antes, porm, necessrio afirmar que entendemos a propriedade da terra

    como uma relao social, porque no capitalismo ela significa "um processo que envolve

    trocas, mediaes, contradies, articulaes, conflitos, movimento, transformao"

    (Martins, 1981, p. 169) e sua apropriao, controle e particularmente sua concentrao por

    uma determinada classe, pode e quase sempre significa o domnio poltico-econmico de

    um determinado lugar, regio, pas, etc.

    Entendemos, tambm, que o desenvolvimento do capitalismo desigual e

    contraditrio e que sua essncia est na reproduo ampliada do capital. Na medida em que

    acontece o desenvolvimento do capitalismo no campo, este tende a se apropriar de todos os

    setores de produo, expropriando os trabalhadores de seus instrumentos e recursos. Desta

    forma, o capital se apropria do trabalho "livre" para a sua reproduo. Desenvolve-se uma

    relao social, em que, de um lado, o capitalista compra a fora de trabalho, pois esta

    fundamental para a reproduo ampliada do capital, e, do outro lado, o trabalhador vende

    a fora de trabalho, pois isto fundamental para a sua sobrevivncia. Cria-se assim a

    propriedade capitalista e o trabalho assalariado. Contudo, a reproduo ampliada do capital

    no acontece somente dessa forma, ou seja, por ser desigual e contraditrio, o capitalismo

    no domina somente de modo real as relaes de trabalho e produo. Isto significa que o

    capitalismo no se desenvolve e se expande de forma linear. No seu desenvolvimento e

  • 25

    expanso, o capitalismo implanta relaes de trabalho assalariado e ou implanta e

    subordina de modo formal outras relaes, como por exemplo as relaes de trabalho e de

    produo no-capitalistas: o trabalho familiar, a parceria, etc.

    Um exemplo didtico de como o capital desenvolve esse processo desigual

    e contraditrio encontrado em Oliveira:

    Um fazendeiro que desenvolve pecuria de corte - invernada - no oeste do Estado de So Paulo precisa ter sempre em boas condies as pastagens de sua propriedade e manter um conjunto de trabalhadores assalariados para cuidar do rebanho. Quando as pastagens estiverem desgastadas pelo pastoreio do gado, elas tero que ser refeitas ou, como se diz na regio: "o pasto tem que ser tombado". Para refazer a pastagem o fazendeiro pode deslocar ou contratar trabalhadores assalariados para arar a terra, adub-la e semear capim, esper-lo crescer, para depois soltar novamente o gado na rea. Nem sempre isso ocorre, muitas vezes, esse fazendeiro, ao invs de destinar uma parte de seu capital para realizar a tarefa de refazer o pasto, arrenda a terra a camposeses sem-terra ou com pouca terra na regio, para que eles faam o trabalho por ele. Esse arrendamento pode ser de vrias formas, entre elas a de dividir parte da produo obtida no solo durante uma colheita de algodo, amendoim, milho, etc. O fazendeiro entra com a terra e por isso recebe metade, ou um tero ou um quarto ou uma porcentagem previamente estipulada da produo obtida. Tambm, pode cobrar uma quantia em dinheiro pela cesso da terra. No primeiro caso, temos a parceria e no segundo a renda em dinheiro. Em seguida o campons planta por um ano ou menos ainda, um produto na terra que era ocupada pela pastagem. Aps a colheita, ou ele entrega parte da produo ao fazendeiro ou vende a safra e paga em dinheiro a quantia estipulada previamente no contrato de arrendamento. Em seguida semeia o capim na terra e entrega/devolve a rea ao fazendeiro, que aguardar apenas o crescimento do capim e ter o pasto reformado, sem que para tal , tenha gasto parte de seu capital. (Oliveira, 1991, p. 19).

    Esta relao nos mostra como o capitalista pode subordinar formalmente as

    relaes de produo camponesas, atravs da cobrana da renda pela cesso da terra,

    ficando com o pasto renovado e no pagando os dias de servio dos trabalhadores. Assim,

    "o fazendeiro, um capitalista, para aumentar o seu capital (para reproduzi-lo), abriu

    possibilidade para a criao e a recriao do trabalho campons, igualmente necessrio

    ao desenvolvimento geral do capitalismo. (Oliveira, 1991, p. 20).

    O exemplo citado mostra uma das formas de explorao capitalista. O

    capital uma relao social que , antes de mais nada, uma relao de expropriao e de

    explorao. Cria, de um lado, os exploradores e de outro os explorados, produz a fartura e

    a fome. Este o carter inerente da contradio do desenvolvimento capitalista. Diante

    dessa realidade, os trabalhadores rurais tm criado diversas formas de resistncia, durante

    toda a sua histria, atravs das lutas sociais no enfrentamento com o Estado, com os

    proprietrios de terra e capitalistas. No s a luta pela terra que est em questo, uma

  • 26

    luta contra um modelo de desenvolvimento que privilegia um nico tipo de propriedade.

    Na realidade, o problema da terra no Brasil no passa simplesmente pela distribuio de

    terra. O que o Estado tem procurado evitar, ao desarticular e destruir as formas de

    organizao dos trabalhadores rurais, "que o problema da terra constitua mediaes

    polticas que envolvam necessariamente uma redefinio do pacto poltico que sustenta o

    Estado." (Martins, 1986c, p. 61).

    1.2 - O regime militar e sua poltica de desenvolvimento agropecurio.

    Com o objetivo de acelerar o desenvolvimento do capitalismo no campo,

    incentivando a reproduo da propriedade capitalista, durante os governos militares ps-

    64, foram criadas as condies necessrias para o desenvolvimento de uma poltica agrria,

    privilegiando as grandes empresas, via incentivos financeiros, que passaram a se ocupar da

    agropecuria. Para entendermos a origem dessa poltica preciso considerar que o golpe

    militar de 1964 teve, entre outros objetivos, a finalidade de isolar parcialmente, de um

    lado, o poder dos coronis latifundistas e, do outro lado, impedir totalmente o crescimento

    das lutas dos trabalhadores rurais, que vinham construindo suas formas de organizao,

    principalmente a partir de meados da dcada de cinqenta.1

    A poltica agrria da ditadura militar contava com um projeto de reforma

    agrria que havia sido definido, pouco antes do golpe, pelo grupo do Instituto de Pesquisa

    e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD). O grupo

    do IPES/IBAD era composto por um complexo poltico-militar que congregava vrios

    intelectuais: escritores, jornalistas, advogados etc, que possuam

    1 A respeito, consultar: ANDRADE, M. C. A terra e o homem no Nordeste. So Paulo: Brasiliense, 1964; AZEVEDO, F. A. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; BASTOS, E. R. As Ligas Camponesas. Petrpolis: Vozes, 1984; BASTOS, E. R. Et al. Os conflitos sociais no campo no estado de So Paulo. In Reforma Agrria, V. 13, N. 15. Campinas, 1983; WELCH, C. e GERALDO, S. Lutas camponesas no interior paulista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; TAVARES DOS SANTOS J. V. (Org.) Revolues camponesas na Amrica Latina. So Paulo: Co-edio Unicamp-cone, 1985; CONCEIO, M. Essa terra nossa. Petrpolis: Vozes, 1980; WAGNER, A. A saga do Joo Sem Terra. Petrpolis: Vozes, 1989; PUREZA, J. Memria Camponesa. So Paulo: Marco Zero, 1982; GOMES, I. Z. - 1957 - A revolta dos posseiros. Curitiba: Edies Criar, 1986; BORNSTEIN, C. T. Luta de terra e briga de foice. Rio de Janeiro: Editora Ctedra, 1987; OLIVEIRA, A. U. A Geografia das lutas no Campo. So Paulo: Contexto, 1988. MEDEIROS, L. S. Histria dos Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.

  • 27

    [...] o objetivo de se contrapor ao poltica do governo Goulart e s mobilizaces dos grupos populares. Esta elite, com capacidade de organizar seus prprios interesses e os da sociedade, consegue infiltrar-se com sua doutrina ideolgica em todas as camadas sociais.A ao ideolgica assumida pelo complexo IPES/IBAD, que se vale de todos os meios de persuaso disponveis: cursos, palestras, seminrios, simpsios, filmes, teatros, propaganda, rdio, televiso, revistas, jornais, livros e panfletos, alm da distribuio gratuita de alimentos (provenientes da "Aliana para o Progresso" celebrada entre o Brasil e os Estados Unidos) .(Panini, 1990, p. 68).

    Vale dizer ainda que o grupo do IPES/IBAD tinha acesso aos jornais mais

    importantes do pas. Assim, o projeto transformou-se no Estatuto da Terra. Para viabilizar

    a sua poltica, o Estado manteve a questo agrria sob o controle do poder central, de

    forma que o Estatuto da Terra no permitisse o acesso terra para os camponeses,

    propriedade familiar, e sim aos que tinham o interesse de criar a propriedade capitalista.

    Nesta condio o Estatuto revelou-se um instrumento estratgico para controlar as lutas

    sociais, desarticulando os conflitos por terra. Desta forma, as desapropriaes somente

    eram realizadas como tentativa de diminuir os conflitos, sendo que durante o perodo de

    1965 at 1981, foram realizados, em mdia, 8 decretos de desapropriao por ano contra

    pelo menos 70 conflitos por terra ao ano (Martins, 1984, p. 22-33). O Estatuto da Terra

    tambm previa a ocupao de regies pioneiras para solucionar os problemas sociais de

    outras regies.

    Com o objetivo de administrar o problema da terra sem tocar no direito de

    propriedade, na gesto de Costa e Silva,

    [...] o problema da terra, e particularmente da terra na Amaznia, transformou-se progressivamente num problema militar. O ministrio do interior ocupado pelo general Albuquerque Lima, um general nacionalista identificado com o pensamento da Escola Superior de Guerra, definiu como objetivo nacional prioritrio a poltica de integrao da Amaznia. Reduzindo a questo a termos simples, os problemas de presso social e fundiria do Nordeste poderiam ser resolvidos na Amaznia, mediante o desenvolvimento de projetos de ocupao de "espaos vazios", criao de plos de desenvolvimento, com envolvimento decisivo das Foras Armadas" (Martins, 1984, p. 41-42. Grifos do autor).

    Para executar seu plano, o governo militar transforma a Superintendncia

    do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia (SPVEA) na Superintendncia do

    Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM) com as seguintes justificativas:

    Os problemas com que se defronta o Nordeste emanam de fatores prprios, tais como as presses sociais geradas em uma regio de solo e clima adversos, onde se agita uma populao. J na Amaznia, os traos dominantes do seu meio fsico esto contidos na

  • 28

    exuberante cobertura florestal e no emaranhado de grandes rios que a cortam; excludo o Estado do Maranho, a Regio , quanto s dimenses geogrficas, quase quatro vezes maior que o Nordeste, e seus escassos 3 milhes de habitantes no alcanam, sequer, a densidade demogrfica de 1 por km2." (Lei N. 5.173 de 27/10/67, in Oliveira, 1988, p. 30).

    Sob o lema de "integrar para no entregar", as terras da Amaznia "sem

    homens" que deveriam ser destinadas para "os homens sem terra" foram praticamente

    entregues s grandes empresas beneficiadas pela poltica de incentivos fiscais.

    Em seu encaminhamento poltico, os governos militares utilizaram da

    bandeira da reforma agrria, via projetos de colonizao, na promessa de solucionar os

    conflitos sociais no campo, atendendo assim aos interesses do empresariado nacional e

    internacional. Como o objetivo era colonizar para no reformar, o problema da terra jamais

    seria resolvido com os projetos de colonizao na Amaznia, pois o que estava por trs

    deste processo era uma estratgia geopoltica de explorao total dos recursos naturais

    pelos grandes grupos nacionais/internacionais. Desta forma, o envolvimento das Foras

    Armadas, do Estado autoritrio garantiram aos grandes grupos econmicos a explorao da

    Amaznia.

    Ainda, em 1968, o governo Costa e Silva interveio militarmente no Instituto

    Brasileiro de Reforma Agrria (IBRA) criado em 1965, juntamente com o Instituto

    Nacional de Desenvolvimento Agrrio (INDA), para substituir a Superintendncia da

    Poltica Agrria (SUPRA), criada no governo Goulart. A razo da interveno foi o

    relatrio Velloso preparado a partir da Comisso Parlamentar de Inqurito sobre denncias

    de corrupo, grilagens e venda de terras a estrangeiros (Oliveira, 1988, P. 42). Contudo, a

    interveno militar era uma "fachada moral" que escondia uma estratgia geopoltica, onde

    os grupos internacionais e nacionais construam condies polticas para o controle das

    riquezas naturais do pas. Em 1969 o governo criou o Grupo Interministerial de trabalho

    sobre a Reforma Agrria (GERA) para analisar os problemas que impediam o

    desenvolvimento de medidas de reformulao fundiria.

    Esta ao representou o direcionamento da poltica agrria do

    Estado, que procurava fortalecer o corte empresarial da agricultura, atravs de polticas de

    incentivos fiscais. Nesta poca, o governo militar beneficiou vrios grandes grupos

    empresariais que "adquiriram", nas regies Centro-Oeste e Norte, imensas reas de terra

    para projetos de colonizao e projetos agropecurios. Dessa forma, os governos militares

  • 29

    com sua poltica agrria praticavam mudanas no campo sem modificar o regime de

    propriedade da terra.

    Em 1970, o governo militar, para continuar viabilizando a sua poltica

    agrria, funde e acabou com o IBRA e o INDA e criou o Instituto Brasileiro de

    Colonizao e Reforma Agrria (INCRA). Esta mudana representou o fortalecimento dos

    grandes grupos econmicos que controlavam os projetos de colonizao. Os projetos

    estavam contidos no Programa de Integrao Nacional (PIN), criado neste mesmo ano.

    Com a criao deste programa,

    [...] o governo do General Mdici iniciou uma campanha ufanista atravessada pelo "falso nacionalismo" de que era necessrio "integrar a Amaznia para no entreg-la aos estrangeiros". Era o incio das campanhas do Projeto Rondon: "Integrar para no entregar". Era enfim um perodo em que a sociedade foi massacrada pela propaganda feita pelos veculos de comunicao de massa (TV, rdio, jornais, revistas, etc). Estas propagandas eram veiculadas de modo a encobrir a verdadeira inteno deste governo, que era aquela de no interferir no processo de aquisio de terras por estrangeiros, ao contrrio, aliment-lo ainda mais, atravs da poltica dos projetos agropecurios. Estes projetos aprovados pela SUDAM passavam a interessar ao desenvolvimento econmico nacional e, portanto, no precisariam enquadrar-se na nova legislao sobre a venda de terras a estrangeiros. Dessa forma, os grupos estrangeiros poderiam adquirir quanta terra desejassem. Veja-se, por exemplo, a Sui-Missu (em So Flix do Araguaia - MT) vendida para o grupo Liquifarm, com os seus 450.000 ha. oficialmente registrados no INCRA, sendo que outras fontes falam em sua superfcie de 670.000 ha. Outro exemplo a Cia. Vale do Rio Cristalino, pertencente Volkswagen, com mais de 140.000 h. (Oliveira, 1988, p. 63/64).

    Em 1971, incrementando a sua estratgia geoeconmica, o governo militar

    cria ainda o Programa de Redistribuio de Terras e Estmulo Agroindstria do Norte e

    Nordeste (PROTERRA).

    Estes Programas viriam a intensificar o processo histrico da concentrao

    fundiria no Brasil. Nas palavras de Carlos Lorena: "a estrutura agrria concentradora,

    viciosa, que desde o tempo das capitanias hereditrias, passando pelas ordenaes do

    Reino, pela Lei das Sesmarias, pela Lei de Terras de 1850, at hoje, tem sido sempre

    conservada e agravada, chegando-se ao mximo nos ltimos 20 anos" (Lorena, 1988, P.

    42).

    Investindo no processo de agravamento de concentrao da terra, os

    governos ditatoriais dirigiram a questo fundiria reprimindo brutalmente as lutas por

    terra. Para os militares era fundamental desmobilizar toda e qualquer forma de

    organizao poltica dos trabalhadores rurais, criando assim um vazio poltico necessrio

    para viabilizar o seu projeto de reforma no campo. Este foi um fator estratgico da

  • 30

    elaborao e aplicao do Estatuto da Terra. Outro fator que, segundo Martins, influenciou

    a ao poltica do Estado, foi a guerrilha do Araguaia: "o Estado assumiu a guerrilha

    numa proporo que ela no tinha. Em conseqncia disso, tomou decises, tanto na

    represso, quanto na poltica agrria, muito amplas e significativas" (Martins, 1986c, p.

    63/64). De acordo com a leitura que Martins faz desse episdio, o Exrcito e o governo

    parece terem entendido que havia um abismo separando a guerrilha e as lutas camponesas,

    [...] que a possibilidade de envolvimento dos posseiros no confronto armado tinha um limite, que a coincidncia de objetivos era limitada. O Exrcito parece ter se convencido de que assim como os guerrilheiros, com seu assistencialismo e paternalismo, conseguiram a simpatia das populaes locais. A partir do fim da guerrilha, o governo praticamente abriu mo da poltica de colonizao social, definindo outras prioridades" (Martins, 1984, p. 53).

    Desta forma, em 1972/73, com a liquidao da guerrilha, o governo militar

    troca algumas pessoas favorveis medida de reforma agrria que ocupavam cargos em

    ministrios, por pessoas contrrias reforma e a favor da implantao da grande empresa

    no campo. Frente aos fatos, a partir de 1973 h uma mudana na poltica fundiria que

    orienta a poltica de desenvolvimento agropecurio, de acordo com os idealizadores do

    Estatuto da Terra.

    a partir dessa mudana na poltica fundiria que se inicia a implantao

    dos projetos agropecurios por grandes empresas na Amaznia. No Centro-Sul e Nordeste,

    desenvolve- se uma rpida industrializao da agricultura. A poltica de privilegiamento do

    capital monopolista, em diferentes setores da agricultura, acentua a concentrao de terras,

    a expropriao e a explorao. Diante dessa realidade, os conflitos por terra se

    multiplicaram. A Comisso Pastoral da Terra (CPT) cadastra em 1979, 715 conflitos,

    sendo que 88,1% comearam a partir de 1973. Esses conflitos esto distribudos por todo o

    pas (Martins, 1984, p. 55).2

    Em 1980, o governo militar criou o Grupo Executivo das Terras do

    Araguaia-Tocantins (GETAT) e o Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas

    (GEBAM), para ocupar o espao vazio criado pela represso ao crescimento das foras

    polticas de luta pela terra e, tambm, pelo confisco do poder das oligarquias regionais, do

    poder local dos coronis, excludos da poltica econmica e fundiria.

    2 A respeito, consultar Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). As lutas camponesas no Brasil. So Paulo: Marco Zero, 1981.

  • 31

    A aliana governo militar/empresrios precisava de sustentao do poder

    local para a realizao de sua estratgia geopoltica de controle do territrio. assim que a

    aliana pretendia, de forma hegemnica, controlar o territrio: primeiro militarmente,

    depois economicamente. Assim, a aliana aliou e cooptou os agentes do poder tradicional,

    na represso contra as formas de organizao dos trabalhadores rurais que ressurgia atravs

    da ao sindical e da ao pastoral da Igreja Catlica. A manuteno de um vazio poltico

    no campo era condio necessria para que a aliana pudesse desenvolver o seu projeto

    econmico. Desta forma, Martins chama a ateno para as instituies que foram criadas

    pelo governo com o objetivo de controlar os espaos vazios de poder. o caso Ao

    Cvico Social (ACISO), criada pelo Exrcito na poca do combate guerrilha, da

    Operao Rondon criada pelos militares atravs do Ministrio do Interior e do MOBRAL,

    projeto de alfabetizao criado pelo poder central com o objetivo de controlar as

    comunidades no campo.

    Assim o governo militar realizou os objetivos de sua poltica agrria,

    promovendo a modernizao tcnica no campo sem mexer na estrutura fundiria,

    valorizando as terras apropriadas pela burguesia agrria e criando uma reserva de fora de

    trabalho. Por fim, com os projetos de colonizao, transferiu parte da populao

    expropriada para a Amaznia. Conforme Oliveira: "Era preciso levar trabalhadores para

    que fosse possvel implementar os planos da "Operao Amaznia", pois de nada

    adiantariam grandes projetos agrominerais e agropecurios em uma regio onde faltava

    fora de trabalho" (Oliveira, 1988, P. 74). Para efetivar esse objetivo, os empresrios

    contaram com a total tolerncia do Estado, e no pouparam medidas violentas contra os

    posseiros e os ndios que resistiam a essa poltica. Com a garantia das Foras Armadas e

    com o consentimento do Estado, os grupos econmicos contratavam pistoleiros para

    expulsar ndios e posseiros. Neste perodo de nossa histria vieram se somar outros tantos

    assassinatos e genocdios que foram registrados por diversos trabalhos que denunciaram

    essa violncia.3

    A implantao dessa poltica agrria a qualquer preo resultou, por um lado,

    na manuteno dos latifndios no Nordeste, na criao de inmeros latifndios na

    3 Entre outros esto os trabalhos do CIMI - Conselho Indigenista Missionrio, da CPT - Comisso Pastoral da Terra (que publica anualmente seus trabalhos denunciando a violncia no campo). Vale destacar as pesquisas de Vanucchi Leme e Pietrafesa - "Assassinatos no campo: crime e impunidade (1964-1985). Publicao do MST. So Paulo, 1986; Anistia Internacional - Brasil: violncia autorizada nas reas rurais. Publicao da Anistia Internacional. Londres, 1988; MIRAD/CCA - Conflitos de Terra. Braslia, 1986.

  • 32

    Amaznia e na disseminao da agroindstria no Centro-Sul e Nordeste, atravs da

    monocultura para exportao (soja, laranja, etc.) e da cana de acar para produo do

    lcool. Esse processo intensificou a concentrao de terras e a expropriao dos lavradores

    que, impossibilitados de reproduzir a agricultura familiar, migraram em direo

    Amaznia e em maior nmero para as cidades.

    A lgica da militarizao da questo agrria foi manter o controle do Estado

    sobre os conflitos por terras e sobre as terras devolutas. Para realizar esta estratgia, o

    poder central manteve a federalizao dessas terras e do problema da terra. Nessa lgica,

    em 1982, o governo militar cria o Ministrio Extraordinrio para Assuntos Fundirios

    (MEAF), convidando o general Danilo Venturini para continuar controlando um histrico

    problema nacional: a terra.

    Durante as duas dcadas em que os governos militares estiveram no poder,

    garantiram a apropriao, por grandes grupos empresariais, de imensas reas de terras e

    tambm o aumento do nmero e da extenso dos latifndios. Financiaram as mudanas na

    base tcnica de produo, a partir dos incentivos criados e do crdito subsidiado pela sua

    poltica agrcola. Proporcionaram assim a "modernizao" da agricultura e a

    territorializao do capital no campo. Do outro lado, reprimiram toda e qualquer luta de

    resistncia a sua poltica. Dessa forma, a estrutura fundiria sofreu alteraes profundas,

    como demostramos na parte seguinte sobre a intensificao da concentrao de terras.

    1.3 - O aumento da intensidade do carter concentrador da terra.

    Em 1967, o maior latifundirio do Brasil, cadastrado pelo

    IBRA homens do, tinha, coitado, uns mseros 500 mil hectares. Hoje, temos na terra sem homensdo Amazonas, latifundirios com

    mais de 4 milhes de hectares, havendo 3 com mais de 2 milhes; 4 entre 1 e 2 milhes e 11 entre 500 mil e 1 milho.

    Carlos Lorena, 1988, p. 61.

    Para termos uma idia mais aproximada da marca da concentrao de terras,

    apresentamos a seguir dois grficos. O primeiro representa o amento percentual do nmero

    de estabelecimentos e da rea ocupada no perodo de 1940 at 1970 e o segundo no

    perodo de 1970 at 1985. Nos grficos, possvel visualisar a intensificao da

  • 33

    concentrao da terra, aps a implantao da poltica de desenvolvimento agropecurio do

    governo militar.

    Grfico 1 Brasil - Aumento percentual do nmero de estabelecimentos e da rea ocupada (1940-1970)

    Grfico 2 Brasil - Aumento percentual do nmero de estabelecimentos e da rea ocupada (1970-1985)

  • 34

    Confrontando os grficos 1 e 2, as evidncias da intensificao da

    concentrao da terra podem ser observadas nos aumentos percentuais dos nmeros de

    estabelecimentos e das reas ocupadas, notadamente, no segundo perodo.

    O aumento da rea total dos estabelecimentos no primeiro perodo, que de

    30 anos, foi de aproximadamente 50 %. Observe-se que, os estabelecimentos de at 100

    hectares tiveram o maior aumento percentual tanto em nmero quanto em rea,

    apresentando uma tendncia de crescimento do nmero de pequenas propriedades. Os

    estabelecimentos de 100 a 1.000 hectares cresceram 70% e sua rea aumentou 64%.

    Observe-se, tambm, a tendncia decrescente do aumento percentual do nmero dos

    estabelecimentos da rea ocupada das outras classes.

    O aumento da rea total dos estabelecimentos no segundo perodo, que,

    embora seja de 15 anos, foi de 28% e demonstra, em parte, o destino que a poltica de

    desenvolvimento agropecurio deu s terras pblicas atravs dos grandes projetos

    subsidiados. Pode-se observar que, nesse perodo, iniciou-se uma nova tendncia de

    aumento percentual do nmero de estabelecimentos e da rea ocupada. O maior aumento

    percentual foi dos grandes latifndios. A classe de rea que teve maior aumento percentual

    foi a de mais de 10.000 hectares, que cresceu 55% em rea e 50% em nmero de

    estabelecimentos, acompanhada pela classe de 1.000 a 10.000 hectares, que teve um

    aumento de 35%, tanto em rea quanto em nmero de estabelecimentos. Os

    estabelecimentos de 100 a menos de 1.000 hectares cresceram, em nmero, 25% e tiveram

    a sua rea aumentada em 21%. J os estabelecimentos de menos de 100 hectares tiveram o

    menor aumento percentual. Cresceram, em nmero, 18% e tiveram a sua rea aumentada

    em apenas 15%.

    Num perodo de 15 anos, 48.4 milhes de hectares de terras pblicas foram

    transformadas em latifndios, quase duas vezes a rea total do estado de So Paulo.

    De acordo com Oliveira, 1991, neste "paraso dos latifndios" temos 50.105

    estabelecimentos com mais de 1000 hectares, que representam menos de 1% do nmero

    total, controlando 43.9% da superfcie agrcola do pas, ou seja 164.684.300 hectares. Os

    estabelecimentos de 100 a menos de 1000 hectares representam 9% do nmero total

    (518.618) e controlam uma rea de 131.893.557 hectares (35%). Do outro lado, temos

    5.252.265 estabelecimentos com menos de 100 hectares, representando 90% do nmero

    total, ocupando 21.18% da superfcie agrcola.

  • 35

    Estes dados mostram a evidncia do aumento da intensidade do carter

    concentrador da estrutura fundiria brasileira, durante o regime militar.

    Finalmente, para visualizar melhor esse processo de concentrao de terras,

    reforado pela poltica agrria do regime militar, basta observar a tabela 1, onde podemos

    ver a rea dos 27 superlatifndios que ocupam uma rea maior que a do estado de So

    Paulo.

    Tabela 1 Os maiores latifundirios do Brasil

    N Nome Municpio rea (h) 01- MANASA - Madeireira Nacional S/A Lbrea - AM/Guarapuava PR 4. 140.767 02- JARI Florestal e Agropecuria Ltda Almeirin PA 2.918.892 03- APLUB Agroflorestal da Amaznia Juta / Carauari - AM 2.194.874 04- Companhia Florestal Monte Dourado Almeirin-PA/ Mazago-AP 1.682.227

    05- Companhia de Desenvolvimento do Piau

    Castelo do Piau / So Miguel do Tapuio/ Pimenteiras/ Manoel Emdio/ Nazar do Piau/So Francisco do Piau/ Oeiras/ Canto do Buriti/ Floriano/ Ribeiro Gonalves/ Urucu - PI

    1.076.752

    06- COTRIGUAU - Colonizadora do Aripuan S/A Aripuan MT 1.000.000

    07- Joo Francisco Martins Barata Calcoene - AP 1.000.000 08- Manoel Meireles de Queiroz Manoel Urbano AC 975.000 09- Rosa Lima Gomes Amora Lbrea AM 901.248

    10- Pedro Aparecido Dotto Manoel Urbano/ Sena Madureira - AC 804.888

    11- Albert Nicola Vitale Formosa do Rio Preto BA 797.575

    12- Antonio Pereira de Freitas Atalaia do Norte/Benjamin Constant/ Estiro do Equador-AM 704.574

    13- Malih Hassan Eumadula Itamarati AM 661.173 14- Moraes Madeira Ltda Itamarati / Carauari AM 656.794

    15- INDECO S/A - Int. Desenvolvimento e Colonizao Alta Floresta/ Aripuan/ Diamantino - MT 615.218

    16- Mario Jorge de Medeiros Moraes Carauari AM 587.883 17- Agroindustrial do Amap S/A Mazago AP 540.613

    18- Francisco Jacinto da Silva Sandovalina - SP/Navira -MS/ Feij/Tarauaca/Envira - AM 460.406

    19- Plnio Sebastio Xavier Benfica Auxiliadora/Manicor AM 452.000 20- Companhia Colonizadora do Nordeste Carutapera MA 448.000 21- Jorge Wolney Atalla Piraju - SP/Feij AM 436.340 22- Jussara Marques Paz Surunduri AM 432.11923- Ado Medeiros Paz Borba AM 432.119 24- Adalberto Cordeiro e Silva Pauini /Boca do Acre/Feij-AC 423.170 25- Rmulo Bonalumi Canamari - AM/Cruzeiro do Sul - AC 406.121 26- Unio de Construtoras S/A Formosa do Rio Preto BA 405.000

    27- MAPEL MAROCHI Agrcola e Pecuria Ltda Itaiutaba - PA 398.786

    Total 25.547.539 Fonte: Clculos, Tabulao e Idealizao do Eng Agro Carlos Lorena partir de dados do INCRA. Publicado em "Alguns Pontos de Discusso sobre a Questo da Reforma Agrria: O Caso do Brasil ", Jos Gomes da Silva. ( in, Oliveira, 1991: 33 ).

  • 36

    1.4 - As transformaes recentes na agricultura paulista.

    Com o avano da industrializao e do crescimento urbano, a partir da

    dcada de 50, a agricultura paulista passou por um intenso processo de transformao na

    sua estrutura produtiva. Em meados da dcada de sessenta, as quantidades crescentes de

    crditos agrcolas (do Sistema Nacional de Crdito Rural) financiaram a modernizao

    tecnolgica para alguns setores da agricultura, de forma que esta passou a depender menos

    dos recursos naturais e cada vez mais da indstria produtora de insumos, o que consolidou

    o processo de industrializao da agricultura e promoveu o crescimento das relaes de

    trabalho assalariado.

    Um exemplo desse processo a expanso da cultura da cana, tanto para

    produo de acar quanto para produo de lcool, que contou com subsdios do Estado e

    com os preos garantidos pelo processo de monoplio na produo. Mais recentemente, o

    desenvolvimento da empresa capitalista no campo e a industrializao da agricultura,

    ocorreu tambm com outras culturas para exportao, como o caso do caf, da soja e da

    laranja para produo de suco. As principais agroindstrias se concentraram nas Divises

    Regionais Agrcolas de Campinas, Ribeiro Preto e So Jos do Rio Preto. De acordo com

    os dados do Instituto de Economia Agrcola 1987/1988, estas trs DIRAs controlam 62.2

    % do valor da produo agropecuria do estado de So Paulo.

    No contexto das transformaes recentes, principalmente no perodo

    1970/85, ocorreu um aumento da concentrao fundiria. No incio da dcada de 70, os

    estabelecimentos agropecurios j ocupavam aproximadamente 82% da rea total do

    Estado de So Paulo (24.7 milhes de hectares). Dessa forma, no perodo, ocorreu a

    incorporao de terras dos estabelecimentos de menos de 100 hectares e, em menor

    quantidade, de terras dos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares, para os

    estabelecimentos de mais de 100 a menos de 1.000 hectares (ver grfico 3).

    Um bom exemplo dos fatores que intensificaram a concentrao de terras,

    nesse perodo, foi o processo de territorializao do monoplio agroindustrial canavieiro,

    como mostra o estudo de Thomaz Jr, 1988, 187 e ss. sobre a aquisio de terras das

    pequenas propriedades pelo grupo usineiro Bellodi no municpio de Jabuticabal e regio. A

    lgica da territorializao do processo de compra de terras, do referido grupo,

    predominantemente das terras das pequenas e mdias propriedades.

  • 37

    Isto se explica pelo fato de que os pequenos e mdios proprietrios no

    conseguem competir, na mesma proporo que as empresas canavieiras, com base no

    recursos e nos investimentos que necessitam para poderem colocar suas terras em

    produo. Os investimentos destinados ao setor canavieiro via governo federal, patenteado

    por um cem nmero de facilidades, no se compara com os recursos dispendidos pelo

    crdito rural em geral. Portanto, o poder de barganha desses pequenos agricultores dentro

    dessas balizas muito inferior ao do grupo Bellodi; havendo pois toda uma estrutura

    socioeconmica que materializa e reproduz esse quadro. Em funo disto, ento sero

    poucos os pequenos e mdios proprietrios de terra que tm resistido investida

    monopolista do grupo sucro-alcooleiro Bellodi. Os que resistem em no venderem suas

    terras acabam sendo "obrigados" a se submeterem dinmica dada pela cultura

    predominante, tornando-se fornecedores de cana, ou ainda, cedendo suas terras

    (arrendamento/parceria) para o grupo Bellodi ou para outros grupos usineiros sediados nos

    municpios vizinhos, como tambm a mdios e a grandes fornecedores de cana que atuam

    na rea. Em outras palavras, como tendncia, estes pequenos e mdios proprietrios iro

    Grfico 3 Estado de So Paulo - Aumento percentual do nmero de estabelecimentos e da rea ocupada (1970-1985)

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    aos poucos perdendo sua autonomia, frente contnua e crescente investida do grupo

    Bellodi (Thomaz Jr, 1988, p. 213-214).

    De acordo com Oliveira, 1991, as transformaes recentes da agricultura

    precisam ser compreendidas no processo de internacionalizao da economia brasileira,

    que est diretamente relacionado com o mecanismo da dvida externa.

    O pas fez ou faz a dvida para criar condies ou para ampliar a sua produo. Para pagar a dvida tem que exportar, quer dizer, tem que se sujeitar aos preos internacionais. Como esses preos no que se refere s matrias-primas (gneros agrcolas e recursos minerais, exceto o petrleo) tm baixado nas ltimas dcadas, o pas tem que ampliar a produo para poder continuar pagando a dvida. Para poder aumentar a produo toma mais dinheiro emprestado, conseqentemente aumenta a dvida, o que faz com que ele tenha que exportar ainda mais; logo, os preos internacionais tendem a cair muito mais. (Oliveira, 1991, p. 22-23).

    nesse contexto que se desenvolve a industrializao da agricultura. "Uma

    industrializao que deve ser entendida internacionalmente, pois no h, ou nunca houve,

    uma rgida separao entre as indstrias nacionais e estrangeiras; ao contrrio, a

    histria dos ltimos tempos tem sido uma histria de alianas e fuses com a participao

    ou com o beneplcito do Estado, durante governos militares ou civis." (Oliveira, 1991, p.

    23).

    Esta poltica de desenvolvimento econmico provocou, durante o perodo

    1970/1980, intensas mudanas no campo paulista, marcadas principalmente pelo xodo

    rural, com a diminuio do trabalho familiar e o crescimento do trabalho assalariado.

    Durante a dcada de