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O E S S E N C I A L S O B R E

Marcel Proust

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O E S S E N C I A L S O B R E

Marcel ProustAntónio Mega Ferreira

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Índice

7 Prólogo

13 Preparação para o romance

25 A invenção de Combray

35 Um amor de Proust

47 Do lado de Sodoma

57 O romance inacabado

67 «Um Nilo da Linguagem»

75 Bibliografia

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Prólogo

Sempre me fascinou o caso daquela minhaamigaque,aos18anos,numverãotórridopassadoemAveiro,sedeitounacamaeleu,deumapontaa outra, do início da recuperação do tempo per‑dido ao tempo reencontrado, os sete volumes doromancedeMarcelProust(1871‑1922)A la recher‑che du temps perdu.1Éclaroqueaoportunidadelhefora proporcionada pela inexistência, transitóriae absolutamente imerecida, de um namorado queocupasse as tardes e noites daquele verão adoles‑cente. Mas isso, descontada a ironia, mal disfarçaou não disfarça de todo o meu espanto perantea determinação, a persistência, a endurance, comque a minha amiga devorou, um após outro, osdensíssimosvolumesdequesecompõeomagnum

1 Remeterei,aolongodestelivro,esemprequehajalugararefe‑rênciasespecíficasoucitações,paraatraduçãoportuguesadePedroTamen,publicadapelaRelógiod’Águaentre2003e2005,sobotítulogeralEm Busca do Tempo Perdido.

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opus de Proust, que aqui designaremos de formaabreviada como Recherche.

Eu segui, por acaso, percurso praticamenteinverso. Li o volume de abertura pela primeiravez antes dos 20anos; e depois, à medida que avida, a curiosidade ou algum interesse especialmo pediam, fui abordando os outros, sem ordemnem programa definido. Como um mau leitor deromances policiais, fui a correr à procura do 7.ºeúltimo volume da obra. Tinha pressa de chegaraofim,nessetempoemqueapressaéafiguradaimpaciênciaedanossapaixãopelodesconhecido.Semosaber, seguira opercursodo próprio autor:Du côté de chez Swann e Le temps retrouvé foramos dois primeiros volumes que Proust imaginoue começou a organizar, quando teve a perceçãodo que seria o «arco» do seu romance, o seuprincípio e o seu fim, no verão de 1909. Ao longodos anos, fui recompondo o puzzle: o 3.ºvolume,sobreosGuermantes;depois,e,porcausadeumaerudita discussão sobre Balzac e Wagner, o 5.º; omaravilhoso2.ºvolume,odasraparigasemflor;eo4.º,operturbanteSodome et Gomorrhe.Deixeio6.º entre parêntesis, à espera de um novo fôlego.Enfim, só muito mais tarde, e correspondendo aum projeto antigo a que, com ansiedade, julgavajá não ter tempo para poder atender, li, de umaponta a outra e sem leituras interpoladas, os setevolumes que constituem hoje o grande romancede Proust.

Durante anos, mantive comigo mesmo umaespécie de exercício de desculpabilização: se nãoleraaRecherchedeumfôlegoeraporqueaescritade Proust constantemente me puxava, de dentro

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dela,emtodasasdireçõespossíveis,porqueéissoque a sua caleidoscópica narrativa provoca noleitor atento. O paradoxo da leitura da Rechercheé este: quanto mais concentrado se está na escri‑ta de Proust, mais, muitos mais, são os motivosque nos levam a interrompê‑la, para seguir atrajetória virtual das guias que esta escrita reti‑cularvailançandonoespaçodanossaimaginação.Nãosoucapazdecalcularquantasvezes,aolongodestaintermitenterelaçãode40anos,pouseio(s)livro(s) sobre a mesa, para ir procurar uma refe‑rência, uma alusão, uma qualquer chave históricaou artística; e muito menos quantas me perdi emdevaneios,suscitadospelasugestivaassociaçãodereminiscências e revelações, reais ou imaginadas,com que Proust decora as coisas, todas as coisas,porque, para ele, é nelas que se gera a memóriainvoluntária da realidade que vai inventando.«Proust é um prisma», ensinou, de forma lapidar,Vladimir Nabokov. E acrescentava: «O seu únicoobjetivoérefratar,eporefeitodarefração,recriarretrospetivamente um mundo.» (Proust, Kafka, Joyce, p.50.) Esse mundo, como tal, não existe:eleéoresultadodesseobsessivoexercíciodecria‑ção de um real literário, em que se confundem amemória e a imaginação, e em que o resultado éa modelação de um tempo que lentamente se vaireconstruindo diante dos nossos olhos.

Porém, a própria natureza do romance deProust, a interminável cadeia de recordações,evocações, associações e digressões convocadaspeloNarrador,nãodeixadelevantaraquestão:atéquepontoressoanoromanceotrajetopessoaldeMarcelProust?E,porextensão,abiografiadeum

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autor interessa alguma coisa para lhe compreen‑dermos a obra?

Entre os anos 60 e 80 do século passado, oconhecimentodavidadosautoresliteráriosestevedefinitivamente em baixa, pelo menos no mundocultural dominado pelo pensamento francês. Ro‑land Barthes chegou mesmo, num artigo de 1969significativamenteintitulado«Lamortdel’auteur»,a dizer que a escrita representa a «destruição davoz, da origem» humana do texto. E JacquesDerrida denunciava a ilusão do «significado psi‑cobiográfico», porque a escrita é, acima de tudo,o «desaparecimento de uma presença».

Ora, estas posições encontravam um ilustreantecessor no Contre Sainte‑Beuve, que MarcelProust esboçara nos primeiros anos do séculoxxe cujos materiais viriam aliás a ser reutilizadosparcialmente na escrita da Recherche. Sainte‑‑Beuve (1804‑1869), um influente crítico literáriodo século anterior, sustentara que em nenhummomento era possível separar a obra do seu au‑tor, a escrita literária dos episódios da vida doescritor—a menos que estivéssemos perante oautor de um tratado de geometria. Proust, pelocontrário, entendia que entre o trabalho doescritor e «as suas outras ocupações» não existeintimidaderelevante,porqueotrabalhodaescritase situa num plano inteiramente diferente do davidaquotidiana:«[Sainte‑Beuve]desconheceoqueumafrequentaçãominimamenteprofundadenósmesmos nos ensina: que um livro é o produto deum outro eu que aquele que manifestamos nosnossos hábitos, em sociedade, nos nossos vícios»(Contre Sainte‑Beuve, p.127). Bem prega…

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A Recherche é, como assinalam os seus bió‑grafos,nomeadamenteGeorgeD.PaintereWilliamC.Carter,umainesgotáveltransposiçãodefactos,episódios, tipos e situações que ocorreram nasua vida, e que aqui ressurgem transfigurados(quando não mesmo travestidos) e reorganizadoscronologicamente pela sua imaginação, alimen‑tada por uma capacidade de observação e deretenção verdadeiramente invulgar. O primeirochega mesmo a qualificar o romance como «au‑tobiografia criativa»; Jean‑François Revel, queapreciava o trabalho de Painter, publicado entre1959 e 1965, não vai tão longe, mas defende que«Proustpartesempredequalquercoisaqueviveueexperimentouenãoconstróificções»(Sur Proust,p.8). Épossível que o romance de Proust seja «odesaparecimento de uma presença», aplicando opreceitodeDerrida;masessapresençaétãofortequeignorá‑lasópodeserlidocomoumadenegaçãode recorte quase freudiano.

Tal como hoje o conhecemos (e veremos quenãoeraesseoplanooriginal),oromancedeProustdesdobra‑seemsetevolumes.Sãoeles:Do Lado de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, O Lado de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A Prisioneira,A Fugitiva (Albertine Desaparecida) e O Tempo Reencontrado.Emboraosepisódiosqueointegramseestendamporumperíodolongo(maisoumenosde 1870 até 1920, da guerra franco‑prussiana aofinal da Grande Guerra), a sua atenção incidesobretudosobreabonne sociétéparisiensedofinaldoséculoxixeiníciodoséculoxx,quecorrespondeaotempoemqueMarcelProustafrequentoucom

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maior assiduidade. Este pequeno livro, escritoparaassinalarocentenáriodoiníciodapublicaçãode Em Busca do Tempo Perdido, que se estendeude 1913 a 1927, é uma primeira aproximação aesse universo tão complexo e sedutor que é o doromance‑vida de Marcel Proust, uma pesquisa doque nele é essencial. Tomando a Recherche comofio condutor, recorreremos ocasionalmente acitações extraídas de outros títulos seus e da suavolumosacorrespondência.2Seguiremosopercursodo homem como se se tratasse da construção deuma personagem romanesca; e a construção doromance como o esforço colossal de um homemparacompreender,captaredevolverasubstânciado Tempo que nos consome.

2 ACorrespondance générale,editadaporPhilipKolbentre1970e1993,recolhemaisde5000cartasescritaspeloseupunho;mascalcula‑seque,aolongodasuavida,MarcelProusttenhaescritomais de 100000correspondências (cartas, bilhetes postais,cartõesdevisita,etc.).

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Preparação para o romance

«Longtemps, je me suis couché de bonne heu‑re.» A frase inicial do romance de Marcel Prousttornou‑se,nosúltimos100anos,umdosemblemasque imediatamente identificam, mesmo a quemnunca o leu, o monumental empreendimentoliterário, cuja primeira remessa veio a público,com a chancela do editor Bernard Grasset, masefetivamentepagapeloautor,emnovembrode1913.«Durantemuitotempofuiparaacamacedo»(Do Lado de Swann, p.9), na sua simplicidade quaseanódina,desataumfeixedereminiscênciasquenossituamnoterritóriodainfânciadoNarrador(queéoverdadeiroprotagonistadoromance),vividaemCombray,noseiodasuafamíliaeàdescobertadassuasprimeirasrecordações.Estafraseinicialé,aomesmotempo,umdetonadordemotivosliterários,porque o 1.ºvolume acabará por ser um índicebastantedesenvolvidodostemasfundamentaisdoromance, alguns deles ainda em crisálida.

Esta cena inaugural não era, longe disso, oprimeiro sopro literário do autor: desde 1892 que

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Proust vinha publicando, sem regularidade é cer‑to, mas com alguma frequência, artigos e esboçosliterários, acolhidos na revista Le Banquet, emLa Revue Blanche, em Le Gaulois, mais tarde noLe Figaro, órgão do conservadorismo bem pen‑sante. Em 1896, estreara‑se com a publicação deLes plaisirs et les jours, prefaciado por AnatoleFrance, seu ídolo literário de juventude e modeloinvoluntário de Bergotte, o «grande escritor» queatravessa a Recherche. E, mais ou menos por estaépoca, começara a escrever um romance torren‑cial, de que nos deixaria, abandonado por voltade 1904, inédito e inacabado, um manuscrito de1000páginas escrito na terceira pessoa, que sóveio a conhecer a luz do dia em 1954, sob o títuloJean Santeuil. Tinha já então gostos definidos eecléticos (alimentados pelos estudos de filosofia,literatura,direitoeciênciaspolíticas),umasensi‑bilidadeapuradaeumacertacomposiçãodefiguramundana,quetraziadafrequentaçãodossalõesdeuma aristocracia mediana misturada com a altaburguesia parisiense, à qual aspirava pertencer.

Filho de um ilustre professor de Medicina ede uma mãe de ascendência judia (maman foiuma das figuras tutelares da sua vida, na mesmamedida em que a frieza do pai lhe foi dolorosa),tornara‑se famoso antes mesmo de ter tido aoportunidadedesercélebre.Oseumelhorretratodestaépoca,comotantasvezesacontece,foitraça‑doporalguémquenãooconheceupessoalmente,o escritor italiano Pietro Citati: «[No salão deMme. Straus] sentava‑se sobre um pouf e falava,falava, falava, desdobrando‑se em amabilidades,em achados engenhosos, em galanterias abissais,

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nas quais exibia uma fantasia digna de As Mil e Uma Noites: em cumprimentos também, deco‑rados por um exagero que lhes dava uma graçasuplementar.Asuavozeraporvezesinfantil,porvezes acariciante, por vezes quase estridente, ouvelada como um murmúrio, enquanto os olhoslhe iluminavam o rosto; as mãos longas e finastraçavam no ar movimentos harmoniosos; umadelas encurvava‑se, por vezes, sob o queixo comoque a sustentá‑lo, a outra vinha pousar‑se sobreos lábios para disfarçar um sorriso. Depois, subi‑tamente, desatava num riso contagiante, nascidoda inteligência, do coração e do apetite de viver»(La colombe poignardée, p.24).

Mme. Straus era Geneviève Halévy, que foiumadasmaisconstantesamigasdeMarcelProust.Recebeu‑onoseusalonaindaantesdeelecompletar20anos;suportou‑lheacortefingindonãoseaper‑ceber de que era amada por um amigo do filho;serviu‑lhe de confidente durante três décadas,em correspondência abundante e circunstancia‑da; no final da vida de Proust, era a sua mais fielleitora,apontodeexasperaromarido,obanqueiroÉmile Straus, que se casara com ela em segundasnúpcias. Mme. Straus foi uma das numerosaspaixões,seguramenteplatónicas,alimentadasporProust, social e literariamente. É bem capaz deter sido a mais duradoura. Anna de Noailles (queeleincensoupoeticamente,semrazãosuficiente),Laure de Chévigné (que o desprezou), Laura deMornand(quetalvezotenhaexplorado)eaprin‑cesa Soutzo (um equívoco que acabou nos braçosdePaulMorand)fazempartedogineceudeMarcelProust, a galeria gloriosa de «conquistas» que o

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compensavam da sua afeição predominante peloshomens, quase sempre rapazes.

Eraencantadoregostavadeoser.Tinhaespíri‑to,conhecimentoseoriginalidade.Osamigosmaisíntimos,quelheadmiravamapalavrafácil,aveluda‑da,envolvente,inventaramoverbo«proustificar»para designar esse estilo de conversação elegantee prolixo, requintado e ligeiramente pomposo,cortesão e sedutor, recheado de citações eruditas,que acumulara através das suas leituras vorazes,eadubadoporumamemóriaextraordinária.Masasuafamadediletantenãooimpediradeseoferecercomo voluntário para o serviço militar, em 1890,edesebateremduelo(maisoumenossimulado)com Jean Lorrain, em 1897. Por volta de 1900,apaixonara‑sepelaobradocríticodeartebritânicoJohn Ruskin, do qual traduziria dois títulos (comoauxíliodemamanedeMarieNordlinger,porqueosseusconhecimentosdeinglêseramlimitados),e o prefácio que escreveu para um deles (Sesame and lilies),emtextoqueseencontrapublicadoemportuguês com o título O Prazer da Leitura, seráum dos textos precursores da Recherche; renun‑ciaradefinitivamenteaoseupostonaBibliothèqueMazarine, da qual, presumivelmente, foi o maisglorioso dos funcionários absentistas; fora pelaprimeira vez a Veneza, viagem que, em fixaçãorecorrente,negaráaoNarradordaRechercheatéao6.ºvolumedasérie(A Fugitiva).E,claro,mantinhaa sua relação com Reynaldo Hahn, um pianista ecantor de origem venezuelana, que conhecera em1894equesetornaraseucompanheiroinseparável.Hahn,quenasceraemCaracasdeascendênciaale‑mã,elegeraPariscomolocalderesidência.Quando

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Proust o conheceu, tinha 19anos e uma voz deouro.Amaram‑se(quase)semdisfarces,oquenãoimpediu Marcel de dividir as suas atenções comoutrosjovensnotáveisdacenaparisiense:apaixãonãoduroumuito,masficaramamigosparasempre.

Marcel era enfermiço, prisioneiro dos seusétouffements, sintomas de uma asma que lhe foradiagnosticadacedo,aos10anosdeidade,masqueuma intervenção cirúrgica ao septo nasal apenasservira para agravar. Com a passagem dos anos,a doença, no entanto real, torna‑se‑lhe escusae escape, motivo para não sair do quarto, mastambém, quando lhe dá para isso, razão para irparaomeiodarua,àprocuradoarquelhepermitavencer o afrontamento. Queixa‑se dos nervos, defebredosfenos,dasdigestões,deafeçõescutâneas,do frio. De asmático torna‑se hipocondríaco,porque«comotodososneurasténicos,preocupava‑semuito com a sua saúde», como diz o Narradoracerca do violinista Morel (A Prisioneira, p.186).Por volta dos 30anos, desolado, confessa: «Semprazeres,objetivos,atividadesouambições,comavida à minha frente acabada e com a consciênciado desgosto que causo aos meus pais, é pouca afelicidadequesinto.»Éumtalentonolimbo,umapromessaadiada,umadesilusãoadmitida.Eapenasseconfortacomaideiadequepelomenosoirmãomaisnovo,Robert,médicocomoopai,cumpreasesperançasqueocasalProustdepositaranosfilhos.

Doisacontecimentosfataisvãomarcaroiníciodaquilo a que os especialistas chamam os seus«anoscriativos»ou«anosdematuridade»:amortedo pai, em novembro de 1903, que o liberta docomplexodetersidoumadeceçãoparaoDr.Proust

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(«a vida recomeçou», escreve a Anna de Noailles,uma semana após o funeral, numa carta em queadmite ter sido «o ponto negro» da vida do pai);e, sobretudo, o falecimento da mãe, em setembrode1905,queoobrigaasairdaredomadeproteçãocom que Jeanne Weil sempre envolvera o filhomais velho. Entre os dois desaparecimentos, em1904,abandonaradefinitivamenteoJean Santeuil,pondotermoaquase10anosdetrabalhodeescrita.Emmaiode1905,ainda,escreviaaRobertDreyfus:«Levoumavidamuitodocederepouso,deleiturae de intimidade estudiosa com a mamã.» Tinha34anos.Acomplexidadedarelaçãocomamãe,quepercorreemregistoconfessionalasuacorrespon‑dênciacomMme.Proust(Marcelqueixa‑se,a«chère petite Maman» consola‑o), e em registo alegóricoo romance (aqui, trata‑se sobretudo da avó doNarrador), vai encontrar expressão literária, porexemplo,numtextode1908sobreareceçãodoseuprimeiroartigopublicadonaspáginasdeLe Figaro,destinadoafiguraremContre Sainte‑Beuveemaistarde retomado, quase ipsis verbis, nas primeiraspáginas do capítuloii de A Fugitiva.

Durante um mês, Marcel vai residir na suacama,semtransporaportadoquarto,paranãoterdeenfrentarovaziodacasaondeamãedeixoudeexistir.Depois,comoquerenascendododesgosto,toma uma série de decisões: aceita o tratamentopara a asma que os médicos lhe propõem e quetrazia adiado; decide mudar de residência, aban‑donando o n.º45 da Rua de Courcelles, perto doparque Monceau, o que só fará no final do anoseguinte, indo instalar‑se num primeiro andar nobulevarHaussmann,non.º102,hojesededeuma

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importante instituição financeira; enfim, retomaa escrita e, prolongando um retiro que se iniciaralogo após a morte do pai, evita quase todos oscontactos mundanos que outrora preenchiam asua vida social.

A mudança para o apartamento do bulevarHaussmann,ondeviveraatéàmorteoseutio‑avôLouisWeil,eaherançaavultadaquepartilhoucomRobertvãopermitir‑lhecriarascondiçõesqueelejulga indispensáveis para poder abalançar‑se àescrita de uma obra de fôlego, um novo romance,jáqueabandonaraoJean Santeuil,queoocuparadurante quase uma década. Este é, enfim, o seuterritório:mandaforrarasparedesacortiça,tornao seu quarto de dormir uma espécie de ateliê deonde,deagoraemdiante,vaigerirtodaasuavida,echefiaàdistância(passaestesmesesnumhotel,em Versailles) a decoração, utilizando uma boaparte do mobiliário vindo da anterior residênciapara uma reconstituição maníaca dos interioresdo apartamento da Rua de Courcelles. O restodos móveis manda‑os arrumar num apartamentodo rés‑do‑chão que estava desocupado. Adianteveremos aonde, e em que condições, foram pararestesmóveis,queconstituíamasuaúltimaligaçãoao apartamento onde vivera com os pais até hábem poucos meses.

Lentamente, a máquina proustiana de escritavai pôr‑se em movimento, embora ainda semrumo definido. Uma grande obra está no limbo;a oportunidade proporcionada por um artigoque há muito queria escrever sobre Sainte‑Beuvefoi o rastilho que iria desembocar na Recherche.Naverdade, o artigo, em que começara a pensar

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porvoltade1905,veioaresultar,cincoanosdepois,numconjuntodetextoscommaisde300páginas.Domesmoanoéotexto,járeferido,queantepõeàsuatraduçãodeSesame and lilies,deJohnRuskin,o qual estabelece o tom que será o da primeirapartedoromancefuturo.Nessaaltura,jáasuamãoestava a ensaiar outra coisa, precisamente aquelaque há muitos anos perseguia: o romance quetanto prometera a sua mãe e que tentara, achavaele que sem sucesso, com o manuscrito que hojeconhecemospelonomedoseuprotagonista,JeanSanteuil.ARechercheseráconstruídaprecisamentesobreestaimpossibilidadedequeoNarrador,dadoà «procrastinação», como diz o barão de Charlus,ciclicamente se queixa. E remata com a revelaçãoquelhepermitecomeçaraescreveroromancequeacabamos de ler.

ProustcomeçouacomporContre Sainte‑Beuvenooutonode1908numaaparentetentativadesedemarcardocríticooitocentista.Masomanuscritoé mais, muito mais do que isso, e, sobretudo,com o tempo, irá tornar‑se coisa completamentediferente. O tom geral é dado pelo prefácio, queapenasdepassagemfaladeSainte‑Beuve,eparaorelativizarenquantoassuntodoensaio:«OmétododeSainte‑Beuvenãoétalvez,aumaprimeiraabor‑dagem,umtemaassimtãoimportante.»Oqueelevisa, através da intrincadíssima teia de sugestões,reminiscências, associações e reconstruções, éafirmar a «inferioridade da inteligência», emborareconhecendoque«sóelaécapazdeproclamarqueoinstintodeveocuparoprimeirolugar[nahierar‑quiadevirtudes]».Sainte‑Beuve,cujaprolixidadee diversidade de interesses literários é terreno

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fértil para as explorações de Proust, serve‑lhe,emnegativo,paraafinarassuas«intuições»sobrealgunsdosautoresquelhesãomaiscaros:Balzac,Baudelaire, Nerval. E se iniciara o ensaio procla‑mando que «cada dia atribuo menos importânciaà inteligência», não é difícil deduzir que a obradessescriadores(largamenteincompreendidaporSainte‑Beuve, devido à fria materialidade do seumétodo,feitodaacumulaçãodeinformaçõessobreos autores e de uma deficiente leitura dos textos)é que ocupa o centro das reflexões de Proust.

Mas o ensaio, que, quase de certeza, começoupor essa intenção de elaborar uma tese muitocrítica sobre os «erros» de um autor que noprincípio do séculoxx ainda era lido e prezado,transbordadassuasmargensprogramáticaserapi‑damenteevoluiparaoutroscéus,quenoscomeçamaaproximardaquiloquehojeconhecemoscomooseugranderomance.Hápáginasquepassarãoparaas da Recherche quase intactas, outras que anun‑ciammotivosquesurgemmuitodesenvolvidosnoromance,figurasquecomeçamaanteciparalgunsdos seus tipos inesquecíveis. Os primeiros capí‑tulos, sobre os «Sonos», os «Quartos», os «Dias»,já contêm, em potência, o início do romance;aqui irrompem, como figura social da projeçãodas expectativas do Narrador, os Guermantes; enumperturbantetextosobrea«raçamaldita»(oshomossexuais, sistematicamente designados por«invertidos», já que a expressão culta, de origemalemã, só entrará na linguagem dos salons algunsanos depois), esboça‑se, sob o nome de M.deGuercy, a silhueta do barão de Charlus, que setornará uma das personagens fundamentais do

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romance.Háaindaestabelatirada,queéumadaschaves para compreender a sua noção expandida,plástica, material do tempo:

«Poucoimportavaqueeuficassedeitado,decortinascorridas.Àmínimamanifestaçãodeluzoudeodor,eusabiaqueahoraexistia,nãonaminhaimaginação,masnarealidadepresente do tempo, com todas as possibili‑dades de vida que ela oferecia aos homens,nãocomoumahorasonhada,mascomoumarealidade na qual eu participava, como umgrauacrescentadoàverdadedosprazeres.»(Contre Sainte‑Beuve, p.68.)

É claro que, em Contre Sainte‑Beuve, se reco‑lhiam não apenas textos escritos sob a inspiraçãodo momento, mas outros de fatura anterior, quevinham,deacordocomsuapeculiarvisãodolivroque queria (então) escrever, trazer água ao seumoinho. Proust usou, para o ensaio, o método deaditamentoecolagemqueseráoseuparaacompo‑siçãodoromancequeseanuncia:maisdoqueumensaiosobreSainte‑Beuve,Contre Sainte‑Beuveéoensaioparaoseuromance.Numaletraminúscula,cerrada,nãopoucasvezesilegível,enchiafolhasecadernos (ficaram‑nos 95), enriquecendo‑os comuma rica marginália, que não poucas vezes virá aservir aos especialistas que se debruçaram maistarde sobre a sua obra. Escrevia, selecionava,rasurava, substituía, interpolava: «Proust nuncaescreveu de uma maneira linear», observa Ber‑nard de Fallois. Fabricava um universo, ele queconsumia o tempo deitado na sua cama, entre

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fumigaçõesenarcóticos,recebendoosamigosdascinco às dez da noite, mas cada vez mais afastadoda vida mundana, que em altura anterior da suavida o ocupara quase exclusivamente.

Contre Sainte‑Beuve foi o título que ocupouo espírito de Marcel Proust entre finais de 1908e 1910. A obra conheceu, entretanto, diversosestádios, obedecendo a planos constantementerefeitos, e o exame dos manuscritos permitiu aosinvestigadoresdeterminaraforma,quaseimperce‑tível primeiro, depois decidida, como o autor sevai desprendendo das suas ideias iniciais e mer‑gulhando no desenho das situações e figuras queirão consolidar as traves‑mestras da Recherche.Mesmo quando aquele que será o 1.ºvolume doseuromanceseencontrapraticamenteterminado,ainda fala de Sainte‑Beuve como de um projetode escrita não definitivamente abandonado. Mas,desentranhando‑sedosmateriaisacumuladosparaesseensaio‑romancequenuncachegaráaconhecerforma definitiva, uma nova ideia, uma novaconceção começa a impor‑se no verão de 1909:conhecemo‑la pela sua formulação editorial em1913,resultantedalaboriosaconfeçãoqueoocupaentre1910e1912.Trata‑sedeumromanceemtrêsvolumes, assim designados: Do Lado de Swann,O Lado de Guermantes, O Tempo Reencontrado.

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A invenção de Combray

Escrito e reescrito febrilmente entre 1910e 1912, entre crises de asma cada vez mais fre‑quentes e os primeiros sinais do que viria o seudescalabro financeiro, o volume de abertura doromance, Do Lado de Swann, só veio a ser publi‑cadoapósumasériedeperipéciasecontratemposeditoriais, que acabaram por determinar a estru‑turaeaconfiguraçãofinalda Recherche.Ficamosa devê‑la, assim, e ainda que indiretamente, auma recusa de publicação, formal e definitiva, doContre Sainte‑Beuve,comunicadaaMarcelProustno verão de 1909 pelo editor Alfred Valette, quedirigia a revista Mercure de France e a casa edi‑tora que lhe estava associada. Proust propusera‑‑lhe um romance, a publicar de preferência emprincípios de 1910: «Estou a terminar um livroque,apesardoseutítuloprovisórioContre Sainte‑‑Beuve. Souvenir d’une matinée, é um verdadeiroromance…»Queteriaacontecidose,maissensívelaos argumentos do autor, Valette tivesse anuídoa publicar o manuscrito que, uma vez impresso,

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devia deitar para cima de 400páginas, segundo ocálculo de Proust?

Certoéque,recambiadaasuaproposta,oautorpareceuresignar‑seadeixarinéditoomanuscrito,limitando‑se a anunciar a Georges de Lauris,um dos seus mais assíduos correspondentes, aintenção de o ler aos amigos. Mas não: obtém,aindaduranteoverãode1909,dapartedeGastonCalmette,quedirigeLe Figaro,ocompromissodepublicar,naspáginasdoquotidianoparisiense,osprincipais capítulos do seu romance. A Calmettejá não fala de ensaio, apenas de um romance, aque continuará a chamar, durante algum tempo,Sainte‑Beuve,àfaltadetítulomelhor.E,parafazerfaceàencomenda,atira‑se,apartirdooutono,aotrabalho de reescrever, fixar, expandir, montar(«editar», diríamos hoje) o texto de um romanceque,noentanto,aspáginasdoFigarojamaisvirãoa conhecer, a não ser através de excertos cuida‑dosamente escolhidos por Proust e publicados apartir de março de 1912.

Nos dois anos que entretanto tinham decor‑rido, com o apoio de dactilógrafos e, até, de umaestenógrafa,continuaraaaumentaroseumanus‑crito,doqualtinhapraticamenteprontaamatéria(Combray/Swann/Nomes de terras: o nome) doque será o volume inicial, onde aparecem fixadasalgumas das personagens e dos temas principaisda Recherche. Trabalhava então na segunda partedesse volume, que se passava em Balbec e ondeencontrava as «jeunes filles en fleurs». Em finaisde março, confessa a Georges de Lauris: «Estoumuito embaraçado com a decisão a tomar quantoao meu romance. Será melhor publicar um único

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volume de oitocentas a novecentas páginas? Oudois volumes de quatrocentas páginas cada um?Duasobrasdequatrocentaspáginas,cadaumacomo seu título e sob um título comum.» Seis mesesdepois,porintermédiodeGastonCalmette,Proustentra em conversações com a editora Fasquelle,à qual propõe um manuscrito de 712páginas in‑titulado Le temps perdu; mas, algumas semanasmaistarde,quandoiniciacontactosparaleloscoma editora da Nouvelle Revue Française (N.R.F.),dirigida por Gaston Gallimard, começa por falardeumromanceemdoisvolumes,de750e500pá‑ginas,acabandoporsefixarnumaobraintituladagenericamenteLes intermittences du coeur,divididaemtrêsvolumes:Le temps perdu,L’adoration per‑pétuelle (ou A l’ombre des jeunes filles en fleurs),Le temps retrouvé. Embora a estrutura da obra seváclarificando,aextensãodoromancecontinuaaser relativamente indefinida.

Nas vésperas do Natal de 1912, Proust recebe,umaapósoutra,asrecusasdaFasquelleedaN.R.F.Esta é a que o fere mais, porque era a editoraonde publicavam alguns dos escritores que maisadmirava, entre os quais André Gide, ao qual,precisamente, fora confiada a leitura do manus‑crito.Ora,Gide,comoviriaaconfessarmaistarde,limitou‑se a folhear o original, rejeitando‑o maisporparti‑prissocialdoqueporexigênciaestética.Conhecia Proust há mais de 20anos, por teremfrequentado os mesmos salons; tinha dele a ideiade um homenzinho fútil, sem obra que se visse, anão ser as duas traduções de Ruskin; conhecia‑odos artigos do Le Figaro, que era tido como umjornal conservador e literariamente académico.

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Semanasmaistarde,terceirarecusa,adasediçõesOllendorff, esta em termos chocantes que se tor‑nariamcélebres:«nãoconsigocompreendercomoum cavalheiro gasta trinta páginas a descreveras voltas e reviravoltas que dá na cama, antes deadormecer», escreve o editor Humblot. Emboraabalado, Proust não desiste: tentará tudo e, senão encontrar editor, far‑se‑á «impressor» paraassegurar a publicação da sua obra.

ApróximatentativaserájuntodojovemeditorBernardGrasset.Proustpropõe‑sepagaraediçãoe,ainda,fazeroeditorpartilhardosresultadosdavenda. Nem sequer lhe envia o original; em finaisde fevereiro, recebe uma resposta positiva—eincondicional.Emmarçode1913,fechaostermosdo acordo e envia o manuscrito; em maio recebeasprimeirasprovaseapercebe‑sedequeovolumedeitará para cima de 800páginas; passa o verãoem revisões, que aumentarão muito a extensãodo original, e em angústias quanto à dimensãodo volume, ao título, à reação do público. Decide‑‑se, por fim, a dividir esta primeira parte em doisvolumes, deixando o longo capítulo sobre «as ra‑parigas em flor» para um 2.ºvolume: 200páginasque, quando o livro vier a ser publicado, em 1919,cresceram para quase 600…

Do Lado de Swann é finalmente editado emdezembrode1913:tem523páginas(446naediçãoportuguesa de referência) e anuncia‑se como aprimeira parte de um romance em três etapas:O Lado de Guermantes (incorporando o episódiodas raparigas em flor) e O Tempo Reencontradocompletarãoestaexploraçãodos«doislados»quedefinem Combray—o lado onde fica a casa de

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CharlesSwanneoladoondeficamaspropriedadesdosGuermantes.Estageografiaseráescrupulosa‑menterespeitadanodesenvolvimentoposteriordaobra. Um dos achados da arquitetura romanescade Proust começa nesta «invenção» de Combray,umatransposiçãomuitocriativadaIllierspaterna,ondeProustiadefériasnainfância:«nãopassavade uma igreja que resumia a cidade», mas é acidade que constitui o espaço de representaçãodas primeiras recordações do Narrador. Ora, esteNarrador (o je que o define desde a frase inau‑gural) é uma personagem de corpo inteiro, queProust vai construir a partir de uma infinidadede episódios da sua vida, mas também de tudo oque foi apreendendo, através do tempo, acerca davida dos outros. Proust está no Narrador (que atése chama Marcel), mas não é ele.

EmCombray,oquartodedormirera«opontodoloroso e fixo das minhas preocupações», aprimeiradasquaisaansiosaesperapelobeijoquea mãe lhe dava (ou não) ao deitar. A angustiantevigília desencadeava, não poucas vezes, uma tor‑rentedepensamentoseassociações,agorafiltradaspelaexperiênciadoTempodentrodoqualviveuoNarradoratécomeçaraescreverasuaobra.Eaíselibertamalanternamágicadoquartodedormir,ahistóriadeGoloedeGenevièvedeBrabante,ante‑passadadosGuermantes,acoscuvilhicebizarradatiaLéonieeaincontornávelmadalenamergulhadanochádetília;adescobertadeBergottecomoseuprimeiro ídolo literário; e a conversa inicial deMarcel com Swann,o snobismo envergonhadodeLegrandin, o nome de Gilberte, a filha de Swann,gritado entre os espinheiros rosados—uma apa‑

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rição, uma epifania; o petit noyau dos Verdurin, afrase musical da sonata de Vinteuil e a revelaçãoda homossexualidade da filha do compositor,a vulgaridade insinuante de Odette e o registosismográfico do ciúme de Swann, o comboio daumaevinteedoisdatardeparaBalbec(oudaumaetrintae cinco, ou daumaecinquenta,o horárioétãoinstávelcomoopróprioTempo),o«encantodoloroso» dos nomes e o balbuciar do amor deMarcel por Gilberte. Enfim, a última impressãosensível, quase a terminar este 1.ºvolume do ro‑mancedeProust:operfumedasacáciasnoBoisdeBoulogne, o qual, «irradiando em seu redor, faziasentir de longe a aproximação e a singularidadedeumapoderosaemoleindividualidadevegetal».

Do Lado de Swann é um sumptuoso (e volup‑tuoso) prólogo de uma ópera wagneriana, em quetudo—amúsica,apoesia,apintura,afilosofia,ascoreseaNatureza,ossentimentoseasaspirações,e os sentidos, todos os sentidos—é convocadosinestesicamente para preencher o espaço daconsciência do Narrador e modelar o Tempo dasua vida, através da escrita do romance. Estão lá,por vezes meramente esboçados, todos os temasfundamentais da Recherche: a rigidez social dascastas e as estratégias aspiracionais da burguesia;a condição judaica e a homossexualidade; a culpaedipianadoNarradoreaperspetivasempreadiadada expiação; o amor e o ciúme; a sinceridade e ahipocrisia;a«universalidadedodesejo»eohábito;aperdaealibertação;odiletantismoeacriação;abusca da Beleza e a revelação pela Arte. E muitosdosleitmotivequereencontraremosnoseguimentodoromance:osnobismodespeitadodosVerdurine

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doseu«pequenoclã»,aarrogânciasuperficialdosGuermantes, a benevolência sábia e protetora daavó do Narrador, a sonata de Vinteuil (que maistardese«ouvirá»emsepteto),Méséglise(oamor)eMontjouvain(ovício),oteatrodeRacineeacor‑respondênciadeMme.deSévigné,aBerma(grandeatriztrágica,cujomodeloéSarahBernhardt)eosespinheiros (jeunes filles déguisées en fleurs, quereaparecememqualquercircunstânciacomosinalderevelação),amadalenaeochádetília(verdadeirodetonador de evocações), e a pintura de Vermeer,queSwanntãobemconheceequeBergotte,mori‑bundo,descobrirácomoaverdadeiraliçãodearteque ele não soube interpretar a tempo.

Ora, é a figura de Charles Swann que dominaeste 1.ºvolet do romance. Swann, filho de umriquíssimo agente de câmbios de ascendência ju‑daica, é íntimo das cabeças coroadas e por coroarda Europa e benquisto nos salões do faubourgSaint‑Germain, onde se acantona a alta aristo‑cracia parisiense: «um conjunto sociológico maisque topográfico» (Raczymow, p.149). Amigo dosavós do Narrador, é visita habitual da casa deCombray, onde se distingue pela sua elegâncianatural, conversa inteligente e gosto requintado.O mesmo não acontece com a mulher, Odette deCrécy, a quem o barão de Charlus sempre negouqualquer parentesco, ainda que remoto, com osCrécy que pertenciam ao «lado de Guermantes».Odette, uma antiga mundana convertida pelapaixãoobsessivaedoentiadeSwann,transformara‑‑se numa razoavelmente discreta mãe de família,embora, quando o romance começa, a família doNarradorlheatribuaumaligaçãoescandalosacom

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o barão de Charlus—o que, como se verá lá maispara diante, era altamente improvável, não talvezpor ela, mas por causa das inclinações sexuais dobarão. É precisamente sobre a natureza ambiva‑lente desta «paixão funesta» de Swann, em que àmáxima dependência afetiva corresponde o maisexacerbado ciúme, que se desenvolve a 2.ªpartedo volume, «Um amor de Swann», que com estetítulo chegaria a ser publicado autonomamente,depois da morte de Proust.

A personagem de Swann foi modelada sobre afigura de Charles Haas, o qual, embora já tivessepassado os 50anos quando Proust o conheceu,continuava a dominar os salons com o prestígiocintilante da sua presença e da sua erudição.Proust tinha por ele uma admiração sem limites:invejava‑lhe, talvez, a desenvoltura com que semovia nos meios aristocráticos, apesar de serapenas um burguês de alto perfil. No romance,Swann torna‑se igualmente uma referência e ummodelo para o Narrador, prisioneiros ambos damesma impotência criativa. Em certa medida,Swann é a matriz sobre a qual Proust desenvolvea personagem do Narrador: assim o demonstramos destinos paralelos dos dois, a acessão social deMarcelaofaubourgSaint‑Germaineasuapaixãopor Albertine, que segue os mesmos passos daperdição do seu mentor por Odette.

Swann descobre o seu amor por Odette, queconheceraemcasadosVerdurin,porcausadeumacertasemelhançacomumafiguradeumquadrodeBotticelli.Eestaidealizaçãofantasmática(Swanntem,sobreamesadetrabalho,umareproduçãodoquadrodomestreflorentino)levá‑lo‑áamergulhar

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numa paixão doentia, obsessiva, febril, por estacocotterefinada,queoprendeporqueseescapa,oilude,lhemente.Mais:éporqueOdetteselheapre‑senta como incaptável, volúvel, temperamental,que Swann nela investe toda a energia do seuciúme. Como se diz em Sodoma e Gomorra, «é danatureza do amor tornar‑nos ao mesmo tempomais desconfiados e mais crédulos». No universodeProust,opoderdamentiraéfazerdociúmeumcatalisadordossentidosedapaixãomaisfortequea verdade que ninguém quer conhecer.

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Um amor de Proust

É difícil imaginar um ano mais fasto e produ‑tivo para o romance de Proust do que esse 1913,em que as sombras da guerra pairam sobre aEuropa. Como já vimos, é durante esse ano queProustencontra,finalmente,umeditorparaoseuromance, na pessoa de Bernard Grasset, e que sedesenhaaestruturafundamentaldaobra.Mas,nomeiodoafãcomqueoautorsededicaàreescrita,edição,revisãoeaprontamentodaquiloqueseráo1.ºvolumeda Recherche,ocorremnasuavidadoisfactosqueinfluenciarãodecisivamenteasubstânciae a forma de tudo o que está para vir.

Nosmesesfinaisdoano,entraaoseuserviçoamulherdomotorista,CelesteAlbaret,governantae confidente a partir do ano seguinte, com aqual travará uma extraordinária relação literária.Celeste, que tem da vida e das coisas uma noçãobastante primária, é, tal como o seu patrão, uma«esponja» capaz de reter, ainda que de formaenviesada, tudo aquilo a que a convivência comProustaexpõe.Torna‑seconfidentedele,porqueé

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recebidanamuitoexclusivaintimidadedoescritor;mima o snobismo do meio em que ele se move,o que, nela, redunda numa «snobeira» atravésda qual Proust exercita o seu apurado sentidode humor; e guia‑o, como uma mãe‑madrinha,preservando‑o do mundo exterior e cobrindo‑ocomumaredomaafetivaemtudosemelhanteàqueamãeosubmetera.Celesteirrompenaescritadoromance como a substância do presente com queProustvaicomporapersonagemdeFrançoise(noromance,umavelhacriadadefamíliadoNarrador),transformando‑a numa figura de densidade einfluência invulgares sobre o comportamento doNarrador. Proust achava que Celeste era uma daspessoas mais inteligentes que tinha conhecido eo Narrador da Recherche partilha, em relação aFrançoise, da opinião do seu criador. Em CelesteAlbaret,queoserviráatéàmorte,Proustencontrauma indefetível guardiã dos seus hábitos, que as‑sumirá papel determinante nos dois volumes quededica à sua paixão (e à subsequente libertação)por Albertine.

MesesantesdeCelesteterentradoaoseuserviço,em maio, quando Proust andava em negociaçõescom Grasset, bateu à porta do apartamento dobulevar Haussmann um antigo conhecimento:Proust fora conduzido, em 1907, por um jovemmotoristadeorigemmonegasca,AlfredAgostinelli,numadassuasprimeirasexcursõesemautomóvelpela Normandia. Num artigo sobre as suasimpressõesdeviagem,publicadonoLe Figaro,emnovembrodesseano,chamavaaAgostinelli,cujasvirtudeslouvava,«freiradavelocidade»,referindo‑‑se à indumentária específica que os condutores

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de automóvel usavam na época. Eexprimia odesejo de que a sua paixão pelas máquinas velo‑zes (automóveis e aviões) não fosse «um augúriodo seu martírio». Agostinelli, a quem um amigofizera chegar o artigo, escreveu a Proust umacarta que surpreendeu o escritor pela delicadezadas expressões e pela sensibilidade que revelava.Encontraram‑se em alguns dos verões seguintes,porque Proust habituou‑se a ir de férias paraCabourg (o modelo da Balbec da Recherche) e acontratar Agostinelli para o conduzir nas suasdeambulações pela região. Ganhou‑lhe afeto, masnão mais do que isso. Se algum outro sentimentoexistiaemProust,elemanteve‑seadormecidoatéessediadaprimaverade1913,emqueAgostinelli,lembrando‑se da afabilidade e disponibilidade doescritor,lhefoipedirauxílio.Estavadesempregadoe em difíceis circunstâncias económicas. Proustacolheu‑o no bulevar Haussmann, com a suacompanheira Anna, e nomeou‑o seu secretário,com o encargo de dactilografar o manuscrito doromance.

Háhojepoucasdúvidas,entreosespecialistas,dequeAgostinelliconstituiuoingredienteafetivoque permitiu a Proust compor, em toda a diver‑sidade de efeitos de que a sua escrita era capaz,o romance de amor do Narrador por Albertine,exaustivamente narrado no 5.ºvolume da obraA Prisioneira.Nemnonome,nemnaambiguidadesexual sugerida, entre outros, por Carter, Alfredpode ser assimilado a Albertine. Menos ainda,tanto quanto sabemos, na tocante docilidade deAlbertine,queaceitaasuacondiçãodeprisioneirado Narrador, ou, inversamente, na sua reiterada

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práticadamentiraedodisfarce,oquenãopareceteracontecidocomAgostinelli.Masascircunstân‑cias denotam um paralelismo de situações que sópodequerersignificarqueProust,comoemtantasoutras ocasiões, se apropriou de um episódio dasuavidaparaofazerfigurar,portransposição,noromance que estava a escrever.

Emprimeirolugar,porqueProustfazbrotarapaixão do Narrador por Albertine de uma remi‑niscência do passado, tal como o reaparecimentona sua vida de Agostinelli vai irromper como arevelaçãodeumapaixãoaque,talvezcomexagero,se referirá mais tarde como a maior da sua vida.Intensa,maspresumivelmentenãocorrespondidacomo tal, a paixão de Proust estava condenada anão durar muito: manteve Agostinelli aperreadodurante seis meses no apartamento do bulevarHaussmann—exatamente o mesmo tempo queAlbertine aguenta, no romance, a prisão douradaem que o Narrador a encerra; desdobrou‑se emtentativas para o fazer voltar, percurso tambémseguido pelo Narrador, em A Fugitiva; escreveuumacartaemquelheanunciavaacompradeumaeroplano e de um Rolls‑Royce—e retoma essacarta (o aeroplano transforma‑se em iate), quaseipsis verbis, noromance;enfim,Agostinellimorreunumdesastredeavião(inscrevera‑senoclubedeaviação com o pseudónimo Marcel Swann, o quenão pode deixar de ter sensibilizado um Proustdestroçado), em maio de 1914—e Albertine saida vida do Narrador porque cai dum cavalo emCombray. As coincidências são demasiadas parao serem simplesmente. Tal como Proust estáno Narrador sem o ser verdadeiramente, assim

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também Agostinelli está em Albertine—mas não é Albertine a não ser como motivo inspirador,e provavelmente apenas depois da sua trágicamorte.

O«crescimento»deAlbertinecomopersonagemmaiordoromancedeProustvaiinfluenciarretros‑petivamente(masacronologiada Recherche,jásesabe,ébastantesui generis)areescritaeexpansãode À Sombra das Raparigas em Flor, que ganhaautonomia e acabará por se tornar o 2.ºvolumeda obra. Ao mesmo tempo, a eclosão do episódioamoroso vai permitir ao escritor, qual organistatocandosimultaneamentediversosteclados,iniciarotrabalhodecomposiçãodeA PrisioneiraeA Fu‑gitiva,aomesmotempoquetrabalhaemDo Lado de Guermantes e refunde substancialmente o seuplano inicial para Sodoma e Gomorra. Mas o seumétodo de trabalho (que nunca é linear, relem‑bremos)permite‑lhedominartodosestestecladoscom a mesma intensidade de escrita, tornandoa estrutura do romance cada vez mais flexívele distendida e a sua harmonização, embora nãodespidadeanacronismosecontradições,verosímile consistente com a sua ideia fundamental. Nãoanunciara ele, no 1.ºvolume, que Gilberte, filhade Swann e de Odette, viria a casar com Robertde Saint‑Loup? Pois bem, ao iniciarmos a leiturado último volume, O Tempo Reencontrado, aí estáGilberte,jácasada,masnemporissomuitoamada,com Saint‑Loup, que fora amigo do Narrador edequemesteentretantosedesgostaraporlheterdescobertoinclinaçõeshomossexuaissemelhantesàsdoseutio,obarãodeCharlus.Numalonganotaescrita em novembro de 1915, dirigida a Marie

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Schéikévitch,Proustdácontadosdiversospassosda relação do Narrador com Albertine (incluindoa cena final, em que Françoise anuncia a MarcelqueA Prisioneiradecidiupartir),oquequerdizerque a estrutura de A Prisioneira (e certamentegrande parte do texto) já estava definida então.E, na mesma nota, certas citações extraídas deSodoma e Gomorra mostram que a escrita destevolumejáiabastanteadiantada(Essais et articles,pp.255‑260).

ReferimosantescomoarecusadoContre Sainte‑‑Beuve, em 1909, pode ter sido o golpe de sorteque nos permitiu ter o romance da Recherche,tal como o conhecemos. Ora, o início da GrandeGuerra,emagostode1914,éoutradessascircuns‑tâncias adversas que permitiram que o romancecrescesseemtodasasdireções.Emfinaisde1913,Proust projetava que o 2.ºvolume da sua obra,então intitulado O Lado de Guermantes, viesse aser publicado em maio de 1914. Mas, em março,quer por causa das perturbações causadas nosseus hábitos pela fuga de Agostinelli, quer devidoao agravamento do estado de saúde (as crises deasmaeasinsóniasintensificaram‑seeProustviviadas chávenas de café—17, ao que ele diz—que odespertavam dos pesados soníferos), quer aindaporqueasuasituaçãofinanceirasedesestabilizaraem consequência de investimentos ruinosos, oescritor avisa Grasset de que a publicação nuncapoderá ocorrer antes de outubro desse ano. Umaoutrarazãoplausívelparaesteadiamento,tãocon‑traditóriocomaurgênciacomquesempreexigiaapublicaçãoimediata,foio«namoro»queaN.R.F.começara a fazer‑lhe. Do Lado de Swann obtivera

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um sucesso muito para lá do que Proust ou o seueditor podiam esperar; André Gide, que recusarao original liminarmente, escreveu‑lhe uma belacarta de arrependimento, confessando que tinhafolheado o manuscrito «d’une main distraite»; eJacques Rivière, que em breve se tornaria chefede redação da revista, tornou‑se o seu mais entu‑siástico apoiante e promotor junto dos seus com‑panheiros. Proust não tinha qualquer razão paraabandonar Grasset, a não ser o seu desejo, nuncaescondido,deserreconhecidopelosseusparesdaN.R.F.NasceaquiaruturacomGrasset,queseráconsumada dois anos depois. Mas, em setembrodesse ano, tendo visto os primeiros mutiladosde guerra, durante a sua permanência estival emCabourg, toma a decisão drástica de só voltar apublicar no final da guerra, sem poder anteciparque ela ia durar ainda quatro anos.

Em O Tempo Reencontrado, Proust põe o Nar‑rador de regresso a Paris em 1916, muitos anosdepois, em plena guerra. Ora, é por volta desteanoqueoescritorretomaalgumaatividadesocial,possivelmentealiviadopornãoterdecumprirumprazo fixo para acabar a escrita da obra que tementremãos.SemAgostinelliparavigiar,Proustnãose sente pressionado pelos calendários de ediçãodo romance, cuja sequência virtual se espraia pordezenas de cadernos manuscritos, à espera daversão definitiva que só pode existir a partir dasprimeirasprovastipográficas.Osefeitosdaguerra,queoNarradorvaicomprovarmaistarde,aoreen‑contrarasuamitificadaCombraysemi‑destruída,fazem sentir‑se na capital, alterando os hábitos,as paisagens e os costumes: Proust pressente que

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o mundo não voltará a ser o mesmo e é por issoque os últimos volumes da Recherche se fazemeco dos abalos que o conflito veio provocar naestrutura social e nas representações mentais doseu tempo. Literariamente, os acontecimentosexterioresinteressam‑lheapenaspeloreflexoqueprovocamnassuaspersonagensefigurantes,comose o romance fosse um jogo de espelhos, que oraaumenta, ora diminui e esbate os contrastes, ohorror e a miséria moral da realidade.

À Sombra das Raparigas em Flor virá a serpublicado em meados de 1919 pelo editor daN.R.F.,GastonGallimard,e,poucosmesesdepois,é distinguido com o mais importante prémioliterário francês, o Goncourt. Proust é, enfim,reconhecidocomoumgrandeescritor.O2.ºvoletdo romance crescera muito, «empurrando» otrabalhodecriaçãodamitologiadosGuermantespara volume posterior. Em 1919, o editor falavajá da Recherche como um romance «em cincovolumes», não mencionando ainda nem A Pri‑sioneira nem A Fugitiva. Tal como Combray eraoteatroondeserepresentavaatragicomédiadosarrebatamentosinfantisdoNarrador,assimBalbecvaitransformar‑senocenáriodosseusdeslumbra‑mentos adolescentes. Balbec é uma transposiçãoporventura ainda mais literal de Cabourg, queProust começara a frequentar em 1907: o Grand HôtelondepõeoseuheróiaestanciarétiradodohoteldeCabourgondeseaboletou,desseanoemdiante. E é possível que muitas das personagense figurantes deste 2.ºvolume se tenham inspira‑do em vultos, perfis e silhuetas que entreviu emCabourg, ao longo dos anos.

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Ogrupodejeunes filles en fleursque,comoumaexplosãodeluz,ocupaocentrodoquadro,étalvezuma transposição de um grupo de rapazes queandava pela praia. Na economia do romance issopoucoimporta,porqueadescriçãodascambiantesafetivas que todas e cada uma dessas raparigas lheprovocaméindependentedoobjetoqueassuscita.Aoprincípio,oNarradordeslumbra‑secomogrupo.Depois,umaapósoutra,oNarradorvaiapaixonar‑se(oujulgar‑seapaixonado)portodaselas,aomesmotempo que lhes inveja a independência e alacrida‑de e suspeita que se entregam umas às outras emjogos amorosos proibidos e escandalosos. As suassuspeitas incidem sobretudo sobre Albertine eAndrée, que parecem inseparáveis, e são precisa‑mente elas que o Narrador vai eleger como objetoda sua atenção obsessiva e de um ciúme doentio.Otemadahomossexualidadefeminina(Gomorra),queaparecerasugeridoemDo Lado de Swanncoma cena da sedução da filha do compositor Vinteuilporumaamigamaisvelhaecertasperguntasindis‑cretasdeSwannaOdette,ganhaaquiaconsistênciaque o tornará, juntamente com o da «inversão»masculina (Sodoma), um dos motores dominantesda Recherche. Como a sequência do romance vaimostrar, os desejos de Marcel são sempre desen‑cadeados por essa suspeita de um comportamentosexual«desviante»,constantementeocultadopelosseusatorese,nessaocultação,constituindoalimen‑to inexaurível da paixão do amante. «A mentira éessencialàhumanidade»,escrevemaistarde.«Neladesempenha porventura um papel tão importantecomoaprocuradoprazer,ederestoécomandadapor essa própria procura.» (A Fugitiva, p.199.)

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MasÀ Sombra das Raparigas em Florrevelaain‑da uma outra personagem que será figura tutelardaeducaçãoartísticadoNarrador.Proustassentaraa criação da consciência estética de Marcel numtrivium virtuoso: a música, a pintura, a literatura.E se começara a desvelar as figuras de Vinteuil(amúsica)e de Bergotte(a literatura)no 1.ºvolu‑me, é aqui que dá corpo a uma formidável ficçãopoética, a do pintor Elstir (anagrama imperfeitode Whistler). Enquanto Bergotte era diretamentetransposto de Anatole France (que prefaciara,recorde‑se, o seu livro inaugural, Les plaisirs et les jours, em 1896), e, por isso, condenado a mor‑rer literariamente quando o Narrador deixou deo considerar uma expressão das suas aspiraçõesartísticas, Vinteuil e Elstir permanecerão comoreferências incontornáveis ao longo de todo o ro‑mance.OepisódiodamortedeBergottediantedeumquadrodeVermeer,narradoemA Prisioneira,éumassassínioritual,queabreespaçoparaoutrareferência literária na consciência artística deMarcel.NadanosimpededeimaginarqueProustpensavaemsimesmocomonovomentorliteráriodo seu Narrador, aquele que o faz escrever.

Pelo contrário, Vinteuil e Elstir são figurascompósitas,ocompositorforjadoapartirdeFauré,CésarFranckeDebussy(Wagneréaoutragrandereferênciamusicalda Recherche),opintormodela‑dosobreTurner,Monet,Degas,RenoireWhistler.A arte de Elstir, a sua perceção da essência dascoisas no teatro da Natureza, consuma‑se numquadro totalmente inventado por Proust, Le port de Carquethuit, onde se estabelece a unidade en‑tre o mar e a terra, entre o mar e as montanhas,

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entre o mar e o sol, através do uso da analogiaenriquecedora. Ao longo da Recherche, Proust vaiutilizar mais de duas centenas de vezes as liçõesdapinturaparacriarformidáveisanalogiasquesãooprincípiounificadordasuavisãodascoisas.Nãopoucasvezes,osquadroscitadossão«objetostran‑sicionais» (Karpeles, p.24), capazes de legitimarqualquer ilusão ou fantasia afetiva. Por vezes, osexemplos analógicos parecem desproporcionadosem relação à situação narrada ou à circunstânciaevocada. Mas essa teia de referências acaba porser uma rede de suporte que apara a queda daspersonagens ou sublima a excessiva banalidadedos factos descritos.

Quase no final de À Sombra das Raparigas em Flor (p.533), o Narrador, refletindo sobre as re‑velações daquele verão em Balbec, diz o seguinte:

«O meu desejo procurara com tantaavidez a significação dos olhos que orame conheciam e me sorriam, mas que, noprimeiro dia, se tinham cruzado com osmeusolharescomoraiosdeoutrouniverso,distribuíratãoamplaetãominuciosamentea cor e o perfume pelas superfícies carno‑sas daquelas raparigas que, estendidas nafalésia,selimitavamapassar‑mesanduíchesouabrincaràsadivinhas,que,muitasvezes,à tarde, ali deitado—tal como aqueles pin‑toresque,procurandoagrandezadoantigona vida moderna, dão a uma mulher quecorta uma unha do pé a nobreza do Rapaz Extraindo um Espinhoouque,comoRubens,fazemdeusascommulheressuasconhecidas

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para compor cenas mitológicas—, olhavaparaaquelesbeloscorposmorenoseloiros,de tipos opostos, espalhados à minha voltasobreaerva,porventurasemosesvaziardetodoomedíocreconteúdodequeosencheraa experiência diária mas, no entanto (semme recordar expressamente da sua celesteorigem),comose,àsemelhançadeHérculesou Telémaco, estivera a brincar no meiodas ninfas.»

Tal como aqueles pintores que…

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Do lado de Sodoma

Desde o início dos contactos com os editores,e apesar da firme intenção de fazer publicaro seu romance, Marcel Proust fez questão deos avisar sobre alguns aspetos potencialmentepolémicos do livro que estava a escrever: em1909, em carta ao editor do Mercure de France,precisava que «uma das principais personagensé um homossexual»; três anos depois, em novarondadecontactos,diziaque«nasegundaparte,a personagem, um velho senhor de uma grandefamília, revelar‑se‑á como sendo um pederasta,queemborasejapintadodeumamaneiracómica,esemnenhumapalavragrosseira,nãodeixaremosde ver a ‘engatar’ um porteiro e a pôr por contaumpianista»;e,em1916,quandoasrelaçõescomGaston Gallimard evoluíram no sentido da sua«transferência» da Grasset para a N.R.F., nãose esqueceu de chamar a atenção do seu futuroeditor para o caráter «chocante» de toda umaimportantesecçãodoromance,aqueseintitulavaSodoma e Gomorra.

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Entre a primeira e a última advertência, noentanto, a ideia de Sodoma e Gomorra ganharanão apenas uma dimensão escrita muito superiorao que inicialmente pensara, como também umpeso específico na estrutura geral do romance.Otema da «inversão» sexual não era novo na suaescrita:aparecerapelaprimeiraveznumcontode1893 incluído em Les plaisirs et les jours, emboraconfinado à homossexualidade feminina; mas oprocesso de Oscar Wilde, que Proust encontrouemParisnoanoseguinte,eosescândalosde1908,envolvendo a corte do imperador da AlemanhaGuilhermeII, tornaram a variante masculina umassuntosocialdedebate.Aadoção,muitoprecoce,dotítuloderessonânciasbíblicasparaasecçãodoromance em que tencionava tratar o tema sugereque Proust visava abordá‑lo, desde o início, naperspetiva da culpa e da expiação, não de uma ououtrapersonagemindividualizada,masdetodoumsegmentodasociedadequebuscavaasuasatisfaçãoempessoasdomesmosexo.Estaprática,comoseverá no romance, era mais generalizada do queentãosesupunha,eProusttinhaboasrazõesparasabê‑lo,porserelepróprioumcultordeSodoma.Oescritornãoera,quantoaisso,particularmentereservado.Aos17anos,comumamisturadeesca‑brosacoragemedepresumívelcandura,escreveracartas inflamadas a dois dos seus colegas do liceuCondorcet, propondo‑lhes sem ambiguidadesencontros sexuais pintados como a mais sublimedasexperiênciasdoamor.OseucasoamorosocomReynaldoHahn,iniciadoem1894,eraconhecidoetoleradopelosmeiosemquesemovia;eem1897,sentira‑se obrigado a defender a sua honra, desa‑

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fiandoparaumduelooescritorenotóriohomos‑sexual Jean Lorrain, o qual insinuara por escritoquearelaçãodeProustcomomuitojovemLucienDaudet envolvia algo mais que os transportes doespírito. Possivelmente, tinha razão.

Emborapoucodiscretonoqueserefereàssuasinclinações, Proust era fortemente cioso da suaimagem social. Como escreveu cartas abundante‑mente, há dezenas que, de forma mais ou menosexplícita, se referem aos seus gostos e apetitessexuais. Talvez por isso, viria a recriminar‑se,perante Celeste Albaret, pela sua imprudência,insistindonosesforçosquetinhadefazerparaqueo conteúdo da sua correspondência não viesse aser conhecido. Como sabemos, esses esforços (sechegou a fazê‑los) foram infrutíferos. SegundoAndréGideconta,noseuJournal,Proustter‑lhe‑‑á confessado, quase no fim da vida, que apenasconhecera contactos físicos com homens, em‑bora tenha cultivado, ao longo da vida, relaçõesapaixonadas, mas estritamente espirituais, comnumerosas mulheres.

OdesenvolvimentodaideiacentraldeSodoma e Gomorra, posterior à morte de Agostinelli, em1914,épreparadopelo3.ºvolumedasérie,Do Lado de Guermantes, que viu a luz do dia em finais de1920, cerca de um ano após Proust ter recebido oPrémio Goncourt. Em Do Lado de Guermantes, oNarrador, favorecido pelo facto de a sua famíliater ido viver para um apartamento contíguo àmansão parisiense dos duques de Guermantes,começa por desenvolver uma paixão exacerbadapela figura da duquesa Oriana, na qual imaginaconcentradas todas as virtudes de uma linhagem

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ilustre que remonta aos primeiros tempos daHistória de França. Era uma fada, como o seunome sugere; mas «a fada definha à medida quenos aproximarmos da pessoa real a que o seunome corresponde, porque o nome dessa pessoacomeça então a reflecti‑la, e ela nada contém dafada»(Do Lado de Guermantes,p.10).A1.ªpartedovolumedescreveosistemamundanoqueseestru‑turatendoaduquesadeGuermantescomocentro:o Narrador observa o apertado círculo dominadopelos Guermantes numa sessão na Ópera, e, maistarde, quando é finalmente recebido para jantarem casa dos duques; e estes episódios proporcio‑nam,pelapenaafiadadeProust,algumasdasmaisbrilhantes e humorísticas páginas da Recherche.Mas, progressivamente, uma vez admitido à suaintimidade, por observar os tiques de snobismo eas limitaçõesculturaisdaduquesa,desencanta‑sedela. A gota de água será o juízo negativo que aduquesa pronuncia sobre a pintura de Elstir, queo Narrador idolatra. Porém, através dela ou comela relacionadas, emergem duas personagens quevão ganhar papel preponderante na sequência doromance: uma delas é o barão de Charlus, tio daduquesa, que funciona simultaneamente comoquintessência dos Guermantes e prenúncio daobsolescência e corrupção do mundo que elesrepresentam; a segunda é um sobrinho deste,Robert de Saint‑Loup, que o Narrador conheceraem Balbec (À Sombra das Raparigas em Flor), ecom quem estabelece uma franca amizade, em‑boracomareservadeprincípiodequeaamizade«se concentra em levar‑nos a sacrificar a únicaparterealeincomunicável(anãoserpormeioda

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arte)denósmesmos,aumeusuperficialquenãoacha, como o outro, alegria em si mesmo, antesencontraumenternecimentoconfusoemsentir‑seapoiado em situações exteriores…» (Do Lado de Guermantes, p.398). Enfim, reaparece Albertine,uma das «raparigas em flor» de Balbec, que seráchamada,nosvolumesposteriores,aganharascen‑dentenavidadoNarrador.Do Lado de Guermantestermina em tom elegíaco, quando Swann, muitoenvelhecido,anunciaaosconvidadosdaduquesadeGuermantes que só tem três ou quatro meses devida, pondo termo ao primeiro ciclo do romance,que se estrutura em função dos «dois lados» deCombray: o de Swann e o de Guermantes. Mas,na edição inicial do volume, em finais de 1920, ofecho era assegurado pela 1.ªparte de Sodoma e Gomorra,aquelaque,emediçõesposteriores,viráafigurarcomoaberturadasecçãodoromancemaisdiretamenterelacionadacomahomossexualidade.Acircularidadedoespaçoderepresentaçãodoro‑manceficavaassimassegurada:ovolumecomeçaracom a mudança da família do Narrador para umadependênciadamansãoparisiensedosduquesdeGuermantes;eterminavacomumacenareveladorasobrea«verdadeiranatureza»dobarãodeCharlus,passada no pátio dessa mesma casa.

Essa «revelação», proporcionada ao Narradorpela sua irresistível tendência para o voyeurismo(que atingirá o auge em O Tempo Reencontrado),constitui, com a sua colocação atual, uma brutalabertura desta secção do romance. O tema do«vício» homossexual, introduzido no 1.ºvolumepela narração da cena em que, através de umajanela, o Narrador se apercebe da intimidade da

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filhadocompositorVinteuilcomumaamigamaisvelha, explode aqui com a descrição do «bailado»com que o barão de Charlus, de saída da casa dosseus parentes Guermantes, ensaia uma paradaamorosa, plenamente retribuída, tendo comoobjeto o alfaiate Jupien, que se tornará, depois,o seu factotum para a programação de aventurasamorosas.Masacena,interpretadacomrecursoaumasofisticadametáforavegetal(adafecundaçãodasplantaspelosinsetos),abrecaminhoparaumareflexão sobre a «raça maldita», já anunciada nosseus ensaios para Contre Sainte‑Beuve, e crucialpara o entendimento de um dos nexos temáticosfundamentais da Recherche.

«Raça sobre a qual pesa uma maldiçãoe que tem de viver o seu desejo na mentirae no perjúrio, visto que o sabe ser conside‑rado punível e vergonhoso, inconfessável;[…] filhos sem mãe, a quem são obrigadosa mentir toda a vida, até na hora de lhesfecharem os olhos; amigos sem amizades,apesar de todas aquelas que o seu encantofrequentemente reconhecido inspira e queo seu coração muitas vezes bom sentiria;[…]certosjuízessupõemedesculpammaisfacilmente o assassínio entre os invertidose a traição entre os Judeus, por razões re‑tiradas do pecado original e da fatalidadedaraça;[…]excluídosaté,salvonosdiasdegrandeinfortúnioemqueagrandemaioriaseuneemtornodavítima,comoosJudeusem torno de Dreyfus, da simpatia—e àsvezes do convívio—dos seus semelhantes,

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aos quais causam repugnância de verem oque são pintado num espelho…» (Sodoma e Gomorra, pp.23‑24.)

A homologia da situação e comportamentosentre os homossexuais e os Judeus, realçada porProust, não surpreende. Proust, que tivera pormais de uma vez que se defender das acusaçõesde «inversão», vivera também intensamente osepisódios dramáticos do «caso Dreyfus», adotan‑do resolutamente a defesa do militar de origemjudaica, na esteira do manifesto de Emile Zola.Pudera então aperceber‑se de como um casode alegada «alta traição» fora manipulado pelossetoresmaisconservadores,deformaalibertarostradicionaissentimentosantisemitasadormecidosnuma parte da população francesa. Em Do Lado de Guermantes,ofaubourgSaint‑Germaindivide‑‑seentredreyfusistaseanti‑dreyfusistaseProustcompreendera, com indignação, que, a breve tre‑cho,estadivisão,maisdoqueajustiçaouinjustiçada condenação de Dreyfus, é que mobilizava asvontadeseanimosidadesdaspersonagens,polari‑zadasemtornododreyfusismodeSwann,queerajudeudeascendência.Tantocomooseucasamentoincompreensível com Odette, é o dreyfusismo deSwann que precipita o seu declínio na apreciaçãoda aristocracia parisiense, que outrora o recebiacomo um dos seus.

MathieuVernetfeznotarcomo,noromancedeProust, «o judeu, o invertido e o artista formam,independentemente uns dos outros, confrariasque, embora misturadas com o resto das pessoas,apesardisso insistem emdistinguir‑se,emnãose

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confundir, mesmo quando jogam o jogo da assi‑milação»(Le Magazine Littéraire,n.º526).Ora,fa‑zendodoseuNarradorumnãohomossexualenãoJudeu, Proust destina‑lhe o terceiro reduto, o dasuperaçãopelaArte.Arevelaçãoqueaconteceránoúltimovolumedoromanceéaconsagraçãodoseuherói como o único triunfador desta «maldição»,o que é capaz de erguer‑se acima da contingênciadasuacondiçãoedopreconceitosocial,acimadoTempo e da sua ação corrosiva.

Em Sodoma e Gomorra, Proust constrói o«outrolado»dapersonalidadedobarãodeCharlus,a partir da descoberta da sua «verdadeira nature‑za».SeCharlusserevelaraatéentãocomoumserviril, arrogante, insolente e truculento (emborafascinante, como o seu modelo na vida real, ocondeRobertdeMontesquiou),aparece‑lheagora,expostopeloepisódiodaconquistadeJupien,pare‑cidocomumamulher:«eraoqueeleera!»,exclamaoNarrador,assombrado.EstarevelaçãodoladodeSodomavaiencontrarocomplementoobrigatórionainclinaçãoparaGomorraqueoNarradortentaráconstantementedescobriremAlbertine.Ovolumedesenvolve‑se assim em duas narrativas paralelas(mas em Proust nada é absolutamente paralelo,as linhas em algum ponto hão de cruzar‑se), a doamordeCharluspelojovemviolinistaMorel,queencontra pela primeira vez na estação ferroviáriade Doncières, e a do Narrador por Albertine, ume outro lavrados num registo de posse e ciúme,de arrebatamentos e separações, de prodigalida‑de e de fingida submissão. Ora, com o correr dotempo(masotempo,naRecherche,correaritmosdiversos,conformeaspersonagens),Charlusperde

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a antiga discrição e não esconde a sua predileção«viciosa»porMorel,numaeuforiaqueofazperdertodoosentidodasrealidadesedasconveniênciasequeacabaráporprecipitarasuaquedanoconceitoda bonne société a que pertencia, sem que ele seaperceba disso:

«Assim, o senhor de Charlus vivia ilu‑dido, como o peixe que acredita que a águaonde nada se estende para lá do vidro doseu aquário que lhe apresenta o respectivoreflexo,quandonãovêaseuladonasombrao transeunte distraído que acompanha osseusfolguedosouopiscicultoromnipotenteque,nomomentoimprevistoefatal,naquelemomentoadiadoparaobarão(paraquemopiscicultorseráemParisosenhorVerdurin),oretirarásempiedadedomeioondegostavadeviverparaoatirarparaoutro.»(Sodoma e Gomorra, pp.451‑452.)

E o Narrador vai construir uma relação am‑bivalente com Albertine, ora desejando‑a, oraaborrecendo‑a, em obediência ao «ritmo binárioque o amor adopta em todos aqueles que pordemais duvidam de si mesmos para acreditarque uma mulher possa alguma vez amá‑los, e quetambém eles possam amá‑la verdadeiramente.»(idem, p.235). O clímax é atingido quando oNarrador arranca a Albertine a admissão de queconhece desde há muito a filha do compositorVinteuil.Decideentãorompercomela;mas,numvoltefaceprópriodeumserpossuídopelociúme,para impedir que Albertine vá parar aos braços

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de Mlle.Vinteuil, resolve casar‑se com ela. Paristornar‑se‑á então a prisão de Albertine.

Parece singular que o Narrador de Proust, tãoobcecado com as sexualidades «desviantes», nãoseja praticante de nenhuma delas. Pelo contrário,Proust faz dele um incansável coureur de jupons (sobretudo de jeunes filles, o que não é bem amesma coisa). Mas, com isso, Proust quis vincarbem que o Narrador não era ele, mas uma perso‑nagemderomanceaoqualderaumapersonalidadeprópria que não a sua. Fica a suspeita de que,nesta«normalidade»doNarrador,Proustsetenhainvestidoem negativo.NãoeraelequeasseguravaaGidequeBaudelairenãopodiaterdeixadodeserhomossexual? O seu argumento pode facilmenteaplicar‑se ao Narrador da Recherche: «A maneiracomoele[Baudelaire]faladeLesbos,edesdelogoanecessidadedefalardoassunto,chegamparameconvencer disso».

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O romance inacabado

Sodoma e Gomorraéaúltimasecçãodoromancecujotexto,revistosobreasprovastipográficas,foifixadoporMarcelProust.Olivrosaiuemmeadosde1922eProustapenaslhesobreviveuseismeses.Até ao dia da sua morte, infatigavelmente, foiexpandindoeaperfeiçoandoA PrisioneiraeA Fu‑gitiva, que começara a escrever depois da partidadeAgostinelli,oitoanosantes.Estesdoisvolumesviriam a ser publicados por iniciativa do irmão,Robert, sempre com a chancela da Gallimard, em1923 e 1925, respetivamente. Só com a edição doúltimo volume, O Tempo Reencontrado, em 1927,reconstruído também a partir dos seus cadernos,o romance ficaria completo—embora para sem‑pre inacabado, porque é impossível imaginar quealterações, aditamentos e interpolações Proustintroduziria nestes três volumes, se tem podidorevê‑los em provas.

A Prisioneira e A Fugitiva constituem, emtempos e com ritmos diferentes, um romance deamoredeesquecimento,deciúmeedeindiferença

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sucessivos.E,pelasuaintensavibraçãopsicológica(nunca teremos conhecido melhor o Narrador doquenestassecçõesdoromance),acabamporcons‑tituirumeixofundamentaldetodaanarrativa.São,também, a preparação do Narrador para a grandeetapa final, a que se inicia com a viagem tantotempo adiada a Veneza, a descida aos infernosproporcionada pela guerra e pela cena no bordelde Jupien em que Marcel observa os jogos maso‑quistasdeCharlus,ecomarevelaçãodasuamaisíntima vocação: só no fim da narração o romancepodecomeçaraserescrito.EmA Prisioneiraassis‑timosàtransformaçãodeAlbertine,quecomeçarapor ser uma rapariguinha estouvada e «atlética»(o adjetivo é de Proust), e se vai tornando, emcativeiro, «uma mulher elegante», mas não frí‑vola: «lia muito quando estava sozinha e lia paramim quando estava comigo. Tornara‑se extrema‑mente inteligente» (A Prisioneira, p.59). E,emconsequência, à cristalização do amor de Marcel,que tem formas excêntricas e munificentes de semanifestar, como quando cobre a sua amada comosvestidosinspiradosemquadrosdeCarpaccioedesenhados por Mariano Fortuny, um costureirode origem veneziana. Empáginas inesquecíveis,observaosonodeAlbertine,comumatãopoéticaemagoadasensibilidadequenãodeixadelembrarumquadropré‑rafaelita(oOpheliadeMillais,porexemplo):

«Estendida ao comprido em cima dacama, numa atitude de uma naturalidadeque não poderia ser inventada, parecia‑mecomo que uma longa haste em flor que

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houvessemaliposto,eassimeracomefeito:o poder de sonhar que eu só tinha na suaausência, tornava a tê‑lo nesses instantesaopédela,comoseadormirsetivessetor‑nado uma planta. Desse modo, o sono delarealizava em certa medida a possibilidadedo amor; a sós, podia pensar nela, mas elafaltava‑me, não a possuía. Presente, falavacom ela, mas estava demasiado ausente demim próprio para poder pensar. Quandoela estava a dormir, já não tinha que falar,sabiaquejánãoestavaaserolhadoporela,quejánãoprecisavadeviveràsuperfíciedemim mesmo. Ao fechar os olhos, ao perdera consciência, Albertine despira, um apósoutro,osseusdiversoscaracteresdehuma‑nidadequemehaviamdecepcionadodesdeodiaemqueaconhecera.Apenasaanimavaavidainconscientedosvegetais,dasárvores,uma vida mais diferente da minha, maisalheia,eque,contudo,mepertenciamais.»(A Prisioneira, p.65.)

Porque,acordada,digaoquedisser,faça(ounãofaça) o que fizer, Albertine é um motivo bastantepara incendiar o ciúme do Narrador. O ciúme deMarceltemonomedeGomorra,queagora,parece‑‑lhe, alastra a todo o mundo, ao mesmo ritmo ecomamesmaenigmáticaeficáciacomqueapestesedisseminava,emtemposantigos.Aressonânciabíblica do tema de Sodoma e Gomorra encontraaqui motivos concretos (ou como tal imaginadospeloNarrador)quelhepermitemtraçarumcenáriodepré‑apocalipseeoforçamaguardarAlbertine,

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«porqueomeuprazerdeterAlbertineamoraremminha casa era muito menos um prazer positivoque o de ter retirado do mundo, em que todospor sua vez poderiam fruir dela, a rapariga emflorque,senãomedavagrandealegria,aomenosdela privava os outros» (idem, p.71). Por isto, ouporqueacabouporseaperceberdequeoNarradornão a amava verdadeiramente, Albertine põe‑seem fuga. O Narrador tenta fazê‑la regressar. MasAlbertine morre em Combray, mas margens dorioVivonne,einicia‑se«otrabalhodePenélopedoesquecimento» (expressão de Walter Benjamin),pelo qual Marcel se desliga, com rapidez que aeleprópriosurpreende(«omonstrocujaapariçãofizera estremecer o meu amor, o esquecimento,acabara efetivamente por devorá‑lo, tal como eupensara»), e não sem algum sentimento de culpa,damemóriadasuaamada,porcujamortesesenteresponsável,comomuitoantespelamortedaavó:é o tema central de A Fugitiva.

A «revelação» que permitirá ao Narradorsuperaraprofundadesolaçãodasuavida(aculpa,asolidão,aimpotênciacriativa)einiciaraescritadoromancedesdobra‑seemtrêsmomentosdecisi‑vos,oprimeirodosquaisocorreemA Prisioneira,comaaudiçãodoSeptetodeVinteuil.Transpostapara a formação de sete instrumentos, a lingua‑gemclaraesimplesdasonatadeVinteuil,motivointroduzido no 1.ºvolume, ganha uma densidadequedespertaMarcelparaaverdadeprofundaquea obra (todas as grandes obras musicais, todas asgrandesobrasdearte)encerraerevela:éemcasade Mme. Verdurin, «deusa do wagnerismo e daenxaqueca», que o Narrador ouve, pela primeira

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vez, esta peça de câmara, na qual se reconhecea si próprio, como num efeito de As Mil e Uma Noites, porque identifica «a pequena frase [musi‑cal], recamada, ajaezada de prata, toda inundadade sonoridades brilhantes, ligeiras e suaves comoécharpes»dasonatadeVinteuil.Éumaimpressãopassageira,noentanto,porqueosepteto,atéentãoinédito, é de outros céus: «Aquele vermelho tãonovo, tão ausente da terna, campestre e cândidasonata, tingia todo o céu, como a aurora, de umamisteriosa esperança.» E, depois de apreciar ascaprichosasformasqueogéniodeVinteuilrevelanaquele septeto:

«Por fim, o motivo alegre saiu triun‑fante, já não era um apelo quase inquietolançado de trás de um céu vazio, era umaalegria inefável que parecia vir do paraíso;uma alegria tão diferente da da sonatacomo de um anjo doce e grave de Bellinitocando tiorba poderia ser um qualquerarcanjo de Mantegna de veste escarlate etocando trompa. Eu sabia que não maisesqueceria esta tonalidade nova da alegria,esteapeloaumaalegriasupraterrestre.Masseria ela alguma vez realizável para mim?»(A Prisioneira, p.253.)

O segundo momento ocorre durante a viagema Veneza, que o Narrador constantemente adiarae que vai finalmente realizar depois da mortede Albertine. Veneza é um dos nomes (míticos,lendários) que percorrem a Recherche; a cidadede Carpaccio é um horizonte de projeção onde o

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Narradorantecipaencontrar,reunidasnumúnicoespaçoderepresentação,todasasmemóriasqueascoisaslhepossamsuscitar,umaepifaniadesejadaeimaginária.Emcertamedida,écomoseMarcelde‑positassenonomedeVenezatodasasesperançasqueoseptetodeVinteuil lhereacendera,duranteaqueleconcertoemcasadosVerdurin;comosedeVeneza lhe pudesse vir a revelação de um sentidoprofundo,da«últimarazão»,deumaverdadeque,nele, teria o condão de o despertar (ou de o em‑purrar) para «outra coisa ainda»: a escrita do seuromance. Mas Veneza será, uma vez mais, o lugardadeceção:as30páginascomqueevocaaviagem,quase no final de A Fugitiva, parecem pequenasafraparatãolongoinvestimentoafetivo.Quandofica só, após a partida da mãe, o Narrador tem amedida exata do vazio que encontra na cidade,ondejánada,nemosmonumentos,nemoGrandeCanal, nem os palazzi lhe despertam a memóriainvoluntária,quepermitiriadesataraevocaçãodetudo o que eles nos podem dizer.

«A cidade que estava diante de mimdeixaradeserVeneza.Asuapersonalidade,oseunomepareciam‑mecomoqueficçõesenganadorasquejánãotinhacoragemparaaplicar às pedras. Os palácios surgiam‑mereduzidosàssuassimplespartesequantidadessemelhantes a todas as outras, e a água erauma combinação de hidrogénio e azoto,eterna, cega, anterior e exterior a Veneza,ignorantedos dogesedeTurner.E todaviaaquele lugar vulgar era estranho como olugaraquechegamosequenãonosconhece

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ainda,comoumlugarquedeixámosequejános esqueceu.» (A Fugitiva, p.241.)

Esta sensação de vazio prolonga‑se quando,de regresso a Combray para visitar Gilberte, quelhe anunciara o seu casamento com Saint‑Loup,encaradenovo o curso do rio Vivonne, queagoralhe parece «insignificante e feio». Pouco a pouco,as coisas perdem o encanto mágico que tinham,quandoeracriançae,maistarde,naadolescência:deixaram de lhe falar. Mas o Narrador sente estamudezcomoumarevelaçãoemnegativo,umaperdadequalidade,umaexpiaçãodetodasasculpasquefoi acumulando ao longo da vida, antecipando acélebre tirada de O Tempo Reencontrado:

«Árvores,penseieu,jánadatendesparame dizer, e o meu coração já arrefecido jánãovosouve.[…]Sealgumavezmejulgueipoeta,seiagoraquenãoosou.Talveznestanova parte da minha vida que se inicia, tãoressequida,oshomenspossaminspirar‑meoqueanaturezajánãomediz.Masaquelesanos em que talvez tivesse sido capaz de acantar não mais voltarão.» (O Tempo Reen‑contrado, p.174.)

Há,depoisdeA Fugitiva,umdosmaisenigmá‑ticos hiatos temporais da já de si muito peculiarcronologia interna da Recherche: O Tempo Reen‑contrado, que viria a ser publicado em 1927,começa quando o Narrador regressa a Paris, em1916,cercade20anosdepoisdosacontecimentosantes relatados. Sabemos apenas que, durante

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essetempo,esteveinternado,retiradodomundo,alheio a tudo o que fora até então a sua vida.Proust, pelo contrário, apesar de fechado no seuquartoamaiorpartedotempo,nuncadeixaradeter alguma vida social, embora o seu estado desaúde não parasse de se agravar.

Durante a Guerra, tornara‑se um habitué dasceias no hotel Ritz, na praça Vendôme, onde«proustificava» com o chefe de mesa e os nu‑merosos criados, um dos quais, aliás, chegaria aviver em sua casa durante algum tempo. Alémdisso, envolvera‑se, por volta de 1917, na criaçãodeumbordelderapazes,naRuadel’Arcade,pertoda igreja da Madeleine. Talvez tenha ajudado afinanciar o estabelecimento e ofereceu parte domobiliárioherdadodospaiseatéentãoguardadono rés‑do‑chão do 102 do bulevar Haussmann,para ajudar à decoração da maison de plaisir.Assuas visitas frequentes tinham por objetivo,segundodisse,recolhermaterialparaoromance,queentraranumanovafasededesenvolvimento;mashátestemunhosdeque,nãopoucasvezes,seentregavaaosprazeresproibidosqueoproxenetaLe Cuziat, antigo criado de quarto do príncipeRadziwillemodelodoJupiendobarãodeCharlus,lhe proporcionava. É daí que brota um dosepisódiosmaisperturbantesdoromance,a longacena em que o Narrador «vai parar» ao hotel, emnoitedebombardeamentossobreParis,eaíacabaa espiar o barão de Charlus, o qual, na sua curvade abjeção, se entrega a exercícios masoquistascom os prostitutos mais perigosos que Jupienlhe consiga arranjar. Este episódio, que assinalao momento mais «chocante» (para retomar o

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seu qualificativo) de todo o romance, introduza perceção da ruína do mundo que conhecera,sinalizada pela atmosfera opressiva da guerra epela descida aos infernos de Charlus.

E depois, sem que nada o deixasse prever,acontece o terceiro momento da revelação. É jádepois da guerra, num dia em que Marcel resolve«regressaràsociedade»acudindoaumareceçãodaprincesa de Guermantes. No caminho, encontra obarãode Charlus,muitoenvelhecido,meioparali‑sadoeafásicoporcausadeumaapoplexia.Mas,aoentrarnaresidênciadosGuermantes,agorainsta‑lada na Avenida do Bois, pisa uma pedra «menosaltaqueaanterior»eumcordãodereminiscênciaslança‑o para um estado de exaltação que nuncaexperimentara: «tal como no momento em quesaboreava a madalena, toda a inquietação sobre ofuturo, toda a dúvida intelectual se haviam dissi‑pado» (O Tempo Reencontrado,p.186). Edescobrea origem desse estado de felicidade: «era Veneza,Veneza acerca da qual os meus esforços para adescrevereospretensosinstantâneoscaptadospelamemórianadamehaviamditonunca,equemeforaagora devolvida pela sensação que outrora sentiraem cima de duas lajes desiguais do baptistério deSãoMarcos» (idem, p.187). Sente então a necessi‑dade de «procurar interpretar as sensações comosinaisdeoutrastantasleiseideias,tentandopensar,tentando fazer sair da penumbra o que sentira,convertê‑lo num equivalente espiritual. Ora estemeio,quemepareciaoúnico,queoutracoisaseriasenão fazer uma obra de arte?» (idem, p.199).

Armadodestaconsciênciadasuavocação,resol‑veenfrentarareceçãodosGuermantes,comaideia

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de que esta iria fornecer‑lhe «o ponto de partidaparaumavidanovaquenãosouberaencontrarnasolidão» (idem, p.241). Mas o espetáculo que selhe depara, admiravelmente descrito por Proustem registo tragicómico, é o da transformaçãoque o tempo, os 20anos de ausência, provocounas pessoas que outrora conhecera: eram «comobonecos mergulhados nas cores imateriais dosanos,comobonecosqueexteriorizavamoTempo,o Tempo que habitualmente não é visível e que,para o ser, procura corpos e, onde quer que osencontre, se apodera deles para neles projectar asua lanterna‑mágica» (idem, p.248). E há as au‑sências (a de Saint‑Loup, que morrera na guerra,em primeiro lugar), a encenação grotesca de umaantiga glória, a decrepitude generalizada que an‑tecipa o fim, porque «a morte multiplicava‑se etornava‑se mais incerta naquelas regiões idosas».AmorteenvolveoNarrador,aomesmotempoquese cola à máscara de Proust.

Édiantedodesfiledestemundoquesepreparapara morrer, e no qual as recordações do passadovivem já corrompidas pelo trabalho invisível doTempo, que o Narrador tem a intuição de que,para escrever o seu romance, seria necessário«uma espécie de psicologia no espaço» e decideempreender a tarefa de recuperar «os cadernosroídos pela madeira onde entrou o caruncho»,nos quais, ao longo dos anos, foi registando asimpressões da sua vida. A escrita da Recherchepode começar.

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«Um Nilo da Linguagem»

A Recherche é um romance mágico, apesar deDeus estar ausente dele e de as divindades que opovoam serem apenas a manifestação literária defigurashumanas.Oquelheatribuiestatãoextraor‑dinária qualidade é a forma como Proust investenas coisas, pedras, rios, móveis, monumentos,adereços, a capacidade de falarem à memória doshomens. No prefácio destinado ao Contre Sainte‑‑Beuve, que acabaria por não publicar, escreveque «cada hora da nossa vida, uma vez morta,incarna e esconde‑se num qualquer objeto mate‑rial.Aíficaaprisionada,parasempreaprisionada,a menos que encontremos o objeto. Através dele,reconhecemo‑la, chamamo‑la, e ela liberta‑se.»É a primeira formulação da teoria da memóriainvoluntária, queo faz figurar na «tão nobrelinhagem»deChateaubriand,GérarddeNervaleBaudelaire,esobreaqualvaibasearametodologiadaconstruçãodoseuromance.Oqueadesencadeianão é o esforço intelectual para tornar presenteo que é irremediavelmente passado (a memória

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consciente), mas o poder elétrico e aleatório quetêm as coisas que uma vez se cruzaram connoscopara despertarem reminiscências que nos resti‑tuem, como se estivesse intacto, o tempo em queas conhecemos.

Combray é o lugar original dessa atmosferamágica,umawonderlandsemtemponembarreiras.É aí que o Narrador descobre essa identidade dascoisasnaNatureza,queolevará,frequentemente,a atribuir‑lhes uma personalidade própria, numaespéciedeantropomorfizaçãoqueastornatambémagentes de uma comédia humana feita literatura.Veja‑se só este excerto, sobre um trecho do rioVivonne, no caminho de Guermantes, que convi‑rá associar a um dos Nenúfares de Monet ou àsImages de Debussy:

«Mas mais adiante a corrente afrouxa,atravessa uma propriedade cujo acessoestavaabertoaopúblicoporaqueleaquempertencia e que se dedicara a obras dehorticultura aquática, fazendo florir, nospequenos pegos formados pelo Vivonne,verdadeiros jardins de nenúfares. Como asmargenseramnesselocalmuitoarborizadas,as grandes sombras das árvores davamà água um fundo que habitualmente eraverde‑escuro, mas que, por vezes, quandoregressávamos em certas tardes serenadasdepois de terem sido de início tempes‑tuosas, vi ser azul‑claro e cru, a puxar parao roxo, aparentemente compartimentado ede gosto japonês. Aqui e além, à superfície,avermelhava como um morango uma flor

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de nenúfar de coração escarlate, brancanos bordos. Mais adiante, as flores maisnumerosas eram mais pálidas, menos lisas,mais granulosas, mais pregueadas, e dis‑postas pelo acaso em espirais tão graciosasque julgávamos ver flutuar à deriva, comodepois do desfolhar melancólico de umafestagalante,rosasespumosasemgrinaldasdesatadas.Noutrolocalhaviaumcantoqueparecia reservado às espécies comuns quemostravamobrancoeorosadogoivo,todosapuradinhos, lavados como porcelana comum zelo doméstico, enquanto um poucomais à frente, apertados uns contra os ou‑trosnumaverdadeiraplatibandaflutuante,dir‑se‑iamamores‑perfeitosdosjardinsquetivessem vindo poisar como borboletas assuas asas azuladas na obliquidade transpa‑rentedaquelecanteirodeágua…»(Do Lado de Swann, pp. 179‑180.)

Muitos dos atributos da escrita analítica, ana‑lógica, meticulosa de Marcel Proust encontram‑‑se aqui documentados. Proust dá a cada coisauma qualidade volumétrica e o entrançado deefeitos que procura com a sua prosa produz umaespéciedetridimensionalidade,comoseascoisasestivessem ali para nos chamar a atenção, comose apenas esperassem que sejamos capazes de asouvir. «Ele gosta do volume, da espessura da rea‑lidade; do que há nela de sólido, de profundo, deestereoscópico»,escrevePietroCitati(La colombe poignardée, p.464). Mas, ao mesmo tempo, esserelevoquaseescultóricoparecechegar‑nosatravés

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dalinguagemdosonho,queestabelecenexosines‑perados e inventa aproximações impensáveis.

Num texto magnífico escrito em 1929, WalterBenjaminfaladaescritadeProustcomo«umNiloda linguagem, que transborda nas planícies daverdade, para fertilizá‑las» (Obras Escolhidas — I,p.36);eesseprocessodefertilização,aumtempoorgânico e visionário, socorre‑se de tudo, dascores, das plantas, do céu e do mar, dos tiques edas taras, dos objetos e dos gestos, dos tecidos edostrajes,dosaromasedossabores,paranosdaruma verdade ainda mais verdadeira, um «hiper‑‑realismo»dossentidosquenosfazvermais,ouvirmais,querer mais.AescritadeProustéumaescritado desejo. Daí, a sua atração encantatória, a suamúsica peculiar.

Alémdisso,a Rechercheéumromanceprofun‑damentemusical.É‑oexplicitamentepelaquanti‑dadedereferências,sobretudoporanalogia,aobrase compositores, ou em reflexões proporcionadaspela tradição da música ocidental. Proust chega ainterrogar‑sesobreseaverdadedaArtenãoestarádepositada na escrita musical, mais que em todasas outras, incapazes de atingir as profundidadesdo inconsciente através do inefável. Mas é‑o so‑bretudocomopartitura,quenotaaadministraçãode recursos técnicos e estilísticos numa obra deambiçãosinfónicaededimensãooperática.Falei,no princípio deste livro, nas óperas de Wagner eparece‑me evidente que até em relação a certosefeitos de duração Proust é tributário da músicado compositor alemão, que aliás adorava. MasVinteuiléfrancês,comofrancesessãoosseusmo‑delosfinisseculares,GabrielFauréeCésarFranck

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(emoderadamenteSaint‑Saëns,queeraumartistadopassado).Natonalidadedoconjunto,noefeitohipnóticodetantasdassuaspáginas,nocontinuumqueéoromancedadoàleitura,aRecherchelembramais o Pélléas et Mélisande de Debussy, mas umPélléas desconstruídoedesdobrado,cadaumadassuas unidades musicais amorosamente exploradaeminfinitasvariações,atéqueomotivofossedadocomogastoeanarrativapudessecontinuar—rumoao infinito.

O romance de Proust é uma comédia: umaespécie de comédie humaine (a sombra de Bal‑zac, cujas personagens se recortam em contra‑luz, plana sobre a Recherche) a que se tivesseacrescentado a alma das coisas. O leitor notaráque, ao fim de algumas dezenas de páginas, umsorriso discreto surgiu nos seus lábios, aí se ins‑talou e ameaça ficar até ao fim do romance. Éo sorriso de Proust, que parece nunca acreditarinteiramente no que escreve (efeito da ironia, jáque aRecherche é a coisa mais séria da sua vida),e que, sobretudo, não acredita em nada do queos outros aparentam ser. Anotador acerado dostiques que identificam personagens, não poupaos anglicismos à la mode de Odette, nem as in‑congruênciasecorruptelasdofalardeFrançoise,a pedante e homérica adjetivação de Bloch, aerudiçãopomposaeinútildoprofessorBrichotoua enxaqueca artística de Mme.Verdurin. Não poracaso, Molière é uma das suas referências literá‑rias mais constantes, e, por isso, crítico feroz daduplicidadedoscomportamentossociais,observaaspersonagensdofaubourgSaint‑Germaincomalunetademolidoradeumhumorfinoeculto,que

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desmascara a vacuidade intelectual da duquesade Guermantes, as «santas cóleras» do barão deCharlus, a pusilanimidade do doutor Cottard, avenalidade repugnante de Morel, a escorregadianatureza de Saint‑Loup. Grande parte do prazerque a Recherche desperta no leitor vem dessadistância bem‑humorada que o Narrador criaentre si e as personagens da comédia.

E depois, a Recherche é um romance feliz—ecomumfinalfeliz.Osseusmelhoresleitoresnuncadeixaramdeassinalarqueolivroéatravessadoporumintensoanseiodefelicidade.EntreaspenasdoNarrador,queeramemgrandepartetransposiçãodas suas, Proust instala uma espécie de vertigemde prazer, de busca obsessiva de uma razão paraacreditarnabelezadavida.Queoromancetermi‑ne com uma revelação que é, ao mesmo tempo, ocaminho da salvação do protagonista, é uma tãorara circunstância na literatura do séculoxx, quemerece ser apreciada como uma daquelas cintila‑ções preciosas que o génio de Proust arrancou aosegredo improfanável do tempo perdido.

Porque a Recherche é, finalmente e antes detudo, um romance sobre o Tempo. Em relação aisso, Proust nunca teve dúvidas: desde 1909, pelomenos, que o refere na sua correspondência e aspalavrasfinaisdeO Tempo Reencontradorepetem‑‑no, uma vez mais: «Mas, ao menos, se tais forçasmefossemconcedidaspelotemposuficientepararealizaraminhaobra,nãodeixariaacimadetudode descrever nela os homens, ainda que tal osfizessepareceremunsseresmonstruosos,unsseresqueocupamumlugartãoconsiderávelcomparadocom o tão restrito lugar que lhes está reservado

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no espaço, um lugar de facto desmedidamenteprolongado,vistoque,comogigantes imersosnosanos, eles atingem simultaneamente épocas tãodistantes, entre as quais tantos dias ocuparam oseu lugar: no Tempo.» Acontece, por isso, que noromance o tempo não segue a sequência crono‑lógica que conhecemos, antes se tece como umvaivém em que os mais evidentes anacronismosevidenciam a ideia de que cada instante descritocontém em si muito do que lhe foi passado e bas‑tante do que acontecerá no futuro. O Tempo nãoé essa força oculta, indefinível, que transformalinearmente as pessoas e as coisas, é a própriatransformaçãoemprocesso,e,porisso,aescritadoromancesobreoTempoésemelhanteàconstruçãodeumacatedral.Assim,aúnicaformadepercebera natureza do Tempo é vê‑lo no espaço, na formacomo um raio de sol vindo de um céu muito azulse deposita sobre os rostos afogueados das jeunes filles en fleurs, investindo‑as de uma energia quelhespermitesuperarasuacondiçãodeseresnum tempo e inscrever‑se na galeria das divindades aquem tudo é concedido, mesmo o privilégio daintemporalidade; ou então, como ele se despenhasobre um curso de água sinuoso, decompondo‑senuma infinidade de efeitos que lhe emprestamumaespéciedehalodemagia,tãopoderosocomoa história de Geneviève de Brabante, a visão daJerusalém celeste ou a graciosa constelação deaeroplanos no céu de Paris. O Tempo é um magode sortilégios infinitos.

Se tivesse lido o livro de Lewis Carroll, Proustnão deixaria de apreciar o que o chapeleiro diz aAlice:«Seconhecessesotempotãobemcomoeu,

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não falarias em desperdício do tempo, como sefosse uma coisa. O Tempo é uma pessoa.»

Porincrívelfelicidadenossa,oTempoincarnouna pessoa de Marcel Proust.

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Bibliografia

Obras de Proust

Em Busca do Tempo Perdido, sete volumes, tradução dePedro Tamen, Lisboa, Relógio d’Água, 2003‑2005.

Contre Sainte‑Beuve, prefácio deBernarddeFallois,Paris,Gallimard,1998[1954];existeumaversãodiferente,maisfiável,publicada por Jean‑Yves Tadié em 1991, na Pléiade.

Correspondance, edição de Jérôme Picon, Paris, Flamma‑rion, 2007.

Essais et articles, edição de Pierre Clarat e Yves Sandre,Paris, Gallimard, 1994 [1971].

O Prazer da Leitura, traduçãodeMagdaBigottedeFiguei‑redo, Lisboa, Teorema, 5.ª ed., 2011.

Sobre Proust

Benjamin, Walter, «A imagem de Proust», Obras Escolhi‑das — I, São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.

Carter, William C., As Paixões de Proust, tradução deBernardo Brito e Cunha, Lisboa, Nova Vega, 2009.

Citati, Pietro, La colombe poignardée, Paris, Gallimard,1998 [há tradução portuguesa de Maria Jorge Vilar de Figuei‑redo, A Pomba Apunhalada, Lisboa, Cotovia, 2000].

Karpeles, Eric, Le musée imaginaire de Marcel Proust,Paris, Thames & Hudson, 2009.

Lhomeau, Franck e Coelho, Alain, Marcel Proust à la recherche d’éditeur, Paris, Olivier Orban, 1988.

Muhlstein, Anka, Monsieur Proust’s library, New York,Other Press, 2012.

Nabokov, Vladimir, Proust, Kafka, Joyce, Paris, Stock,1999.

Painter, George D., Marcel Proust, dois volumes, Paris,Mercure de France, 1985 [1959, 1965].

Raczymow, Henri, Le Paris retrouvé de Marcel Proust,Paris, Parigramme, 2005.

Revel, Jean‑François, Sur Proust, Paris, Grasset, 2004[1987].

Vernet, Matthieu, «Proust, à la recherche du commun»,Le Magazine Littéraire, n.º 526, dezembro de 2012.

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O Essencial sobre

1 Irene Lisboa Paula Morão

2 Antero de Quental Ana Maria A. Martins

3 A Formação da Nacionalidade

Ana Maria A. Martins

4 A Condição Feminina Maria Antónia Palla

5 A Cultura Medieval Portuguesa (Sécs. XI e XIV) Maria Antónia Palla

6 Os Elementos Fundamentais da Cultura

Jorge Dias

7 Josefa D’Óbidos Vítor Serrão

8 Mário de Sá Carneiro Clara Rocha

9 Fernando Pessoa Maria José de Lancastre

10 Gil Vicente Stephen Reckert

11 O Corso e a Pirataria Ana Maria P. Ferreira

12 Os «Bebés-proveta» Clara Pinto Correia

13 Carolina Michaëlis de Vasconcelos Maria Assunção Pinto Correia

14 O Cancro José Conde

15 A Constituição Portuguesa Jorge Miranda

16 O Coração Fernando de Pádua (2.ªedição)

17 Cesário Verde Joel Serrão

18 Alceu e Safo Albano Martins

19 O Romanceiro Tradicional J. David Pinto‑Correia

20 O Tratado de Windsor Luís Adão da Fonseca

21 Os Doze de Inglaterra A. de Magalhães Basto

22 Vitorino Nemésio David‑Mourão Ferreira

23 O Litoral Português Ilídio Alves de Araújo

24 Os Provérbios Medievais Portugueses

José Mattoso

25 A Arquitectura Barroca em Portugal Paulo Varela Gomes

26 Eugénio de Andrade Luís Miguel Nava

27 Nuno Gonçalves Dagoberto Markl

28 Metafísica António Marques

29 Cristóvão Colombo e os Portugueses

Avelino Teixeira da Mota

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30 Jorge de Sena Jorge Fazenda Lourenço

31 Bartolomeu Dias Luís Adão da Fonseca

32 Jaime Cortesão José Manuel Garcia

33 José Saramago Maria Alzira Seixo

34 André Falcão de Resende Américo da Costa Ramalho

35 Drogas e Drogados Aureliano da Fonseca

36 Portugal e a Liberdade dos Mares

Ana Maria Pereira Ferreira

37 A Teoria da Relatividade António Brotas

38 Fernando Lopes Graça Mário Vieira de Carvalho

39 Ramalho Ortigão Maria João L. Ortigão

de Oliveira

40 Fidelino de Figueiredo A. Soares Amora

41 A História das Matemáticas em Portugal

J. Tiago de Oliveira

42 Camilo João Bigotte Chorão

43 Jaime Batalha Reis Maria José Marinho

44 Francisco de Lacerda J. Bettencourt da Câmara

45 A Imprensa em Portugal João L. de Moraes Rocha

46 Raul Brandão A. M. B. Machado Pires

47 Teixeira de Pascoaes Maria das Graças Moreira de Sá

48 A Música Portuguesa para Canto e Piano

José Bettencourt da Câmara

49 Santo António de Lisboa Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

50 Tomaz de Figueiredo João Bigotte Chorão

51/ Eça de Queirós52 Carlos Reis

53 Guerra Junqueiro António Cândido Franco

54 José Régio Eugénio Lisboa

55 António Nobre José Carlos Seabra Pereira

56 Almeida Garrett Ofélia Paiva Monteiro

57 A Música Tradicional Portuguesa

José Bettencourt da Câmara

58 Saúl Dias/Júlio Isabel Vaz Ponce de Leão

59 Delfim Santos Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

60 Fialho de Almeida António Cândido Franco

61 Sampaio (Bruno) Joaquim Domingues

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62 O Cancioneiro Narrativo Tradicional

Carlos Nogueira

63 Martinho de Mendonça Luís Manuel A. V. Bernardo

64 Oliveira Martins Guilherme d’Oliveira Mar‑

tins

65 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

66 Almada Negreiros José‑Augusto França

67 Eduardo Lourenço Miguel Real

68 D. António Ferreira Gomes Arnaldo de Pinho

69 Mouzinho da Silveira A. do Carmo Reis

70 O Teatro Luso-Brasileiro Duarte Ivo Cruz

71 A Literatura de Cordel Portuguesa

Carlos Nogueira

72 Sílvio Lima Carlos Leone

73 Wenceslau de Moraes Ana Paula Laborinho

74 Amadeo de Souza-Cardoso José‑Augusto França

75 Adolfo Casais Monteiro Carlos Leone

76 Jaime Salazar Sampaio Duarte Ivo Cruz

77 Estrangeirados no Século XX

Ana Paula Laborinho

78 Filosofia Política Medieval Paulo Ferreira da Cunha

79 Rafael Bordalo Pinheiro José‑Augusto França

80 D. João da Câmara Luiz Francisco Rebello

81 Francisco de Holanda Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

82 Filosofia Política Moderna Paulo Ferreira da Cunha

83 Agostinho da Silva Romana Valente Pinho

84 Filosofia Política da Antiguidade Clássica Paulo Ferreira da Cunha

85 O Romance Histórico Rogério Miguel Puga

86 Filosofia Política Liberal e Social

Paulo Ferreira da Cunha

87 Filosofia Política Romântica

Paulo Ferreira da Cunha

88 Fernando Gil Paulo Tunhas

89 António de Navarro Martim de Gouveia e Sousa

90 Eudoro de Sousa Luís Lóia

91 Bernardim Ribeiro António Cândido Franco

92 Columbano Bordalo Pinheiro

José‑Augusto França

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93 Averróis Catarina Belo

94 António Pedro José‑Augusto França

95 Sottomayor Cardia Carlos Leone

96 Camilo Pessanha Paulo Franchetti

97 António José Brandão AnaPaulaLoureirodeSousa

98 Democracia Carlos Leone

99 A Ópera em Portugal Manuel Ivo Cruz

100 A Filosofia Portuguesa (Séculos XIX e XX)

António Braz Teixeira

101/ O Padre António Vieira102 Aníbal Pinto de Castro

103 A História da Universidade Guilherme Braga da Cruz

104 José Malhoa José‑Augusto França

105 Silvestre Pinheiro Ferreira José Esteves Pereira

106 António Sérgio Carlos Leone

107 Vieira de Almeida Luís Manuel A. V. Bernardo

108 Crítica Literária Portuguesa (até 1940)

Carlos Leone

109 Filosofia Política Contemporânea (1887-1939) Paulo Ferreira da Cunha

110 Filosofia Política Contemporânea (desde 1940) Paulo Ferreira da Cunha

111 O Cancioneiro Infantil e Juvenil de Transmissão Oral

Carlos Nogueira

112 Ritmanálise Rodrigo Sobral Cunha

113 Política de Língua Paulo Feytor Pinto

114 O Tema da Índia no Teatro Português

Duarte Ivo Cruz

115 A I República e a Constituição de 1911

Paulo Ferreira da Cunha

116 O Capital Social Jorge Almeida

117 O Fim do Império Soviético José Milhazes

118 Álvaro Siza Vieira Margarida da Cunha Belém

119 Eduardo Souto Moura Margarida da Cunha Belém

120 William Shakespeare Mário Avelar

121 Cooperativas Rui Namorado

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