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ESTUDOS DE GÊNERO FACE AOS DILEMAS DA SOCIEDADE BRASILEIRASeminário de Encerramento

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Reorganização da produção etransformações do trabalho.

Uma nova divisão sexual do trabalho?

Helena Hirata∗

1. Novos modelos produtivos e transformações do trabalho

Diferentes quadros teóricos tem sido elaborados desde meados dos anos

oitenta para dar conta das formas de reorganização da produção que tem sido

postas em prática no universo das empresas, formas consideradas alternativas

ao modelo taylorista-fordista. Em 2000, sociólogos e economistas iniciaram o

balanço das mudanças ocorridas, tanto nos modelos quanto na realidade, entre

os anos sessenta - setenta e os anos noventa. Alguns detectam nessa evolução a

emergência de um “novo espirito do capitalismo” (L. Boltanski, E. Chiapello,

2000); outros vêem ressurgir condições de trabalho com maior intensificação

dos ritmos e cadências, violência e “assédio moral” ou “psicológico” (M. Gollac,

S. Volkoff, 2000).

No desenvolvimento simultâneo e conflituoso de novos modelos

produtivos, a flexibilidade tem sido uma das dimensões principais buscadas

pelas empresas, através do recurso às inovações tecnológicas e organizacionais.

A flexibilidade no volume do emprego e no tempo de trabalho é garantida

essencialmente pelas mulheres nos modelos de trabalho adotados atualmente

ao nível internacional.

E necessário sublinhar a multiplicidade e a complementaridade das

inovações em matéria de organização do trabalho em que modernidade e

barbárie vão de mãos dadas, em que a robotização concorre com o trabalho

∗ Pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), equipe Genre et Rapports Sociaux

(GERS), associada à Universidade de Paris 8 – Saint-Denis (ex-GEDISST).

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infantil: nos países do Sul, talvez seja mais pertinente falar em “começo do

trabalho” do que em “fim do trabalho” (H. Hirata, B. Lautier, P. Salama, 1998:

p.250).

Aqui, uma questão poderia ser colocada: um enfoque Norte-Sul é

pertinente num contexto de globalização? A resposta pode ser afirmativa, se o

objeto de analise é justamente o trabalho:

Ø porque globalização significa interdependência dos mercados, mas não

homogeneização do trabalho

Ø porque se os fluxos financeiros não conhecem fronteiras e trabalham na

imediatidade, a desigualdade das situações sociais e de trabalho segundo os

países, segundo os sexos, as raças, as gerações, persiste e pode mesmo

aumentar

Ø a polarização em três grandes zonas do globo, Estados Unidos, Japão,

Europa às quais se acrescenta alguns poucos países da América Latina e da

Ásia e a exclusão tendencial de outras zonas (da África, do resto da Ásia e

da América Latina) se traduz pela existência de hierarquia e correlação de

forças ao nível internacional.

É essa hierarquização e essa correlação de forças – com o seu corolário

jurídico, assentado sobre um poder, que pode ser designado hoje como

constitutivo do “Império” (M. Hardt, A. Negri, 2000), denominação alternativa

à globalização, embora a primeira não seja redutível à segunda. E necessário

salientar, dentro deste novo quadro mundial, o processo atual – acelerado – de

fusões, aquisições, privatizações, etc. Hoje, a aliança mundial em vista da

constituição de um grupo único entre a francesa Usinor e a japonesa Nippon

Steel (Le Monde, 2001); ontem, as fusões entre Renault e Nissan; entre Rhone-

Poulenc e Hoescht; mas também as aquisições de empresas do Sul por

multinacionais do Norte, com perspectivas de fechamento de fabricas e

demissões de trabalhadores nos países do Norte, como atestam os conflitos do

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trabalho recentes na França (unidades fabris de produção de biscoitos em

Calais, Château-Thierry, etc.) ou na Bélgica (unidade fabril de produção de

carros em Vilvorde). Demissões de trabalhadoras/trabalhadores igualmente

nos países do Sul, na medida em que os processos de fusão objetivam também

diminuição de custos, ao mesmo tempo em que duplicam inevitavelmente as

instâncias de gerência, num contexto tenso de choque entre duas culturas de

empresa, que são também duas culturas nacionais.

Pesquisas empíricas que realizei no Brasil em 1999 trouxeram, nesse

domínio, os resultados seguintes: o conjunto das cinco empresas multinacionais

francesas pesquisadas apresentavam um perfil de forte instabilidade (de

crescimento ou de crise) e/ou de incerteza e risco quanto ao futuro do emprego,

sobretudo junto aos assalariados mais antigos, menos qualificados e com menor

escolaridade; processos de flexibilização do trabalho ainda maior estavam

sendo intentados, inclusive pelo recurso – ainda raro na indústria brasileira – ao

trabalho feminino de tempo parcial. Como meio de proteção adotado pelos

trabalhadores face aos riscos no terreno do emprego, o esforço maior de

formação escolar e profissional apareceu como mais significativo, o que

significava sacrifícios importantes no terreno pessoal, em termos de tempo extra

trabalho e familiar e em termos de gastos financeiros. Todo o sistema de

demissão, requalificação e reorganização da empresa, como parte das políticas

de gestão adotadas nesse momento de forte instabilidade constitui material de

uma tipologia complexa em fase de elaboração.

2. Precarização social e do trabalho: novas figuras, antigas clivagens

O conjunto das inovações acima mencionadas e o surgimento de novas

exigências em termos de qualificação – a emergência do “modelo da

competência” e suas certificações – não podem ser hoje dissociados da situação

do mercado de trabalho e do emprego. A flexibilidade produtiva e a

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flexibilidade da mão de obra, a flexibilidade chamada “qualitativa” e a

flexibilidade “numérica” estão intimamente ligadas, uma dependendo da outra

- da mesma forma que o desenvolvimento dos mercados financeiros é

alimentado pelo aumento da precarização do emprego e o crescimento do

desemprego (P. Salama, 1998) . Hoje, mesmo países como o Japão, passam por

uma situação de recessão e crise do emprego, e a evolução atual do modelo

japonês de empresa indica claramente que não se pode mais dissociar

organização do trabalho e mercado do trabalho: inovação tecnológica e

organização na empresa, de um lado, e as mudanças no estatuto de emprego

dos trabalhadores, de outro, são na realidade, complementares. Os laços

empregatícios tornam-se cada vez mais precárias com o aumento do

desemprego de longa duração, formas instáveis de emprego, flexibilidade no

uso da mão de obra. Desenvolvimento do trabalho em tempo parcial nos países

do Norte, crescimento do trabalho informal nos países do Sul, parecem

emblemáticos dessa nova situação de crise do paradigma do emprego estável e

protegido.

A essas duas dimensões indissociáveis deve-se acrescentar uma terceira:

a subjetividade das trabalhadoras, a vontade de permanecer no mercado de

trabalho, o desejo de autonomia, a vontade de mudar, vislumbrar alternativas.

Tal desejo encontra respaldo na evolução recente da escolaridade e da

formação. Langoni nos anos do “milagre” econômico apontava a escola e a

educação como a solução a todos os problemas. O Japão era apontado como

caso paradigmático da preeminência da educação no processo de

desenvolvimento econômico e tecnológico. Entretanto, o que se vê hoje, no

Brasil, são trabalhadoras industriais ou do comercio com segundo grau

completo, às vezes cursando o terceiro grau em Faculdades particulares, e

entretanto classificadas no nível mais baixo da escala de qualificação e de

salários; na França, também há mais mulheres diplomadas que homens, e em

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todos os níveis de escolaridade (C. Baudelot, R. Establet, 1992), o que não

impede que o acesso a postos de responsabilidade e de decisão continue

extremamente limitado.

3. Mudanças na divisão sexual do trabalho profissional

No debate sobre as transformações da divisão do trabalho entre os sexos,

parece-nos essencial prosseguir na compreensão de três fenômenos, que vem

atraindo a atenção das/dos especialistas:

Ø a bi - polarização da inserção profissional feminina

Ø o desenvolvimento dos empregos de serviços, também bi-polarizados

Ø enfim, o impacto da emergência do “modelo da competência” sobre o

emprego e as trajetórias femininas

3.1 A bi - polarização da inserção profissional feminina

Se a atividade feminina continua concentrada em setores como o de

serviços pessoais, de serviços de saúde ou de educação, a tendência à

diversificação das funções ocupadas aponta para uma situação de bi -

polarização : um dos pólos constituído de profissionais altamente qualificadas e

bem remuneradas (engenheiras, arquitetas, médicas, professoras universitárias,

gerentes, advogadas, juízas, etc.) e outro de trabalhadoras ditas não qualificadas

ocupando empregos mal remunerados e não valorizados socialmente. Essa bi –

polarização, apontada nos estudos sobre o mercado de trabalho brasileiro (C.

Bruschini, 2000a,b) também é discutida na França. Danièle Kergoat (1998: p.

322) aponta para um forte crescimento da categoria “executivos e profissões

intelectuais superiores” que passa, em números absolutos, de 440 276 em 1982 a

895 408 em 1994 (para 1998 Françoise Battagliola fornece a cifra de 1 027445,

para um total da população ativa feminina de 10 053 694), isto é, um pouco mais

de 10%.(cf. F. Battagliola, 2000: p.95).Em porcentagem, as ativas ocupadas na

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categoria executivas e profissões intelectuais superiores passou de 2,5 % em

1968 e 5% em 1984 a 9,5% em 1994 (D. Kergoat, 1998: p. 322). A taxa de

feminização das profissões superiores é de 24% em 1982 e de 34,2% em 1998 (F.

Battagliola, id.ib)

A correlação entre o aumento da escolaridade feminina e a incursão das

mulheres nas profissões ditas superiores é ressaltada por todos os estudos que

se referem à formação deste novo polo feminino. Resultados de minha pesquisa

de 1999 no Brasil mostram que a responsabilidade gerencial atribuída às

mulheres com diplomas de nível superior, se existe, é ainda excepcional, e nem

sempre bem sucedida . Também experiências de promoção interna de

operadoras a cargos de chefia mostraram as dificuldades postas por tarefas de

comando de homens por mulheres, que podem redundar em exclusão do

emprego em vez de promoção e carreira ascendente. Numa das empresas

pesquisadas, a chefia de divisão foi acessível a uma mulher, mas a existência de

poucas chefias de departamento tornava esse último cargo praticamente

inacessível às mulheres, sobretudo se tratando de uma empresa com mão de

obra fundamentalmente masculina.

Do lado oposto a esse polo representado pelas executivas e pelas

profissões de nível superior, que cresce significativamente tanto na França

quanto no Brasil, encontra-se o desenvolvimento de um amplo contingente de

trabalhadoras em empregos precários, de tempo parcial, temporários (CDD,

contrato de duração determinada; CES, Contrato Emprego Solidariedade,

subvencionado pelo governo; “intérim’, etc.), em geral mal remunerados e sem

perspectivas de carreira.

Os ‘working poors’ que pesquisas recentes tornaram visíveis nos Estados

Unidos e na Inglaterra também cresceram muito nos últimos 15 anos na França:

em 1998, 16, 9% do total dos trabalhadores eram pobres – isto é, percebiam dois

terços do salário mediano - mas 28,5% das trabalhadoras do sexo feminino

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(P.Concialdi, S.Ponthieu, 1999: p. 35). O desenvolvimento dessa assim chamada

« feminização da pobreza” encontra explicação no desenvolvimento acelerado

do trabalho em tempo parcial - significando também salário parcial – que passa

de 17,2% das trabalhadoras em 1980 a 31, 7% em 1999. Em 1997 , 77% dos

empregos de baixos salários eram de tempo parcial.

Também fazem parte dos “working poors” na Europa as mulheres chefes

de família (ditas “famílias monoparentais”) que constituem 14% dos domicílios

(7 milhões de famílias) na União Européia hoje (N. Lefaucheur, 2000: p.6).

Também elas formam contingentes importantes de trabalhadoras de tempo

parcial nos países europeus, e aparecem como o polo da inserção profissional

feminina particularmente vulnerável.

3.2. O desenvolvimento dos empregos de serviços

Também nesse campo a bi-polarização é extremamente forte: com a crise

e a recessão dos anos noventa, desenvolveu-se na Europa (cf. por exemplo, G.

Cette e alii, 1998; D. Fougeyrollas-Schwebel, 1998; 2000) e nos Estados Unidos

(cf. por exemplo R. Milkman e alii, 1998), mas também em países como o Brasil

(cf. C. Bruschini, 2000), os chamados “empregos de serviço” ou “serviços de

proximidade”.

Tais empregos se desenvolvem simultaneamente às novas profissões

superiores do terciário, reforçando a sua conhecida “heterogeneidade” (M.

Maruani, E. Reynaud, 1993: p. 53-54; D. Fougeyrollas-Schwebel, 2000: p.5)

Embora documentos oficiais ressaltem seu caráter de “jazida de

empregos potenciais” (G. Cette e alii, 1998: p.7) parece-me que as conseqüências

perversas desses serviços ditos de “proximidade” (cuidado com crianças,

idosos, doentes, trabalho doméstico remunerado, etc.) no rebaixamento do

estatuto já precário e desvalorizado desse tipo de trabalho deve ser ressaltado,

sobretudo na medida em que tais modalidades de serviços são, regra geral,

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associados ao sexo feminino, dada a sua proximidade com o papel tradicional

de “relação de serviço’ que as mulheres tem no interior da família. Pode-se

aproximar esse tipo de empregos aos propostos no quadro do debate sobre o

“terceiro setor” na França, que também concerne diretamente as mulheres, as

mais solicitadas por tais tipos de serviços. Nem público nem privado,

“subvencionado permanentemente’ para criar um “novo setor de empregos”

considerados como socialmente úteis (A Lipietz, 1996: p. 267).

A economia dos serviços também tem sido analisado nas suas tendências

atuais à precarização de empregos outrora estáveis (telefonistas, caixas,

vendedoras) mas ainda estão praticamente inexplorados os novos campos

profissionais criados pelas tecnologias da informação e da comunicação

(teletrabalho, telemarketing, entre outros). As transformações que as novas

tecnologias acarretam nas profissões tradicionalmente femininas do terciário

(secretárias e datilógrafas, enfermeiras e ajudantes de enfermagem, entre

outras) também são um vasto campo aberto à pesquisa.

3.3. A emergência do “modelo da competência”

As transformações recentes dos paradigmas produtivos, e as mudanças

na organização das empresas vem acarretando, desde meados dos anos oitenta,

a crise da noção de “posto de trabalho” em proveito da noção de "trabalho em

equipe” (coletivo de trabalho em cooperação, mobilidade dos trabalhadores

entre postos e entre funções). A definição de competência é constituída de três

dimensões : a tomada de iniciativa e de responsabilidade do indivíduo; a

inteligência prática das situações, que se apoia sobre os conhecimentos

adquiridos e os transforma; a faculdade de mobilizar redes de atores, co –

responsáveis, em torno das mesmas situações (P. Zarifian, 1999: p.70-80). A

principal virtude da lógica competência parece-me ser a de alçar em primeiro

plano o sujeito do processo de trabalho, centrando a atenção mais sobre o

indivíduo e suas qualidades que sobre o posto. Entretanto, três enfoques críticos

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podem ser apresentados considerando as relações de gênero e de classe: 1) as

características do modelo de competência (iniciativa, responsabilidade,

responder ao imprevistos, etc.), são pouco observáveis quando se trata de uma

proporção majoritária do trabalho feminino (monotonia, repetitividade,

disciplina, etc.), ou do trabalho operário, masculino e feminino, dito “não

qualificado”, sobretudo em pequenas e médias empresas. Levar em conta a

competência na avaliação dos/das trabalhadores/as não tenderá a privilegiar o

contingente masculino/qualificado da mão de obra? 2) a lógica competência

também pode ser potencialmente fator de exclusão, sobretudo da mão de obra

feminina. Embora ela favoreça (pelos seus componentes « saber ser »,

« capacidades relacionais ») a entrada de mulheres em cargos de gerência, por

exemplo no setor financeiro (L. Lavinas, 1999; L. Segnini, 1998), pode levar à

criação de uma categoria de trabalhadoras/trabalhadores considerados

inempregáveis porque excluídos da lógica competência; 3) as “capacidades

relacionais’, sobretudo a “relação de serviço”, consideradas qualidades e não

qualificações quando se trata da mão de obra feminina, tendem a desvalorizar,

mais do que a valorizar o trabalho das mulheres, inversamente ao que acontece

com a mão de obra masculina. No caso desta última, as “capacidades

relacionais’ e a “relação de serviço’, batizadas “intercompreensão’ e “atividade

comunicacional” são centrais no modelo da competência. Uma das

conseqüências dessa análise está em que a noção de competência poderia levar

“à dissociação de competências ditas masculinas e outras ditas femininas”, e

através da construção de normas e certificações, acabar por “legitimar a

diferença sexuada das “filières” ocupacionais” (P. Kergoat, 2000:p. 104)

4. Mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico

Pesquisas recentes efetuadas no Brasil (1999) junto a

trabalhadores/trabalhadoras industriais de grandes centros urbanos mostrou

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que houve modificações na repartição do trabalho doméstico, segundo a fala

dos entrevistados, com maior participação dos homens em diferentes tarefas do

que o que mostrou a pesquisa realizada com John Humphrey em 1986 (cf., por

exemplo, H. Hirata, J. Humphrey, 1986). Essa mudança parece ter relação direta

com a inserção das mulheres no mercado de trabalho e sua forte participação

em atividades profissionais fora do domicílio. Entretanto, essa mudança na

divisão do trabalho doméstico tem um caráter restrito e tópico e não atinge o

âmbito das responsabilidades domésticas, que continuam a ser atribuídas

exclusivamente às mulheres.

As pesquisas quantitativas sobre a divisão sexual do trabalho doméstico

são raras, mas a comparação entre os dados da pesquisa Emploi du Temps,

realizada em 1986 e em 1999 pelo Instituto Nacional da Estatística e dos Estudos

Econômicos (INSEE) na França, mostra que os homens fazem, 13 anos depois,

apenas 10 minutos a mais de trabalho doméstico (o tempo consagrado pelas

mulheres às tarefas domésticas diminuiu de 20 minutos): dentre os domicílios

constituídos por um casal, os homens consagram, em 1999, 2h30 por dia ao

trabalho doméstico, as mulheres 5h. As mulheres realizam cerca de 80% da

“produção doméstica” (compras, cozinha, louça, roupa, cuidados materiais com

os filhos) na França em 1999 (C. Brousse, 1999: p.135). Essa autora observa

entretanto que houve uma diminuição das diferenças sexuais entre 1986 e 1999

em todos os domínios de atividades e que a repartição de tarefas domésticas é

um pouco mais igualitária (C. Brousse, 1999, p. 146-147).

Entretanto, deve-se observar que há uma grande variabilidade na

repartição do trabalho domestico segundo os contextos societais; dos poucos

dados disponíveis sobre o Japão, por exemplo, sabemos que em 1995 os homens

consagravam apenas 30 minutos por dia ao trabalho domestico durante a

semana (de 6 dias) e cerca de uma hora no domingo (na França, 2h20 por dia

em 1999) , enquanto as mulheres consagravam um pouco mais de 4h por dia (na

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França, 4h40 por dia em 1999) tanto durante a semana quanto no domingo

(NHK, Kokumin Seikatsu Jikan Chosa (National Time Budget Survey, 1985,

1995 in H. Hirata, 1997: p. 101). Embora no quadro europeu, os dados da

Eurostat permitam estabelecer algumas comparações em termos de emprego do

tempo na esfera doméstica, a quase inexistência de pesquisas neste domínio em

países como o Brasil torna toda comparação internacional da divisão sexual do

trabalho doméstico extremamente difícil.

5. Divisão sexual do trabalho: variabilidade e persistências

A partir da evolução do trabalho e da mão de obra feminina hoje, dotada

de níveis cada vez maiores de escolaridade, ocupando postos de trabalho mais

qualificados e de maior responsabilidade – mesmo que em índices percentuais

ainda relativamente reduzidos – alguns pesquisadores perguntam se há hoje

“(...) simples mudanças nas modalidades ou um real debilitamento da divisão

sexual do trabalho”, “Novas formas de inferioridade feminina no mercado do

trabalho ou um verdadeiro declínio (“afaissement”) da divisão sexuada do

trabalho (F. Michon, 1997: p. 97). Constatando que as implicações políticas e

sociais deste debate são tão importantes que ele se encontra já viciado de

antemão, François Michon propõe que as pesquisas efetuadas no domínio das

relações de gênero sejam interrogadas à luz desta questão. Christian Baudelot

(1998) faz em suma a mesma pergunta: “progresso? estagnação? regressão?”(p.

277) e conclui sobre a dificuldade de tirar conclusões de dois movimentos

simultâneos e contraditórios. Como afirma Michèle Ferrand (1993: 5), “ tudo se

passa como se a cada passo em direção a uma sociedade mista, a cada etapa em

direção a uma maior igualdade entre os sexos, se constituíssem

simultaneamente processos sociais visando reconstruir imediatamente a

diferença”. Para superar a aporia do “copo meio cheio ou meio vazio”, a

dicotomia entre “otimismo” e “miserabilismo”, Christian Baudelot (1998: p.

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283).propõe levar em conta a situação com suas duas componentes

contraditórias, considerando “esta contradição como a verdade indissociável do

momento atual, na sua instabilidade mas também na sua dinâmica”.

De fato, embora mudanças e continuidades coexistam, o deslocamento

hoje das fronteiras do masculino e do feminino deixa intacta a hierarquia social

que confere superioridade ao masculino sobre o feminino, hierarquia sobre a

qual se assenta a divisão sexual do trabalho (Danièle Kergoat,1993). Os novos

contornos da divisão sexual do trabalho, ou suas novas modalidades, deixa

persistir a própria divisão sexual, cujo paradigma se assenta tanto na hierarquia

social conferindo superioridade do masculino sobre o feminino, quanto na

divisão sexual do trabalho doméstico, onde as mudanças – que também

ocorrem – são incomparavelmente mais lentas, como já apontamos acima.

Enquanto a atribuição social das responsabilidades domésticas e familiares

continuar a recair sobre a mulher, e o modelo da “conciliação” entre vida

profissional e vida familiar for pertinente exclusivamente para as mulheres, as

bases em que se sustenta a divisão sexual do trabalho não parecem estar

ameaçadas nos seus fundamentos.

Cabe também afirmar que a divisão sexual do poder e do saber são

constitutivas da divisão sexual do trabalho, e as relações de poder entre homens

e mulheres deve ser levada em conta na análise das perspectivas futuras do

trabalho feminino, por exemplo na idéia de que “a médio e longo prazos, é

possível que o acesso de contingentes cada vez maiores de mulheres às

ocupações e aos empregos mais qualificados crie condições para que a

segregação ocupacional seja rompida e as desigualdades salariais superadas’(C.

Bruschini, 2000a: p. 56).

As questões: “o que muda e o que permanece? ‘ (cf. M.I. Baltar da Rocha,

2000, titulo da parte II), “novas conquistas ou persistência da discriminação”?

(C. Bruschini, 2000a) são, tanto no Brasil quanto na França, de grande

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atualidade nesse início de século, após trinta anos de transformações

espetaculares da atividade feminina em todo o mundo. Para responder a tais

questões – que dizem respeito à emergência de uma nova divisão sexual do

trabalho – seriam necessários, a meu ver:

Ø novas pesquisas empíricas, para além do acúmulo dos últimos anos, para o

qual contribuiu de maneira decisiva, no Brasil, a publicação, em diversos

volumes nos últimos vinte anos, dos resultados das pesquisas realizadas no

quadro da Fundação Carlos Chagas, com o apoio da Fundação Ford;

Ø um maior acúmulo de dados quantitativos discriminados por sexo;

Ø outras comparações internacionais da divisão sexual do trabalho

profissional e doméstico;

Ø e, enfim, o prosseguimento – dentro de uma perspectiva interdisciplinar –

na elaboração de teorias sobre a construção social do gênero.

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