do cárcere - uma discussão sobre a espacialidade cotidiana das mulheres encareradas na cidade de...

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XIV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR Maio de 2011 Rio de Janeiro - RJ - Brasil DO CÁRCERE: UMA DISCUSSÃO SOBRE A ESPACIALIDADE COTIDIANA DE MULHERES ENCARCERADAS NA CIDADE DE PONTA GROSSA, PARANÁ Karina Eugenia Fioravante (UEPG) - [email protected] Pós - Graduanda do Programa de Pós Graduação em Geografia, Mestrado em Gestão do Território da Universidade Estadual de Ponta Grossa Joseli Maria Silva (UEPG) - [email protected] Docente do Programa de Pós Graduação em Geografia, Mestrado em Gestão do Território da Universidade Estadual de Ponta Grossa

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Criminologia feminista

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  • XIV ENCONTRO NACIONAL DA ANPURMaio de 2011Rio de Janeiro - RJ - Brasil

    DO CRCERE: UMA DISCUSSO SOBRE A ESPACIALIDADE COTIDIANA DE MULHERESENCARCERADAS NA CIDADE DE PONTA GROSSA, PARAN

    Karina Eugenia Fioravante (UEPG) - [email protected] - Graduanda do Programa de Ps Graduao em Geografia, Mestrado em Gesto do Territrio da UniversidadeEstadual de Ponta Grossa

    Joseli Maria Silva (UEPG) - [email protected] do Programa de Ps Graduao em Geografia, Mestrado em Gesto do Territrio da Universidade Estadualde Ponta Grossa

  • Do Crcere: Uma Discusso Sobre A Espacialidade Cotidiana De

    Mulheres Encarceradas Na Cidade De Ponta Grossa, Paran

    Resumo: O objetivo desse trabalho trazer algumas discusses acerca da espacialidade

    cotidiana de mulheres encarceradas no Mini Presdio Hildebrando de Souza na cidade de

    Ponta Grossa, Paran. Para realizar essa anlise utilizaremos as entrevistas que realizamos

    com dezessete mulheres encarceradas na cidade de Ponta Grossa durante os meses de

    outubro de 2009 a janeiro de 2010. Nossa anlise se divide da seguinte forma:

    primeiramente trazemos uma discusso sobre os espaos carcerrios, evidenciando que

    eles tm intrnseca relao com a exterioridade, e, portanto, com o urbano. Por fim,

    trazemos algumas reflexes sobre a espacialidade cotidiana do crcere feminino na cidade

    de Ponta Grossa, apoiadas principalmente nas perspectivas da Geografia Feminista.

    Algumas consideraes sobre espaos carcerrios e gnero

    Esse trabalho tem por objetivo trazer algumas consideraes acerca da

    espacialidade cotidiana de mulheres encarceradas no Mini Presdio Hildebrando

    de Souza na cidade de Ponta Grossa, Paran. A idia do crcere sempre existiu em

    nossa sociedade de uma forma ou de outra, como punio ou como meio para que

    ela acontea. Foucault (2007) nos apresenta a evoluo do sistema penal em nossa

    sociedade e suas mltiplas facetas. Mecanismos para se fazer punir, articulados

    pela sociedade, chamados pelo autor de dispositivos de vigilncia, foram produtos

    de determinados contextos polticos, econmicos e culturais, se modificando, da

    mesma forma, mediante a mudana da sociedade. Para o autor, a priso, em sua

  • forma atual, foi uma longa e lenta evoluo das formas de punio elaboradas e

    repensadas ao longo da histria da sociedade moderna.

    Em sua genealogia sobre as formas de poder e punio, ele afirma que a

    priso no sistema penal dos sculos XVII e XVIII no era uma pena do direito, ou

    seja, quando a lei punia um determinado indivduo, sua punio seria a condenao

    a morte, a ser marcado, banido, etc. A priso no era uma punio. A extino das

    formas de punio corpreas, denominadas de suplcio, foi a caracterstica

    fundamental para a mudana em toda a maquinaria punitiva no sculo XVIII. O

    corpo, supliciado, marcado simbolicamente, esse era o alvo dos dispositivos de

    punio. O corpo como espetculo, como garantia de exemplo social.

    Carvalho Filho (2002) discute que a origem das prises est intimamente

    relacionada no com a punio em si, mas com a garantia de que ela ocorra. Como

    discute o autor, os rus no eram condenados a perda de sua liberdade. Mas sim,

    eram privados dela para viabilizar a punio imposta, que ia de realizao de

    trabalhos forados at a pena de morte. Nesse sentido, no havia necessidade de

    se preocupar com as condies de vivncia nas prises, bastava que fossem

    inexpugnveis. interessante observar que, ainda hoje, as condies dos espaos

    carcerrios so precrias.

    A partir do sculo XVIII, a natureza da priso se modifica, assemelhando-se

    cada vez mais com o modelo institudo que conhecemos atualmente. Com as novas

    necessidades econmicas surge tambm a necessidade de se considerar a

    humanidade at dos piores assassinos. Esquecemos os corpos e passamos ento

    para as almas. Essa como discute Foucault (2007) a principal caracterstica da

    nova economia do poder. A privao da liberdade, direito garantido a todos, se

    transforma na mais moderna e humana forma de punio. Com essa nova

    configurao dos dispositivos de punio, surge a forma priso, com moldes que

    permanecem at hoje. Nas palavras do autor,

    A forma-priso preexiste sua utilizao sistemtica nas leis penais. Ela se constitui fora do aparelho judicirio, quando se elaboram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivduos, fix-los e distribu-los espacialmente, classific-los, tirar deles o mximo de tempo, e o mximo de foras, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contnuo, mant-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observao, registro e notaes, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. (FOUCAULT, 2007, p. 195)

  • Uma das finalidades desse novo sistema a vigilncia. Percebe-se ento,

    que mais lucrativo vigiar do que punir. Ou seja, percebe-se que os delinqentes

    tm uma finalidade. Ento, por que dilacerarmos seus corpos, tornando-os assim,

    inteis para qualquer outro tipo de atividade? isso que Foucault (1967) mostra.

    Esse reajustamento nas formas de punio, essa nova mecnica do poder que v

    nos corpos encarcerados novas utilidades. Baseado nisso, o autor compreende que

    a priso, sempre esteve ligada a um processo baseado na transformao de

    indivduos, no treinamento de seus corpos, na readequao de sua conduta,

    conduta essa que deve ser compatvel com as configuraes socioespaciais

    vigentes. Nas palavras do autor,

    Minha hiptese que a priso esteve, desde sua origem, ligada a um projeto de transformao dos indivduos. Habitualmente se acredita que a priso era uma espcie de depsito de criminosos, depsito cujos inconvenientes se teriam constatado por seu funcionamento, de tal forma que se teria dito ser necessrio reformar as prises, fazer delas um instrumento de transformao dos indivduos. Isto no verdade: os textos, os programas, as declaraes de inteno esto a para mostrar. Desde o comeo a priso devia ser um instrumento to aperfeioado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com preciso sobre os indivduos. O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o prprio projeto. Desde 1820 se constata que a priso, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afund-los ainda mais na criminalidade. Foi ento que houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilizao estratgica daquilo que era inconveniente. A priso fabrica delinqentes, mas o delinqentes so teis tanto no domnio econmico como no poltico. (FOUCAULT, 1967, p. 131-132)

    Essa idia apresentada por Foucault (1967) muito semelhante

    apresentada por Goffman (1988). O espao carcerrio faz parte do que o autor

    denomina de instituies totais, ou seja, um local onde um grande nmero de

    indivduos mantido afastado da sociedade por um determinado perodo de tempo

    levando uma vida regrada e formalmente administrada. Para Goffman (1988), as

    instituies totais so discordantes de diversos aspectos da vida social, tais quais, a

    famlia, as redes de relacionamentos pessoais e tambm as caractersticas que

    formam e instituem identidades dos sujeitos.

    Observamos, entretanto, que apesar dessa vida regrada, administrada,

    vigiada, as mulheres encarceradas, encontram meios de subverter essa ordem

    estabelecida, mantendo em sua vivncia cotidiana elementos da exterioridade.

    Percebendo esse fato em diversos momentos no dia a dia das mulheres, como

  • no caso dos relacionamentos romnticos, por exemplo. Essa questo ser tratada

    de forma mais densa na segunda subseo desse trabalho. isso que defendemos

    em nossa reflexo. Os autores que usamos para nos fornecer um eixo norteador

    parecem ter se esquecido de um aspecto fundamental: a complexa espacialidade do

    crcere no se constri apenas a partir de elementos normativos. Muito pelo

    contrrio, so antes de tudo, construdas pelas pessoas que vivem ali, sujeitos

    esses, que interferem, burlam e modificam toda a lgica de poder instituda pelos

    rgos oficiais. So, principalmente, as vivncias cotidianas das pessoas

    encarceradas que constituem esse espao enquanto tal, e no apenas discursos

    oficiais.

    Nosso objetivo no trazer um discurso que possa mostrar caractersticas

    formais dos espaos carcerrios. Mas sim, defender que de extrema importncia

    levar em considerao as vozes das pessoas que esto intrinsecamente

    relacionadas a eles, os prprios presidirios. Tentamos entender como esse espao

    vivenciado por eles, imaginado por eles. Isso no fcil, muito pelo contrrio.

    Devemos tambm levar em considerao que a vivncia do crcere, assim

    como qualquer outra experincia espacial, perpassada por especificidades de

    gnero, classe, sexualidade, raa/etnia entre outras. Ou seja, essa espacialidade

    carcerria vivenciada de forma diferente por homens, mulheres e mais ainda, por

    mulheres com determinada renda e com determinada raa.

    Alguns historiadores identificam a origem das prises modernas nas celas

    eclesisticas, utilizadas pela Igreja Catlica para punio de religiosos infratores e

    nas casas de correo criadas na Inglaterra e na Holanda a partir do sculo XVI.

    interessante observar que j nessa poca existiam distines de gnero nas prises

    europias, as houses of correction para homens e as bridewells para mulheres.

    (CARVALHO FILHO, 2002)

    Podemos observar a expresso das especificidades de gnero at mesmo no

    momento de criao das primeiras casas de deteno para mulheres. Na Amrica

    Latina, as primeiras casas de correo no provinham de iniciativas estatais, mas

    sim, da ao filantrpica de grupos religiosos. Aguirre (2009) discute que as irms

    da congregao do Bom Pastor administravam casas de correo feminina em

    Santiago no Chile no ano de 1857, em Lima no ano de 1871 e em Buenos Aires no

    ano de 1880. Essa associao com rgos religiosos possivelmente provinha da

    prpria interpretao da criminalidade feminina. As mulheres, por seu carter,

  • influencivel e fraco, necessitavam de um tratamento mais ameno, mais comedido

    que o masculino. No to rgido, no to militarizado, uma vez que, como sugere

    Caimari (1997), as mulheres eram vistas como criminosas ocasionais. Ou seja, em

    um momento de irracionalidade cometiam crimes. Aguirre (2009) afirma que,

    As prises e casas de correo de mulheres se guiavam pelo modelo de casa-convento: as detentas eram tratadas como se fossem irms desgarradas que necessitavam no de um castigo severo, mas de um cuidado amoroso e bons exemplos. A orao e os afazeres domsticos eram considerados fundamentais no processo de recuperao das delinqentes. As detentas eram obrigadas a trabalhar em tarefas prprias do seu sexo (costurar, lavar, cozinhar) e, quando se considerava apropriado levavam-nas para trabalhar como empregadas domsticas nas casas de famlia decentes, com a finalidade de completar sua recuperao sob a superviso dos patres. (AGUIRRE, 2009, p. 52)

    J no ano de 1551 se mencionava a existncia de uma priso na cidade de

    Salvador, no estado da Bahia. Geralmente, as prises se encontravam em prdio

    militares construdo para proteo do territrio nacional, os quais com o tempo

    perderam a funo e foram realocados para espaos carcerrios. No Rio de Janeiro,

    o Aljube, antigo crcere criado para punio de religiosos foi doado pela Igreja para

    servir como priso comum aps a vinda da Famlia Real para o Brasil, em 1808.

    Entretanto, apenas em 1830 que foi instituda no Brasil pelo Cdigo Criminal do

    Imprio a pena privativa de liberdade. A maior novidade do Cdigo de 1830 foi o

    surgimento das penas de priso com trabalho. (CARVALHO FILHO, 2002)

    Uma das primeiras indicaes de mulheres encarceradas no Brasil aparece

    no Relatrio do Conselho Penitencirio do Distrito Federal no ano de 1870. Consta a

    priso de 187 mulheres escravas entre os anos de 1869 e 1870 na Casa de

    Correo da Corte. A grande maioria das mulheres que eram presas na poca era

    encarcerada por crimes contra os costumes, vadiagem, embriaguez e prostituio.

    (SORES e ILGENFRITZ, 2002)

    Podemos observar, assim, a importncia de levarmos em conta as relaes

    de gnero envolvidas nesse fenmeno. Como afirmou Santos (2008), todas as

    relaes sociais so espaciais, e, portanto, impossveis de serem compreendidas

    fora de sua espacialidades. A criminalidade feminina, entendida enquanto um

    fenmeno social e espacial se apresenta da mesma forma. Cada vez mais, as/os

    gegrafas/os feministas vm se empenhando em demonstrar que essas relaes

  • socioespaciais tambm so permeadas por especificidades de gnero. isso que

    levamos em conta em nossa reflexo.

    Com as discusses feministas na Geografia surgem novas possibilidades

    metolodolgicas e conceituais, bem como novas temticas, at ento invisveis.

    Badinter (2005) discute a criminalidade feminina e a dificuldade que as feministas

    encontram frente temtica. Possivelmente por colocar em dvida a premissa de

    que as mulheres so seres frgeis e indefesos, pesquisar aspectos como a

    criminalidade seja to difcil para as pesquisadoras feministas. A autora discute de

    forma honesta a violncia cometida por mulheres e nos lana o desafio de por ao

    lado a segurana que a vitimizao confere s mulheres e encarar esse fenmeno

    com maturidade, questionando se a violncia feminina uma resposta a dominao

    masculina, ou se ela simplesmente pode ser genuna.

    Para Badinter (2005) tanto nos perodos de extrema violncia, como

    genocdios e massacres, quanto no cotidiano, s mulheres podem, sim, tornarem-se

    violentas, ou seja, matam por interesses prprios ou sadismo. Sendo assim, a

    tentativa de explicar a violncia feminina trazendo culpa a dominao masculina

    uma forma falida e pouco, ou nada, contribui para a libertao das mulheres. Muito

    pelo contrrio, apenas perpetua a viso indefesa e angelical das mulheres, viso

    esta que vem sendo utilizada h muito tempo como justificativa para a

    demonizao da sexualidade masculina.

    A autora conclui que,

    Ao querer ignorar sistematicamente a violncia e o poder das mulheres, ao proclam-las constantemente oprimidas e, portanto, inocentes, traa-se em negativo o retrato de uma humanidade cindida em dois e pouco conforme verdade. De um lado, as vtimas da opresso masculina, do outro, os carrascos onipotentes. Para lutar contra essa situao, vozes feministas cada vez mais numerosas investem contra a sexualidade masculina, apontada como a raiz do problema. Ao faz-lo, elas delineiam os contornos de uma sexualidade feminina em contradio com a evoluo dos costumes e redefinem uma natureza feminina que acreditvamos esquecida . (BADINTER, 2005, p. 92)

    Quando analisamos a criminalidade feminina utilizando o conceito de gnero

    como elemento metodolgico, temos uma perspectiva crtica capaz de dar

    inteligibilidade aceitao desse fenmeno por parte da populao. A identidade

    feminina est sobrecarregada de esteretipos construdos culturalmente, os quais

    constrangem a sociedade a esperar certas atitudes e determinados papis pr-

    estabelecidos quanto ao ser mulher. Da mulher se esperam a passividade, a

  • gentileza e a docilidade, qualidades estas nem sempre acentuadas e facilmente

    perceptveis nas mulheres envolvidas no ambiente criminal e mesmo nas reclusas

    em penitencirias e cadeias. Segundo Silva (2007),

    O padro hegemnico que categorizou os corpos, tambm lhes atribuiu papis sociais a serem desenvolvidos e, mais do que isso, instituiu uma forte carga naturalista no seu desempenho. Aos sujeitos femininos se atribui o desempenho da maternagem, passividade, docilidade, fragilidade e emoo. Ao sujeito masculino, a agilidade, fora, agressividade, astcia e raciocnio. (SILVA, 2007, p.102)

    O conceito de gnero aparece assim, como importante ferramenta conceitual,

    metodolgica e tambm poltica, proporcionando uma nova leitura da realidade

    socioespacial. Silva (2004) discute que a utilizao do conceito de gnero como

    ferramenta explicativa confere uma anlise mais complexa e profunda do espao

    geogrfico, pois traz elementos ignorados pela Geografia tradicional, como o papel

    da mulher na produo do espao, por exemplo.

    Para esse trabalho utilizamos as idias de Silva (2005) acerca da

    potencialidade do conceito de gnero para a cincia geogrfica. A autora discute

    que o conceito de gnero traz consigo valiosos elementos de pluralidade e

    multidimensionalidades, englobando aspectos esquecidos pela cincia geogrfica

    tradicionalista. Entendemos o conceito de gnero enquanto uma representao, e

    sendo assim, diferenciado temporal e espacialmente. Como j dito anteriormente, o

    espao permeado por relaes de gnero, sendo estas, re-significadas e re-

    elaboradas nas relaes socioespaciais cotidianas.

    As desigualdades de gnero podem explicar a dificuldade que nossa

    sociedade ainda tem na aceitao da criminalidade feminina. muito comum notar o

    escndalo da populao quando alguma mulher est envolvida em algum crime de

    natureza brbara. Para a maioria da populao, a mulher infratora aquela que, em

    um momento de histeria, espanca os filhos, ou mais comumente, agride o marido

    por motivos de cimes.

    Trabalhar com campos cientficos que no esto consolidados e que ainda geram

    polmicas no mundo acadmico nos traz alguns desafios. Alm da sensao de

    angstia e medo em determinados momentos, a motivao muito maior quando

    fazemos uma coisa ainda no feita. Olhar o mundo atravs de outras lentes,

  • descobrindo e trazendo tona suas particularidades e especificidades,

    maravilhoso, especialmente para uma/um pesquisadora/or.

    As perspectivas feministas da Geografia vm se aprimorando cada vez mais

    para dar conta das novas necessidades tericas e metodolgicas, pois nossa

    sociedade dinmica, e o mesmo espera-se da cincia. A questo da criminalidade

    feminina uma delas. Historicamente ignorada e negligenciada acadmica e

    socialmente, esse fenmeno vem tirando o sono de muitos corajosos pesquisadores

    que se engajaram com a rea.

    As perspectivas feministas so plurais, permeadas por disputas polticas,

    culturais e ideolgicas (VELEDA DA SILVA, 2009). Ou seja, no existe um

    feminismo, e sim vrios cada qual dialogando com os estudos criminolgicos de

    maneiras especficas. O que no podemos negligenciar que, na medida em que as

    perspectivas feministas so utilizadas como uma possibilidade metodolgica, a

    prpria metodologia criminolgica em si cresce. A se encontra a importncia de

    estudos que busquem compreender as prticas cotidianas bem como a

    espacialidade de mulheres encarceradas e criminosas.

    Observamos que a experincia do crcere vivenciada de forma

    completamente antagnica por homens e mulheres. Conseguimos perceber durante

    nossas idas ao presdio que o tratamento dedicado as mulheres era diferenciado.

    Parece exagero afirmar que as mulheres so bem tratadas. Para no cairmos nessa

    contradio, vamos, ento, afirmar que as mulheres no so to mal tratadas como

    os homens. Mais uma vez, o campo nos confirmou o conceito. Os papis de gnero

    esto to absorvidos pela nossa sociedade, que mesmo em situaes onde as

    mulheres subvertem ao menos em parte essa identidade forjada culturalmente, a

    idia de fraqueza e fragilidade, mesmo amenizada, ainda permanece. Queremos

    deixar claro que nossa perspectiva no de vitimizar as mulheres encarceradas,

    muito pelo contrrio. Acreditamos que a vitimizao s corrobora com a viso das

    mulheres enquanto seres fracos e oprimidos. No conseguimos ver nenhuma

    possibilidade de libertao, se podemos assim dizer, para as mulheres a partir dessa

    perspectiva.

    Assis e Constantino (2002) discutem sobre esse imaginrio social construdo

    em torno das mulheres e da criminalidade feminina. Segundo eles, essa noo de

    fragilidade feminina de tal maneira consolidada, que algumas mulheres no

    recebem a punio apontada pelo Cdigo Penal Brasileiro, pois a viso da mulher

  • como ser frgil e desprotegido, j incorporada por autoridades como juzes,

    delegados entre outros, influencia em vrios casos na punio estabelecida.

    Percebemos esse fato tambm no prprio tratamento que as mulheres recebem no

    crcere.

    Vamos tratar do crcere nesse trabalho como um espao construdo e,

    portanto, tambm desconstrudo atravs de fluxos de relaes. O conceito de

    espao teve diversas abordagens ao longo da histria da cincia geogrfica, tendo

    sido desprezado e revalorizado de acordo com o contexto cientfico vigente.

    Compreendido enquanto matriz, simblico, campo de lutas e condio social.

    (CORRA, 1995). As abordagens sobre espao sempre foram plurais, mostrando

    assim, que a razo dessa pluralidade a mesma da existncia da cincia (GOMES,

    2010). Em nossa reflexo vamos compreender o espao atravs dessa noo de

    pluralidade, de multiplicidade.

    Massey (1999) afirma que existem vrias maneiras de imaginarmos o espao.

    Ela defende trs elementos essenciais atravs dos quais podemos re-imaginar o

    espao, trazendo tambm seu intrnseco carter poltico, o qual vem sendo

    negligenciado em diversas abordagens. Esses trs elementos apontados por

    Massey (1999) no objetivam trazer uma definio fechada, completa de espao.

    Muito ao contrrio, sua idia exatamente a oposta. Entender o espao como

    sempre em construo, como mutvel, como fludo uma forma de compreend-lo

    em sua dinmica, sempre aberto. Nas palavras de Massey (2008),

    Primeiro, reconhecemos o espao como o produto de inter-relaes, como sendo constitudo atravs de interaes desde a imensido do global at o intimamente pequeno. (Esta uma proposio que no surpreender a todos os que tm lido a recente literatura anglfona.) Segundo, compreendemos o espao como a esfera da possibilidade da existncia da multiplicidade, no sentido da pluralidade contempornea, como a esfera na qual distintas trajetrias coexistem; como a esfera, portanto, da coexistncia da heterogeneidade. Sem espao, no h multiplicidade; sem multiplicidade, no h espao. Se o espao , sem dvida, o produto de inter-relaes, ento deve estar baseado na existncia da pluralidade. Multiplicidade e espao so co-constitutivos. Terceiro, reconhecemos o espao como estando sempre em construo. Precisamente porque o espao, nesta interpretao, um produto de relaes entre, relaes que estai, necessariamente, embutidas em prticas materiais que devem ser efetivadas, ele est sempre no processo de fazer-se. Jamais est acabado, nunca fechado. (MASSEY, 2008, p. 29)

    Concebemos, assim, em nossa reflexo, o espao carcerrio enquanto um

    produto de inter-relaes, como a esfera que possibilidade a coexistncia da

  • multiplicidade, sempre em construo. O espao enquanto elemento fundamental na

    constituio das identidades, sendo da mesma forma, transpassadas por elas. Como

    j afirmamos anteriormente, as espacialidades no so vivenciadas da mesma

    forma por todos os sujeitos. O espao carcerrio se configura exatamente dessa

    maneira. Observamos essa espacialidade como proveniente da juno de diversas

    corporalidades, cada uma delas apresentando caractersticas especficas, maneiras

    especficas de ver o mundo.

    a partir dessa pluralidade, e tambm desse envolvimento com a

    materialidade que concebemos o espao carcerrio. Acreditamos tambm que,

    alguns tipos de espao exigem a criao de um ns. No de um ns que seja

    homogneo, mas de um ns que garanta a legitimidade do grupo. No queremos

    afirmar que as mulheres encarceradas na cidade de Ponta Grossa se constituem

    enquanto um grupo homogneo, mas sim, que a experincia do encarceramento

    um elemento em comum na constituio e no constante remodelamento de suas

    identidades.

    O espao carcerrio dinmico. permanentemente re-configurado a partir

    de sadas, de novas chegadas e obviamente de um reajuste nas relaes de poder

    vigentes. No deve e nem pode ser interpretado a partir de uma nica histria ou

    voz que possa represent-lo de forma nica. Como discute Massey (2008, p.161), o

    espao, ento, no pode ser, jamais, aquela simultaneidade completa na qual todas

    as interconexes j tenham sido estabelecidas, na qual cada lugar j est (e nesse

    momento imutavelmente) ligado a todos os outros.

    Sempre sendo feito, sempre sendo construdo e reconstrudo atravs da

    chegada e sada de novas corporalidades. O que gostaramos de aprofundar a

    influncia dessa dinmica na prpria constituio da espacialidade. As prticas

    cotidianas de sujeitos sofrem interferncia da espacialidade na qual esto inseridas,

    da mesma forma, como a interferem. No exato momento em que uma nova mulher

    entra no espao carcerrio, este sendo previamente moldado de acordo com as

    interconexes e relaes de poder j existentes, ele se re-configura completamente.

    Novos ritos, novas interconexes, novas coexistncias entram em ao. Isso

    infinito. Entendemos ento, o espao carcerrio dessa forma. Sempre mutvel,

    sempre se construindo, se re-configurando, com mltiplos sujeitos, coexistindo em

    harmonia ou no. Um sistema aberto. Optamos por essa definio de

    espao/espacialidade no por ela ser a nica verdadeira, mas por recusar as

  • formulaes hegemnicas previamente estabelecidas, principalmente na cincia

    geogrfica, se abrindo assim, para a possibilidade do novo, de novas perguntas,

    enfim, de novas maneiras de fazermos cincia.

    Passamos agora para a segunda subseo desse trabalho na qual trazemos

    algumas consideraes acerca da vivncia espacial cotidiana das mulheres

    encarceradas na cidade de Ponta Grossa. Um esclarecimento se faz

    importantssimo nesse momento. imprescindvel que o leitor compreenda que

    todas as consideraes e apontamentos que realizaremos esto intimamente

    vinculados a uma espacialidade carcerria especfica, a qual est ligada a uma

    espacialidade urbana tambm especfica. O que queremos dizer com isso? Que

    nossas reflexes nesse trabalho no devem ser tomadas como um discurso

    generalizante, ou seja, que seja capaz de dar inteligibilidade a todos os espaos

    carcerrios do sistema penitencirio brasileiro.

    Algumas consideraes sobre a espacialidade carcerria feminina na cidade

    de Ponta Grossa, Paran

    O Mini Hildebrando de Souza na cidade de Ponta Grossa tem capacidade

    para 274 pessoas, entretanto atualmente conta com cerca de 480 presos. O nmero

    de mulheres fica geralmente em torno de 60 a 70 presas. As presas no possuem

    um local prprio para seu encarceramento, estando confinadas entre duas galerias

    masculinas e sempre sendo realocadas de acordo com as necessidades

    administrativas do Mini Presdio.

    Antes de continuarmos, apresentaremos brevemente o perfil dessas

    mulheres, a fim de contextualizar o leitor a respeito do grupo sobre o qual estaremos

    considerando. Para a obteno do perfil das mulheres que se encontram

    encarceradas na cidade de Ponta Grossa utilizamos questionrio fechado o qual

    abrangia dados como idade, escolaridade, estado civil, religio, nmero de filhos,

    motivo da priso entre outros. Este foi respondido por 60 das 65 mulheres que se

    encontravam encarceradas no dia da aplicao do questionrio. Foram realizadas

    tambm entrevistas com questionrio aberto com 17 mulheres, buscando

    compreender aspectos mais subjetivos de sua espacialidade cotidiana.

    Podemos perceber que as mulheres encarceradas na cidade de Ponta

    Grossa so na sua maioria mulheres jovens, 67% possuem idade entre 18 e 35

  • anos. Com relao ao estado civil, 64% se dizem casadas ou amaziadas.

    interessante discutir essa questo dos relacionamentos, j que como discutido

    anteriormente, uma das premissas das instituies totais, e entre elas, os presdios,

    o total afastamento dos indivduos de suas redes de relacionamento. Quando

    analisamos mais a fundo a questo dos relacionamentos, e principalmente nesse

    caso, os relacionamentos com carter romntico, percebemos que, 100% das

    mulheres que se dizem casadas ou que possuem relacionamentos estveis, tm o

    companheiro tambm em situao de crcere. Do grupo de mulheres entrevistadas,

    75% afirmam tambm que foram presas junto com o companheiro.

    No podemos deixar de discutir a importncia dos relacionamentos para

    essas mulheres, importncia essa que se torna ainda mais complexa no crcere. No

    Mini - Presdio Hildebrando de Souza no existe um lugar especfico para a

    realizao das visitas ntimas estas, garantidas por Lei. Isso implica em uma

    complicao ainda maior para as mulheres exerceram a sua sexualidade. Outro

    aspecto tambm observado atravs das entrevistas realizadas com questionrio

    aberto foi a questo do abandono dos maridos s mulheres no momento em que

    elas so presas. Conseguimos perceber que esse assunto em diversas situaes

    muito doloroso s mulheres, pois como exemplifica a fala de uma das detentas,

    Sempre apoiei ele, vinha traze as coisas pra ele, as sacolas na sexta feira. Catava papelo, mantinha duas crianas nas fralda e nunca abandonei ele. Agora, nem sei mais se eu t casada. Agente no pode se falar, no sei mais se sou casada. (Fala da depoente Jo. Entrevista realizada no Presdio Hildebrando de Souza no dia 04/01/2010)

    Percebemos que a questo dos relacionamentos tem papel central na

    vivncia cotidiana dessas mulheres. Os sentimentos de amor romntico e seus

    derivados como o cime dos parceiros se extravasam de uma maneira muito mais

    exacerbada que na exterioridade. Nossa hiptese de que essas mulheres vivem

    em uma espacialidade to restrita, que na ausncia de outros aspectos da vida

    cotidiana, trazem tona sentimentalismos que na exterioridade so vivenciados de

    formas mais amenas. Ainda tratando da questo dos relacionamentos, observamos

    que a grande maioria das mulheres encarceradas so mes, 93% delas, sendo que

    desse total, 55% tem at trs filhos. O problema do exerccio da maternagem com

    certeza a maior e mais interessante especificidade do crcere feminino. Em Ponta

    Grossa, o Presdio Hildebrando de Souza, onde esto internadas as mulheres, no

  • apresenta nenhuma infra - estrutura que permita as mulheres o exerccio a

    maternagem, direito esse, resguardado por lei.

    A vivncia do espao carcerrio relatada como de afastamento dos espaos

    anteriormente vivenciados. A famlia se re-organiza e, em geral, a mulher

    encarcerada acaba sendo substituda por outra, tanto em relao aos

    relacionamentos maritais quanto maternais. As visitas de parentes e membros da

    famlia ao espao do crcere a fim de manter os vnculos das redes familiares so

    dificultadas. H casos em que as prprias mulheres evitam as visitas de filhos, a fim

    de proteg-los do constrangimento das revistas realizadas por policiais que exigem a

    retirada de roupas e, inclusive, averiguao dos corpos. Os cnjuges e parceiros

    amorosos tambm se afastam. Com o passar do tempo, constroem novos

    relacionamentos e abandonam as mulheres que vivem em situao de crcere.

    As relaes maternas tambm so prejudicadas em funo da falta de infra-

    estrutura adequada nos presdios femininos. No estado do Paran, h 448 vagas

    para mulheres, segundo o relatrio realizado pelo Departamento Penitencirio

    Nacional em abril de 2008. A penitenciria feminina do Paran se destina ao

    cumprimento de pena em regime fechado e possui uma creche com capacidade

    para 40 crianas e um berrio para 12 crianas.

    Com relao aos delitos, podemos afirmar que as mulheres encarceradas na

    cidade de Ponta Grossa cometem principalmente dois tipos de crime: trfico de

    droga (artigo 33 da Lei dos Antitxicos) e roubo ou furto (artigos 155 e 157 do

    Cdigo Penal Brasileiro). O trfico de drogas o delito mais cometido pelas

    mulheres, representando um total de 89% das mulheres presas. interessante

    discutir que de acordo com o questionrio respondido, 61% das mulheres se dizem

    no usurias de nenhum tipo de droga. Na cidade de Ponta Grossa, 30% das

    mulheres egressas atendidas pelo Programa Pr Egresso durante os anos de

    2000 a 2007 estiveram encarceradas por trfico de drogas (FIORAVANTE, 2008).

    Cada vez mais, as mulheres vm se encaixando na dinmica do trfico de

    drogas, tanto em papis subalternos quanto em posies de maior poder. Acredita-

    se que o envolvimento das mulheres com as drogas se deve geralmente ao lao

    afetivo que elas possuem com homens traficantes e que essa relao pode ser

    interpretada como o desempenho de um papel subalterno da mulher em relao ao

    parceiro afetivo traficante. Nesse sentido, Pimentel (2008) analisou os laos de

    afetividade que levaram as mulheres presas no estado de Alagoas criminalidade e

  • ao trfico. A autora trabalha com a perspectiva de que o amor romntico tem grande

    peso, geralmente decisivo, na deciso das mulheres em entrar na dinmica do

    trfico de drogas.

    A afetividade uma condio incontestvel da experincia humana, sendo

    supervalorizada nas vivncias femininas. A sociedade ocidental marcada por um

    modelo ideal de amor paixo. Lipovetsky (2000) discute a construo ocidental do

    amor e conclui que mesmo com todas as posturas revolucionrias das mulheres no

    sculo XX, esse sentimento de amor ideal permanece inabalado. Nas palavras de

    Lipovetsky (2000),

    Nenhuma iluso: mesmo na exaltao do perodo contestador, as mulheres jamais renunciaram aos sonhos de amor. O discurso sentimental se tornou eufemstico, no as experincias e os valores amorosos. O novo ceticismo em relao retrica romntica e a sexualizao dos discursos no correspondem ao recuo das esperanas amorosas mas rejeio das convenes falsas, bem como promoo dos valores de proximidade e de intimidade, intensificao da necessidade de uma comunicao mais autntica (LIPOVETSKY, 2000, p. 28)

    A identidade feminina construda culturalmente e marcada por determinados

    papis e comportamentos sociais, os quais, a sociedade espera encontrar em uma

    mulher (SILVA, 2009). A passividade, a gentileza e tambm o romantismo. As

    mulheres encarceradas tambm valorizam o amor romntico e de acordo com a

    perspectiva de Pimentel (2008), tambm embarcam no trfico de drogas por amor

    ao marido.

    Concordamos com a autora quando ela indica que os laos de afetividade

    podem posicionar as mulheres em situaes de vulnerabilidade ao trfico de drogas,

    entretanto, gostaramos de acrescentar que, a perda desses laos de afetividade e

    relacionamentos maritais, tambm pode influenciar o envolvimento dessas mulheres

    no crime. imprescindvel nesse momento deixar claro que nossa posio negar

    completamente a posio de vitimizao das mulheres, pois no nosso entender esse

    papel apenas refora a posio subalterna da mulher. Da mesma forma, nossa

    convivncia com as detentas no Presdio Hildebrando de Souza mostrou que as

    prprias mulheres refutam a idia de que so vtimas ou manipuladas.

    Outro aspecto que analisamos foi a questo profissional, sendo que 87%

    estavam empregadas, formal ou informalmente, no momento que foram detidas.

    Esse dado nos chamou muito a ateno, quando analisamos que 67% delas

    alegaram ter renda de at R$ 430, 00 reais mensais. Muitas das mulheres

  • entrevistadas disseram que trabalhavam como diaristas, mensalistas ou atendentes

    em lojas. So empregos intimamente ligados com a espacialidade domestica

    feminina. Como j dito anteriormente negamos toda a posio vitimista com relao

    mulher, mas indispensvel acrescentar que muitas mulheres, desprovidas de

    assistncia do Estado e com rendas nfimas, acabam procurando meios mais fceis

    de sobrevivncia, como o trfico de drogas por exemplo.

    Podemos cruzar esses dados com a questo da escolaridade. Observamos

    que essas mulheres tm muito pouco estudo, 82% tm o primeiro grau completo ou

    incompleto. O Presdio Hildebrando de Souza no possui nenhum tipo de programa

    de incentivo educao ou de formao profissional. A nica atividade realizada

    pelas presas so trabalhos artesanais com materiais provenientes das famlias.

    Durante as entrevistas, quando indagadas sobre a questo da escolaridade, a

    grande maioria das mulheres demonstrou vontade de terminar os estudos dentro do

    Presdio se existisse algum programa de apoio a educao.

    A religiosidade das mulheres tambm foi tema abordado no questionrio

    aplicado. Verificamos atualmente no Brasil duas fortes tendncias religiosas nas

    pessoas que esto encarceradas: a religio catlica e a religio evanglica. No

    Presdio Hildebrando de Souza, 74% se dizem catlicas e 26% so evanglicas. A

    questo da religiosidade muito interessante uma vez que observamos que na

    grande maioria das vezes, os sentimentos de f e de aproximao com a

    espiritualidade vm flor da pele no momento que essas mulheres experimentam a

    espacialidade carcerria. Muitas delas disseram durante as entrevistas realizadas

    que se aproximaram muito mais de sua espiritualidade depois que se viram

    encarceradas, pelo apoio emocional e pelo simples sentimento de esperana que

    experimentavam. interessante tambm destacar que as nicas instituies no

    governamentais que prestam auxlio s pessoas no crcere esto ligadas a rgos

    religiosos. No Brasil, o maior exemplo disso a Pastoral Carcerria.

    Outro aspecto que analisamos foi a questo da moradia dessas mulheres.

    Das 17 mulheres entrevistadas apenas 1 delas disse que antes da priso morava no

    centro da cidade. Ou seja, podemos concluir que as mulheres encarceradas na

    cidade de Ponta Grossa so provenientes das reas de periferia da cidade. Essas

    mulheres no tm grande deslocamento pelo espao urbano, concentrando suas

    vivncias cotidianas espacialidade restritas, como a vila onde moram por exemplo.

    interessante discutir tambm que essas mulheres tm seus atos delituosos

  • praticados geralmente apenas nas suas espacialidades de vizinhana. O trfico de

    drogas pode ser usado como exemplo.

    Por fim, podemos concluir que as mulheres encarceradas no Presdio

    Hildebrando de Souza na cidade de Ponta Grossa apresentam o seguinte perfil: so

    mulheres jovens, 67% delas tm idade entre 18 e 35 anos. So tambm mes, 93%

    delas. Tm baixa escolaridade e provm das classes com menor renda, 67% delas

    ganham menos que um salrio mnimo mensal. A maioria das mulheres est presa

    por crime de trfico de drogas, 89% foram detidas no artigo 33 da Lei dos

    Antitxicos. So mulheres que tem fortes tendncias de espiritualidade, 74% so

    catlicas. Pode-se dizer que so mulheres provenientes das regies de periferia da

    cidade.

    No Mini Presdio Hildebrando de Souza as presas esto encarceradas em

    uma galeria a qual contem 05 celas, chamadas pelas mulheres de X. Em cada cela

    moram entre 12 a 15 mulheres, dificilmente passando dessa mdia. Utilizamos a

    palavra moram de forma proposital, pois cada X funciona nos moldes de uma

    residncia como qualquer outra, habitada por uma famlia, por certo, em moldes

    especiais. Cada X apresenta uma dinmica prpria a qual est intimamente ligada

    com a mulher que est em sua chefia. Geralmente, a mulher que est h mais

    tempo presa a chefe do X onde mora. Dissemos geralmente porque existem

    situaes raras em que, por exemplo, uma mulher de grande poder chega ao

    crcere. Se isso ocorrer, no momento de sua chegada ela assume o X e toda a

    dinmica interna alterada segundo seus modos. Mas o que caracteriza essa

    chefia? Diversos elementos, desde a escolha de certas companheiras para

    determinadas tarefas, at mesmo o poder de acolher ou expulsar alguma presa da

    cela. A vida cotidiana dentro da cela regrada, com direito a punio, seja ela verbal

    ou fsica, para quem burle regras.

    Essas regras so estabelecidas para cada pequeno aspecto do cotidiano. Um

    aspecto muito curioso relacionado ao acesso s camas. Cada cela possui apenas

    06 camas, chamadas pelas mulheres de jegas. So 02 beliches construdos com

    cimento divididos em 03 camas cada um. O acesso as jegas permeado por

    explcitas relaes de poder, no sentido de que, apenas as presas mais antigas,

    possuem uma. O restante das presas dorme em colches esticados no cho da

    cela. Essa prtica parodiada pelas mulheres a partir da expresso dormir na

    praia. Existem at castigos que nos foram relatados pelas presas relacionados

  • vida noturna do X. Se alguma presa ofender de qualquer forma a chefe do X ela

    transferida para passar algumas noites de sono na tumba, um buraco com

    aproximadamente 40 centmetros de altura, localizado embaixo da ltima jega

    Podemos observar caractersticas muito peculiares do universo carcerrio

    feminino, como por exemplo, a decorao claro que dentro do possvel de suas

    condies dos beliches foi relatada pelas mulheres como uma maneira de tentar

    deixar o espao o mais agradvel e menos deprimente possvel. A grande maioria

    possui fotos da famlia e folhas com oraes coladas nas paredes das jegas.

    Segundo elas, isso uma forma de lembrarem que precisam ser fortes,

    principalmente pelos filhos.

    Existem outras caractersticas que so muito peculiares do espao carcerrio

    feminino. A importncia que dada a higiene nas celas apareceu durante as

    conversas com as presas como um assunto de muita relevncia. Essa questo ser

    mais bem discutida na subseo a seguir. Como j afirmamos anteriormente, a

    chefe de cada X determina qual companheira vai realizar determinada tarefa ao

    longo da semana. So tarefas como, limpar, cozinhar, arrumar.

    importante destacar que cada moradora do X precisa realizar algum tipo

    de tarefa, ao menos que possa pagar para algum fazer isso. O pagamento que

    nos referimos feito atravs de cigarros, chamados pelas detentas de giz. Cada

    giz representa no crcere cerca de R$ 1,00 real. Essa a moeda utilizada pelos

    presos em geral. Existem tambm outras trocas que envolvem esse tipo de

    dinmica, como produtos de higiene e luxos alimentares, como chocolates,

    refrigerantes e frutas, mas so muito menos comuns do que as transaes

    envolvendo cigarros.

    Alm dos beliches com as jegas, nos X existe um chuveiro e uma privada

    no cho, chamada pelas mulheres de boi. Essa espcie de banheiro, se assim

    poderamos dizer, no fica separado do resto da cela por nenhuma espcie de

    divisria, estando bem ao lado da cozinha improvisada pelas mulheres. Em alguns

    X as mulheres penduram lenis ou toalhas para construir uma parede que divida

    essas duas reas da cela.

    No Mini Presdio Hildebrando de Souza as mulheres no ficam presas em

    suas celas s 24 horas do dia. Cerca de 08h00 horas da manh, os policiais e

    carcereiros responsveis pelas galerias abrem as grades de cada X, permitindo aos

  • presos circularem entre as celas. As grades so fechadas novamente s 17h00

    horas da tarde, devendo os presos permanecer trancados at a manha seguinte.

    As celas no possuem nenhum tipo de conforto domstico. Ouvimos

    inmeras vezes as mulheres reclamarem por no ter acesso a simples objetos,

    como por exemplo, locais onde sentarem como sofs, cadeiras ou mesmo pufes.

    Quando no esto sentadas nas jegas, so obrigadas a se sentarem no cho

    ignorando todo o desconforto fsico que isso pode trazer. Uma prtica realizada com

    freqncia pelas mulheres na priso a improvisao de tudo o que no tem

    acesso. Um interessante exemplo disso a forma como as mulheres re-cozinham

    seus alimentos. Elas improvisaram um fogo com um pequeno pedao de brasa

    dentro de um tijolo. Outros tipos de objetos tambm so improvisados, como mesas

    com caixas de papelo, por exemplo.

    Gostaramos de finalizar nossa discusso trazendo um alerta a situao de

    total invisibilidade que a populao carcerria brasileira vive frente ao poder pblico

    de nosso pas. Quando acessamos textos como a Declarao Universal dos Direitos

    Humanos e, especialmente, para o caso desta pesquisa, a Resoluo da

    Organizao das Naes Unidas (ONU) que prev as Regras Mnimas para o

    Tratamento do Preso, conclumos que os direitos dos presidirios so

    constantemente violados. Vivendo em condies precrias, essas pessoas tm no

    apenas seu direito a liberdade tomado, mas tambm, seu direito a educao, a

    segurana, a vida familiar. Poderamos nos alongar por vrias pginas numa

    discusso exaltada de todas essas privaes, no nosso objetivo. Esperamos

    apenas poder ter apresentado essas mulheres como seres humanos comuns, que

    assim como o restante da sociedade, merecem uma vida digna e respeitvel.

    Deixamos dessa forma, nossa provocao e apelo ao poder pblico brasileiro.

    Palavras Finais

    Trabalhar com campos cientficos que no esto consolidados e que ainda

    geram polmicas no mundo acadmico nos traz alguns desafios. Alm da sensao

    de angstia e medo em determinados momentos, a motivao muito maior quando

    fazemos uma coisa ainda no feita. Olhar o mundo atravs de outras lentes,

    descobrindo e trazendo tona suas particularidades e especificidades,

    maravilhoso, especialmente para uma/um pesquisadora/or.

  • As perspectivas feministas da Geografia vm se aprimorando cada vez mais

    para dar conta das novas necessidades tericas e metodolgicas, pois se nossa

    sociedade dinmica, o mesmo deve-se esperar da cincia. A questo da

    criminalidade feminina uma delas. Historicamente ignorada e negligenciada

    acadmica e socialmente, esse fenmeno vem tirando o sono de corajosos

    pesquisadores que se engajaram com a rea.

    A experincia da priso muda completamente o olhar que essas mulheres

    depositam sobre todos os aspectos de suas vidas, seja nos seus relacionamentos

    com a famlia ou com a sociedade. As causas que levam as mulheres

    criminalidade e a priso so diversas, bem como tambm, as expectativas que

    aguardam para seu futuro. Elas no constituem um grupo com uma realidade

    unificada, mas sim, histrias com singularidades prprias, ainda e sempre, em

    construo.

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