do tempo da terra comum ao...
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Universidade de Brasília
Departamento de Antropologia
Do Tempo da Terra Comum ao Espremimento Estudo sobre a lógica e o saber camponês na
Baixada Cuiabana
Roberto Alves de Almeida
Brasília
2005
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DISSETAÇÃO DE MESTRADO
DO TEMPO DA TERRA COMUM AO ESPREMIMENTO Estudo sobre a lógica e o saber camponês na Baixada Cuiabana
Autor: Roberto Alves de Almeida
Orientadora: Ellen Fensterseifer Woortmann
Banca: Prof. Doutor Arno Vogel (UNEF)
Prof. Doutor Klaas Axel Woortmann (UnB)
Brasília, Abril de 2005
ii
Dedico este trabalho a meus pais
Luiz Gomes de Almeida e Eugênia Alves de Almeida (in memorian),
e aos meus queridos camponeses de Mato Grosso.
iii
AGRADECIMENTOS
Agradecemos ao CNPq pelo apoio recebido durante os dois anos de dedicação ao
estudo e ao Instituto de Ciências Sociais e Departamento de Antropologia da UnB pela ajuda
a realização da pesquisa de campo. Ao Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos da UFMT pelo
apoio logístico durante as idas em Cuiabá e região. Aos professores do PPGAS pela intensa
instigação intelectual a que fomos submetidos durante o curso. Aos funcionários do
Departamento de Antropologia pelo atendimento sempre prestativo às inúmeras solicitações.
Aos nossos colegas de curso e da Katacumba pelo prazeroso e proveitoso tempo de
convivência.
Agradecemos a Ivete Maria da Costa e a Ângela Maria Godoes, sem as quais o contato
e as idas iniciais ao Arruda não teriam sido possível. A Seu Neife e a Dona Antônia Godoes
pela confiança e acolhida inicial. A Paulo Antônio Correia pelo decidido apoio na pesquisa
em Rosário. A Paulo Fortunato por nos receber e nos ceder as fotos de seu álbum de família.
Agradecemos às diversas pessoas que direta ou indiretamente nos auxiliaram neste
momento de nossa vida. Aos professores Henyo Trindade Barreto Filho, Ana Carolina
Pareschi, Stephen Grant Baines, Maria Osanette de Medeiros, Aderval Costa Filho, José
Carlos Barroso, Carlos Alberto Castro, Edir Pina de Barros, Joana Fernandes Silva, Darci
Pivetta e aos companheiros Homero Martins, Adriana Sacramento, Rosa Venina, Ivaneck
Peres Alves, Márcia Leila de Castro Pereira e Rodrigo Paranhos Faleiro pela amizade, apoio e
pela intensa troca de idéias.
Agradecemos a nossos colegas de Brasília e do Mato Grosso, da região do Araguaia
ou de Cuiabá, da equipe de pesquisadores e bolsistas do NERU-UFMT, assim como muitos
dos meus alunos que lá ficaram torcendo por nosso sucesso. Aos nossos vizinhos, o casal
Eduardo e Amanda Barroso, a Renaldo e Sônia Macedo e seu filho Emerson, assim como a
família de Geraldo e Eliana pela convivência, apoio constante e pelos momentos felizes que
nossas famílias compartilharam.
Agradecemos aos nossos irmãos Luiz Alves de Almeida e César Alves de Almeida
pela acolhida no retorno a Taguatinga, possibilitando muito mais do que um lugar de moradia
e de apoio material. A chance de retomar diretamente os laços familiares que antes se
realizavam de forma indireta devido à distância, foi uma contribuição decisiva neste processo.
Aos nossos filhos Tiago Torres de Almeida e Bárbara Torres de Almeida por suportar a
ausência da distância e a Isabela Fonseca de Almeida por suportar a ausência, apesar da
proximidade.
Agradecemos em especial a quatro valentes mulheres sem as quais este trabalho não
teria sido possível. A Ellen Fensterseifer Woortmann, orientadora e responsável direta por
grande parte de nossa formação antropológica e intelectual, e que ao longo destes anos de
trabalho conjunto soube dosar na medida correta e necessária a cobrança e a compreensão. A
Sueli Pereira de Castro, batalhadora leal e incansável animadora de nossa formação, com
quem ainda teremos o prazer de desenvolver muitos projetos futuros. A Sônia Maria de
Oliveira Macedo uma verdadeira fada madrinha dos tempos modernos para nós e nossa filha
Isabela, a quem seremos eternamente gratos. A Verônica Lima da Fonseca Almeida, esposa
dedicada que tudo largou para nos acompanhar nesta jornada e sempre esteve ao nosso lado
compreendendo a necessidade de nos dedicarmos ao objetivo final. Que esta valorosa
companheira que esteve junto conosco na „derrubada‟, saiba que ansiamos pela continuidade
da convivência na „colheita‟ que se anuncia.
Agradecemos por fim a todos os camponeses da região do Arruda que nos acolheram e
com quem tivemos o prazer de prosear. Homenageamos a estes na figura de seus guardiões da
memória: Seu Quirino, Seu Ciro, Seu Francisco e o saudoso Seu Pedro (in memoriam).
iv
RESUMO
Este trabalho se propõe a realizar uma interpretação antropológica de uma comunidade
camponesa formada por herdeiros de várias sesmarias vizinhas, situada na Baixada Cuiabana,
estado de Mato Grosso. A partir do recurso à memória coletiva descortinamos o processo
histórico deste grupo, desde sua origem no fim do século XIX até os dias de hoje. Isto revelou
a trajetória de um grupo que a partir de uma situação inicial de abundância de terras
usufruídas de comum pelo grupo de parentes, aliado à proximidade do mercado, conseguem
realizar por quase um século um modo de vida que denominam de „tempo da terra comum‟ ou
„tempo de fartura‟. Com a entrada da fazenda criadora de gado na década de 1970 tem início
um período de conflitos e perda de território, o „espremimento‟, que conduz a dissolução do
antigo modo de vida e de sua prática produtiva, originando um atual „tempo de penúria‟.
Com base nisto, buscamos compreender como a matriz cognitiva geral que informa
todas as práticas cotidianas conseguiu acompanhar este processo de mudança. Nossa
etnografia veio demonstrar um grupo que, ao contrário do que afirma a sociedade envolvente,
mantêm e valoriza o seu saber ao mesmo tempo em que busca incorporar novidades que
condizem com a lógica interna e que venham a trazer uma melhora na sua prática produtiva.
Temos assim uma comunidade camponesa que apesar das inúmeras perdas sofridas é capaz de
manter a tradição, agregando à mesma vários elementos da modernidade. Buscamos assim
demonstrar que foi exatamente esta capacidade de adaptação que permitiu ao grupo se manter
até hoje na terra de seus ancestrais.
v
ABSTRACT
This work aims to make an anthropological interpretation of a peasant community
formed by the heirs of many neighbouring “sesmarias”, located in the outskirts of Cuiabá, in
the state of Mato Grosso. With the recourse to collective memory we set light on the historical
process of this group, from its origin in the late 19th
century until nowadays. This has revealed
the trajectory of a group whose initial situation of richness in the dispposal of land commonly
shared by the kindred, allied to the proximity of the market, allowed them to have, for nearly
a century, a mode of life they nominate “age of common land” or “age of abundance”. With
the introduction of the cattle farm in the 1970´s a period of conflict and loss of land began,
leading to the “squeezing” that caused the dissolution of the old mode of life and its
productive practices, originating a present “age of penury”.
Based on this, we seek to understand how the general cognitive matrix that informs all
daily practices managed to follow this process of change. The ethnography describes a group
that, contrary to what the encompassing society states, keeps and values its own knowledge,
while it also seeks to incorporate novelties that come both to correspond to its internal logics
and to improve its productive practice. Thus we are faced with a peasant community that,
despite the great losses, is capable of keeping the tradition, while adding various modern
elements to it. We try to show that it was exactly this capacity of adaptation that allowed the
group to remain in the land of its ancestors until nowadays.
vi
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
A gestação da pesquisa ...................................................................................... 001
O contexto da região pesquisada ........................................................................ 003
A pesquisa .......................................................................................................... 009
O trabalho ........................................................................................................... 015
2 O CONTEXTO DO GRUPO
Os primórdios ..................................................................................................... 017
O Tempo da Terra Comum ................................................................................ 022
O aprofundamento da subordinação ................................................................... 031
O espremimento: o tempo de cada um para si ................................................... 038
3 O SABER TRADICIONAL
O modelo geral ................................................................................................... 054
O sistema classificatório Forte-Fraco ................................................................. 057
O sistema da lua ................................................................................................. 060
O sistema classificatório forte-fraco aplicado ao plantio ................................... 066
4 A LÓGICA DA ORGANIZAÇÃO DA PROPRIEDADE TRADICIONAL
A POLICULTURA DE CEREAIS
O Preparo da Terra ............................................................................................. 075
O Plantio ............................................................................................................. 079
A lógica do conjunto .......................................................................................... 088
OUTROS ESPAÇOS PRODUTIVOS
Plantios alternativos ........................................................................................... 099
Criação de animais ............................................................................................. 102
Farinha e rapadura .............................................................................................. 105
5 O SÉCULO XX E AS MUDANÇAS NA PRODUÇÃO
A prática da experimentação de novidades ........................................................ 110
Variedades .......................................................................................................... 113
A criação de animais .......................................................................................... 122
Produção artesanal de doce e queijo .................................................................. 126
Rapadura ............................................................................................................. 130
O simbolismo do processo de beneficiamento ................................................... 137
A produção de farinha ontem e hoje .................................................................. 140
O processo tradicional ........................................................................................ 141
A introdução de novidades ................................................................................. 143
O atual processo de produção ............................................................................. 149
O sistema mandioca-farinha ............................................................................... 161
6 O NOVO SISTEMA DE PLANTIO NA ROÇA
O espremimento dos anos 70, o cercamento dos anos 80 e
as imundícies dos anos 90: o fim do policultivo de grãos ................................ 170
A nova lógica de consorciamento e organização da roça ................................... 177
O sistema de plantio atual .................................................................................. 186
Mudanças na simbólica do processo de trabalho ............................................... 189
7 CONCLUSÃO .................................................................................................. 198
8 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 204
vii
LISTA DE FIGURAS
Fotos
1 Fotos da década de 1950 ................................................................................... 053
2 Cerca de vara no curral ...................................................................................... 109
3 Restos da base do forno e da catraca da prensa ................................................. 109
4 Caititu movido à gasolina .................................................................................. 109
5 Raças de porcos criadas na região ..................................................................... 168
6 Vista do engenho ............................................................................................... 168
7 Vista do puxado onde se faz queijo ................................................................... 168
8 Fornos de fazer farinha ...................................................................................... 168
9 Prensa e caititu .................................................................................................. 169
10 Engenho modificado ......................................................................................... 169
11 Fazendo rapadura ............................................................................................. 169
12 Sala dos lavadores com altares e fotos de santos .............................................. 197
13 Festejos de N. S. da Conceição ......................................................................... 197
Mapas
1 Mato Grosso e suas regiões ............................................................................... 004
2 Região da Baixada Cuiabana ........................................................................... 005
3 Região do Distrito do Arruda .......................................................................... 006
Quadros
1 Camponês forte e fraco .................................................................................... 029
2 Esquema elementos fortes e fracos .................................................................. 059
3 Esquemas das fases da lua ................................................................................ 065
4 Esquema da Lua ............................................................................................... 068
5 Esquema de plantio .......................................................................................... 071
6 Esquema da classificação dos ambientes ......................................................... 077
7 Esquema do rio arruda e seus espaços ............................................................. 099
8 Esquema do engenho antigo .............................................................................. 131
9 Esquema do engenho novo ................................................................................ 132
10 Esquema farinheira do Cedral ........................................................................... 153
11 Esquema mandioca/farinha ............................................................................... 164
viii
GLOSSÁRIO
EMPAER Empresa Mato-Grossense de Pesquisa e Extensão Rural
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INDEA Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso
INTERMAT Instituto de Terras do Estado de Mato Grosso
PADIC Programa de Apoio Direto às Iniciativas Comunitárias
PRODEAGRO Programa de Desenvolvimento Agro-Ambiental do Estado de Mato
Grosso
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
1
INTRODUÇÃO
A gestação da pesquisa
Depois de 15 anos residindo na região do Araguaia, no interior do Estado de Mato
Grosso, onde pesquisamos e convivemos com um grupo camponês caracteristicamente „de
fronteira‟,1 nos mudamos para Cuiabá no ano de 2000. Ao chegarmos à Capital fomos
exercer a docência na Universidade Federal de Mato Grosso e estabelecemos, de imediato, um
intenso diálogo com a equipe do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos – NERU /UFMT.
Tínhamos então a pretensão de dar continuidade a nosso trabalho anterior, focado no processo
de colocação de uma „roça misturada‟, executada segundo o „planejo da lua‟, o sistema
tradicional local de produção (Almeida, 1988). De forma a ampliar os nossos conhecimentos e
estabelecer uma possibilidade de comparação, resolvemos nos debruçar sobre a realidade da
Baixada Cuiabana, uma área de colonização mais antiga e vinculada ao mercado regional. Foi
a partir daí, que esta pesquisa começou a ser gestada.
Fruto desta nova convivência, começamos a nos inteirar da realidade da zona rural da
Baixada Cuiabana, a região de mais antiga ocupação no estado, seja a partir de leituras
diversas, como survey a algumas comunidades. Neste desdobrar-se sobre a região,
constatamos que os estudos e pesquisas antropológicas e sociológicas realizadas sobre
comunidades rurais, tanto no que se refere às formas de apropriação dos recursos naturais e
sua relação com o meio ambiente, como sobre as representações a respeito de um modo de
vida camponês ou ribeirinho foram concentrados na área denominada Cuiabá Rio Abaixo, isto
é, a região pantaneira, ocupada pelo colonizador branco somente no século XIX, em função
da resistência oposta pelas populações indígenas. A região denominada Cuiabá Rio Acima,
área de serras e das nascentes do rio, foi menos privilegiada quanto a estudos mais
específicos.
Na zona rural mais próxima de Cuiabá, onde inicialmente estendemos nossas
observações percebe-se que devido ao processo de expropriação e de parcelamento da terra,
os camponeses passam por um dramático momento de desestruturação de seu modo de vida
tradicional. Temos ai a substituição do uso em comum de grandes glebas de terra, pela
restrição deste uso a pequenos ou minúsculos lotes, cercados e apropriados individualmente
1 Desta longa convivência resultou nossa dissertação de graduação, O Saber Camponês (Almeida, 1988) e, o
artigo Os dois caminhos da Lua: o forte e o fraco no processo de produção agrícola (Almeida, s.d.) a ser
publicado ainda este ano.
2
por cada grupo familiar. Soma-se a este fato a presença de estranhos no meio do grupo que ali
penetram, seja através da compra destes lotes parcelados, ou pela grilagem de vastas áreas.
Não é raro na bibliografia sobre a região a existência de estudos sobre grupos que perderam
toda a sua terra, sendo os mesmos, atualmente, moradores das periferias das cidades
(Cadernos do NERU, 1993-1998).
Buscamos então conhecer a realidade camponesa da Baixada Cuiabana como um todo,
de modo a descobrirmos uma comunidade onde, apesar do processo de mudança, o modo de
vida tradicional, de certa forma, ainda se fizesse presente. Situado na região Cuiabá Rio
Acima, a zona rural de Rosário Oeste acabou por nos chamar a atenção por apresentar
algumas características desta antiguidade. A partir de uma pesquisa prévia, percebemos que lá
os herdeiros ainda conseguiam, de certa forma, resistir ao processo de expropriação. Embora
vários tenham sido expulsos, uma grande maioria conseguiu garantir a sua permanência na
terra, assim como uma certa continuidade de seu modo de vida, embora já bastante
modificado. Isto talvez explique a fixação de uma grande população na zona rural2 e o fato do
município ser atualmente um grande produtor de alimentos que são vendidos nas feiras e
mercados de Cuiabá e de grande parte da região produtora de soja, mais ao norte.
Em função desta perspectiva, resolvemos focar nosso estudo sobre as Comunidades de
São Pedro, Espia e Cedral, localizadas no Distrito de Arruda, zona rural do município de
Rosário Oeste – MT. Esta região foi ocupada desde o meado do século XIX 3 por ser uma área
estrategicamente localizada a meio caminho entre as minas de ouro de Cuiabá ao sul e as
minas de ouro e diamante mais ao norte, nas nascentes do Rio Paraguai. Trata-se
originalmente de uma área de sesmarias que se constituíam em „terras de herdeiros‟ (Almeida,
1987), ao longo do tempo mantido indivisa e apropriada a partir do uso comum da terra, para
a produção de alimentos – principalmente grãos – para o mercado das zonas mineradoras
vizinhas. Temos assim uma população camponesa tradicional: pequenos lavradores livres,
produtores para o mercado desde o início da colonização; não se constituindo, então, em
remanescentes empobrecidos de uma fazenda decadente (Castro, 2001).
Este modo de vida, que conforme veremos na segunda unidade deste trabalho nunca
foi estático, sofre uma ruptura nos anos 1970 e 1980. É a partir dos dramáticos
2 Segundo o Censo Demográfico de 2000 a população do município de Rosário Oeste era de 18.450 habitantes,
sendo 10.581 na zona urbana e 7.869 na zona rural (IBGE, 2004). 3 Conforme veremos no capítulo primeiro, não conseguimos levantar com precisão a época em que o primeiro
grupo de colonizadores, não índios, chegou à região do Arruda. Mas, ao juntarmos os cacos esparsos da memória
local, tudo indica que isso se deu entre as décadas de 1840 e 1860. Os ancestrais camponeses dos atuais
moradores, estes sim retidos na memória com maior precisão, por lá chegaram no fim da década de 1870 na
Sesmaria Arruda (atual São Pedro) e, no ano de 1890 na Sesmaria Morro Azul (atual Cedral).
3
acontecimentos deste período que o sistema de vida destes camponeses se desarticula,
primeiramente em função do fenômeno do espremimento da década de 70, ou seja, a partir
da perda de sua área histórica de plantio – as áreas de terra de cultura nas matas das
baixadas dos rios e córregos – e, posteriormente, devido ao cercamento dos anos 80, ou seja,
o parcelamento das terras – agora é o tempo de cada um pra si. Estes dois fenômenos
conjugados acabam por quase inviabilizar a reprodução da forma de produção desse
campesinato local. Isto trouxe como resultado uma alteração na prática produtiva, forçado que
foram a se adaptar as novas condições: cada família numa parcela, então localizada em terras
altas e com menos área de mata.4
Como no dizer de membros da comunidade, é a condição da terra que manda, a
lógica da produção se altera de forma significativa. Atualmente no São Pedro o forte é a
criação de gado e o processamento artesanal de derivados de leite e de cana de açúcar. Já no
Cedral o forte é a venda de mandioca e a fabricação de farinha. Contudo, uma vez que estes
elementos não são novos e sim frutos da tradição ancestral do grupo, o saber e a prática local
não foram abandonados neste processo de mudança. Estes foram sim, arejados e reciclados
pelo acréscimo de novas tecnologias e práticas tanto oriundas de seus vizinhos camponeses,
como da „modernidade‟ envolvente, na busca por uma adaptação ao novo contexto. Foi
exatamente neste processo de mudança e adaptação que resolvemos focar nossa pesquisa.
O contexto da região pesquisada
A Baixada Cuiabana, conforme já dissemos, é a região de colonização mais antiga
do estado, ocupação esta que se da em função da descoberta de ouro pelos Bandeirantes
Paulistas no início do século XVIII. É a partir desta conjuntura que começam a surgir
pequenos núcleos populacionais em toda a região, voltados eminentemente para a produção
de alimentos para as regiões mineradoras. Esta ocupação se dá a partir da doação de
sesmarias, destinada à produção açucareira, criação de gado e agricultura. Com o tempo,
algumas destas sesmarias originam os pequenos bairros rurais (Candido, 2001) como Arruda,
Cedral, Engenho, Baús, Morro Grande, etc. De outras mais prósperas surgem os povoados de
Santo Antônio, Acorizal, Jangada, Rosário Oeste, Nossa Senhora do Livramento, etc., atuais
sedes de municípios.
4 Aprofundaremos a análise destes fenômenos no capítulo primeiro e, seus impactos na organização interna dos
grupos aqui pesquisados nos capítulos quinto e sexto.
7
Na Baixada Cuiabana estão presentes as marcas dos primórdios da ocupação pelo
colonizador europeu, quando os núcleos de povoamentos fixos foram surgindo, no
entorno de sítios e fazendas especializadas na produção mercantil, para abastecimento
das áreas mineradoras e urbanas. (...) Assim, as Terras de Sesmarias caracterizam-se
como um espaço com forte presença de uma campesinidade (Castro: op. cit.: 22-23).
Na atualidade a Baixada Cuiabana corresponde à região formada pelas micro-regiões
do IBGE: MRH 16, MRH 17 e MRH 18. Politicamente esta é composta pelos seguintes
municípios: Acorizal, Barão de Melgaço, Cáceres, Chapada dos Guimarães, Cuiabá, Jangada,
Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Rosário Oeste, Santo Antônio do Leverger e Várzea
Grande. Esta grande região é culturalmente subdividida em dois contextos chamados
localmente de Cuiabá Rio Abaixo e Cuiabá Rio Acima. A primeira corresponde toda a área da
planície pantaneira ao longo do rio Cuiabá, localizada ao sul da capital. A região Cuiabá Rio
Acima, foco desta pesquisa, corresponde toda a região do alto Rio Cuiabá, do Rio Manso e do
Rio Cuiabazinho, ou seja, a região de serras, de chapadas e das nascentes do Rio Cuiabá,
localizadas na Serra Azul e na Chapada dos Guimarães.
No centro desta sub-região temos o município de Rosário Oeste que dista 124 Km de
cuiabá. Seu primeiro núcleo foi fundado em 1751 sendo por isso, uma das localidades mais
antiga do estado. Atualmente este se subdivide administrativamente na sede e em três distritos
rurais: Arruda, Bauxi e Marzagão. O Distrito do Arruda é o mais antigo e tradicional dos
três, tendo sido colonizado por não índios, possivelmente a partir da década de 1850.5
A região do Arruda é levemente plana e ondulada, com a ocorrência de serras e
escarpas. O relevo apresenta formas aguçadas e de topo contínuo, com diferentes ordens de
grandeza e de aprofundamento de drenagem, separados geralmente por vales em „V‟. É
banhada pelo Rio Cuiabá à oeste e pelo Rio Manso ao norte. Internamente temos diversos
córregos ou ribeirões tributários destes e correndo no sentido Chapada-Manso (sul-norte),
temos o Rio Arruda que denomina toda a região. O clima é tropical de savana (Aw), com
variação de temperatura entre 19o a 21º em junho e, 25
o a 35
o em setembro. A precipitação
pluviométrica varia em torno de 1.137 mm a 2.200 mm, como período seco ocorrendo de abril
a setembro e o chuvoso de outubro a março. A cobertura vegetal constitui-se de cerrados
(savana arbórea aberta), com algumas manchas de campos (gramíneo lenhoso) e outras de
mata (floresta-de-galeria). O solo se apresenta de diversas formas, ocorrendo em maior parte
os podzólicos vermelho-amarelo, além dos argilosos e concrecionários. A geologia apresenta
rochas incipientes metamorfisadas com predominância de metaparanglomerados polimíticos,
5 Aprofundaremos-nos na origem de Rosário Oeste e do Distrito do Arruda no capítulo primeiro.
8
cores variadas cinza-chumbo a marrom-chocolate, matriz siltico-arenosa bem orientada
(Emater, s.d.; Projeto Radambrasil, 1982).
Antes de seguir em frente faz-se necessário uma explicação. O termo Arruda possui
para a população local diversos significados: Arruda „região‟, Arruda „lugar‟ e Arruda „rio‟. O
mais amplo e abrangente é o que denomina toda a região localizada entre os rios Manso e
Cuiabá, situada dentro do município de Rosário. É assim, tanto uma divisão político-
administrativa, o „Distrito do Arruda‟, como sócio-cultural, a „região do Arruda‟.6 Da mesma
forma este termo designa um dos pequenos povoados, dentre os vários desta região. Ele é
assim o bairro rural do Arruda, uma localidade que existia até a década de 1960.7 Ao nos
referirmos ao mesmo usaremos o termo „Sesmaria Arruda‟. O último significado seria o da
região ribeirinha do Rio Arruda propriamente dito, onde se colocavam as roças dos moradores
das sesmarias Arruda, Bocãina e ainda se colocam as do Pindaival.
Em agosto de 2002 percorremos pela primeira vez a região do Arruda. Então,
visitamos e conversamos com os moradores do Cedral, São Pedro, Espia, Pindaival, Pindura e
Novo Horizonte. Desta instigante e reveladora viagem saiu a primeira proposta da atual
pesquisa. Uma vez aprovados neste Programa de Pós-Graduação e precisando delimitar
melhor nosso raio de ação, já no nosso retorno em outubro de 2003, resolvemos centrar nossa
coleta de dados nas três primeiras comunidades acima levantadas. Isto se deu por dois
motivos: as mesmas são próximas, do Cedral ao São Pedro, passando pelo Espia, são 8 km e,
em seu conjunto, estes são representativos da atual conjuntura do Distrito do Arruda como um
todo.
Foi isto que nos fez escolher estas três localidades. O Cedral, um bairro rural há muito
estabelecido (desde 1890) onde residem 60 famílias – algumas de chego, a maioria nascido e
criado no mesmo8 –, dedicadas na atualidade à produção de mandioca e ao seu
beneficiamento em farinha e onde se deu a intervenção modernizante mais maciça por parte
do Estado. O Espia, uma comunidade de uma única família extensa, onde tivemos o prazer de
ver uma das roças „mais bonitas‟ e a felicidade de conversar com o „companheiro de prosa‟
mais esclarecedor de toda nossa pesquisa. E o São Pedro do contraste entre camponeses fortes
e fracos, dos criadores de gado e de porco, além das casas de farinha e dos engenhos de fazer
garapa, melado, doce e rapadura. Apesar disto, as três áreas conservam ainda muito viva tanto
6 Esta designação contrasta o grupo às vizinhas regiões camponesas do Marzagão, ao norte e de Acorizal, ao sul.
7 Esta era a antiga sede do distrito. Com a sua desocupação pela fazenda, em 1973, este distrito é denominado,
atualmente, de „sem sede‟. 8 Estes são categorias identitárias locais para se indicar uma pessoa originária „de fora‟ e uma „de dentro‟ do
grupo.
9
na memória como na prática, o saber de antigamente e o fazer comunal dos ancestrais. É desta
forma que junto com os companheiros, vizinhos, compadres e parentes se fazem os mesmos
produtos do tempo da terra comum, agora a partir de uma perspectiva atualizada. Temos
assim claramente colocados lado a lado a tradição e a modernidade, a manutenção e a
mudança. E é exatamente este o ponto em que nos propomos debruçar no trabalho atual.
A pesquisa
Durante o tempo em que residimos no Mato Grosso percebemos que na visão corrente
da maioria população e de parte significativa de alguns estudiosos, o camponês ou é um
estrato ausente da história local ou quando a esta é incorporado, é pensado enquanto um
estrato decadente. O retumbante e recorrente discurso oficial de que o estado da soja e do
algodão é o primeiro lugar em tudo não deixa muito espaço para o trato com os „segmentos
atrasados que insistem em ficar de fora da modernidade‟.
Nos dias atuais a agricultura e a pecuária em Mato Grosso tem tido destaque nos
meios de comunicação de massa. Não só no Brasil, mas também em nível
internacional, as imagens das grandes plantações altamente mecanizadas e das
fazendas de gado constroem a própria identidade não só do meio rural, mas do estado
como um todo. A forjada construção desta identidade silencia a diversidade de muitas
territorialidades que compõe este meio rural (Oliveira, 2005).
Deste modo, temos em diversas produções da historiografia local a reprodução de um
padrão levantado para todo o Brasil Colônia (Guimarães, 1977; Prado Jr., 1967).9 Nestes o
processo de ocupação da área de sesmarias da Baixada Cuiabana se dá a partir da atuação do
latifúndio e do senhor de escravos.
Na historiografia brasileira sesmaria se encontra sempre associada a uma forma de
apropriação da terra vinculada a uma aristocracia rural escravagista, no período
colonial, delineando uma estrutura agrária brasileira marcada por uma profunda
concentração da propriedade rural. A Sesmaria como forma jurídica de apropriação e
ocupação da terra no Brasil durante o período colonial, está fortemente associada ao
latifúndio (Castro, op. cit: 44).
Dentre os trabalhos desta linha citamos o de Elizabeth Siqueira que enfatiza o caráter
externo do abastecimento de gêneros na região, via monções (1990: 14-15), além do fato de
que quando se fala de comida, esta aparece com fartura e já na mesa do fazendeiro de gado,
sem que se diga quem ou de que forma a mesma era produzida (idem: 39). Quando o homem
9 A cerca do histórico de ocupação de Mato Grosso e da Baixada Cuiabana consultar (Corrêia Filho, 1926, 1946,
1955; Taunay, 1956; D‟Alincourt, 1975; Arruda, 1987; Volpato, 1987, 1993; Siqueira, 1990, 1997; Rosa, 1996;
Jesus & Rosa, 2003).
10
do campo finalmente aparece, é sobre a forma do atual trabalhador assalariado que “não pode
adquirir, através da compra, sequer um pedaço de terra. Continuaram eles a trabalhar em solo
alheio, em troca de baixos salários que mal permitia sua sobrevivência e de sua família”
(idem: 98).
Temos assim que a ocupação do imenso território da capitania se faz na historiografia
mato-grossense a partir da visão da mineração, do latifúndio produtor de cana-de-açúcar, da
grande fazenda criadora de gado e, mais recentemente, pela extração de seringa e poaia.
Temos de um lado senhores de escravo, fazendeiros e donos de colocações extrativistas,
enquanto de outro temos escravos, vaqueiros, seringueiros e poaieiros. Falta evidentemente
neste relato, além de outros segmentos igualmente discriminados, o camponês livre, pequeno
lavrador e não proprietário de escravos, o principal responsável pela produção de alimentos na
capitania. Aqueles chamados de “intermediários” por Pereira de Queiroz (1973) ou de “arraia
miúda” por Iraci Costa (1992).
Por outro lado temos aqueles estudiosos que incorporam este segmento a seu discurso,
sendo que agora o campesinato passa a representar uma decadência deste passado glorioso da
grande propriedade. Temos ai claramente a reprodução da idéia de um de um campesinato
“pós-plantation” (Velho, 1972; Dias, 1978; Soares, 1981). Para Sueli Castro tal realidade não
pode ser aplicada de forma generalizada nas áreas sesmeiras da Baixada Cuiabana. A partir de
sua pesquisa de campo na área em Baús10
a mesma levantou uma origem diferente para o
campesinato local.
A Sesmaria, categoria relacionada à legislação de origem portuguesa das ordenações,
que é transportada e adaptada à Colônia, constituiu-se na primeira forma jurídica de
apropriação e ocupação do solo, encontra-se na nossa historiografia como uma forma
de propriedade pertencente a uma elite territorial, relacionada a monocultura escravista
agro-exportadora. Partindo de tal premissa, a hipótese que se colocava, em um
primeiro momento, era a de ter ocorrido um processo de „caipirização‟ na região. (...)
Processo resultante da decadência da grande exploração monocultora
No entanto, no caso do campesinato tratado, tanto pela realidade empírica, como pelos
levantamentos documentais, tal hipótese não parece adequada no que tange à sua
formação e reprodução, uma vez que, historicamente, esse campesinato não é
resultante da decadência de uma grande exploração monocultora, e, portanto, não
compõe o que se denomina de um campesinato „pós-plantation‟ ou „campesinato livre‟
(Castro, op. cit.: 23).
Dentro desta linha mais acima levantada, de campesinato enquanto um estrato
decadente, temos a forte presença no Mato Grosso do „discurso do progresso‟ (Lenharo,1982).
Este é um discurso produzido e veiculado pelo velho segmento político ligado a
10
Baús é um bairro rural situado no município de Acorizal e, dista cerca de 50 Km do Cedral.
11
„modernização‟, pelos setores do agro-negócio, pelos novos migrantes sulistas e etc. O tema
geral é de que as áreas camponesas da Baixada Cuiabana representam um atraso que precisa
ser vencido e superado. Neste, o pequeno produtor familiar é visto como retrógrado e
apegado as tradições.11
Um técnico da EMPAER de Rosário Oeste, ao se referir aos
camponeses da região do Arruda, nos deu uma panorâmica precisa desta visão.
Aqui nós priorizamos o atendimento ao micro produtor, da agricultura de subsistência
[os assentados da reforma agrária]. (...) Com os produtores tradicionais [da região do
Arruda], nós não trabalhamos muito, devido à política do nosso órgão. Mas tenho que
reconhecer que eles trabalham melhor do que os assentados [que para ele não
trabalham]. Eles têm um vínculo moral com a terra e produzem igual aos seus avôs.
(...) Na verdade, nossa luta aqui é para quebrar o paradigma do tradicionalismo!
Luiz Eduardo Soares percebe esta mesma relação no discurso corrente de agências
estatais maranhenses, onde se repetem os mesmos chavões sobre o povo de Bom Jesus. Para
ele, estas agências podem ser pensadas enquanto “Aparelhos de Hegemonia, na medida em
que, além de cumprirem diversas outras funções, tornam-se espaços e instrumentos de
geração de imagens ou de reapropriação e difusão de avaliações ideológicas sobre o
campesinato” (1981: 144).
As pesquisas etnográficas mais recentes desenvolvidas na região tem surgido no
sentido de derrubar estas visões acima elencadas. Os trabalhos de Sueli Castro (op. cit.),
Maria Christina Amorozo (1996) Joana Fernades Silva (1998), Maria de Lourdes Bandeira
(1988) entre outros trouxeram ao debate uma campesinidade presente desde o início e
plenamente atuante na história da ocupação de Mato Grosso.
Os trabalhos etnográficos, por sua vez, têm dado visibilidade à diversidade de formas,
engendradas historicamente, de apropriação e uso da terra e evidenciado a
complexidade da questão agrária brasileira. Ao privilegiarem as categorias sociais de
que se valem os grupos sociais, para definirem a sua identidade e pensá-las em
movimento nos diferentes contextos temporais e espaciais (que compõem as dinâmicas
organizativas localizadas), vêm possibilitando a emergência de categorias sociais que
não se encaixam diretamente no complexo monocultor, mas que tiveram, na realidade,
um papel relevante no processo de formação do país no período colonial, ocupando o
sertão como pequenos cultivadores, ampliando e consolidando as fronteiras,
garantindo a posse portuguesa das terras usurpadas aos índios e que, por tratado, eram
de domínio espanhol (Castro, op. cit.: 24).
Nossa atual pesquisa de campo vem contribuir no debate, somando-se a estes trabalhos
inovadores. Aliado a isto o mesmo apresenta uma via diferenciada e ainda não explorada de
perceber a realidade camponesa das áreas de sesmaria da Baixada Cuiabana. Nosso objetivo
11
É sintomático (e irônico) que muitos dos que veiculam abertamente este discurso, sejam membros e
freqüentadores dos inúmeros CTGs (Centro de Tradição Gaúcha) da região.
12
aqui é analisar um segmento camponês produtor para o auto-consumo e para o mercado desde
a sua origem e que foi capaz de atualizar seu saber e sua prática ao longo de toda esta
trajetória, e não apenas nos momentos de maior interferência do mundo externo. Para tanto,
apresentamos a etnografia de um grupo submetido a constantes mudanças ao longo das
últimas décadas do século XIX e de todo o século XX, na tentativa de desconstruir esta visão
de camponês como uma comunidade fechada, atrasada e anti-histórica.
Assim, pensamos que o estudo desta população que ainda guarda muito do seu
saber/fazer tradicional, deve se dar pelo viés não somente da análise dos resultados, da
destinação do já feito ou do já produzido (o que já ocorre na atualidade com diversos
trabalhos desenvolvidos sobre a área). Este estudo deve se dar sim em cima dos processos de
produção ou: da conexão entre o pensar, enquanto conceber ou projetar um ideal e o realizar,
no sentido de se buscar reproduzir o mais fielmente no real esta projeção simbólica anterior.
O campesinato desenvolve um conhecimento, ou saber, que lhe é próprio, o que nos
leva a propor que sua reprodução depende deste saber tanto quanto das relações de
produção em que se insere; e que a reprodução dessas relações de produção depende
da operacionalização do saber que rege o processo de trabalho, ao mesmo tempo que
são, elas mesmas, condição para essa operacionalização. Em outras palavras, se não
existe processo de trabalho independentemente das relações sociais de produção,
tampouco podem existir relações de produção sem que haja um processo de trabalho; e
este último só pode se atualizar a partir do modelo cognitivo pelo qual se apreende o
real, isto é, os „objetos‟ da natureza e as relações entre tais „objetos‟ (Mireya et al,
1983:149-150).
É a partir desta perspectiva que iniciamos nossa análise pelo sistema de pensamento e
ordenamento do mundo que dá sentido ao modo de vida dos camponeses da Baixada
Cuiabana. O sistema local, como a maioria dos sistemas de pensamento camponeses,
demonstra uma grande complexidade englobando conjuntamente os domínios da natureza e os
da cultura. O mesmo se assenta sobre os conjuntos de categorias classificatórias Forte e Fraco
(Brandão, 1981; Almeida, 1988; Woortmann & Woortmann, 1997), categorias estas que
emprestam um simbolismo todo especial ao processo produtivo, como no plantio pelo planejo
da lua, por exemplo. Isto se dá porque a lua no seu movimento celeste muda de Muito Forte
para Forte e daí para Fraco, regulando todos os momentos de plantio.12
Percebemos assim que
a lógica da organização da propriedade e o saber vinculado à produção agrícola são, portanto,
12
A lua na verdade regula toda a existência e relação dos seres viventes, desde o nascimento, a saúde, a
constituição física, o recolhimento de remédios no mato, o tirar a madeira, o cortar o cabelo e as unhas, o capar
animais, etc. Contudo, devido ao espaço limitado deste trabalho, centraremos no uso deste sistema no processo
de colocação da roça e do trato com animais. Pretendemos em breve ampliar nossa leitura de tal sistema em
outros grupos camponeses, de modo a estabelecer uma comparação que propicie o enriquecimento da discussão
do uso do sistema da lua, de uma maneira geral, neste tipo de sociedade.
13
parte constituinte deste sistema de pensamento mais geral, buscando nele a sua sustentação e
ainda arejando-lhe com suas inovações momentâneas. Estes não podem por isso, ser
entendidos fora deste todo maior.
Ao efetivar a prática de colocação da roça um camponês não está apenas
reproduzindo mecanicamente um fazer „copiado‟ de seus ancestrais, como muitos autores
afirmam. Este é um ato simbólico „apreendido‟ na vivência de sua comunidade, onde mais do
que produzir alimentos, produz-se uma prática social (Woortmann & Woortmann, op. cit.).
Assim o ato de plantar a roça envolve o pensar e o planejar, o aprender e o ensinar, pois este é
um evento eminentemente dinâmico onde o lavrador busca combinar seu modelo ideal de
plantio, com o modelo ideal da natureza, sem se descuidar das condições objetivas sociais e
ambientais – que são extremamente variáveis –, dadas naquele momento (Almeida, op. cit.).
Segundo Woortmann & Woortmann, “O significado simbólico do trabalho e o modelo
de saber não são dimensões separadas, embora possam operar em registros distintos. Em
conjunto, constituem uma forma de ver o mundo” (op. cit.: 7). Entender isto é o primeiro
passo para desvencilhar-se do preconceito de conceber a prática camponesa como sendo oca,
sem sentido, sem futuro e atrasada, e que por isso precisa ser vencida ou superada, como
muitas vezes ouvi em conversas com técnicos agrícolas ou leigos em Santa Terezinha,
Rosário Oeste ou Cuiabá.
É claro que o campesinato é sujeito a pressões externas – notadamente aquelas que
advêm da expansão do capitalismo – e que muito da dinâmica de seu processo de
trabalho e de sua organização da produção constitui uma resposta a tais pressões.
Sabemos também que o processo de „modernização‟ implica na aquisição por parte
dos campesinato de um outro saber. Mas nos parece claro que o campesinato é
também portador de um saber próprio, saber esse que não apenas orienta a prática
„rotineira‟, mas que contém elementos capazes de neutralizar pressões externas
dissolutivas, de incorporar a inovação e de se atualizar face a mudança. Pois, não se
trata de um saber fragmentado, mas de uma matriz de conhecimento e de um sistema
cognitivo capaz de redefinir em seus próprios termos tais inovações – mas só até certo
ponto (Mireya et al, op. cit., 152).
Para nós, a prática camponesa é um processo capaz de criar conhecimento, através da
apreensão e reelaboração do real, idéia esta que se aproxima da noção de “ciência do
concreto” proposta por Levi-Strauss (1976); assim como também um processo dinâmico, não
fossilizado pelo repertório de regras e que pode levar a mudança, como entende Bourdieu
(1990 b).
Para tanto, ao enfocarmos o processo de mudança por que passa os camponeses da
região do Arruda buscamos apreender desta realidade tanto as suas dimensões simbólicas,
„internas ou estruturadas‟, como as dimensões econômicas e políticas, „externas ou
14
estruturantes‟ (Bourdieu, 1992). É neste sentido que nos apropriamos da noção de habitus, a
internalização ou incorporação do conhecimento prático e necessário para a atuação num
universo social dado e que é acumulado ao longo da vida do agente.
...eu desejava por em evidência as capacidades <criadoras>, activas, inventivas, do
habitus e do agente (que a palavra hábito não diz), embora chamando a atenção para a
idéia de que este poder gerador não o é de um espírito universal, de uma natureza ou
de uma razão humana, como em Chomsky – o habitus, como indica a palavra, é um
conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental
na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase
postural –, mas sim o de um agente em ação: tratava-se de chamar a atenção para o
<primado da razão prática> de que falava Fichte retomando ao idealismo como Marx
sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o <lado activo> do conhecimento prático que a
tradição materialista, sobretudo com a teoria do <reflexo>, tinha abandonado
(Bourdieu, 1989: 61).
É a partir do habitus que se opera a prática inerente a um sistema histórico de relações
sociais. No entanto, ao mesmo tempo em que nesta prática, o indivíduo é moldado pelo
arbitrário cultural de seu meio, a „estrutura estruturada‟, o mesmo é portador de um mínimo
de consciência e domínio prático deste mesmo meio, a „estrutura estruturante‟. Deste modo, a
reprodução social é informada por este habitus a partir de um sistema de estratégias sui
generes, que só pode ser percebido ao se apreender os distintos domínios da vida social
enquanto uma relação, um todo.
É a partir deste instrumental teórico que nos foi possível entender o processo por que o
grupo passou ao longo de toda a sua trajetória: do tempo da terra comum para o tempo de
cada um pra si. É a partir da compreensão deste todo que podemos perceber como se dão os
ajustes em cada domínio específico. Ou seja, de uma situação de abundância de terra à atual
escassez, resultante do espremimento; na passagem do „pertencer a um patrimônio‟ (de todo o
grupo familiar extenso) a atual situação de „possuir uma propriedade‟ (restrita à família
nuclear); de uma situação de abundância de mão de obra para a atual falta de braços no grupo
familiar, devido à redução do número de filhos e sua migração para as cidades; de uma lógica
de produção para o autoconsumo que subordinava a produção para o mercado, para uma
lógica inversa na atualidade.
Para mapear todo este processo de constantes alterações recorremos à memória dos
lavradores mais idosos, estes verdadeiros „esteio de memória‟ para o restante da população da
região do Arruda (Conway, 1998).
No mais, se a memória é coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte
um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto
membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam em uma
sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um
15
deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu
ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros
meios. (...) A memória coletiva (...) envolve as memórias individuais, mas não se
confunde com elas (Halbwachs, 1990: 51-55).
A partir desta perspectiva recorremos tanto a história oral do grupo como a
documentos escritos recolhidos no local ou nas cidades (títulos de propriedades, relatórios da
assistência rural, etc.). Ao nos basearmos em Michael Pollak (1989, 1992) partimos da
premissa que estes dois tipos de fontes tem a mesma validade, pois são ambos subjetivos
posto que são construídos a partir de uma dada visão ou interesse, uma vez que,
Esse último elemento da memória – a sua organização em função das preocupações
pessoais e políticas do momento – mostra que a memória é um fenômeno construído.
Quando falo em construção, em nível individual, quero dizer que os modos de
construção podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que a memória
individual grava, recalca, exclui, relembra, evidentemente o resultado de um
verdadeiro trabalho de organização (Pollak, 1992: 204).
É a partir deste „trabalho de organização da memória‟ que ela passa a ser um elemento
constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva. Ou, como coloca
Maurice Halbwachs (1990), este é uma construção social, ou seja, nada mais que o processo
de negociação e seleção da memória se efetivando para conciliar as tensões entre memória
coletiva e individual.
O trabalho
Para dar esta visão panorâmica do processo de mudança e adaptação do grupo
camponês aqui pesquisado nos embrenhamos na memória do grupo de modo a levantar seu
percurso histórico e seu modo de vida tradicional. Assim, no capítulo primeiro tratamos das
origens do atual grupo ocupante do Arruda que chega a região ainda no final do século XIX;
das mudanças ocorridas ao longo do século XX; e, finalmente, do verdadeiro “moinho
satânico” (Polanyi, 2000) que se abateu na região a partir dos anos 1970, com o fenômeno do
espremimento, e dos anos 1980, com o cercamento.
No capítulo segundo tratamos do saber tradicional retido pelos guardiões da memória,
onde levantamos o modelo geral de pensamento que informou as práticas do grupo e que é
fundado sobre o sistema classificatório Forte-Fraco e sobre o sistema da Lua.
No capítulo terceiro tratamos da lógica da organização da propriedade tradicional,
onde levantamos na memória dos idosos o sistema de cultivo consorciado praticado
16
antigamente, além da organização dos outros espaços produtivos: criação de gado, fabricação
de rapadura e farinha.
Posteriormente, buscamos associar esta memória dos idosos à dos lavradores da
atualidade, a fim de levantar o melhor possível o processo de mudanças paulatinas ou mais
radicais que ocorreram desde a origem do grupo até os dias de hoje. Deste modo, no capítulo
quarto tratamos de exemplificar algumas das mudanças na produção ocorridas no século XX
em relação à introdução de novas técnicas e variedades, na criação do gado, na transformação
do leite e, no fabrico de doces e rapadura. Da mesma forma, trazemos as mudanças ocorridas
no processo de fabricação da farinha, levantando o sistema antigo, as mudanças técnicas e no
processo de trabalho até chegar ao processo atual.
Já no capítulo quinto discutimos a roça na atualidade, o elemento que mais se alterou
com as mudanças decorrentes do espremimento e do cercamento, levantando as mudanças na
nova lógica da organização da roça e na simbólica do processo de trabalho, oriundas do fim
da policultura, da migração da mão de obra dos filhos para as cidades e da especialização.
Deste modo esperamos que este trabalho atenda os seus objetivos e que o mesmo
venha a contribuir para a discussão sobre padrões de mudança e adaptação do saber e das
práticas específicas do campesinato, diante tanto de pequenas opções internas assim como das
enormes pressões decorrentes do mundo envolvente que o subordina. Da mesma forma,
esperamos que esta seja uma contribuição no debate sobre a participação de segmentos
camponeses na história das áreas de sesmarias da Baixada Cuiabana. Ao retirarmos a
comunidade camponesa da região do Arruda da invisibilidade a que a historiografia a relegou,
esperamos estar dando uma contribuição, por mínima que seja, para a história deste grande
segmento em nosso país.
17
CAPÍTULO I
O CONTEXTO DOGRUPO
Diga, você me conhece, eu já fui boiadeiro. E conheço essas trilhas, quilômetro e milhas, Que vem e que vão, pelo alto sertão. E que agora se chama, não mais de sertão, Mas de terra vendida, civilização.
Os caminhos mudam com o tempo, Só o tempo muda um coração. Segue seu destino boiadeiro, Que a boiada foi num caminhão.
PEÃO, de Almir Sater
Os primórdios
O território de Rosário Oeste era ocupado originalmente pelos índios Boróro, Boróra
ou Bororá, no dizer dos moradores da cidade. Estes foram mortos ou expulsos da área pelos
colonizadores brancos, quando de sua chegada na região.1 Conforme vimos na introdução,
apenas 30 anos após a fundação de Cuiabá, esta ocupação se inicia em 1751, ano da instalação
de um pequeno sítio denominado Monjolo, a margem direita do ribeirão com o mesmo nome.
No local é construída uma capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Deste sítio surge um
povoado que começou a progredir em função da sua produção agrícola e pecuária, alem de ser
passagem obrigatória no trajeto entre as minas de Diamantino e Cuiabá.
Em 1812 ocorre a fundação de um novo núcleo perto, chamado de Nossa Senhora do
Rosário do Rio Acima. Posteriormente, o antigo povoado entra em decadência e a maioria de
seus moradores migra para as minas de Diamantino. Com a morte do casal fundador de
Monjolo, este processo se agrava e acabam restando apenas 100 habitantes no local. Com o
tempo, a população deste núcleo se muda para a nova localidade que passa a se desenvolver.
Os últimos moradores do sítio original só aceitam a mudança após a realização de um sorteio
que definiria o local onde ficaria a santa. Este é vencido pela nova localidade, sendo aí
construído uma nova capela, núcleo original da cidade atual. Nossa Senhora do Rosário do
Rio Acima é elevado a distrito em 1833 e a município em 1865. A partir de 1915 o mesmo
passa a ser denominado pelo nome atual (IBGE, 1958; EMATER, s.d.; MTNEWS, 1998).
1 Para uma discussão mais aprofundada sobre este grupo indígena, consultar (Viertler, 1973, 1990; Baldus,
1979; Maybury-Lewis, 1979; Wust, 1992, 1998; Silva, 1993). Quando da chegada dos atuais grupos camponeses
no Arruda, ainda haviam pequenos grupos indígenas por perto. Foram citados pelos mais velhos alguns conflitos
violentos entre os dois grupos. Além disto, como evidência material desta antecedência indígena, existe dentro
da área da Fazenda Paribó um local denominado Capão dos Bugres, onde se encontram registros arqueológicos
de uma antiga aldeia.
18
Há uma estrema semelhança entre esta história de Rosário e a de algumas localidades
de Acorizal, situado 40 km ao sul. A história da santa que aparece e é disputada entre dois
grupos, os garimpeiros da „beira da estrada‟ e os camponeses „do interior‟, foi levantada por
Sueli Castro (2001) em Baús, 10 km ao sul de Acorizal. Por se referirem a um mesmo período
e pela estrema semelhança, sugerimos que este seja um mito fundador original de toda a
região próxima que espelharia esta disputa inicial entre os dois grupos, os lavradores e os
garimpeiros, pelo direito de ocupar os diversos espaços. Como cada grupo conta uma versão
distinta para o mesmo fato, esta seria a forma de cada um legitimar as suas pretensões ao
território, evocando o respaldo divino a sua causa.
A região é de serra levemente ondulada e com uma grande malha hidroviária que verte
para o Rio Cuiabá e o Rio Manso, cujas nascentes se encontram na Serra Azul.2 Pelo fato
destes grandes rios serem navegáveis por pequenas embarcações, favoreceu-se a ocupação da
área rural adjacente ao mesmo para a prática agrícola.
A colonização de Mato Grosso, iniciada por bandeirantes paulistas nas primeiras
décadas do século XVIII, teve, na mineração, a base econômica de criação dos
primeiros núcleos de povoamento. (...)
O regime de sesmaria logo se estende às minas de Cuiabá e Mato Grosso, estruturando
a produção de seu espaço colonial, a partir de concessões de datas para mineração e
sesmarias para produção de alimentos para atender às demandas da população mineira.
Barbosa de Sá registra nos Anais de Cuiabá períodos críticos de fome. A escassez de
alimentos influía nos seus altos preços, tornando a produção de alimentos atividade
compensadora. Descobriu-se ouro em vários pontos de Mato Grosso. Em torno das
minas surgiram núcleos de povoamento que se tornaram estáveis, mesmo após o
esgotamento do ouro, por se constituírem em base de apoio da produção de alimentos
para o mercado regional. É o caso de Poconé, Livramento, Rosário, Cáceres, Chapada
dos Guimarães, Diamantino.
A partir dos núcleos mineradores, ao se desenvolverem, criavam-se condições para
estabelecimentos agro-pastoris, na medida em que ampliavam-se as demandas de
alimento, crescendo cada vez mais exigências de produção. As sesmarias eram
requeridas em torno desses núcleos, seguindo o curso dos rios ou das estradas que
ligavam Cuiabá-Cáceres-Vila Bela, Cuiabá-Vila Boa de Goiás, Cuiabá-Coxim,
Cuiabá-Diamantino.
O setor emergente de mercadorias, especialmente de produção agro-pastoril, criado
pelas cidades dá origem também ao surgimento do campesinato tradicional,
combinando trabalho familiar, pequena produção e técnica rudimentar em pequenas
posses (Bandeira et al, 1993: 59-61).
Por causa de sua localização estratégica, a região se especializou na produção de
2 O Cuiabá nasce dentro do próprio município de Rosário, enquanto que o Manso nasce em Chapada dos
Guimarães. Este segundo, embora seja tributário do primeiro, na região de seu encontro tem o dobro da largura e
do volume de água do que aquele. O Manso, assim como a Araguaia (que tem quase o dobro do volume de água
que o Tocantins, quando „deságua‟ neste), são dois rios mato-grossenses vítimas da mesma „injustiça
geográfica‟.
19
carne, grãos e produtos beneficiados que eram comercializadas nas regiões mineradoras das
nascentes do Rio Paraguai, ao norte e em Cuiabá, ao sul. Karl von den Steinen que passou
alguns dias em Rosário, durante sua expedição de 1884 para o Rio Xingu, nos dá uma
descrição da produção agrícola do município.
Contamos 160 casas, entre as quais 96 cobertas de telhas. Calculando para cada casa 8
pessoas, teríamos uma população de, mais ou menos, 1.300 almas. (...)
Um velho dizia-nos que o número de habitantes era quasi sempre o mesmo, que a
cidade não progredia, mas também não regredia. Tinha a vantagem de não possuir
mendigo. A maior parte dos homens trabalha no campo. Faziam-se negócios com
Cuiabá, que é seu mercado comprador de arroz, feijão, açúcar, aguardente, tabaco,
madeiras para construção, especialmente cedros, além de arceiras, jacarandás, peúvas
e paus d‟arco.
As mulheres costuram, tecem redes e enrolam cigarros. O comércio com Cuiabá se faz
por água. Clauss mediu a largura dêsse rio próximo, que é de 176 metros. A cidade de
Diamantino também recebe muitos artigos de Rosário. (...)
Entre as diversas indústrias de Rosário, a mais importante parece ser o gado suíno. Os
exemplares mais gordos fornecem até 8 arrobas, de toucinho. Vimos, entretanto, um
monstro de gordura que quase não podia mais caminhar e que era avaliado em 15
arrobas (1942: 104).
O Distrito de Arruda é um dos mais tradicionais do município.3 Sua ocupação começa
a ser realizada no fim do século XVIII ou início do XIX, pela doação de uma extensa área de
sesmaria ao Padre Tavares. Não conseguimos levantar o período em que ocorre esta doação,
mas em 1827 Langsdorff registra em seu diário a hospedagem na mesma.
Pouco antes do anoitecer, havíamos percorrido 6 léguas e chegamos à passagem sobre
o rio Cuiabá, onde encontramos boa hospedagem numa pequena cabana. É uma
passagem nova, com menos de um ano. Antes, existia uma outra, mais abaixo, mas os
habitantes de Diamantino solicitaram ao governador que a transferisse para algumas
léguas mais acima, na fazenda do Padre Mestre Tavares” (Silva, D., 1998 : 135).
A memória local registra esta origem da seguinte forma.
O primeiro dono da área era o Padre Tavares. O lugar [do atual Arruda] era
conhecido como Ressaca, na escritura. (...) Os padres depois venderam.
Na época que o Padre Tavares comprou a área, a medição não fazia a curva na linha
reta e, a Ressaca entrou na escritura como pagamento do que faltou.4
3 Francis Castelnau (1949) nos dá uma descrição de toda a região da Baixada Cuiabana, a qual percorreu por
diversas vezes. Em sua viagem de Vila Boa de Goiás para Cuiabá este viajante atravessa o Rio Manso um pouco
mais acima da região do Arruda, subindo daí a Chapada dos Guimarães. Temos assim os pormenores das
pequenas comunidades, das propriedades, dos engenhos e dos aspectos geológicos de toda a área. 4 A curva a que o informante se refere são as do Rio Manso, uma das divisas da Sesmaria. Pelo fato do mesmo
dar muitas voltas e, pender rumo ao sul enquanto se sobe o mesmo (o sentido em que foi realizada a medição),
possivelmente isto resultou que na medição a área total da sesmaria não foi atingida, conforme o documento de
doação. Daí que consta redigido na sua escritura, a inclusão da área da Ressaca como „compensação‟ a esta
perda.
20
Um lavrador da Comunidade Pindura (situado na beira do Cuiabá e distante 22 Km do
Arruda), onde ficava a passagem citada por Langsdorff e a sede da fazenda de Padre Tavares,
esclareceu-nos a cerca do tamanho da mesma, além de levantar um dado interessante.
Arruda e Pindura era uma sesmaria só, naquele tempo do Padre Tavares. Aqui perto
mesmo tem duas pedras empariada, uma marca de um metro de altura, tudo lavrado
do tempo dos escravos.
E esta marca era da sesmaria do padre?
Era, deve ter outras por aí, que ele tinha esse mundão de terra.
Para a população atual estas pedras são, por assim dizer, uma materialização da pertença
original, um verdadeiro „lugar de memória‟ (Pollak, 1992). Este é um marco fundador da atual
civilização construída sobre a ruína dos povos indígenas e que possibilitam à população a
manutenção de seu vínculo com esta originalidade, servindo como um „esteio de memória‟
(Conway, 1998).
Não conseguimos precisar a data nem a razão, mas a área desta sesmaria foi retalhada
em diversos lotes, possivelmente por volta do meado do século XIX. Na área do Rio Arruda,
a mesma época, temos a seguinte situação.
Aqui na região, nos outro lugar nunca teve escravo, só no Arruda porque os dono era
mais forte. O Manoel Felipe de Almeida foi dono da Cinco Oitavos e o irmão dele, o
Mateus de Almeida foi dono do Arruda. Agora... não sei se eles requereram, se foi eles
que comprou ou se foi de herança. Mas aqui no Arruda é o mais antigo da região
toda, mais antigo que no Morro Azul.
Um idoso lavrador do Espia confirma esta versão, acrescentando um dado interessante.
Desde o tempo de meu avô que já era bem comum a venda de terra. O primeiro dono
que foi dono daqui, chamava Manoel Felipe de Almeida. Era meu bisavô por parte de
meu pai. Esse Manoel foi dono da [Sesmaria] Cinco Oitavos. Lá embaixo, um irmão
dele, Mateus de Almeida foi dono [da sesmaria] do Arruda. Vendeu pra um tal de
Nicolau de Almeida, irmão dele mesmo. Era tudo uma irmandade.
O grupo original dos atuais moradores chega à área já no final deste mesmo século,
possivelmente nas décadas de 1870 ou 1880.
Os segundo dono foram o Simplício e o Vinício que vieram da Figueira, da beira do
Rio Cuiabá. Um ficou no Arruda e o outro no Espia.
A [Sesmaria] Cinco Oitavos vendeu em quatro [partes]. Então a Maria Menezes
vendeu a parte dela, para meu avô e um irmão dele [Vinício e o Simplício]. A outras
parte vendeu para uma pessoa só, o Libânio, que é meu tio [e filho do Simplício]. O
Libânio comprou a parte do Procópio, comprou a parte do genro do Delfino e
comprou a parte de Leocádia.
Deste modo, temos dois fatos importantes colocados neste processo. Em primeiro
lugar fica evidente que desde a origem há uma prática comum de venda da terra. A memória
21
local não nos forneceu mais elementos para a análise, mas o que percebemos é que este
padrão se mantém até a atualidade, principalmente na compra do direito da irmã ou da tia
quando estas se casam e se mudam. Retomaremos este ponto mais adiante.
Por outro lado, temos aí a presença de um padrão explicito de venda preferencial da
terra para aparentados. Uma parte do grupo de irmãos que originalmente detinham a terra,
possivelmente devido à migração, vendeu-a para seus próprios irmãos, todos da família
Almeida. Depois, a terra toda é vendida para os irmãos Simplício e Vinício, pertencentes a
outro tronco distante da família Almeida. No fim é Libânio de Almeida Godoes, o filho e
sobrinho destes, que a partir da compra das áreas vizinhas acabou ficando como dono da área
das Sesmarias de Arruda, da Bocãina e de parte da Sesmaria Cinco Oitavos.5 São seus
descendentes que na atualidade estão ocupando as terras do São Pedro. Já no Espia temos um
pequeno grupo de três irmãos já casados, morando na terra de seu idoso pai, descendentes do
ramo dos Almeida, juntamente com os Almeida de Godoes. 6
Já o Cedral era antigamente denominado de Sesmaria Morro Azul e tinha uma área de
1.800 ha. A mesma pertenceu até 1890 ao casal Manoel Ferreira da Silva e Maria Martins
Mercês. Ao final deste ano, a mesma é vendida para dois compradores que chegam da região
de Coxipó Açu, um bairro rural situado 70 Km mais ao sul.7 O primeiro deles, Joaquim
Martins Amâncio, não permanece na terra por muito tempo e nem deixa nenhum descendente
no Cedral. Nenhum dos moradores atuais soube explicar o seu paradeiro ou mesmo, o de
qualquer descendente do mesmo. Já o segundo, José Delfino Martins, permanece na terra e é
o ancestral de todos os atuais moradores, hoje os Martins e os Martins Correia.8
No fim, há um entrelaçamento enorme entre estas três famílias, devido ao intenso
intercasamento entre elas. A fala de uma moradora de Rosário, que foi expulsa da região nos
anos 70, é explicativo disto. Tem a nossa tradição de casar entre parentes, casamento com
primo. No começo era tudo assim, até hoje, se puxar a história de cada família encontra na
5 A Sesmaria Cinco Oitavos, uma vez retalhada e vendida, desaparece da história, embora não da memória local.
Sua parte maior, vendida a Libânio, é incorporada junto com a Sesmaria Arruda numa unidade só, o „Arruda
lugar‟ (conferir discussão na introdução). A parte menor, vendida a Vinício, passa a ser denominada de Sesmaria
Espia. 6 Depois da venda da terra, alguns membros da família Almeida permanecem na área, decorrendo daí diversos
casamentos entre os dois grupos. Na Sesmaria Lambari Capão Seco (vizinha do Cedral e do Espia) foi comprada
por Joaquim de Almeida e, até os anos 1970, este ramo permaneceu na mesma. 7 Neste caso nos tivemos acesso à cópia dos documentos da terra. Pudemos ver três documentos: uma certidão de
1983, do cartório de Rosário, sobre a existência de uma escritura de compra e venda realizada em 1890; o título
provisório de 1898 e; o título definitivo de 1906, ambos expedidos pelo Estado. 8 Isso se deu pelo fato de que um membro da família Correia casa-se com uma filha de José Delfino, originando
este ramo que, na atualidade, é o majoritário no Cedral.
22
raiz parentes.9
O Tempo da Terra Comum
Desde a chegada dos ancestrais do grupo atual, no final do século XIX até a década de
1960 temos o período que é entendido por eles como o tempo de antigamente, tempo de
comum ou tempo de abundância.10
A população da área do Arruda, do Espia e do Cedral era
então composta basicamente por uma população camponesa, formada por duas famílias
extensas (Almeida Godoes na primeira e Martins e Martins Correia na segunda) que tinham,
cada qual, a posse escriturada de suas imensas propriedades. Estas famílias praticavam um
uso comum das suas terras, onde cada grupo familiar individual tinha o direito de usufruto de
um pedaço desta, socialmente designado ao mesmo pela comunidade de herdeiros. Iselda
Ribeiro em seu trabalho sobre os farinheiros de Morro Grande,11
município de Santo Antônio
do Leverger, coloca que:
Embora a terra fosse de uso comum a todas as famílias, o trabalho era centrado na
família nuclear, composta por marido, mulher e filhos. Os filhos mais velhos quando
chegavam a idade adulta, construíam a sua casa ao lado da casa dos pais. Recebiam
então um pedaço de terra para fazer a roça de mandioca e começavam a produzir a sua
farinha (Ribeiro, 1998: 54).12
Já Sueli Castro, que discute a noção de „Terra de Sesmaria‟ a partir do caso de Baús,
município de Acorizal,13
reforça a idéia de um vínculo moral e significativo entre a terra e o
parentesco.
A memória social desses sertanejos vincula sesmaria à toda uma representação de um
modo de vida campesino, em que o acesso à moradia e ao trabalho na terra se faz por
normas específicas, instituídas e acatadas de forma consensual, entre os vários grupos
familiares que compõem uma unidade social - Terra da Parentalha.
(...) Como uma forma de organização social, ela está vinculada a um modo de vida
camponesa, cujo acesso à moradia e ao trabalho, até período recente, se fez segundo
9 Como este ponto não era o foco inicial de nossa pesquisa, optamos por não nos aprofundarmos agora no
mesmo. Os dados relativos a este processo de padrões de casamento, tanto dentro do mesmo ramo familiar como
entre ramos distintos e, a comparação com os padrões das comunidades vizinhas, será trabalhado em um futuro
artigo. 10
Temos assim a manutenção de um mesmo conjunto de categorias, para referenciar um longo período de
tempo. 11
Morro grande dista uns 130 Km da região do Arruda. 12
Este padrão dos filhos morarem ao redor da casa de seus pais é geral para toda a área camponesa da Baixada
Cuiabana (e se repete até mesmo nas cidades). Numa das atuais propriedades localizada no São Pedro existe
ainda um espaço da memória deste modelo antigo de residência da família extensa. O sistema já não existe mais
na atualidade (devido a inúmeros fatores analisados mais adiante) mas, ainda existe a materialidade de sua
memória, uma vez que temos ai a casa dos atuais moradores que nela residem, circundada da casa de seus pais e
de seus dois irmãos, todas abandonadas e subtilizadas. 13
Baús dista uns 50 Km da região do Arruda. O acesso entre ambas só é possível por estrada de terra.
23
normas específicas instituídas e acatadas de forma consensual entre os vários grupos
familiares que compõem a Terra da Parentalha. Direitos e deveres estão sempre
imbricados nas relações que têm por base uma ética de gratidão/débito,
moral/retribuição, que tecem os valores e as práticas presentes neste universo.
Este universo da Terra da Parentalha é fortemente marcado por uma participação
comunitária, envolvida por laços de reciprocidade, evidenciados pelo muchirum
(mutirão) e de compadrio” (Castro, 2001: 28-29).
Este tempo de antigamente é lembrado até hoje como um tempo de respeito às regras
locais, onde, da mesma forma que na aldeia tradicional estudada por Galeski (1975), a terra é
entendida como um patrimônio, um valor moral, na qual indivíduos ou grupos familiares se
submetiam a um controle geral, subordinante de tudo e de todos. A semelhança das outras
áreas de sesmarias da Baixada Cuiabana, temos na região do Arruda a colocação de uma
mesma noção de patrimônio, ou seja, de terra comum e indivisa, a qual todos os membros do
grande grupo familiar pertencia (e não, a terra é que pertencia a estas) pela via do parentesco .
Neste universo, cada grupo familiar mantinha dentro da área de sesmaria de sua família
extensa, o direito ao usufruto de um território que lhe cabia, assim definido na realização do
formal de partilha. Estes eram, segundo informação dos moradores, realizados desde o tempo
de antigamente e, registrados no cartório de Rosário. Conforme indica a bibliografia sobre
comunidades de sesmarias da Baixada Cuiabana (Bandeira, 1988; Amorozo, 1996; Silva, J.,
1998; Castro, op. cit.) nestas nunca foi realizado qualquer formal de partilha, mantendo-se a
terra indivisa na realidade e no papel. Isto indica uma estratégia distinta do grupo aqui
pesquisado e, que tem importantes conseqüências, conforme discutiremos mais adiante, no
momento de resistência à Fazenda Paribó durante o tempo do espremimento.
No entanto, apesar do cumprimento das formalidades legais, a terra não era dividida
de fato. Tirando-se as áreas de roça, que eram cercadas provisoriamente para impedir o ataque
de porcos, o restante não possuía qualquer cerca. Os únicos limites oficiais eram os marcos da
área toda da sesmaria, titulada junto ao Estado.14
À partição em cartório não se seguia
qualquer tipo de medição ou delimitação das terras de cada grupo familiar. Assim tínhamos
uma apropriação pela família nuclear da terra de roça, geralmente nas áreas de mata ciliar das
beiras de rio e córregos e através do sistema de coivara com um longo período de descanso da
terra. Por outro lado, as terras altas de campo ou cerrado cobertas por uma pastagem natural,
eram usadas em comum por todas as famílias extensas, indistintamente, na criação de gado.
Referindo-se a este tempo antigo da terra comum, uma lavradora da comunidade Pindaival
14
Muitos destes marcos ainda existem e, nos foi informado que o da divisa entre a Sesmaria Morro Azul e a
Sesmaria Lambari está no mesmo local até hoje. Não tivemos acesso à área da fazenda Paribó e, possivelmente,
os antigos marcos ai existentes já devem ter sido todos arrancados.
24
nos disse que naquele tempo era bom... criava vaca em liberdade, sem separação. Tinha vaca
meu até no [rio] Manso... uns 17 Km pra lá.15
Este sistema de apropriação e usufruto em comum: colocação de roças num local
específico de direito do grupo familiar e criação de gado solto em extensas áreas não
cercadas; é recorrente na bibliografia sobre campesinato tanto de uma forma geral (Brandão,
1986; Soares, 1981; Motta, 1983; Woortmann, E., 1983; Woortmann, K., 1983; Almeida,
1987; Esterci, 1987; Almeida, 1988; Andrade, 1999; Di Stefano, 2003), como
especificamente sobre a Baixada Cuiabana (Bandeira, op. cit.; Amorozo, op. cit.; Silva, J., op.
cit.; Castro, op. cit.). Nos grupos estudados por Luiz E. Soares, Alfredo W. Almeida,
Maristela Andrade e outros, esta criação de gado em comum se dá num sistema de „usufruto
comunal‟ dentro do território do imenso patrimônio que pertence comunalmente a todos
(embora na maioria dos casos, esta posse foi ou esteja sendo contestada por elementos de
fora). Já nos grupos pesquisados por Ellen Woortmann, Klaas Woortmann, Neide Esterci e
Almeida, temos este mesmo tipo de uso comum sendo praticado em uma área ainda não
apropriada individualmente por qualquer particular, ou seja, o „apossamento de soltas‟ (no
sertão de Sergipe) ou „de campos e varjões‟ (em Santa Terezinha-MT) para um uso comunal
na criação de gado. Decorrente destas características, são justamente estas áreas de uso
comum ou comunais que, geralmente, estão entre os primeiros territórios que os grupos
perdem quando se iniciam os conflitos.
No entanto, temos no caso aqui estudado, a despeito da replicação deste padrão geral,
algumas especificidades. Em toda a região do Arruda não temos uma imensa área comunal, e
sim várias grandes sesmarias tituladas, demarcadas e respeitadas enquanto tal por toda as
comunidades camponesas. Estas, por terem extensas áreas de campo inapropriadas para a
agricultura (devido à tecnologia existente no grupo) e que não se encontravam cercadas, eram
destinadas à criação de comum e indistintamente do gado pertencente a todas as famílias
(embora cada uma fosse dona do seu gado, especificamente). Reforçando esta diferença que
aqui levantamos, não foi nas áreas de campo em que se criava o gado de comum que se
concentrou a ganância da Fazenda Paribó, durante os conflitos dos anos 1970. Foi justamente
nas áreas de mata onde as pessoas moravam e colocavam suas roças que se deu à
expropriação dos herdeiros, pela via da „venda forçada‟. Retomaremos este ponto mais
adiante.
Em função desta lógica de ocupação, desta estratégia de cada família extensa morar no
15
A cerca deste sistema de criação de gado, conferir capítulo terceiro.
25
que é seu, vão se formando bairros rurais como o de Cedral, com diversas casas construídas
umas mais, outras menos perto. 16
Segundo um dos moradores mais antigo:
Aqui vive umas 60 famílias.
E são todos parentes?
Tem poucos que são de fora da família ... deixa eu ver se me lembro ... tem o ... como
é mesmo o nome, menina? Isso, Hernande, que comprou.
Nestes tempos de antigamente, o acesso legal à terra só se dava pelos laços de
parentesco. São os filhos legítimos17
que herdam e, pelo que pudemos levantar, tanto homens
como mulheres.18
Segundo um morador da comunidade São Pedro que tem 65 ha.
No total de terra era 480 ha de meu avô... no inventário de meu avô tinha cinco
herdeiros.
Este inventário foi feito no cartório?
Sim ... foi no cartório ... a partilha do meu pai é que não foi ... na partilha do meu pai
foi oito herdeiros.
Eram todos homens?
Todos herdaram, tanto os homens como os mulher, era a mesma quantidade [de terra].
Outro morador da mesma comunidade e, proprietário de 180 ha afirma:
Tem quatro filhos na terra, morando conosco, só uma é legítimo. Três filhos fora
[legítimos], um em Rosário, dois em Cuiabá.
E no caso de partilha, quem herda?
Só os quatro.
Os quatro que estão na terra?
Não, herança só os legítimos! 19
Além disto há um claro padrão de compra do direito das mulheres que, devido ao
casamento se mudaram para outro lugar, por parte de seus irmãos ou sobrinhos. Foi desta
forma, por exemplo, que o morador acima, que deveria ter recebido apenas 8 ha de herança
após as duas partilhas, tem na atualidade 65 ha. Tanto seu pai como ele compraram terras das
irmãs e da tia, a um preço simbólico. Outro caso de um morador do Espia que hoje tem 60 ha,
é entendido a partir do fato que o mesmo herdou 9 ha de sua mãe e então eu comprei esses 45
16
Conforme analisado por Cândido (2001) e Pereira de Queiroz (1973). 17
Filho legítimo é o filho de sangue ou, o filho adotado e legitimado em cartório. Em oposição a este temos o
filho de criação, que não tem direito a herança. 18
Diversos autores colocam que, nesta região só os homens é que herdam a terra (Amorozo, 1996; Castro, 2001;
Ribeiro, 1998). Como o discurso da memória, afirma a ancestralidade deste costume de herança igualitária,
penso que isto representa uma variação local do padrão regional. Trataremos deste assunto no mesmo artigo
futuro, acima citado. 19
Margarida Moura (1984) ao discutir os processos de invasão, expulsão e sucessão, defende a tese de que os
conflitos da sucessão estão ligados a estes outros dois processos: onde há herdeiros, há expulsos. Da mesma
forma, Brandão (1986) coloca o conflito na sucessão em sítios de Diolândia-GO, aonde os filhos, ao herdarem a
terra, expulsam os tios, que não tem direito algum.
26
ha da minha tia e depois tem um direitozinho aí, que eu comprei também.20
Temos portanto, um interessante „sistema de estratégia de reprodução social do grupo‟
específico às comunidades pesquisadas. Partindo de um padrão de herança universal, onde
tanto os homens como as mulheres herdam o direito ao usufruto do território (segundo eles
em igual quantidade), temos a possibilidade de um estremo fracionamento da terra em poucas
gerações, o que inviabilizaria a reprodução da forma de produção do grupo. No entanto, temos
o instituto da venda simbólica deste mesmo direito por parte daqueles que se mudam do lugar,
como uma estratégia de impedir este processo.
A prática do grupo – que muitas vezes independe da regra e liga-se mais a estratégias
conjunturais, como bem coloca Bourdieu (1990 a) – é de se promover um tipo de casamento
preferencial. O que percebemos como uma ocorrência mais expressiva é o „casamento
exogâmico de família e lugar‟, ou seja, a mulher se casa numa família que não a sua, que
reside em uma sesmaria ou comunidade vizinha. No entanto, temos as sempre presente
exceções à regra, uma vez que nem sempre se vive de padrão preferencial. Assim, levantamos
dois outros tipos menos freqüentes de casamento. O primeiro é o „casamento endogâmico de
família e lugar‟, ou seja, casamento na mesma sesmaria com um primo ou um parente
próximo. O segundo, com uma ocorrência bem pequena segundo nossos levantamentos, é o
„casamento exogâmico de família e endogâmico de lugar‟, ou seja, a mulher se casa na sua
própria sesmaria, mas com o filho de um agregado, portanto, um não herdeiro e não parente.
No primeiro caso, o de maior incidência estatística, a tendência geral é de que a
mulher deve se mudar para a terra de seu marido. Portanto, como sua parte do direito herdado
tem que permanecer sob o controle do grupo de origem, esta herança deve ser vendida por
aquela, para um parente e a um preço simbólico. Por outro lado, possivelmente seu marido
(ou um irmão deste) irá comprar o direto de sua própria irmã ou tia, que se mudou para outra
sesmaria vizinha (que pode ser, ou não, a de sua esposa). Isto implica numa relação ritual
onde recursos financeiros circulam entre os diversos grupos, sem que nenhum deles se
aproprie em definitivo do mesmo, para que a terra permaneça o mais indivisa possível e
interna aos grupos que a detinham originalmente. Já nos dois outros casos, quando a mulher
não se muda, permanecendo na mesma sesmaria ou comunidade, ela igualmente herda a terra,
mas, ao contrário da que se muda, retêm esta herança para que sua família possa nela
trabalhar e se reproduzir enquanto grupo.
Temos, portanto, uma clara estratégia de redistribuição da terra, para que a mesma não
20
A respeito do uso deste mesmo sistema em outros grupos camponeses, consultar (Moura, 1978; Woortmann,
1995 a).
27
seja fracionada ao estremo. Da mesma forma, não temos um padrão de discriminação das
mulheres, uma vez que a mesma ira garantir a continuidade de seu grupo familiar ou na sua
própria terra de herança ou, na terra de herança de seu marido em outra sesmaria.
Karin Wall discutindo o padrão de sucessão a partir de um herdeiro privilegiado,
portanto o oposto do aqui analisado, coloca que,
num sistema de herança preciputário mas em que todos os herdeiros recebem alguma
coisa, a terra é um bem que alguns conseguem manter mais ou menos intacto,
enquanto outros a fazem circular, permitindo o fazer e o desfazer de casas. Mas a troca
das terras é apesar de tudo restrita, na medida em que é costume, no seio das famílias
de lavradores, favorecer ou beneficiar os filhos que ficam na casa (1998: 108).
Deste modo, os herdeiros que recebem terra pior e em menor quantidade, devem vendê-la,
preferencialmente para a própria casa de origem, ou seja, para seu irmão. Como vemos, este
padrão de circulação da terra entre parentes herdeiros, presente tanto no Arruda como no
Baixo Minho, é uma estratégia camponesa para impedir o excessivo fracionamento da
propriedade.
O dado interessante é que esta estratégia é encontra tanto num sistema de herança
igualitária, como na desigual, com um herdeiro privilegiado. Portanto, isso vem demonstrar
que grupos familiares que adotam padrões de sucessão e herança diferenciados, têm a
capacidade de manipular as escolhas individuais de modo que, afinal, a terra não seja tão
fracionada, garantindo a reprodução do mesmo. Assim, como bem coloca Maria José
Carneiro, “o grande desafio do sistema de transmissão patrimonial consistia em sustentar uma
distinção entre herdeiros legais, realizando uma distribuição diferenciada dos bens familiares”
(1998: 97).
Contudo, não eram só os herdeiros que tinham o acesso ao usufruto da terra. Temos ai
a figura do povo encostado, ou seja, algumas famílias que de alguma forma chegavam na
região e conseguiam se estabelecer dentro do território da sesmaria, com a anuência do grupo
familiar detentor do direito. Esta autorização significava o estabelecimento de uma relação de
subordinação, onde os chegantes passavam a ser considerados como agregados. Conforme nos
colocou um morador da antiga Sesmaria Arruda (atualmente no São Pedro), no período que
vai desde a origem do grupo até o início dos anos 1950, quando a terra da sesmaria foi
vendida, no Arruda tinha muitas famílias antigamente. Grande parte era dono do direito
deles e aquele povo que vivia encostado também [morava lá], eram os vizinhos e os
agregados. Alguns pagavam parte, outros não.
Os antigos moradores são unânimes em afirmar que este pagamento da parte, ou o
arrendamento, sempre foi realizado num preço simbólico. Na verdade, esta prática não visava
28
a capitalização do grupo detentor do direito na terra, mas sim na reafirmação deste direito em
si. O fato de o vizinho ou o encostado, o pai de família agregado, ter que pagar como parte
do produto de suas roças um saco de arroz (de 50 a 100 que ele e sua família produzia, em
média), levando pessoalmente ano após ano este pagamento para a casa do proprietário da
terra, o pai de família patrão, é nada mais do que uma representação ritual que não deixava
nenhuma dúvida acerca da posição ocupada pelos dois grupos. Isto significava a confirmação
e a renovação simbólica da relação de subordinação daquele pai de família a este. A repetição
anual deste ritual simplesmente reforçava e mantinha inalteradas as relações hierárquicas
estabelecidas dentro da sesmaria.
Neste tempo em que não havia estradas21
o transporte das mercadorias para o
comércio se fazia no lombo de boi. Segundo um informante bem idoso, remetendo-se a
década de 1920:
Quando eu era novo, de boi para carregar, levava para Cuiabá sete dias, ida e volta;
para Diamantino oito dias, ida e volta ou mais; para Arenápolis doze dias ... ida e
volta (...) Vendia só a dinheiro, tudo no dinheiro! Comprar mesmo, eu só comprava
em Cuiabá.
Em Cuiabá era aonde?
Vendia no Mercado Municipal de Cuiabá. Ia 20, 30 bois carregado de feijão, arroz
limpo na mão do pilão, rapadura, toicinho. Matava capado aqui e pegava, carneava e
levava para Cuiabá. Meu pai dava, nada, nada, uma, duas viagens. Todo mês ele
negociava. Então ele vendia lá e comprava mercadoria para vender pro povo aqui.
E o que ele comprava?
Era tudo, tecido, sabão, guaraná, era açúcar, que lá comprava mais refinado...
Ferramenta, sal pro gado, trazia uns três, quatro bois só de sal.
Temos assim colocado duas estratégias distintas de reprodução social do grupo. Em
primeiro lugar, não eram todos os lavradores que assim agiam, tocando tropa de boi serra
acima (para Diamantino, Arenápolis e Alto Paraguai), serra abaixo (para Cuiabá). Ter uma
tropa de boi de carreiro não estava ao alcance de qualquer um, pois somente os camponeses
fortes podiam se dar a este luxo. Assim, temos que estes se firmaram como os primeiros
bolicheiros22
da região, subordinando os camponeses fracos de sua sesmaria ou comunidade,
concentrando em seus pequenos comércios toda a produção ai realizada. Temos, portanto, a
replicação do mesmo padrão observado por Mariza Veloso Motta (1983) para a grande
fazenda tradicional de gado do sudoeste goiano, e por Luiz Eduardo Soares para o povoado de
Bom Jesus no Maranhão, a época da liderança de Henrique Souza (1981: 64). Na região do
21
A primeira estrada é aberta em 1926, conforme veremos mais adiante. 22
Bolicho é um pequeno comércio de secos e molhados que atende uma clientela local. Em Mato Grosso o
mesmo ocorre tanto na zona rural como nas pequenas cidades do interior, opondo-se ao armazém ou comércio,
um grande estabelecimento que só existe nas cidades.
29
Arruda, estes camponeses fracos, os agregados, vizinhos ou compadres, vendiam seus
excedentes ao bolicheiro e compravam dos mesmos todas as mercadorias indispensáveis e
não produzidas localmente, as quais apenas os mesmos tinham condição de trazer de Cuiabá.
Temos assim esta relação resumida no seguinte esquema:
Camponês Forte
Englobante (em sua sesmaria, em todos os grupos
familiares)
Pai de Família
Recebe a Parte
Comprador e Vendedor
Lavrador
Tropeiro
Camponês Fraco
englobante (em seu grupo familiar)
englobado (em sua sesmaria)
Pai de Família
Paga a parte
Vendedor e Comprador
Lavrador
Por outro lado, os camponeses fortes que faziam o trajeto com as tropas de boi de
carreiro estabeleciam uma clara estratégia de „maximizar o produto do esforço‟ deste penoso
deslocamento. Deste modo, o primeiro deslocamento sempre era no sentido serra acima, rumo
às áreas de mineração das nascentes do Rio Paraguai. Conforme vimos no discurso acima,
nesta área ocorria apenas a venda da produção agrícola e somente a dinheiro, uma vez que ai
os preços alcançados pelos seus produtos eram maiores. Na viagem de volta, a tropa de boi
vinha descarregada, pois esta era a forma prioritária de se adquirir os recursos necessários a
aquisição de bens necessários e disponíveis apenas no mercado, e não as próprias mercadorias
em si.
Uma vez de volta a região do Arruda era organizado outra viagem, com a tropa sendo
carregada com produtos agrícolas para Cuiabá. Neste grande mercado sua produção alcançava
um preço menor, mas o ganho se dava no momento de comprar os bens necessários, uma vez
que ai eles eram mais baratos do que se fossem comprados serra acima. Deste modo, na
capital ocorria a negociação, com a venda de sua produção propiciando um incremento nos
recursos monetários já disponíveis, seguido da compra de mercadorias necessárias e não
produzidas no Arruda. Estes bens iriam abastecer o seu próprio Bolicho e seria vendido aos
moradores de sua comunidade, produzindo um ganho não só monetário, mas, sobretudo, na
30
reprodução dos vínculos de subordinação dos camponeses fracos em relação aos mais fortes.
Além disto, esta relação com o mercado vem a demonstrar dois elementos. Em
primeiro lugar o grupo se constitui, desde seu início, baseado numa produção tanto para o
autoconsumo, como para o mercado. Contudo é importante que se diga que, neste caso, a
produção com finalidade comercial era subordinada pela produção para a subsistência. Ou
seja, conforme veremos no capítulo terceiro, é a partir desta lógica que se organiza a produção
no interior da propriedade. Aliado a isto, fica claro que o grupo não se constitui numa
comunidade primitiva, isolada e fora do mundo, como muitos moradores urbanos da região
pensam.
Para Vogel, Mello e Barros, o mercado, quer o periódico das grandes cidades (o
Mercado Municipal de Cuiabá era um destes), quer o temporário na forma de feira, são
centros de intensa vida social, onde se trocam dinheiro, mercadorias, informações e
cumprimentos.
Como lugar de encontros, transações, novidades e escândalos, possuem um ritmo
próprio, sempre mais ou menos intenso, em virtude da aglomeração inquieta de corpos
e objetos num, espaço que parece, por vezes, demasiado exíguo para conte-los a todos.
A conversação e o divertimento; as rixas e alterações; as amizades e competições; as
intrigas, políticas ou amorosas, fazem parte desse movimento universo „onde são
intercambiadas mais saudações, informações e estórias do que mercadorias e dinheiro‟
(1993: 7).
Deste modo, o intenso intercâmbio do grupo com outras comunidades camponesas
vizinhas, situadas nas rotas comerciais e com os mercados das pequenas cidades mineiras do
norte além da capital, facilitam o fluxo de novidades que, paulatinamente, trazem mudanças à
prática local. Retomaremos este ponto nos capítulos quarto e quinto.
Portanto, por quase um século, foi possível a este segmento camponês garantir a sua
reprodução social e, mais especificamente, a reprodução de sua forma de produção. Isto se
deu baseado nos seguintes pontos: a) produção agrícola de excedentes, em função abundância
de terra e da proximidade de mercados consumidores; b) grande disponibilidade de força de
trabalho; c) controle, pelo grupo familiar, desta produção; e d) sujeição deste grupo familiar e
de sua produção a um controle maior, através do respeito à tradição elaborada pela
comunidade de parentes que dita as normas de acesso e uso do território.
Segundo Margarida Moura: “No campesinato, é impossível separar a prática
econômica da familiar. As duas coisas estão ligadas de uma forma distinta daquela que se dá,
por exemplo, numa família de classe média no meio urbano.” (1986: 25-26). Já Ellen
Woortmann, analisando o sítio nordestino evoca a noção de “terra como uma ordem moral”,
31
relacionando a territorialidade com o conjunto das relações de parentesco (Woortmann, 1995,
a & b). Por fim, Klaas Woortmann discute a „campesinidade‟, ou seja, a “ética camponesa
constitutiva de uma ordem moral” (1990: 11).
É, portanto, a partir desta ótica que entendemos que ser herdeiro, ser um nascido e
criado,23
nesta região, mais do que ser um pequeno produtor de alimentos, se constitui num
“modo de vida”, onde o respeito às normas da comunidade, à tradição, rege todo o processo
de sua vida: nascimento – inclusão em uma família; crescimento – força produtiva
subordinada ao pai; casamento – produção semi-independente (tem sua casa e roça mas, estas
estão na terra do pai); herança – com a morte do pai, sua família nuclear passa a controlar a
terra e a produção; desenvolvimento de seu grupo familiar – filhos se casam e começam a
ficar independentes e; morte – desmembramento de seu grupo em novas unidades.
Assim temos claramente dois eixos constitutivos desta realidade: terra e parentesco
que se complementam e interagem, mediados pelas noções de territorialidade, respeito e
tradição, formando uma totalidade.24
O aprofundamento da subordinação
O ano de 1926 ficou definitivamente marcado na lembrança dos mais velhos por causa
de três importantes eventos. O primeiro, mais pitoresco, foi a passagem nos Distritos de
Arruda e no vizinho Marzagão de um contingente da Coluna Prestes, por eles chamados de os
revoltosos.
Isso foi em janeiro de 26. Aqui passou um contingente, um bolo de 20 homens. A tropa
mesmo passou lá em cima, na Canguinha, no Marzagão. Subiram a serra e foram lá
para o lado de Diamantino. E os daqui, desceram aqui, deram um salto por aqui e
quiseram ir em Rosário mas não foram capaz. Deram um salto no Rio Manso,
subiram e foram pegar a patrulha daqueles outros lá e foram embora.
Aqui eles só passaram. Agora, o que eles faziam é que queriam animal para trocar,
para montaria. (...) Os animais eram todos levados sem pagamento. Eles não
pagavam nada, não compravam nada. E o que eles iam soltando na estrada, eles iam
maneteando eles [cortavam o tendão de uma das pernas], que era para não prestar
para outro [as tropas legalistas que vinham em seu encalço].
E vinha alguém atrás deles?
Vinha uma Força Baiana, mas essa força torou de lá para cá. Mas aqui eles não
passaram e voltou. Nunca que apanhou eles. Daqui eles [os revoltosos] entraram em
Diamantino e logo na frente eles guardaram na Bolívia.
23
Este termo tem uma forte relação com o termo equivalente utilizado em Cuiabá, o Cuiabano de Chapicruz. Ou
seja, aquele que nasce e, portanto é Chapa e, que morre, e portanto é Cruz. Temos assim o indivíduo que, por ter
vivido todo o seu ciclo de vida na cidade, é considerado uma „pessoa cuiabana legítima‟. 24
Iselda Ribeiro, utilizando Mauss, compara as sesmarias a uma “... „naçãozinha‟, o grupo que detém ainda que
infinitamente, uma determinada soberania sobre o território ...” (Ribeiro, op. cit.: 25)
32
O segundo fato, e este têm importantes conseqüências, foi a abertura da primeira
estrada para a região. A mesma foi aberta por Gonçalves Dias Batista, ao que parece no
regime de muxirum.25
Esta, na verdade, não passava de um caminho aberto à mão pelos
próprios moradores.
A gente procurava um lugar pra atravessar o córrego mais fácil. A gente levava os
machado e fazia as passagens nos rios e córregos. Tudo era feito na mão. Tinha uma
que ia para Cuiabá, e tinha uma estrada que ia até o Pindaival, só feito por nós.
A partir da abertura desta estrada, à época ainda intransitável por veículos, a região
torna-se mais acessível ao transito de comerciantes de fora. É neste processo que chegam e se
fixam a região diversos mascates. Dentre os vários, os personagens que mais ficaram retidos
na memória local são dois. No Cedral temos o alemão Heinrich Dickie (?), chamado de
Henrique, que acabou por voltar para sua terra natal antes da segunda guerra; enquanto na
Sesmaria Arruda, temos Anunciato Fortunato, conhecido como o Italiano, que chega para
ficar e fazer história.26
Este chega ao Arruda trazendo guaraná, item que estava em falta na região, para
vender aos moradores.27
Estabelecendo uma amizade com estes, ele sempre volta com uma
tropa de burro trazendo mercadorias de Cuiabá e de Corumbá, passando a ser hospedado na
casa de Adalgisa Almeida de Godoes, filha do proprietário. Este processo vai até 1939, ano
em que ele chega de caminhão pela primeira vez e quando o mesmo se muda definitivamente
para a comunidade. Isso se dá devido ao fato de que o Italiano compra o engenho e 200 ha de
terra do velho Libânio. Além disto, no ano seguinte, seu filho Paulo Fortunato se casa com a
filha de sua antiga anfitriã, aprofundando os vínculos a partir do estabelecimento de uma
relação de parentesco e afinidade.
Com um pedaço de terra, o engenho e um comércio estabelecido localmente na
Sesmaria Arruda, o Italiano começa a estender sua rede de influência, depois capitalizada por
seu filho, a todas as comunidades próximas, Cedral, Pindura, etc. O sistema era de fornecer a
mercadoria para as famílias de lavradores: carne, açúcar, tecido, sal, ferramentas, vendendo
fiado durante todo o ano para receber em produto na colheita. Lá no comércio não tinha
dinheiro, só recebia de quatro, cinco, seis meses, com o período da safra na colheita.
25
Muxirum é o termo local designativo de Mutirão. A respeito desta prática comum nos tempos de antigamente,
consultar (Amoroso, 1996; Ribeiro, 1998; Silva, J., 1998; Castro, 2001). 26
Não temos maiores detalhes sobre este primeiro personagem, o alemão. Tanto este como o italiano, acabam,
enfim, por se constituírem em figuras lendárias, ocupando as brumas da memória local. 27
O guaraná é a bebida refrescante mais tradicional e apreciada em toda a Baixada Cuiabana. Andando-se nas
ruas de Cuiabá podem-se observar inúmeras lojas de vender guaraná (em pó ou em bastão). Muito mais do que o
café, é o seu pó que é ralado na grosa, adoçado, misturado a água e ingerido várias vezes ao dia, inclusive no
quebra torto, o desjejum da manhã.
33
Neste processo, não são só os lavradores que passam a depender cada vez mais do
Italiano. Na verdade, quando de sua chegada já existiam vários bolicheiros na região. Com o
sistema adotado por este, aqueles bolicheiros não desapareçam, mas sim passam a ser
subordinados ao mesmo. Dentre todos, é o Italiano que estabelece um canal efetivo de
escoamento da produção agrícola da região, tanto para Cuiabá como para São Paulo, onde o
mesmo fazia sua compra anual de bens industrializados necessários na região. Portanto, ele se
transforma no fornecedor quase que exclusivo destes bens aos bolicheiros, ao mesmo tempo
em que passa a ser o comprador exclusivo da produção local, que estes compram e recolhem
em sua pequena área de atuação. Ele torna-se assim o grande negociante e atravessador da
região do Arruda.
O processo de aprofundamento da subordinação dos moradores à figura do
comerciante não passa despercebido de todos, conforme podemos ver na fala de um
proprietário idoso, referindo-se ao fim da década de 1930 e a toda a de 1940.
Antigamente era tudo de comum aqui. Aí vendeu, cara lá comprou. O Velho Liba
[Libânio] vendeu barato, a troco de nada. O velho fazia pinga, fazia açúcar, fazia
tudinho no engenho mesmo. Então chegou um italiano, o filho dele logo casou com
uma daqui, casou com uma sobrinha do velho Liba. Ele já formou uma loja, que era
sabido, e foi tocando um gado velho no velho Liba. Daí foi acabando com o velho, foi
só iludindo ele e os filhos também.
No início dos anos 1950, já completamente endividado, Libânio acaba por vender toda
a terra das Sesmarias Arruda e Cinco Oitavos para Paulo Fortunato, conseguindo assim o
perdão de suas dividas para poder morrer em paz. Como forma de garantia da continuidade de
seu grupo familiar, ele reserva a área do São Pedro (cerca de 1.000 ha), igualmente cobiçada
pelo „comprador‟ para a herança de seus filhos.28
Ao se tornar dono da Sesmaria do Arruda, Paulo Fortunato mantêm o antigo padrão de
ocupação da terra, por parte dos antigos donos e de seus agregados. Como o mesmo era
comerciante, interessava-se tanto na compra do que era produzido como em que os moradores
comprassem suas mercadorias no sistema fiado para pagar na colheita. Deste modo o mesmo
abole o pagamento da parte pelos agregados, passando, em compensação e, até como
obrigação uma vez que ele é o novo dono da terra, a ter a preferência exclusiva no momento
da venda da produção destas famílias moradoras. Um morador da antiga Sesmaria Arruda nos
explicou este processo da seguinte forma. Depois que mudou de domínio, o Paulo Fortunato
não cobrava renda de ninguém. Ele era dono de comércio, ele queria produção. Ele fornecia
28
Segundo a placa no Cemitério do Arruda, o mesmo falece em 23/09/1952. Aqui fica claro a noção de honra do
pai de família, que não pode, em hipótese alguma, deixar uma dívida para os filhos pagarem, ao mesmo tempo
em que tem a obrigação de deixar a terra de herança.
34
neste mundo, de um ano para o outro, para gente pagar ele. Então ele tinha muita gente
presa!
Com a venda da terra temos o estabelecimento de uma nova relação. Agora, tanto ex-
proprietários como agregados são todos nivelados na condição de moradores, estando
igualmente subordinados a um novo patrão.29
Gentil Dias (1978) percebe o estabelecimento
desta mesma relação entre o novo dono da terra e os antigos parceleiros/agregados e
herdeiros, na sua pesquisa em Valença-BA. Estes poderiam permanecer na terra, pois em
função de sua fragilidade, seriam facilmente removidos em caso de necessidade, enquanto
mantinham a terra ocupada, evitando a cobiça de grupos poderosos locais.
Por conseguinte, a forma mais eficiente de manter a terra sem o risco da produção
comercial (...) foi o de permitir a roceiros a sua utilização como arrendatários ou
mesmo ocupantes. (...) Assim sendo, os roceiros cumpriam uma função de escudo, sob
o qual se protegiam os interesses da C. V. I. [a companhia proprietária] (1978: 65).
Na verdade, com o fim da cobrança da parte na sesmaria Arruda não se abole a
subordinação, mas sim seu antigo ritual. Agora temos o „sistema de caderneta‟ onde o
fornecido antecipado é anotado. É a partir da combinação de uma forma moderna de controle
da dívida, agora „pela escrita‟, com o tradicional compromisso de honra do campesinato local,
„pela palavra‟, que o novo vínculo é estabelecido. Desta forma, todos são amarrados numa
espiral crescente de endividamento e subordinação. Temos, portanto, uma relativa
manutenção do habitus do grupo combinado com uma situação de mudança, onde alguns
hábitos são perdidos e substituídos por elementos da modernidade. Foi a partir desta
capacidade de transitar entre os dois mundos, o moderno e o tradicional, que Paulo Fortunato
consegue estabelecer o seu controle e hegemonia sobre grande parte da área do Distrito do
Arruda durante quase três décadas.
No entanto, este processo não se dá apenas em relação à estrutura econômica. Dando
sustentação à mesma, é estabelecido entre Paulo Fortunato e os camponeses de toda a região
uma extensa rede de compadrio, solidariedade e amizade, aos moldes da relação „Patrono-
Cliente‟ levantada por Wolf (1976; s. d.). Deis Elucy Siqueira discutindo o caso de Mambai-
GO, levanta uma relação semelhante entre os comerciantes e a população camponesa local.
Este aspecto pode ser claramente visualizado na própria forma em que é
comercializado na maioria das vezes: é „trocado‟ diretamente com os „vendeiros‟, os
quais dispõe daqueles produtos básicos que a população necessita (sal, etc., inclusive
medicamentos).
29
A maioria dos ex-herdeiros do Arruda não se mudam logo, somente o fazendo quando da chegada da fazenda
em 1973. Alguns continuam plantando nas baixadas do Rio Arruda, enquanto plantam igualmente no São Pedro,
na sua área de herança.
35
Esses vendeiros (...) dispõe de uma „freguesia‟ própria, ou seja, a relação não se
resume em uma relação comercial, mas sim envolve relações de parentesco (...);
relações de compadrio, etc.. São esses vendeiros que assumem o papel muitas vezes de
„primeiro socorro‟ nas dificuldades. São eles que, muitas vezes fornecem „ajuda‟ (em
doenças, empréstimos, etc.), bem como créditos, adiantamentos, etc., o que reforça a
relação de freguesia/amizade entre ambos (1978: 94-95).
Portanto, é a partir do estabelecimento destes bolichos, ou seja, pequenos comércios
locais no interior do Distrito do Arruda que a população deixa de comercializar diretamente
com o mercado. A partir daí começam a desaparecer as viagens das tropas do boi, com o
escoamento da produção agrícola sendo feito em caminhões fretados pelos bolicheiros, os
atravessadores da época. Luiz Eduardo Soares no caso dos “„bananenses‟ de Bom Jesus”
(1981: 80) e Deis Siqueira no caso goiano (1978), defendem que é mais vantajoso aos
pequenos produtores vender localmente sua produção, em vez de recorrer ao mercado
distante, onde poderia ser alcançado um preço melhor.
Isto pode ser explicado pelo que colocamos há pouco: são as relações que se
estabelecem entre ambos (hospedagem, crédito, etc.), onde os vendeiros fornecem um
certo tipo de proteção versus a lealdade comercial daqueles que são os „menos
privilegiados‟ na comunidade local, os pequenos produtores. Esta relação se perpetua
e é regulada por relações informais („amizade/compadrio‟), que de certa forma
garantem a continuidade da proteção e auxílio versus „lealdade comercial‟ das
respectivas freguesias, reguladas basicamente pela informalidade (Siqueira, op. cit.:
96).
Embora existissem na época vários bolichos na área do distrito, com certeza o de
Paulo Fortunato é o mais importante, conforme já vimos anteriormente, pela sua capacidade
de subordinação que o mesmo exerce sobre estes. Como poder econômico e político sempre
andam de mãos dadas, em conseqüência disto temos que este personagem acaba por assumir
um importante papel político em toda a região do Arruda. Este estabelece um vínculo eleitoral
com o grupo de Ponce de Arruda, influente político do Mato Grosso na época. Assim o filho
do Italiano se configura no „grande eleitor‟ do PSD em toda a região, convertendo a antiga
lealdade econômica/comercial em uma nova fidelidade político/eleitoral. Segundo os
moradores já bem idosos,
Naquela época não tinha nem comício. Quando era o tempo da política nós chegava
nele [Paulo Fortunato] e perguntava:
– E aí patrão, quem é o nosso candidato esse ano?
Não tinha um voto perdido, era tudo do nosso lado mesmo.
Em conversa com Paulo Fortunato, que atualmente reside em Cuiabá, o mesmo confirmou o
processo acima descrito, acrescentando que:
Lá no Arruda todo era 614 votos. Era tudo pro partido do Ponce de Arruda, que nós
36
acompanhava ele na política. Nós nunca falhou em apoiar ele, quando era candidato
a governador ou em quem ele indicava para prefeito de Rosário. Não tinha nada de
comício nem festa. Só no dia da eleição, que depois que a urna ia embora, eu matava
umas duas vacas e a festa rolava até o outro dia.
Temos assim, claramente associado à pessoa política de Paulo Fortunato, o nosso
patrão para os lavradores do Arruda, a figura do „notável‟ levantado por Mendras. Este é
aquele que fala a linguagem dupla, a dos eleitores e a dos escritórios (novamente o trânsito
entre o tradicional e o moderno), beneficiando-se daí para extrair vantagens para si.
Esse papel político global tem sido desempenhado, há mais de três séculos na França,
por aqueles aos quais se convencionou chamar de notáveis. (...) Cada um pode limitar-
se a desempenhar seu poder profissional, mas pode também utilizar esse papel, os
contatos e as relações pessoais que ele sucita, a fim de construir para si uma rede de
influência e um poder de notável. Influência e poder tendem sempre para a globalidade
e, como conseqüência, um verdadeiro poder nunca é só político, só econômico, só
social, mas sempre é potencialmente os três. A personalização das relações é sempre
necessária à sociedade de interconhecimento (1978: 125-126).
É a partir desta posição de ligação estreita com o grupo que controla o poder no estado
e na prefeitura que o mesmo se transforma no virtual representante destes poderes na
localidade. É unicamente a partir dele que chegam todos os „benefícios‟ como estrada, escola,
etc. Desnecessário dizer que a sede do distrito se localiza no patrimônio do Arruda, situado
dentro de suas terras. Mais desnecessário ainda é colocar que é na escola, trazida por Paulo
Fortunato e construída ao lado de sua casa, que temos a única seção eleitoral do Distrito do
Arruda.
Este tempo é lembrado pelos lavradores como um verdadeiro tempo de abundância,
um tempo de muita produção de grãos, principalmente de arroz, que é comprado por Paulo
Fortunato e vendido para Cuiabá e para São Paulo. Segundo um de seus inúmeros afilhados
na região, morador do São Pedro:
Só para você ter uma idéia, na década de 50, que meu padrinho [Paulo Fortunato]
ainda era ali [aponta para o Arruda], eu me lembro bem que foi em 56, 57, foi
produzido aqui 54.000 sacas de arroz.
Aonde?
Aqui nessa região, um pouquinho de cada um, todo mundo plantava. Nesse tempo,
essa produção é aqui em roda dessa região toda, Arruda, São Pedro, Pindaival,
Cedral, tudinho. Isso aqui era um só, tudo comum.30
30
Temos nesta fala um interessante ponto. A região é pensada como um todo, no que se refere ao espaço,
mostrando uma visão englobante. Contudo, esta visão englobante igualmente se expressa no vetor tempo, devido
a presença neste discurso da localidade de São Pedro. Esta efetivamente não existia naquele tempo (anos 50),
vindo a ser ocupado apenas depois da década de 1970, o que indica uma clara sobreposição de memórias
distintas.
37
Outro morador do Espia completa:
Em 1963 saiu daqui 36.000 sacos de arroz, produzido pelo pequeno. Ele [Paulo
Fortunato] era um bolicheiro e pegava de todo lado. E não era só ele, bem ali na Poça
de Anta tinha outro bolicheiro que chamava Fernando, e ali em baixo no Buriti
também. (...) Só no arroz de qualidade, 36.000 sacos. Aqui sempre foi um lugar muito
rico. Só parou de produzir depois que passou a outro movimento.31
Fazendeiro hoje é
de boi.
Paulo Fortunato corroborou esta visão, colocando que:
O povo antigo vivia só da lavoura. O arroz era o principal da plantação, depois
feijão, milho, rama e cana. Parava caminhão, cada um carregava com 100 sacos [de
arroz]. Na safra saia um diário, por semana saia 400, 500 sacos, não só do Arruda
[lugar], mas de toda a região.
Ao conversarmos com os técnicos da EMPAER de Rosário Oeste sobre este período
de grande produção de grãos na região do Arruda, os mesmos alegaram não só o
desconhecimento do fato como a imprecisão do mesmo. Buscando uma justificativa para se
contrapor ao discurso de abundância camponesa, estes alegaram que as técnicas de produção
tradicionais32
não possibilitariam a produção de tamanha quantidade de arroz num mesmo
ano. Aliado a este argumento, foi aventado à possibilidade de que os camponeses do Arruda
estivessem confundindo este fato (ocorrido nas décadas de 1950 e 1960), com o atual
escoamento da produção de arroz das fazendas pertencentes à migrantes sulistas, do vizinho
Distrito do Marzagão. Segundo os técnicos, esta „confusão‟ se daria devido ao fato de que este
escoamento da produção vizinha se faz por estradas que cortam o Distrito do Arruda.
Podemos perceber que esta visão se mostra extremamente preconceituosa ao tentar
estigmatizar duplamente os camponeses do Arruda: como „incapazes‟ de produzir muito e
como „confusos‟ no conhecimento de sua própria história. Como contraponto a esta visão
apresentamos aqui dois elementos. Em primeiro lugar temos os discursos acima elencados,
colhidos não só entre os camponeses que „produziam muito‟, como confirmado pelo
comerciante que „comprava e revendia esta grande produção‟. Além disto, temos o registro
fotográfico da antiga comercialização de arroz, retirado de um antigo álbum de família que,
fala por si só (conferir pagina 53).
Portanto, temos que a partir do saber tradicional dos lavradores da região, aliado às
facilidades de acesso ao mercado via bolicheiros atravessadores, a produção é aumentada
31
Este termo movimento denota uma clara percepção local de mudança. Temos assim diversos movimentos, o
relativo ao tempo da terra comum, ao espremimento, e o atual, relacionado com a hegemonia do fazendeiro
sobre a região. 32
Para os técnicos da EMPAER, os camponeses das áreas de sesmarias são classificados como produtores
tradicionais. Embora para eles estes saibam plantar, a técnica de plantio ai utilizada é primitiva e improdutiva,
não passando de uma mera cópia da mesma técnica aplicada no tempo de seus avos.
38
numa escala nunca vista antes. Apesar da intensa subordinação ao novo sistema de compra e
venda, o modo de vida tradicional, com a relação moral com a terra e com a produção do
grupo familiar, ainda se faz presente.33
Neste tempo ainda temos claramente a produção para
o autoconsumo e manutenção do grupo familiar ditando a lógica da organização da
propriedade. A produção de alimentos para o mercado, aqui subordinada a esta lógica,
somente passaria a ser o modo predominante após os dramáticos momentos vivido pelo grupo
na década de 1970, para onde já é momento de seguirmos.
O espremimento: o tempo de cada um para si
A política em Mato Grosso, muito mais do que com votos, sempre foi escrita com
sangue.34
Em função de sua atuação, Paulo Fortunato começa a sofrer pressão dos seus
adversários políticos e em 1963 resolve se mudar do Arruda, vendendo a área para Propício,
um político de Rosário. Este mantém todo o povo na terra, pois interessava em reverter para
si os votos da região. No entanto, parece que seu plano não deu muito certo.
Paulo Fortunato trabalhou, trabalhou e ficou dono daqui. Então por causa de política
ele negociou com o Propício. Esse tinha vontade de ser prefeito em Rosário e aqui era
um canto, uma fonte, que sempre segurou uma certa posição nas eleições, por causa
de partido. Então ele achou que se comprasse ele tirava a posse, mas ele não pensou.
Ele é muito estudado, formado, não sei o que, mas só que ele não pensou que nós
negocia uma ponta de terra, nós negocia um gado, nós pode negociar uma casa, mas
o povo não é negociado. E ele pensou que era, então ele comprou, entrou na política e
perdeu. Entrou na política de novo [quatro anos depois] e tornou a perder. Aí ele
descabriou, que ele negociou com esse pessoal, com o povo de São Paulo.
Propício morava em Rosário e, embora mantendo o povo nas suas terras, não se
preocupou em manter os vínculos de lealdade e solidariedade que solidificavam a antiga
subordinação econômica e política dos moradores. Por isso não consegue realizar seus
intentos, uma vez que não conseguiu reproduzir a mesma fidelidade eleitoral do tempo
anterior. Assim, o mesmo se desilude da região e procura vender sua propriedade no Arruda.
É deste modo que em 1973 José Aparecido Ribeiro, de São Paulo, aparece em nossa atual
história, comprando de Propício as Sesmarias Arruda, Bocãina e Cinco Oitavos. Temos então
33
Esta relação e esta forma de produção serão discutida nos capítulos segundo e terceiro, respectivamente. 34
Em 1996, durante a campanha política para a Prefeitura de Santa Terezinha-MT, fomos seqüestrados por um
capanga do candidato a prefeito do PFL. O pistoleiro nos levou amarrado até a casa daquele e, depois de muitas
ameaças, fomos soltos. Tudo isso decorreu porque quatro anos antes, havíamos fotografado e publicado, em um
jornal, o estado dos veículos e máquinas da prefeitura, verdadeiras sucatas deixadas pela então derrotada
administração de seu partido (o mesmo era Secretário de Obras à época). Apesar de tudo, não podemos reclamar
da sorte. Nem todos costumam ter o mesmo destino em casos parecidos a estes.
39
a entrada na cena da Agropecuária Paribó e o início do processo de espremimento.
O período dos anos 70 e 80 de século XX foi de extrema tensão em toda a área de
sesmarias da Baixada Cuiabana.35
Temos ai colocado a disputa entre dois modos de vida
distintos: o modo de vida urbano, moderno e individualista e o modo de vida camponês,
tradicional e holista. O que ocorre neste período em toda a região da Baixada Cuiabana é, na
verdade, uma verdadeira luta pela organização do espaço regional imposto pela visão
dominante, oriunda da economia urbana central (Jacobs, 1972, 1985). Nos conflitos
generalizados que se sucederam, temos de um lado herdeiros, posseiros e sem terras, e de
outro, fazendeiros, grileiros e órgãos governamentais.36
Muitos autores já se debruçaram
sobre este dramático período da nossa história, 37
portanto, não cabe aqui aprofundá-lo de uma
forma geral. Destaco apenas os pontos que mais marcaram este período: construção de infra-
estrutura (estradas e energia elétrica); atração de massas de migrantes;38
e instalação de
grandes fazendas (Costa, 1994: 28-29)
Com a instalação da fazenda muda-se a forma de subordinação do campesinato local.
Agora não interessa ao fazendeiro a compra de excedentes da produção agrícola local. O novo
projeto é a criação extensiva de gado em imensas áreas de pastagens formadas. Como gado e
gente não costumam se combinar, além do fato de que o primeiro dá mais lucro que o
segundo para o fazendeiro, é o povo antigo morador, a maioria nascida e criada há muito na
região, que devem desocupar a terra. Um morador da Comunidade Espia, e vizinho da
Fazenda Paribó nos colocou a situação que daí adveio.
Aí fez o inventário da terra comum. Os irmão foram vendendo para a Paribó. Na
medição dela, foi medido o meu também... ofereceram compra. Eu é que não aceitei...
Arruda produzia muito grão, tinha muita família.
E quando que ela foi vendida?
Foi vendida em 73. A fazenda comprou Arruda, Cinco Oitavos, Paribó Capão Seco,
Lambari.
35
Nas décadas de 1940 e 1950 tivemos um processo semelhante de valorização das terras, conflitos, e espulsão
de camponeses na região de Cuiabá Rio Abaixo, onde é recorrente na memória local a atuação do Estado Novo
como o promotor deste processo. Já na região de Cuiabá Rio Acima a memória local não reteve a lembrança de
nenhum conflito mais sério neste período, somente registrando os conflitos da década de 1970. A respeito
daquele turbulento processo na região pantaneira, consultar (Lenharo, 1982; Bandeira et al, 1993). 36
Estes blocos não são tão rígidos, como parecem. Há casos, por exemplo, em que o INTERMAT assenta sem
terras, em áreas de sesmarias, expropriando terra dos herdeiros, o que cria antagonismo entre estes dois
segmentos. 37
A cerca deste turbulento período no campo, em Mato Grosso, temos Silva & Silva (1995), Amoroso (1996),
Ribeiro (1998), Silva, J. (1998) e Castro (2001), que analisam as transformações na Baixada Cuiabana. Esterci
(1987), Lisansky (1990) e Barrozo (1993) voltam-se para o norte do estado, discutindo a luta de posseiros e
peões escravizados contra o grande latifúndio. Bandeira (1988) analisa a reinvasão branca no território da
comunidade negra de Vila Bela. Em relação à entrada do capital na região amazônica como um todo, temos
Velho (1972, 1976), Ianni (1978), Soares (1981), Martins (1991) e Costa (1993). 38
Mireya Suárez (1982) coloca o início deste processo de atração de massas migrantes para o Mato Grosso
(município de Barra do Garças, região do Araguaia) na década de 60.
40
E os moradores destas sesmarias, saíram todos?
Arruda quando vendeu, todos saíram. Tiveram que sair, não é. Tinham vendido... Saiu
os herdeiro e os que não eram também, os que não tinha terra.
Os agregados?
Isso, os agregados. Essa fazenda agora é dos Ribeiro...39
Este processo de desocupação, fracionamento e demarcação de grandes áreas
camponesas é extensivo a toda a Baixada Cuiabana durante este período. No entanto, e este é
um padrão regional, esta „venda‟ acima referida não se fez espontaneamente. Na verdade ele é
antecedido de várias formas de pressão sobre os sesmeiros. Com a abertura da BR 364/163,
Cuiabá-Santarém,40
que corta a região denominada Cuiabá Rio Acima no sentido sul/norte,
temos a chegada da grande propriedade. É o tempo do „discurso do progresso‟. Na lógica
deste discurso, a apropriação de comum da terra pelos camponeses e a produção de alimentos
são vistos como um atraso, um empecilho ao estabelecimento da grande fazenda de gado e
das lavouras mecanizadas de soja.41
Esta pressão, uma verdadeira „violência oficial e escondida‟ (Silva, J., 1998) nos foi
contada pelos antigos moradores da região do Arruda, expulsos da área e atualmente residindo
em Rosário, da seguinte forma.
No Espia tinha muito morador, foi desacampando, desacampando. Os que tinha
algum direito foi vendendo para a [fazenda] Paribó... O que escoou esse povão daqui
foi a firma, esse Arruda era cheio de gente.
Quando eles compraram uma localidade como Arruda ou Bocãina, por exemplo, tinha
um punhado de gente que vivia ali mas não era dono [os agregados]. Então eles
comprou, assegurou a firma e mandou aquele povo. Eles [os moradores] arrumou a
malinha e botou na cabeça. E ele [o gerente] tacava fogo naqueles barracos e
queimava.
Esta compra referida foi realizada a partir de todo tipo de pressão em cima dos
moradores. Estas vão desde boatos 42
a violência física, passando também pela cooptação de
membros do grupo para desestabilizá-lo.43
Os agregados eram simplesmente convidados a
39
Temos nesta fala uma relação em que a visão tradicional de patrimônio pertencente a uma família, é aplicada à
fazenda moderna, que é denominada como dos Ribeiros. 40
Segundo o informe de um policial rodoviário federal: ... são duas BRs sobrepostas neste trecho, a 364 e a 163.
Ele não soube precisar o ano que a construção da mesma chega a Rosário Oeste mas, adiantou que: ... foi em
1974 que as obras chegaram em Cuiabá, vindo de Rondonópolis. Foi a partir daí, que ela segue rumo ao
‘nortão’, passando em Rosário por volta de 74 ou 75. 41
Retomaremos a este ponto na conclusão, quando nos aprofundaremos na análise do mesmo. 42
Sueli Castro relatou em conversa que em Baús, no cerne do conflito, ocorreu um boato de que a terra da
sesmaria havia ido a leilão, pelo fato de que os impostos não haviam sido mais pagos. Afirmou-se assim que o
governo tomou a terra de volta, com a conseqüente perda do direito dos herdeiros a mesma. 43
A título de comparação citamos o caso de Santa Terezinha, situada na região do Araguaia-MT e, uma área de
colonização espontânea de fronteira por posseiros oriundos do nordeste desde 1908. Lá a Fazenda Codeara, que
chegou como „dona do mundo‟ em 1966, embora usando igualmente de pressão, mentiras e boatos, aplicou uma
41
sair, os herdeiros dono de direitos na área que estavam ausentes eram simplesmente
expropriados. Deste modo, os moradores com direito foram sendo cercados, e no dizer deles:
gerente chegava e dizia, nós já compramos tudo em volta e vamos cercar, se não vender, vai
perder o direito. Com as terras sendo cercadas pela derrubada da fazenda e com o
esmorecimento de vários moradores: nós não teve opção, teve que vender, do jeito que eles
queria, a troco de nada. A fala de um casal expulso, atualmente residindo em Rosário, é
esclarecedor deste processo.
Nós vendemos a terra para um tubarão que estava comprando toda a terra. Então nós
era pequenino e não tem força, não sabe de nada. Luis Paribó [o gerente] mandava:
sai, sai, sai, sai do lugar, ele tocava fogo. Ele botou o agrimensor e tinha um medidor,
topógrafo, o Jarbas, que ia medindo, medindo toda terra. Quem tinha pouco hectares
o que aconteceu, eles dobraram e foi pegando de todo mundo, todo mundo dentro.
Aqui era cheio de população, Bocãina, Arruda, tinha gente para todo lado.
Então botaram o agrimensor, eles botaram os empreiteiros, roçou tudinho, inclusive
minha roça. Naquele tempo o povo ficava quieto, hoje tem sindicato, mas naquele
tempo o povo era bobo. Eles roçou tudo e chegou o dia de por fogo em agosto. Então
ele avisou a todo mundo: olha, muda, muda todo mundo que tiver morando, porque
nós vamos tocar fogo. Papai tinha vendido, mas nós não. Roubaram tudo, quem tinha
aquele pedacinho, roubaram tudinho, mesmo quem tinha escritura eles pegaram tudo.
Eles tocaram fogo quando todos dormiam, ficou só cinza. Eu mudei foi de noite, com a
roupa do corpo.
Um dos herdeiros que permaneceu na área, atual morador do São Pedro, nos explicou
o que significava o dobrar a terra comprada, conforme referido na fala acima. Essa Paribó
mesmo comprava 50, 60 ha, era 100, 200 que cercava. Cercava um pouco meio na marra, um
outro obrigava o povo e não podia fazer nada. A partir destes meios a fazenda se expande,
comprando todas as sesmarias vizinhas do núcleo originalmente comprado de Propício. É em
1976 que ela compra toda a Sesmaria Lambari e começa a entrar na área do vizinho Cedral.44
Muitos dos herdeiros desta localidade, igualmente esmorecidos, vendem seus direitos.
No entanto, depois de muita perda de território, um grupo resolve resistir. Isso foi devido a
terra ser titulada e registrada em cartório e um dos moradores ter obtido ganho de causa na
violenta repressão que extrapolou todos os limites. A mesma além de tomar as terras de campo, utilizadas como
área comunal, de tentar tomar as posses dos lavradores que ai habitavam a algumas gerações, cortou todos os
caminhos entre a zona rural e a cidade, ilhando-a e, por fim, resolveu que esta lhe pertencia e deveria ser
desocupada „pelos invasores‟, para que a mesma ai implantasse a sua sede. A resistência camponesa dura até
1972, quando reagem „na bala‟, a uma tentativa da fazenda de derrubar os alicerces da construção da Farmácia
Comunitária dentro da cidade. A partir daí, temos a violentíssima intervenção do Exército e da Polícia Federal, o
que dura até o desfecho, já no final deste ano. No acordo que é então celebrado, a Codeara é enfim obrigada a
ceder o título de propriedade às 120 famílias de posseiros, a reconhecer a jurisdição da Prefeitura de Luciara
sobre o núcleo urbano e, por fim, a desobstruir todos os caminhos que impediam o direito de ir e vir dos
moradores locais, fato este que só cumpriu em 1983, devido a uma liminar judicial. Para maiores detalhes,
conferir (Esterci, 1987; Almeida, 1988; Lizanski, 1990; Bertholdi, 1993). 44
Um lavador do Cedral, em uma conversa sobre o espremimento nos disse que: Naquele tempo era os grandes
que invadia os pequenos, agora é os pequenos que invadem os grandes. Pra você ver. Agora o vento mudou!
42
Justiça contra a fazenda.45
Esta ação ocorreu por que um herdeiro no Cedral tinha comprado
250 ha dentro da Sesmaria Lambari e havia registrado a transação no cartório de Rosário.
Como a fazenda se dizia dona de toda a Lambari, a disputa se deu em torno deste pequeno
pedaço da mesma. O morador saiu vitorioso na Justiça, fato que levantou o moral de todos na
localidade e, a partir daí, os mesmos passaram a resistir à voracidade da Paribó. É deste modo
que a fazenda, pela primeira vez em três anos, é obrigada a interromper seu processo de
expansão diante da resistência dos moradores do Cedral.
Eles foram comprando, ele comprava 100 ha e pegava 800 ha. Então o povo tinha
medo, o dinheiro aqui, naquele tempo, falava mais alto. Tinha povo de vender a terra
por nada, para não perder. Só que quando eles chegaram aqui, eles pararam. Aqui
eles não acharam gente para espremer, o povo ia na Justiça, que nós tinha documento
e medimos [a terra deles].
Conforme vimos anteriormente, o discurso da memória local registra desde as origens
do grupo uma relação deste com os registros escritos de sua propriedade. Não vimos os
documentos originais da Sesmaria Arruda nem da Espia (antiga Cinco Oitavos), que foram
vendidas e, possivelment, o documento foi entregue para o comprador no ato da compra, não
ficando nenhuma cópia com os antigos herdeiros (ou os mesmos não quiseram nos mostrar).
No entanto, vimos e transcrevemos o título de propriedade conferido pelo Estado de Mato
Grosso da área da Sesmaria Morro Azul, atual Cedral, na posse de um dos herdeiros mais
velhos do grupo (exatamente o morador que entrou na Justiça no caso acima citado).
Este documento refere-se ao Processo de Revalidação das terras do estado, na época
da implantação da República, ao qual a grande maioria das terras de herdeiros da Baixada
Cuiabana se submeteu. Temos assim que este não é um padrão isolado da região do Arruda.
Na grande maioria das vezes podemos perceber esta prática junto aos atuais herdeiros em suas
áreas, enquanto em algumas outras, este vínculo com sua origem foi perdido.
A título de contraponto, neste segundo bloco temos o caso de Mata Cavalos que é
emblemático. Nesta localidade, situada no município de Nossa Senhora do Livramento,
distante 120 Km do Arruda, temos que o documento original de doação da ex-senhora a seus
escravos em 1883 nunca passou por qualquer validação legal, fato que levou na década de
1940 a sua contestação na Justiça por um grileiro, que acaba por tomar a maior parte das
terras (Bandeira & Sodré, 1993).46
45
Retomando o caso de Santa Terezinha, por nós estudado, há ai uma grande diferença. A resistência lá se deu
devido à ação decidida da Igreja Católica e, contra todo o aparato legal. Ao contrário, na região do Arruda,
algumas brechas legais foram abertas pelos herdeiros que a época, conforme os mesmos afirmaram, não
contavam com o apoio de ninguém. 46
Conferir Luiz Eduardo Soares (1981) a cerca de um caso extremamente semelhante no Maranhão.
43
No entanto, e aparentemente como um padrão local da região do Arruda, uma vez que
não foi levantado ainda em nenhum trabalho a que tivemos acesso, a memória local é
recorrente no sentido de que embora a terra fosse de uso comum e não delimitada e fracionada
na prática (um padrão geral da Baixada Cuiabana), geralmente o era na Justiça e em cartório a
cada inventário (isso sim específico do Arruda). Não saia daí um novo título (somente existem
os títulos originais), mas sim uma averbação do direito de todos os herdeiros a uma área
específica dentro do grande patrimônio. Igualmente, de todos os moradores com que
conversamos e que se referiram a uma compra do direito de algum parente (das irmãs, tias ou
qualquer outro que se ausenta da área na atualidade), os mesmos foram enfáticos em afirmar
que esta compra estava registrada no cartório de Rosário, enquanto uma declaração de compra
e venda (conseguimos observar umas poucas destas declarações).
Esta relação com a legalidade da documentação do patrimônio fica mais evidente
ainda com a questão do pagamento dos impostos. A única data a que os lavradores da região
do Arruda declararam que iam regularmente a Rosário era no mês de março, em função do
pagamento do imposto da terra que vencia neste mês. Este fato, assim como o zelo pela
manutenção e atualização dos documentos é igualmente recorrente na maior parte da região,
fazendo inequivocamente parte do habitus camponês da Baixada Cuiabana.
Desta forma, apesar dos lavradores da região do Arruda estarem imersos num universo
dominado pela oralidade, podemos afirmar que esta comunidade manteve, desde a sua
origem, um vínculo estreito com a legalidade formal e escrita.47
Se não todos, pelo menos
alguns herdeiros (os camponeses fortes que tinham constante acesso ao mercado) tinham
alguma forma de acesso a este código moderno e legal, enquanto a maioria dos camponeses
não o tinha, porque conforme vimos num dos discursos acima, „alguns eram bobos e foram
enganados‟. Portanto, temos uma situação onde prevalece a “orality”, com alguma
possibilidade de trânsito entre esta perspectiva e a “literacy” (Ong, 1982). E, este é um
importante ponto que diferencia os camponeses da Baixada Cuiabana daqueles levantados por
Ellen Woortmann (1983), Luiz Eduardo Soares (1981), Neide Esterci (1987) e Almeida
(1988), entre outros, onde se percebe uma estranheza ao código burocrático-legal.
Em função do tempo escasso que tivemos para visitar o campo de estudo, optamos por
nos concentrarmos no discurso camponês, ficando a pesquisa nos cartórios e nos arquivos
públicos prejudicada. Assim, tivemos acesso a uns poucos documentos que existiam na área e
que os moradores se dignavam a nos mostrar. Uma pesquisa cartorial mais precisa poderia,
47
Não podemos afirmar que isso é um dado geral e nem ancestral mas, a maioria dos lavradores com quem
conversamos era alfabetizada.
44
com certeza, trazer uma luz maior sobre este ponto aqui discutido.48
No entanto, dois
elementos da memória, um bem antigo e outro mais recente, contribuem para reforçar esta
nossa colocação.
Um antigo morador da Sesmaria Arruda, atualmente residindo em Cuiabá, nos contou
que uma vez, na década de 1930, andou pela área da Sesmaria Arruda um certo Tenente
Benjamim. Este olhou os arredores e visitou os moradores e, segundo nosso informante, ele
deve ter achado que os moradores daquele tempo eram humildes. Cerca de um ano após deste
episódio, os moradores ficaram sabendo que o dito tenente havia entrado no Instituto de
Terras com um requerimento de toda a área para si. O recurso foi ir à Justiça e provar que
aquela terra já tinha um dono legal. E qual não foi nossa surpresa quando o ex-morador nos
contou que a causa foi ganha, devido aquela parte escrita pelo topógrafo, que incluiu a
Ressaca [antigo nome do Arruda] na escritura de Padre Tavares.49
Assim, partindo desta
escritura original e das declarações de compra e venda dos diversos donos, chegou-se aos
legítimos donos na época do Processo. Finalizando, coube ao infortunado tenente, se mandar
para a Chapada [dos Guimarães] para tentar requerer [grilar] outra área.
O segundo exemplo que aqui levantamos é do tempo do espremimento. O discurso
camponês referente a este período ressalta a questão de que a fazenda expulsava os agregados
e „comprava o direito‟ dos herdeiros, mesmo que, conforme já levantamos anteriormente,
tratava-se para estes de uma „venda forçada‟ e de uma „compra a preço irrisório‟. Alguns
herdeiros expulsos e atualmente residindo em Rosário nos afirmaram que durante este
processo de espremimento os representantes da Fazenda Paribó eram insistentes na pedição
dos documentos. Ele [o gerente] dizia todo tempo que nós, os moradores, tinha que entregar
os documentos da terra para que ele resolvesse a questão pro nosso bem. Muitos foram bobo
e entregaram, nós nunca que entregamos.
O caso do recurso à Justiça no início do século XX, contra o Tenente Benjamin,
demonstra que o acesso à mesma por causa da área da Sesmaria Lambari em 1976 não é uma
novidade na comunidade. Este foi sim um ato de coragem dos moradores do Cedral que
estavam convencidos da necessidade de barrar a ganância da Fazenda Paribó e utilizaram-se
do único meio conhecido ao seu alcance. Já no segundo caso, embora não tenha sobrado
ninguém dentro do perímetro da Fazenda Paribó, o que indica que tanto agregados como
herdeiros acabaram perdendo a terra de qualquer jeito, estes discursos expressam que a
48
Este é um ponto em que nos debruçaremos prioritariamente, assim que retornarmos a campo, para o
aprofundamento desta pesquisa. Pensamos ser interessante aprofundar esta relação local, com o mundo dos
papéis, comparando esta prática com as comunidades vizinhas. 49
Conferir discussão sobre a sesmaria de Padre Tavares no início deste capítulo.
45
fazenda, de certa forma, teve uma preocupação com o fato de que os herdeiros tinham
documentos e deixavam isto claro para seus agentes. Foi desta forma que o único morador do
Espia que ainda reside por lá conseguiu permanecer na área. Este resistiu e nunca entregou o
seu documento, alegando que o mesmo estava registrado no cartório de Rosário. Por fim, a
fazenda teve que cercar sua área de 60 ha encostada com a mesma.
No entanto, apesar destas pequenas vitórias, foi desta forma que os moradores do
Arruda, do Espia e do Cedral foram espremidos e perderam o acesso as áreas de mata das
beiras dos rios e córregos. Foi justamente nestas áreas: na matas em torno do Morro Azul e
dos córregos Cedral, Macaco e Vertente, no caso da Sesmaria Cedral; nas baixadas dos
córregos do Bugre e Espia, na Sesmaria Espia; e na beira do rio Arruda, no caso das
Sesmarias Arruda e Bocãina; que a Agropecuária Paribó concentrou o processo de „compra‟ e
expropriação dos moradores. Deste modo, sobraram aos herdeiros do Cedral as áreas em torno
do próprio bairro rural que, embora tenha algumas áreas de terra boa de mata, é
predominantemente constituído de campos e cerrados. Já para os antigos herdeiros do Arruda,
somente sobrou a área do São Pedro, com pouquíssima mata e muito campo e cerrado,
propícios à criação de gado. O Espia praticamente deixa de ser uma comunidade, tendo
sobrado somente uma família extensa na mesma, com terra em situação parecida à de seus
vizinhos.50
Contudo, não são apenas os moradores que são expulsos neste processo. Outro
elemento que ocorre a partir do espremimento é a „expulsão indireta‟ dos vendeiros ou
bolicheiros da área. Com a saída em massa de lavradores e a perda das melhores terras para se
produzir grãos, aliado à abertura das estradas o que atrai atravessadores de fora, inicialmente
de Cuiabá ou de Rosário, temos que as condições de reprodução do antigo sistema de compra
a verde aliada a uma relação solidária/dependente se desarticula. A partir de um processo
paulatino temos a substituição deste sistema, até a sua total impossibilidade na atualidade.
Hoje, são os atravessadores de Cuiabá e do Nortão51
que estão toda a semana na porta
da casa para negociar. Deste modo, não temos mais os mesmos vínculos de solidariedade e
lealdade entre lavradores e atravessadores. Como na região já existe um orelhão público ou
mesmo diversos telefones celulares, fica fácil a estes a comunicação com aqueles e a
combinação das condições de compra antecipadamente. Deste modo, a relação comercial se
dá na atualidade, de uma maneira geral, pela „escolha‟ da melhor condição de venda por parte
50
Retomaremos este ponto no capítulo quinto, quando discutiremos as conseqüências do espremimento no
processo de colocação das roças e na organização da propriedade. 51
São comerciantes oriundos da área produtora de soja, situada ao norte do estado, que compram os produtos
locais destinados à venda para a alimentação da população destas áreas.
46
dos lavradores.
Apesar de todos os elementos em contrário, o modo de vida comum ainda consegue se
reproduzir por mais ou menos uma década, embora neste período já comecem a aparecer às
fissuras internas ao mesmo. Na década de 1970 se acende o estopim da mudança com o
espremimento, onde temos a expropriação e tomada de terras dos camponeses e aparece a
primeira cerca da localidade. Esta é a cerca de arame que delimita toda a Fazenda Paribó.
Uma „cerca exclusiva‟, no sentido que é um marco da vitória da exclusão dos camponeses da
área. No entanto, foi na década de 1980 que o modo de vida comum explode, provocando uma
grande mudança. Neste processo o grau de solidariedade camponesa nas terras de uso comum
e os vínculos sólidos que eles mantinham entre si (Almeida, 1987) se afrouxam, permitindo a
introdução de uma lógica nova e estranha no interior de seu território, o cercamento. No
Cedral temos a seguinte fala situando o processo no seu tempo correto.
E esse tempo da „terra de comum‟ terminou quando?
Olha isso foi na década de 80 para cá, que teve a retalhação, um para lá outro para
cá. Aqui para nós já foi na década de 90, que nós fizemos a medição.
Vamos conferir a fala de uma moradora do Pindaival à cerca deste processo.52
Cheguei aqui no Pindaival em 52.
E que idade a senhora tinha?
Naquela época tava com 16 anos. Nasci em Arruda, casei e vim morar aqui. Naquele
tempo era bom, criava vaca em liberdade, sem separação.
E quando isto mudou?
Foi em 78. Nessa época os próprios moradores mediram. Meu sogro teve sete filhos e
dividiu para cada 314 ha. Minha sogra morreu em 63, em 64 fez o inventário e
marcou só de palavra, então cada um foi cercando o seu pedaço.
Cercou logo que dividiu?
Não, foi com o tempo, porque ninguém tinha condição de cercar logo.
E porque foi que dividiu?
Dividiu porque alguns queriam vender... Para um não entrar na terra do outra. Foi
assim: vamos tirar cada um para si, cada um o seu pedaço. (...) Da família, só o meu
não ta dividido... Acindino, cunhado meu, ainda tem mais ou menos 50 ha. O Agripino
tem mais, ele ainda tem os filhos na terra, ele vendeu só 60 ha. O meu ta inteiro, uma
filha vendeu para sobrinho... Mas ta dentro da família.
Temos assim num primeiro momento deste novo processo de cercamento a ratalhação
da área, ou seja, a medição e distribuição do patrimônio que o conjunto dos grupos familiares
aparentados ainda controlavam para cada grupo familiar individual. A cerca em si foi um
evento que demora muito tempo para ser uma realidade interna à maioria dos camponeses. Ela
vai surgir na nova propriedade dividida dos camponeses mais fortes, dentro do contesto da
52
O Pindaival é um bairro rural vizinho do São Pedro e, fica na calha do Rio Arruda. Embora não tenha sido
espremido pela Paribó, o foi por outros agentes e, participa nos anos 1980 do mesmo processo de cercamento.
47
mudança do processo produtivo, quando estes se especializam na criação de gado. São estes
os primeiros a cercar toda a sua propriedade, num processo paulatino e demorado, de modo a
conter dentro da mesma o seu gado. Como os lavradores da região do Arruda não fazem
financiamento no banco, uma vez que quando se faz o empréstimo a gente não é mais dono, a
gente vira o gerente, que o dono fica sendo o Banco, eles acabam por vender paulatinamente,
uma parte da criação para investir na cerca, pouco a pouco. Temos, portanto, o segundo tipo
de cerca a aparecer na região do Arruda, a „cerca inclusiva‟, no sentido de incluir a produção e
o grupo familiar na sua propriedade. Nos camponeses fracos, até a atualidade, a cerca não é
uma realidade tão expressiva, conforme veremos mais adiante.53
Outro depoimento de um herdeiro da Comunidade São Pedro vem no mesmo sentido,
acrescentando um dado novo.
Tempo comum, quando eu era criança.
E quando mudou? Quando dividiu a terra?
Ha! Isso foi no tempo do Figueiredo. Foi ele que inventou o tal de usucapião. Aí o
povo ficou com medo porque quem pegar [terra para plantar pagando renda], ia
requerer. Naquele tempo, mesmo quem não era parente tinha acesso. Era só chegar
no dono e pedir: Me dá um pedaço para plantar? E então ele pagava um
arrendamentozinho, era um precinho assim, simbólico. Naquela época respeitava,
hoje o pessoal ta ficando sabido, bota uma rocinha e já quer requerer a terra. É o tal
do usucapião.
Já uma moradora da cidade, explicou porque o povo parcelou a terra.
Nessa época foi o tempo do êxodo rural. Rosário era uma cidadezinha assim,
inexpressiva. Aí de repente chegou muita gente de fora e virou essa cidade que você ta
vendo.
De onde veio este pessoal?
Neste tempo teve muito conflito de terra, o povo foi expulso da terra e acabou aqui
nas cidades, em Cuiabá, Várzea Grande... Então começou nesta época o movimento
dos sem terra, o povo que invade. Aí as pessoas ficaram com medo e cercaram a terra
deles (...) A lei do povo aqui é essa, o que não ta cercado, não tem dono.
Como se percebe nestes depoimentos, o momento de ruptura definitiva, onde
assistimos a passagem do tempo da terra de comum para o tempo de cada um por si, está
situado na década de 80. Isso se dá devido a diversos fatores. Com a abertura de estradas na
década de 1970 o acessa a zona rural de toda a Baixada Cuiabana é facilitado, o que provoca o
início da valorização das terras. Assim, temos que diversos moradores das cidades ou de
outras áreas começam a comprar muita terra, para fazer chácaras de lazer ou médias fazendas
de criação de gado. Neste processo, os próprios herdeiros contribuíram para a desagregação
53
A questão da influência do cercamento nas mudanças internas do processo de trabalho da colocação da roça
será discutida no capítulo quinto.
48
do grupo, ao venderem a terra para estranhos dentro das áreas que haviam sobrado depois do
espremimento da fazenda.54
Com o desrespeito às normas tradicionais pelos próprios parentes
temos o acirramento dos conflitos internos, o que provoca a desestabilização do grupo
familiar.
Aliado a isto há um temor de que outros camponeses viessem a invadir suas terras.
Estes tanto podiam ser agregados conhecidos, mas não parentes, como os sem terras,
completos desconhecidos e vítimas do êxodo rural.55
Temia-se que estes, de má fé e com o
apoio do governo „o usucapião do Figueiredo‟, viessem a conseguir terra dentro de sua área. É
interessante notar que de acordo com o censo (IBGE, s.d.), a população urbana de Rosário
Oeste passa de 3.904 habitantes em 1970 para 7.949 em 1980. Um crescimento extraordinário
neste período, mais do que o dobro, tendência que não se manteve nos outros censos: 10.823
em 1991 e 10.406 em 1996. Este foi com certeza o destino de muitos sesmeiros de Arruda,
Paribó e Cinco Oitavos expulsos pelo espremimento.
Outro elemento mais novo e recorrente a toda a área da Baixada Cuiabana e que
contribuiu para uma posterior expropriação dos sesmeiros é o discurso da „enorme confusão
dos documentos‟. Para os ideólogos do processo de modernização, a terra há muito tempo
indivisa e sem ser submetida ao formal de partilha, além da grande imprecisão de seus limites,
impossibilitava uma titulação definitiva.56
Para estes, devido a este fator não seria vantajoso
aos novos migrantes sulistas comprar áreas na Baixada. Justificou-se desta maneira, as
tentativas de se titular as terras de sesmarias em toda a região, primeiro através do INCRA e,
já na atualidade, pelo INTERMAT, num processo ilegal que desconhece os antigos
documentos oficiais para impor uma nova e arbitrária titulação das terras.
É a conjugação destes fatores que obriga muitos grupos familiares a um esforço de
cercar a sua parcela individualmente. Aos seus olhos esta é a única forma de defendê-la de
outros camponeses estranhos ao grupo, assim como contra a investida dos órgãos agrários
governamentais. Isto vem demonstrar que o grupo percebeu rapidamente a nova lógica
54
Luiz Eduardo Soares levanta a mesma problemática da participação dos próprios camponeses do grupo, no
processo de dissolução, retalhamento e venda do Patrimônio de Bom Jesus, no Maranhão “ante propostas
atraentes de „barões‟ poderosos” (1981: 54). Da mesma forma Maristela Andrade coloca, a cerca da Terra dos
Índios da Baixada Maranhense que, no processo de expropriação de seu território comunal ocorre o acirramento
das tensões dentro do grupo, “já que os que vendem as terras, muito embora ligados a agentes externos, são
elementos do próprio grupo” (1999: 9). 55
Portanto, ex-sitiantes desapropriados e não, vagabundos, como em discursos de outros segmentos. 56
Este é o caso levantado na maioria das áreas camponesas sesmeiras da Baixada Cuiabana (consultar
bibliografia indicada na nota de número 37). Como vimos mais acima, no caso do Distrito do Arruda, temos uma
grande diferença das áreas vizinhas. Apesar disto aqui igualmente se argumentava esta confusão, pelo fato de
que à divisão em cartório não se seguia a demarcação real das áreas de cada grupo familiar de irmãos. Decorre
daí a „confusão‟ acima alegada pelas autoridades, a partir de uma lógica externa, e não interna ao grupo.
49
imposta: só há direito à posse nas áreas beneficiadas, ou seja, a cerca é uma barreira
respeitada pelos primeiros (outros camponeses sem terra), assim como um benefício
reconhecido pelos segundos (INCRA e INTERMAT). No entanto, é de se notar que muitas
áreas, na atualidade, não se encontram ainda cercadas, apesar de estarem delimitadas e
demarcadas. Em várias delas, onde podemos observar, só há cerca nas pequenas áreas de
pasto internas a propriedade.
Estes novos fatores que se apresentam na região nos anos 1970 e 1980, tanto externos
quanto internos ao grupo, contribuíram com a quebra de uma ordem mantida por mais de um
século, representando uma ruptura no modo de vida dos sesmeiros.57
Num curto espaço de
tempo e em toda a região as terras foram sendo primeiro expropriadas por fazendeiros e
depois parceladas pelo próprio grupo familiar, em decorrência de uma enorme pressão
externa. E enquanto uns vendem, ou por ganância ou por se esmorecerem, não vendo
possibilidade de resistir ao novo processo em curso, outros simplesmente perdem a terra, por
não terem condição de se defender, sendo todos eles expulsos para a periferia das cidades.
Por outro lado, os que conseguiram resistir hoje se encontram com uma menor
quantidade de terra disponível do que a existente no antigo patrimônio familiar. Os
camponeses mais fracos que se dedicam à agricultura têm atualmente, em média, de 20 a 120
ha, enquanto os camponeses mais fortes que se dedicam à criação de gado, devido a um
processo paulatino de compra de área de seus vizinhos, possuem de 100 a 200 ha. No entanto,
não é apenas a quantidade de terra que deve ser analisado e sim a sua qualidade.
Na situação anterior, a abundância de terra conduzia a uma grande disponibilidade de
áreas de mata, o que contribuía para a agricultura itinerante e o pousio das capoeiras. Já na
atualidade as terras que sobraram sob o domínio camponês estão localizadas no alto, com
poucas áreas de mata e grande disponibilidade de campo e cerrado. É este fator que tem
dificultado cada vez mais a reprodução do antigo modelo produtivo do grupo.
Devido a este complexo processo de mudança, a realidade de hoje é diferente daquele
passado mítico do tempo da terra de comum (fala de um morador do Espia), “tempo da terra
de respeito” (Castro, op. cit.: 59), “tempo da palavra” (Almeida, 1988: 10).58
Temos
57
Ressalto que reconheço o fato óbvio de que existiam conflitos anteriormente. Contudo, neste período, estes
eram resolvidos preferencialmente a luz da tradição. Reconheço igualmente, a existência anterior de uma
diferenciação interna, conforme colocado acima entre lavradores donos de direitos e agregados. Como bem
coloca Alfredo W. de Almeida sobre as terras de herança: “Através do uso comum da terra, os camponeses,
livres da dominação dos grandes latifúndios, realizam uma gestão econômica não necessariamente com base nos
princípios da igualdade, mas consoante diferenciações internas.” (op. cit.: 47). Deste modo este processo de
ruptura não se constitui numa “queda do paraíso”. 58
Conferir a interessante discussão de Leonarda Musimeci que critica a construção da idéia da “terra liberta
como um lugar de utopia” ou seja, uma ilha da fantasia onde vive um campesinato feliz, sem conflitos internos e
50
atualmente uma situação de terra parcelada. É o tempo de cada um para si (fala de uma
moradora do Pindaival). É a partir destes dramáticos acontecimentos dos anos 1970 e 1980;
seguido da ocorrência de pragas nas roças já nos anos 1990, em função da perda de áreas de
matas (defesa natural contra estas pragas) e do plantio de monocultura da Fazenda Paribó
(atrativo natural de pragas); além da diversidade de oportunidade de opções de venda dos
produtos, com o aparecimento de inúmeros atravessadores na região, que se muda a lógica
interna da propriedade. Nos dias de hoje, constatamos que a produção para o mercado passou
a ser a prioritária, sendo a produção para o autoconsumo agora subordinada a esta. A nova
realidade no contexto da roça, assim como os elementos que levaram a mesma, será discutida
aprofundadamente nos capítulos quarto e quinto.
Nesta nova realidade o Distrito de Arruda não é mais um grande produtor de grãos. A
fazenda Paribó produz exclusivamente gado de corte. Na parte camponesa, segundo todos os
depoimentos colhidos: roça só para despesa ou só para casa. Com o espremimento e o
parcelamento a atividade principal dos proprietários é a criação de gado e o plantio de
mandioca. Paralelo a isto, temos a produção artesanal de farinha, rapadura, queijo e doces.
Algumas propriedades foram quase que totalmente transformados em pasto, sem área de
reserva e só com uma rocinha, enquanto em outros a presença destas áreas é irrisória.59
Nas
áreas onde há farinheiras60
observamos menos pasto e mais roças com mandioca, mas aí,
igualmente, o plantio de outros produtos que não a mandioca destinada à venda, é só pro
sustento.
Por fim, como conseqüência deste perverso processo, da mesma forma que a terra, os
grupos familiares se encontram na atualidade como que encolhidos. Temos agora um padrão
de cada grupo na sua área, com menos força de trabalho disponível. Isto se dá devido ao fato
de que os filhos migram para as cidades em busca de estudo.61
Este é um fenômeno novo na
área, uma vez que com a expulsão de muitos moradores da região para a cidade, agora
existem muitos parentes e compadres morando lá, o que possibilita enviar os filhos para a
casa dos mesmos. Assim, há uma carência de mão de obra, apesar de não haver uma
não poluído pelo capitalismo. Para a autora, isto é um mito criado a partir de interesses políticos, tanto por
ideólogos liberais, defensores de um “capitalismo utópico”, como de esquerda, defensores de um “socialismo
utópico camponês.” (1988:48-53) 59
Guardadas as devidas diferenças, esta questão remete a discussão sobre a transformação do sítio sergipano
levantadas tanto por Ellen Woortmann (1983) que defende que a presença do gado nesta unidade obedece a uma
lógica camponesa, como por Klaas Woortmann (1983) que coloca a questão de que é mais racional a presença
do gado em unidades menores. 60
Casa de fabricar farinha artesanalmente. Na região existem várias, algumas comunitárias e outras particulares.
Só na Comunidade Cedral eu observei duas. Retomaremos este ponto no capítulo quarto. 61
Na área somente existem escolas de 1a a 8
a Série, sendo que quem deseja continuar seus estudos deve se
deslocar para Rosário, Cuiabá ou outra cidade vizinha.
51
correspondente diminuição do consumo. Temos na verdade um aumento do mesmo, uma vez
que um filho tem um custo mais elevado na cidade do que na roça. A estratégia adotada pelos
lavradores para superar este impasse acaba sendo o recurso a reciprocidade das redes de
parentesco e vizinhança, ainda fortemente se fazendo presente na área. Portanto, o trabalho na
atualidade se faz prioritariamente baseado na troca de serviço, com grupos formados por
irmãos, compadres e vizinhos. Retomaremos este ponto, aprofundando-o, nos capítulos quarto
e quinto.
Na atualidade as terras do Cedral, Espia e São Pedro foram „tituladas‟ pelo
INTERMAT, o que as transformou em área de assentamento da reforma agrária. Um herdeiro
nascido e criado na região, neto do dono legítimo de uma área de sesmaria doada ainda no
período do Brasil Colônia, vendida no século XIX já no tempo do Império, titulada e
revalidada desde o começo da República no início do século XX e que teve todos os seus
impostos pagos desde então, nos deu o seguinte depoimento esclarecedor.
O INTERMAT mediu agora em 2001 e deu o título.
Mas antes você disse que fez o inventário do avô no cartório, daí não saiu um
documento?
É que tinha uma diferença, tem gente que compra um pedaço do outro... menos de 100
ha o INTERMAT mede e não faz pergunta, dá o título. (...) Nós aqui era tudo
considerado particular, mas nós não tinha a documentação da terra. Muitas vezes um
vendia 50 ha pro camarada e ia lá no cartório e passava a procuração para ele, um
direito para usar a terra. Então o governo fez agora um levantamento pelo
INTERMAT e eles estão considerando gleba aqui. E nós estamos até esperando um
financiamento de moradia, um financiamento de alimentação. É um recurso que ele
vai dar gratuitamente para fomento. (...) Primeiro o INCRA fez o cadastro de toda a
região,
Quando?
Foi agora em novembro do ano passado [2003]. Então após a aprovação deste
recurso nós já vamos ter o PRONAF A e o PRONAF B.
Então aqui vai ser igual a um assentamento?
Um assentamento, exatamente.
E o título original?
Daquele que era original, existe um que ta lá registrado no cartório de Rosário.
Temos ai dois elementos importantes. Em primeiro lugar o morador acaba
evidentemente por reproduzir o discurso da confusão dos documentos veiculado pelo
INTERMAT, dizendo inicialmente que não tinha a documentação da terra. Contudo, no fim
da sua fala o mesmo confirma que existe um título registrado no cartório de Rosário, o que
contradiz este discurso do poder da „inexistência ou confusão‟ dos mesmos. Num segundo
plano e muito mais grave do que este deslize discursivo, temos uma relação de ilegalidade
flagrante, quando uma área particular e já titulada há mais de 100 anos é transformada em
52
área de assentamento, sem que houvesse qualquer processo de desapropriação ou de
indenização aos donos que, por ironia, são os próprios assentados.
É deste jeito que se faz reforma agrária no Brasil. Aumentam-se as estatísticas do
número de assentamentos realizados pelo governo, a partir da inclusão de áreas
ancestralmente e legalmente ocupadas por grupos camponeses em toda a Baixada Cuiabana.
Em vez de se dirigir recursos para assentar quem não tem e está precisando de terra, „assenta-
se‟ quem já é dono legal e já mora na terra desde seu nascimento. Os números, e não as
pessoas, é que são importantes na realidade virtual do poder.
53
Fotos da família Fortunato da década de 1950
Caminhões carregados de arroz produzido na Secando o arroz para ser ensacado
região do Arruda para ser vendido em Cuiabá
Moradores da Sesmaria Arruda Posto Eleitoral do Arruda
Dia de festejo na sede da antiga Sesmaria Arruda
54
CAPÍTULO II
O SABER TRADICIONAL
Que sente a presença da mãe natureza, Que vê a riqueza nascer da raiz. Que acredita em Deus, também no pecado, Que faz do roçado sua oração. E ainda confia no seu semelhante, E vai sempre avante em busca do pão. O pão que é nosso, que garante a vida, Terrinha querida do meu coração. PARAÍ-BA, de Cecéu
O modelo geral
Nossa etnografia da região camponesa do Arruda revelou um modelo geral de
percepção, entendimento e explicação do mundo altamente complexo e refinado. Neste
modelo o homem não é pensado como dissociado da natureza e isolado do resto da criação.
Segundo a classificação local, uma planta, um animal ou uma pessoa é um vivente, o que
demonstra que a fronteira a separar o homem das outras espécies é muito tênue e se dá em
outros moldes. Por isso um camponês do Arruda concordaria imediatamente com Levi-
Strauss, quando este afirma que “se o homem é para respeitar, é-o acima de tudo como ser
vivo muito mais do que como dono e senhor da criação” (1986: 47). Assim, diferentemente
do nosso modelo individualizante de pessoas, coisas e saberes; o local é englobante de todos
os domínios, numa perspectiva holística, onde a parte está contida no todo (Dumont, 1985;
Durkheim, 1996).
Antonio Candido assim resume a perspectiva dos caipiras paulistas, que
semelhantemente ao grupo aqui estudado, é perfeitamente ajustada a um meio total.
A princípio, o meio representava para o grupo uma totalidade, cujos limites
coincidiam com os limites da atividade e da mobilidade grupais. Havia entre as
atividades do caipira uma correlação estreita, e todas elas representavam, no conjunto,
síntese adaptativa da vida econômico-social. Assim é que o trabalho agrícola, a caça, a
pesca e a coleta não eram práticas separadas, e de significado diverso - mas
complementares, significando cada uma per si, e todas no conjunto, os diferentes
momentos dum mesmo processo de utilização do meio imediato. A roça, as águas, os
matos e campos encerravam-se numa continuidade geográfica, delimitando esse
complexo de atividades solidárias - de tal forma que as atividades do grupo e o meio
em que elas se inseriam formavam por sua vez uma continuidade geossocial, um
interajuste ecológico, onde cultura e natureza apareciam, a bem dizer, como dois pólos
de uma só realidade (2001: 217-218).
Na base deste modelo, podemos encontrar as categorias culturais forte e fraco que
55
formam o sistema classificatório de pessoas, animais, plantas, solos, alimentos, coisas,
fenômenos, eventos, etc (Durkheim & Mauss, 1969), dando um sentido e ordenando o mundo
criado por Deus. Deste modo este não é um grupo isolado e desvinculado da prática
camponesa geral do Brasil, uma vez que sistemas de pensamento englobantes e uso de
categorias classificatórias opostas forte/fraco ou quente/frio são uma prática recorrente no
nosso mundo rural. A respeito disso, diversos estudos já foram realizados sobre este tema no
Brasil (Peirano, s/d; Novión, 1976; Brandão, 1981; Soares, 1987; Almeida, 1988, s.d.; Maués,
1993; Woortmann & Woortmann, 1997).
Analisando uma comunidade camponesa em Santa Terezinha-MT, Almeida levantou
que a concepção do mundo dos posseiros desta localidade, baseado nas categorias forte e
fraco possibilitava “a percepção e compreensão de todas as coisas existentes (...) organizando
as em três classificações distintas: o conjunto dos elementos fortes, o conjunto dos elementos
fracos e o conjunto dos elementos forte-fracos” (1988: 13). Carlos Brandão discutindo a
ideologia das relações entre o consumidor e o alimento em Mossâmades-GO, levanta o
sistema classificatório baseado nos pares forte/fraco, pesado/leve, quente/frio, reimoso/sem-
reima e gostoso/sem-gosto. Para o mesmo, “a força é um atributo presente em todas as coisas.
(...) A natureza, tomada como um todo, (matas, rios, chuva, terra, subsolo, animais) pode ter
sido „mais forte‟ no passado e estar agora „mais fraca‟ (ou, „mais enfraquecida‟)” (op. cit.:
109). Já a partir de uma perspectiva onde se priorizam as categorias „quente‟ e „frio‟, temos o
excelente estudo de Woortmann & Woortmann (1997). Em sua etnografia dos sitiantes
sergipanos, os autores levantam a existência de um idioma sistêmico do quente e frio.
O que nos parece é que existe uma grande matriz de categorias classificatórias, uma
etnociência que ordena a percepção do corpo, dos solos, das plantas, dos alimentos
(vegetais e animais) e possivelmente de outras coisas por meio da dicotomia
quente/frio. Em outras palavras, a prática da lavoura é informada por um modelo
cosmológico. Assim, a lavoura e o lavrador „estão no mundo‟ (op.cit.: 166).
Estas etnografias de outros grupos, assim como o atual levantamento no Arruda, nos
sugerem que estes modelos de ordenamento do mundo camponês são essencialmente
baseados na acurada e constante observação do mundo circundante. Deste modo, o modelo
acaba por replicar as realidades natural e social que coexistem sobrepostas na criação.
Contudo, conforme afirmou Levi-Strauss (1976: 40), a natureza – e podemos acrescentar o
mundo social – não existe por si só, ela não é dada e sim, percebida e construída pela cultura
que a observa. Temos assim que este modelo, um arbitrário cultural, é criador e criatura ao
mesmo tempo. Por um lado este modelo é organizado, é estruturado, pela visão de mundo
informada pelo habitus gerador da prática, que torna possível a reprodução social do grupo.
56
Por outro lado o modelo é um organizador, é estruturante, desta visão de mundo,
possibilitando ao habitus estabelecer um sistema de estratégias no sentido de maximizar as
possibilidades de reprodução social (Bourdieu, 1990 a, 1992). E é esta sua dupla característica
que lhe possibilita a adequação a uma nova condição do meio.
Como conseqüência disto temos que o modelo construído pelo camponês sobre a
observação deste mundo apresenta-se eminentemente alicerçado nos elementos que o mesmo
observa nele: os princípios do equilíbrio, da harmonia e da reciprocidade. “Categorias
culturais são como que a replicação, no plano cognitivo-simbólico, dos princípios
estabelecidos por Deus” (Woortmann & Woortmann, op.cit.: 160). São estes os princípios que
regem a relação das pessoas com as pessoas, das pessoas com as coisas e das coisas como as
coisas. São por isso “concreções particulares de uma ética geral (...) definidoras de uma
ordem moral” (Woortmann, 1990: 56).
Deste modo, no processo de colocação de uma roça o lavrador deve observar o
principio do equilíbrio entre as variedades e espécies plantadas, separando plantio fortes de
fracos ou plantando uma variedade forte num momento fraco da lua e vice-versa: para poder
equilibrar, para não empatar. Da mesma forma o roçado deve expressar uma lógica de
consorciamento em que não haja competição entre os pés plantados e sim colaboração.
Portanto o modelo construído sobre a natureza bruta, onde é percebida uma harmonia entre
todas as espécies existentes, é replicado no espaço da roça. Por fim, a relação homem-
natureza ou homem-homem deve expressar o principio antropológico da reciprocidade, onde
sempre se deve devolver a terra ou ao vizinho/parente o que deles se recebeu, sob o risco de
desequilibrar a relação. Temos, portanto, aqui colocado muito mais do que uma simples
maneira de se perceber a natureza. Na verdade, este modelo expressa um princípio de
equilíbrio cósmico que engloba a tudo e a todos. Para o lavrador, o ato de trabalhar a terra não
é tão somente uma maneira de fazer agricultura e sim uma maneira de se relacionar com o
cosmos.
Conscientes disto, o perigo de ruptura deste equilíbrio é claramente percebido pelos
lavradores quando estes observam a roça mecanizada dos fazendeiros. Segundo eles, com essa
tecnologia de máquina você não tem vantagem (...) é violento, é violento, é violento para
limpar a terra, é violento para plantar, é violento para colher, mas tem efeito de pouca
vantagem. Há da parte deles a convicção de que uma grande produtividade sem dar a terra
uma condição de descanso (a reciprocidade), leva-a a se esgotar rapidamente. Contudo, esta
visão não se dá somente sobre os de fora. O perigo de desequilíbrio na relação com a natureza
aplica-se igualmente ao próprio grupo. No São Pedro participei de uma conversa com dois
57
moradores, onde estes relatavam as previsões dos antigos que já antecipavam desde aquela
época, o tempo aonde a relação de reciprocidade entre o homem e a natureza chegaria ao fim,
ameaçando a sobrevivência do próprio grupo.
O primeiro: – Quem ta acabando com a água é o próprio homem, é o desmatamento!
O segundo: – Meu pai já dizia: vai chegar uma época, você vai ver, a lenha vai
acabar, você vai ver, essa fartura que tem aqui, essa fartura de cana, de abóbora, de
tanta coisa que tem aqui. Não entrava caminhão aqui não, era difícil. A hora que
começar a entrar carro aqui, vai acabar isso, você vai ver, não tem lenha nem para
cozinhar, porque o trator vai derrubando tudo, vai acabando, terminando tudo. E ele
está certinho!
O primeiro: – Vão colocar o capim no pilão para socar, para comer... [risos] Tão
acabando com tudo!
Portanto, o modelo local alia a conjugação das categorias classificatórias forte e fraco,
que ordenam o lugar de todas as coisas no mundo, com os princípios cosmológicos de
equilíbrio, harmonia e reciprocidade, fundantes das relações entre homens e coisas. É a partir
daí que podemos entender o processo de planejamento e execução da produção agrícola, nas
três comunidades aqui estudadas.
O sistema classificatório Forte-Fraco
O sistema forte-fraco organiza todos os elementos, em princípio, em dois conjuntos: o
dos elementos fortes e o dos elementos fracos. No entanto estes dois conjuntos acabam por se
entrelaçarem, na medida em que o discurso local revela que as coisas são classificadas não só
em relação as suas características próprias, mas igualmente ao serem comparadas com outro
elemento vizinho. Temos, portanto, na verdade, um grande conjunto onde as coisas são
colocadas do mais fraco e vão mudando, gradação a gradação, até o mais forte. Isso ficará
mais claro no exemplo a seguir. O Arroz [o grão] é bem fraco, ele dá em qualquer safra. Já o
feijão [que é fraco], comparado com o arroz, resulta que o feijão é mais forte, enquanto
comparado com o algodão [que é forte], temos que o feijão é mais fraco. Porque ele é de
cipó, com 90 dias já ta dando. Assim, é comum ouvirmos o tempo todo que uma coisa é mais
ou menos fraca, mais ou menos forte. Isto acaba por reforçar a idéia acima levantada, de que
nada neste mundo é isolado, pois tudo interage dinamicamente.
Neste raciocínio, a explicação para que algo seja forte ou fraco, se revela nas seguintes
falas. Para eles a pessoa antiga, criada no sistema tradicional:
É mais forte porque já viveu mais e, às vezes ainda ta agüentando alguma coisa. Tem
vez agora que a pessoa é criança e, não ta agüentando nada, não é? Que ela é mais
fraca! Só que nós, do meu tempo, daí para lá, nós custava mais a desenvolver viu? E o
58
povo de hoje desenvolve muito violento. Só que ele não atinge lá na frente, o que
aquele povo atingiu. Ele não agüenta porque ele é mais fraco.
Ou ainda:
O povo de hoje, os moradores daqui são mais fraco do que forte, porque vem de um
tipo de crescimento na base daquele produto ali [os alimentos atuais]. Então
desenvolve e, quanto mais violento, mais é fraco lá na frente. Hoje não tem mais
condição de comer coisa sadia como antigamente. Hoje come planta com aquele
veneno (...) o adubo que põe nele.
Da mesma forma, temos que os animais:
E porco?
Porco sempre foi forte, agora é fraco.
Por quê?
Não sei, porco agora morre de susto!
Como? Como é que morre de susto?
Ué! Se ele ta deitado e você da uma cutucada nele, sem ele te vê assusta, não
assusta? Aí ele morre. Antigamente era raça pé duro, era gostoso e cheiroso. Hoje em
dia é fedido, porque come ração. Antigamente comia milho, comia banana, mamão,
mandioca. Hoje dão ração e ele não cresce, ele fofa. Antigamente era mais cheio.
Galinha é forte ou é fraca?
Galinha? Ela é fraca, num guenta nada e quando morre, morre tudo! Pinto de
terreiro é mais forte do que o de granja.
E por quê?
Porque no terreiro come coisa sadia e na granja come só porcaria com veneno. Daí
vai rápido pro abate!
E o gado?
É forte... O antigo [o caracu].
O gado antigo é mais forte que o de hoje?
Aquele lá é forte, porque não tem remédio que tem hoje, e gado vivia e dava
produção.
E esse de agora?
Esse de agora só no remédio, e na vacina!
Mas esse de agora é o do fazendeiro?
Não, esse que tem o gado branco [o nelore] é o mais forte, come menos e tem mais
força.
Gado branco é o mais forte, e o de raça [o cruzado leiteiro]?
É mais fraco! Come mais, dá mais dispesa e menos produção. E o gado branco, não.
Outro informante acrescentou ainda que:
Gado de cor [o cruzado leiteiro], todo mês tem que passa produto nele, por causa da
tal da mosca. É um tal de dar vermífugo todo mês, você tem que passá o remédio que
tem facilidade de pegar bicheira, carrapato apersegue ele.1
1 Conforme veremos no capítulo quarto, o gado é classificado da seguinte forma. Os tipos „puros‟ são o antigo
ou caracu e, os posteriormente introduzidos na região: zebu e nelore ou branco. O tipo que envolve „mistura‟
(entre gir, holanda e nelore) e, introduzido a menos de dez anos na área, é chamado de cruzado, de raça, de cor
ou leiteiro.
59
Por fim, temos uma fala sobre as diferentes variedades de mandioca:
Mais forte é a aipim e a latadeira?
Sim! Custa mais para produzir mas guenta. (...) Aipim aqui acabou mas, de primeiro,
você fazia um mandiocal de aipim, você tinha um mandiocal de cinco anos lá na roça.
Hoje tem um mandiocal de oito meses, um ano, um ano e dois mês por exemplo. Você
não farinhar ela, você já perdeu tudinho, como a guarapé branco. A guarapé branco,
seis mês tem que aproveitar. Se você não aproveitar, já perdeu. Ela cria violento mas,
tem que aproveitar violento.
Deste modo, agrupando as características dos elementos fortes e, dos elementos
fracos, iremos perceber que existe uma relação violento X seguro, que se configura como
parâmetro da classificação forte/fraco. Temos assim o seguinte esquema: 2
Elemento fraco ou, mais fraco do que aquele a quem se compara
dá violento e com viço mas não dura
Povo de Hoje, Porco de Hoje, Galinha, Pinto de Granja,
Gado de Cor ou de Raça, Mandioca Guarapé Branca
viço do crescimento + – morre cedo ou perde logo
desenvolve mais + – só no remédio, na vacina
fófa, incha e fede – – come veneno e ração
dá prejuízo – – come muito
Elemento forte ou, mais forte do que aquele a quem se compara
tardeia mas dá seguro e conserva
Povo de Antigamente, Porco Pé Duro, Pinto de Terreiro,
Gado Antigo e Branco, Mandioca Aipim e Latadeira
Cresce devagar – + dura mais
desenvolve menos – + saúde e resistência
é cheio e cheiroso + + come alimento sadio
dá produção + + come pouco
Portanto percebemos que os elementos fracos (ou mais fraco que) se encaixam
perfeitamente no padrão dá violento e com viço, enquanto que os elementos fortes (ou mais
forte que) se enquadram no padrão dá seguro e conserva. No entanto, conforme já
2 A característica (+) é a que se sobressair na relação por ser a que interessa, enquanto a (–) é a que embora esteja
presente, é desprezada por não ser interessante ou significativa no momento da escolha.
60
ressaltamos anteriormente, o discurso da memória é uma construção (Pollak, 1989, 1992;
Halbwachs, 1990). Assim a esta classificação das coisas antigas enquanto fortes e das novas
enquanto fracas (que não indica em si uma valoração) é adicionada, nas entrelinhas, novas
características que estas sim remetem a um perfil mais valorativo: cheio versus fofo e
inchado; cheiroso versus fedido; sadio versus venenoso; etc. Deste modo esta classificação é
claramente informada pela atual visão de mundo dos idosos que por terem vivido muito são os
mais capacitados e autorizados a comparar estes dois tempos. É o que Pollak chama de „o
trabalho de enquadramento da memória‟.
Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de
referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras
sociais, mas também de modifica-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o
passado em função dos combates do presente e do futuro. (...) O que está em jogo na
memória é também o sentido da identidade individual e do grupo (Pollak, 1989: 9-10).
No tempo de antigamente não existia uma possibilidade de antever o futuro e,
portanto, não existia um padrão semelhante de comparação. Naquele tempo as coisas eram
pensadas como homogêneas e imutáveis ou, como eles dizem, sempre foi assim. No entanto,
conforme vimos no capítulo primeiro, a nova conjuntura sócio-ambiental decorrente do
espremimento dos anos 70 e do cercamento dos anos 80 impôs ao grupo uma dramática
alteração em seu modo de vida. É exatamente daí que os idosos apreendem esta percepção de
um mundo em decadência rumo à degradação (Soares, 1987) e retiram os elementos para
construir este discurso. Retomaremos esta discussão mais adiante, na segunda parte deste
trabalho, quando discutirmos as tendências da vida atual. Por enquanto pensamos que já é
tempo de passarmos a discussão da lógica empregada no plantio.
O sistema da lua
Um lavrador da comunidade São Pedro, ao ser perguntado como é que se plantava
antigamente, respondeu: Só o manual! Derrubar era com foice, machado. Queimada, naquele
tempo tinha dia certo de queimar, é depois de São José.3 (...) Plantio também não tinha nada
de técnica, tudo pela lua, o pessoal acompanhava muito pela lua. (...) Então persiste, ainda
tem vários que acompanham pela lua... Mais adiante, perguntado como ele sabia qual era a
terra melhor para determinado plantio, afirmou que:
Isso como diz, é público e notório! Nós que nascemos aqui no mato, obrigatoriamente
nós temos que conhecer. Você põe a foice no ombro e sai, se sua área é grande fala:
3 Temos ai a organização das atividades produtivas a partir da percepção de um ordenamento cosmológico. É a
organização do „tempo de trabalho na terra‟, a partir do respeito a um „tempo maior‟.
61
vou procurar um lugar bom para roçar para fazer um plantio. Então eu vou fazer um
plantio de que? Por exemplo ou fazer um plantio de milho! Milho não precisa muito lá
em baixo. Agora se for plantar um arroz, se for plantar uma cana, se for plantar uma
banana, eles exigem mais uma terra mais melhor, mais adubada.
Antes de indicar uma rotina seguido ano após ano pelo lavrador, este discurso revela
que havia um saber que embasava sua prática e, que possibilitava a realização de escolhas
antes de iniciar qualquer atividade. Maria Christina Amorozo igualmente levanta esta questão
ao afirmar que:
O conhecimento compartilhado pelos membros da comunidade sobre os ofícios que
exercem, de lavradores, farinheiros, pescadores, constitui um conjunto bem
estabelecido de dados, fruto do acúmulo de observações, experimentações e da
transmissão cultural ao longo de muito tempo. O agricultor conhece muito bem o
ambiente no qual vive, e suas decisões e ações durante o ciclo produtivo são
orientadas por esta ciência; ele ainda sabe ler „os sinais que Deus deixou no mundo‟
(1996: 229).
Deste modo entendemos que todo o processo de colocação da roça não se limitava a
um trabalho repetitivo, realizado ano após ano. Todo trabalho braçal no meio rural, por mais
simples que seja, sempre é antecedido pela aplicação deste saber, pois as etapas do preparo e
colocação da roça “são todas informadas por um saber acumulado e em constante processo de
atualização” (Woortmann & Woortmann, op. cit.: 36), o que nos remete a noção de habitus.
Central a este modelo cognitivo está o sistema da lua. Este sistema é extensivo a toda
região (Amoroso, 1996; Ribeiro, 1998; Silva, J., 1998; Castro, 2001). Da mesma forma, ele é
ancestral, e não um evento recente, uma vez que foi percebido e registrado por Langsdorff
quando de sua passagem pela Baixada Cuiabana em 1827.
Para eles, as fases da lua são importantes para todos os tratamentos: sangrias, vômitos,
purgantes; mas, também têm influência sobre o plantio, a colheita, o corte de árvores e
a salga de carne; sobre todas as formas de dermatoses e outras doenças, até mesmo
sobre os partos. Isso pode até ser produto da imaginação deles, mas, algumas vezes,
não pude nem quis contestá-los (Silva, D., 1998).
Como podemos depreender daí, o sistema da lua é abrangente e engloba praticamente
todas as práticas, envolvidas no processo de reprodução tanto biológica como social. No
entanto, conforme já dissemos na introdução, iremos nos restringir aqui ao uso do sistema na
sua aplicação no contexto agro-pecuário, ou seja, o sistema de trato de animais e de plantio
„pelo planejo da lua‟.
Segundo eles, a influência deste astro neste campo é enorme porque a lua é um
planeta que mexe com a agricultura e todas as coisas na terra, principalmente com nós.
Segundo outro informante, a lua tem uma força que se o vivente souber, se ele conhecer, pode
62
usar em tudo: em plantio, em capação de animal, em tiração de madeira, que tudo dá bom.
Um outro ainda acrescenta: madeira se não tirar na época certa apodrece, encaruncha
tudinho. O milho se não plantar na época certa, ele broqueia, ele não grana bem o milho,
não sai uma espiga que presta. Tudo depende da lua, a lua é nosso mestre!
A lua somente consegue ser o mestre porque ela tem aprendizes atentos que observam
o seu trânsito ao longo do céu, durante todo o seu ciclo. Assim eles percebem as mudanças de
aspecto e de localização do astro, interpretando este fenômeno como devido a sua condição
momentânea de força. Assim:
Quando ta nova é forte, e quando nasce (...) é quando ela é fininha. (...) Então ela
sobe até fazer o quarto. Depois do quarto vai para cheia. O quarto crescente,
qualquer coisa que quiser fazer é bom, porque ela está crescendo. Quarto crescente
está em cima, do lado da cheia, ela é forte. Daí vai para a cheia, até o dia da cheia
ela é muito forte. Um dia depois da cheia ela é fraca, é minguante, vai só diminuindo.
(...) A minguante está na cheia pro quarto. Do quarto minguante você já marca a
passagem, que já é outra nova da lua. O dia que ela some é o dia da nova, nesse dia
está forte.
Como podemos perceber neste discurso, é a observação da posição da lua conjugada
com a sua aparência que fornecem a base empírica para o sistema. Como essas duas
características, posição e aparência, nunca são estáticas e sim estão em constantes mudanças,
repetindo-se ciclicamente todo mês, busca-se uma explicação para tal fenômeno. É na noção
de força, como seu sistema de duas variantes opostas forte e fraco, que eles encontram esta
explicação.
Temos assim que segundo o modelo local a lua no seu ciclo possui quatro momentos
distintos. Dois períodos longos, onde a lua segue a tendência normal de mudança crescendo
ou minguando: a quadra ou os quartos; e dois períodos curtos, de um dia só, em que ocorre a
mudança abrupta dessas tendências: a passagem. Explicando melhor, temos no dizer deles
que: a crescente é 15 dias e é 15 dias de minguante. Ou seja, a quadra conhecida como lua
crescente se inicia no dia seguinte após o dia da nova, durando até a véspera da cheia. Esta é
considerada uma lua forte, pois está crescendo e está ficando cada dia mais alta. Assim ela
domina no nascimento, no crescimento, mas vem dominando mais quando gera aquela coisa.
Se ela domina na hora que nasce, se nasce na lua forte, ela tem que ser uma pessoa [assim
como qualquer outro „vivente‟] mais ágil, forte. Por outro lado, no dia seguinte da cheia já
temos a quadra da lua minguante, sendo que esta dura até a véspera da nova. Por causa de
suas características: está diminuindo de tamanho e nascendo cada vez mais tarde, é
considerada uma lua fraca. Por isso: mas o que nasce na parte da lua minguante, ele pode ser
mais frac, mas ele é mais resistente, é mais sabido.
63
As duas fases que faltam, na verdade, não são fases, pois cada uma delas ocorre em
apenas um dia, sendo por isso chamadas de passagem. Assim temos que a passagem da cheia
é propriamente dito o dia em que ela passa da crescente para minguante. Ela é considerada
uma lua muito forte porque está virando de lado. Da mesma forma temos a passagem da
nova que é o dia em que ela está mudando da minguante para a crescente, quando ela está se
transformando da lua que aparece de dia para a lua que aparece de noite e, por isso, está
invisível. Por causa desta característica de mudança abrupta e radical ela é uma lua muito
forte ou fortíssima. Assim enquanto ambas as passagens são consideradas impróprias para
diversas atividades, a nova, por sua característica de mudança mais violenta e misteriosa, é
considerada como a lua mais forte e perigosa. Podemos perceber isso na fala de um
informante do Espia: ...mas o costume é plantar antes dela, mas plantar no dia da cheia pode,
pois ela não estraga. O dia que estraga, e aí não se planta nada é o dia da nova, dá broca
para danar!
Em função do perigo que estes dias de passagem representam, temos a idéia de que a
cheia e a nova são consideradas luas poluídas. Por isso, respeita-se um tipo de resguardo4 de
um ou dois dias (a depender do informante), tanto antes como depois da passagem, para a
realização normal de qualquer atividade. Como depois dai a lua já amansou mais, evita-se
desta forma o nocivo efeito poluidor da passagem que poderia com o seu excesso de força
contaminar a quadra anterior ou a seguinte, embaralhando as características do período, o que
prejudicaria o resultado esperado. O caráter anômalo deste período de resguardo é reforçado
pelo fato de que o mesmo não tem um nome específico, são portanto “...os inclassificados e
obscuros elementos que não se ajustam ao padrão do cosmo” (Douglas, 1976: 118).
O dia anterior ao período de resguardo é chamado de dia de véspera, enquanto o dia
posterior é chamado de dia depois. Estes dias, ao contrario dos dias vizinhos, são os mais
indicados para as atividades destinadas ao quarto correspondente. Deste modo temos que para
plantar na lua crescente, a depender do interesse, prefere-se os seguintes dias: sempre na
véspera é melhor, o dia melhor para se plantar na crescente é um, dois dias antes da cheia;
ou ainda, no dia da nova ela ta muito forte, então depois, por exemplo, quando você vai
plantar um milho a terra até ta boa, molhada, então você deixa passar a nova, no segundo
dia da nova pode plantar o milho. O mesmo ocorre na minguante, onde de acordo com as
4 Este termo „resguardo‟ é nosso e não nativo. Optamos por utiliza-lo devido ao fato de que não encontramos e,
pensamos não existir, qualquer termo local que designe os dias de evitação, além do fato de este ser um termo
que se aproxima do sentido levantado em nossa etnografia: “Resguardo, 1. Ação ou efeito de resguardar ou
resguardar-se. 2. Cautela, cuidado, precaução, prudência. 3. Guarda ou segurança de uma pessoa ou coisa. 4.
Tudo o que serve para livrar-se alguma obra de perigo ou danos” (Silva et al, 1990: 1502).
64
características desejadas do plantio, se prefere um ou dois dias depois da cheia ou a véspera
da lua nova.
Portanto podemos resumir assim o sistema da lua para os lavradores da região do
Arruda (conferir quadro na página seguinte). Do dia 28 ao dia 02 temos a passagem da nova e
seu resguardo, o momento em que a lua está no seu pico de força. Aqui ela é muitíssimo
forte (FFF), um momento de extremo perigo. Do dia 03 ao 13 temos a crescente, que é
considerada uma lua forte (F) mas não muito. Contudo, este momento de força não é estático
mas, variável. Assim, do dia 03 ao 08 ela está mais forte (+F), por causa do contágio com a
lua nova e; do dia 09 ao 13 ela está menos forte (-F), devido a maior distância desta. Do dia
14 ao 16 temos a passagem da cheia e seu resguardo, considerada como muito forte (FF). Do
dia 17 ao 27 temos a minguante, considerada uma lua fraca (f), mas não muito. Novamente
temos uma variação de força durante esta quadra. Então, do dia 17 ao 22 ela está mais fraca
(+f), por se situar longe da nova; enquanto do dia 23 ao 27 ela é considerada menos fraca
(-f), por já ser vizinha desta. Conhecedores deste sistema, os lavradores tiram proveito destas
variações de intensidade de força da lua para programar as diversas atividades do seu dia a
dia, como veremos mais adiante.
Maria Christina Amorozo em seu trabalho sobre as comunidades produtoras de farinha
em Santo Antônio do Leverger-MT (região do “Cuiabá Rio Abaixo”), que dista cerca de
130 Km da região do Arruda, levanta o sistema de plantio pela lua destes camponeses:
A lua da fase exerce sua influência três dias antes e três dias depois do dia da
“condução”, que é o dia da “força da lua”, momento em que a sua influencia é mais
poderosa. Após este dia, ela “já vai enfraquecendo”.
A nova e a cheia são consideradas luas fortes; não são ideais para o plantio e a
colheita, embora possam trazer certas vantagens. A crescente e a minguante, mais
fracas, são mais indicadas para estas atividades. A lua nova é mais “forte” de todas. É
durante a sua regência que os “bichos do chão”, as “imundícias”, fazem sua ronda
soturna: é preciso cuidado ao andar no mato durante estas noites, porque as
probabilidades de encontrar cobras, aranhas, sapos, são muito altas. Em contrapartida,
os peixes escolhem a lua cheia para sair das baías e subir o rio Cuiabá (1996: 80).
A pesar das pequenas diferenças regionais, podemos perceber que a mesma matriz
cognitiva geral se aplicam nos dois casos, o que nos leva a pensar se essa matriz não é
extensiva a toda a região camponesa da Baixada Cuiabana.5 Somente uma pesquisa deste
tema, realizada numa área mais ampla e abrangente de toda a região, “Cuiabá Rio Acima” e
“Cuiabá Rio Abaixo”, poderia esclarecer esta questão.
5 A cerca de um diferente sistema da lua, utilizado por um grupo camponês do nordeste do Mato Grosso,
consultar (Almeida, 1988; s.d.).
65
Esquema das Fases da Lua
15
14 16
13 FF 17
12 18
11 -F +f 19
10 20
9 21
08 F f 22
07 23
06 24
05 +F -f 25
04 26
03 FFF 27
02 28
01
Legenda
Fases da Lua Dias Especiais
Do dia 02 ao 14 Quadra da Crescente 02 , 28 , 14 e 16 Dias de Resguardo
Do dia 16 ao 28 Quadra da Minguante 13 Véspera da Cheia 27 Véspera da Nova
01 Passagem da Nova 03 Dia depois da Nova 17 Dia depois da Cheia
15 Passagem da Cheia 08 Quarto Crescente 22 Quarto Minguante
Obs: Alguns lavradores consideram não apenas um, mas dois dias de resguardo antes e depois da
passagem. Neste caso temos que a véspera da cheia cairá no dia 12 e a da nova no dia 26. Já os
dias depois serão, respectivamente, os dias 18 e 4.
66
O sistema classificatório forte-fraco aplicado ao plantio
No inicio de nossa pesquisa de campo tivemos uma certa dificuldade para entender o
sistema local de plantio pela lua por dois motivos. Em primeiro lugar, alguns informantes
eram categóricos ao definir o período lunar em que era bom e aquele em que era ruim plantar
determinada espécie. Contudo, com o avanço da pesquisa as informações começaram a se
revelar contraditórias. Enquanto uns informantes afirmavam que planta rama na crescente
que dá bom; outros afirmavam que rama depois da cheia, ela engrossa e espicha a raiz e fica
comprido. Ou seja, o período bom para plantar rama variava de uma propriedade para a outra,
o que embaralhava nossa compreensão. Além disso, para complicar a situação, outro grupo de
informantes nos ensinava que lua para plantar, as duas tudo é boa. Isto queria dizer que tanto
fazia plantar na crescente ou na minguante, o que só trouxe mais dúvidas a cerca da
compreensão do modelo.
Contudo, ao nos debruçamos sobre o material coletado e estabelecer com o mesmo um
intenso diálogo, foi que o conjunto de dados reunidos e sistematizados começou revelar a
verdadeira face do sistema. Percebemos então que todos os informantes estavam certos, cada
um a seu modo e dentro de sua lógica própria de plantio. Isto porque o sistema por eles
utilizado é bastante elástico e, a exceção do dia da passagem da nova (e da cheia para alguns)
e dos dias de resguardo que tangenciam as duas passagens, é possível realizar qualquer
atividade nos outros dias. Para tanto se deve conhecer o momento de força da lua, assim como
as conseqüências que isto traz para o produto, pois a depender se a lua está mais forte ou
menos forte, mais fraca ou menos fraca, algumas qualidades são reforçadas em detrimento
de outras.
Para uma melhor compreensão disto, passemos a fala de um informante que pode ser
bem esclarecedora:
Mandioca boa é na crescente, porque ela dá violento. Mas é, como naquele tempo
fazia mandioca para ficar dois, três anos, aproveitava a lua mais fraco, para ela
conservar e não apodrecer na terra, que quanto mais violento a mandioca produz a
raiz, mais violento ela perde na mesma terra (...) Na minguante ela custa mais a dar
mas, segura dois três anos. E a que planta na crescente, tem que colher logo. Naquele
tempo com ano, quatorze mês por exemplo, pode entrar no mandiocal e farinhar.
Porque se deixar mais tempo começa a tomar prejuízo, porque vai apodrecendo.
Ou ainda:
Plantio na cheia ela sai muito viçoso, a rama viça muito e a mandioca [dá] pouca.
Mas a gente faz assim, como agora ta minguante, na lua quarto minguante também é
bom para rama. A rama sai firme e boa para carregar e arrodiar ao redor... É o
quarto minguante. A rama sai firme só que ela custa mais a engrossar que o quarto
crescente, entendeu? O quarto crescente também, só que ele engrossa mais violento,
67
mas a raiz é mais pouco [menos comprida].
Assim, dependendo da quadra da lua em que a rama (ou qualquer outra espécie) é
plantada, temos dois conjuntos básicos e opostos de características que irão aparecer no
resultado final. Na lua forte, a crescente, temos a produção do tipo que dá violento e com
viço. Já na lua fraca, a minguante, o resultado esperado é do tipo que dá segura e conserva.
A produção na lua forte, que dá violento, apresenta as seguintes características
esperadas por qualquer lavrador: é brotadeira, ou seja, nasce rápido; e tem o viço do
crescimento, ou seja, produz uma grande quantidade e grande volume rapidamente. Contudo,
o ganho nestes pontos se reflete na perda em outros. Assim, temos que o produto: apodrece
rapidamente, não se conservando durante muito tempo e têm baixa resistência ao ataque de
pragas, brocas e doenças. Isso pode ser visto na seguinte fala: mas a mandioca é uma planta
que quanto mais violento ela dá, mais violento o senhor tem que consumir ela. Se passar já
perdeu, ela apodrece.
Por outro lado, a produção plantada na lua fraca, a que conserva, tem como resultado
satisfatório uma fruta6 que é altamente resistente a pragas e a doenças e que dura na terra ou
no depósito por muito tempo. No entanto, da mesma forma que no produto plantado na lua
anterior, aqui também há perda nas outras características: não é tanto brotadeira, demorando
mais a sair e; é menos produtiva, uma vez que a lua está diminuindo, ta fraca.
Ou seja, conforme já dissemos, o modelo é elástico e possibilita ao lavrador realizar
uma intensa negociação no momento de pesar e fazer a sua roça. Temos assim a escolha de
uma determinada estratégia, por parte do lavrador, escolha esta que está ligada a sua condição
social: o tipo de acesso a terra, se sua própria ou arrendada, por exemplo; a disponibilidade de
força de trabalho em seu grupo familiar; a disponibilidade de insumos; o preço alcançado pelo
produto no mercado; a condição de acesso a este mercado; etc.
Uma vez entendido este ponto, outra dúvida surgiu. Neste caso, quando a lua é forte
temos uma produção violenta, portanto fraca. Já quando a lua é fraca o resultado é seguro,
portanto forte. Assim as características estariam cruzadas, indicando que a lua teria o poder de
inverter as características, talvez sugando a força do plantio, em vez de doá-la. No entanto, o
dilema foi mais uma vez solucionado na medida em que nos ativemos às características
centrais do modelo de pensamento. E este se baseia principalmente numa relação onde os
elementos interagem buscando o equilíbrio. Assim, como a lua interage com a planta e a terra
no momento do plantio, na hora dela gerar, dela nascer, é este o ponto que temos que
6 Fruta é aquilo que se deseja colher e, pode ser o cacho, a espiga, a raiz ou até mesmo, a fruta.
68
considerar para nossa análise. Portanto, consoante com tantos outros sistemas camponeses de
plantio, a lua doa sua força neste momento já definindo as possibilidades da produção futura.
Assim, no caso do legume7 semeado na lua forte, ocorre que ele vai sair com toda a
sua força, o viço do crescimento. Como o resultado final é sempre constante e equilibrado,
temos que com o tempo, sua produção, sua carga sairá fraca, pois gastou a maior parte de sua
força na fase da brotação. Já no plantio na lua fraca, ocorre o inverso. Como a lua doa pouca
força, não „puxa a semente‟ no momento da brotação, ocorre daí que ela sai fraca. Mas neste
caso, ao conservar as suas forças para a produção ela dá seguro e resistente. Assim a lua nada
mais faz do que jogar com as características já presentes na própria planta, carregando sua
força para o início, o que acarretará a sua falta no fim, a planta fraca que dá violenta ou vice-
versa, a planta forte que dá seguro.
Cabe aqui a metáfora da comparação entre o velocista e o maratonista, como um
elemento de compreensão do que dissemos acima. Enquanto o primeiro sai 'com tudo', pois
deve chegar primeiro a uma curta distância, o segundo sai devagar, pois tem muito a
percorrer. Assim, o velocista fatalmente não irá longe, enquanto o maratonista, embora possa
até „comer poeira no início‟, se souber conservar suas energias chegará inteiro no final. No
final, se ambos chegarem em primeiro lugar em suas respectivas categorias, acabarão por
serem medalhistas da mesma forma. Não temos, portanto, uma valoração maior de uma forma
de plantio ou de outra. Ambas são fruto de escolhas válidas, decorrentes da estratégia adotada
pelo grupo num determinado momento, a partir de um interesse ou de uma necessidade
específica.
Lua forte > produto fraco = dá violento
viço do crescimento + – apodrecimento
produtividade + – praga/doença
Lua fraca > produto forte = dá seguro
tardeia – + conservação
dá menos – + resistência
7 Legume é uma categoria que engloba tudo aquilo que é plantado na roça e serve como comida. Neste caso, o
arroz, a feijão, o milho, a mandioca, a banana, a abóbora e a batata doce, por exemplo, são legumes; enquanto
que o fumo, a mamona e o algodão, igualmente plantados na roça, não são legumes.
69
Desta forma temos no esquema acima a evidencia do equilíbrio desta relação. Como
podemos perceber, as características situadas na mesma linha relacionam-se e o ganho ou a
vantagem de uma delas (+) se reflete numa determinada perda na outra correlacionada (–).
Um jogo em que o resultado final é sempre constante.8 Assim, dependendo do interesse de
cada produtor, ele escolherá o momento certo para plantar. Os que têm menos terra (como os
agregados) e por isso precisam desocupá-la logo para realizar um novo plantio; ou os que se
situam numa relação mais estreita com o mercado (como os camponeses fortes que são
proprietários de bolicho), precisando ter sempre produto para vender e, por isso sempre estão
plantando uma roça nova; os que têm carência de mão de obra no grupo familiar e, precisam
de um ganho na produtividade para economizar no serviço (como os camponeses da
atualidade);9 e os que assim preferem por qualquer outra razão, acabam por escolher ou, são
conduzidos ao plantio na lua forte, buscando se beneficiar com a produção violenta.
Aqueles que têm mais disponibilidade de terra e de mão de obra, e que por isso podem
escolher a segurança da produção que dura mais (como os camponeses fortes não proprietário
de bolicho); ou aqueles que se situam mais dentro da lógica da subsistência, e por isso, não
tem uma necessidade tão imperiosa de ter sempre o produto para quando o comprador bater
na porta ou mesmo (como os agregados); aqueles que gostam ou acham melhor tal sistema,
optam ou são compelidos ao plantio na lua fraca, buscando tirar vantagem da produção
segura.
Temos assim que ao escolher a primeira opção, os lavradores ganham nas variáveis
tempo e produtividade, perdendo nas variáveis segurança e durabilidade. Por outro lado, para
os lavradores que escolhem a segunda opção a relação se inverte, ganhando-se na segurança e
durabilidade e perdendo-se no tempo e produtividade. Portanto, a escolha do momento de
plantio dentro do sistema da lua, se na forte ou na fraca, reflete nada mais do que a
possibilidade de diferentes estratégias serem adotadas pelos distintos grupos domésticos no
jogo da produção (Bourdieu, 1990 a).
Outra relação que segue a mesma lógica é o sistema ideal de plantio que busca
equilibrar a situação de força da lua, com a classificação do legume plantado. Temos assim
que: o que é de haste, de madeira, é preferivelmente a minguante. O que é cipó, tanto que dá
fruta sobre o cipó [feijão, melancia], como aquele que dá fruta no pé do cipó [amendoim],
8 Conforme esquema anteriormente apresentado, a característica (+) é a que se sobressair na relação por ser a que
interessa, enquanto a (–) é a que embora esteja presente, é desprezada por não ser interessante ou significativa no
momento da escolha. 9 Conferir capítulos primeiro, quarto e quinto para o entendimento do atual „encolhimento‟ do grupo familiar.
70
enterrado na carga, é preferível a lua crescente. Ou ainda: Haste plantado na crescente
broqueia. Tudo de haste planta na minguante, o que é de cipó e de raiz planta na crescente.
Acontece que para eles, o que é de haste (arroz, milho e rama10
) ou de madeira
(árvores, pés de frutas) é considerado forte, porque sobem ou, porque crescem; enquanto cipó
(melancia, amendoim, feijão, abóbora), e raiz (batata doce e cará) é considerado fraco,
porque ficam no chão ou porque latam. Assim, o equilíbrio é procurado na relação ideal onde
o que é mais forte planta na lua fraca e o que é mais fraco planta na lua forte, para
compensar. Ou seja, a relação ideologicamente correta é a que busca equilibrar o forte com o
fraco para não carregar muito numa característica, o que traria como conseqüência uma perda
muito grande em outra característica igualmente desejada, o que poderia ser potencialmente
desastroso. Segue adiante o exemplo dado por um lavrador sobre o plantio do milho: uma
planta muito forte e que deve ser plantada na terra igualmente forte, onde é a lua que entra
como o negociador da relação, na busca pelo equilíbrio.
Milho sempre é bom na minguante, por que agarra boa e forte. Se plantar ele na lua
forte, ele sai com um desespero de viço, que no fim não dá nem produção. Ele vira um
chumbarelão, por causa da terra.
Então planta na lua fraca para compensar a terra forte?
É para compensar a terra forte. Esse negócio de... Essas coisas na terra forte, não
pode plantar na lua forte, tem que ser na minguante. Agora na terra fraco aproveita a
lua forte.
O discurso acima, além de explicativo do que estamos discutindo, introduz um novo
elemento a ser discernido no momento do plantio, a força da terra. Temos, portanto, que ...a
planta forte tem que plantar na terra forte, a planta fraca planta na terra fraca, a planta
fraca na terra forte não presta. O arroz numa terra muito forte enrola, tem que ser numa
terra que ele agüenta crescer e dar produção. Mas ser a terra for muito forte ele não dá.
Segue ainda outro exemplo:
Na terra muito fraca, se plantar uma coisa muito forte ela dá, mas custa muito.
E qual a diferença entre a terra forte e a fraca?
É a força, a terra tem força, ou tem mais ou menos. O fumo, ele é muito forte, ele é
mais forte. [o plantio dele] tem que ser na beira do rio, por que geralmente é uma
terra alagada, todo ano o rio não enche?
Deste modo temos que o modelo cognitivo que informa o habitus do grupo estipula
várias fases de negociação, uma em seqüência da outra. No entanto, estas não são
10
A rama, ou mandioca, é pensada de duas maneiras. A mandioca, ou seja, a produção em si é raiz. No entanto a
rama, ou seja, o pé com todas as suas características, as quais são passiveis de interferir no contexto dentro da
roça é haste. Assim, para efeito da lógica do plantio pela lua e do consorciamento, é nesta segunda categoria que
ela é incluída pelos lavradores do Arruda. Isso fica evidente ao se ouvir falar que se planta a rama para depois se
farinhar a mandioca.
71
desconectadas, e sim interligadas, uma vez que devem necessariamente ser realizadas sempre
com base na escolha anterior.
Temos assim que a qualidade da terra é objeto de uma negociação anterior, realizada
no inicio do ciclo agrícola, quando se planeja o roçado e escolhe o pedaço de terra a ser
derrubado. Portanto, no momento do plantio este é um elemento já dado e definido. Da
mesma forma, temos que a característica do legume a ser plantado: se for haste, madeira, cipó
ou raiz, vale dizer, se é forte ou fraco; é um elemento igualmente já definido antes do
momento do plantio, mas definido após a escolha da terra, pois pode variar em função da
qualidade e da disponibilidade daquela. Neste caso, uma vez definido a espécie de legume a
ser plantada (e isso não varia tanto, ano após ano), a negociação posterior vai ser realizada em
termos de qual variedade será usada. Como existem variedades mais fortes e mais fracas de
cada tipo de legume, é com este dado que o lavrador vai jogar. Assim, uma vez que o terreno
esteja preparado e determinada variedade a ser plantada já escolhida, o elemento que falta
decidir neste momento é a quadra da lua e, novamente, é esta que entra como uma
negociadora final no processo. E, ela acaba por ser escolhida em função do tipo de jogo que
interessa ao lavrador, que é decidido em cima das disponibilidades e das possibilidades sócio-
ambientais colocadas ao seu dispor, conforme já vimos anteriormente.
Temos assim o seguinte modelo:
Esquema Ideal de Plantio (variante dá seguro)
Escolha anterior ao plantio Escolha no momento do plantio
Terra Forte + Planta Forte Lua Fraca
Terra Fraca + Planta Fraca Lua Forte
Esquema Ideal de Plantio (variante dá violento)
Escolha anterior ao plantio Escolha no momento do plantio
Terra Forte + Planta Forte Lua menos Forte
Terra Fraca + Planta Fraca Lua mais Forte
Esquema Possível de Plantio (em condições não ideais)
Escolha anterior ao plantio Escolha no momento do plantio
Terra Forte + Planta Fraca Lua mais Fraca
Terra Fraca + Planta Forte Lua menos Forte
72
Percebemos a partir daí que na primeira variante do modelo „ideal‟ a lua é utilizada
para equilibrar a relação inicial que é carregada para um lado pela lógica da natureza e que,
por tanto, tem que ser seguida para os adeptos deste modelo. Deste modo, onde há excesso ou
falta de força na relação terra/planta, usa-se a falta ou o excesso de força da lua para
compensar. Daí o resultado é um legume do tipo tardeia mas é resistente.
Já na segunda variante deste modelo a lua é utilizada não para equilibrar, mas sim para
carregar ainda mais a relação, o que igualmente não contraria a lógica da natureza, mas tende
ao limite da mesma. Deste modo, onde há excesso, equilíbrio ou falta de força na relação
terra/planta, usa-se a força da lua para carregar, mas com cuidado para não queimar. Temos
então, um resultado do tipo dá violento, mas não dura.
Contudo, há momentos em que o modelo ideal, qualquer que seja ele, não pode se
realizar: por falta de terra de qualidade disponível, por exemplo. Neste caso, pode ser que
ocorra uma relação terra/planta cruzada e não carregara para um lado, o que como já vimos
anteriormente, contraria o modelo da natureza. Aí o lavrador fica sem tantas possibilidades de
escolha e, nestes casos, a lua é novamente o principal negociador utilizado por ele para tentar
reverter a tendência, buscando reequilibrar o resultado final. Assim, na relação terra forte e
planta fraca, onde a primeira pode queimar a segunda, a força da lua é minimizada de modo a
que o legume saia fraco, para impedir a realização desta queima. Já na relação terra fraca e
planta forte, onde a primeira pode empatar a segunda, a força da lua é reforçada para que o
legume saia forte, evitando-se o empate.
Temos por fim uma última relação percebida em nossa pesquisa11
e que é utilizada no
calculo de planejo do plantio: a que liga o pé e a fruta. Passemos ao seguinte diálogo com um
de nossos informantes:
Na praia [que é terra fortíssima] se plantar o que é muito fraco, ele enrola e não dá
nada (...) como melancia por exemplo. Melancia é de terra fraca, não de terra forte.
Então na terra fraca, ela sai, aquele pozinho dela sai fininho, aquelas folhinhas bem
adiantadinha. Então se você planta um pé de melancia numa terra bem forte, ela já
sai com o cipó dessa grossura, tudo cabeludão, as folhas já saem tudo assim, aquele
bolo de folha, tudo meio encoronhado como folha de couve. Nesse caso ela não dá
nada ali, não dá nada porque a terra é muito forte. Então ela é um plantio de terra
fraca.
Normalmente quando o pé dá muito forte, a fruta dá fraca?
Dá! Às vezes ele [um pé de milho] faz aquela ameaça de cinco ou seis [espigas], mas
nos fala é só vela [espiga fina e sem caroço] onde está ele. Mas geralmente um pé de
milho tem que dar uma ou duas [espigas]. Uma bem boa, uma mais em segundo lugar.
Às vezes dá duas boas, igualando. Mais do que isso ele não pode dar, se ele der
11
Muito embora reconheçamos que devem ainda existir outras a que não tivemos acesso ou, mesmo tendo, não
conseguimos percebe-las ao trabalhar em campo ou com os dados recolhidos.
73
ameaça de três, cinco, sete espigas, ele não dá nada.
E faz o que?
Não tem jeito, aí só outro.
A partir daí se percebe que há um vinculo estreito entre o estado final do pé e o da
fruta. Ou, como nos disse um lavrador, quando o pé da muito, a semente dá pouca, carrega
de bainha, mas dá pouca carga. Temos assim presente neste modelo uma idéia de que para a
fruta ser boa, o pé tem que ser pequeno, já se o pé crescer muito não vai dar fruta que presta.
Ou seja, um prejudica o outro. Portanto, novamente vem a tona a idéia de que o sistema, no
geral ou em cada parte, é sempre fechado e equilibrado. Esta relação, por exemplo, é utilizada
na hora do cálculo do momento do plantio. As plantas que se desejam que formem, ou seja,
não há um interesse na fruta e sim no pé, como no caso do capim ou da cana, por exemplo,
são plantados na lua forte, onde o viço do crescimento os fará produzir violento. Por outro
lado às plantas onde o interessa está localizado na fruta, como arroz, por exemplo, são
plantadas na lua fraca ou, numa não tão forte, para que o pé não se desenvolva tanto e assim o
cacho produza bem.
Esta mesma relação fechada entre o pé e a fruta é percebida em outras dimensões e
localidades do mundo camponês (Almeida 1988). Da mesma forma, conforme comentário de
Woortmann & Woortmann, ela é percebida por Inghan no tocante ao corpo humano. Este
autor, ao analisar o sistema quente/frio chega à conclusão de que este “poderia expressar uma
percepção do mundo concebido como um jogo de soma zero. Assim, entre os camponeses por
ele estudados no México, o cabelo longo faz com que o corpo se torne magro. O cabelo
consome a energia do corpo” (Woortmann & Woortmann, 1997: 161).
Já George Fostes extrapola este modelo de um mundo finito e limitado para o meio
social, onde a riqueza é entendida no mundo camponês em geral, da mesma forma que a terra,
circunscrita e limitada.
Consequently, there is a primary corollary to the Image of Limited Good: if “Good”
exists in limited amounts which cannot be expanded, and if the system is closed, it
follows that an individual or a family can improve a position only at the expense of
others. (...) wealth is seen by villagers in the same light as land: present, circumscribed
by absolute limits, and having no relationship to work. (...) Wealth, like land, is
something that is inherent in nature (Foster, 1967: 305 e 307).
Deste modo, percebemos que o sistema de plantio baseado na lua, tende ao equilíbrio
e a harmonia entre todas as suas partes, num jogo de reciprocidade entre os diferentes
elementos da natureza, assim como entre esta e o lavrador. Por isso, ao planejar e executar sua
roça o camponês do Arruda se utiliza de determinadas estratégias, de modo a que o legume
74
não carregue demais em algumas características por um lado, o que conseqüentemente faria
com que o mesmo enrolasse deveras em outras.
Esta visão camponesa de um mundo fechado, onde a quantidade de força, de riqueza e
de terra são constantes desde a criação do mundo, reflete-se na perspectiva moral de que o
homem deve saber usar o que Deus deixou na terra, sem abusar da natureza, uma vez que é a
partir desta que se dá a intermedição da relação Deus-homem (Woortmann, 1990). Temos
assim uma perspectiva holística de compreensão do mundo, em que o lavrador participa do
„jogo da produção‟ realizando uma intensa negociação em que estão envolvidos tanto a
condição social da família, como a característica ambiental de sua propriedade, assim como as
imposições do mundo envolvente.
Deste modo, é o saber acumulado por estas gerações anteriores, e que é
constantemente atualizado através da observação e experimentação do mundo natural e social,
que permite ao camponês participar deste jogo. Assim, ele procura ser beneficiado com o
fruto do seu trabalho retirado da natureza, ao mesmo tempo em que precisa devolver a esta
mesma natureza, as condições essenciais para a sua renovação e continuidade. Por tanto é a
partir do respeito às normas e valores do grupo e de sua capacidade de ler o mundo ao seu
redor, que o lavrador consegue efetivar a prática da sua produção. E é isso que tem permitido
a reprodução social das comunidades do Arruda por mais de um século.
75
CAPÍTULO III
A LÓGICA DA ORGANIZAÇÃO DA PROPRIEDADE TRADICIONAL
Eram tempos em que o camponês extraía os sucosos e gostosos frutos da terra trocando seus excedentes em relações de complementaridade e reciprocidade e não por um mero interesse mercantil. Quando o trabalho era saber fazer e saber ser e a terra era lavrada como o ferreiro molda o metal e o escultor molda a pedra. Quando o fruto do trabalho rendia o fruto das delícias da terra, o dom da vida convertido em sabores...
Enrique Leff 1
3.1 A POLICULTURA DE CEREAIS
O Preparo da Terra
Conforme já vimos anteriormente, o período que vai desde a origem do grupo, entre as
décadas de 1870 e 1890, até a década de 1960 é entendido como o tempo de antigamente,
tempo da terra comum ou tempo de abundância.2 Neste período, lembrado com muita
saudade por parte dos idosos, a cuja memória recorremos para a realização deste capítulo, o
sistema de plantio antigo ou tradicional era organizado pelo sistema da lua e totalmente
realizado no braço.
Plantio antigamente era tudo manual, não tinha maquininha, era tudo roça de toco.
E qual era o tamanho das roças?
Ah, de todo tamanho fazia roça. De quadra, fazia de meio alqueire, fazia de alqueire
inteiro, conforme o porte da pessoa. Cada um faz o que pode fazer, porque cada um
tem um porte diferente do outro.3
E fazia roça aonde, naquele tempo?
Roça no Espia era no mato, igual ao Cedral. Roça na praia era só na beira do [rio]
Arruda. (...) Antigamente era campo aqui [no atual Espia], mas a mata pegava daí em
diante [na direção que desce para o Córrego da Espia]. Tinha muita mata...
E a roça durava quanto tempo?
Dois anos, três anos era o máximo, que a roça era cercada de madeira e caia tudo
podre. Então todo ano tinha que cortar novo pedaço.
Devido à abundância de áreas de mata o sistema utilizado era a roça de coivara, com
dois a três anos de utilização do trecho derrubado, seguido de um longo intervalo de pousio de
1 Extraído de (Leff, 2002: 38).
2 Sobre a discussão de um tempo de fartura ou abundância em outros grupos camponeses, consultar (Almeida,
1988; Costa 1999). 3 O alqueire utilizado na região é o „paulista‟, que equivale a quase dois hectares e meio, ou seja, 24.200 m
2.
Além disto, temos que o alqueire tem uma quadra e meia ou alqueire é 50 litros plantados.
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aproximadamente dez anos. Além disto, o costume era derrubar um trecho novo todo ano.
Assim, tínhamos um sistema onde existia uma área aberta há dois anos atrás, ainda ocupada
por mandioca ou não, e que no segundo caso poderia ser abandonada ou reutilizada como roça
novamente. Neste caso, seria preferencialmente ocupada pelos plantios fracos que não podem
ser plantados numa terra muito forte. Tínhamos uma roça aberta no ano anterior que estava
normalmente ocupada com mandioca a ser colhida no verão seguinte ou ainda, banana ou
cana, sendo utilizada por muito tempo ainda. Por fim, tínhamos a roça nova, derrubada
naquele ano e que seria destinada preferencialmente ao plantio de grãos e a formação de
canavial, bananal ou mandiocal, a depender da estratégia do grupo. Por fim, tínhamos diversas
áreas de capoeira aonde, embora não fosse colocada roça, ainda existiam algumas variedades
necessárias que ou eram retiradas desta quando preciso ou eram ai mantidas para servir de
„banco de semente‟ para futura utilização.4
Portanto, uma vez estabelecido o formato de utilização dos diversos espaços
disponíveis, era selecionado um novo trecho de mata. Para isso, existem três critérios para a
escolha do local ideal: a localização da área, a vegetação presente e o tipo e a cor da terra.5
Quanto à localização, como antigamente existia uma grande disponibilidade de opções pela
abundância de terra boa, esta escolha poderia cair sobre uma área mais plana ou de planície,
situada na baixada ou beira de córrego. Poderia ser ainda escolhida uma área mais em cima,
mais inclinada ou ladeira, situada no pé de morro. No dizer de um lavrador idoso:
A roça na terra alta, que eles colocam hoje, dá igual, se brincar dá melhor!
E como é que vocês sabem se a terra alta dá bem?
Observa onde tem água, que na terra seca é pior. Onde tem muita serra, muito morro,
como no Cedral, tem muita água. Por conta da serra, água abastece a terra melhor.
Terra boa é onde não tem muntueira.6 Aqui [no Espia, situado mais embaixo] é terra
boa para todo canto. O defeito dessa terra [apontando para o São Pedro, situado tanto
no pé de uma escarpa como em cima dela] é ser acidentada.
E sem ser no alto?
Nós escolhe assim uma planície, onde tenha pouca pedra, uma mata bem
desenvolvida, bem crescida.
4 Conferir capítulo sexto, onde temos a descrição da manutenção desta prática nos tempos atuais. Aí é o bananal
velho, que já não produz mais e já está abandonado na capoeira, que fornece as mudas para a efetivação de uma
nova plantação, o bananal novo. Esta é uma clara replicação da máxima de Lavoisier pelo saber camponês, „na
roça nada se perde, tudo se transforma‟. 5 A cerca da classificação dos tipos de ambiente e solo praticados na região „Cuiabá Rio Abaixo‟, conferir
Amorozo (op. cit.: 59). 6 Conferimos em toda a nossa pesquisa um uso para muntueira. Esta é comumente referida como a sujeira ou os
restos que ficam numa roça já colhida, a paçoqueira ou muntueira, que deve ser juntada e queimada para adubar
e limpar a terra, possibilitando assim um novo plantio. É portanto, um produto da ação do homem sobre a
natureza. Pensamos que aqui há uma derivação deste termo para indicar uma „sujeira natural‟, ou seja, a presente
numa área de mata onde há muita sujeira ou acidentes naturais ou então, uma área de cerrado onde, na visão
local, estes elementos se fazem sempre presentes (galhos retorcidos, muita pedra e cascalho).
77
Já em relação à vegetação:
E dentro da mata, como é que escolhe um trecho bom para por roça?
Repara os pau da mata. Aqui onde a mata é boa, tem cajazeiro, nós fala caiá. Tem
uma madeira mole, branco... pelo nome de carneiro de vaca, que ele dá cada toceirão.
Sempre dá uma madeirona e uma fiarada de roda, que ali é terá boa. Então onde dá
bastante... outra madeira boa é jatobá, onde dá bastante jatobá, ali o quanto mais
cria bom.
E no cerrado, é do mesmo jeito?
Antigamente ninguém plantava no cerrado mas, cerrado que tem lixeira, antigamente
tinha muita, hoje o povo ta acabando com ela. A lixeira segura água nela, onde tem
lixeira aquela terra é boa, é mais refrescada.
Por fim, o último critério utilizado é a análise do tipo e da cor da terra.
Terra fraca é onde contem muita areia é mais longe do rio. (...) Conhece que a terra é
boa pela cor. Onde tem cascalho é melhor que onde é branco. Dividindo o mato para
o cerrado é bem acidentado, mas nós acha aqui bituca de cerrado que é muito bom.
Então vocês escolhem a terra pela cor que ela tem? Que cor é melhor?
Terra quanto mais escura é melhor, terra boa é terra preta. Deu barro preto é terra
boa. Na mata tem a terra preta e a vermelha. A vermelha é boa também, mas não
ganha onde dá a terra preta. A preta é a melhor de todas. (...) Mas a terra branca é
muito mais difícil de mexer com ela. Terra de cascalho é mais macia e dá para mexer
melhor nela, que é mais escura.
Temos, portanto, o seguinte esquema:
Classificação dos distintos ambientes na região do Arruda
Tipo Qualidade Cor da Terra Presença de Água Uso
Campo
Cascabulhada
(terra firme que não embreja)
Branca Seca ou enxuta Pasto nativo para o
gado
Cerrado
Cascabulhada
(é mais macia que no campo)
Vermelha Seca ou enxuta Pasto nativo para o
gado
Mata
Terra de cultura
Da boa
Preta (mais forte)
Roxa (menos forte)
Úmida ou fresca Plantar
Fazer roça
Brejo Terra boa Preta Encharcada Não planta nada
Escolhido o local da nova roça, ele deve ser preparado para o plantio. Para tanto, a
cobertura vegetal deve ser eliminada, de modo a possibilitar o seu uso. Este serviço é
eminentemente masculino, uma vez que é considerado muito duro ou perigoso. A mata é um
território brabo e não domesticado. É, portanto, terreno proibido a mulher que só pode
transitar e labutar em território manso e domesticado, na casa, no quintal e eventualmente na
78
roça.7 Assim, terminado o período das chuvas e dos tratos mais pesados e demorados da roça,
como a carpição, tem início o serviço de limpada da terra.
Quando era roçado o mato?
Roça de foice no mês de junho, por causa da queima, cercava a roça de madeira.
Roçava desde maio, junho, julho. Começo de agosto queima a roça, tira os pau para
fazer a cerca... Primeiro roça o mato fino com a foice depois, derruba os pau grosso
com machado e, acama tudo. Em setembro queima.
Os homens, sempre em grupo e nunca acompanhados de filhos inexperientes – o que
denota uma abundância de mão de obra dentro do grupo familiar, naquele tempo –, primeiro
executavam o serviço de roçada ou roçar de foice o mato miúdo. Isso permitia o trânsito na
área, facilitando o serviço de derrubada considerado mais difícil e demorado. Neste
momento, escolhiam-se os paus que iriam cair e aqueles que devido a sua importância,
permaneceriam na terra. Segundo um informante:
Na terra aqui dá muito angico, mas ele seca muito a terra, ele suga a água da terra.
Onde você põe a roça tem que cortar o angico (...) onde a sombra dele dominar, não
nasce nada. Você tem que matar ele... Matou, aí dá. Outras árvores pode deixar.
Jatobá, por exemplo, ninguém derruba. (...) Pode deixar ele e plantar embaixo, que a
sombra dele não atrapalha. Planta embaixo dele e dá.
Uma área de um pouco mais de dois hectares, observada na atualidade, foi roçada e derrubada
em 15 dias, por dois homens adultos.
Como o inverno começava em setembro antigamente, a queimada tinha que ser
executada no mês de agosto ou, mais tardar, em setembro mesmo. Para uns tinha dia certo de
queimar, o dia de São Lourenço (10/08).8 Para outros, a data da queimada não podia ser
fixada a priori, pois seguiam o padrão da lua: queimava na lua minguante sempre para
diminuir a sujeira.9 Como os vizinhos eram normalmente parentes, geralmente acontecia de
se preparar as roças encostadas uma na outra, embora estas fossem claramente distintas.
Assim, após o cuidadoso trabalho de preparo do aceiro, aqui chamado de defesa ou recuo, o
7 Observamos este mesmo padrão em Santa Terezinha, principalmente na coleta de elementos da natureza. As
mulheres nunca entravam na floresta para coletar (lenha, cocos, palmito, frutos, etc.), cabendo este serviço aos
homens. Já numa área de varjão, campo ou cerrado (territórios ainda brabos, mas mais abertos) era permitida a
coleta pelas mulheres, realizada, no entanto, sempre em grupo e com a presença de pelo menos um filho homem,
ainda que pequeno. A coleta de coco babaçu, destinado a fazer óleo ou a alimentação, ou outros frutos nos pastos
formados (área já domesticada) era livre e, freqüentemente uma ou duas mulheres realizavam constantes visitas a
este território contíguo a sua casa, para abastecer sua despensa. 8 Conforme vimos no capítulo segundo, temos ai a organização do calendário agrícola a partir de uma ordenação
cosmológica do tempo. 9 Sujeira é todo tipo de mato natural que brota no meio da roça e, precisa ser eliminado pelas capinas ou limpas.
Esta sujeira a que o informante se refere é o mato que nasce depois da terra queimada e, que se for muito exige a
realização de uma capina antes mesmo do plantio. A lua é então acionada para enfraquecer os brotos do mato,
evitando-se assim este esforço extra.
79
dia de queimar era combinado com estes parentes ou, até mesmo com vizinhos próximos para
que toda a queimada da área ocorresse no mesmo dia, minimizando assim os riscos. Neste dia
os donos da roça com seus companheiros – compadres, irmãos ou filhos maiores –, tocavam o
fogo cada qual no seu trecho. Suas mulheres e de seus vizinhos próximos, com os filhos
menores, ficavam cuidando do que era seu, permanecendo em suas casas que naquele tempo
eram todas cobertas de palha. No caso do fogo escapar, pulando o recuo, os homens usavam
água para apagá-lo nos paus, além de bater com facho de folha para combatê-lo no capim.
No entendimento dos lavradores, o fogo controlado é visto como um elemento
positivo e benéfico. Em primeiro lugar porque é a forma possível de limpar a terra para o seu
uso na lavoura. Em segundo lugar, porque a queima libera o adubo da cinza. Porque numa
terra boa como a nossa, se queimar ela, fica bem um centímetro, meio centímetro no primeiro
solo, de queimado. Fica melhor do que esse adubo que compra, muito melhor! Por fim, ele é
um meio de espantar as imundícias10
que se escondem na mata bruta. Há o fogo é preciso,
uma área que fica muito tempo sem queimar, ajunta muita cobra e quando queima, o que não
morre vai embora! Segundo a visão local, não é no fogo e sim no seu descontrole que está o
perigo: o fogo brabo é que é perigoso. Não tivemos qualquer informação de prejuízo causado
por fogo tocado nas roças, pois esta atividade é feita com o maior cuidado, conforme nos foi
dito: dificilmente tem fogo esparramado por aqui, eles respeitam a lei! 11
O Plantio
Uma vez preparada a terra e vencida a cobertura vegetal da natureza bruta, a partir da
conjunção do saber do pai de família e do trabalho do grupo familiar, começa o processo de
plantio de sementes. O habitus do grupo implica na realização deste ato inaugural logo após a
queimada, com o lavrador plantando as sementes que latam: melancia, abóbora, melão, etc.,
ou de raízes como batata doce e cará. Temos assim neste momento a passagem simbólica da
terra bruta que mesmo derrubada e queimada ainda é considerada natureza, para terra de
10
Imundícias, imundícies ou ainda imundicinhas, refere-se a animais peçonhentos (cobras ou escorpiões, por
exemplo), a animais que atacam a roça para comer dos seus frutos (macaco ou pássaros, por exemplo) ou mesmo
às pragas que empesteiam a roça (besouros, carrapatos e outros insetos). Estes são, ao lado da sujeira (conferir
nota 9), elementos que segundo Mary Douglas (1976) poluem e desordenam o mundo e, por isso, devem ser
combatidos. 11
Comparar com o momento vivido por eles quando do processo de espremimento da década de 1970, onde na
estratégia de desocupação da área pela Fazenda Paribó, o fogo descontrolado foi uma arma utilizada por esta
contra os moradores. Conferir o discurso camponês sobre este evento no capítulo primeiro.
80
cultura, a roça propriamente dita.12
No entanto até este procedimento introdutório, este
verdadeiro ritual de passagem que inaugura o espaço da roça, o espaço do lavrador por
excelência, não se constitui num ato simplesmente rotineiro. A definição do que se planta
neste momento, assim como nas fases seguintes, obedece a uma lógica que organiza os
diversos espaços da roça de acordo com estratégia adotada pelo grupo familiar: produção para
o autoconsumo ou para o autoconsumo e para o mercado.
Na medida em que os lavradores aqui pesquisados se situam no segmento que adota o
formato de produção para o consumo num primeiro plano, sendo a produção para a
comercialização subordinada àquela, orientam suas estratégias para a realização do mesmo.
Temos, portanto que o habitus do grupo organiza a produção a partir da lógica da policultura,
onde são plantadas as diversas espécies necessárias ao consumo e sustento do grupo familiar,
assim como num segundo plano, para os mercados da zona mineradora das nascentes do Rio
Paraguai e de Cuiabá.
Neste sentido o carro chefe da lavoura é o plantio de grãos: arroz, milho e feijão, ao
qual todo o restante está subordinado. Num segundo plano temos o plantio da mandioca e da
cana, necessários que são para a fabricação de farinha, rapadura e açúcar. Por fim todo o
restante da produção ocupa os espaços restantes: ou dentro ou fora dos pedaços destinados a
estes plantios principais anteriormente citados. Estes por serem marginais, se apresentam
como que invisibilizados nos discursos dos lavradores sobre a sua roça.
Esta mesma relação de hierarquia entre as espécies plantadas é percebida por
Woortmann & Woortmann em sua etnografia dos sitiantes de Sergipe. “Neste plano, o do
público, podemos dizer que a hierarquia social do processo de trabalho relaciona-se à
„hierarquia‟ dos produtos, pois existem aqueles mais e menos importantes, a depender de uma
série de cálculos, como, por exemplo, o que se destina ao autoconsumo e o que se destina à
comercialização tanto quanto ao consumo” (1997: 66-67). Assim, “além dos produtos
principais, faz parte ainda do consorciamento uma série de produtos secundários, de certa
forma marginais, como já vimos, plantados nas pontas de carreiras, como o amendoim, o
quiabo, o jerimum, a melancia, e couve, etc.” (idem: 127). No entanto, mesmo ressaltando
este caráter de marginalidade impingido a estes produtos, os autores afirmam que os mesmos
não escapam aos critérios do modelo geral.
Seguindo esta lógica temos na comunidade do Arruda o seguinte modelo geral de
12
Um processo semelhante de tomada simbólica da terra, onde o lavrador anda e planta na cinza, antes que a
raposa (aqui simbolizando a natureza) passe na mesma, foi por nós percebido em Santa Terezinha. A respeito
deste processo, conferir (Almeida, 1988: 35).
81
plantio policultural. A divisão da roça em dois territórios destinados aos produtos principais
que nunca são plantados juntos: milho e arroz. O feijão, último elemento da tríade central,
pode ocupar os dois espaços sem ser subordinado nem ao arroz, nem ao milho, em função da
grande diferença do tempo de plantio daquele para estes. Mariza Veloso Motta reconhece o
mesmo padrão de distribuição da roça na tradicional fazenda goiana. A mesma coloca que
“num primeiro momento, tinha-se a realização de duas roças: uma onde se cultivava o arroz,
outra onde eram cultivados, consorciadamente, milho e feijão” (1983: 161).
Os dois elementos importantes, mas não centrais, a mandioca e a cana, entram no
sistema em consorciamento. São, portanto sempre plantados depois dos principais numa das
duas áreas, a depender das condições da terra e das estratégias do grupo. Os demais cultivos
ou ocupam os espaços rasteiros no meio da roça e dos outros plantios ou são plantados
separadamente no espaço de defesa ou recuo (aceiro), ao redor da roça ou no território
intermediário entre os espaços do arroz e do milho, ajudando em sua separação. Na Sesmaria
do Arruda, estes podem ainda ser deslocados para a praia, no sistema de plantio no verão.
Esta separação da roça em dois espaços, um denominado do milho e o outro do arroz,
igualmente reforça noção de hierarquia dos produtos, conforme acima colocado. Woortmann
& Woortmann apresentam o mesmo padrão em Sergipe onde,
Cada sistema de cultivo privilegia um determinado produto e, empresta o nome a roça.
Assim, temos roça de algodão, roça de mandioca, roça de inhame, etc. (...) A roça é
„de algodão‟ porque o espaçamento entre os diferentes produtos atende principalmente
às necessidades do algodão, ao qual os demais estão subordinados. A roça consorciada
não é, portanto, igualitária, mas hierárquica: um todo cujo nome é o do produto que a
expressa (op. cit.: 87).
Contudo se este é o modelo geral seguido por todos, há inúmeras variações sobre o
mesmo tema. Mantido o padrão de duas áreas (milho/arroz) o que, como e quando consorciar
no meio delas é fruto de escolhas diferentes em cada localidade ou em cada grupo familiar.
Além disso, considerando anos distintos temos uma diversidade de estratégias presentes até
no mesmo grupo, que um ano prioriza formar canavial e/ou bananal e no outro ano carrega
nos cereais, por exemplo. Da mesma forma pode-se manobrar o plantio do feijão plantando-o
no meio das duas áreas, o que atrasa todos os demais plantios subalternos, ou plantando-o
somente no meio do milho, enquanto reserva a área do arroz para consorciar com a mandioca
ou a cana. Assim a depender das necessidades, se há mandioca suficiente ou se o mandiocal
está perto de acabar, se é preciso renovar o canavial ou não, se é preciso plantar banana ou
não, a família planeja o que e como irá produzir naquele ano. Ou seja, podemos chamar isso
que acabamos de resumir de qualquer coisa, menos de ato rotineiro repetido ano após ano.
82
Conforme já discutimos, o trabalho neste momento do plantio era feito manual, ou
seja, o serviço neste período era realizado na enxada, pois segundo todos os informantes,
máquina de plantar do tipo matraca só apareceu bem mais tarde. Além disso, segundo o
discurso dos informantes homens, este serviço era feito pelo braço masculino.13
Como
naquele tempo o padrão do grupo familiar era ter muitos filhos, estrategicamente distribuídos
entro os dois gêneros (Woortmann, 1999), além do fato que havia uma multidão de
parentes/aliados morando próximos, isso pode significar duas coisas: ou a informação é
correta, o que indica que a presença de mulheres neste espaço era visto como perigosa para a
produção; ou se está encobrindo o trabalho feminino na roça, de modo que se ele
hipoteticamente existia, estava relegado junto com o trabalho infantil, à categoria de ajuda.14
Assim sendo a fala dos idosos de que antigamente roça era serviço de homem pode encobrir
uma crítica destes a situação dos grupos familiares de hoje que são considerados mais fracos,
por terem menos filhos para trabalhar. Pode por outro lado não passar de um eufemismo, ou
de um discurso para pesquisador ouvir.15
No entanto, mesmo se o trabalho na roça é eminentemente masculino, a combinação
do que plantar, ou seja, o planejamento dela é familiar. Marido e mulher têm o mesmo
interesse no resultado da produção, de onde sairá o sustento da família naquele ano. Se a
esfera do comércio dos produtos pertence ao homem: somente eles participam das tropas de
boi de carreiro que sobem a serra ou vão à capital vender seus produtos; a esfera da
transformação destes produtos em alimentos é feminina: somente ela e seus filhos podem
penetrar na cozinha no momento de preparo das refeições. 16
Uma vez que a roça como um todo estava idealizada, tinha inicio o processo de
plantio. Como dissemos anteriormente, este começava já nas cinzas, com a semeadura dos
13
Por falta de tempo na realização desta pesquisa, optamos por privilegiar o discurso masculino, até porque era
este a nossa fonte quase exclusiva de acesso ao mundo camponês (pelo fato de sermos um estranho do sexo
masculino). Estamos nos propondo em aprofundar esta pesquisa, conforme já demonstramos anteriormente,
buscando uma forma de acesso ao discurso feminino, possivelmente nos fazendo acompanhar por nossa esposa,
durante a próxima visita ao grupo. Isto possivelmente permitirá a abertura de um novo olhar sobre esta
problemática. 14
Em relação à discussão da oposição entre trabalho e ajuda no mundo camponês, consultar (Moura, 1978). 15
Na atualidade apesar deste ideal de grande oferta de braços masculinos não conseguir mais se realizar, os
novos repetiam inicialmente o mesmo argumento de que só homem trabalha na roça. A partir de nossas
observações e da reelaboração deste discurso conforme íamos nos aprofundando na pesquisa, passamos a
interpretar o mesmo sob outra ótica. Retomaremos este ponto nos capítulos quarto e quinto, onde discutimos as
mudanças e a realidade atual. 16
Filhos pequenos são considerados seres assexuados, podendo ajudar tanto a mãe como o pai, sem subverter a
lógica da partição do mundo do trabalho em masculino e feminino. Ademais, é na lida diária que se aprende
como realizar as tarefas futuras, além do ordenamento do mundo do trabalho. Assim, enquanto todas as crianças
ajudam na cozinha, somente as filhas mulheres participam da esfera do cozinhar, manipulando a comida. Já os
filhos homens colaboram buscando algo ou realizando alguma tarefa que não envolva este tipo de manipulação.
83
produtos marginais.
Toda a vida para nós naquele tempo [a roça] começava em setembro, em outubro era
a planta do milho.
A primeira coisa que plantava era o milho?
É o milho! Não, antes do milho planta a semente.
Do que?
De abóbora, melancia, essas coisas assim que lata.
E planta quando isso?
Queimou a roça, pode plantar.
Como dentro da mesma lógica planta-se neste período cará e batata doce, percebemos
daí que se a roça é do milho, outros produtos, embora desprezados no discurso, se fazem
presentes na prática. Estes produtos considerados culturalmente como secundários na esfera
do consumo e não comercializáveis devem ser plantados de forma a não prejudicar os plantios
principais. Por serem do tipo cipó ou raiz, por tanto fracos, estas espécies produzem uma
folhagem rasteira que enramam (ou latam). São, portanto, plantados uns poucos pés na roça,
um pé aqui o outro mais adiante.17
O primeiro plantio nobre sempre é o milho. Este é plantado em setembro ou outubro,
a depender de quando ocorre o inicio das chuvas, em combinação com a lua boa, que de
acordo com o modelo discutido no capítulo segundo, pode variar de um lavrador a outro. O
milho se quiser plantar na cinza, também podia, se não quisesse esperava chover primeiro.
Naquele tempo chovia desde setembro. Como já foi dito, este nunca é combinado com arroz,
pois:
O Milho não planta no meio do arroz nem no meio da mandioca?
A não ser algumas carreiras porque ele é quente, ele machuca um a outro.
Mas não plantava o feijão no meio do milho?
O milho secava e, podia carpir e plantar o feijão que [o milho] já tava seco, já tinha
dado... E plantava o feijão. 18
A lógica da separação de ambas as espécies pode ser entendida porque o milho só
presta no meio do arroz largo se planta junto ele estrova. Por causa de sua quentura o custo
de se combiná-las seria ralear o milho, o que não seria compensador na ótica do grupo. Assim,
17
José Geraldo Di Stefano discutindo o sistema de plantio em Porto dos Barreiros-GO, levanta a classificação
local das espécies agricultáveis. Nesta as plantas são distinguidas entre as “plantas do ar”, que sobem ou
produzem em cima e as “plantas da terra”, que permanecem no chão ou produzem em baixo da terra (2003: 85-
86). Temos, portanto, um modelo semelhante ao aqui levantado, de haste/madeira que crescem verticalmente,
contra cipó/raiz, que latam horizontalmente. 18
O milho foi a única espécie vegetal que ouvimos dizer que era quente. Ele é considerado a planta mais forte na
roça embora, não conseguimos perceber uma relação direta entre essas duas características: ser forte e ser
quente. Nenhum outro plantio é quente ou normal, o oposto deste, pois aqui não existe a categoria „frio‟. Além
do milho somente algumas carnes de caça como veado, caititu e paca; de peixe como dourado e barbado e; de
porco também são quentes.
84
havia um processo de separação entre as duas culturas onde cada uma era plantada num trecho
diferente da roça. Por ser de haste o milho é plantado geralmente na lua minguante, uma vez
que não havia pressa para ser colhido, pois conforme vimos no capítulo segundo, esta lua
tardeia a colheita dos legumes. Este plantio era realizado em covas abertas na enxada, sendo
ai colocados de 3 a 4 caroços. Por ser roça de toco com muito pau grande caído, o plantio não
era feito em ruas, mas sim no sistema pingado, ou seja, um pé aqui e outro acolá, sem um
alinhamento preciso. Devido a este sistema pingado, o espaçamento varia, mas era numa
média de 80 cm até 1,5 m de distancia entre as covas, uma vez que o espaço intermediário
ainda vai ser utilizado por outras culturas, notadamente a rama e o feijão.
A outra planta nobre desta época era o arroz, que regia o sistema de consorciamento
na outra parte da roça. Este é plantado logo após o milho. Nesse tempo era roça de toco,
roçava de coivara, quando chovia é que plantava a melancia e o milho. Quando é outubro
novembro é que plantava o arroz. Este era plantado num espaçamento pequeno, pois tem um
ciclo curto (120 dias) e somente vai ser consorciado com plantas de ciclo longo como
mandioca, cana ou banana e que portanto, não serão tão atrapalhadas por ele. Outra opção de
consorciamento menos utilizada era do arroz com feijão e mandioca. Contudo, neste caso o
arroz já tinha sido colhido na época de se plantar estes outros. Assim, não ocorria
consorciamento, e sim reaproveitamento do terreno e do adubo. Por ser igualmente de haste,
ele é considerada uma planta forte, porque cresce. Deste modo a lua em que o mesmo deve
ser plantado é a minguante, por que o arroz planta desde outubro. É bom plantar no começo
do plantio, outubro, novembro, no primeiro mês do plantio, porque o arroz também é de
haste. O que é de haste, plantar ele na crescente, ele é bom para criar broca. Um lavrador
nos disse que o sistema de guardar as sementes, no caso do arroz era na palhoça, o mesmo
arroz que comia, o milho era a mesma coisa. Não levantamos nenhum tratamento específico e
nem de seleção para estas sementes, mas com certeza deveria haver algum.19
Já o feijão era plantado mais tarde, a depender do local. O feijão, neste lugar bem
ladeira, planta desde janeiro, janeiro e fevereiro. Já num local não tão inclinado, numa
baixada, tem que esperar o mês de fevereiro. Quanto ao seu tipo e a lua de plantio, dois
lavradores completam:
Em que lua que planta o feijão?
Feijão é na crescente.
Por que?
Porque ele é de cipó, para ele ter força para subir e carregar.
(o outro)
19
Temos ai mais um elemento a ser buscado em uma nova visita ao campo.
85
Feijão mais bom mesmo é na crescente, não muito na forte, depois do quarto
crescente. Assim toda planta é bom nesse esquadro, porque não ta muito forte e nem
muito fraco. Plantar muito forte é bom para bater viço tem hora que viça demais.
Apesar de ser plantado depois do arroz e do milho e nas mesmas áreas destes, o feijão
não se subordina aos mesmos, uma vez que aqueles são plantados em setembro/outubro/
novembro e este só vai ser plantado em janeiro/fevereiro. Temos assim que este é semeado na
área do milho depois que ele madurou e secou, não podendo mais estorvá-lo, e sim ajudá-lo,
uma vez que naquele tempo [feijão] era de cipó, pregava e subia no milho. Já no caso da área
do arroz o sistema era diferente. Se plantar o arroz no mês de outubro, então outubro,
novembro, dezembro, janeiro, fevereiro colhe esse arroz. Colhe o arroz e, se não tiver rama
no meio do arroz você pode carpir aquela tiueira, aquela paçoqueira do topo da palhaça e,
pode plantar feijão.
A mandioca ou rama mesmo sendo importante, já é um produto subordinado pelos
outros três principais. Como ela sempre é plantada em consorcio com o milho, com o arroz ou
com feijão, não pode ser um plantio adensado e tal qual o primeiro, é plantada pingado. Era
um pé longe do outro de metro ou de metro e pouco. Já outros falam em metro e meio.
Embora ela seja considerada forte, o plantio pode ser feito em diferentes momentos da lua. Na
minguante se quiser ela fique com a raiz comprida, pois depois da cheia ela engrossa e
espicha. Pode igualmente ser na crescente, não muito perto da passagem, porque é um plantio
que dura mais de ano na terra e aí precisa ficar forte para conservar, para não apodrecer. O
plantio era feito no seguinte sistema: uma vez aberta na cova com a enxada é jogado apenas
um pedaço de rama, de cerca de 10 cm, porque não costuma falhar. As ramas para o plantio
eram preservadas do seguinte modo:
Eu nunca fiquei sem rama dum ano para outro, para plantar... Mas eu não acabava
com ela de jeito, deixo sempre um capão de mandioca. Para ter rama boa, deixa a
mandioca na terra, aí na hora de plantar, quando eu ia ocupar a rama, você arranca
a mandioca, faz a farinha e tem a rama para plantar. (...) Depois de rançada agüenta
um mês. Depois disso ela brota e, já enfraqueceu a rama.
A cana a gente sempre planta na minguante, porque ela é de haste. Contudo, o seu
plantio tinha que ser precedido do correto preparo das covas, para que a mesma produzisse
bem e durasse muito. Assim o seu plantio;
Tem que ser na lua correta e tem que ser bem feita as covas (...) de preferência faz as
primeiras covas na terra bruta. De lá larga uns dois ou três meses. Aí chove e não
importa que aquelas covas entupa com areia, com terra... A hora que você vai plantar
você reforma aquelas covas, pode semear e pode ir embora, que aí ela não falha.
Agora, se você acabou de fazer a cova e semeou a muda, você já perdeu um bocado
do calor do campo, que o cupim gruda e come. Tem que esperar a terra fazer um lodo
86
e então, você põe a muda ali e esse lodo atrapalha o cupim.
Como podemos perceber o preparo das covas devem ocorrer desde logo depois da
queima ou então, o plantio da cana deve ficar para o segundo ano de utilização da terra
quando haverá mais tempo para este procedimento. A cova costuma ter as seguintes
dimensões: 70x50 cm de lado, com 50 cm de fundura. Conforme vimos na fala acima, esta
deve ser realizada com uma grande antecedência e cuidado, uma vez que se espera que ocorra
ai, com a ação das primeiras chuvas, a sedimentação do adubo em estado puro, o lodo da terra
e a cinza da queima. Este trabalho antecipado trará um duplo ganho para o lavrador, pois o
adubo tanto irá beneficiar a planta como impedir a ação de pragas. Já para a muda é usado
plantar uns 60 cm do pau da cana, não falha. A conservação desta é feita do mesmo modo
que a mandioca. Conserva-se a „semente‟ na própria terra, retirando-a do canavial velho na
hora de plantar um novo.
A banana por outro lado, embora não sendo comercializável naquele período devido
às dificuldades de transporte, sempre foi um plantio valorizado pela cultura local.20
Por isso
mesmo esta aparece no discurso da memória, como uma espécie participante da lógica da
produção da época.21
Ela é classificada como madeira/forte e, seu plantio é realizado bem
espaçado, por que:
Banana é no meio da roça, no meio do arroz, do milho, de qualquer coisa. Planta
desde outubro, na lua de outubro.
Em qual lua?
Banana é na crescente porque é para criar força de ir para frente, de dar a produção
boa.
Mas na lua forte não dá broca?
A banana não, porque a madeira dela é de água, agora o que acaba com nós aqui é a
broca que dá na batata [a parte que liga a raiz e o talo do pé de banana], às vezes na
raiz.
O plantio era através de covas, abertas no mesmo sistema utilizado na cana, com dois
a três meses de antecedência. Um lavrador bem idoso e atualmente „aposentado‟ nos afirmou
que quando eu era criança, eu conheci bananal de vinte anos, por dentro dos paus, por
dentro do mato.22
Hoje, quando dura seis anos, já acabou, já morreu tudo. Se você quiser
uma banana, tem que plantar todo ano. Por causa de sua durabilidade, este não era um plantio
20
Os pratos principais da culinária cuiabana sempre contam com a presença da banana frita. Poderíamos afirmar
sem medo de errar que esta é, ao lado do peixe, a marca registrada desta deliciosa cozinha. 21
O que é revelador do fato de que esta lógica não se funda apenas na valorização do que é necessário para o
consumo ou importante para o mercado. Ela igualmente trabalha valorizando aquilo que culturalmente dá sabor,
ou seja, ao nível do que é importante para elevar a „qualidade de vida‟. 22
Temos aqui, novamente, uma referência ao uso das capoeiras como fonte de alimentos, mesmo decorrido
muito tempo depois destas terem sido abandonadas à natureza.
87
que se necessitava realizar todo ano. Era só cuidar e prestar atenção para não deixar o antigo
bananal acabar antes de plantar um novo, até porque ele será necessário para a retirada da
batata, a parte enterrada de um pé de banana que é responsável pela germinação da toda uma
nova moita.
De outros plantios pouco se falou, o que evidencia o caráter secundário que a eles é
definido pela cultura local, ou seja, embora não sejam tão desvalorizados no momento de sua
utilização, o são no nível do discurso. Dentre os secundários, já vimos o caso das raízes e das
sementes que latam, plantios fracos e que ocupam uma área grande, sendo por isso semeadas
no meio da roça e em pequena quantidade. Vejamos agora o caso das madeiras que, por
serem plantios muito fortes, não podem ser plantados junto aos outros.
Conforme nos foi dito por um lavrador, naquele tempo plantava algodão e mamona.23
Algodão, faz carreira dele com a divisa do milho e do arroz... Planta em outubro, novembro,
na lua crescente que ele é madeira. Já a mamona não podia ser colocada junto deste por ser
igualmente forte. Por isso, segundo o mesmo lavrador, em volta da roça planta mamona, não
planta no meio. É planta forte que colhe dois três anos. Venceu de colher, você corta aquelas
haste dele. Então outro ano ele brota, e está com a mesma carga.
Além disso, este plantio periférico da mamona e do algodão denota outra característica
que não só a sua marginalidade na lógica hierárquica da roça. Estes são produtos que possuem
alguma característica protetora, como repelir insetos ou servir de barreira de contenção de
pragas. Observamos este mesmo uso de defensivos naturais em Santa Terezinha, como, por
exemplo, o gergelim, que é plantado nos aceiros por ser muito forte, além do que suas folhas
são um formicida natural. Estas são cortadas e levadas pelas formigas para dentro de sua toca
como alimento, mas acabam matando por intoxicação todas as suas larvas. Outro exemplo que
igualmente recolhemos nesta comunidade, mas que é recorrente na maioria das hortas rurais
ou urbanas é o cravo de defunto, planta que exala um cheiro fortíssimo, espantando insetos e
pragas. Temos então que o saber tradicional de comunidades camponesas costuma se utiliza
destas características protetoras destas espécies, desviando seu excesso de força para os
setores periféricos onde, em vez de estorvar as outras espécies, passam a protegê-las.
23
O algodão era plantado para se obter as fibras que eram colhidas, tingidas e fiadas pelas mulheres na
elaboração artesanal das tradicionais redes de dormir denominadas de „redes cuiabanas‟. Já a mamona servia
para a mulher extrair o óleo, que tem propriedades cosméticas e medicinais. As duas produções eram destinadas
ao consumo familiar, mas eram igualmente vendidas no mercado pelo homem, possivelmente gerando uma
renda para a mulher. Conferir no capítulo primeiro a citação de Steinen, onde o mesmo se refere à fabricação de
redes pelas mulheres, em Rosário.
88
A lógica do conjunto
Cada produto tem suas características próprias percebidas pelo saber local, o que
acaba por determinar em muito o formato de seu plantio/tratos/colheita. Portanto o lavrador
deve conhecer estas características básicas e respeitá-las sob pena de que ao não fazê-lo, o
resultado de seu esforço pode ser perigosamente desastroso. Temos como exemplo disto que
as antigas variedades por eles utilizadas de feijão, branco, amarelo e enxofre grande,
precisavam de água para brotar e para crescer, mas só podem florir na época em que as
chuvas já findaram, sob o risco de melar e não produzir. Então este deve necessariamente ser
plantado entre janeiro e março, ou seja, do meio para o fim do inverno, pois é neste período
que estas condições ideais se dão. E neste caso, com esta regra da natureza não se pode
mexer. Por outro lado temos a mandioca que por possuir um ciclo longo, de ano ou mais para
produção, aliada a sua característica de resistência e rusticidade, pode ser plantada em
qualquer período do tempo das chuvas. Se o ideal de seu plantio é no inicio do inverno, pois
aí ela vai se desenvolver bem, se for plantada no meio ou no fim deste período pode até
atrasar, mas não se perderá.
Ao escolher as espécies a serem plantadas em conjunto, o lavrador deve igualmente se
ater as suas características. Isso porque há plantas que não podem ser combinadas com outras,
ou por causa de seu padrão de ocupação espacial ou pelo seu tempo de permanência na roça.
Duas plantas que latam plantadas lado a lado irão se empatar mutuamente. Cana e feijão não
se combinam, porque aquela não irá desocupar o espaço para este ser plantado no seu tempo
certo.24
Assim, por um lado temos que para respeitar-se às leis da natureza, que não deixam
muita margem, o lavrador deve realizar determinadas atividades de tal modo, em tal período e
em tal lugar. Por outro lado, como existem outras leis da natureza que não são tão rígidas, ao
realizar as atividades nelas baseadas o mesmo pode efetivá-las em um momento, jeito e local
que mais lhe interessar.
Contudo o lavrador não vive somente na natureza, mas igualmente em sociedade, uma
vez que ambos estes domínios fazem parte da criação divina original, sendo portanto,
igualmente ordenados por Deus (Woortmann, 1990). Portanto, o mesmo tipo de raciocínio
deve ser aplicado neste território. Temos assim que este se defronta com determinadas
condições de seu grupo familiar, contra as quais não há muito que fazer. Um grupo fraco terá
dificuldades de acesso ao mercado, por falta de bois de carreiro para o transporte das
24
O que é feito no caso do milho, que já está maduro e é quebrado no momento do plantio ou, e do arroz, que é
colhido antes disto ocorrer. Assim, o espaço fica totalmente disponível para o feijão.
89
mercadorias, por ter pouca mão de obra disponível ou por falta de terra boa de cultura, por
exemplo. Neste caso ele deve buscar uma negociação com um grupo mais forte para a
otimização de suas condições de plantio ou, se ater à lógica do autoconsumo. Por outro lado,
independentemente das condições de cada família: se numa roça grande ou pequena, se num
grupo numeroso ou com poucos integrantes; a aplicação do saber permite escalonar plantios,
tratos e colheita, de modo a que o serviço possa ser equanimente distribuído ao longo do ciclo
agrícola.25
Portanto a depender de suas condições internas e de suas condições de negociação
externa, o grupo familiar orientará sua estratégia de produção a partir de alguns pressupostos
sociais que devem ser seguidos à risca, enquanto manobrará em outros que podem ser assim
manipulados.
Temos, portanto, que o lavrador realiza uma intensa negociação entre as plantas em si,
entre as plantas e a condição social de sua família e entre as plantas e a condição ambiental.
Woortmann & Woortmann definem este tipo de organização do consorciamento como o
princípio da alternância onde “configura-se então uma associação que procura otimizar o
aproveitamento do espaço” (1997: 94). É a partir daí que entendemos o consorciamento de
produtos na roça. Como um processo complexo onde o lavrador põe a prova todo o seu saber,
manipulando diversas alternativas. Entram neste cálculo conformemos vimos acima, a
disponibilidade de mão de obra, a situação de vendagem destes produtos, as obrigações
rituais,26
os gostos e preferências culturais, a qualidade e a condição da terra a ser utilizada, a
variação da quantidade de chuva durante inverno, a classificação das espécies plantadas (forte
ou fraco), suas características (haste, madeira, cipó ou raiz), a lua de plantio e a organização
do tempo da colheita. Deste modo o que ocorre na prática é uma complexa negociação entre
as condições objetivas do grupo e suas necessidades de um lado, como igualmente entre as
exigências e possibilidades devidas à situação do ambiente em que vivem de outro.27
Portanto se anteriormente falamos das técnicas de plantio dos principais produtos
utilizados no mundo camponês do Arruda, entendemos que isto ainda não é a roça. A
produção deste espaço não se faz com o somatório das técnicas e espécies individuais, este
25
E ai não se estará apenas economizando mão de obra, no caso do grupo pequeno mas igualmente, no caso do
grande, mantendo a mão de obra disponível permanentemente ocupada. No mundo rural, tanto o ócio como o
esforço excessivo desnecessário são males que devem ser evitados, uma vez que remetem ao mau gerenciamento
do pater familias. 26
Temos aqui colocado as obrigações do tipo levantado por Eric Wolf (1976), como o fundo de aluguel ou o
fundo ritual; assim como as colocadas por Ciomara Schneider (2002), onde determinadas espécies são plantadas
em certos dias, destinadas à realização de uma festa comunitário-religiosa. 27
A cerca da mesma relação de manipulação e jogo das partes em busca de um resultado esperado ao nível do
todo englobante, conferir nosso estudo sobre a roça misturada dos posseiros de Santa Terezinha (Almeida, 1988:
60-61).
90
espaço é um todo complexo onde entram além destes elementos, as diversas variáveis acima
levantadas. Deste modo, passaremos a seguir a discussão dos diversos formatos de
consorciamento levantados em nossa pesquisa, de modo que possamos visualizar este todo.
Embora existissem dois espaços distintos na roça de antigamente, o do milho e o do
arroz, não tínhamos apenas dois padrões de consorciamento, um para cada área. Na verdade,
como existem diversas espécies que combinam e outras que não podem ser misturadas nunca,
assim como a forma de combinação dá margem à elaboração de diferentes estratégias; temos
que havia inúmeras formas de consorciamento em cada uma das duas áreas principais. Já
dissemos mais acima que a lógica da colocação da roça só é entendida quando se vai ao todo,
ao conjunto. No entanto pensamos que para sermos didáticos devemos inicialmente passar por
todos os sistemas ditos do milho e, posteriormente, todos os sistemas ditos do arroz para, só
depois de entendido os detalhes irmos para a compreensão do geral. Portanto, iremos num
primeiro momento à discussão das diversas possibilidades de consorciamento nas duas áreas.
Nosso levantamento indica que os sistemas de consorciamento empregados na área do
milho são basicamente dois: milho, feijão e rama ou somente milho e rama. O sistema milho-
feijão-rama é o mais utilizado deles e acerca deste, um lavrador idoso, antigo morador da
beira do Arruda disse:
É no feijão que papai plantava muito. Plantava o milho, daí no mês de fevereiro
plantava o feijão no milho. Carpia o milhal, plantava o feijão e limpava o feijão
quando tava com umas quatro, cinco folhas. Plantava a rama já em março. (...) Na
hora que limpava o feijão, plantava a mandioca por meio da rama, era março. A hora
que rancava o feijão, ia colher o feijão com o milho e a mandioca ficava. Então é só
limpar a mandioca.
Em setembro planta-se um pouco das sementes que latam ou enramam (cipó/fraco).
Quando as chuvas se intensificam, em setembro/outubro, planta-se o milho (haste/forte) num
espaçamento apertado. Depois da segunda limpa planta-se o feijão (cipó/fraco) em fevereiro.
Então se dá mais uma limpa e planta-se a mandioca (haste/forte) em março.
Portanto a perfeita alternância entre produtos fraco-forte-fraco-forte, assim como do
tipo cipó-haste-cipó-haste, faz com que nenhum produto passa estorvar os outros. Depois que
planta o feijão se limpa e se quiser, pode plantar rama no meio, porque se plantar rama ela
nasce, cresce por baixo do feijão. Que o feijão pregava naquele tempo, hoje é um feijão de
copada de terra. Naquele tempo era um feijão de cipó, subia no milho. Percebemos aí que as
diferentes características das espécies são combinadas para que os espaços sejam ocupados
distintamente. O milho já maduro, seco e quebrado, o feijão agarrado nele por cima e a rama
recém plantada que, por isso mesmo, pouco crescia e permanecia no chão. O milho colhia
91
quando ia arrancar o feijão, colhia os dois juntos, no mês de julho até em agosto. Só sobrava
a mandioca na terra. Esta, embora atrasada, tinha pegado um pouco de chuva no mês março,
o fim do inverno naquela época. Mesmo assim era o suficiente para agüentar o verão e, ao
pegar toda a chuva do inverno seguinte, se desenvolvia. Por isso sua colheita só era possível
no segundo verão depois de plantada.
A rama que planta em outubro, se não faltar chuva, quando é em outubro do ano
seguinte já pode fazer farinha que ta madura. Agora, a rama que plantar de janeiro
até abril, do mês de março, por exemplo, em março seguinte ainda não está madura.
Você plantou já na última ponta do tempo... E o que plantou no começo pegou só
tempo bom!
O segundo sistema empregado na área do milho era o milho-rama. Este não era tão
comum, mas segundo um morador do Espia que o utilizava, a diferença deste com o sistema
anterior era:
A mandioca é um mês depois do milho. Planta o milho, depois de um mês faz a limpa e
planta a rama. Agora onde você vai plantar o feijão, não planta a rama, planta o
feijão e depois planta a rama.
E nesse caso, planta ela quando?
A mandioca é plantada em outubro, novembro, dezembro, depois que o milho já saiu.
Mandioca é forte, não prejudica o milho?
Não, porque ela sai por baixo.
Neste caso, temos que depois do plantio das que latam (cipó/fraco), planta-se o milho
(haste/forte) em setembro ou outubro. De outubro a dezembro, somente depois que o milho já
saiu e já achou o seu rumo é que se planta a rama (haste/forte). Segundo levantamos, quando
se plantam as duas juntas a mandioca atrasa e só vai se desenvolver depois que colher o
milho, porque ele é quente. Neste caso a colheita do milho é feita logo, não sendo conservado
na terra, pois a mandioca já crescida em junho atrapalharia esta atividade. As do tipo que
latam são colhidas ao longo do ciclo, desde dezembro até enquanto houver o que colher.
Devido ao seu atraso a mandioca não poderá ser colhida com um ano, mas sim no fim do
período das chuvas do ano seguinte ou, a depender da variedade, mais tarde ainda.
Diferentemente do milho, em relação ao campo do arroz temos diversos sistemas de
consorciamento. Combina-se arroz com rama, com feijão e rama, com cana, com banana e
com banana e rama. O primeiro a ser analisado é aqui denominado arroz-rama. Segundo os
lavradores este é o mais utilizado, pois geralmente é a rama que planta no meio do arroz.
Deste modo temos que:
Naquela época plantava a mandioca quarteado, ou seja, sempre plantava, igual hoje.
Plantava quarteado a mandioca no arroz, plantava o arroz em novembro, limpava em
dezembro, já meado do mês de dezembro, janeiro, plantava a rama nele, no meio do
92
arroz.
Arroz você planta ele, então [um mês depois] você limpa ele e planta a rama. Aí ele
sai, não é dizer que ele sai muito, mas a hora que ele madura, limpa ele e sai que
iguala. Quando tava colhendo o arroz, a mandioca também já tava na terra.
O arroz (haste/forte) é plantado em novembro, época em que terminou o plantio do
milho no outro campo. Dezembro é o mês da limpa e depois desta planta-se a rama (haste/
forte) no meio do arroz, com um espaçamento maior. A características semelhantes de ambos
faz com que eles entrem em competição, atrasando a mandioca que foi plantada um ou dois
meses depois. Mas, como foi dito acima, quando se colhe o arroz a rama já está na terra.
Portanto, este sistema funciona semelhante ao milho-rama, sendo que pelo fato do arroz não
ser quente, ele não atrasa tanto a mandioca como naquele caso. Além disso, ele é geralmente
combinado com o sistema milho-feijão-rama e, neste caso, o resultado prático e que a
mandioca plantada aqui vai ser colhida antes da plantada no outro campo, o do milho. Isso
significa uma diferença de alguns meses: meio do inverno seguinte no primeiro caso contra
meio do verão seguinte no segundo. Como disse o lavrador, planta-se a mandioca quarteado
para sempre ter.
O segundo sistema da quadra do arroz é aqui denominado de arroz-feijão-rama. Este
não era tão usado antigamente, ficando mais como uma possibilidade de escolha ou como
uma opção no caso de se ter perdido a época de plantio da rama. Ele pode ser resumido em:
você planta o arroz em outubro, dá outubro, dá novembro, dá janeiro, fevereiro você já
colheu esse arroz. Se você quiser e se não tiver plantado rama no meio dele, você pode botar
o feijão. Você faz assim, carpi aquela paçoqueira que ficou, planta o feijão e depois que
limpar pode por a rama no meio dele. Temos assim um sistema semelhante ao milho-feijão-
rama, com o diferencial de que aqui não vai ter milho para o feijão subir. Como o arroz já foi
colhido antes de seu plantio o feijão se esparrama pelo chão, prejudicando um pouco a
mandioca, que igualmente o atrapalhará de se desenvolver.28
Apesar do fato de que ambos
tardarão mais a produzir, isso não é um problema maior, pois estes acabarão produzindo do
mesmo jeito.
Este sistema pode ser combinado com o do milho-feijão-rama. Neste caso, isso nos
leva a concluir que este tipo de utilização do campo do arroz pode se dar num contexto em
que é necessário, ou vantajoso, produzir mais feijão, mesmo com a ocorrência de um atraso
deste. Temos aí um claro exemplo da lógica do mercado interferindo no modelo de plantio
28
Neste caso não será possível aqui a replicação da ocupação ideal de espaços visto no exemplo mais acima: o
milho já maduro, seco e quebrado; o feijão agarrado neste, portanto no alto e; a mandioca ainda nova e pequena,
logo no chão.
93
local, voltado prioritariamente para o autoconsumo. Como o modelo, embora sendo ideal seja
passível de manipulação na hora de se aplicar na realidade, o saber camponês joga suas fichas,
de modo a que se perca na parte, mas ganhe-se no todo e, nos termos de Bourdieu (1992), sua
reprodução social seja assegurada.
O terceiro sistema do arroz aqui levantado é o arroz-cana. Ele pode ser entendido a
partir do seguinte diálogo:
Agora no mês de março você pode plantar feijão e, se quiser plantar, pode plantar a
rama.
E pode plantar a cana?
A cana já ficou, tem que plantar mais cedo, porque se não vem o verão e maceta ele
todo. A cana é um mês depois do arroz, a gente sempre planta na minguante, porque
ela é de haste.
Contudo, devido à característica de entouceiramento da cana, ela não aceita mais
nenhum parceiro na terra, como podemos ver na fala seguinte: aonde planta o arroz e depois
a cana, é só a cana, não planta mais nada, colhe o arroz e fica a cana. Já outro lavrador
explica que:
A cana planta aonde planta o arroz, só planta cana, não planta a mandioca, banana...
O milho junto com a cana não é bom, a broca que dá no milho passa pro pau de cana.
Então a cana só pode ser no meio do arroz?
No meio do arroz, que aí é bom.
Assim temos que neste caso, o arroz tem que ser plantado cedo, em setembro ou
outubro, para que a cana não seja plantada tão tarde. As características das duas espécies neste
caso são semelhantes, ambas são haste/forte, o que leva a possibilidade de uma competição
entre elas. No entanto, temos que o intervalo de um mês de vantagem do arroz, aliado a sua
característica de ter um rápido crescimento, faz com que o mesmo se desenvolva, tomando a
dianteira da cana. Esta tem a característica de crescer mais lentamente e, em fevereiro, quando
ela estiver com três meses o arroz é colhido, o que faz com que a mesma possa então se
desenvolver livremente.
Ademais não há muita escolha para o lavrador, uma vez que a cana não combina com
o milho, por causa da broca e com a mandioca e a banana, por causa do tempo de
permanência na terra. Assim a lógica da policultura e da utilização dos espaços sem
desperdício leva ao aproveitamento da área do futuro do canavial com o plantio do arroz. Mas
esta não é a única lógica a interferir no processo, pois, além disso, temos que no discurso local
é a terra que manda. Assim a depender da área utilizada: mais baixa e úmida ou, mais
inclinada e seca; o tipo de consorciamento varia.
94
Como é a escolha do consorciamento utilizado?
De acordo com a terra, que se é uma terra bem úmida, ou que falta água. Na terra
úmida não pode plantar a rama, ela tem que ser na área mais seco, ela não agüenta
água. Na úmida pode planta cana que é bom. Dependendo do tipo da terra, vê o que é
que planta.
Portanto, há determinadas áreas da roça em que o lavrador não tem tanto poder de
escolha e planta o que é da lógica da natureza. Woortmann & Woortmann levantam essa
mesma questão no Sergipe, quando colocam que “o que queremos ressaltar aqui é que, ao
contrário da agricultura moderna „racional‟, capitalizada e voltada exclusivamente para o
mercado, os sitiantes adequam as plantas (vale dizer, aquilo que irão depois comer) ao solo, e
não, como na agricultura „moderna‟, o solo às plantas, isto é, ao mercado” (op. cit.: 65).
Esta cana pode ser colhida quando fizer um ano, ano e pouco. Apesar disto, eles
preferem esperar o verão seguinte, pois aí o seu rendimento no engenho é melhor. Segundo
um produtor de rapadura e melado, com um ano ela dá uma catação [colheita], mas não dá
para fazer garapa boa, pois é com um ano e meio [que a cana fica boa]. Aí faz falta de ver,
fica tudo bom.29
Contudo, não é só por causa do rendimento que se deve esperar a seca.
Depois de cortada ela brota de novo, aí colher a cana na chuva, ela mata a touceira. Se cortar
bem cortado, vem a chuva e mata ela. Na seca não tem chuva para matar.
Outra razão para se colher cana no verão é que ela é usada como ração para o gado e
os animais, na época em que o pasto está fraco. Assim, o bagaço da cana utilizada para se
fazer rapadura era destinado à alimentação tanto do animal (cavalo ou burro) que tocava o
engenho como das vacas leiteiras que, eram mantidas próximo ao quintal.30
Deste modo, os
diversos insumos circulavam no interior do patrimônio, sendo intensivamente reaproveitados,
o que condiz com a lógica de internalizar os supostos da produção (Woortmann, E., 1983;
Woortmann & Woortmann, 1997). É por esta razão que a cana não era espremida a exaustão,
conforme presenciamos em qualquer barraca ou vendinha de fazer garapa nas cidades. Na
região do Arruda, a cana só passava uma vez na moenda e era entregue à criação ainda com
algum caldo, numa clara relação de reciprocidade e reconhecimento para com aqueles que
tanto servem a seus donos.
Finalizando, temos então o último modo de consorciamento citado pela memória
29
Este ponto será aprofundado no capítulo quarto, quando discutiremos o atual sistema de plantio de cana e o de
fabricação de rapadura.
30 Ao contrário do gado em geral, que era criado solto no mundo, as vacas leiteiras e os animais eram amansados
e acostumados próximo das casas de seus donos. As vacas em fase de lactação, particularmente, não
acompanhavam o resto do gado uma vez que seus bezerros eram amarrados em árvores do quintal, o que fazia
com que estas nunca se distanciasse tanto. Retomaremos este ponto no final deste capítulo.
95
local.31
É o sistema de plantio da banana que, tanto pode ser no meio do milho como do arroz.
Temos assim os sistemas arroz-banana-rama ou milho-banana-rama. Optamos por tratá-
los juntos aqui, ao contrário dos outros onde as áreas de milho e de arroz foram separadas,
porque a lógica é a mesma e este primeiro é o sistema mais utilizado dos dois, sendo o
segundo uma grande exceção conforme podemos perceber no exemplo dado abaixo.
E a banana?
É no meio da roça, no meio do arroz no milho, de qualquer coisa, planta desde
outubro, na lua de outubro. Se quiser um bananal novo, por exemplo, plantou o arroz
esse ano, no ano que vem ele [o bananal] ta crescendo, ta formando. Se quiser [neste
ano] dá uma limpada, dá uma limpa bem. Se quiser encher de rama, conforme a terra,
você pode encher de rama. Então fica os dois, aí se tirar a rama, fica o bananal
formado.
Ou seja, com o arroz ou milho (ambos haste/forte) plantados em setembro, numa área
onde anteriormente já foram feitas as covas, planta-se a banana (madeira/forte) na lua
minguante de outubro. Depois que a terra é limpa, em novembro, dezembro ou janeiro pode-
se plantar a rama (haste-forte), a depender da disponibilidade de tempo, de mão-de-obra e do
interesse.32
A banana é plantada com uma boa distância entre os pés e, depois de brotada
demora a se desenvolver. Aliado a isto tem o fato de que suas covas devem ser cavadas
anteriormente ao plantio do milho e do arroz. Com a evidente indicação do local onde será
plantada aquela, evita-se a competição não semeando estes tão perto ao seu redor. Para o
plantio da rama deve ser escolhida uma variedade de ciclo curto, de modo que ela seja colhida
ainda no inverno seguinte, mais tardar no início do verão. Uma vez que isso aconteça, o
bananal estará livre e formado para dar sua carga durante muitos anos. Quanto à colheita, não
há o mesmo impedimento da cana: banana pode colher todo tempo, mas só colhe um ano
depois. Antigamente, aquela banana de fritar que nós falava [banana da terra], durava sete,
oito, nove, dez anos. Aquela miudinha [banana nanica], no meu avô tinha bananal de 20 anos
no meio do mato.
É enfim chegado o momento de finalizar esta discussão, buscando a compreensão do
processo de consorciamento como um todo. Entendemos que não basta pensar cada campo, o
31
Isto não quer dizer que somente existam estes sistemas aqui levantados. Outros podiam ser utilizados mais
esporadicamente e, por causa disso, não foram lembrados. Outros ainda podem ter sido intencionalmente
omitidos. Como já dissemos anteriormente, a memória coletiva é uma construção, e não um simples somatório
de informações passadas. 32
Apesar da fala acima denotar a possibilidade de escolha, todos os lavradores com os quais tratamos deste
assunto afirmaram que sempre se planta a rama, para aproveitar a área do bananal. Está implícito aqui a lógica de
nunca desperdiçar uma área de terra passível de ser plantada. O contrário disso evidenciaria um relaxamento por
parte do lavrador e, seria entendido pela coletividade como uma vergonha, assim como uma afronta a Deus.
Afinal, a preguiça é considerada por eles um pecado capital.
96
do milho e do arroz separadamente, pois a lógica da produção da roça envolve as duas áreas.
Até aqui adotamos na escrito do texto a mesma técnica de montagem de um quebra-cabeça.
Quem tem prática neste tipo de jogo sabe que o conjunto final não é o resultado da simples
sobreposição das peças, uma a uma. É preciso primeiro separar as peças pela cor, aparência
ou tipo – no nosso texto, as técnicas individuais de plantio de cada espécie. Depois desta
separação, passa-se a montagem de cada setor, correspondente a estas peças semelhantes –
aqui a discussão dos diferentes sistemas do arroz e do milho. Por fim, a imagem global se
revela ao se juntar estes diversos setores já concluídos, acrescentando-se ai as inúmeras peças
que faltavam – enfim a lógica do consorciamento revelando-se no espaço total da roça. Deste
modo é o conjunto escolhido num determinado ano que deve ser analisado, pois é aí que se
expressam as semelhanças e diferenças com sistemas de consorciamento utilizados por eles
em outros anos e, até mesmo, por outras comunidades camponesas em outros contextos.
O primeiro modelo de consorciamento aqui discutido, milho-feijão-rama combinado
com arroz-rama, pode ser considerado o padrão. Eles foram não só os mais citados pelos
lavradores idosos como vários nos disseram que este conjunto era o mais utilizado. Podemos
depreender daí três fatores. Em primeiro lugar este modelo centra-se na tríade
milho/arroz/feijão, o carro chefe da subsistência do grupo familiar e de suas criações. Por isso
cada um deve ser plantado em seu tempo correto, evitando-se a competição para não atrasar
nenhum deles. Em segundo lugar temos que a mandioca está deslocada de seu período ideal
de plantio, o que leva a mesma a se atrasar. Contudo isso não é um problema, pois esta
espécie sempre é plantada quarteado, ou seja, sempre há mandiocal disponível e maduro para
ser consumido. Ademais, naquele tempo só se fazia farinha no verão, época em que a massa
estava mais sequinha e dava farinha boa. Não havia, portanto, uma necessidade tão imperiosa
de que o mandiocal produzisse logo, ainda no inverno seguinte.
Em terceiro lugar, percebe-se que neste sistema não aparecem a cana e a banana,
plantios igualmente importantes. Acontece que antigamente, em função do pouco ataque de
doenças e da alta qualidade das terras utilizadas, o canavial e o bananal duravam até dez anos,
não sendo necessário plantar um novo todo ano. Isto evidencia uma das mais importantes
características deste tempo de fartura, onde a extrema abundancia de matas possibilitava não
só o pousio das áreas de roça já plantadas, mas, principalmente, a efetivação de uma barreira
defensiva contra invasores externos, ou seja, um meio de controle natural contra as pragas.
Assim esta combinação padrão acima levantada se dava nas condições em que já havia
disponibilidade destas duas culturas na propriedade. Por outro lado se a organização dos
tempos de plantio respeitava as regras da natureza, como vimos anteriormente, quando se
97
sobrepõe os dois sistemas num conjunto só temos que outra lógica se revela. Percebe-se então
a organização do tempo dos serviços de modo a otimizar a utilização da mão de obra, nem a
sobrecarregando de atividades extenuantes, nem a deixando ociosa. Como a roça é o setor
produtivo mais importante de todo o patrimônio camponês, esta organização de seu tempo é
fundamental para a organização da mão de obra do grupo familiar, tanto a “plena” como a
“marginal” (Tepicht, 1973: 37-38), tanto a “produtiva” – o „trabalho‟ do homem – como a
“reprodutiva” – a „ajuda‟ da mulher – (Woortmann, 1995 a: 35).
Temos então a seguinte seqüência. Queima-se em agosto e neste mês ou no seguinte
temos o plantio das que latam. Em setembro e outubro passa-se ao plantio das espécies
marginais nos aceiro e na divisão dos campos. No mesmo período planta-se o milho e depois
deste o arroz, que pode ocorrer até novembro, a depender do informante (e da estratégia que o
mesmo utiliza). Entre novembro e dezembro temos a primeira limpa, seguido do plantio da
rama no meio do arroz, que pode estender-se até janeiro, conforme a condição. Em janeiro e
fevereiro temos a segunda limpa, seguida da colheita do arroz, da quebra do milho e do
posterior plantio do feijão. Em março a última limpa e o plantio da rama no meio do feijão. A
colheita do feijão e do milho será em maio ou junho.
Nesta época já se está brocando e derrubando nova área de mata, de modo a se
recomeçar o ciclo. A partir daí, nas duas áreas só ficou a mandioca, a mamona e o algodão. A
primeira pode ser usada de duas maneiras diferentes: será farinhada no verão seguinte, o que
propiciará nova utilização da terra no terceiro inverno, dois anos depois ou; ficará de reserva
dois anos ou mais, o que impedirá qualquer novo plantio na mesma. A mamona e o algodão
somente produzirão sua carga com um ano, no inicio do novo ciclo agrícola e permanecerão
produzindo por alguns anos ainda.
Se este é o modelo padrão, a maior variação percebida nos discursos em relação a ele
foi a que visa à formação de canavial ou bananal. No primeiro caso o normal é combinar
milho-feijão-rama com arroz-cana.33
Neste percebemos que se a lógica da organização do
campo do milho é a mesma do modelo anterior, no caso do campo do arroz há diferenças. Se
no exemplo acima a mandioca podia ser plantada de um a três meses depois do arroz, para
não atrapalhá-lo ou não sobrecarregar no serviço, o mesmo não pode ocorrer com a cana. Seu
plantio não pode ser atrasado, pois como já vimos, à cana não pode ser plantada tarde e sim
um mês depois do arroz. Temos então que o plantio do milho deve ser antecipado para
setembro, junto com os que latam. O plantio do arroz não pode passar da minguante de
33
Pelo menos um lavrador nos disse que usava plantar o campo do arroz sempre dividido em duas metades. Uma
com arroz-mandioca e a outra, com arroz-cana.
98
outubro, de modo que a cana não seja prejudicada, devendo ser plantada mais tardar na
minguante de novembro. Esta arrumação é fundamental posto que o canavial deverá produzir
por vários anos e um plantio em período errado em relação à lua ou a chuva pode por todo o
serviço a perder. Fora essas diferenças, todo o restando do processo é semelhante ao modelo
anteriormente levantado. Já o resultado no ano seguinte será um campo com mandiocal
formado, o que inviabilizara o seu uso neste novo ciclo agrícola, e outro campo com canavial
formado que durará anos para ser devolvido a natureza.
Já no segundo caso acima levantado, quando se interessa de formar bananal, o modelo
citado como padrão foi a combinação de milho-feijão-rama com arroz-banana-rama. Aqui
novamente temos uma replicação do modelo principal com uma única diferença, no campo do
arroz a banana é introduzida antes da rama. Contudo pelo fato de que suas covas são
preparadas antes, logo após a queima do terreno, o serviço de plantio não é tão demorado e
não atrasa tanto o conjunto. Assim, este modelo pressupõe que logo após a queima, em
setembro, se plante as que latam, um serviço rápido uma vez que se plantam poucos pés de
cada, como estratégia de não deixá-las tomarem toda a terra. Depois se tem um serviço
complexo e extenuante que é a abertura das covas da banana, pois estas devem ser maiores
que as da cana. Novamente, de setembro para outubro temos o plantio do milho, seguido do
arroz. Na lua boa de novembro planta a banana e aí, depois da limpa, dezembro ou janeiro o
plantio da rama no campo do arroz, quando a banana já inteirou mês. Segue-se a partir daí a
mesma rotina do primeiro modelo. O resultado é que depois de colhido o arroz, milho e feijão,
sobram dois campos com mandioca, sendo um com bananal formado. Neste, conforme já
adiantamos acima, a mandioca deverá ser retirada prioritariamente, dentre todos os
mandiocais da propriedade.
Outras variações possíveis, combinando os vários tipos de campo do arroz e do milho
não foram citadas. Podemos imaginar que existam outros modelos de organização da roça,
utilizadas em momentos especiais ou em necessidades extremas, mas aí já estaríamos caindo
no campo da especulação. Preferimos assim permanecer nestes três exemplos aos quais
tivemos acesso, até porque estes são no nosso entender os mais significativos.
99
3.2 OUTROS ESPAÇOS PRODUTIVOS
Plantios alternativos
No entanto, nem tudo é consorciamento e mistura no mundo agrícola do Arruda.
Existem ainda outros espaços em que não cabe nenhum tipo de mistura de espécies, como o
reservado ao amendoim. Este é plantado em outubro, num pedaço da roça totalmente à parte.
Amendoim, planta ele no mês de outubro e sozinho. Amendoim é uma planta que ele toma a
terra, ele embrulha um pouco e não sai nada. Planta em qualquer terra, na lua crescente
porque ele é cipó. Como toda cultura fraca, ela cresce pouco e dá rápido, tendo que ser
colhido logo. Portanto,
O amendoim planta duas vezes por ano. Em outubro [planta] e em janeiro, fevereiro
você colhe e, pode plantar de novo.
No mesmo pedaço?
E que com 90 dias ele ta maduro, ele dá duas produções por ano.
Como dissemos anteriormente, existem padrões da natureza que não deixam margem
para negociação. Se esta exige a exclusividade de um produto, o principio da policultura – o
modelo ideal – é suplantado, reservando-se um canteiro ou pedaço de roça exclusivo para
realização deste padrão.
Rio Arruda e seus Espaços
Outro espaço que ainda deve ser incluído na lógica do plantio de quem tem acesso ao
Rio Arruda é a praia. Este é basicamente a margem do rio que fica exposta quando este seca
100
durante o verão. Não deve ser confundido com o barranco: quando a ladeira é bem decida,
quando o declive é abrupto. Da mesma forma não é o mesmo que a beira do rio: a área de
terra firme que fica acima deste e é ocupada pela mata de galeria, somente alagando
esporadicamente em período de enchente. A praia só existe quando o declive, a ladeira se
apresenta bem suave, o esquema acima é ilustrativo disto.
Amorozo descreve o mesmo fenômeno de plantio na área da praia em Santo Antônio,
na planície do Rio Cuiabá.
À medida que se avança em direção ao rio, temos o „Baixadão‟, que é uma área baixa
e inundada periodicamente na época da cheias, comunicando-se com o rio através de
„bocas‟ ou „sangradouros‟. O „Baixadão‟ é usado por um período na época seca para a
agricultura, assim como o „Barranco‟ e a „Praia‟, áreas que margeiam o rio. Planta-se
tanto na margem de deposição (praia) quanto na de erosão (barranco), escalonando-se
o plantio à medida que a vazante se inicia, e prossegue, descobrindo porções maiores
de terra (1996: 61-62).
Devido às diferenças ambientais, em Santo Antônio temos um grande rio de planície
(o Rio Cuiabá) e na região do Arruda um pequeno rio de serra (o Rio Arruda), nesta última
localidade se utiliza apenas da área da praia para o plantio, enquanto na primeira se utilizam
diversas outros espaços para o mesmo fim. Portanto, devido a estas características locais
temos poucas áreas de praia disponíveis no Rio Arruda, a bem dizer o único rio da região,
uma vez que os outros são simples córregos e seus leitos são incapazes de propiciar tal
espaço.
Contudo, onde a praia existe pode-se plantar desde maio, que naquele tempo em abril
já não chovia mais e o rio já havia baixado. A colheita tinha que ser mais tardar em outubro,
quando já se estava em pleno inverno e o rio começava a subir. Plantavam-se tudo, uma vez
que a área era naturalmente adubada pelo lodo do rio.
No barranco lá do ribeirão, lá eles plantavam milho, planta o feijão, planta melancia,
abóbora, um bocado de fumo, as roças de cebola.
Que tipo de cebola?
Cebola branca, é aquela bem clarinha, é cheirosa.
É verdura plantava?
Verdura plantava alface, chicória, mostarda, couve, plantava de horta, em casa, na
praia não.
Se em casa, no plantio de verdura, a mão de obra era feminina com um pouco de ajuda
masculina, para fazer os canteiros altos, por exemplo,34
na praia o serviço era masculino, mas
34
Canteiro alto é uma área de plantio de verduras preparada sobre um estrado de madeira construído ou mesmo,
sobre uma canoa velha ou qualquer vasilha grande e imprestável (bacias, por exemplo), que são elevados do
chão por vigas de madeira, para a sua proteção contra os animais de criação do quintal. O serviço de construção
cabe aos homens, enquanto o plantio e o trato com as verduras cabem as mulheres.
101
reconhecidamente com ajuda feminina. O plantio e os cuidados eram realizados pelos
homens, enquanto a irrigação era manual e feita pelas mulheres e crianças que uma vez por
dia desciam no rio com as bacias e jogavam a água com todo o cuidado na área da roça. O
único produto que era típico da praia e que conseguimos a informação precisa de sua técnica
de plantio cuidado e colheita foi o fumo. Talvez isso se deva ao fato de que as técnicas de
plantio dos outros produtos neste espaço não eram tão diferenciadas das utilizadas no espaço
da roça, obviamente se respeitando as especificidades da praia. Pensamos também que esta
área se destinava quase exclusivamente ao consumo, pois era uma forma de reforçar a
despensa e de ter no verão alimentos frescos, que de outra forma só se teria no inicio do
inverno, como verduras, abóboras, melancia, milho verde, etc. Deste modo a memória local
não priorizou a descrição deste panorama. Já o fumo, por ser um produto altamente valorizado
para o consumo, facilmente vendável e, com um preço razoavelmente elevado, claramente foi
retido nesta memória como um dado importante.
Em função deste aspecto, pensamos que seja importante passar a descrição deste
processo, como um exemplo, uma forma de entendermos o que se passava na roça da praia
como um todo. Temos assim a fala de um lavrador, antigo morador da beira do Arruda, que
sempre plantava o fumo.
Antigamente produzia fumo e dava muito dinheiro. A terra nossa dava muito... Mas na
lavoura, terra queimada, dava muito bom mas amarga o fumo. Na praia é forte, mas
não amarga, só não pode passar fogo porque a cinza dá muita força, mas dá o
amargo. Quando tinha roça na praia todos plantavam o fumo.
E como plantava o fumo?
Colhe a semente, faz aquele quadrinho, aquele canteirinho [na beira do rio] e semeia a
semente, ele nasce. A hora que as mudinhas tiver nesse ponto aqui [com 10 cm],
também muda.
Pode plantar no meio de arroz ou feijão?
Não, tem que ser um pedaço só para ele, planta abóbora e melancia, [outros legumes
não podem].35
Vendiam muito aqui, era muito caro, eles preparavam o rolo.
Plantava em que época?
Maio e junho, é tempo de plantar ele na praia, porque não tem perigo de enchente.
Planta ele mês de maio, fim de maio por exemplo. Passa junho, julho, agosto, de
agosto para setembro, você começa a pegar as primeiras folhas que ta madura. Você
capa ele, que é para ele não ir mais para frente, a folha cresce pros lados.
Como é?
Você capa ele, aí vem os brotos. Então você não deixa os brotos vir a sair, a cada oito
dias você vai lá desolhar, e ele esparrama demais. (...) Quando ele madurou um
pouco, você pega aquele pouco e arranca. Aí ele amarela e murcha, vai enrolando,
enrolando ele. Tudo aqui em volta produzia muito, o povo todo produzia, parou de
35
Novamente temos aqui claramente o discurso de que o pedaço é „só dele‟, do plantio principal, seguido logo
depois da informação de que planta abóbora e melancia no meio. Estes plantios marginais são como que
invisibilizados, de modo a reforçar a posição hierárquica do plantio principal.
102
plantar quando o povo saiu lá do Arruda.
O fumo é plantado e tratado (as limpas e capações) e colhido pelo homem, enquanto
que é irrigado pela mulher. Já o seu beneficiamento visando o preparo do fumo de rolo é
realizado pelas mulheres36
e uma vez pronto ele é levado ao mercado pelo homem para ser
vendido. Temos assim uma atividade que visa à produção de um bem de consumo altamente
apreciado e de grande procura no mercado, onde o grupo familiar participa de forma plena,
conjugando os esforços de ambos os sexos e faixas de idade.
Criação de animais
Quanto à criação de animais, naquele tempo era pouco e atendia prioritariamente a
lógica do consumo. Um morador idoso lembra que aqui já foi um lugar de muita produção.
Hoje também produz, mas hoje é outra produção, é gado, é porco. Antigamente criava pouco
porco, matava e tirava a carne, a banha, fazia lingüiça. Tirava para despesa e vendia o que
sobrava. Embora alguns afirmem que se levava toicinho, lingüiça e carne de gado manteada
para vender serra acima, esses produtos eram frutos do excedente da produção ou mesmo, da
repressão do consumo. O destino final prioritário das pequenas criações, as miúnças, era a
cozinha, criava porco e galinha só para despesa. Da galinha nada se vendia, pois: galinha é
mais fraca que peixe, galinha é um divertimento. Já do porco, somente as partes beneficiadas
eram destinadas a esta finalidade. Estas eram criações ditas de terreiro ou de quintal,
portanto, eram frutos do trabalho feminino. Cabia a mulher e as crianças a labuta diária de
tocar, dar comida e água a estes animais. A criação era solta e comia milho, mandioca, banana
e outras frutas do quintal. Os homens só se intrometiam neste território feminino na época dos
serviços difíceis e perigosos como a capação dos porcos, sempre realizada na lua crescente,
para que o porco cresça igualado e, no momento de matar.
Já a criação do gado obedecia à outra lógica. Esta era uma criação exclusivamente
masculina, pois ao contrário da miúnça de terreiro/feminino, o gado era solto no mundão de
deus por tanto, do campo/masculino. Não se criava muito: cada um tinha um tanto, tinha os
que não tinham nada, uns tinha 5, outros 10, 15, até 20. Os proprietários mais fortes,
geralmente pequenos comerciantes locais, eram poucos e fugiam deste padrão:
Gado hoje tem pouco, uma meia dúzia. Antigamente tinha muito. Meu pai, quando
entendi por gente, ele era criador de gado. Ele ia nas fazendas e comprava 40, 50
miudinho e criava. Os vizinhos criava mais pouco, mas todo mundo criava. Cada um
36
Conferir no capítulo primeiro a citação de Steinen, onde o mesmo se refere a esta atividade em Rosário.
103
tinha uma, duas vacas, três, mas sempre tinha.
Segundo um atual criador, que era criança neste tempo, antigamente a maioria é um
gado comum, aquele gabiru como chamava. (...) Nós chamava de gado comum mesmo, de
curraleiro, como nós chamava. Contudo, os mais idosos afirmam que o gado daquele tempo
era do tipo caracu. Este foi um gado introduzido no Brasil pelos portugueses, desde o inicio
da colonização. Ele chegou à região da Baixada Cuiabana vindo de São Paulo, trazido pelos
Bandeirantes ainda no século XVIII. De acordo com a Associação Brasileira de Criadores de
Caracu:
A primeira entrada desses animais ocorreu em 1534 em São Vicente-SP. Foram
criados durante vários séculos enfrentando todos os tipos de dificuldades como:
alimentação, doenças, clima e parasitas. Esta pressão natural moldou os animais
chamados crioulos (nativos), destes foram separados os de pêlo amarelo e formada a
Raça Caracu. O que mais chama atenção na Raça Caracu, por ser de origem européia
(Bos Taurus) é a extraordinária adaptação ao clima tropical e sub-tropical. A seleção
Natural provocou modificações anatômicas e fisiológicas que lhe proporcionaram as
características a seguir: pêlo curto; resistência ao calor; resistência a endo e
ectoparasitas; facilidade de locomoção (bons aprumos); cascos resistentes, tanto para
solos duros quanto encharcados; umbigo curto e sem prolapso; capacidade de digerir
fibras grosseiras; facilidade de parto. O padrão da raça [é] chifre alaranjado, com saída
para os lados; orelhas pequenas; pelagem nos vários tons de amarelo, sem pêlos ou
manchas brancas; estrutura longilínea; linha de dorso plana, com pequena inclinação
na garupa; prepúcio curto; vassourra do rabo amarela; mucosa alaranjada; e cascos
claros, avermelhados ou rajados [...] Em regime exclusivo de pasto, o peso médio das
vacas está em torno de 550 a 650 kg. Tendo casos de até 750 kg. Os Touros pesam ao
redor de 1.000 kg. podendo chegar a 1.200 kg [...] A produção em rebanhos de
seleção leiteira está em torno de 2.100 kilos por lactação (inclui novilhas de 1ª cria)
em regime de pasto com pequena suplementação (Associação, 2003).
Não se formava pasto, pois o capim utilizado era de pasto nativo, aqui tem várias
regiões que tem o jaraguá, que é nativo e dá bem pro gado. Um lavrador cujo avô criava
gado colocou que:
Capim? Era capim bruto da natureza. Nós tinha que cercar a roça, a roça ficava
cercada, é o gado solto. Hoje é que mudou. A lei atual é de cercar a criação e a
lavoura pode ser aberta, a obrigação de quem tem o gado, é prender ele. Naquele
tempo, às vezes uma pessoa daqui [do Espia] criava boi lá pro Cedral, lá na beira do
rio Manso.
E era tudo junto?
É tudo junto... Eu ia buscar quando ia negociar...
Os tratos eram feitos de vez em quando e de forma solidária. Ao se localizar um
bezerro nascido ou um boi doente tinha-se a obrigação de cuidar, conforme podemos ver no
seguinte depoimento:
Vamos dizer que era como se fosse uma sesmaria só, se criava gado tudo comum. O
104
gado era solto, eu saia com papai, eu era criança, pai saia... Neste tempo não tinha o
mata bicheira,
O leprecid [marca do mais famoso mata bicheira]?
Neste tempo era criolim. Você já saia com o criolim na sacola. Para onde achasse um
gado embicheirado da gente, ou seu que achava, era de praxe você por. tratava
tudinho e depois comunicava o dono. Não tinha esse negocio de roubo.
Os cavalos eram amansados e acostumados a pastar perto da casa, pois eram
necessários para os deslocamentos e para se juntar a tropa de bois. Como o gado era solto,
adotava-se a seguinte estratégia. Para ter leite, amarravam os bezerros que a vaca ficava por
perto. Assim, podia-se fabricar queijos e doces. O curral onde as vacas eram leiteadas e onde
o gado era ajuntado e preso era produzido com a tradicional técnica de cerca de vara. Esta
consiste em dois esteios amarrados, fincados paralelamente no chão. No espaço intermediário
são colocadas as varas de pau roliço e seco do mato. É colocada uma vara para um lado e, em
cima, outra para o lado contrário, numa média de 12 varas de altura em cada vão. A
amarração era feita com corda ou arame (conferir foto na página 109).
A técnica de se tirar esta madeira é igualmente baseada na lua.
Agora que nós estamos no mês de março, abril, então para tirar madeira. Que
antigamente não tinha nada dessas madeiras serradas, tudo era madeira para fazer
casa de barro, de pau a pique que chamava. Como que o pessoal sabia de tirar
madeira e, essa madeira tinha uma durabilidade de 20, 30 e 40 anos, tem que saber
quando. Só nos mês de maio, junho, julho e agosto, os meses que não tem 'R'. Então
você vai tirar depois que a lua faz cheia, você vai tirar na minguante. E isso é igual ao
plantio...
O meu curral é de pau roliço. Fui dar uma reformadinha nele, mandei tirar essa
madeira em maio, na minguante de maio, porque seguramente durante quatro ou
cinco anos eu tenho ele.
Um dado interessante que observamos na atualidade e que segundo os mais velhos
sempre foi assim, é a localização dos espaços destinados ao gado e a miúnça. O curral de gado
sempre está ao lado da casa, sendo por isso perfeitamente visível da estrada.37
Já o mangueiro
de porco e, o local de dormida das galinhas38
invariavelmente está no fundo do quintal, atrás
da casa, às vezes dificilmente distinguível a primeira olhada. Este padrão replica e evidencia a
divisão dos espaços sociais entre os gêneros. Assim o mangueiro, espaço de trabalho feminino
é como que encoberto, da mesma forma que a cozinha e o quintal, que ficam nos fundos, no
37
Às vezes o curral é a primeira coisa que se vê ao chegar numa propriedade. Certa vez nos perdemos ao descer
no vale do Arruda, para procurar a residência de um lavrador. Ao atravessarmos uma área de mata, não
encontramos indícios de habitação e já pensávamos em retornar quando ao longe avistamos um curral.
Desnecessário dizer que depois de muito caminhar, constatamos que a casa que procurávamos se localizava atrás
deste. 38
Normalmente não existe e nem existia galinheiro nas casas. Galinhas dormem empoleiradas nas árvores do
fundo do quintal.
105
domínio privado. Já o curral, espaço da expressão masculina, é claramente visível, tanto
quanto a sala ou a varanda que dá para estrada que leva ao mundo, localizadas na frente, no
domínio público. Portanto, temos que fundos/casa/escondido é uma representação do gênero
feminino, enquanto frente/mundo/visível por sua vez, o é do masculino.
Farinha e rapadura
Nos fundos da casa, mas não invisível, porque é um território de trabalho tanto do
homem como da mulher, normalmente se tinha o barraco denominado engenho, destinado a
fazer rapadura, açúcar e a farinha. Esta última era fabricada somente nos meses de agosto e
setembro, quando a raiz da mandioca estava em melhores condições para ser farinhada.
Segundo Amorozo, “o rendimento da mandioca madura para a confecção da farinha depende
do estado fisiológico da planta, e tem relação com a época do ano. No começo das águas,
outubro/novembro, a mandioca começa a brotar, emitindo novas folhas, e a raiz torna-se
aguada, o que diminui bastante o seu rendimento” (op. cit., 1996: 207).
O serviço era muito pesado e demorado, nós trabalhava aqui para fazer um saco, dois
sacos, tinha que levantar cedo, era 3 horas da manhã e trabalhar. Deste modo, todo o grupo
familiar tinha que participar do trabalho, geralmente organizado em forma de muxirum
(mutirão), com o envolvimento de grupos familiares aparentados39
. Devido a este fator o
habitus do grupo organizador de sua prática, impedia que esta atividade viesse a se sobrepor
com o serviço da roça, liberando a mão de obra desta para a realização daquela. Assim o
beneficiamento da mandioca em farinha, do mesmo modo que a fabricação de rapadura, era
realizado sempre na lua nova, período em que por três ou cinco dias qualquer atividade na
roça estava proibida, devido a enorme força da lua. A arrancação da mandioca, feita no dia
anterior, era tarefa dos homens. Depois de arrancada esta era trazida no lombo do cavalo ou
na charrete. O serviço de descascar mandioca e ralar a mandioca era feminino. A mulher
realizava estas penosas tarefas, as mais difíceis do sistema tradicional, com a ajuda de
crianças. Segundo a descrição de um casal que atualmente faz farinha, o processo era assim:
O marido – Hoje eles tem ralador mecânico, antigamente era no caititu40
manual, o
39
Temos ai claramente colocado o princípio da reciprocidade, onde um grupo ajuda o outro a fazer a farinha
num mês e, no mês seguinte, quando der novamente a lua boa pra se farinhar, temos a retribuição da ajuda. 40
Caititu é um instrumento de ralar mandioca, encontrado em diversas regiões do Brasil. Este se constitui numa
bancada de madeira onde é montado um cilindro acoplado a um sistema circular, movido a manivela
(modernamente é movido a motor elétrico ou a combustão). Ao redor do cilindro, feito de madeira, é colocada
uma chapa de metal perfurada, de modo que as rebarbas destes furos fiquem salientes para fora. Uma armação de
madeira dirige a mandioca para o cilindro, de modo que ao se rodar o mesmo, esta é triturada e cai num orifício
indo se depositar, já ralada, num cocho ai colocado (conferir foto na página 109).
106
povo sofria muito.
Mas naquele tempo já tinha caititu por aqui?
O marido – Antes, no tempo de antigamente? Ralava no ralo, feito assim de uma rolha
de latão. Punha ela numa armação de madeira e furava com pregos pelo outro lado,
que usava o lado que ficava as pontas da perfuração do prego para ralar a mandioca.
A esposa – O maior trabalho era ralar, a gente ralava, depois ia socar tudo a massa
no pilão. Socava ia para peneira para poder depois torrar.
O serviço posterior de prensar, secar e torrar a massa, é eminentemente masculino.
Estes são, no entendimento deles, serviços pesados e perigosos, devido ao esforço exigido
para acochar a prensa ou, para enfrentar o calor do forno.
A massa era torrada num forno pequeno de difícil manipulação. Amorozo igualmente
levanta a utilização deste forno na área de Santo Antônio, há muito tempo atrás. “O forno
mais antigo de que se fala era o forno circular feito de barro, hoje inexistente, que cozia e
torrava a massa de mandioca de forma muito lenta, gastando, portando, mais lenha” (op.cit.:
205). Não observamos este tipo de forno, mas numa das andadas pelas bandas do rio Arruda,
fotografamos os restos de uma casa de farinha muito antiga. Segundo a lembrança dos
moradores atuais da propriedade que se mudaram para lá na década de 1960 e não
encontraram nenhum morador na terra, esta casa de farinha possivelmente foi abandonada por
volta da metade do século passado. Nesta foto (conferir página 109) pode-se ver claramente a
estrutura circular de pedra que sustentava o barro do forno, além dos pedaços restantes da
prensa de acocho. Desnecessário dizer que ao lado destas ruínas encontramos os monturos do
alicerce da casa do antigo proprietário.
Segundo nosso levantamento, antigamente se fabricava da farinha branca – semelhante
à de hoje –, além da de puba e de milho, que hoje não se fabricam mais. Um antigo fabricante
de farinha assim resumiu suas impressões sobre estas duas.
A farinha mais forte é a de molhado, que fazia antigamente. A branca é forte, mas a
de puba é mais forte. (...) Comia a de puba com leite, era gostoso... Hoje em dia, o
povo não faz porque não quer ter trabalho, quanto mais fácil melhor.
Naquele tempo fazia a de milho também.
E como é que fazia?
Debulha o milho, quebra ele no pilão, para tirar o olho do milho, tirar toda a pele
dele. Põe ele de molho na água e tem dia certo para ir lá e lavar ele, para tirar toda
aquela catinga de azedo. Daí mete a mão do pilão nele, faz o pó e faz torrar no forno.
Era uma farinha grossa e violenta, comia muito...
Além da farinha, nos engenhos era fabricado a rapadura e o açúcar de barro. Cabe aqui
a ressalva de que esta palavra designava não só o engenho onde se mói a cana, como o
barracão onde é processada a garapa. Contudo mesmo em relação à moenda, como existiam
de dois tipos diferentes, só um é assim chamado. Engenho é só o que é puxado por animais
107
era tudo madeira e o de ferro é recente. Por outro lado, o modelo mais simples utilizado pelas
pessoas fracas que não tinham animal era diferente. O pessoal miúdo moía cana no
descaroçador. Você já viu aqueles dois pauzinhos assim que puxa no braço. No descaroçador,
o serviço de moer exige quatro pessoas: dois homens fortes, cada um tocando uma moenda e
outras duas que podem ser homem, mulher ou criança, enfiando e retornando os paus de cana
na moenda. Já no engenho, como a tração das moendas é dada por um animal, basta o
trabalho destas duas últimas pessoas.
Estes dois tipos de moedor de cana são citados como existindo desde a origem do
grupo, nas décadas de 1870 na região do Arruda e de 1890 no Cedral. Alguns engenhos
existem até hoje, embora só vimos um de madeira, que foi recentemente modificado.41
Quanto ao descaroçador, pelo fato de que este era a moenda dos camponeses fracos, que
foram todos expulsos na época do espremimento da década de 1970 (com suas casas e
quintais sendo totalmente queimados),42
não conseguimos ver nenhum e nem ter notícia de
sua atual existência na região.
Segundo a memória local, algumas pessoas tinham engenho ou engenhoca na região.
Engenho nem todos tinham, só alguns, mas nós tinha uma engenhoquinha... Aquele
todo mundo usava para fazer a rapadurinha, só para casa mesmo.
[Meu] avô tinha engenho e fazia muito açúcar e rapadura, no começo ele fazia pinga.
Aqui tinha engenho, Libânio, meu tio, também tinha engenho de madeira. Ali nessa
parelha do Lambari, tinha também no Valério.
Um dado interessante é que podemos perceber como a rede de solidariedade e
reciprocidade funcionava, disponibilizando um bem escasso, mas importante como o
engenho.43
Os proprietários dos mesmos, centravam na produção de pinga e açúcar de barro
para o consumo e para o mercado. Já os mais pobres, a troco de uma pequena e simbólica
parte da produção ou até mesmo sem que houvesse qualquer forma de pagamento, no caso de
ser um parente mais chegado, fabricavam um pouco de rapadura para o consumo.
O açúcar de barro não é produzido mais na atualidade, tendo desaparecido quando da
chegada na região dos vendeiros, nas décadas de 1930 ou 1940, que traziam o açúcar refinado
a um preço mais barato e compensador do que este produto artesanal.44
Contudo, levantamos
que ele era produzido através de um processo que limpava a borra do melado já bem grosso,
refinando e o tornando-o mais claro. Este processo nos foi relatado por um dos mais idosos
41
A cerca desta modificação, conferir capítulo quarto. 42
Já discutimos o espremimento no capítulo primeiro e, retomaremos este ponto no capítulo quinto. 43
No caso da fabricação da rapadura, não temos a replicação do modelo de trabalho por muxirum existente na
farinhada. Isso se dá pelo fato do trabalho neste serviço não ser tão puxado como naquele. 44
Conferir o capítulo primeiro.
108
moradores do São Pedro, antigo morador do Arruda.
Nesse tempo, papai tinha engenho, moia cana, fazia pinga, fazia açúcar. Tinha
alambique de fazer pinga, aquele troço de fazer açúcar, assim, aquele escorredor.
Botava o coisa, daí o açúcar... Daí botava o barro para chupar, o potó saia e já saia o
açúcar pronto para tirar para secar. Era chamado o açúcar de barro.
Como é que ele era feito?
Açúcar de barro, tinha a tal da pipa, que é feito de um caixão comprido assim, com
um buraquinho. Cozinhava a garapa, quando tava feito o melado era só despejando,
despejando. Ele ia pingando, pingando, pingando, pingando. Lá tinha um cocho em
baixo para cair o melado, falavam potó, potó, o melado, igual a óleo queimado. A
hora que ia secando, que ficava já ia endurecendo, pegava um barro, um barro bom e
botava com riba assim. Com poucos dias ia ver tinha secado, tirava o barro e sai
limpinho ali.
O barro chupava o escuro?
Chupava. Então é só botar no couro para secar. Se quisesse usar assim mesmo, bem,
que é um açúcar fino (...) Açúcar tirava assim de calhau, calhau, secava ele, se
quisesse usar ele assim mesmo, no doce, fazia. Se não refinava ele no tachinho, no
tacho de novo, pro fogo refinava ele. Saia um açúcar fino, gostoso.
A rapadura vendia aqui mesmo, vendia em Rosário, em Cuiabá. Este açúcar era um
produto altamente apreciado nas zonas mineradoras, para onde era levado pelas tropas de boi.
A pinga produzida, segundo eles, era consumida localmente mesmo.
109
Cerca de Vara no curral
Restos da Base do Forno e da Catraca da Prensa
Caititu movido a motor de gasolina
110
CAPÍTULO IV
O SÉCULO XX E AS MUDANÇAS NA PRODUÇÃO
Avaliar é criar. Ouvi, criadores! Avaliar é o tesouro e a jóia de todas as coisas avaliadas. Pela avaliação se dá o valor; sem a avaliação, a noz da existência seria oca. Ouvi-o, criadores! A mudança de valores é mudança de quem cria. Sempre quem cria destrói.
Friedrich Nietzsche1
A prática da experimentação de novidades
Como vimos no capítulo primeiro, as comunidades camponesas da região do Arruda
não estavam em um estado de isolamento do mundo circundante. Muito pelo contrário, o
contato com outros grupos de lavradores vizinhos e com os mercados (espaços de troca de
saberes e práticas, por excelência) das zonas mineradoras e da capital era constante. Podemos
depreender daí que são os homens que tem um papel fundamental neste processo de
introdução de novidades, uma vez que são eles que viajam para o mercado, enquanto que suas
esposas se firmam no papel da manutenção de elementos tradicionais, uma vez que estas
permanecem na comunidade.2 Da mesma forma, pessoas de fora (famílias de lavradores sem
terra, tropeiros, boiadeiros e comerciantes) não só percorriam a região como lá se
estabeleciam. Assim, existia um continuo fluxo de novidades entre o mundo externo e os
grupos camponeses de toda a região.
Aliado a isto, temos o fato de que a prática local sempre foi caracteristicamente aberta
à avaliação de novidades, criadas por algum membro do grupo, percebidas em seus vizinhos
camponeses ou vindas do mundo externo. Isso não quer dizer que o grupo não defendesse seu
modo de ser ou sua prática, buscando inovar em todos os campos. Mas sim que uma vez que
um novo elemento é observado ou inventado e há uma percepção dos membros do grupo de
que este pode trazer uma melhora e, por fim, apenas depois deste ser devidamente
1 Extraído de (Nietzsche, 2002: 58-59).
2 Não queremos dizer ai que as mulheres são estáticas e nunca viajavam, mas que seu raio de ação e percepção
do mundo em volta era eminentemente menor do que o de seus companheiros. Apesar disto, entrevistamos uma
senhora nascida em 1905, a pessoa mais idosa que encontramos em toda a nossa pesquisa e que era parteira.
Conforme ela mesma nos relatou, a mesma viajava a pé por toda a região. Para nosso espanto ela nos descreveu
que foi aparar criança até mesmo em Ponte de Pedra, área dos índios Pareci, distante cerca de 250 Km da região
do Arruda.
111
experimentado e apresentar um resultado satisfatório, é que ele será prontamente reelaborado
e incorporado à lógica preexistente. Deste modo, muda-se um implemento, uma técnica ou
uma variedade, mas o modelo geral continua o mesmo, como coloca Henri Mendras:
As sociedades camponesas que dão lugar, em seu funcionamento costumeiro, à
incerteza e à avaliação das situações são as mais preparadas para acolher a inovação,
tanto técnica como a social, já que podem adaptar mais facilmente os
comportamentos, sem que isso modifique as estruturas e as instituições: acolhem a
inovação na medida em que não modifique o sistema social (1978: 204).
Contudo, ao passar para a discussão de como se dá o processo de experimentação de
novidades no campesinato europeu, este autor declara que este segmento é avesso a qualquer
inovação. Estas somente penetram no mundo rural, na visão de Mendras, a partir da atuação
de um „notável‟.
Experimentar de „verdade‟, traz riscos que um camponês não pode correr, sobretudo
se nisso está em jogo a alimentação de sua família. Destinar uma parcela a um novo
cultivo ou a uma nova técnica, sem estar seguro do resultado, pode diminuir
proporcionalmente a colheita se a tentativa falha. Esse é um luxo ao qual não se pode
dedicar o pequeno camponês e que um grande hesita sempre em proporcionar-se; (...)
Em compensação, o notável que consagra um campo para a experimentação dá por
descontada essa colheita, mas, tendo tomado todas as providências técnicas, o risco de
fracasso é pequeno. (...) Uma vez aprovado o experimento, dominada a técnica e
adaptada à região, talvez os camponeses possam ser convencidos pela experiência e
sigam o exemplo do notável, cujo prestígio se realçará (op. cit.: 207)
Contudo, não é esta prática que presenciamos ou levantamos junto aos camponeses da
região do Arruda. Na verdade, como veremos mais adiante, a observação dos grupos vizinhos
em busca de algo que seja percebido como uma melhoria é uma constante. Da mesma forma,
a experimentação é um fator cotidiano, sempre que algo é inventado localmente ou trazido de
fora.3 Até mesmo o próprio processo de experimentação aqui praticado em nada se assemelha
ao levantado por Mendras. Para este, “é por isso que, quando um camponês começa a fazer
experimentações, sempre as faz escondidos e não as revela senão em caso de triunfo, e ainda
assim, pouco a pouco, tomando mil cuidados” (idem).
Mais do que experimentar, um lavrador da região do Arruda busca divulgar a
experimentação. Muitas vezes me foi dito, a cerca do teste de uma rama nova descoberta, que
a mesma era plantada inicialmente em um campo situado exatamente em frente de sua casa,
na beira da estrada. Assim, o lavrador está trabalhando com dois princípios ao mesmo tempo.
Por um lado, divide-se com a comunidade a responsabilidade do resultado do teste, uma vez
que ele não é o único a decidir se esta novidade será definitivamente introduzida no plantio da
3 Esta propensão a buscar novidades e experimentar é igualmente percebida em outros segmentos camponeses do
Centro Oeste. Conferir (Almeida 1988; Di Stefano, 2003).
112
região ou abandonada. Aliado a isto temos claramente a afirmação por parte do lavrador, do
princípio da doação, da reciprocidade. O fato de plantar num espaço intermediário situado
entre a rua e a casa, ou seja, entre o público e o privado, representa simbolicamente que, uma
vez aprovado o experimento, a nova „semente‟ estará à disposição de todos. Segundo um
lavrador do Cedral, é só pedir que nós damos e em pouco tempo já esparramou em tudo que é
lugar.
Outro ponto a destacar, e que será visto a seguir ao longo de todo o desenvolvimento
dos próximos capítulos, é que estas invenções e inovações chegam ao grupo
independentemente da situação interna do mesmo. Novidades não escolhem o momento de
aparecer e tanto em momentos de calmaria como de crise devem passar necessariamente pelo
crivo da experimentação, como vimos acima. Estas somente serão incorporadas se fizerem
sentido à lógica local e trouxerem alguma melhoria. Portanto, não se aplica à realidade da
região do Arruda, a percepção de Eric Wolf (1976) quando o mesmo afirma que é a
necessidade que faz o invento. Para este autor, numa sociedade camponesa somente se busca
inovar quando é preciso, quando há uma imposição do meio, e não por uma opção cultural do
grupo. Nossa etnografia atual demonstrou claramente que são os dois fatores, tanto a
necessidade como a opção, ora uma, ora a outra, e em alguns momentos as duas conjugadas,
que são responsáveis pela introdução de uma nova planta, de um novo tipo de instrumento ou
de uma nova técnica de plantio.
Um último ponto importante a destacar é que, conforme já levantamos anteriormente,
na busca da memória local sobre estes processos de mudança, conversamos com vários idosos
nascidos na primeira ou na segunda década do século XX. Assim, quando estes se referem ao
tempo de antigamente pode tanto ser o período de seus pais ou avôs, ocorrido no fim do
século XIX e início do XX, como o seu próprio tempo, onde temos o período que vai dos anos
1930 até os anos 1960, mais ou menos, momento em que viveram suas plenitudes como
produtores e pai de família. A partir das dramáticas mudanças dos anos 1970, onde os
mesmos perdem o controle da situação local para o fazendeiro, até atualidade, temos o tempo
ao qual eles se referem como o tempo atual, tempo de agora ou o novo movimento.
Passemos agora a discutir esse padrão de constantes inovações, absorvidas e
incorporadas ao grupo, desde o fim do século XIX e passando por todo o Século XX.
Concentraremos inicialmente nas mudanças relativas à introdução e perda de variedades
cultivadas; nas raças e no sistema de criação de animais; no processo de beneficiamento de
frutas e leite em doces e queijos; na fabricação de rapadura e, por fim, na fabricação de
rapadura. Trataremos do padrão de mudança específico ocorrido na roça, no capítulo quinto.
113
Variedades
Em relação ao arroz, os lavradores mais idosos se lembram que antigamente, desde a
origem do grupo, no fim do século XIX, tinham duas variedades principais: o cateto ou pinto
e o vermelho ou vermelhão. Segundo eles,
Arroz cateto é antigo, é um miudinho e gordinho (...) o pinto é um miudinho, é bom
para dar e bom para limpar também porque não quebra, porque é redondo. Tinha o
vermelhão, era quase igual ao cateto [na cor], tem o vermelho ou o falado vermelhão.
Vermelho também é bom, mas quebra mais do que o pinto, porque é grande e
comprido. Quebra tanto no pilão como na máquina.
Além destes, os mais citados, eles lembram-se igualmente do caninha ou caninha
média e do carolina, que eram plantados em menor quantidade.4
Deste modo, tínhamos a seguinte configuração. Um lavrador plantava um campo
grande com uma das variedades principais de sua preferência, cateto ou vermelho e os outros
três tipos eram plantados em uma outra roça separada desta e em menor quantidade. Isto era
possível devido ao fato de que, conforme vimos no capítulo terceiro, um grupo familiar tinha,
geralmente, três roça distintas ao mesmo tempo. A primeira era a recém derrubada, onde eram
plantados os produtos principais e prioritários ao autoconsumo. A segunda já estava com um
ano de existência e geralmente ainda ocupada com mandioca ou formada de canavial ou
bananal. Por fim, tínhamos uma terceira com dois anos, onde a mandioca já havia sido colhida
no verão anterior e destinada à formação de um novo mandiocal, aos plantios fracos ou ainda,
a servir de banco de semente das variedades importantes, mas não prioritárias, que eram, por
assim dizer, excluídas do campo novo.
Tempos depois, a partir da abertura das estradas, ocorrido após 1926, e da chegada dos
comerciantes, a partir dos anos 1930 e 1940, temos a intensificação do comércio. Neste setor
a mudança é significativa, com a radical mudança no tempo das viagens para a região de
Diamantino ou para Cuiabá. Estas passam de 8 dias, ida e volta, nas tropas de boi para 2 dias,
agora de caminhão, nas ainda precárias estradas iniciais.5 É neste período que surgem as
variedades paulista ou paulistão. Então veio um arroz chamado paulista, não lembro quando,
mas esse era grandão. (...) Depois veio o paulista, chegou no tempo desses comerciantes, eles
trouxeram esse agulha. Paulistão é o melhor de carga, dá em qualquer terra. A partir da
exigência do mercado e da necessidade de venda por parte dos produtores, esta variedade
4 Conferir o estudo de José Geraldo Di Stefano, sobre as variedades antigas de arroz plantadas em Porto dos
Barreiros-GO. Embora não temos como saber se são os mesmos tipos, este cita tanto o „vermelho‟ (nativo) como
o „carolina‟ (2003: 90). 5 Na década de 1950 e 1960, com a intervenção do Estado, as estradas (de terra) são melhoradas e, a partir daí, se
leva cerca de 4 a 6 horas para chegar a Cuiabá. Hoje já existe uma linha diária de ônibus Cuiabá Cedral que faz o
percurso em 3 horas, mais ou menos, a depender do estado dos inúmeros buracos e atoleiros da estrada.
114
nova acaba por suplantar as antigas que são cada vez menos plantadas até sumirem
completamente.
O que explica esse processo de passagem são três fatores. Em primeiro lugar, agora o
arroz não precisava mais ser limpo no local, pois os comerciantes compravam-no na casca, o
que induziu ao abandono das variedades macias de pisar no pilão. Conforme vimos no
capítulo primeiro, o sistema anterior de venda do arroz direto aos consumidores, pressupunha
a limpa deste pelas mulheres e filhos dos lavradores, antes do mesmo ser carregado pelas
tropas de boi ao comércio, uma vez que naquele tempo não existia máquina de limpar arroz
em lugar algum da Baixada Cuiabana. Com o novo sistema de compra do arroz na própria
região, os comerciantes não exigiam este procedimento, uma vez que este produto era agora
encaminhado ao grande distribuidor de Cuiabá que nesta época já possuía máquina de limpar.
Deste modo, a limpa do arroz na região do Arruda passou a ser restrita àquele que ia ser
consumida pela própria família, uma diminuição substancial deste tipo de trabalho. Além
disso, temos o fato do paulista ser muito mais produtivo e, ainda, ter agradado no gosto.
Deste modo, a mudança não contrariou a lógica local, tendo contribuído efetivamente na
diminuição do serviço e no aumento da venda e, conseqüentemente, da renda do grupo
familiar.6
A última variedade a chegar foi o agulha (agulhinha), trazido pela fazenda já no fim
dos anos 70 e plantado na abertura de suas áreas de pastagem. Por ser bem produtivo e
vendável, passa a ser igualmente produzido pelos lavradores ao lado do paulistão. Estes dois
foram plantados até a década de 90, quando o policultivo de grãos tornou-se impossível de ser
praticado na região do Arruda.7
Já em relação ao milho não levantamos muitas mudanças, pois os tipos antigos, o
cateto e o comum, são plantados até hoje.
Milho era o cateto, um miúdo, vermelhinho. Plantou, todo mundo plantava. Tinha o
cateto e tinha o milho comum, comunzão mesmo.
E como ele era?
Era um milho grande assim, dava uma espiga mesmo, dava.
E plantava o milho para que?
Ah, era para comércio mesmo.
Introduzido por volta dos anos 1970, temos o milho híbrido que não caiu muito no
gosto dos lavradores por não compensar. O discurso abaixo é exemplar no sentido de desvelar
o habitus local, que prioriza a interiorização dos supostos da produção.
6 Conferir capítulo primeiro para os detalhes sobre este período, exaltado por eles com um verdadeiro tempo de
abundância. 7 Conferir capítulo quinto para o entendimento do processo que implica no fim do plantio policultural de grãos.
115
Produz bem, mas a semente é comprada todo ano.
E compra aonde?
O milho, na cooperativa, 1 Kg de milho de semente custa dez reais. O milho dá 1 para
50, dando bom, até uma potência boa. O híbrido produz mais do que o tradicional, já
plantei do milho híbrido e nasceu bom, igual. Na hora de colher o milho dá um saco e,
não acha quem quer dar dez reais. Quem é que levou, o que vendeu a semente!
Segundo alguns lavradores, o híbrido, ao contrário da propaganda de quem vende a
semente, ele dá no ano seguinte e até no outro. Como na cooperativa eles entregam 2 Kg de
milho colhido para cada 1 Kg de semente retirada antes do plantio, a crença é que esta
semente é originária do mesmo milho entregue no ano anterior, acrescido de uma tinta
vermelha. Eles falam que não dá [que o milho híbrido colhido não serve para semente], para
nós comprar todo ano. E o povo acredita. É o mesmo milho, só com o veneno passado com
aquela tinta.
Em relação às variedades de feijão, temos que as mais antigas citadas são o branco, o
amarelo e o enxofre grande.8 Destes três o branco era o original e os outros dois passaram a
compartilhar do espaço da roça a partir de um período não definido com muita precisão,
possivelmente nas duas ou três primeiras décadas do século passado. A memória local não
reteve nem a época certa e nem a fonte do aparecimento dessas duas últimas.
E o feijão?
Agora o feijão perdeu, aqui desapareceu. Tem o feijão branco, tem o amarelo, tem um
grosso, enxofre grande, esses já desapareceram.
No entanto, um dos mais idosos ainda se lembra de alguns detalhes do processo de
substituição destas variedades, citando a chegada do feijão enxofre, ou enxofrinho para
alguns.
Feijão também era o feijão branco (...) mas porque depois pegou a aparecer feijão,
apareceu o roxinho, apareceu esse amarelinho, deu bastante tempo... Até o
amarelinho e o de enxofre [ou enxofrinho]. Esse enxofre que foi da planta que todo
mundo passou a ter.
O enxofre chegou depois?
Foi chegou depois do amarelinho.
E o branco ainda tem até hoje?
Há não tem, já acabou. O enxofre quem trouxe foi esses fazendeiros, que eles fazia
uma roça, eles foi os primeiro que trouxe esse enxofre.
Depois que chegou a fazenda é que chegou esse enxofre?
É depois que chegou a fazenda é que eles foram plantar enxofre... Que sumiu esse
branco.
8 O feijão preto nunca foi produzido e nem apreciado em Mato Grosso. Dificilmente o mesmo era achado nas
prateleiras do comércio logo que ai chegamos, embora na atualidade isso já ocorra com mais freqüência (mas ai
é um feijão velho, devida a pouca procura). Por sermos carioca e criado a base de arroz com feijão preto, além de
constantemente termos nos deleitado com uma deliciosa feijoada que reunia toda a família extensa de vez em
quando, é de se imaginar o nosso sofrimento diante da ausência deste produto na nossa mesa.
116
Portanto, a partir do final dos anos 1970 o enxofre é reconhecido pela comunidade
como mais produtivo e igualmente gostoso. Assim, ele suplanta todas as outras variedades
que são abandonadas. Já mais próximo da atualidade, nos anos 1990, o feijão carioquinha é
introduzido pelos técnicos da Extensão Rural numa tentativa de evitar o fim do plantio por
causa das pragas.9 Depois de experimentado este é adotado, mas com o tempo mostra-se
igualmente indefeso às doenças locais. São estas duas variedades, plantadas em conjunto, que
completam o último ciclo de plantio de feijão no São Pedro e no Cedral. Na atualidade,
encontramos apenas um lavrador que planta feijão e somente do enxofre, numa área de praia
cedida pelo gerente da fazenda a troco de pagamento em produção.10
As variedades tradicionais de cana eram a caiana, a cristalina e a cinzenta. A primeira
era a mais apreciada e foi a primeira qualidade de cana por aqui, hoje já perdeu. Já as outras
duas ainda são encontradas em algumas poucas roças. Outro tipo antigo que foi citado só uma
vez é a caninha. A caiana é a mais fraca. A mais fraca que a caiana é a caninha que há muito
tempo que eu não vejo.
Um lavrador idoso do Cedral, cujo pai tinha engenho e plantava muita cana, e ele
mesmo o introdutor de novas variedades, nos explicou o processo de aparecimento destas.
Cana plantava caiana, uma cana boa que nós plantava, cristalina, essas duas. Aí eu
trouxe de Rosário uma cana também, a roxinha, a roxa. Essa cana eu trouxe o feixe,
mas então todo mundo plantou, a cento e vinte o nome dela, é cento e vinte.
Em que época?
Ah! Eu lembro só... 1970...
Antes dela só tinha a caiana?
Quer dizer, a caiana, a cristalina, e a vermelha. A melhor cana que nós gostava,
lutava é a caiana. Tem uma caiana listada, também ele dava, mas a caiana batia tudo.
Daí eu trouxe essa cento e vinte.
E ela era boa?
Ah, essa era boa, cento e vinte foi cana boa. Ela ainda tem, por essas roças, aí foi
aparecendo uma tal de Maria pelada, era roxa também. Essa cana não é muito boa
porque você vai moer, por exemplo, você vai por ele no engenho e quebra muito, tora,
o pessoal não gosta muito.
Outro lavrador do Espia já coloca a razão das mudanças:
Agora planta cana de burro, uma cana roxa que chama Maria pelada. Ela produz
bem no cerrado, com máquina, serve para dar para burro e é boa para rapadura, dá
açúcar. As outras qualidades de cana já exigem uma terra bem plana, bem macia sem
pedra. Um canavial daquele tempo durava 10 anos, 15 anos de corte. Agora hoje
9 Conferir capítulo quinto, para o entendimento do processo de chegada das pragas na região.
10 Segundo informe deste lavrador, foi o Osmar, gerente da fazenda, que ofereceu para nós plantar na praia, lá
no Arruda. Foi uns cinco que aceitou e, cada um tirou seu trecho. Não era bem na praia, mas sim, na beira do
rio, numa curva boa de baixada. Esta modalidade de plantio durou 4 anos e, a fazenda cobrava 30% da
produção. Somente este lavrador colheu mais de 800 Kg de feijão na última safra, pagando 250 Kg para a
fazenda e prontamente distribuindo o restante entre sua família e toda a sua parentela.
117
planta uma cana daquela, daqui a pouco já acabou.
Ou seja, a partir do fenômeno do espremimento, ocorrido nos anos 1970, onde as
terras boas de cultura disponíveis ao plantio foram reduzidas drasticamente, buscaram-se
variedades não tão exigentes em terra macia e bem adaptadas à nova realidade ambiental.
Finalmente, um lavrador completa o quadro, dando a sua versão de todo esse processo. A
caiana, aquela era doce, era melhor, mais vistosa, muito caldo e gostosa. As plantas de
antigamente eram mais gostosas, as de hoje produzem mais. Foi por isso que o povo trocou.
Em função de ser o plantio principal na atualidade, a mandioca foi o cultivo mais
comentado durante a realização de nossa pesquisa, especialmente no Cedral, o principal ponto
de plantio da mesma na região do Arruda. A partir do aipim, a mais tradicional, até a liberata,
a preferida na atualidade, ouvimos falar em nove variedades diferentes.
O aipim é o tipo de mandioca mais antigo retido na memória e é a mais citada por ser
considerada a mais gostosa, conforme podemos observar nas falas abaixo.
No começo aqui, a mandioca que foi muito comum aqui era aipim o nome dela. Muito
boa de produção e muito boa para comer, mais tarde veio a tal de mandioca perdiz,
mais bom para dar produção.
Essa veio quando?
Ah, bem antes de chegar a fazenda [antes de 1973].11
Há mais tempo, a mais procurada e conhecida aqui para nós é a aipim, todo mundo
conhece.
E hoje ainda tem dela?
Acho que não tem mais, perdeu. Também plantava uma guarapé branca, essa é uma
mandioca assim [pequena]. Era bom de carregar, mas era duro para lutar, cascar.
Então foi aparecendo diversos, apareceu uma guarapé vermelha.
E você lembra em que época?
Foi aparecendo... Não lembro... A guarapé vermelha apareceu depois da guarapé
branca, essa desapareceu.
Tinha umas que era branca, outras que era vermelha, plantava uma tal de latadeira.
Muito boa de produção, não é mandioca de comer, ela é meio braba. Mas muito boa
de fazer farinha. Ela custa para produzir, é mandioca para dois anos.
Por se referir a um tempo muito antigo, final do século XIX e inicio do XX, fica difícil
de lembrar os dados precisos do contexto em que apareceram estas variedades: aipim, perdiz,
guarapé branca, guarapé vermelha e latadeira. No entanto uma coisa é certa, são estas que
formam o estoque de tipos de rama utilizados conjuntamente, até o terceiro quarto do século
passado. É somente a partir da década de 1980 e 1990 que a memória fixou precisamente o
11
Temos aqui a clara utilização de uma datação relativa que, é acionada de vez em quando pelos lavradores em
suas narrativas. Estes eventos mais importantes e significativos para o grupo funcionam, portanto, como
verdadeiros esteios da memória (Conway, 1998).
118
surgimento das novas variedades conhecidas na atualidade. É a partir daí que as introduzidas e
aprovadas em experimentos passam a ser utilizadas, enquanto a maioria das tradicionais,
assim como as novas que por algum motivo eram rejeitadas, foi eliminada e tiveram as
sementes perdidas.
As novas variedades que aparecem a partir desta época são pé grande, chupa, uva,
branquinha e liberata ou rama roxa. Por serem recentes, os lavradores se lembram muito
bem dos detalhes de seu aparecimento. Deste modo podemos perceber nos diálogos abaixo
transcritos que foram a curiosidade, o espírito de experimentação e de doação, os responsáveis
pelo aparecimento e disseminação dos novos tipos de rama.
Como é que aparece uma nova qualidade de rama?
Ah, chegava trazido por alguém. Um vê e planta, outro vê na roça dele e troca a
rama, a semente. Eu mesmo aqui plantei uma rama que veio para lá de Cuiabá,
daquele alto ali do Valdisson. Depois falaram que era a Mandioca do Valdisson. É
muito boa. Hoje é a tal da liberata que o povo fala. Uma mandioca de rama roxa.
Outro lavrador completa,
E como é que uma mandioca nova aparecia?
Vinha uma semente.
Com alguém daqui ou com gente de fora?
Vem... Eu mesmo trouxe.
Trouxe de onde?
De Cuiabá, essa roxinha hoje... Eu vi lá e gostei. Eu tenho um genro lá, trabalha
numa verduraria. Então eu lá, eu fui, então ele é verdureiro, comprava uns sacos tudo
amarrado na mandioca. Aí eu pegava e trouxe. Esse até hoje é alastrada, a roxinha.
Você lembra a época?
Ah... foi em 90... 85...
E que outras espécies chegaram?
Ah aqui chegou diversas espécies, tinha uma tal de branquinha. A branquinha é uma
mandioca boa, boa para comer. Eu trouxe, eu peguei essa rama na beira do rio [Rio
Cuiabá]. Tem outra é... Ah, apareceu muita aqui. Até hoje têm aí por essas partições,
na roça, ali nesses lugares, eles tem. Tem um vizinho que tinha de umas quatro ou
cinco qualidades de maniva, de mandioca. Aí ele não fazia tudo, mas ao menos ele
tinha um capãozinho para comer, para... Sempre tinha.
E quem tinha qualidade diferente dava a semente para outro?
É dava, vizinho pedia ele dava.
E com pouco tempo tava todo mundo plantando?
É tava, tava plantando.
Temos assim novamente a colocação de um lavrador que foi descobridor e
disseminador de novas variedades. O interessante é que o mesmo se refere a estas novidades
introduzidas como uma „semente‟, o que denota claramente a expectativa camponesa sobre o
119
vir a ser, sobre algo original, sobre as possibilidades futuras desta novidade.12
Além disto,
aqui aparece novamente a questão de se plantar diversas qualidades de maniva numa mesma
propriedade, o que é possível pelo fato já levantado de se ter, ao mesmo tempo, diversas roças
na propriedade.
Já o processo de experimentação e de difusão de uma rama nova aparecida é explicado
por dois lavradores.
Aí eu trouxe, fiz um capãozinho dessa rama. Plantei na roda [na rodagem, estrada]
que nós fala aqui, daí eu deixei e foi só para dar rama. A rocha é melhor de carga do
que a branquinha. A branquinha é boa, mas não carregava, quer dizer, ela dava uma
mandioca assim meio rala.
Mas antes de plantar na roça o senhor experimentou?
Ah, eu experimentei, eu plantei um cantinho assim. E deu boa e no outro ano a turma
foi só caçando.
O outro completa,
Rama da liberata, ela esparramou. Até a primeira vez que eu plantei ela foi nesse
pedacinho aí [em frente da sua casa]. É um pedaço de chão arenoso, eu plantei só um
pouquinho, só para ver. Mas deu bom que até! Até me pediu a rama e eu falei, deixa
aqui, que é para segurar.
Uma variedade que surgiu antes da liberata foi a uva que, apesar de ser muito
produtiva não foi aprovada e, por isso mesmo, se perdeu a semente.
Porque pararam de plantar a uva?
Ela até deu bem, só que naquela época, nos trabalhava, nos secava a massa naquela
tal de varão. Tinha a prensa, então arrumava o gancho, lá carregava de madeira aqui
em cima para ela secar. E ela, acho que por causa da fécula, do polvilho, ela não
secava. Então eu me lembro que na época, na região o pessoal falava muito, ah não!
É que a saída era a farinha então, vai ter muita dificuldade para torrar, aquela massa
é muito pesada, então o pessoal... Eu me lembro que minha família mesmo achava, ah
essa aqui tem que deixar de plantar, porque ela quase não seca. Hoje, com o uso de
uma farinheira, de uma coisa diferente assim, ela pode ser bem aprovada, a torração
num forno mecânico e, com uma prensa dessa, pode ser que ela aprove.
A variedade pé grande era mais fraca e, portanto, não conservava tanto na terra,
conforme o sistema de plantio pela lua e o sistema de classificação forte fraco utilizado
localmente.13
Desta variedade e da chupa, somente nos foi dito que hoje não se planta mais.
Outra que igualmente não aprovou foi a seringueira. A seringueira também ela é quase igual
a liberata só que ela, a saída dela para feira e mais fraca. Então hoje o pessoal fala só em
liberata. Igual aqui para Cuiabá mesmo, fala: é a liberata mesmo.
12
Esta mesma categoria é expressa pelos criadores em relação a uma novilha bonita, que é uma semente ou o vir
a ser do futuro rebanho e que, por isso mesmo, é preciso segurar na sua propriedade. 13
Conferir capítulo segundo.
120
Das variedades mais antigas somente a latadeira e a guarapé vermelha sobreviveram e
são ainda hoje muito utilizadas. A latadeira só serve para fazer farina, já a outra serve tanto
para a venda (embora menos que a liberata) como para a farinha. Por causa disso a latadeira
quase foi perdida.
Hoje o pessoal também já está plantando é outras qualidades, igual a latadeira, que o
pessoal tinha deixado dela. É que uma época o pessoal já nem plantava a latadeira
porque, a latadeira o problema é para farinha. Ela dá uma farinha boa, pesada, mas
só que o pessoal hoje já fala, eu já planto a liberata porque se eu não vender [a
mandioca in natura], eu faço a farinha, se passar da hora eu já faço a farinha, mas se
der hora certa e eu vender, deu certo.14
No entanto com a instalação de farinheiras comunitárias, passou a ser necessário
plantar uma qualidade específica para farinha e, de todo o estoque de sementes disponíveis, a
latadeira foi a preferida. Devido a sua alta produtividade ela tornou a ser plantada em toda a
região, pois ela é uma mandioca que dá farinha boa, dá muito polvilho, com ano assim, você
precisa de enxadão para arrancar ela, é uma lapa de mandioca assim desse tamanho. Da
mesma forma, de todas as novas variedades novas, somente a liberata pode ser encontrada na
atualidade. Esta, por ser a preferida pelo mercado de mandioca em Cuiabá e no Nortão,15
além
de ser boa para farinhar é a mais plantada, ocupando sozinha mais de 70% das roças de
farinha que observamos.
Isso vem indicar um processo de homogeneização do processo produtivo, ou seja, um
consenso resultante da avaliação grupal, tanto sobre as novas condições conjunturais como
sobre o estoque de possibilidades (condições técnicas, naturais ou sociais) existentes
internamente. Temos assim que a prática camponesa, informada pelo habitus, funciona de
forma seletiva e não estática e imutavelmente. É esta prática em constante atualização que
possibilita ao grupo a sua reprodução social nas novas condições sócio-ambientais.
Finalmente, confirmando esta capacidade do grupo de buscar e encontrar soluções
percebemos que a tendência geral e atual da região é que as variedades antigas ou novas, que
tinham baixa produtividade ou demoravam a produzir, foram sendo substituídas pelas que
carregavam mais e eram colhidas mais rápidas. Embora fosse a mais gostosa, o aipim sumiu
porque demorava muito a dar a carga, até ficar boa é ano e dois mês. Outra razão levantada
para o abandono temporário da latadeira é que ela demorava mais ainda que o aipim. A
liberata é considerada muito fraca, pois conforme todos os plantios que são considerados
14
Esta estratégia camponesa de escolher entre a venda da mandioca in natura ou o seu beneficiamento em
farinha será vista mais adiante. 15
Conforme vimos no capítulo primeiro, na atualidade são estes dois mercados, o da capital e o da região
produtora de soja e algodão situado ao norte do estado, que compram os produtos da região do Arruda.
121
fracos no sistema classificatório e de plantio pela lua (é violento e não segura), esta macheia
[se forma] mais violenta e acaba mais rápido. Apesar disto é a preferida na atualidade pois é
muito produtiva e pode ser colhida com 8 meses. Com o encolhimento das propriedades, a
restrição de áreas de cultura e com a exigência do mercado, pois na época da safra tem
comprador toda semana na porta, a lógica adotada por todos passou a ser produzir mais em
menos tempo.
Amorozo levanta esta mesma tendência na zona farinheira de Santo Antônio.
As mudanças no acervo de etnovariedades das comunidades estudadas parecem refletir
o sentido do tempo e da produção. Antigamente, não era importante que as variedades
fossem rápidas, e se mantinha algumas que demoravam tempo para produzir. (...)
Embora se plantasse muita mandioca, antigamente, havia, como já vimos, uma
diversificação maior das atividades agropecuárias. Naquela época, a farinha de
mandioca não era feita em tão grande intensidade, e muito menos em tal quantidade,
como agora, nem tampouco representava a atividade provedora por excelência, a
„fonte de renda‟. (...) A partir da venda e cercamento das terras, e do abandono de
muitas das antigas atividades, como criação de gado, manufatura de rapadura e plantio
de tabaco e confecção de fumo de rolo, por razões diversas, a fabricação de farinha
tornou-se a pièce de résistence da economia local, e era necessário procurar aumentar-
se a produção de mandioca, sendo que a terra de que se dispunha agora era de pior
qualidade e mais exígua (1996: 174-175).
Já Almeida levanta a lógica da substituição de variedades junto aos posseiros de Santa
Terezinha argumentando que:
Podemos perceber que na escolha de qual variedade será plantada, o lavrador trabalha
com três variáveis: a economia da força de trabalho, a qualidade do produto e a maior
produtividade. Para ele o ideal seria aquela que fosse mais gostosa, desse menos
trabalho e produzisse mais. Contudo, na impossibilidade de se atingir esse modelo, ele
prioriza na sua escolha aquela variável que mais lhe interessa naquele dado momento.
Como a quantidade de terra é relativamente constante, e a força de trabalho é mais
elástica, dependendo do momento do grupo doméstico há momento em que a maior
produtividade é mais desejável que a economia da força de trabalho. Como também a
questão do gosto é secundário em relação a necessidade de sobreviver, a qualidade do
produto pode ser preterida pelas duas outras variáveis (1988: 51).
Ou seja, cada lavrador estabelece suas estratégias na escolha de variedades a serem
adotadas, conservadas ou abandonadas, levando em consideração sua matriz cultural, a
realidade social do grupo familiar, a conjuntura econômica da comunidade e, finalmente, a
condição ambiental de sua propriedade.
122
A criação de animais
A trajetória do gado na região, tal e qual a das variedades, apresenta um perfil de
mudanças igualmente paulatinas. O gado antigo, o original da região introduzido ainda pelos
bandeirantes foi, como vimos anteriormente, o gado caracu. Este era um gado rústico e
totalmente adaptado à região, suportando o clima e resistindo as doenças. O mesmo produzia
carne, leite e ainda servia de meio de transporte para as mercadorias vendidas fora do Arruda.
Conforme levantamos no capitulo anterior, o gado era criado de comum, solto no pasto nativo
dos campos e a partir de um padrão de reciprocidade onde todos tinham o dever de cuidar do
gado alheio doente, avisando logo assim que possível ao dono.
A primeira alteração deste panorama foi devido ao plantio de pasto do tipo formado.
O primeiro pasto formado daqui foi o da fazenda?
Pasto? Não foi eles que começaram não. Quando a fazenda chegou [em 1973] já
tinha pasto formado por Paulo Fortunato. Foi ele que começou, que ele tinha muito
gado e muita terra.
E quando foi isso?
Ah, foi quando ele adquiriu o Arruda [início dos anos 1950].
A partir daí Paulo Fortunato introduz na região um gado tipo zebu, que comprou fora,
para começar a sua própria criação. No entanto, esta não foi a única forma desta novidade
chegar. Boiadeiros e tropeiros que cruzavam a região igualmente traziam gado desta
qualidade para vender aos criadores locais. Temos assim o início do processo de substituição
do caracu, que ainda resiste por um pouco mais de tempo.
Na década de 1970 temos a chegada da fazenda, o que produz duas novidades: a
introdução do gado nelore e a intensificação na região da prática de formação de pastos, uma
vez que antes apenas existia o já referido pasto de Paulo Fortunato e os camponeses ainda
criavam o seu gado no sistema de comum e solto no campo. O nelore, por ser igualmente
rústico, é percebido localmente como um gado forte. Temos assim de pouco a pouco um novo
padrão começando a se estabelecer no rebanho, embora o caracu e o zebu ainda
predominem.16
No entanto, a maior mudança deste período foi decorrente do fenômeno do
espremimento e cercamento dos anos 70 e 80. A partir daí torna-se impossível criar o gado
solto, pois as cercas se multiplicaram, e temos então duas mudanças seguidas. Num primeiro
momento, passa-se a criação de comum do gado, ainda pelo grupo familiar extenso, dentro
das áreas de campo próximas ou dentro de seu patrimônio, embora reduzido, mas ainda
16
Parece que na região do Arruda este processo de passagem para os novos tipos de gado foi mais lento e não
tão traumático. Cabe aqui a comparação com o caso de Santa Terezinha, onde a Fazenda Codeara, do alto de sua
enorme prepotência, simplesmente castrava ou matava os reprodutores do gado curraleiro pertencente aos
posseiros, como forma de extinguir esta variedade na região, o que eles conseguiram em pouco tempo.
123
comum. Num segundo momento, com o cercamento das propriedades familiares individuais,
nas décadas de 80 e 90, temos que cada grupo passa a cuidar de seu próprio gado (que ainda
era pouco), sendo então necessário o plantio de capim para formar pasto.
A partir do exemplo da fazenda e de outros grupos camponeses que já se utilizavam
disto, adotava-se a prática de plantar dois tipos de capim, o brachiária e o andropógon.
Inicialmente estes eram semeados em roças de tocos velhas que já haviam produzido muito.17
E esse bananal velho aqui, quando acabar você vai fazer o que? Ah vou largar capim
nele.
Como?
É, eu roço aí, para aproveitar a área que tenho um gadinho, eu semeio capim nele que
forma pasto. Se não fizer assim, o mato vem e toma de conta.
Já mais recentemente a prática é gradear uma área nova ou uma roça velha, antes de
plantar o capim.
E o senhor plantou como, como foi a técnica?
Foi manual, manual semeado, um pouco foi semeado.
Semeado como?
Na plantadeira.
Como?
Na matraca, o brachiária foi plantado agora, o andropógon foi espalhado semente no
chão.
Gradeou a terra?
Gradeou... Gradeou a terra por que não adianta jogar semente sem gradear. Esse ano
eu fiz uma experiência, se desse certo bem. Eu tomei foi prejuízo. Tasquei fogo no
morro, aí queimou. Falei bom, eu tinha a idéia de experimentar plantar sem gradear
na terra bruta. Então larguei a semente e nada, não deu nada, só prejuízo,
A última grande mudança foi a chegada, já na década de 90, de um gado tipo leiteiro,
cruzado ou de cor.
Já daí veio gado girolanda, gir puro... É bom de leite. Antigamente era o gabiru, gado
comum, curraleiro, hoje nos temos simental, temos caracu, tem o nelore.
Mas essas raças diferentes entraram aqui quando?
É na faixa etária de uns 10 anos passados, aqui nem o pessoal conhecia,
principalmente essas vacas cruzadas, pitangueira, nelore... O gado leiteiro entrou
nessa faixa.
A partir daí temos a instalação de um novo padrão, que elimina de vez como gado
tradicional. Temos atualmente a criação de nelore ao lado do leiteiro de cor. O padrão
caminha assim para um intenso cruzamento entre estes dois tipos, buscando-se manter a
produção de leite e aumentar a resistência a pragas e doenças. Conforme um criador antigo e
17
O que contribui mais adiante no esgotamento da terra como um todo, posto que esta não poderia mais
descansar para renovar. Retomaremos este ponto no capítulo quinto.
124
idoso isto ocorre por que:
Hoje o gado mais comum aqui é o nelore só que não dá leite, só para criar o bezerro
(...) e o gado nelore come mais pouco capim. Mas como faziam leite, manteiga,
requeijão, queijo, eles precisavam de um gado, mas bom para leite.
[e mais adiante]
Mas o que predomina mais aqui é o nelore, é um gado mais fácil, é mais rústico para
labutar com ele, um gado pesado, muito melhor para vender, nem a mosquinha
persegue ele como o gado de cor. O gado de cor é atacado por verme, carrapato,
bicheira, mosca, no fundo no fundo, nós não temos condição aqui de ter um gado
desse. (...) Eu não tenho uma estrutura para um gado desse. O nelore é gado rústico
sabe, está bem adaptado ao nosso clima aqui.
Temos assim o seguinte quadro classificatório de gado na região do Arruda. Os tipos
por eles entendidos como „sem mistura‟ ou „puros‟ são o antigo ou caracu e os
posteriormente introduzidos na região: zebu e nelore ou branco. Destes, o caracu e o zebu,
não existem mais nesta forma pura, mas sim „como contribuição genética‟ no atual gado
cruzado dos camponeses. Já o nelore ou branco é o gado de maior incidência na região, sendo
criado para o corte e em grande quantidade, tanto pela Fazenda Paribó como pelos
camponeses fortes do São Pedro.
O tipo que para os camponeses envolve „mistura‟ e que foi introduzido a menos de dez
anos na área é chamado de cruzado, de raça, de cor ou leiteiro. Temos ai um verdadeiro
„caldeirão de raças‟ onde entra, numa pequena proporção, o sangue daqueles gados antigos
acima levantados e como principal parte contribuinte na mistura as raças gir, holanda,
simental e nelore. Este tipo é o mais significativo nos pastos dos camponeses fracos, sendo
igualmente encontrado nas propriedades dos camponeses fortes do São Pedro, ao lado do
nelore. Esta criação se destina à produção de leite necessário para a confecção de queijo e
doce, vendidos aos comerciantes de fora (de Cuiabá ou do Nortão) ou na feira em Rosário.
A vacina, outra novidade no sistema de criação de gado, foi recentemente introduzida
a partir da ação governamental.18
Por causa disto, esta acaba ocorrendo de acordo com o
calendário oficial de vacinação do INDEA, quando, da mesma forma, são aplicados os
remédios recomendados pelos técnicos deste órgão estatal. Contudo mesmo neste contexto de
novidades e imposições legais, ainda se obedece às regras do saber tradicional, conforme
podemos ver na fala abaixo. Nesta, fica claro que as modernas inovações acabam passando
pelo crivo da matriz cognitiva do grupo que, é ainda quem determina, em grande parte, a
prática produtiva.
É no calendário, vacina é dois vacinação por ano, agora é mais, tem os bezerros. Eu
18
A vacinação obrigatória do gado faz parte de uma política nacional de extinção da Febre Aftosa e, foi
implantada no Mato Grosso desde o início da década de 1990.
125
gosto de fazer só a aftosa e depois com o tempo a gente faz as outras, porque é
complicado. Por exemplo, você dá uma vacina de aftosa e dá uma de carbúnculo para
o bezerro. Aí de vez em quando morre um, dois, o pessoal não sabe o que é, mas eu
acredito que seja super dose, uma coisa vai mexer com a outra... Então, eu acho que
para mais segurança assim só a aftosa, se você quer dar um vermífugo, espera uns 20
dias para dar um vermífugo, é mais segurança. Os remédios vão entrar em
contradição e, o negócio pode ficar perigoso.
Em relação à criação de porco, talvez por ser menos importante que a de gado, pouco
foi dito. Como são as mulheres que criavam porcos e por não termos tido acesso às mesmas,
pouco podemos levantar sobre antigos padrões de mudança. Pelo que podemos observar a
raça tradicional é o chamado pretinho ou pé duro caipira. Esses são bons, forte, mata um e
frita e vê que tem cheiro, com três mês pode matar e assar. Os outros de raça mais moderna
leva cinco mês.
O sistema de tratar sempre foi do porco solto, comendo alimentos frescos: mandioca,
milho e frutas, sendo que ninguém nos falou que se dava resto de comida para os mesmos.
Remédio, só o natural. Remédio bom para tosse é tirar bananeira e folha de seringueira, você
pega o talo da bananeira e dá pro porco, acaba a tosse, acaba com verme. Esses cuidados
sempre ficam a cargo da mulher, com a ajuda dos filhos menores, pois porco é um criame de
quintal. Isso denota uma clara divisão simbólica dos espaços, uma vez que o remédio natural
de miunça (galinha e porco) é sempre ministrado pela mulher, enquanto o de gado o é pelo
homem, muito embora os remédios sejam quase sempre os mesmos.
A participação masculina fica restrita ao serviço de capação, considerado mais bruto e
perigoso. O método seguido até hoje é:
Para capar porco, lua boa sempre é na crescente. Porque o porco, depois ele cresce
igualado, fora da lua ele não é igualado...
Para capar, geralmente, é na lua forte [cheia ou nova] ele não faz, ele faz aqui no
quarto crescente, justamente quando a lua ta aqui [aponta para o alto do céu], se
capar na lua forte ele ta sujeito a embicheirar, não fica bom.19
Igualmente, no momento de matar o porco temos outra participação masculina dentro
do território feminino. Por ser carne forte, quente e altamente valorizada, cabe ao homem
fornecê-la, a família ou levá-la ao mercado.20
Já à mulher é afetada a tarefa de transformar
essa carne em lingüiça, alem de tirar a banha e o toucinho.
As novidades mais perceptíveis encontradas são bem recentes. Segundo os informes,
as raças introduzidas há pouco tempo na região são landrax e nacional. Já numa propriedade
dedicada ao criame de porco para a venda, vimos um reprodutor de raça piau paulista. Este
19
O gado é capado no mesmo sistema. 20
Ao contrário da galinha que é fraca e é a mulher que mata e leva a feira para vender.
126
tinha sido comprado pelo criador no ano anterior, na EMPAER de Livramento-MT, para
experimentar a raça. Esta tentativa não foi de muito de sucesso, pois devido ao tamanho do
reprodutor, o dobro das fêmeas, ele as machuca durante o acasalamento e acabou por
descadeirar a maioria. Assim, não compensa ter eles porque as porcas são todas pequenas. A
cria dele até que dá boa, mas para ficar bom mesmo tinha que ser as porcas da mesma raça
que a dele, mais aí fica caro. Deste modo o destino do mesmo acabou sendo a panela. No
nosso retorno a propriedade, seis meses após, o mesmo tinha sido capado, engordado e morto.
Outra mudança perceptível é que em algumas poucas propriedades onde se cria o
porco prioritariamente para vender a produção, se costuma mantê-lo preso e dar milho e ração
comprada para estes. Enquanto isso, nas propriedades visitadas onde há pequena criação
destinada apenas ao consumo familiar, temos uma criação solta no quintal e ainda seguindo o
padrão tradicional. Nestas, ainda não foram adotadas todas ou até mesmo nenhuma destas
mudanças oriundas da modernidade. Além disto, de uma forma geral, temos que esta criação
se insere no sistema de aproveitamento da mandioca, o principal produto agrícola da região na
atualidade, quando o preço desta não está compensando para a venda, só sendo possível ao
seu beneficiamento em farinha. Como neste caso tem muita mandioca e a mesma não poderá
ser toda beneficiada, esta é dada aos porcos e demais criações.
Isso ocorre porque a mandioca é plantada em grande quantidade e destina-se em sua
maioria a venda in natura. Quando esta não encontra comprador, não pode ser armazenada na
terra porque é faca e não dura e não pode ser toda beneficiada pois existe ai dois gargalos. Há
um limite de compra por parte do mercado de farinha, além do qual o preço cairia a um ponto
que seria desastroso. Além disso, existe uma capacidade física máxima de produção das
farinheiras que não tem como ser expandida de forma alguma. Daí, só o consumo local pode
evitar a perda da produção e, pior ainda do ponto de vista moral, o desperdício de um produto
que custou o suor de toda a família.
Produção artesanal de doce e queijo
Doces sempre foram e são ainda produzidos no engenho, na mesma fornalha a lenha e
com o mesmo tacho de cobre com que se faz a rapadura. Já o queijo é uma produção feita no
puxado (uma pequena área coberta) localizado nos fundos da casa. Segundo a informação,
antigamente eram feitos os mesmos doces que hoje: de leite em pasta ou cremoso, rapadura de
leite, de laranja, de caju e de goiaba. Do leite fazia-se também a manteiga, o queijo e o
requeijão. De receitas antigas não obtivemos nenhuma, mas embora a técnica de preparo e o
127
instrumental sejam basicamente os mesmos na atualidade, há algumas evidentes mudanças
que de acordo com o discurso, são recentes. Dois elementos evidentemente novos saltam aos
olhos de quem observa o processo atual de produção de doce: o uso do açúcar e de panelas de
alumínio.
Devida à facilidade de acesso ao mercado, oriunda do crescimento de Rosário e da
abertura de estradas, o açúcar refinado, por volta de 50 anos atrás, começou a substituir o
açúcar de barro, utilizado pelos mais fortes, ou a rapadura, a serventia dos mais fracos.
Segundo uma doceira compensa mais usar o açúcar do que a rapadura, pois o primeiro é mais
barato e não escurece tanto o doce. Mesmo quem tem engenho, devido à diferença de preço,
é preferível fabricar e vender a rapadura para comprar o açúcar, do que utilizá-la diretamente.
Além disso, observamos a utilização de um panelão de alumínio no lugar do tacho de cobre,
uma opção a mais para o trabalho, principalmente nas propriedades onde não há mais dessa
vasilha original.21
Observamos por uma vez o preparo do doce de leite cremoso. Seu processo envolve
diversas pessoas, além de um bom período de tempo. Embora este seja um serviço
reconhecidamente feminino, o seu preparo só pode ser iniciado com a participação masculina
no processo. São os homens que fornecem tanto a matéria prima, o leite, como o elemento que
irá transformá-la, o fogo. O serviço começa já de madrugada, com três homens retirando o
leite no curral.22
Ao raiar do dia, depois de preparar o café, a dona da casa já esta no engenho,
situado ao lado do curral, arrumando a fornalha. Esta inicialmente a veda com barro, de modo
a preencher todo o espaço que sobra entre a fornalha e o tacho colocado em cima desta.
Enquanto isso duas mocinhas novas, vizinhas contratadas para o serviço doméstico, vão
trazendo o leite e coando-o no panelão de alumínio que está depositado numa bancada situada
do lado de fora do curral, pois mulher ai não pode entrar.
Depois de terminada a ordenha, um dos homens que estavam neste serviço acende o
fogo da fornalha e despeja o leite no tacho de cobre sobre esta. A partir daí os homens
desaparecem do engenho e as moças novas voltaram para a cozinha, dedicando-se ao preparo
do almoço. O serviço fica então por conta da dona da casa que se reveza com sua sobrinha
casada e moradora próxima, que sempre lhe ajuda nas tarefas do engenho. Aos 40 litros de
21
De vez em quando um grupo de ciganos percorre a região reformando os tachos de cobre já desgastados. Esse
trabalho é realizado as custas da diminuição do volume da vasilha: uma de 80 litros originalmente, com a
reforma ficou reduzida a 50 litros, por exemplo. 22
Conforma já salientamos no capítulo terceiro, é sempre o homem que ordenha o gado pois, a mulher não pode
penetrar no interior do curral. Esta mesma prática foi por nós observada em Santa Terezinha, onde o mundo do
gado é exclusivamente masculino. Ao contrário disto, em Sorriso-MT, área de colonização sulista situada na
região do Nortão, observamos certa vez que tanto o homem como a mulher participam da ordenha da vaca.
128
leite colocados no tacho, se juntam 4 pacotes de 2 kg de açúcar. O trabalho agora é mexer
sempre com uma colher de pau e cuidar para que o fogo não alteie e nem acabe, tem que fica
de olho o tempo todo. Quando está no ponto de doce cremoso, que elas conhecem de vista,
este é despejado pelas duas mulheres em pequenas formas plásticas de meio litro.
Com este mesmo processo pode se produzir rapadura de leite. Neste caso deve-se
colocar o dobro do açúcar e depois de apurar bem o doce e enforná-lo do mesmo modo que
rapadura. Segundo outra produtora de doce, entrevistada em outra oportunidade, pode se
temperar o doce cremoso ou com limão ou com Nescau, uma invenção nova. Para o doce dar
o ponto logo e crescer, pode se usar maisena, mas aí ele fica muito branco e pastoso. Todas as
doceiras que entrevistei afirmaram que não utilizam desse procedimento, porque aí fica mais
ruim de vender, o comprador conhece. Outros doces, tais como de mamão, goiaba, caju,
laranja, figo, etc., são igualmente produzidos na região, mas não observamos o preparo de
nenhum destes. Isto evidencia mais uma vez que o doce pertence ao domínio da mulher, pois
estes são produzidos com frutos oriundos de pés plantados no quintal, território
eminentemente feminino. Por fim, a parte mais deliciosa da pesquisa de campo foi que na
maioria das casas em que entravamos, sempre havia um pote de algum tipo de doce a ser
oferecido com muito orgulho pelos donos da casa.
Quanto à produção de queijo, ela ocorre como dissemos em outro espaço.
Normalmente o leite é deixado para talhar numa vasilha na mesa ou na pia. Já a colocação nas
formas ocorre somente na pia, uma vez que há necessidade do uso de água. Quando as
técnicas tradicionais ou qualquer processo de mudança, não nos foi possível levantá-las, uma
vez que no mundo rural um homem estranho não pode conversar livremente com uma mulher,
e são elas que detêm esse tipo de conhecimento.
Conversamos com um senhor que atualmente faz queijo. 23
Conforme este nos
afirmou, o método de fabricação não é o tradicional e sim a partir de uma técnica que ele
mesmo inventou recentemente. Perguntando sobre a nova técnica, se dispôs gentilmente a
revelá-la.
Qual é a receita do queijo?
A técnica é o seguinte, a gente trás o leite lá do curral, vai para vasilha, côa bem ele,
e daí você tempera ele. Espera mais ou menos em termos de umas duas horas e o leite
já cortou, aí você da uma mexida boa no leite e deixa passar mais ou menos hora,
hora e meia. Então você vai e côa, escorre o soro, aquela massa, você pega uma
23
Queijo é um produto igualmente feminino mas, na verdade não é ele, e sim o seu empregado que faz o queijo.
Além do mais, o próprio e sua esposa já são idosos e não tem nenhuma filha morando com eles pois, todas são
casadas e residem fora, na cidade. Assim, não temos, na verdade, uma quebra da regra, e sim, sua adaptação às
condições atuais de falta de mão de obra na família.
129
poção daquele soro e vai pro fogo, bota pro fogo. Assim que notar que já está perto de
ferver, é a hora de você deitar um pouco de sal, mexer e voltar de novo na massa.
Você deixa passar de 30 a 40 minutos mais ou menos, até que ele esfria e entranha
aquele sal que você colocou na massa. Passando daí é só você pegar e colocar na
forma, da uma pequena espremida nele, daí uma hora mais ou menos você vai e vira
ao contrário para ele pegar um formato bem formado mesmo de queijo.
E se o vizinho pedir o senhor ensina?
Sem dúvida, o meu vizinho aqui e o meu cunhado já estão fazendo. O menino que
trabalha aqui já começou a fazer (...) então já passamos para ele aí e mais para frente
sem problema.
Nesta técnica se produz uns seis queijos por dia, ao invés dos oito que se poderia
produzir com o leite cru, mas mesmo assim ele diz que compensa: gasta mais para fazer do
bom, mas a freguesia é certa.
Outro produto feito com técnica mais atualizada, que ele aprendeu em Cuiabá, é a
mussarela. No entanto o mesmo deixou de fabricá-la devido ao baixo preço de venda, como
podemos ver abaixo.
Eu faço é o queijo mussarela também, o colorido, o queijo mineiro mas não
compensa, você sabe o porque, muito mais quantidade de leite e o preço aqui para
nós é parecido com o comum. Para você fazer o cozido que é o mineiro, o que é
chamado de mussarela ou flamengo, não sei tem vários nomes por aí, então você vai
falar é 8 reais, porque ele vai o dobro de leite. Não! Esse queijo vale só 5 ou 6 real!
Isso por causa das fabricas que tem mussarela. Lá sai muito mais aprimorado,
adequando, já com a embalagem, com a etiquetazinha.
Isso demonstra uma grande capacidade tanto de criar como de incorporar
conhecimento de fora, adaptando-o a lógica local. Quando isso não é possível, como no
exemplo acima, a técnica nova simplesmente é abandonada ou fica „no armário‟, a espera de
novas condições de seu uso.
Uma inovação no Cedral, ainda em projeto, é a idéia de construção de um centro
comunitário onde além de atividades sociais e cursos, será organizada a fabricação de doce e
queijo de forma comunitária pelas associadas. Estão pensando em fazer doce de caju, de
goiaba e de leite, assim como queijo e requeijão. Algumas fazem doce em casa, cada um que
faz em sua casa, faz doce de laranja, de caju. Eu tenho caju aqui e, não venço de fazer, aí eu
dou. Pensamos em juntar para fazer o serviço diminuir. Possivelmente esta idéia de se juntar
às mulheres para produzirem num espaço comum é fruto da percepção local sobre o
funcionamento da farinheira, um espaço igualmente comum de se produzir farinha.24
24
Conferir o sistema comunitário de se fabricar farinha, discutido mais adiante.
130
Rapadura
Até onde podemos levantar, o atual processo da fabricação da rapadura é
aparentemente o mesmo ou muito semelhante ao tradicional. Ao contrario da fabricação de
farinha que apresenta inúmeras inovações ao longo do tempo, neste campo são poucos os
elementos novos. O barracão, a fornalha a lenha, os tachos de cobre e de ferro, as colheres de
pau e a escumadeira improvisada, assim como a receita e a técnica de preparo ainda estão
presentes na maioria das propriedades. Um lavrador dono de engenho resume deste modo a
conservação do padrão antigo: no tempo do meu avô era assim mesmo, era batendo colher no
tacho até a garapa dar o ponto.
Pudemos ver diretamente apenas dois implementos recentes. O engenho de ferro que
observamos em apenas três propriedades, mas tivemos informação de que já existem vários
em toda a região, foi introduzido apenas onde o de moendas grandes de madeira apodreceu e
foi perdido. Como há alguns produtores do Cedral que estão se reiniciando agora no fabrico
da rapadura, há muito abandonado pela família, neste caso a saída é adotar o engenho de
ferro, pois não se acha mais a madeira de lei para produzi-lo e nem um já pronto de madeira
para comprar. Contudo, em todas estas propriedades o engenho de ferro é tocado ainda a
partir da tração animal. Esta falta de madeira vem demonstrar o quanto o modo de vida local
foi afetado pelo fenômeno do espremimento dos anos 70. Com a perda das áreas de mata
fechada para a Fazenda Paribó e com a dramática diminuição destas áreas de mata dentro de
suas atuais propriedades, já não se encontra mais madeira de lei na região do Arruda e nem
distante dela, o que denota a extensão do espremimento, produzido por um conjunto de
fazendas que chegam a região à mesma época.25
Outro elemento novo que percebemos em apenas uma propriedade foi o uso de um
panelão de alumínio em substituição ao de cobre grande antigo que tinha sido perdido. Por
outro lado, somente uma única ausência do estoque de instrumentos antigos foi constatada, e
isso é um ponto interessante a ser destacado. Conforme a informação que recebemos ninguém
possui mais o descaroçador, aquele moedor tocado manualmente por dois homens26
e que era
usado pelos „lavradores mais fracos‟.27
Na atualidade só temos engenho, ou de madeira ou de
metal. Por tanto, essas poucas alterações são fruto mais de uma situação circunstancial, como
25
Conferir citação de Steinen no capítulo primeiro, que enfatiza a exportação de madeira de lei de Rosário para
Cuiabá. 26
A cerca do descaroçador, conferir o capítulo terceiro. 27
Talvez este fato possa contribuir para corroborar nossa hipótese levantada no capítulo primeiro, de que foram
os lavradores proprietários mais fracos e os agregados (que não tinham documentos), os que mais sofreram
pressão no processo de espremimento dos anos 1970 e, foram por isso, expulsos com maior facilidade. Era
justamente este segmento que possuía o descaroçador, ao contrário dos proprietários mais fortes, que possuíam
engenho (além do documento da terra) e, cujos filhos resistiram até hoje na terra.
131
no uso da panela de alumínio porque não tem outro jeito mesmo, ou no caso do engenho, que
ninguém fabrica mais por aqui no modelo antigo, aquelas moendas grande de madeira com
os pinhão para rodar, aí tem que comprar esse mesmo.
Contudo, o caso mais interessante que nós conseguimos registrar no mundo dos
produtores de rapadura da região do Arruda, foi a espetacular adaptação realizada num
engenho do São Pedro, construído inicialmente no sistema tradicional de madeira, com
moendas grandes e tocado a tração animal. Este tinha, como todos os outros engenhos dos
tempos antigos, três moendas alinhadas lado a lado, de modo que ao serem tocadas pela tração
as duas de fora giravam em sentido inverso à central.
Engenho no modelo antigo
1 – A cana entra na primeira moenda colocado pela 1a pessoa;
2 – A 2a pessoa recebe a cana já moída;
3 – Depois, este introduz a cana na segunda moenda;
4 – A cana já totalmente moída cai no chão.
O problema inicialmente percebido pelo produtor é que neste modelo são necessárias
duas pessoas para o seu funcionamento, uma colocando a cana de um lado, no primeiro
conjunto de moenda e a outra retornando a mesma cana, no outro conjunto de moenda ao
lado.
No lugar faz de conta, se fosse aqui [mostra a base do engenho antigo, retratado
acima] uma moenda dessa é do lado de lá e outra do lado de cá, girava igual minha
mão. Você vai colocando toda a cana aqui e o outro vai passando a cana aqui. Você
132
fica o mês trabalhando, precisava de um homem para trabalhar 30 dias.
No entanto devido a sua capacidade de observação e iniciativa de tentar a mudança,
certa vez andando em Rosário ele percebeu que os engenhos de ferro são organizados
diferentemente. Nestes a cana só precisava passar uma vez que já era moída pelas duas
moendas, não sendo necessário retorná-la. Curioso, o mesmo observou que o segredo estava
na organização diferente das moendas e, principalmente, numa tabuinha estrategicamente
colocada para impedir a saída da cana de forma errada.
Engenho no modelo novo
1 – A cana é colocada na primeira moenda;
2 – Se esta não seguir o caminho certo e for sair, bate na tábua e volta;
3 – A cana que pegou o caminho certo ou a que bateu na tábua e voltou,
passa na segunda moenda e cai no chão.
A partir desta descoberta, o produtor de rapadura procurou um marceneiro em Rosário
Oeste e encomendou a este uma nova base para seu engenho, reaproveitando as três grandes
moendas antigas de madeira de seu engenho. Deste modo, seu novo engenho foi reorganizado
tal e qual o modelo do engenho de ferro observado.
133
Enquanto essa tábua [agora mostrando o engenho novo] faz o serviço de um homem.
A cana vem de lá procurando uma saída, ela chega, bate no meio da tábua e faz ela
retornar, a tábua não deixa ela sair (...) quando ela bate lá, ela pega lá e vai para
aqui. Uma ida lá e já sai moída aqui. (...) Então eu coloco a cana aqui [no pé do
engenho] e trabalho sozinho. Mas só que aí vale a pena porque lá trabalho sozinho,
basta eu arriar o animalzinho.
Temos assim colocados dois elementos fundamentais para o entendimento do habitus
local. Num primeiro ponto, temos que a capacidade de criar e observar a realidade
circundante é uma prática que esta interiorizada por todos os lavradores, principalmente pelos
homens que eram quem sempre tinham a oportunidade de viajar. Em qualquer lugar os olhos
estão sempre atentos a possíveis novidades que possam contribuir para melhorar ou facilitar a
produção. Já por outro lado, isto revela a prática ideal, embora nem sempre possível, de se
dispensar o uso da força de trabalho assalariada, buscando manter os supostos da produção
internos a propriedade (Woortmann & Woortmann, 1997).
Embora possa ser fabricado o ano todo, o costume local é de fazer rapadura somente
entre os meses de maio e outubro, por causa do tempo de maturação da cana.
Março, abril que ela inicia. Ainda não ta madura, mas já pode fazer. (...) Bom, eu
acho é até agora, em outubro, depois que pega a chover já não vai prestando mais.
Porque?
Porque falam que a cana aguoa, e fica uma rapadura assim, dá uma rapadura mole e
seu ponto, ela destempera muito. (...) Nós só faz de maio até outubro, mas é que
depois a cana acaba, aí nós não continua mesmo.
Hoje [em março] a cana ta meio fraca, que ela não ta madura ainda. A parte dela
madurar é agora maio, junho, julho, agosto, que então ela açucara mais, ela fica mais
doce.
Deste modo, a família se programa para produzir rapadura somente no tempo
apropriado. Contudo, o mesmo produtor que teve a iniciativa de inovar no engenho, mais
acima discutido, nos informou que mesmo com a queda de produção – de 25 a 27 rapaduras
para cada 80 litros de garapa na época boa, contra 17 a 18, quando a cana ta salobra –, ainda
assim compensa produzir. Ao contrário da farinha que passa por inúmeras oscilações em seu
preço durante o ano, a rapadura tem um bom preço e uma boa procura o ano inteiro. Portanto
segundo o mesmo,
Tudo aí é cana, tem quase mil covas de cana. Com a previsão deste ano, se eu pudesse
contratar 3, 4 mil para mim era uma benção. Porque se eu tenho cana, período que
foi, novembro, dezembro, janeiro, essas épocas, se a gente tem cana ela dá muito
rapadura. Se cai para 20, 15, já ta bom. Mas a venda daqui para agosto é para fazer
30, então, para mim é importante eu fazer 15 é bom porque já ajuda.
Pelo fato do mesmo centrar a sua produção na fabricação de farinha e rapadura, ele
134
pensa em organizar sua estratégia produtiva do seguinte modo. Plantar cana em grande
quantidade para que quando ele tiver cana suficiente possa produzir a rapadura o ano todo,
uma vez que o seu preço não oscila tanto. Na medida em que o preço da farinha venha a
compensar, o que nem sempre ocorre, ele pararia o serviço com a rapadura e passaria a
fabricar farinha, até o seu preço cair novamente, ponto em que ele irá voltar a fazer rapadura.
Conforme ele nos disse, se o preço ta bom é melhor produzir menos e vender, do que ficar
parado.
O processo de moer a cana tem alguns segredos que nos foram revelados. Esta deve
ser cortada de dia e ficar curtindo durante a noite, para ela ficar mais doce.
Rancada e moída logo não fica igual, pela manha é melhor mói de madrugada que ta
mais fresco, não espera o sol esquentar demais, que até os animais cansa. E aí eu vou
juntando lá e ele moendo ali, quando tira um tacho, leva outro, enquanto tiro um já
tem outro moído. Outro segredo é revezar os animais, para não cansá-los. Assim, a
gente mói um tacho com um cavalo, cozinha, e mói outro com outro cavalo.
O transporte da cana para o pé do engenho geralmente é feito a cavalo ou burro. A
cana é trazida no cavalo, nós colocamos assim quatro sacos, dois de cada lado, com 40
pedaços de cana cada um. Aí faz três viagens de três animais e deu a base de 300 litros de
garapa. Já quem produz muito, prefere concentrar o corte em vários dias e trazer tudo num
carro fretado. No caso eu coloco duas F 4000 de cana e tem cana para trabalhar uma
semana. Eu corto a cana quinta, sexta e sábado. Quando é segunda, terça, quarta, umas
vezes eu vou até no sábado... Mas é provavelmente 450, 500 rapaduras [fabricadas na
semana]. Conforme vimos no capítulo terceiro, da cana não se extrai todo o suco. Deste modo
o bagaço é destinado aos animais, uma vez que são os mesmos que realizam o transporte da
cana e fornecem a força motriz do engenho.
Com a garapa pode ser feito o furrundú de cana e mamão, a rapadura de massa ou a
simples e o melado. O furrundú é um doce pastoso, feito com mamão e melado. O furrundú é
doce, é mole, é doce mesmo, só que aí vai mais massa [de mamão] nele, é mais massa do que
melado, na rapadura de massa é mais melado do que massa. Já esta última é produzida da
mesma forma que a rapadura simples, somente acrescentando-se somente um pouco de massa
de mamão já quase na hora de dar o ponto para bater. A de massa é nós rala o mamão verde e
lava ele. Quando de tirar o tacho para nós dá uma apurada nele, nós colocamos a massa e,
ele vira... Fica quase um tipo doce, só que nós enforma também. O processo de fabricação
dos mesmos é bastante demorado e exige um conhecimento apurado da pessoa que está
trabalhando. Normalmente este é um serviço masculino, mas numa propriedade nos foi dito
que a mulher pode ajudar, principalmente quando se utilizam dois tachos ao mesmo tempo.
135
Aí, é o marido e a esposa que cuidam de cada um deles e, neste caso, a mulher demonstrou ter
todo o domínio do processo de fabricação, quando perguntada.28
A garapa deve ser fervida em fogo alto e de uma vez só do inicio até o fim. A prática
do repizo, quando uma nova quantidade de garapa é acrescentada no meio do processo para
render mais, é condenada.
O que é repizo?
O repizo é assim, que deixa ele abaixar para arrumar outro.
E se quiser vai um, até o fim?
É arrumando só um até o fim dá uma rapadura mais alva, que ele ferve menos. Já o
repizo, nele já ferve outro tanto, aí dá uma diferença na rapadura.
No inicio mexe-se uma vez ou outra com a colher. Logo que levanta a fervura, a
garapa começa a soltar a escuma. Esta é uma sujeira, uma borra espumante que se acumula na
superfície e que se não for tirada, a rapadura fica preta. O sabor não é alterado, mas o
comprador reclama. A partir daí, além das mexidas de vez enquanto com a colher de pau é
necessário usar a escumadeira. Esta é composta de uma panela velha, toda perfurada no
fundo, amarrada com arame num cabo de madeira. Com ela é retirada a espuma que fica por
cima. Como nesta operação vem um pouco de garapa, esta escorre pelos furos e permanece na
panela apenas a escuma, que é imediatamente jogado fora em um balde. Como logo a seguir
ocorre um novo ajuntamento de escuma, repete-se incessantemente este procedimento. Ao
mesmo tempo é necessário ainda de vez enquanto uma mexida geral no tacho, com uma
colher de pau que ocupa a outra mão. Este trabalhoso processo demora de uma a duas horas,
aproximadamente.
Depois desse tempo a garapa já bem encorpada fica limpa e sem a escuma. Uma hora
vai indo ela alimpa e vai apurando, ela para de crescer, então não precisa mais tirar a
escuma. A partir desse momento o serviço que já era difícil fica mais complicado ainda,
exigindo muito mais atenção do fabricante da rapadura. Agora já ta limpa, vai apurando e,
não pode parar de mexer com a pá e com a escumadeira, para ela baixar, para não subir.
Conforme o melado engrossa cada vez mais, um novo perigo é adicionado. Quando começa a
soltar fumaça nos buraquinhos, ou seja, ta pitando, com pouco tempo começa a espirrar. São
as borbulhas quentes que começam a se soltar e pode queimar seriamente se bater em alguém.
A partir daí o serviço vai maneirando, pois a escuma vai diminuindo e é só mexer com a pá,
não ocupando mais a escumadeira.
28
Esta era a mesma propriedade em que se modificou o engenho para economizar no pagamento de um
trabalhador. Deste modo, o uso da mão de obra feminina num espaço masculino (veremos este ponto mais
adiante), condiz com a lógica de internalizar os supostos da produção (Woortmann & Woortmann, op. cit.).
136
Com pouco tempo o melado já está grosso e borbulhante. Aí é o ponto do melado,
pode descer, esfriar e engarrafar. Desce ele, daí uns 40 minutos está pronto. Se for fazer
rapadura ou doce e só continuar o processo, tendo o cuidado de controlar o fogo, abaixando-o,
para que o melado apure sem passar do ponto. Um pouco depois do ponto do melado, quando
ele engrossou mais, temos o ponto de por a massa para fazer o furrundú. Este, depois de um
rápido cozimento, é retirado do fogo ainda mole e pastoso. A rapadura de massa já exige um
pouco mais de tempo, pois a massa é colocada somente um pouco antes do ponto de rapadura
e, como vimos, em menor quantidade que no caso do doce.
E qual é a diferença entre a rapadura simples e a de massa?
A diferença é que ela tem o mamão mesmo e, agente rala mamão, lava bem a massa e
a hora que o melado ta já ficando quase no ponto de desce ele, coloca a massa de
mamão nele. Então cozinha a massa e, torna a dá o ponto nele, tira e se quiser por
leite nele ainda põe.
Se for o caso de fazer rapadura simples, é só esperar o ponto e então colocar o melado
no cocho. Neste momento de deitar o produto há outro segredo que é crucial. Para sustentar o
peso do tacho é atravessada uma trave de madeira comprida, apoiada nas orelhas deste. No
entanto, se isso serve para sustentar o peso, não dá estabilidade ao tacho que num simples
descuido pode oscilar e entornar fora todo o resultado da operação. Por isso é colocada uma
pequena e fina varinha atravessada, presa entre o tacho e a trave, para gerar o equilíbrio
necessário e facilitar a virada do tacho em cima do cocho. Deste modo não é necessário pegar
em qualquer ponto da vasilha, o que seria perigoso devido a extremo calor em que esta se
encontra. Uma vez que o melado grosso está no cocho é só bater com uma pá de madeira
durante 10 ou 20 minutos, até o mesmo esfriar um pouco. Isto é necessário para que ele não
endurecer por fora e ficar mole dentro, pois é precisa esfriar por igual. Conforme o mesmo vai
sendo batido no cocho, vai adquirindo uma coloração levemente mais clara e um aspecto mais
pastoso e uniforme.
Por fim, o produto é depositado nas formas e após 30 minutos de secagem já pode
ser desenformado. As rapaduras já prontas são então colocadas em pé, para que pegue
vento,29
permanecendo nesta posição mais uns 20 ou 30 minutos, após os quais estará
totalmente seca e fria. Finalmente, as mesmas serão guardadas até o dia seguinte, quando
então serão embaladas com filme plástico.
O domínio cognitivo sobre o processo se evidencia em vários detalhes, dentre os quais
29
De novo temos a relação levantada por Woortmann & Woortmann (1997), onde o que é „quente‟ tem que ter
espaço para arejar. Na região do Arruda o quente ou, o que tem caloria tem que pegar vento para que se
equilibre, voltando ao normal.
137
destacamos dois. Primeiramente, temos que os pontos (o momento certo de cozimento e da
retirada do produto do fogo) são observados apenas no olho ou, como eles dizem, é que nós
temos a experiência, aí nós vemos e já sabe a hora de tirar ou; nós temos o conhecimento, eu
já conheço o tacho. Quem não sabe tirar o ponto, ainda um aprendiz do oficio, por exemplo,
retira um pouco do melado e deixa cair num copo d‟água, observando se já está com a
consistência adequada ao esfriar.
Além disto, temos a questão de que quando conversamos com os produtores sobre as
quantidades, fica muito claro que os mesmos controlam muito facilmente essa variável. Certa
vez, ao presenciarmos a fabricação de rapadura, perguntarmos logo que a garapa foi ao fogo,
Quanto vai produzir aqui?
De 75 litros que tem aí, vai dar uma média de 30 a 35 rapaduras, tem vez que se você
fizer ela simples, ela dá 30, mas se você ralar um mamão, colocar um leitinho nela,
ela rende mais.
No fim da manhã, qual não foi nosso espanto ao contarmos as rapaduras, do tipo simples, que
estavam enformadas, fruto daquele mesmo tacho.
E não é que fez 30, como você tinha dito antes.
Eu já tinha a base da garapa, que a garapa foi medida.
Estes dois pontos evidenciam a existência de um saber fazer internalizado, um habitus
que é apreendido na prática da experiência concreta do dia a dia de uma família de
lavradores.30
Os produtores ainda nos informaram que a rapadura é muito boa para curar
anemia, pois contém ferro. Serve ainda para fazer doces, canjica, etc., em substituição ao
açúcar.
O simbolismo do processo de beneficiamento
Ao perguntarmos a uma doceira se era só mulher que fazia doce, ela nos respondeu:
Doce é trabalho de mulher, homem nunca faz. Já rapadura é sempre homem que faz.
E farinha?
Farinha é homem e mulher, tanto faz.
Em relação à farinha, de acordo com o que levantamos anteriormente, pensamos que
30
Esta questão remete à problemática da presença da escola em áreas rurais, uma vez que esta contribui, direta
ou indiretamente, para a não reprodução deste habitus nas gerações mais jovens. Isto se dá pela via da ocupação
destes por um grande período de tempo, na escola ou em suas atividades extraclasse, o que atrapalha o sistema
camponês de se „aprender fazendo‟. Da mesma forma a escola, pelo seu papel ideológico de reprodução de um
saber externo ao grupo e, que atende aos interesses da classe dominante (Bourdieu & Passeron, 1982), assume a
postura de desabilitar o saber e a prática camponesa, impingindo-lhe um caráter de antieconômica, anticientífica
e atrasada, da qual os jovens têm que se desligar sob pena de nunca progredirem na vida.
138
mais que um serviço de homem e de mulher juntos, por ser um trabalho pesado e demorado
este é um serviço que envolve todo o grupo doméstico, assim como o acionamento das
extensas redes de parentesco e vizinhança em regime de muxirum antigamente e de troca de
serviço na atualidade.31
Já a diferenciação levantada entre o doce e a rapadura nos deixou confuso num
primeiro momento. Observamos vários doces serem feitos e todos por mulher. Quanto à
rapadura, somente uma vez tivemos a sorte de presenciar sua fabricação e foi um homem,
empregado diarista da propriedade que ficou encarregado do serviço. No entanto, não
entendemos naquele momento que este era um padrão e pensamos que por se tratar de um
trabalhador contratado, poderia por isso mesmo estar substituindo a mulher no serviço.32
Em
função disto, somente ao ouvirmos a frase acima ser colocada é que percebemos claramente
essa diferenciação. Mas aí ficou a questão: em que a rapadura é diferente do doce na
etnoclassificação local, para serem objetos de manipulação por gêneros opostos. Pensamos
que existem duas explicações que não são nem opostas e nem excludentes, mas sim
completares.
Num primeiro momento percebemos que de acordo com o discurso local, há uma clara
diferenciação entre os dois tipos de serviço. O doce é, segundo levantamos, um trabalho mais
maneiro. Isto se dá porque neste serviço não é preciso ficar tão em cima do tacho, tão perto da
caloria. Tirando o doce de leite que exige ser mexido o tempo todo para não derramar no
início, quando este dá a primeira fervida e não pregar no fundo do tacho no final de seu
processo de fabricação, os doces de outro tipo podem ser mexidos pela mulher mais
esporadicamente. Disto decorre que esta fica sentada ao lado da fornalha e, talvez, daí venha a
noção local (na visão masculina) de que este seja um serviço mais maneiro. A rapadura, por
outro lado, exige que o homem fique em pé o tempo todo ao lado do tacho mexendo a colher
de pau com uma mão e a escumadeira com a outra. Logo, ele fica muito mais próximo do
calor da fornalha e é este o elemento que igualmente serve de justificativa, no caso da farinha,
para o serviço de torração ser masculino.
Já num segundo momento, percebemos que o doce e a rapadura só são confundidos a
partir da nossa perspectiva de consumidores urbanos, enquanto que para os camponeses da
região do Arruda há uma diferença fundamental entre ambos. O doce é uma guloseima ou um
31
O processo de beneficiamento da farinha foi discutido no capítulo terceiro e, será retomado aprofundadamente
mais adiante. 32
Garcia Junior (1990) a cerca dos agricultores da Paraíba, coloca que lá o trabalhador assalariado é contratado
preferencialmente em substituição ao serviço da mulher. Já Klaas Woortmann (1990) demonstra a percepção dos
sitiantes de Sergipe sobre o contratado, onde o mesmo não „trabalha‟ e sim „ajuda‟, sendo por isso
simbolicamente associado ao filho.
139
divertimento e por isso, tal qual a galinha, pertence à esfera feminina. Por outro lado, para
eles, a rapadura não é doce e sim era a única fonte de açúcar existente nos tempos antigos,
principalmente para os camponeses fracos que não podiam comprar ou fabricar o açúcar de
barro, uma vez que este somente era fabricado pelos camponeses fortes donos de engenhos.
Era, portanto, um gênero de primeiríssima necessidade, assim considerado tanto localmente
como nas zonas consumidoras dos garimpos e da capital, onde era facilmente vendido.
Juntando as duas explicações que, como dissemos anteriormente, entendemos serem
complementares, podemos encontrar a razão da etnoclassificação proceder à divisão
doce/rapadura em pólos opostos. Esta divisão pode ser pensada em termos de doce como
igual a divertimento-mais maneiro-menos caloria. Já a rapadura pode ser pensada em termos
de essencial-mais dificultoso-mais caloria. Relacionando estes elementos com outros setores
de processo de trabalho no mundo camponês da região do Arruda, aqui já classificados como
espaços da mulher – o descasque e a ralação da mandioca realizados sentado; a criação de
miunça, mais fácil, galinha é um divertimento; e do homem – a torração da massa de
mandioca na caloria; a derrubada da roça, um serviço muito dificultoso; a criação de gado que
é mais trabalhosa e perigosa –; é que podemos, por fim, juntar as peças do quebra cabeças. É
a partir daí que pensamos que esta relação doce/rapadura pode ser traduzida na divisão
simbólica do mundo em duas esferas opostas e complementares, ou seja, entre
feminino/masculino.
140
A PRODUÇÃO DE FARINHA ONTEM E HOJE
Percebemos em nossa pesquisa de campo que o processo de fabricação da farinha, ao
contrário da rapadura, passou por inúmeras modificações desde o fim do século XIX e ao
longo de todo o século XX. Tivemos inúmeras mudanças técnicas, com a adoção de novos
tipos de forno, de prensa e de ralador, que culminaram em um processo de modernização
estabelecido por agências governamentais, já no século atual. Em relação à economia, a
farinha passou pela mesma relação que os demais elementos produtivos: de uma produção
para o autoconsumo com a venda do excedente, para uma produção destinada prioritariamente
ao mercado na atualidade. No entanto, e ai ela se diferencia dos demais elementos, no Cedral
a farinha, assim como a mandioca, se configuram nos dias de hoje numa das mais importantes
fontes de renda da propriedade.
Por fim, o próprio processo de trabalho é alterado, tanto em relação ao controle do
tempo, da força de trabalho assim como da quantidade do produto. Em decorrência destas
mudanças e da nova importância que a farinha assume para a manutenção do grupo, temos na
atualidade um novo processo de fabricação. Apesar deste processo de intensas mudanças no
saber fazer da farinha, arriscamos dizer que mesmo que esta não seja exatamente a mesma
que era produzida no tempo de seus avós e, da mesma forma, enquanto ela não ocupe mais o
mesmo papel dentro da estratégia de reprodução social do grupo; ela ainda é um produto que
respeita e reproduz a ética e a lógica camponesa tradicional.
Mariza Veloso Motta, discutindo a transformação sofrida pela grande fazenda
tradicional goiana, nas décadas de 1960 e 1970, coloca que a mesma passa por dois tipos de
mudança. Um informado pela tecnologia moderna e, o segundo, semelhante ao aqui discutido,
“mais gradual, é a mudança do processo de trabalho tradicional, a qual se dá através de
reformulações e ajustamentos às novas condições.” Neste tipo de mudança, “o conhecimento
que informa o processo de trabalho tradicional opera num espaço social crescentemente mais
restrito, perdendo ao longo do tempo os elementos materiais e relacionais necessários para sua
operação.” A partir daí, “as limitações impostas à operacionalização do conhecimento
tradicional induzem-no, como processo cognitivo dinâmico, a encontrar novas soluções”
(1983: 159-160).
Outro fato a destacar neste processo de contínuas mudanças é a criatividade com que
elementos de fora são inseridos no contexto local.33
Temos assim que alguns instrumentos
33
Já vimos anteriormente a adaptação do engenho de madeira tradicional, ao sistema de funcionamento do
engenho de ferro moderno.
141
modernos como macaco hidráulico de carro, teto de Kombi ou armação metálica da geladeira
são inseridos em algum tipo de uso na casa de farinha. Deste modo, estes verdadeiros restos
da sociedade envolvente são adaptados e incorporados ao uso diário, revelando assim a
possibilidade de uma verdadeira simbiose entre elementos da modernidade e a prática
tradicional.
É esta busca por um novo ajustamento, realizada não apenas em momentos de crise,
mas de forma constante pelo grupo camponês aqui estudado, que pretendemos demonstrar no
atual capítulo. Desta forma, tentaremos desvendar a trajetória das diversas novidades que,
paulatinamente são introduzidas, primeiro na casa de farinha de cada grupo familiar e mais
recentemente, a partir do aparecimento de „farinheiras comunitárias‟. São estas inovações, que
em seu conjunto promovem este surpreendente processo de mudança.
O processo tradicional
Conforme afirmamos no capítulo segundo, a fabricação deste produto era realizada
segundo as antigas técnicas conhecidas pelo grupo: ralação manual, secagem demorada,
seguida de uma pisada no pilão, peneirada e torração da massa no tacho de cobre, colocado no
forno circular de barro. Estas técnicas eram, neste período inicial do século XX, já bem
diferentes das utilizadas na região „Cuiabá Rio Abaixo‟, onde as comunidades farinheiras
foram amplamente estudadas (Amorozo, 1996; Ribeiro, 1998). Iselda Ribeiro apresenta o
sistema utilizado em Morro Grande nos seguintes termos.
A produção de farinha de mandioca ficava sob a responsabilidade das mulheres com a
ajuda dos filhos. A primeira técnica de produzir a farinha utilizada pelos antepassados
até a década de 1940, foi com o uso do ralador manual, um instrumento feito de folhas
de latas de querosene crivada de orifícios de rebordos arrebitados produzidos por
pregos. Estas lâminas eram pregadas em uma tábua com cerca de 15 centímetros de
largura por 30 de comprimento. A mandioca era descascada com um facão e ralada
manualmente neste instrumento.
Depois de ralada, a massa da mandioca passava para o pilão para ser socada. O
próximo passo era colocar a massa no tipiti para secar. O tipiti é um recipiente em
forma de tubo elástico, feito com tiras trançadas de urulamba, uma espécie de palmeira
com dois metros de comprimento. A massa ficava comprimida neste tubo, que era
suspendido num ramo de árvore para que escorresse todo o sumo que caia numa
vasilha e que era aproveitado para a produção do polvilho. Depois de escorrido o
líquido da massa de mandioca, esta era retirada do tipiti, peneirada e colocada em um
tacho de cobre para torrar sobre as brasas no quintal de casa.
O „forninho‟, como eles o chamavam, era formado por três pedras cangas colocadas
no chão. Entre as pedras colocava-se a lenha e, em cima, o tacho de cobre com a
massa de mandioca. O produtor tinha que se agachar para agitar a farinha com uma pá
de madeira até que ela ficasse „no ponto‟. Esta técnica artesanal de produção de
142
farinha, de origem indígena, era muito rústica e pouco eficaz, envolvendo muito
trabalho (op. cit.: 56-57).
Embora parecidos num primeiro momento, há aí duas diferenças fundamentais entre as
duas comunidades. Em relação à técnica, não ouvimos em nosso levantamento no Arruda,
qualquer referência ao uso de tipiti ou mesmo do sicuri (Amorozo, op. cit.: 205), objetos de
origem claramente indígena. Na região do Arruda, pelo que nos informaram, desde o inicio
foi utilizada outro sistema de prensagem e de forno que tampouco se parecia com o aí
descrito.
No entanto a maior diferença que podemos perceber se dá em relação ao processo de
fabricação como um todo. Em Morro Grande esta era uma tarefa exclusivamente feminina,
enquanto no Arruda era uma atividade que envolvia todo o grupo doméstico. Isso se explica
quando recorremos ao histórico de formação do grupo de Morro Grande, fruto de uma colônia
de índios Bororo, aldeada e reduzida sob a tutela da Igreja Católica (Aleixo, 1991; Siqueira,
1990; Ribeiro op. cit). Embora no Arruda tenhamos ouvido de alguns, a descrição de bisavós
indígenas pegas no laço, conforme já vimos anteriormente a origem do grupo é outra, o que
demanda costumes e práticas diferenciadas, embora em alguns aspectos as mesmas possam se
sobrepor.
Pensamos que na região do Arruda era possível ao grupo familiar extenso como um
todo participar da produção da farinha em regime de muxirum, uma vez que esta era
produzida somente nos meses de agosto e setembro e sempre no período de lua nova. Como
vimos anteriormente no capítulo segundo, devido à enorme força desta lua temos um período
de três a cinco dias de evitação do trabalho da roça: o próprio dia da lua nova e os dois dias de
resguardo (ou quatro para alguns), antes e depois desta. Assim o espaço da roça, o principal
da propriedade, a cuja lógica e organização todos os demais se subordinam, era pensado de
modo a não sobrecarregar os que nele trabalhavam. Portanto em algumas ocasiões, onde o
trabalho aí era proibido ou evitado, os membros masculinos do grupo familiar eram liberados
para outras atividades e, juntamente com a força de trabalho feminina além do auxílio de
parentes e vizinhos, podiam se dedicar à produção de farinha, por exemplo.
Neste período inicial do grupo, a memória estabelece claramente que o processo de
fazer farinha era desenvolvido apoiado no muxirum (mutirão), que envolvia a rede de
parentesco e vizinhança, num sistema amplo de reciprocidade no trabalho e na distribuição de
bens. Já na atualidade, devido a inúmeras dificuldades anteriormente levantadas
(espremimento, cercamento, perda de força de trabalho, etc.), este sistema não consegue mais
se replicar. Temos agora a troca de serviço, na verdade um muxirum em miniatura e
143
esvaziado de seu conteúdo, onde a lógica é centrada apenas no computo e na retribuição do
tempo trabalhado pelos diversos companheiros. Retomaremos esta discussão mais adiante.
Além do forno circular de barro e da ralação manual, já descrito anteriormente a partir
do relato dos mais idosos, um produtor atual nos descreveu o sistema de prensagem de
quando era criança e era o seu pai quem produzia a farinha. Neste sistema era colocado muito
peso sobre a massa, que era acondicionada em camadas feitas com palha de palmeira locais.
A prensa, colocava uns toros em cima, uns oito toros em cima. Naquele tempo não
tinha nem saco, nesse tempo era folha.
Folha de bananeira?
Não palha de guariroba de bacuri. Aí era preciso deixar o outro dia, passava a noite
toda, no outro dia que ia tirar ele. A prensa era assim, fincava quatro paus, um aqui,
outro aqui e outro ali, então cortava bastantes varinhas e ia colocando de lado. Fazia
assim tipo um chiqueirinho, era tudo encruzadinho assim. E, de acordo você ia
levantando ele, você ia colocando a massa arrumando a palha do lado pra não deixar
ela cair de lado.
E ali você colocava uma palha bem no meio, chamava assim de lastro, e eu coloquei
uns dez lastros. Então você fazia um buraco aqui e enfiava o tal de varão. Enfiava e
atravessava pra cá, nesse buraco. Enfiava ele pra cá e carcava assim, com o peso.
Depois, no outro dia tirava, derrubava ele, aí tirava a massa.
Deste modo, e isso é importante conforme veremos mais adiante, a mandioca era
arrancada e transportada pelos homens na tarde do primeiro dia, descascada e ralada pelas
mulheres e crianças durante o segundo dia e prensada durante a noite deste. Ao amanhecer do
terceiro dia, a massa era socada no pilão e peneirada pelas mulheres e torrada ao longo de
todo este período pelos homens. No final destes três dias a produção era de alguns poucos
sacos de farinha e um ou dois latões de polvilho, tudo isso destinado ao consumo familiar.34
A introdução de novidades
Esse procedimento original vai sendo alterado paulatinamente, conforme as inovações
vão chegando ao conhecimento do grupo. Conforme já vimos anteriormente, quando
discutimos o processo de introdução das variedades, normalmente o caminho da novidade no
campo da fabricação da farinha era a observação por alguém do grupo,35
em visita ou
passagem pelo território de outro grupo camponês próximo ou distante. Percebida a vantagem
da técnica utilizada localmente, esta era trazida e, uma vez que a inovação fosse aprovada por
34
Quando morávamos em Santa Terezinha-MT, participamos junto ao grupo familiar em que estávamos
inseridos, em diversos processos de fabricação de farinha no sistema tradicional. Os implementos eram muito
semelhantes a estes, embora apresentando algumas diferenças. Um grupo composto em média de 6 pessoas
levava 3 dias para produzir não mais do que 4 sacos de farinha. 35
Normalmente um homem, conforme razões já levantadas anteriormente.
144
todos, era rapidamente difundida.36
Ao nos descrever uma determinada mudança técnica, um
produtor de farinha explicou este processo da seguinte forma.
E em que época começou a fazer assim?
Ah uma pessoa inventava de um jeito, a gente viu isso nos vizinho achamos vantagem,
hoje nos já tem conhecimento.
E aonde eles aprenderam?
Acontece que eles viram em algum lugar e pegou dele.
E deste modo que chega à região, por volta das décadas de 1940 ou 1950,37
algumas
inovações que alteram o procedimento. Um novo modelo de prensa onde o varão não é mais
fincado no chão é introduzido primeiro na Sesmaria Arruda e depois se espalha por toda a
região do Arruda.
Antigamente era diferente, ele cruzava aqui, aí você colocava um aqui e colocava um
pau aqui [em cima do queijo] pra receber umas madeiras pesadas. O peso ia em cima
dele, pra depois estas pontas de pau cruzado ia abrindo, para ele ir descendo. Ah!
Você cruzava assim [em X] pra depois a madeira ir descendo. Aí o peso da madeira
que vinha baixando ele era dois aqui, o peso baixava.
Conforme nos foi dito, enquanto este procedimento já estava em uso na Sesmaria
Arruda, no Cedral ainda se utilizava a técnica de infincar no chão. O que revela que este
processo de introdução de novidades não é homogêneo e sim passa pelo crivo atento de cada
comunidade local. Em última análise, é esta quem detêm, pelo menos no tempo de
antigamente, as rédeas do jogo da mudança determinando se, no que, como e quando a
mesma será realizada. Assim, temos que gostos locais informam hábitos diferentes, que
convivem lado a lado, dentro de um mesmo habitus geral.
Já em relação ao ralador, temos primeiro a chegada do caititu manual.38
Este é um
ralador movido no braço por um ou dois homens fortes, enquanto um terceiro membro do
grupo, mulher ou homem, introduzia a mandioca na boca do mesmo. Este chega por volta dos
anos 60 do século passado, conforme levantamos com um produtor atual. Antes era no
ralador... Mas quando eu comecei a fazer farinha eu não relei no ralo, eu relei naquele
manual, o caititu falado. É o comedorzinho pequeno, mas como é que fala, o motor de
arranque dele é no braço, o braço da mesma pessoa. Aquele ali era pesado, que nós tinha
dois no rancho e, era pesado.
Um pouco após o aparecimento deste, mas ainda na mesma década de 1960, temos a
introdução da roda de ralar que, ao que parece, não foi muito utilizada na região do Arruda.
36
Portanto, conforme já vimos anteriormente, um procedimento em muito diferente do descrito por Henri
Mendras (1978). 37
A memória local não soube precisar uma data mais exata. 38
Conferir nota de no 41 no capítulo terceiro.
145
Este não conseguiu substituir o caititu, como vemos na descrição do único informante a citar
esta técnica. Meu pai comprou também uma roda de 2 metros mais ou menos de altura que,
diz que tinha mais facilidade pra relar mandioca. Só que ele pôs e não gostou não, que era
dois homens pra rodar aquela no braço, um do lado e um no outro. Aí nós voltamos no
caititu. Iselda Ribeiro cita o aparecimento deste equipamento em Morro Grande, dando-nos
uma descrição mais minuciosa do mesmo.
A partir da década de 50 esta divisão do trabalho na família acaba e alteram-se ao
mesmo tempo as técnicas da produção de farinha com a introdução da roda, também
de origem indígena. O ralador manual foi então substituído pela roda, que
possibilitava ralar mais farinha em menos tempo de trabalho. Este instrumento exigia,
no entanto, a participação dos homens no processo de produção.
A roda era revestida também com folhas de latas de querosene cheia de „dentes‟ e
atravessada por um eixo como manivela em um dos lados. O suporte era uma bancada
de madeira com uma bancada no centro onde a roda era encaixada. A roda era então
movida com grande velocidade, ao mesmo tempo em que a mandioca era levada
contra os dentes da mesma para ser triturada e cair numa espécie de cocho colocado
em baixo da mesa. Nas palavras dos sesmeiros; „O homem girava a roda e a mulher
dava de comer a ela‟ (1998: 58-59).
Mais recentemente, por volta de 20, 25 anos atrás, as mudanças começam a aparecer
numa cadência cada vez mais rápida. O forno é alterado do modelo antigo para um retangular,
construído com base de adobe ou tijolo e encimado por uma chapa de metal. Para se fazer esta
chapa normalmente se utiliza o teto de „Kombi‟ ou „Perua‟ comprada em ferro velho, que é
cortado, recortado e batido, até ficar no formato e no jeito necessário. Chapa do forno, o
pessoal usa muito a capota de Kombi, é a mais importante, ela dá um forno valente.
Temos ai novamente levantado o ponto de que os lavradores da região do Arruda não
são uma comunidade isolada, atrasada avessa a modernidade, uma vez que desde a origem,
foram, de certa forma, ligados ao mercado e as suas novidades. A capacidade de transitar nos
espaços urbanos para daí retirar os insumos necessários à melhoria de seu processo produtivo
demonstra que os lavradores possuem um amplo domínio cognitivo sobre a cidade. Além do
mais, foi exatamente a partir desta época que tivemos o fenômeno do espremimento, com
diversos parentes e vizinhos sendo expulsos para este espaço. Isto, aliado à migração dos
filhos, possibilita a estes lavradores que permaneceram na região do Arruda a extensão de
suas redes de ajuda mútua, até o território da cidade.
O novo modelo de forno aliado aos avanços na ralação e na prensagem trouxe um
aceleramento de todo o processo, com a redução substancial do tempo de produção da farinha,
o que traz mudanças no produto final (retomaremos este ponto mais adiante). O procedimento
que mais contribuiu para isto foi à introdução do caititu mecânico, ocorrida há mais de 20
146
anos. O equipamento é o mesmo ralador que o manual, somente se substituindo a alavanca
utilizada pelo braçal para impulsioná-la por um motor a gasolina ou óleo diesel, que é
acoplando ao ralo rotativo. Isto abreviava sobremaneira o tempo de ralar a mandioca. Em
algumas casas de fazer farinha o mesmo ainda é utilizado na atualidade.
Aliado a esta mudança, no mesmo período é introduzido o sistema de prensagem por
caixote, que consiste numa caixa de madeira toda furada, onde a massa é colocada num saco
de fibra e é prensada, de modo que o líquido escora pelos furos. Nós põe a massa dentro do
saco plástico de 45 kg. Põe dentro da caixa, não põe no estrado igual lá no Cedral, aqui é um
em cima do outro. A técnica de apertar a massa no caixote variava em cada localidade, o que
demonstra que as diferenças técnicas variavam de um conjunto para outro, conforme já
levantamos anteriormente. Portanto, enquanto uns ainda utilizavam o antigo sistema de prensa
com o varão cruzado ou com os pesos, outros introduziram o uso de macaco hidráulico, que
fazia o serviço de apertar o queijo contra a massa.
Farinhar com esse caixote aqui, nós usamos macaco hidráulico. Então, no lugar do
caixote, nós fincamo duas madeiras grossas, bem fincada. Aí nos arrumava o eixo da
charrete, por exemplo, ela é quadrada. Então nós colocava aqui, furava ela, a
madeira, furava os dois lados de acordo com o ferro. Aí nós pegava uma chapa e
colocava embaixo e oh. O macaco acochava o queijo e a massa espremia.
Por fim, aparece na região o sistema de apertar o varão no caixote, a partir de uma
catraca de madeira.39
Segundo um produtor que até hoje usa este sistema.
Aqui nós rela no motor aqui, no caititu. Aí vem pro secador aqui, é essa caixa aqui.
Ah, e o peso aqui e vai apertando o pau.
Como é que chama essa?
Essa é prensa. Esse aqui nós fala queijo, a parte de cima. Quando chega aqui em
cima, nós põe ele, põe aqueles tocos pra dar altura. Aí ela [o varão] fica alta, é
melhor ela ficar mais alta aqui. Eu cruzo essa corda na ponta dele lá, é três pernas
que ela fica e acaba virando uma catraca. Então vira aqui e essa corda puxa aí.
E quanto tempo leva pra secar?
Uma hora ele já deu conta de massa.
Outro produtor acrescenta a data em que o processo surgiu na região do Arruda.
Isso depois eles mudaram, idéia nova já, uma corda, cabo de aço.
Em que ano?
Essa corda foi em 80 pra cá... aí você inficava um pau lá, outro aqui. Tinha uma
39
Conferir a foto no capítulo terceiro, onde aparecem os restos de uma antiga casa de farinha, possivelmente dos
anos 1930 ou 1940, situada na beira do rio Arruda. Nesta foto, pode-se ver claramente na mão do rapaz a catraca
de madeira. Conferir com a foto, situada mais abaixo, onde aparece a mesma catraca usada na atualidade. Não
aprofundamos esta questão, até porque ela surgiu agora, na hora montarmos as fotos na versão final deste
trabalho, mas isto pode indicar que este implemento já existia antigamente, pelo menos em alguns grupos
familiares da beira do rio Arruda e, que por algum motivo não levantado não foi adotada e, por isso, foi perdida
pelo grupo geral. A se confirmar esta hipótese, o que temos agora não é a introdução de uma novidade e sim, a
recuperação de uma antiga técnica, momentaneamente perdida pelo grupo.
147
moenda, uma coisa que gira [a catraca], você passava o cabo de aço nele, colocava
uma madeira nele e ia puxando assim, carcando aqui, ia carcando. E não precisou
mais de tanta coisa, aí só uma pessoa já torcia ele. Então, daquele [de macaco
hidráulico] já acabou, agora, só dessa aí [de catraca ou acocho].
Conforme o mesmo nos revelou, tem uns 20 anos que se utiliza tal sistema, tendo-se
abandonado o uso do macaco ou do varão em toda a região, uma vez este novo processo é
mais simples e muito mais produtivo que todos os anteriores. Com esta mudança, o tempo de
prensagem da massa passa de uma noite inteira nos sistemas anteriores para uma hora apenas
no novo sistema, o que contribuiu para acelerar em muito o processo. Uma vez que os
procedimentos anteriormente mais demorados, a ralação e a prensagem, são agora realizadas
em pouco tempo, uma hora no máximo para cada uma das etapas, temos uma enorme
diminuição no tempo de trabalho para fazer a farinha, e isso tem importantes conseqüências
para a sua qualidade final, conforme veremos mais adiante.
Além disto, temos outra questão igualmente importante e que tem relação com o fato
de que os grupos familiares atualmente não conseguem mais reproduzir o seu antigo padrão
de composição ideal. Este ponto é levantado por Klaas Woortmann, que discute a relação
entre os padrões familiares, redes de parentesco e concepções sobre filhos, defendendo que “o
tamanho das famílias é uma variável crucial e, compreensivelmente, os camponeses não
praticam o controle da natalidade” (1999: 55). Para este autor,
Um grupo doméstico pode ser considerado como um sistema de papéis, operando
segundo um modelo de papéis sexuais culturalmente definidos. (..) Evidentemente, o
desempenho de tais papéis depende da composição de seu pessoal, e os camponeses
são bem conscientes de não somente o tamanho, mas também a distribuição de seu
pessoal por sexo e idade são variáveis importantes e de que existe uma composição
ótima. As dimensões exatas desse ótimo, ou melhor, sua definição, depende, todavia
da percepção individual (idem; 53-54).
Temos assim uma ligação estreita entre a necessidade de inovar e a atual situação dos
já desfalcados grupos familiares que não conseguem reproduz mais a antiga composição
etária e de gênero, devido à intensa migração de seus filhos para a cidade.40
A solução para
este impasse é dada pela adoção de novos procedimentos técnicos que propiciam uma
substancial economia da força de trabalho, garantindo a reprodução social do grupo nas novas
condições adversas.
Na década de 1990 a região passa por um processo de intervenção modernizante por
parte do Governo do Estado, com a chegada de diversos programas de desenvolvimento
comunitário oriundos do PRODEAGRO. Em 1990 temos a chegada no Cedral da rede de luz
40
Conferir capítulo primeiro.
148
elétrica.41
Em 1999 se dá a criação da Associação de Pequenos e Mine Produtores do Cedral
Grande que é beneficiado pelo PADIC com a instalação de uma Farinheira Comunitária e a
doação de um trator de pneu. Com a instalação desta farinheira no Cedral, cujo moderno
equipamento foi comprado em Sergipe, temos a chegada das últimas novidades técnicas
introduzidas na região do Arruda. Atualmente é a energia elétrica que move todos os
implementos motorizados da farinheira, como o caititu o forno e a peneira. Já a prensa é de
acocho por torção, com a massa sendo colocada ainda em sacos de fibra plástica, contudo
sobre estrados. Uma prensa montada em cima e acochada por meio de torções sucessivas de
um enorme parafuso vai apertando o queijo que espreme os estrados e os sacos de massa,
completando a secagem da massa em cerca de meia hora no máximo.
Uma interessante variação deste procedimento foi adotada em uma propriedade do
Morro Redondo, onde a farinha era produzida até a pouco tempo no engenho próprio da
família. Temos aí uma prensa de caixote, com a madeira perfurada montada em uma armação
de metal e onde o aperto era fornecido por uma prensa de torção. Novamente podemos
perceber o exemplo de simbiose entre elementos modernos e tradicionais. Foi a observação
atenta do lavrador na Farinheira Comunitária que possibilitou e promoveu o uso de um novo
elemento, mais produtivo, adaptando-o ao tradicional sistema de caixote.
Antes de a Farinheira Comunitária chegar e padronizar o processo de produção de
farinha no Cedral, as diversas opções de técnicas e implementos conviviam lado a lado nas
diversas propriedades, conforme nos disse um antigo presidente da associação. Antes era só
forno manual, tinha caititu manual e o elétrico também, alguns ralava na mão, depois que fez
essa farinheira da associação acabou... Mas aqui já teve muita farinheira, muita mesmo.
Maria Cristina Amoroso levanta o procedimento de substituição de técnicas em Santo
Antônio, na beira do Rio Cuiabá (região de Cuiabá Rio Abaixo).
...nota-se que há diferentes implementos para a mesma etapa; o que se verificou
também foram diferentes preferências quanto ao uso destes implementos, dependendo
do local: para ralar a mandioca, os farinheiros de VA/ES [Varginha/Estraira] sempre
preferiram o ralo, ao contrário dos de BA/MG [Barreirinho/Morro Grande], que
preferiam a roda de ralar. Do mesmo modo, para espremer a massa, o sicuri era mais
utilizado na VA/ES, enquanto o tipiti era o preferido no BA/MG. Ambos exigem que a
massa seja torcida em um pano antes de ser colocada neles. Não foi possível esclarecer
as razões destas diferentes preferências, sobretudo porque no BA/MG, tanto a roda
como o tipiti estão caindo em franco desuso. Uma prensa antiga, e não mais
41
Esta rede, segundo os moradores se expande de dois em dois anos („coincidentemente‟ o mesmo intervalo que
separa as eleições) de comunidade em comunidade e, 15 anos e muitas eleições depois, ela ainda não atingiu
todos os moradores do São Pedro (8 Km mais à frente). Quando andamos por lá pela última vez em setembro de
2004, novamente e apenas „coincidentemente‟ um mês antes das eleições municipais, presenciamos o início da
obra de eletrificação do último trecho desta comunidade.
149
encontrada na área, foi mencionada por um ou outro agricultor em ambos os grupos de
localidades: é a prensa feita com varetas justapostas, como os „dedos de uma mão
cruzada‟, e que é desmontada para se tirar a massa seca. No BA/MG, ela foi chamada
de prensa de juqueí, e na VA/ES, prensa de chiqueiro. A prensa de caixote ou cocho
com um varão, em que a pressão se faz através de pesos, parece ser anterior a
intervenção do CEAG, e é encontrada nas duas localidades. Já a prensa de varão de
rosca foi introduzida mais recentemente, e é encontrada apenas no BA/MG (incluindo
o Carandazinho); aí também se encontra um tipo modular, desmontável, desta prensa.
Por outro lado, na VA/ES, o sucuri é, até hoje, a prensa mais utilizada, enquanto o
caititu adaptado à eletricidade parece estar substituindo o ralo, mas não totalmente, por
causa do gasto de energia acarretado (op. cit.: 205-206).
Podemos perceber dai que os mesmos implementos são utilizados ou abandonados, a
partir de dimensões distintas de uma mesma lógica geral, dimensões estas ditadas pelas
diferentes realidades locais. A estratégia adotadas e os caminhos seguidos por ambas as
comunidades, na região do Arruda e em Santo Antônio, são diversos, apesar das duas
comunidades estarem imersos numa mesma problemática geral de cercamento, fim da
policultura e a especialização em algumas atividade.
O atual processo de produção
Na atualidade a farinha é produzida no Cedral a partir de técnicas artesanais e
utilização dos implementos modernizados da farinheira, ou seja, de motores elétricos que
auxiliam reduzindo a carga de trabalho. Deste modo o serviço mais demorado agora é o
descasque, o único realizado manualmente. Segundo o dono da farinheira, esse é um setor que
não tem como ser mecanizado. Nas fábricas de farinha industriais existem máquinas de
descascar a mandioca, mas nestas somente é retirada a pele fina e externa (suber). A casca
grossa (periderme) situada abaixo desta não é retirada pela máquina e permanece junto com a
carne da mandioca. O processamento de ambas produz uma farinha mais escura e com gosto
mais azedo, não ficando tão boa como no processo artesanal.
Portanto, temos que a depender da quantidade de farinha a ser produzida, leva-se um
dia ou mais para descascar toda a mandioca. Deste modo geralmente começa-se a descascar
ainda de madrugada, por volta das 2, 3 ou 4 horas, de modo que o serviço possa fluir
continuamente durante o dia, sem empatar o equipamento ou os homens que trabalham nestes.
Esta tarefa é normalmente executada por mulheres e crianças maiores de 12 anos,
normalmente, mas não exclusivamente, do sexo feminino. Devido ao fato de que as famílias
hoje têm poucos filhos e filhas em idade maior residindo com elas, recorre-se a duas
estratégias para agilizar o serviço. Ou busca-se trocar o dia de serviço com mulheres vizinhas,
150
parentes ou afins, pois como bem define Maria José Carneiro, “as relações de trabalho se
misturavam às obrigações definidas pelos laços de parentesco” (1998: 75).42
Ou, na
impossibilidade de se acessar esta rede de parentesco/vizinhança, aluga-se a mão de obra de
cascadeiras profissionais que na época da pesquisa cobravam R$ 10,00 (dez reais) por dia.
O caráter eminentemente feminino desta atividade foi evidenciado durante nossa
estada em uma das farinheiras, quando presenciamos um rapaz, já quase homem, ajudando
nesta tarefa. Ao nos dirigirmos ao mesmo ele se recusou a conversar qualquer coisa que fosse
conosco. Ao perceber que tínhamos pegado a máquina fotográfica para tirar uma foto do
grupo o mesmo saiu correndo, evitando assim a exposição daquela situação extremamente
vergonhosa para um homem. O riso das mulheres diante do inusitado da situação e os seus
comentários que ele só ta ajudando por que o serviço está atrasado, contribuíram para
amenizar o clima. Com pouco tempo o mesmo tinha retornado ao seu banquinho e continuado
em sua lida, não antes de se certificar que já tínhamos guardado a máquina fotográfica.
Depois de cortada, a mandioca segue para ser lavada no tanque aonde vai sendo
depositada. Dai quando a massa já ralada anteriormente segue para o forno, desocupando o
ralador, esta mandioca vai para o primeiro cocho, situado entre o tanque e o caititu e, partir
daí, a mesma é ralada. Na farinheira particular esta tarefa é executada por dois homens, um
adulto e uma criança ou rapaz, sendo que o mais novo vai colocando a mandioca na boca do
aparelho e o adulto aperta-as contra o ralo rotatório. Já na farinheira da associação há um
mecanismo de madeira que faz esta segunda tarefa e, deste modo, somente um homem dá
conta do serviço. Quando é contratado, o prenseiro cobra R$ 20,00 (vinte reais) por dia. Uma
vez que a mandioca passa no ralo já temos a massa, que cai no segundo cocho colocado
embaixo do caititu.
Na medida em que este cocho fica cheio, a massa é ensacada e daí vai pra prensa onde
são alternados um estrado de madeira e um saco, até a altura desejada. A prensa de rosca é
apertada pelo adulto pouco a pouco, mas constantemente, e isto provoca a saída do líquido da
massa em grande quantidade. Nas duas farinheiras há uma saída e um depósito de alvenaria
para se recolher o polvilho, mas em ambas este mecanismo não funciona mais. Normalmente
este produto não é retirado, em função de um investimento na qualidade da farinha, pois assim
ela fica mais doce e ao gosto do consumidor cuiabano tradicional. No entanto, quando se
deseja a massa é molhada na água, colocada num saco que é pendurado em algo e posta a
escorrer sobre uma balde. Conforme observei e a partir do relato das mulheres, o polvilho
42
Observamos uma vez que a mãe da dona da farinha estava ajudando-a no descasque, em troca do direito de
tirar um pouco de polvilho.
151
hoje somente é retirado de uma mínima porção da massa, apenas para a confecção de
biscoitos e beijus destinados ao consumo familiar.
Depois de prensada, serviço que assim leva meia hora, a massa é retirada da prensa e
torna a voltar para o ralador. Neste momento somente um adulto participa da atividade.
Conforme os sacos de massa já secos são colocados na boca do ralador, esta vai caindo
rapidamente já como um pó fino que enche totalmente o terceiro cocho que neste momento já
substituiu o segundo em baixo do caititu. Quando cheio, o cocho é puxado para perto do
forno, onde começa o serviço mais quente do dia. O detalhe interessante é que por este cocho
ser o único que é movimentado com a massa dentro dele, portanto, com um peso
considerável, possui um sistema de rolagem improvisado em baixo para facilitar no
transporte.
No forno, que é aquecido no calor da combustão de lenha e tem um sistema de pás
mecânicas que misturam a massa, movidas por um motor elétrico, o serviço é igualmente
rápido.
Aí ela [a massa] vai aqui no forno.
O forno é a lenha?
É, o forno é a lenha, mas aqui é mecânico [as pás de misturar a massa].
E leva quanto tempo pra assar?
30 minutos, que a mexeção é mais rápida, faz até mais de [um] saco [por fornada].
E quando o forno é manual?
Ah! é de 15kg, 16kg que tira por vez, por causa da mexeção.
O forneiro é sempre um homem?
Por que mulher não mexe, por que é um serviço pesado, o calor judeia da mulher.
Segundo um dos forneiros, é aí que está o segredo da qualidade da farinha. Para ele, a
massa chega igual ao pé do forno, independente de quem prepara, o segredo é o jeito do
torrador, se não tem paciência, não sai direito.
Agora no Cedral tem cinco forneiros bons, que sempre são chamados para o serviço.
Mas, se na farinheira comunitária o associado não pode escolher o forneiro, porque ele é
escolhido pela diretoria, na particular essa escolha é livre, pois quem faz a farinha entra com
todo o pessoal. Assim, se não se tem um prático na família, recorre-se à contratação. Na
farinheira comunitária paga-se R$ 2,50 (dois reais e cinqüenta centavos) por saco, até o limite
de 10 sacos produzidos. Dai pra cima, qualquer quantidade é remunerado com um único saco
de farinha produzida.43
Quando a farinha está no ponto, esta sai do forno mecânico por uma abertura lateral e
43
Ou seja, se produzir menos de 10 sacos paga-se 2,50 vezes o número de sacos produzido. Se a produção for
maior do que 10 sacos, paga-se sempre o valor de um saco. Temos assim que se produzir 15, 20 ou 25 sacos num
mesmo dia, o forneiro ganhará, de qualquer jeito, um único saco de farinha como seu pagamento.
152
cai no quarto cocho que, assim como o primeiro, é fixo. Então ela é peneirada, esfriada e
ensacada. Os caroços grossos e grandes chamados de quilera, que não passam pela malha da
peneira, são ralados manualmente e postos a secar no sol ou próprio forno. A farinha
resultante é reincorpora a um novo conjunto, num novo processo de peneiramento.
A lenha pode ser obtida por compra, o que ainda ocorre raramente, pode ser retirada
da roça, quando é de toco ou queimada, ou pode ser apanhada na terra dos outros, quando não
se tem na sua própria. Neste caso se utilizam as redes de relacionamento de vizinhança e
parentesco para esta possibilidade. No entanto, pelo fato da farinheira ficar distante da casa ou
da roça, sempre é necessário recorrer ao frete para o transporte da lenha. Com o gradual
encolhimento das matas, decorrentes do espremimento pela Fazenda Paribó nos anos 1970 e
do atual modelo de roça, onde se está cada vez mais difícil de se destinar uma roça antiga ao
descanso e recuperação da natureza, a lenha é um insumo básico que está ficando cada vez
mais escasso na região.44
O mesmo fato é levantado tanto por Amorozo (1996) como por
Ribeiro (1998), na região farinheira de Santo Antônio, onde alguns produtores espremidos em
minúsculos lotes de terra, dependem exclusivamente da compra deste insumo para poderem
produzir sua farinha.
Para o arranque da mandioca é igualmente preciso recorrer aos braços masculinos.
Como é um serviço muito grande e pesado, é empregado a troca de serviço ou o pagamento
de companheiros. Em setembro, época em que a terra está dura e seca, nos foi dito que 30
sacos de mandioca foram arrancados por sete homens durante toda uma manhã. Contudo, na
época da chuva, com a terra mais fofa, os mesmos homens arrancam até 70 sacos no mesmo
tempo. Neste serviço o trabalhador cobra uma diária de R$ 15,00 (quinze reais) e, da mesma
forma que a lenha, quem não tem transporte próprio precisa também pagar o frete da
mandioca.
Os dois rejeitos deste processo são: o suco escorrido da massa, que é jogada fora no
mato a partir de um encanamento de esgoto; e a casca, que é amontoada ao fundo da casa de
farinha. Esta é constantemente recolhida por quem se dispor a pedi-la e é destinada a servir de
ração para o gado, geralmente no período da seca. Na época das chuvas, quando não é tão
necessário o uso de ração, ela é amontoada até ser jogada no mato ou ser pega por alguém
para adubar uma horta.
Um criador de gado da comunidade vizinha de Novo Horizonte, que certo dia estava
recolhendo o monte de casca no fundo da farinheira particular, nos afirmou que a mesma dá
44
Sobre a mudança no sistema de colocação de roça, consultar o capítulo quinto.
153
um leite muito bom. Uma vaca come um saco por dia, é um pasto muito gordo, muito pesado
aí, depois ela demora a comer de novo. Conforme ele nos disse, ao gado já acostumado a
comer da casca da mandioca brava, pode-se dar diretamente que não tem problema. Já para o
gado que não é acostumado, tem que botá-la uns dias no sol pra secar o leite da casca, gado
que não tem o costume estranha. Este elemento aqui colocado vem demonstrar um amplo
domínio cognitivo do criador sobre o processo alimentar do gado. E, entendemos que este
conhecimento se faz necessário, na medida em que deve haver um cuidado no que toca ao que
e ao como as eventuais rações podem ser oferecidas ao mesmo.
Farinheiras do Cedral como um sistema
Temos assim que a moderna Farinheira Comunitária do Cedral pode ser entendida
como um complexo sistema de articulação de insumos e produtos que se inter-relaciona com
as diversas propriedades, conforme podemos ver no esquema acima. Portanto, sigamos o
raciocínio no caso hipotético de um grupo familiar A fabricar a farinha na Farinheira
Comunitária, o grupo familiar B ser aparentado deste, o grupo familiar C ser vizinho do grupo
A, o grupo familiar D ser de outra comunidade e ser criador de gado, os grupos familiares E e
154
F serem da comunidade, mas não serem nem parentes e nem vizinhos do grupo A.
Temos assim as seguintes situações possíveis em relação aos insumos. A mandioca,
dentre todos é o principal e pode se originar de duas fontes: ou é própria da família A ou, no
caso desta não ter mandioca ou não ter um trecho desta ainda no ponto, pode pegar mandioca
na meia de F, por exemplo. A lenha pode ser conseguida de três maneiras: ou é própria de A
ou é cedida por B, um grupo aparentado ou então, em último caso, é comprada de F. Já a
força de trabalho pode ser obtida por uma vasta gama de opções: sempre é fornecida pelo
próprio grupo A, sendo complementado pelos grupos B e C, no sistema de troca de serviço ou
contratado pelo sistema de diária (o forneiro, por exemplo) no grupo E.
Os produtos que saem do sistema são quatro. O suco rejeitado da massa é jogado fora.
Já as cascas podem ser retiradas, de graça, pelo criador de gado do grupo D ou pela dona de
casa que faz horta do grupo C. Já o polvilho será retirado em pequena quantidade, apenas para
o consumo familiar do grupo A ou do grupo aparentado B, a este repassado pela rede de
reciprocidade de forma espontânea ou pelo pagamento de algum parente feminino que ajudou
no serviço a troco da mesma. A farinha será, por fim, destinada em sua maior parte ao grupo
A, o dono e controlador da empreitada, em pequena quantidade ao grupo B, pela rede de
reciprocidade acima referida, para o grupo E, pelo pagamento da diária do companheiro45
e
ao grupo F, no caso de ter sido este que deu a mandioca para fazer a farinha na meia e,
finalmente, para pagar a taxa de 10% da associação.
No entanto estes dois espaços modernizados não são os únicos pontos de fabricação
de farinha. Há no Cedral ainda umas poucas casas de farinha domésticas que somente são
utilizadas em momentos de precisão, quando está difícil de achar vaga na farinheira. Em
várias outras já se perdeu parte do equipamento pelo desuso. Já no São Pedro, embora seja
uma área mais leiteira, temos uns poucos produtores artesanais de farinha que ainda produzem
em sua propriedade. Numa destas, onde a propriedade é desprovida de energia elétrica, o
processo é quase todo manual, sendo que somente o ralador é um caititu adaptado no motor a
óleo diesel. Na casa de farinha trabalha apenas a família, uma vez que como o serviço é mais
demorado e menos produtivo, as poucas pessoas da casa dão conta de tudo.
Aí o processo se inicia com a mandioca sendo arrancada na véspera e, apenas neste
caso, é preciso pagar um trabalhador para ajudar. Daí ela é trazida para a casa de farinha no
lombo dos cavalos. Eu arranco a mandioca, casca ela e põe na água. Aí acordo às 5 horas da
manhã pra torrar ela, pra dar conta de dois volumes, três volumes, farinha doce, farinha
45
A farinha é uma moeda corrente no Cedral e é facilmente aceita nestes casos. Contudo, o pagamento da diária
pode ser feito em dinheiro também, mas de qualquer jeito o dinheiro irá sair da venda da farinha.
155
doce que nos fala, farinha do dia. Revelando que neste processo agora discutido existe uma
relação estreita entre o processo de produção e o controle da qualidade do produto, temos aqui
a revelação do primeiro segredo deste produtor. Para se fazer uma farinha doce, o descasque
pode ser realizado um dia antes, mas a partir do momento que a mandioca é ralada e prensada,
ela tem que ser torrada logo em seguida.
E se demorar muito?
É, quer dizer, eu podia fazer, ralar a mandioca e botar na prensa, ao invés de ficar
ralando e prensando de madrugada. E, no outro dia ao em vez de eu ficar lá ralando,
eu to torrando aquela massa. Mas só que aí azeda, e o pessoal conhece, o nosso
serviço.
Assim, a mandioca que foi arrancada pelos homens, descascada pela mulher e filhos
no dia anterior e permaneceu no tanque por parte da noite, é ralada pelo marido de pouco a
pouco no caititu, pois este exige apenas uma pessoa no seu controle. Depois desta fase a
massa segue pra prensa de caixote, com varão apertado pela catraca e em menos de uma hora
já está pronta para ser retirada. A seguir ela será retriturada no ralador, seguindo daí direto
para o forno. O segundo segredo da qualidade de sua farinha é que tal qual no Cedral, aqui
não é retirado o polvilho da massa. Aqui não, não é tirado o polvilho, não tem nem tempo pra
tirar o polvilho, porque se tirar o polvilho ela enfraquece mais a farinha. Ela tem mais
sentido de doce quando ela não é lavada a massa, sempre é mais doce.
O forno é manual e feito na capota de Kombi. Por isso ele é mais lento e, é este
justamente o ponto onde se torna mais claro a diferenciação entre o processo tradicional e o
realizado na farinheira modernizada.46
E no forno, quanto tempo leva?
Ah dá quatro sacos por dia, aqui... A diferença daqui praquela do Cedral é o forno
que é mais demorado, é que ele ocupa um pouco mais de tempo. Que diferente
daquele que torra 15, 20 sacos por dia enquanto aqui dá quatro, e suado.
Deste modo, ele torra um saco de 45 kg em etapas ou em três torrações sucessivas, o
que leva a um consumo maior de lenha.47
Depois de terminado esta atividade ele passa para o
peneiramento que é seu terceiro segredo revelado. É aí que se dá o padrão de limpeza e
homogeneidade da farinha dentro do saco. Para ele, é a peneira que faz a farinha ser vendida
mais facilmente. O segredo da farinha de qualidade é o peneiramento da farinha já pronta.
46
Por sistema tradicional não estamos nos referindo ao antigamente utilizado, no tempo da terra de comum, das
origens do grupo ocorrido nas três últimas décadas do século XIX. Queremos na verdade nos referir ao sistema
utilizado antes da chegada das farinheiras modernizadas e que ainda sobrevive na atualidade. É Eric Hobsbawm
quem contribui para desmistificar esta idéia de um passado mítico tradicional, ao afirmar que “Muitas vezes,
„tradições‟ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não inventadas” (1997:9). 47
Aparentemente isto ainda não é um problema para o mesmo, uma vez que ele ainda tem uma reserva razoável
de mata, embora esta esteja longe de sua casa.
156
Tem que ser uma peneira boa, fina e tem que ter atenção no serviço, tirar todos os ciscos e
sujeiras presentes no produto. Nós não podemos ’queimar o nome’ da farinha de nossa
comunidade!
Depois de peneirada e ensacada, a farinha segue direto para o depósito, onde
aguardará uma boa oferta de compra. Conforme o produtor sua farinha é artesanal e o mesmo
nunca teve dificuldade de vender em Cuiabá ou Várzea Grande, exatamente por causa deste
investimento no sabor, na qualidade e na homogeneidade do produto.
É uma farinha boa, é doce. A gente sacrifica, acorda mais cedo pra poder fazer
farinha de qualidade. Eu cobro um pouquinho mais, tem mais trabalho, mas cobro
isso no preço. Agora, se você castigar a massa de um dia pra outro, ninguém quer
comprar mais, o mercado cobra, o freguês reclama.
É por isso, aliado ao fato de ter transporte próprio, que o mesmo conseguiu há muito
tempo o acesso aos grandes mercados atacadistas de Cuiabá e Várzea Grande (Atacadão e
Casa Domingos), mesmo cobrando mais caro, enquanto os produtores do Cedral têm que
vender a farinha na porta pelo preço ditado pelo comprador. Temos assim colocado aqui duas
estratégias distintas que remontam ao sistema de classificação forte fraco e o de plantio pela
lua, anteriormente discutido.48
Enquanto no São Pedro teríamos a farinha „forte‟, ou seja, a
tradicional que faz pouco, demora mais a ser produzida, dura mais na dispensa e onde a
qualidade é o elemento diferencial, resultando daí a venda no atacado e com preço
determinado pelo produtor; no Cedral teríamos a farinha „fraca‟, ou seja, a moderna que faz
muito, num ritmo rápido, dura pouco na dispensa e onde a massificação é o elemento
principal, resultando daí que a venda se faz na porta, a um preço determinado pelo comprador.
No entanto, conforme deixamos bem claro anteriormente, no caso do sistema de
plantio pela lua que distingue o plantio forte/dá seguro do plantio fraco/dá violento, aqui
também estas duas possibilidades significam na prática, a liberdade de escolha dos dois
grupos no momento de estabelecer as suas estratégias. São vantagens e desvantagens distintas
que são pesadas, em termos desta escolha e que conforma já vimos anteriormente, se fazem
presentes na mesma matriz cognitiva, no mesmo habitus. Da mesma forma que no sistema de
plantio, onde se balanceiam as características desejadas ou no pé, ou na fruta, aqui também
temos um „jogo de soma zero no final‟. Assim, enquanto um grupo prefere fazer muito e
desovar logo e barato a produção, o outro prefere fazer pouco e caprichado para segurar e
vender melhor. Conforme dissemos, no final as duas estratégias acabam se equivalendo e
contribuindo, cada uma a seu modo, para a reprodução social do grupo.
48
Sobre estes sistemas, conferir capítulo segundo.
157
Portanto, a partir de todo esse processo de inovação temos hoje na área foco desta
pesquisa a produção de farinha a partir de duas perspectivas, conforme acima colocado. No
Cedral, com o serviço braçal reduzido apenas a cascação, enquanto as outras tarefas são
realizadas com implementos modernos, tocados à energia elétrica. Isso possibilitou um grande
aumento de produtividade, mas conduziu a uma nova organização da produção não mais sob o
controle total do grupo familiar como antigamente. Agora, o trabalho se dá a partir de uma
organização do tempo decidido externamente a este, pela diretoria da Associação Comunitária
que tem que planejar o uso do espaço da farinheira por todas as famílias associadas. Além
disto, este trabalho não é mais realizado no próprio quintal, e sim num espaço situado longe
de sua propriedade.
No São Pedro e em algumas poucas propriedades do Cedral ainda se produz farinha no
modelo anterior à chegada da farinheira. Temos aí o uso de motores elétricos ou a combustão,
que auxiliam na ralação. A prensagem é feita pelo sistema de caixote e prensa de catraca. Já
todo o restante do processo, cascação, torragem e peneiramento, são realizados manualmente.
Embora aqui a produtividade diária seja bem menor, três ou quatro sacos contra 20 a 25 na
farinheira do Cedral, aqui o grupo doméstico ainda é dono dos meios de produção, do espaço
e do tempo, organizando a seu bel prazer o ciclo do trabalho.
Iselda Ribeiro levanta essa questão da perda do controle do tempo, a partir da
instalação da Farinheira Comunitária em Morro Grande.
O projeto, no entanto, logo começa a mostrar sua fragilidade, ao firmar o antagonismo
entre a ideologia dos técnicos do CEAG e as práticas sociais da cultura dos sesmeiros.
Com a utilização coletiva da Casa de Farinha surgem os primeiros problemas. O maior
deles estava na perda do controle do „tempo‟ de trabalho. Até então cada família
dispunha do seu tempo de trabalho. Trabalhava a quantidade de horas que quisesse e
no dia e horário que quisesse.
Com a Casa de Farinha, as famílias começam, então, a perder o poder sobre o seu
„tempo‟. Estavam agora submetidas a um processo homogeneizador que instaura o
trabalho como categoria autônoma e, deste modo, potencialmente dominadora. Não
mais poderiam escolher a hora de trabalhar, em função das prioridades totais de vida
comunitária. (...)
As inovações provocaram uma serie de conflitos e inimizades entre as famílias, (...)
principalmente, da não aceitação de ficarem subordinados às ordens de um sesmeiro
administrador, que assumiu a função de determinar (controlando) o „tempo‟ do grupo.
(...) Como dizem os sesmeiros: ‘Toda a vida cada um era responsável pelo seu
trabalho. Nós não nos submetemos às ordens de ninguém. Tem que ter respeito pelo
trabalho do outro’ (op. cit.: 79-80).
Temos assim que este processo de modernização e incentivo ao comunitarismo
implantado em diversas comunidades camponesas da Baixada Cuiabana acaba por interferir
na autonomia do grupo familiar. Temos ai o conflito entre a noção de liberdade, de poder
158
escolher o jeito, a hora e o lugar de se realizar tal tarefa, o que nos remete a noção do bom
gerenciamento do pater familias e projetos comunitários oficiais que, no final das contas,
acabam por provocar o esfacelamento do modelo camponês por negar justamente esta
liberdade, uma das premissas sobre o qual este modelo se assenta.
Não levantamos no Cedral qualquer referência a conflitos entre as famílias, motivado
pela disputa do espaço na farinheira, o que não quer dizer que isso não tenha ocorrido. No
entanto sentimos no ar um velado conflito entre as lideranças de diferentes estilos de
condução da comunidade, oriunda dos „de fora‟ ou de chego e dos „de dentro‟ ou nascido e
criado. Talvez isso queira dizer que se conflitos houve, eles agora estão momentaneamente
acomodados. Já em relação a esta perda de controle do tempo, embora ela seja reconhecida
pelo grupo, os produtores acabam por desviar da discussão, argumentando que é mais uma
questão de organização ou é só um respeito pelo direito do outro.
Para os que usam a farinheira, mesmo perdendo a autonomia do tempo, é dito que o
aumento da produtividade compensa. O raciocínio é que mesmo esperando alguns dias ou
uma semana para encaixar a vaga na farinheira, quando se chega na sua vez se obtém uma
produção equivalente a cinco dias no sistema manual, aí compensa. Ademais, nos dias de hoje
um grupo doméstico local não produz farinha o mês inteiro como em Morro Grande, onde a
comunidade é quase que exclusivamente farinheira.49
No Cedral há diversas outras atividades,
como cuidar das várias roças, não só de mandioca, mas de outros produtos, além do gado e
porco para quem tem. Além disso, temos o fato de que existem na localidade duas farinheiras
modernizadas, uma comunitária e outra particular, sendo que esta pode ser alugada nos
mesmos moldes e com o mesmo custo daquela. Isto dá uma opção aos excluídos ou
descontentes da administração da Associação controladora da primeira, o que contribui em
aliviar a possibilidade de conflitos.
Portanto pensamos que pode estar aí uma boa explicação para o fracasso do projeto e
as brigas numa comunidade e o aparente êxito na outra. No Morro Redondo, a opção dos
produtores foi o abandono da farinheira comunitária e a modernização das farinheiras
particulares de cada família. Enquanto isso, no Cedral, as duas farinheiras funcionam hoje a
todo o vapor, conseguindo atender razoavelmente a demanda. Outro ponto interessante que
ajuda a esclarecer a diferença é que logo depois da instalação da Farinheira Comunitária no
Cedral, a demanda reprimida foi facilmente resolvida com a utilização simultânea do espaço.
Deste modo, duas famílias dividiam organizadamente a mesma estrutura e o funcionamento
49
Segundo Ribeiro (op. cit.) existem alguns produtores de farinha desta localidade que se dedicam apenas a esta
atividade, comprando a mandioca de lavradores vizinhos ou, até mesmo, de comunidades distantes.
159
da farinheira era ininterrupto, com o trabalho sendo realizado de segunda a segunda.
Conforme nos informaram, naquela época até acabar a mandioca no Cedral, saia à base duns
25 sacos por dia dessa farinheira.
No entanto, se a questão do controle do tempo é assim resolvida pelas famílias
produtoras de farinha, a perda do controle sobre o produto final é mais problemático. Como a
administração do espaço é controlada externamente na Farinheira Comunitária, alguns
funcionários como o prensador e o forneiro são fixos, cobrando pelo serviço executado. Além
disto, devido ao encolhimento do grupo familiar, com a conseqüente escassez de mão de obra
em seu interior, em ambas as farinheiras, na comunitária e na particular, temos a necessidade
de contratação de mulheres para o descasque da mandioca. Alia-se a isso o gasto com o frete
da mandioca e da lenha, que no sistema antigo não existia porque a farinha era produzida na
propriedade, portanto, perto da roça, fonte destes insumos. Temos igualmente o fato de que
muitos produzem a farinha a partir de mandioca alheia, com a partilha da produção meio a
meio. Por fim, incidindo sobre tudo, temos a taxa de 10% sobre a produção bruta, cobrada
pela farinheira onde o produto foi fabricado.50
Por causa de tudo isso, quem não produz neste sistema costuma direcionar ao mesmo
duas críticas. Em primeiro lugar, é colocado que por ser ele quem faz a farinha, sem a
participação de funcionários da associação ou contratados, é possível de se controlar a
qualidade, caprichando mais no serviço. Isso se traduz num produto melhor, tanto para ser
consumido como para ser vendido mais facilmente. Em segundo lugar, temos por parte dos
que produzem do modo artesanal a noção de que é mais sacrificado aqui, mas o que tira no
final do dia é tudo nosso, lá não, a farinheira come um bom pedaço, se bobear sai quase na
meia. Já um lavrador idoso que produzia no seu tempo pelo sistema tradicional, muito
demorado e todo manual, lembra com saudade daquele tempo em que a família tinha o
controle do processo como um todo, e critica o atual modo de produzir farinha.
Mesmo com a farinheira [moderna] ainda não produz a farinha que nos fazia outra
hora, que cada um fazia um pouquinho por conta. A farinheira faz 20 sacos, no tempo
que antes fazia um, mas tem a despesa, que no fim fica lá mesmo, não sobra nada. E
de meu tempo não, nos fazia pouco, mas era só nosso, e nos vivia, assim nos vivia.
Portanto, podemos perceber que o processo de fabricação da farinha sofreu ao longo
do último século um grande acumulo de mudanças pontuais que, em conjunto, alteraram a
organização e o tempo de trabalho, a produtividade e a qualidade do produto final. Assim a
50
Esta taxa é cobrada indistintamente pelas duas farinheiras. Tanto na da Associação como na particular, se
justifica esta cobrança pelo fato de que é necessário de se arcar com as despesas de água, luz e manutenção do
equipamento.
160
farinha de hoje se insere em outra lógica, a da produção para o mercado em primeiro lugar e
para o consumo secundariamente,51
adaptando-se ao gosto do consumidor e não ao da
comunidade produtora, adotando padrões de higiene e aspecto externos e não internos ao
grupo. Contudo, mesmo com todas estas mudanças, não podemos dizer que este projeto de
modernização, implantado de fora para dentro, tenha provocado uma transformação radical no
processo de fabricação da farinha, como se desejava inicialmente. Como vimos, às duas
estruturas modernizadas de fabricação de farinha significam mais uma „motorização‟ do
processo, aliviando a carga de serviço e encurtando o tempo de trabalho, permitindo a
produção em um dia do que se levariam quatro ou cinco para ser feito no sistema anterior.52
A farinha da região mesmo sofrendo todas estas alterações, ainda é fruto do esforço do
grupo familiar e um produto ligado à honra e a tradição local. O acesso privilegiado às redes
de reciprocidade, com a troca de serviço entre parentes, vizinhos e compadres, evitando-se
assim a contratação de assalariados é demonstrativo disso. Somente na hipótese de se precisar
de um forneiro, um cargo de técnica mais apurada e com poucos iniciados na comunidade, é
que se recorre à contratação. Aliado a isso temos o fato de que mesmo com a farinha sendo
destinada prioritariamente à venda, todos os seus produtores (tanto do Cedral como do São
Pedro) fazem questão de dizer que capricham no serviço, para não deixar a qualidade cair.
Temos aí claramente colocado a questão da honra da comunidade. É o „nome‟ da Farinha do
Cedral ou da Farinha do São Pedro que está em jogo, o que significa dizer, das famílias que aí
residem e as fabricam. E, nesse contexto, „honra não se negocia, não se compra e nem se
vende‟. Ou se tem e se faz de tudo para mantê-la, ou não se tem. E aí para o camponês esta
hipótese é simplesmente o fim do mundo.
Temos assim claramente colocada a sobreposição na mesma pessoa moral, do papel de
„fabricante‟ – o pai de família que governa a produção – com o de „vendedor‟ – aquele que
tem que manter „no mundo‟, o bom nome de sua comunidade e família. Este vínculo moral
permanente entre o produtor e seu produto não deixa de ser uma replicação da relação
criador/criatura existente entre Deus e o homem. Isto se dá porque nesta relação, o segundo
deve ser honrado e correto perante a sociedade e a natureza, porque é filho e semelhante ao
primeiro (Woortmann, 1990).
51
Ao contrário do que ocorria antigamente, conforme vimos no capítulo terceiro. 52
Spindler (1973) defende a diferenciação entre os processos de „motorização‟ e „mecanização‟. O primeiro
ocorreria quando da substituição do trabalho braçal por máquinas, que facilitam o serviço ou aumentam a
produtividade, mas não alteram o sistema empregado. Já o segundo ocorreria quando esta substituição se dá de
forma plena, provocando uma alteração radical do sistema localmente utilizado. O processo de modernização por
que passa a fabricação de farinha no Arruda se encaixa, portanto, no primeiro caso.
161
Vogel, Mello e Barros, discutindo o mercado de produtos religiosos afro-brasileiros,
colocam que este tem a capacidade de avaliar as competências de todos aqueles que por ele
transitam.
E isso de um ponto de vista privilegiado, pois, graças à sua posição (isto é, ao fato de
estarem no mercado), tem a possibilidade de comparar. Ao comparar, porém, passam
do confronto das listas [de compra indicada pelo pai ou mãe-de-santo] ao das casas e,
inevitavelmente, chegam ao cotejo do saber e do desempenho de pais e mães-de-santo.
As omissões, escolhas discutíveis ou os eventuais equívocos que uma lista revela
podem comprometer o bom nome não só do titular, como, através dele, o do terreiro.
Pelo lado positivo, as listas permitem avaliar não só quem observa mais
„corretamente‟ os ritos, como também os barcos mais numerosos, os santos mais
bonitos, os sacrifícios mais opulentos, as cerimônias mais ricas e as festas mais
suntuosas (1993, 13-14).
Ou seja, tanto no contexto urbano-religioso como no rural-produtivo, tanto nas
grandes metrópoles como nas pequenas cidades do interior, o mercado é um aferidor da
„competência profissional tradicional‟. Assim ele é benevolente com aquele que „faz a coisa
certa‟ e crítico com quem se desvia do padrão, o que pode acarretar a desonra tanto deste de
uma forma direta como, indiretamente, de sua comunidade inteira.53
Fazer uma farinha de
qualidade é obviamente uma estratégia de colocação do produto no mercado, mas, muito mais
do que isto, é um meio de se manter a honra e a dignidade do pai de família perante o mundo
ao seu redor.
O sistema mandioca-farinha
No entanto, antes de concluirmos este capítulo, não podemos deixar de dizer que na
atualidade a farinha não é um produto que se insere em uma lógica exclusivamente sua. Na
verdade, temos um par formado pela mandioca e pela farinha, onde ambas se entrelaçam e
não podem ser pensadas separadamente. Na comunidade de São Pedro que ainda produz
farinha no sistema artesanal e onde cada produtor planta a sua própria mandioca, essa questão
não foi levantada tão claramente. Eles fazem farinha e vendem mandioca in natura, sendo que
no primeiro caso, a partir do trabalho de todo o grupo familiar, temos um baixo custo de
produção que conduz a uma pequena agregação de valor no produto final. Ou seja, apesar do
esforço, a farinha acaba compensando de qualquer jeito a sua produção.
53
Esta visão holista onde o todo contem a parte é facilmente percebido na questão da honra camponesa, onde o
desvio de um membro do grupo familiar acarreta a desonra de todos os seus membros. Temos aí colocado a
noção de que estes são co-responsáveis por todos os comportamentos individuais e, no caso do desvio, a culpa
maior cai no conjunto, uma vez que este não soube ensinar e corrigir a tempo. A este respeito conferir as
categorias de „árvore‟, „sangue‟, „casa‟ e „Keim‟ levantada por Ellen Woortmann em seu estudo sobre os colonos
do sul (1995 a: 129).
162
No entanto é no Cedral, com a lógica da produção modernizada que este ponto foi
levantado por todos os entrevistadas. Nesta comunidade a mandioca tem dois destinos. O
preferencial que é a venda da mandioca in natura para o atravessador, na porta de casa e o
menos freqüente que é a fabricação da farinha. É por causa disto que a variedade liberata, a
mais apropriada ao mercado é plantada em cerca de 80% da área destinada à mandioca,
enquanto as variedades guarapé vermelha e latadeira, cujo único uso é a fabricação de
farinha ocupam juntas os 20% restantes da área plantada.
No entanto, não é apenas esta proporção do plantio que dá o entendimento da
diferença. Além disso, a obtenção e o uso da mandioca são pensados atualmente no Cedral,
por meio de diversos sistemas diferentes. O lavrador que a planta em sua terra pode vendê-la
ao mercado ou fazer farinha. Além disso, ele pode, se tiver apertado ou não quiser ter o
trabalho, oferecê-la na meia, para outro fazer a farinha.
O rapaz plantou mandioca, às vezes, ele não ta com tempo de fazer aí, ele oferece pra
aquele que não tem. Aquele que não tem praticamente, ele já vai pegar a mandioca lá
pronta, e toda a dispesa é dele. Aí ele paga os companheiros para arrancar, paga
frete de charrete ou de carro pra trazer aqui, é ele que paga. E ele trabalha com a
mandioca aqui, faz a farinha, paga a renda, paga quem trabalha na prensa e ele
reparte a metade com o dono da terra lá.
Ele pode também, se tiver pouca terra, plantar na terra alheia, igualmente no sistema
de meia, só que neste caso dividindo-se a mandioca produzida. Planta na meia, aí ele parte o
mandiocal no meio, ele faz a farinha da mandioca dele e a farinha é toda dele.
Contudo, uma vez plantada seja em qual sistema for, mesmo que o lavrador somente
queira vender a mandioca sem ter que se preocupar em produzir farinha, ele nem sempre
consegue realizar tal intento. Em primeiro lugar porque às vezes, devido à oscilação do preço
de mercado da mandioca, pode ocorrer uma baixa na procura e aí a mandioca de feira demora
a ser vendida e pode passar do ponto de venda na terra, engrossando demais. Até uma certa
bitola ela [a mandioca] serve pra feira, porque o mercado exige um padrão, quando ela sai
da bitola [o comprador rejeita], aí só presta para farinha. Além disso, mesmo que ela seja
vendida no ponto ideal, há sempre uma perda na colheita chamada de restado ou rastolho,
pedaços miúdos ou quebradiços da raiz que sobram porque são rejeitados pelo comprador.
Normalmente, de 50 sacos de mandioca de feira colhida e vendida, sobram na mão do
produtor cerca de 10 sacos de rastolho que somente podem ser aproveitados na confecção da
farinha. Embora seja difícil de descascar, os 10 sacos de rastolho costumam produzir três
sacos de farinha.
No entanto pode ocorrer de que independentemente de qualquer problema inerente ao
163
plantio e colheita da mandioca, ele não ache comprador ou o preço esteja num tal nível de
aviltamento que aí não compensa vende-la de jeito nenhum. Neste caso, como a variedade de
feira é fraca e geralmente plantada na lua crescente, para produzir logo – o padrão dá o viço
do crescimento, mas não dura –, a mesma não agüenta muito tempo na terra depois de
madurar.54
Assim, ela deve necessariamente ou ser usada como alimento das criações ou ser
farinhada logo, independentemente de preço da farinha ou de qualquer outro elemento, sob o
risco de se perder toda a produção.55
Aliado a estes fatos e dando a compreensão de fundo da problemática do sistema
mandioca/farinha, temos duas variáveis que são computadas por todos os lavradores na hora
de estabelecer a estratégia do grupo familiar: o preço de ambas de um lado e o tempo e o
trabalho de outro. Desde nossa primeira ida ao Cedral, presenciamos uma queda paulatina no
preço de venda de ambos os produtos. Em outubro de 2003 tivemos uma alta histórica, onde o
saco de mandioca estava cotado a R$ 20,00 (vinte reais) e o de farinha a R$ 80,00 (oitenta
reais). Em março de 2004 os preços haviam mudado para R$ 13,00 (treze reais) e R$ 50,00
(cinqüenta reais) respectivamente. Finalmente em setembro do mesmo ano os valores já
tinham despencado para R$ 9,00 (nove reais) e R$ 40,00 (quarenta reais). Portanto, se na
primeira vez que fomos a mandioca era quase que totalmente vendida in natura, porque
compensava mais e o trabalho é mais pouco, na última vez não havia sequer comprador para
a mesma e os produtores estavam se desdobrando para farinhar toda a sua produção. O estado
de tristeza era geral e o que mais ouvimos dizer era: é o jeito né, fazer o que. Ficar parado é
pior.
Explicando melhor essa relação vamos comparar os três momentos, tomando por base
o valor arbitrário de 60 sacos de mandioca arrancada e lembrando-se que estes 60 sacos de
mandioca produzem 20 de farinha. Igualmente não estaremos contabilizando o custo do
arranque da mandioca, pois o mesmo é idêntico nos dois casos e, portanto, indiferente à
comparação que hora efetuamos.
54
Conforme veremos no capítulo quinto, a mandioca de feira ou liberata amadurece de oito a dez meses depois
de plantada e, não pode passar mais do que dois ou no máximo três meses armazenada na terra. Este é um risco
que quem escolhe este tipo de estratégia (violento mas não dura) tem que estar preparado para correr. 55
E o risco aí não seria apenas este. Com a mandioca não colhida, fica muito mais difícil de se colocar uma nova
roça no mesmo local, o que significa a perda de duas colheitas sucessivas, um verdadeiro desastre para o grupo
familiar.
164
Outubro/2003
Mandioca Farinha
Apurado 60 sacos X 20,00 = 1.200,00
Despesas
Total despesa 0,00
Apurado 20 X 80,00 = 1.600,00
Despesas forneiro 80,00
prenseiro 20,00
refeições 20,00
frete 40,00
saco novo 10,00
taxa 10% 160,00
Total despesa 320,00
Resultado final R$ 1200,00 Resultado final R$ 1280,00
Março/ 2004
Mandioca Farinha
Apurado 60 sacos X 13,00 = 730,00
Despesas
Total despesa 0,00
Apurado 20 X 50,00 = 1.000,00
Despesas forneiro 50,00
prenseiro 20,00
refeições 20,00
frete 40,00
saco novo 10,00
taxa 10% 100,00
Total despesa 240,00
Resultado final R$ 730,00 Resultado final R$ 760,00
Setembro/2004
Mandioca Farinha
Apurado 60 sacos X 9,00 = 540,00
Despesas
Total despesa 0,00
Apurado 20 X 40,00 = 800,00
Despesas forneiro 40,00
prenseiro 20,00
refeições 20,00
frete 40,00
saco novo 10,00
taxa 10% 80,00
Total despesa 210,00
Resultado final R$ 540,00 Resultado final R$ 590,00
Como podemos perceber claramente na comparação dos resultados acima, o discurso
local se justifica, pois tanto no preço excessivamente alto de outubro/2003, quanto no
relativamente baixo de setembro/2004, não compensa para o grupo familiar, economicamente
165
falando, fazer a farinha. A diferença normal de preço a mais é muito pouca e não paga os dias
de estafante serviço de toda a família.56
No entanto, nas três ocasiões em que estive no local
com uma permanência mais demorada, não se paralisou a fabricação de farinha. Esta
contradição entre não compensa, mas faz de qualquer jeito, é explicada no seguinte diálogo
com um produtor, em março de 2003.
Igual aqui hoje, a farinha ta a 50 e o saco de mandioca ta a 12, 13 reais, então quer
dizer que, agora ta naquela jogada. A mandioca passou um pouquinho [do padrão
exigido pelo mercado], e o pessoal já faz a farinha. Mas do jeito que ta no momento,
ainda compensa vender mesmo [a mandioca].
Três sacos dão 36, 39. Mesmo nessa diferença?
Ah, quase compensa vende mesmo... Agora, no caso da farinha, acaba agente tendo
que fazer mesmo, porque a mandioca pra feira, muitas vez ele exige um padrão e aí a
mandioca já passou um pouco. Outra hora falo tem os miúdo que o pessoal fala, os
restado que fica, os quebrado, e essas coisas vai pra farinha.
Pra não perder você faz a farinha?
É, pra não perder. A farinha com a venda da mandioca, ela é quase duas coisas que
não pode desligar. Uma depende da outra! E, o que já sobra ali é tudo aproveitado na
farinha. Eu mesmo arranquei mandioca um pouquinho no sábado lá e, tem muita raiz
grandona lá que já não passava [pelo critério do comprador] e aí serviu pra farinha.
(...) Só na venda de mandioca o produtor tem prejuízo e só na farinha também, muitas
vez ele não tem o lucro.
Como podemos perceber, a relação mandioca/farinha formam um sistema onde não se
pode separar uma da outra. Compensando ou não compensando, a venda in natura e a
fabricação de farinha não podem parar.
No entanto, não é apenas na lógica econômica que os produtores do Cedral se baseiam
no momento de definir o que compensa mais, como podemos ver na seguinte fala. No preço
bom [em outubro/2003] compensava vender a mandioca, economiza tempo e trabalho, a
fazeção da farinha come a diferença toda. No preço que ta agora, março, ainda compensa
vender a mandioca. Na verdade, entrelaçado com a somatória de preços e custos, temos aí
outra lógica incidindo, o calculo do tempo despendido e do esforço realizado. Ou seja, o
trabalho é por eles contado duas vezes.
De acordo com Chayanov (1966), o rendimento econômico do trabalho do grupo
familiar pode ser estendido até o limite da capacidade, que é o ponto mínimo da garantia da
reprodução física e social da família camponesa. Entendemos que é isto o que torna aceitável
o processo de fabricação da farinha, mesmo quando o preço está relativamente baixo ou a
56
Devemos nos lembrar que a maior diferença de ganho, de R$ 80,00 em fim de 2003 foi atípica e, por isso
mesmo, não é representativa da relação. Além disto, não podemos nos esquecer que a farinha é feita por um
grupo familiar no Cedral, duas ou três vezes por mês, no máximo, devida à necessidade de se respeitar a escala
da farinheira.
166
diferença a mais sobre a venda da mandioca é irrisório. Contudo, não é só de economia que
vive o lavrador da região do Arruda. Se seus sentidos acompanham a variação de preço e
pelas características do sistema o esforço extra é sempre considerado necessário, a lógica da
organização do grupo se contrapõe a isto, colocando fortemente a questão do controle do
tempo pelo lavrador e sua família. Deste modo temos que:
Compensa mais vender a mandioca, que o tempo de ficar farinhando lá, ta fazendo
outra coisa.
Mesmo que o preço da farinha suba mais que a mandioca?
Ah, mesmo assim, que nós não vive só de farinha, nós tem nossa roça, nos tem nossa
obrigação com os outros, aí, nós não pode ficar preso ali na farinhada.
Como podemos perceber, se o calculo econômico (aí incluídas as variáveis preço e
esforço) implica em que não é vantajoso fazer farinha e sim vender a mandioca, a noção de
liberdade de organizar o seu próprio tempo, de poder decidir que atividades serão realizadas
naquele momento, fala muito mais alto. Temos aí claramente a valorização do governo do pai
que, informado pelo saber comum, deve ter o controle sobre as atividades desempenhadas
pelo grupo familiar (Woortmann & Woortmann 1997). É este, e não o mercado, que tem o
poder de decidir o rumo da vida e do trabalho no mundo rural, estabelecendo se o grupo
familiar irá alocar o seu tempo e a sua força de trabalho somente na produção de
mandioca/farinha ou, se ira alocar estes insumos na mandioca/farinha e nas demais atividades
produtivas. Cabe, portanto, ao pai de família não permitir que sua família se torne escrava de
uma única atividade ou de uma lógica econômica externa. E é esta simbólica da liberdade e do
autogoverno do grupo familiar, presente em muitos grupos camponeses, que acaba por
escapar a qualquer um que se preocupe apenas com uma abordagem economicista ou
produtivista de tais grupos.57
O que percebemos em nossa última ida a campo, em setembro de 2004, é sintomático
do que dissemos acima. Neste período, a relação de preço mandioca/farinha estava no
equilíbrio mais precário e o preço de ambos estava aviltantemente baixo. A situação estava
tão dramática, a ponto deles dizerem que de 40 reais pra baixo não compensa mesmo fazer
farinha.58
Contudo, uma vez que não tinha mais nenhum comprador para a mandioca e
nenhuma perspectiva dos mesmos aparecem, foi este justamente o momento em que mais se
57
A cerca desta idéia de „condição de liberto‟, ou seja, o pai que tem o pleno controle da terra, do trabalho e do
tempo, consultar (Woortmann, 1990). Em relação aos camponeses nordestinos que migram para a Amazônia em
busca desta mesma „condição de libertos‟, fugindo da „besta fera‟ e do „cativeiro‟, consultar (Velho, 1976). 58
Temos aí claramente colocada a noção de „tyagostnot‟ de Chayanov (op. cit.). Conforme coloca Margarida
Moura, “tal expressão significa que o trabalho vale, literalmente, a pena até o ponto em que seu retorno alcance
um grau de satisfação subjetivamente aceito, abaixo do qual a tyagostnot se tornam inútil e indesejado sacrifício”
(1986: 61).
167
produzia a farinha. Isto se dava porque, na verdade, este é o único meio de se estocar a
mandioca fraca dos dias de hoje, sem que ela se deteriore na terra. Assim, a fala de todos era
de um desânimo geral.
E agora ta compensando fazer a farinha?
Ah não compensa, mais fazer o que, ficar parado não dá e perder a mandioca é pior
ainda. Que de todo jeito nós tem que desocupar a terra, que já ta na hora de plantar
de novo, se não, ano que vem não tem nada.
Este foi o momento em que percebemos na comunidade do Cedral uma grande
apreensão. Não era apenas uma tristeza oriunda tanto da perspectiva de uma queda na renda,
pois mesmo barato eles estavam achando comprador fácil para a farinha. Era sim um
sentimento subjetivo de perda de controle sobre o tempo de trabalho do grupo, agora restrito a
fazer farinha, com o conseqüente descuido das outras atividades. Da mesma forma, eles se
ressentiam da perda do poder de barganha, da falta de liberdade de poder estabelecer suas
estratégias, jogando as fichas ora na mandioca, ora na farinha. E isso falava mais alto do que
qualquer outro dado econômico.
168
Porcos da raça Pé Duro Reprodutor da raça Piau Paulista
Vista panorâmica de um engenho Puxado no fundo da casa onde se faz o queijo
Leite talhando na vasilha azul e ao fundo o soro no fogo
Forno retangular no São Pedro Forno mecânico movido à eletricidade
Farinheira particular do Cedral
169
Prensa de acocho por catraca Caititu movido à eletricidade e prensa de torção
Farinheira particular do Cedral
Engenho de madeira que foi modificado Fazendo rapadura - retirando a escuma
Fazendo rapadura - despejando no cocho Fazendo rapadura - enformando
170
CAPÍTULO V
O NOVO SISTEMA DE PLANTIO NA ROÇA
A nação se acaba ali onde se acaba a cerca do latifúndio. Aqui, nas línguas da terra, entre as cercas, plantamos. Vigiados pela multidão de bois, e pelas armas da Nação. Então, na mesma fala dos relâmpagos, digo: essa é uma nação de bois. Aqui, entre arame e arame, nos corredores, empurrados pela força da cerca e pelas armas da Nação, formamos um ajuntamento de gente saqueada.
Poema de um posseiro do norte do Tocantins 1
O espremimento dos anos 70, o cercamento dos anos 80 e as imundícies dos anos 90:
o fim do policultivo de grãos
O sistema de colocação da roça nas comunidades do São Pedro, do Espia e do Cedral
atravessou as últimas décadas do século XIX e praticamente todo o século XX com poucas
alterações, apesar das inúmeras mudanças conjunturais sofridas pelo grupo ao longo desse
período. Tivemos na roça a introdução e o abandono de variedades plantadas e o
aparecimento de novas técnicas, como o plantio por matraca, por exemplo. No entanto, o
sistema de distribuição da roça em dois campos, do arroz e o do milho, aliado ao fato destas
duas espécies, juntamente com o feijão, ocuparem o lugar principal da produção, sendo a
mandioca, a cana e a banana a elas subordinadas na lógica da ocupação do espaço, permanece
praticamente inalterado até a década de 1990.2
Foram os dramáticos acontecimentos da década de 1970 e 1980, onde o modo de vida
em comum se esfacela, em função do duplo fenômeno do espremimento e do cercamento que
num efeito retardado, como uma verdadeira bomba relógio, se produz as condições que
acabam por inviabilizar este modelo tradicional de cultivo.3 É a partir de uns 10 anos atrás
mais ou menos, a depender da localidade e do tipo de terra da propriedade e, principalmente
devido a dois fatores: alteração na estrutura agrária e nas condições ambientais; que o
policultivo de grãos torna-se impossível frente o ataque de pragas ou imundícies.
A partir daí, cada localidade ou mesmo cada produtor acaba por se especializar na
atividade que melhor se adapta as condições ambientais de sua propriedade: a qualidade da
terra, a disponibilidade de áreas de matas que operam como proteção natural e a
1 Extraído de (CESE-CONIC, 1996: 25).
2 Segundo levantamos no Cedral, o último ano em que se plantou no sistema tradicional foi em 1994.
3 Sobre os fenômenos do espremimento e do cercamento, consultar o capítulo primeiro.
171
disponibilidade de água; ou se adequam as condições sociais de seu grupo familiar: a
disponibilidade de força de trabalho, a possibilidade de acesso ao comércio, etc. No São
Pedro, cuja população foi a mais afetada com a perda de sua área histórica de plantio na
praia,4 temos como um padrão geral, mas não único, a criação de gado e o plantio de
pequenas rocas mais para a despesa, isto é, para a subsistência.5 No Cedral, que apesar de
espremido ainda manteve um padrão ambiental relativamente próximo do anterior, temos o
plantio da mandioca principalmente para a venda in natura e secundariamente para a
produção de farinha.
Como já acompanhamos o processo histórico relativo a estes fatos, no capitulo
primeiro, vamos agora ver os seus efeitos na terra, no ato de fazer a roça. Um lavrador do
Cedral que produz principalmente mandioca e banana explica o que mudou no plantio deste
segundo produto.
Ah, nesse tempo fazia o bananal e quando acabava deixava pra mata. É que aqui
antigamente a área aqui era muita, não tinha tanta gente. Então deixava, fazia a roça
e derrubava uns três anos, e deixava pra mato, durava uns oito anos então, pegava de
novo.
E agora?
Ah ta repetindo né, que já veio muita gente de fora e tomou, comprou as nossas áreas,
fazendeiro já tomou conta. Então agora já ta poucas áreas nossa, então agora tem
pouca área pra nós trabalhar.
Outro lavrador idoso do Cedral que ainda planta nos dias de hoje, igualmente nos
colocou as razões dessa mudança.
De primeiro nós plantava assim, plantava milho, planta a rama, planta feijão,
plantava arroz, todinho de um todo. Aí foi indo, no meu tempo ta com uns oito anos
pra cá, uns 10 anos [foi em 1995], nós demos de plantar, de fazer desse tipo, de
plantar só a rama. Planta o mandiocal, faz a planta e tem assim no meio dele,
arruado assim é o milho. É mais fácil pra zelar e da rama já colhe, já compra. Tem a
feira em Cuiabá, tem o Verdão, aqui mesmo vende. Eles vêm aqui, a mandioca é um
atrás do outro.
No Cedral o fenômeno do espremimento ocorreu no ano de 1976. O cercamento das
áreas com cada um plantando no que é seu levou ainda uns 10 anos para se estabelecer como
o padrão geral. Apesar disto, por quase duas décadas depois da perda do território de cultivo
4 A prática do plantio na praia é hoje interditada à população do São Pedro, embora ainda seja possível no bairro
rural de Pindaival, localizado na calha do rio Arruda, 10 km rio abaixo. A respeito desta relação entre perda de
espaços produtivos fundamentais para a reprodução social do grupo e, busca e ressignificação de outros espaços
para manter o fluxo de energia e das relações sociais, consultar Ellen Woortmann (1992). 5 Maria José Carneiro (1998) apresenta um processo semelhante de substituição da policultura à base de cereais e
legumes pela criação de gado leiteiro, nas propriedades camponesas dos Alpes franceses. A diferença é que neste
contexto, a mudança se dá em função não da perda de território, mas sim pela intervenção modernizante do
estado nacional.
172
ainda foi possível realizar o modelo policultural na região, uma vez que internamente às
propriedades ainda era possível, pelo menos inicialmente, derrubar novas áreas de mata. No
entanto, dentro duma área espremida, estas acabam por se esgotar rapidamente e fica cada vez
mais difícil de se manter a prática de devolver uma roça à natureza, deixando-a para capoeira.
Temos assim que com menos área de cultura nova disponível a cada ano, a rotação da roça ou
o tempo necessário de pousio da terra devolvida a natureza vai diminuindo cada vez mais.
Conforme o discurso acima, começa-se a repetir o plantio na mesma terra já cansada.
A partir daí a terra foi passando por um paulatino processo de enfraquecimento
resultando numa dupla perda para o lavrador: produz menos e „suja mais‟, conforme podemos
ver no seguinte depoimento.
No Cedral mesmo sempre foi campo, a mata é mais longe.
E onde eram as roças aqui no inicio?
Só na mata, lá pro lado do morro [Morro da Casa de Pedra e Morro Azul].
E aqui não tinha?
Não, era só pra lá. É que naquele ano fazia roça, plantava dois três anos, largava,
deixava criar outra vez. Foi de 20 anos pra cá é que passou a cada qual. Por exemplo,
se esse lado é meu, eu só planto aí, pra lá de outro, ele planta só lá, pra cá de outro,
ele planta só lá. Produz mas vai diminuindo, e a sujeira aumentando, então tem que
plantar todo ano no mesmo lugar.
Portanto, já na passagem dos anos 80 para os 90 temos o declínio da produtividade e o
aumento da sujeira. Isso implicou num aumento do esforço produtivo da família, significando
mais trabalho para a limpa. A natureza, já no limite de sua capacidade, produz plantas cada
vez menos resistentes. Aliado a isto temos o aumento do plantio de pasto na área da Fazenda
Paribó que, por essa época, chega até a divisa da comunidade do Cedral. Neste processo
temos a derrubada das últimas áreas de mata disponíveis nas proximidades, eliminando o
derradeiro cordão sanitário natural entre as roças camponesas e a enorme monocultura da
fazenda. O ponto de ruptura final do policultivo se dá com o aparecimento das pragas ou as
imundícies.6 Diversos lavradores nos explicaram as conseqüências deste processo.
Olha o que acabou com o plantio de feijão aqui foi a própria praga que a terra
adquiriu. Se você não bombar para matar essa praga não colhe feijão.
Até hoje eu trabalho é com a mandioca e o milho, não adianta, dá muito trabalho a
planta do arroz. Você de primeiro plantava o arroz, se plantava ele, que ele é de
pestivo [atrai praga], tem ano que bate a ferrugem nele, tem ano que não bate a
ferrugem. A ferrugem vem uma queimação nele, queima de que caba. E quando ele ta
assim também vem àquela imundície de passarinho, vem ranca ele pra comer o arroz,
tem uma quadra dele que ataca mais.
6 Conferir nota de n
o 10 no capítulo terceiro.
173
Banana alguns ainda planta. Antigamente meu pai plantava banana, durava até
quinze anos, e hoje não, já vai três anos e é tudo morrendo. Ele tem tipo um besouro
que dá ali na batata [parte enterrada da banana], ali no chão da banana que com dois
três anos ele vais amarelando e não produz mais.
Os lavradores apresentam duas hipóteses, que para eles não são excludentes, para a
chegada das pragas. Para uns foi o encolhimento das áreas de mata, devido à expropriação dos
herdeiros pela Fazenda Paribó, com o conseqüente cansaço da terra.
Porque a praga atacou?
Eu pensava que nunca ia ver as mata acabada, virar campo como agora. Mas é
porque mudou de domínio, mudou de dono, aí veio a nova tecnologia de trabalhar e,
acabou com tudo né. A terra não agüenta mais, pragueja tudo, suja muito, é uma
imundície só.
Já outros atribuem a origem das pragas à chegada do mundo de pasto formado da
Fazenda Paribó.
E de onde que ela veio?
Essas pragas foi conduzido pelo próprio fazendeiro, que veio na semente, no adubo.
(...) Depois que ele chegou é começou. (...) Aí veio a vaquinha, que come o feijão, não
come só o feijão não, come tudo.
Assim temos na concepção dos lavradores diversos focos de introdução de doenças e
pragas. Num primeiro momento tanto a semente do capim como a do milho, este plantado
junto com o capim no processo de formação de pasto da fazenda, são os responsáveis. Da
mesma forma temos o adubo que, por ser um veneno, é igualmente considerado culpado, pois
em vez curar ele traz é a doença. Alguns ainda citaram a lâmina ou a grade do trator usada
pelos camponeses apenas mais recentemente, de 1999 pra cá, como uma possível fonte de
nova infestação. Por fim o fato de se ter uma imensa área de monocultura de capim vizinha a
suas roças, foi lembrada como fonte de desequilíbrio, pois esses mundo de pasto aí atrai tudo
que é imundície.
José Geraldo Di Stefano discutindo as inovações tecnológicas no sul de Goiás, coloca
que o campesinato local apresenta uma visão análoga à cerca da chegada das pragas.
A abertura das terras e a implantação de novas tecnologias , como a adubação química,
o incentivo da substituição de plantas nativas por exóticas - capim Jaraguá pela
Brachiária e o incentivo ao cultivo da soja. Estas são as primeiras grandes intervenções
tecnológicas que começam a ser reveladas, analisadas e responsabilizadas pelos
moradores do Porto dos Barreiros, como fatores que interferiram negativamente no seu
sistema de produção, provocando desequilíbrio biológico, como a adubação e a
brachiária - talvez a primeira grande monocultura introduzida no Centro-Oeste (2003:
114).
Segundo este autor, os moradores ao serem perguntados sobre este processo afirmam que:
174
Sr. Nego - Mas aí já veio o adubo e veio a praga junta parece que o veneno que trouxe
a praga... parece que foi... em vez de matar trouxe.
J.G. - E a brachiária entrou nessa época?
Sr. Nego - Aí veio essa praga, essa praguiária (idem: 114-115).
Temos, portanto, dois eventos semelhantes, tanto no sul de Goiás como na Baixada
Cuiabana. A abertura das terras ao capital que se deu primeiramente em Goiás do que no
Mato Grosso, devido a maior facilidade de ligação deste pólo com o centro sul do país, foi o
responsável pela eliminação da maior parte dos cerrados e matas-de-galeria nas duas regiões,
o que inevitavelmente enfraquece o ambiente. A nova tecnologia mecanizada e a adubação
utilizada nas grandes propriedades são outro tipo de imposição exógena que, nas duas áreas,
acaba por aprofundar este comprometimento dos solos, uma vez que a partir daí uma grande
extensão dos mesmos não passam mais pela renovação natural do pousio.
Por fim, dando um verdadeiro tiro de misericórdia no sistema produtivo local, ocorre a
introdução numa enorme quantidade de espécies desconhecidas, como a brachiária, que em
grande parte substitui o jaraguá, um capim nativo e já adaptado às pragas locais. Temos assim
tanto o fortalecimento das pragas locais, com o fim de seus inimigos naturais e de plantas
resistentes às mesmas, como a atração de outras vindas de fora e desconhecidas pelo saber
local. A introdução da soja ocorrida em Goiás ainda não se deu na Baixada Cuiabana, mas já
se faz notar muito perto desta, tanto ao norte como ao sul. Temos assim o quadro completo
deste processo onde as grandes fazendas de gado e de soja não só interferem na estrutura
agrária local, expulsando os antigos lavradores. Ao envolver comunidades camponesas
sobreviventes a este espremimento inicial com um mundo de monocultura e de terras
desmatadas, degradadas e espragejadas, estas interferem igualmente no sistema produtivo
tradicional destas comunidades, contribuindo sobremaneira para o esfacelamento do seu
modelo de reprodução social.
As pragas ou doenças antigas mais citadas pelos lavradores da região do Arruda são a
broca e a queima. A broca é uma espécie de um carunchinho, dá na cana, dá no milho, dá no
arroz, tudo dá broca. Então ela oferece a junta daquele vivente, que é onde é a broca. A
queima é por causa que a planta sai com muita força, devido a força da lua. Já as que
apareceram atualmente, tendo vindo com o capim plantado na fazenda são a cigarrinha que
ataca o arroz e a vaquinha que ataca o feijão.
Portanto, enquanto que para o controle da broca e da queima, o sistema é utilizar bem
a fase da lua, ou seja, o conhecimento tradicional há muito incorporado ao grupo. No caso das
novas pestes isso não é mais possível. Como eram elementos novos, desconhecidos e
175
ocorriam em grande quantidade, acabaram por escapar do domínio cognitivo do grupo. Daí a
única solução foi o uso de veneno químico, comprado conforme indicado pela assistência
técnica. Alguns produtores ainda dizem que tentara bastante, mas o veneno era muito forte e
nós desistimos. Até oito anos atrás ainda tinha quem usou do veneno (eles não recordam o
nome), mas a partir dai se abandonou o plantio de arroz e feijão, passando-se a plantar só
rama com o milho no meio.
O caso mais dramático deste processo de espremimento/praguejamento talvez seja o
espaço denominado de roça do Morro da Casa de Pedra. Esta é na atualidade uma enorme
roça com cerca de 20 ha, pertencente a diversos donos (embora cada um controle
individualmente o seu espaço) e que é plantada continuamente e ininterruptamente há 20
anos. Um dos lavradores, dono de 13 ha deste espaço, explica como é possível essa
impressionante façanha.
Agora demora mais a produzir?
Não é o mesmo tempo, somente que... Vai os mesmo tempo, somente que vai na
colheita e a colheita dá bem mais fraco. Mas o tempo é esse mesmo vai dez meses, um
ano.
A terra cansou?
É, ta mais fraca.
Mais ainda dá bem?
Dá, nós planta lá porque não tem mesmo outro lugar. Cada qual tem aquele lugar na
terrinha da gente, e você tem que plantar é aí mesmo.
Sempre plantou só mandioca?
Só mandioca. Quer dizer, ainda planta uns milho no meio, nuns pedaço. No início
plantava lá arroz, a rama, plantava o arroz depois plantou a rama, o milho também,
de um certo tempo pra cá que é só rama.
E quando começou a fazer assim?
Depois que começou a plantar só rama, tem uns ... De dez anos pra cá.
Mas aí foi todo mundo que parou de plantar arroz?
Parou de plantar o arroz... Deu muita praga que estraga a planta do arroz. Não é
que... a terra dá mas é muita praga, muita ... Aí plantaram só rama...
No ano de 2003 a mesma área foi toda gradeada,7 para permitir a continuidade de sua
produção, pois segundo eles imaginam, a grade renova a terra. Outro lavrador, dono de outra
terra onde as matas já estão quase no fim, explica que agora nós precisa gradear a terra pra
aproveitar, por que a terra revirada ela renova, acho que ela fica... Novamente ela volta.
Como vemos, os lavradores percebem cada vez mais a impossibilidade de reprodução do seu
modelo ideal de roça de coivara, com rotação de áreas em pousio longo para a recuperação da
natureza. Com a nova realidade imposta de fora para dentro, a atual saída é a implantação do
7 Conforme vimos no capítulo quarto, em 1999 chega um trator de pneu com grade (um arado de discos rotativos
que revolvem e reviram a terra) para a associação do Cedral, o que possibilita a reutilização das áreas de
capoeira e de roças antigas, renovando-as através do gradeamento.
176
novo sistema de reutilização das velhas áreas de roça de toco, a partir de mecanização com
trator de lâmina e de grade. Contudo, isto ainda é percebido como contrário à tradição, a
criação e a ordem natural, pois o principio de reciprocidade com a natureza foi rompido, não
por culpa ou escolha deles, mas por razões conjunturais. No entanto, mesmo conhecendo este
fato, os lavradores não conseguem encontrar em sua matriz cognitiva uma solução para
responder ao problema. Perplexos diante desta radical mudança e já realizando verdadeiros
ajustes agonísticos, eles dizem que é o jeito.
Muito embora agora eles disponham de menos espécies e de menos área de cultura do
que antes, como uma tentativa de manter o já precário equilíbrio eles tendem, na atualidade, a
buscar replicar ao máximo possível seu modelo de plantio misturado dentro das áreas atuais
áreas de roça, tanto de toco como gradeada. Como uma forma de dar um descanso as suas
poucas e degradadas áreas de mata, alguns começam a plantar na terra alheia, pagando por
isso na produção. Outros, já sem nenhuma visibilidade de alguma solução dentro da tradição e
do conhecimento local, já começam a pensar em se adequar às técnicas modernas. Assim, o
mesmo lavrador que indicou acima a necessidade de se gradear a terra já começa a adiantar o
que acontecera num futuro talvez não tão distante.
Mas agora a terra já ta toda degradada e por isso, vai ser preciso colocar o calcário,
o adubo.
Aqui ninguém nuca usou?
Não, ninguém nunca usou, nós vamos ter que usar, que não tem a terra... Como nos
falava antigamente, terra virgem. Já ta tudo usado, já tudo acabado, fraca. Então vai
ter que renovar ela com adubo.
Deste modo temos um dado interessante, a busca do retorno de uma relação
equilibrada com a terra, agora inviável pelos antigos padrões, restabelecendo a reciprocidade
não pelo sistema tradicional, mas sim pelo moderno. Este sistema, embora estranho a seu
mundo é apropriado primeiro ao nível do discurso e, a partir daí, começa a ser pouco a pouco
inserido na lógica local. É por isso que seus elementos, o adubo e o calcário, antigamente
tidos como venenos indesejáveis uma vez que não eram necessários, começam agora a ser
reelaborados e incorporados ao sistema local, na medida em que os lavradores não vêem outra
opção. Temos assim que estes já começam a perceber que os mesmos são, ao menos na atual
conjuntura, a única forma de restituir à natureza a sua força e o seu vigor, renovando-a. Uma
forma moderna (ou desesperada) de tentar restabelecer a tradicional reciprocidade homem-
natureza.
Esta mesma relação de reinvenção do conhecimento por parte do campesinato, para
fazer frente a novas e inusitadas situações, é levantada por Mariza Veloso Motta. Discutindo o
177
futuro dos agregados no interior da tradicional fazenda do sudoeste goiano, esta coloca que,
Uma pergunta que sempre acompanhou nossa reflexão reporta-se à capacidade de
reprodução da economia camponesa, ainda hoje, no interior da fazenda. Parece-nos
que tal reprodução explica-se, em boa parte, pela possibilidade de aplicação do
conhecimento camponês. Na medida em que há uma redução drástica do acesso à terra
por parte dos agregados, esse conhecimento vai sendo reinventado, reformulado ao
nível do sistema de trocas entre agregados e outra categorias de trabalhadores (1983:
163).
No entanto, um pouco mais adiante, a mesma afirma que,
Mesmo assim, crê-se que nas condições atuais, os agregados deverão ser
eventualmente substituídos por trabalhadores assalariados. Nesse momento, então, o
conhecimento camponês não só será totalmente inoperante mas também
completamente prescindível (idem).
Não podemos antecipar o futuro dos camponeses da região do Arruda, diante de tal
situação. Seu modelo se esgotará e os mesmos serão substituídos tal e qual os agregados da
fazenda goiana ou conseguirão encontrar uma saída para a atual crise de enfraquecimento de
suas terras, aliando a tradição com a modernidade. Uma coisa é certa, a continuar na atual
tendência de aumento da dependência ao modelo moderno de agricultura, acabará por se
realizar em seu território aquilo que Klaas Woortmann já antecipava em relação aos
camponeses do agreste e do sertão sergipano.
Mas a dependência crescente para com condições externas à unidade produtiva parece
indicar que aproxima um novo capítulo da subordinação camponesa, a subordinação
do próprio processo de trabalho. Com a interferência direta sobre o processo de
trabalho dos agentes do capital (órgãos governamentais, cooperativas, etc.) a
„subsunção indireta‟ ao capital será menos indireta (1983: 228).
A nova lógica de consorciamento e organização da roça
Em função dos acontecimentos dos anos 90, onde o plantio de arroz e de feijão é
inviabilizado, temos uma grande mudança no sistema de consorciamento. Se antes tínhamos
dois campos distintos onde o trimônio principal (milho/arroz/feijão) subordinava o trinômio
secundário (mandioca/cana/banana), agora é o inverso que ocorre. Em toda a região a
mandioca é o plantio central e em algumas propriedades esta espécie divide com a cana e a
banana a prioridade no momento de organizar o plantio. O milho, único produto principal do
sistema anterior ainda plantado na atualidade, agora não passa de um produto subordinado a
estas, onde o mesmo é encontrado.
Por tanto na atualidade temos a organização da roça em três campos e não dois como
antigamente. O maior e mais importante de todos é o da mandioca e neste ela pode ser
178
plantada ou junto com milho ou sozinha. A cana o segundo produto principal da lavoura em
ordem de prioridade, é plantado num espaço sempre menor que o da mandioca e, da mesma
forma que aquela, ou junto com o milho ou sozinha. Já a banana, priorizada com direito a um
campo especifico em poucas propriedades, é consorciada tanto com a mandioca como com o
milho ou, ainda, com os dois.
Outro ponto que percebemos é que não existe na roça de hoje qualquer espaço
plantado separando ou envolvendo os distintos campos de plantio, como nos foi dito que era a
prática de antigamente. Conforme levantamos no capítulo terceiro, isto era feito pelo ato de se
intercalar o plantio dos campos de arroz e de milho com espaços ocupados com algodão que
assim separavam ambos estes campos e pelo plantio da mamona ao redor destes, envolvendo
a roça como um todo. Não vimos nenhum pé de algodão ou mamona ou qualquer planta que
servisse de barreira de contenção entre os distintos sistemas de consorciamento que ainda
coexistem na roça atual. Ao se andar na roça, passa-se diretamente de uma área de milho e
mandioca para outra onde tem banana e mandioca, por exemplo, sem qualquer intervalo. Isto
demonstra a atual estratégia de aproveitamento do espaço em sua totalidade, agora que o
mesmo fica cada vez mais escasso e limitado.8
Dos três campos atuais iniciaremos nossa análise pelo principal, o da mandioca.
Percebemos aí a prática de dois sistemas distintos: mandioca plantada com milho ou
mandioca sozinha. No sistema mandioca-milho, ao contrário do que ocorria antigamente,
agora é a mandioca que é plantada primeiro, com um ou dois meses de diferença.
Milho planta sempre no meio da mandioca.
O que planta primeiro?
É a rama.
Que mês que planta ela?
Outubro, novembro, dezembro, janeiro. E o milho é sempre mais de novembro,
sempre um mês depois que plantei a rama.
Isso se dá porque o milho atrasa a rama. Portanto, como agora é essa que interessa
para a venda e não aquele, inverte-se a ordem para que a rama não seja prejudicada. Se
plantar o milho antes, a rama fica na sombra dele, o milho fica crescido. Depois que tira o
milho ela cresce, mas aí tardeia muito. Essa diferença de tempo, entre o plantio dos dois se
justifica pelo fato de que ambas são da mesma qualidade (haste-forte). Como o milho cresce
mais rápido, para que não haja competição pelos espaços terrestres e aéreos, o que poderia
8 Não percebemos em nenhuma roça que andamos algum pé de algodão ou mamona, o que não quer dizer que os
mesmos não sejam mais plantados na atualidade. O que percebemos é que na feira de Rosário era vendido o óleo
da mamona, feito por um lavrador do São Pedro. Para azar nosso, justamente um dos poucos que não tínhamos
conseguido ir na roça.
179
empatar o mais fraco, neste caso a rama, é dado a esta uma vantagem. Por outro lado, as que
latam (cipó-fraco) ou são plantadas quando se queima a roça nova de toco ou não são mais
semeadas na roça gradeada.
Por ser o plantio principal a mandioca é adensada e plantada em ruas, na distância de
um por um metro, pois se plantar mais perto ela não dá. Já o milho que antes era mais
adensado, agora é plantado em ruas de dois metros de distância, com uma variação 0,5 a um
metro entre um pé e outro. Isso resulta que a roça pode ficar distribuída desta forma: uma rua
de milho com duas ruas intermediarias de mandioca. A explicação para este salto no plantio
do milho, rua sim, rua não, da mandioca já nascida na época do mesmo ser semeado, e que ele
é quente. Por isso, o milho plantado junto fecha mesmo e aí ele esquenta.9 Segundo dois
lavradores:
Planto mandioca tudo pingada, um aqui, outro ali, já outros planta o milho uma rua e
pula outra. Porque a planta tudo junta dela tem que pular, porque corre o vento.
Porque ele tando muito retinho, ele é apertadinho. Planta na enxada arruadinho, de
metro em metro ou mais perto, que na rua fica mais afastado.
E o milho?
Ah o milho já é a posição de dois metros de um noutro, que ele muito junto pode dar
pichilico. É bom uma distância boa. (...) O milho plantado no meio da mandioca,
plantado fechado ele fecha muito. A gente prefere ele assim ralinho pra ele dá umas
espigas assim, pra ajudar a gente, mas ele judia da mandioca.
Aí vocês preferem perder no milho e ganhar na mandioca?
O milho quando ele fecha ele judia da mandioca, o milho é bom sozinho.
Em relação à quadra da lua boa para se plantar há duas propostas, aparentemente
opostas no inicio, mas que ao nos aprofundarmos no discurso local, percebemos que se
assentam no mesmo modelo. Enquanto alguns lavradores preferem plantar a rama na lua
minguante, outros o fazem na crescente. Como vimos anteriormente, na primeira opção a
mandioca sai mais mansa e mais fina, no padrão que o mercado prefere. Já na segunda
proposta de plantio, na lua mais forte, a mandioca engrossa e produz rápido. Assim, uma
primeira conclusão é que na minguante planta-se a rama para a feira, enquanto na crescente
temos a rama destinada à farinha. No entanto, isso não se aplica tão diretamente assim na
realidade e depende mais da necessidade ou da escolha estratégica do lavrador. Numa roça
que só tinha rama de feira, nos informaram que o plantio foi na lua crescente. No entanto esta
era, evidentemente, uma opção de produzir logo para desocupar a terra, como veremos mais
adiante.
9 Sugerimos conferir Woortmann & Woortmann (1997), a cerca do espaçamento devido às plantas quentes, que
precisam de espaço para arejar.
180
Contudo, é na medida em que percebemos o conjunto mandioca/milho, e não um
produto isoladamente, que o sentido do jogo realizado pelos lavradores torna-se mais claro.
Isso porque quem prefere a rama na minguante, planta o milho na crescente e vice-versa. Por
tanto, é aí que vemos buscar a compreensão do fenômeno que não passa de um jogo realizado
pelos lavradores com a força da lua, que é assim concentrada num ou no noutro plantio.
No primeiro caso, rama na minguante e milho na crescente, esta força é jogada para o
milho que, mesmo plantado mais tarde, se desenvolve logo e passa da mandioca. Assim como
ele é só pra despesa produz logo e desocupa a área em pouco tempo para que a mandioca
possa ir pra frente. Já na segunda possibilidade, rama na crescente e milho na minguante, a
força é jogada para a mandioca, ficando o milho prejudicado tanto no atraso do tempo de
plantio como na pouca força da lua. Aí, ele demora mais, mas de qualquer jeito, não estorva
ou judia daquela. Ou seja, nas duas hipóteses as cartas são jogadas de modo a beneficiar o
produto vendável, ou seja, a mandioca. São, portanto, duas estratégias distintas que no fim
levam ao mesmo resultado e são por isso fruto apenas da escolha do grupo individual sobre
uma mesma matriz cognitiva geral.
Plantado ralo e na lua alternada, o milho não atrapalha a rama e vai ser colhido logo,
em três meses, no caso da variedade híbrida ou, mais pra frente, no caso das variedades
tradicionais, o vermelhinho e o comum. Deste modo a mandioca se desenvolve e será colhida
após oito ou 10 meses, no caso da liberata, ou de ano a ano e meio, no caso da latadeira ou da
guarapé vermelha.
No entanto, no caso de se ter uma terra já muito esgotada, alguns consideram que
mesmo assim a rama é prejudicada pelo milho. Neste caso a opção é fazer apenas o plantio da
rama no sistema rama solteira. Neste, ela é plantada igualmente quarteada, seguindo o
mesmo espaçamento do sistema anterior, mas não é combinada com nenhuma outra espécie
ou variedade. Normalmente este sistema se dá na terra gradeada que tanto poderia ser antes
numa antiga roça de toco como numa área nova de cerrado. Neste caso, por ser uma roça
eminentemente voltada para a lógica do mercado, geralmente é plantada apenas da variedade
liberata.
Segundo os lavradores que adotam este sistema de plantar só mandioca pra feira na
roça gradeada, na roça de toco não presta plantá-la porque lá a mandioca sai torta, com curva,
aqui é tudo linheira, do jeito que o mercado exige. Para eles, mandioca na terra bem
gradeada dá pra feira, plantou na minguante que dá bem, arrodeia, dá raiz pra tudo que é
lado, igualado. Na terra que gradeou mais ruim, só dá pra farinha, só aproveita para feira se
tiver em falta lá porque, quando em falta lá, qualquer uma passa.
181
Assim, geralmente usa-se plantar a rama solteira na lua crescente que é pra dar
violento, vender logo e desocupar a terra antes da chuva. Isso é necessário porque a primeira
gradeada tem que ser realizada ainda em setembro, antes das águas, para matar a passoqueira
ou os restos de rama dos pés já colhidos que estão ocupando a terra. Se esta for gradeada na
chuva, algumas ramas que ainda estão vivas podem nascer. Portanto, gradeia-se na seca
porque se gradear assim como ta quente ele não nasce, ele morre, é pra morrer. Se não,
nasce tudo e aí não vira nada, ninguém dá conta.
Embora o plantio solteiro da rama seja uma quebra do modelo de plantio tradicional
que, prevê a mistura e o equilíbrio dentro do espaço da roça replicando o modelo da natureza,
isso não se constitui numa rebelião contra o mesmo. Na verdade isto é uma exigência do
plantio em terra já degradada e agora gradeada, onde o lavrador não pode correr o risco de
atrasar a colheita da mandioca e assim perder o tempo de iniciar o novo ciclo. O preço disso
seria perder muito mais, ou seja, toda a safra do ano seguinte. Deste modo temos aí
claramente colocada a necessidade de se adequar a uma lógica vinda de fora, com o
conseqüente afastamento da lógica interna. Este é, na verdade, o preço que se deve pagar para
se continuar sendo um lavrador e um membro da comunidade, nas novas condições de
escassez de terras boas.10
Já a cana é uma espécie que não combina facilmente com as outras, quase participando
da mesma regra que se aplica à mamona, algodão e fumo que só prestam solteiros, pois são
muito fortes. Assim, se antigamente ela era combinada com o arroz, agora, na ausência deste,
ela é plantada somente junto com o milho. Temos assim que no sistema cana-milho, a cana é
plantada geralmente em outubro, mês em que as chuvas já firmaram, enquanto que o milho é
sempre um mês depois. Muitos costumam usar da variedade híbrida, que é rápida para
produzir e com três mês você já tira ele. Mesmo que as chuvas atrasem, como foi o caso de
2003, este salto de um mês é mantido. Em março de 2004, devido a este fenômeno, andamos
numa roça em que o plantio tinha sido cana em dezembro e milho em janeiro.
As covas ainda são feitas no mesmo modelo de antigamente, somente o tempo é que
foi encurtado, agora é oito dias antes que faz. O espaçamento entre as covas varia, mas fica
ntre 1,5 x 2 m para uns e, 2 x 2 m para outros. Já o milho é plantado com 2 metros de salto
entre as ruas e com 1 m de pé a pé. Novamente temos um sistema em que o milho é raleado,
para não prejudicar a cana, na mesma lógica do sistema anteriormente discutido. A cana é
10
Observamos algumas roças gradeadas com plantio de rama e milho. Contudo, aí a terra ainda não se
encontrava tão degradada. O exemplo clássico do modelo que agora discutimos, de plantio da rama tipo liberata
solteira, é a roça do Morro da Casa de Pedra, anteriormente discutida.
182
geralmente plantada na minguante, porque é haste/forte e tem que durar muito tempo. Junto
com ela, o milho, igualmente haste/forte, é plantado também na lua fraca, que é pra não dar
broca. O risco aí é que a broca atraída pelo milho acabaria minando o canavial, o que deve ser
evitado a todo o custo.
Somente uma vez observamos um campo de cana solteira que era localizado quase na
base de um morro. Por ser uma área de ladeira, onde era mais alto tinha milho e onde era mais
em baixo tinha cana, sendo que ambos foram plantados solteiros. No primeiro campo o milho
estava bem adensado, com os pés distando 80 cm um do outro na linha e com ruas de 1,5 m
de intervalo. Seguindo o mesmo padrão, a cana tinha suas touceiras mais aproximadas com
1,5 m de distancia entre as covas.
Não conversamos com o seu proprietário, mas soubemos que o mesmo tinha engenho
e fabricava rapadura. Mais adiante, ao perguntarmos para um vizinho seu o porquê daquela
prática, o mesmo nos disse que como era já na baixada, muito próximo do córrego, a terra ai
é encharcada, e não vai nem rama, nem milho, só cana mesmo. Realmente, quando entramos
na área para medir a distância entre as touceiras, nosso pé afundou na terra extremamente
úmida. Assim percebemos que o plantio foi feito neste sistema porque, conforme ouvimos
diversas vezes durante a realização da pesquisa, é a realidade da terra que manda. O fato de
se plantar o milho ladeira acima e a cana ladeira abaixo, era uma forma de defender o
primeiro do excesso de água e manter a necessária produção do conjunto.
Este fato vem demonstrar que os camponeses possuem um profundo controle
cognitivo sobre o solo e o relevo do ambiente no qual vivem e trabalham. E este é um dos
principais problemas que se colocam quando populações camponesas são deslocadas por
projetos desenvolvimentistas oficiais e particulares do ambiente em que viviam há muito
tempo para um novo, completamente diferente. A este respeito conferir o estudo de Di
Stefano (2003) a cerca desta problemática num grupo camponês tradicional reassentado pela
Hidroelétrica de Itumbiara em Goiás.
Quanto à variedade, a preferida na atualidade é a cento e vinte, pois ela dá até 120
paus em cada touceira e dura mais do que as tradicionais, desde que o canavial seja bem
zelado. Cana se não colher ela, ela seca e não tem futuro, o certo mesmo é cortar ela todo
ano. Tem um capão de uma roça de cana aí que vai pra... Cinco anos e ano que vem vai dar
corte. Um produtor de rapadura que está com o engenho quebrado e por isso perdeu a época
do corte da cana, nos colocou que:
Essa cana ficou um pouco assim estragada, por não cortar, porque a vida da cana
tem que cortar todo ano. Então, não cortou e lá ficou um... Um pouco do ano passado
183
quase não cortamos, então ela caiu bastante. Então esse ano nós quer ver se ajeita o
engenho e faz alguma coisa pelo menos pra dá um plano aí pra cana, que ela já ta
fraca.
E faz o que?
Tem que cortar ela, pra sair de novo, porque ela ficar como ta lá, ela vai acabar
morrendo. Ela tem que cortar, chegou à época dela, tem que cortar, que aí ela sai.
A banana ainda é um item alimentar altamente apreciado pela cultura local e agora
com a proximidade do mercado, é um produto facilmente vendável. Apesar disto, a mesma
não é mais tão plantada como antigamente. A razão é a mesma que a do abandono do plantio
do arroz e do feijão, as pragas que a atacam, matando o bananal em três ou quatro anos. Isso
resultou que muitos lavradores ou já tenham desistido de seu cultivo ou só plantem uns
poucos pés na roça, só pra despesa. Um atual produtor de banana em grande escala – na
verdade o único que vimos na região – nos explicou esse processo.
Uns 10 anos que o povo deixou de plantar que dava trabalho, só durava três anos. Eu
pelo menos nunca deixei de plantar, sempre planto 100 pés, 200 pés, que assim
sempre tem, acabou um bananal lá já tem outro produzindo. Eu gosto de levar uma
banana lá pra Rosário, que é muito vendável lá, ela lá não é rejeitável não.
Assim, adotando a mesma lógica do plantio da rama quarteada, este lavrador todo ano
planta um bananal novo. Deste modo ele terá um se desenvolvendo, o bananal novo
produzindo já a plena carga, outro produzindo, mas já decadente e um último, o bananal
velho, que já não produz mais. Quando o primeiro completar um ano e começar a produzir,
este último será destinado a fornecer a muda para plantio do próximo bananal, plantado nesta
mesma época.
E a muda tira de onde?
A muda eu vou tirar dum bananal mais velho que tem lá, daqui [bananal de 3anos]
não posso tirar enquanto... Se eu tirar muda daqui vem o vento e arrevira, às vezes
não aproveita a banana que ta no cacho, as bananas sem cacho ajuda a segurar a que
tem carga. Aí a gente costuma queimar o bananal velho, que a muda sai sadia. Acho
que o fogo mata um pouco da praga. Ou então põe o gado pra comer no bananal
velho, sai aquela muda bonita e acho que ela sai mais sadia, não sei.
O bananal é plantado ou junto com a rama, com o milho ou com os dois. Nos três
sistemas as covas são feitas antes e a mesma e a muda é plantada na lua crescente de outubro,
não podendo se atrasar, tal qual a cana. Por ser madeira-forte é preciso pular um, dois ou três
meses para realizar outro plantio, no caso a rama ou o milho, pois ambos são haste-forte. No
sistema banana-rama, esta é plantada com 5 m de distância entre as covas e a rama no seu
espaçamento padrão de 1 x 1 m. A variedade de rama escolhida deve ser a da feira que produz
logo e desocupa o espaço antes do novo período de chuva, quando o bananal novo já começou
184
a dar cacho. Certa vez observamos um bananal novo, já de ano, ainda com a mandioca
madura dentro, como já estávamos em março, fim do período das chuvas, o mesmo tinha dado
pouca carga, praticamente perdendo o ano. O produtor se lamentou dizendo que: se tivesse
tirado [a mandioca] no tempo da chuva, ela ajudava um pouco mais, agora vai fracassar um
pouco. Agora eu ou tirar a mandioca e vem a seca, aí ela [o bananal] fica meio parada, até
vir outra chuva, demora um pouco, mas ela volta a produzir.
No sistema banana-rama-milho a ordem do plantio é a mesma, banana em outubro,
rama em novembro, dezembro ou janeiro e milho um mês depois desta.
E aqui, você plantou quando?
Essa roça aqui eu fiz primeiramente mês de outubro, eu plantei as mudas de banana,
plantei milho também um pouco largo e plantei a rama. Só que outubro eu plantei a
banana, ela é vagarosa, quando foi novembro, dezembro eu plantei a mandioca, a
mandioca já colhi, ela é mais rápida, já colhi o milho.
O milho foi o último a plantar?
Foi o último, mas colhi por primeiro, depois colhi a mandioca e agora ficou a banana
que demora um pouco, agora ta começando a dar os cacho.
A distância do plantio da banana, neste caso é a mesma, pois como ela demora a
crescer, não é tão atrapalhada pelo conjunto. Como vimos, o atraso maior é se a rama
companheira da banana não desocupar a área no próximo inverno, tempo em que aquela deve
começar a produzir e aí, precisa ficar sozinha. Assim, a presença adicional do milho não
representa nenhum problema para a formação do bananal, pois o mesmo será logo colhido.
Uma variação que observamos deste sistema é o de plantar apenas a banana junto com a rama
num ano e no seguinte, quando colher a rama, plantar o milho. Novamente não haverá
problema algum para o bananal, uma vez que aí os pés deste já estarão altos e não serão
atrapalhados pelo milho. Ao mesmo tempo, a banana não empatará este novo companheiro,
uma vez que o bananal ainda não fechou, o que só vai ocorrer somente depois da colheita do
milho. Temos, portanto, um claro exemplo da aplicação do principio de aproveitar ao máximo
cada área, sem desperdiçar espaços que podem ser produtivos.
Finalmente, o sistema banana-milho é novo e ainda passa por experimentação em
algumas propriedades. Numa delas, o produtor nos colocou que,
Vou experimentar de plantar só a banana sem a rama, que a rama atrapalha a
banana um pouco. Vou plantar só com o milho, que o milho também é baixinho e não
atrapalha. Aí, vou plantar mais junto.
O que?
Só a banana.
E qual é a distância?
Ah, é de três por quatro metros. E vou fazer arruado, que antes não fazia.
E como era antes?
185
Antes não era arruado [era pingado] e a distância é maior.
O mesmo nos disse que no meio do milho ainda ia plantar batata doce pois, pensava em fazer
doce para vender.
Depois de formado, o bananal produz direto sempre dando cacho. O segredo de uma
boa colheita nos foi contado pelo mesmo produtor que nos contou sobre a experiência acima.
Ele passa no bananal uma vez por mês, observando os cachos novos. Aqueles que já estão
formados, isso é, já soltaram todas as pencas e já atingiram certo padrão, tem o umbigo
cortado.
Meu tio é que falou, você tem que cortar é na crescente que rapidão a banana
engrossa. Tem gente que sabe explicar, tem uma água aí, em vez da água vir aqui pro
umbigo, então corta pra água vir aqui pra banana. E um mês depois ele ta no ponto
de colher, vem cortando [o umbigo de] uns e colhendo os outros. A banana, quanto
mais chove, mais colhe, colhe até mês de junho, julho, agosto diminui aí colhe pouco,
até voltar a chover, na chuva, de 15 em 15 dias tira banana aqui.
Uma vez visto as partes, os diferentes campos em que se combinam as três espécies
principais e vendáveis, é hora de passarmos ao todo, á lógica do conjunto atualmente
empregado na região do Arruda. Se no tempo de antigamente tínhamos alguns poucos
modelos de combinar os diferentes sistemas de consorciamento que se repetiam na maioria
das propriedades, hoje em dia, fazer uma analise idêntica tornou-se praticamente impossível.
Isso ocorre porque temos agora uma verdadeira especialização, claramente observada
de produtor a produtor, ou seja, cada um faz a combinação mais adequada às condições de sua
terra ou seu grupo familiar. Devido ao fato de que estas condições são muito diferentes em
propriedades mesmo que vizinhas, há uma enormidade de possíveis escolhas.
O que queremos dizer com isso é que na atualidade não temos modelos gerais de
consorciamento que se replicam em vários casos. Na verdade, agora temos diversas variações
que vão desde a enorme roça de monocultura de rama, apenas com a variedade liberata, até
uma pequena roça que, embora combine alguns dos sistemas anteriormente levantados, pelo
seu tamanho e pela falta de separação muito clara entre seus diferentes campos, tende a ser
quase que uma roça misturada.11
Pensamos que isto se deva ao momento de transição por que
passa a realidade agrícola do Arruda. Na medida em que a escolha a cerca de quais caminhos
serão tomados diante da nova situação se solidifiquem no conjunto dos lavradores, pode ser
que este momento de especialização e ampla diversidade de opções de consorciamento
tendam a uma nova redução a poucos modelos possíveis. Mas aí é esperar para ver.
11
A cerca de uma discussão sobre roça misturada, consultar (Almeida, 1988).
186
No entanto uma questão fica no ar. Com tantas alterações por que o grupo passou em
suas práticas produtivas e reprodutivas, porque o mesmo ainda faz uso do sistema de plantio
através do consorciamento? Pensamos que existem na realidade da região aqui pesquisada
dois fatores que podem explicar esta permanência. Em primeiro lugar, temos que os
lavradores do Arruda sabem que o plantio solteiro rende mais, desde que seja executado numa
grande extensão de terra. Já numa área pequena de roça é mais racional consorciar. Portanto,
isso nos conduz a questão de que agora com poucas áreas de terra boa de cultura, ou seja,
poucas áreas de mata, com a maioria delas situadas nas ladeiras ou encostas de morro e com
algumas poucas planícies situadas nas baixadas próximas a córregos, fica inviável de se fazer
uma grande derrubada para se plantar uma roça solteira.12
Em segundo lugar, embora a lógica produtiva atual do grupo vise prioritariamente o
mercado, a produção para o autoconsumo, apesar de subordinada, ainda é um elemento
importante para o modo de vida local. Produzir seu alimento ou seu sustento com o próprio
suor, ser o responsável direto por abastecer a dispensa, ainda é fonte de reconhecimento e
status para um bom pai de família. Além disto, os lavradores do Arruda sabem que não podem
se submeter ao risco de centrar a produção em apenas um produto pois, como diz o ditado
popular: „nunca se deve colocar todos os ovos no mesmo cesto‟. A lógica produtiva local dita
que não se pode ficar cativo de uma só tarefa nem de uma só fonte de renda, sob o risco de se
perder o governo da produção, do seu resultado e do destino de todo o grupo familiar para
fatores externos, sob os quais o grupo não tem nenhuma possibilidade de controle.
Deste modo, o lavrador do Arruda, apesar de todos os elementos adversos decorrentes
do reordenamento provocado pela modernidade, busca manter o padrão de roça consorciada
que replica o modelo de equilíbrio cosmológico. É deste modo que se mantêm um tênue fio de
continuidade com a tradição produtiva do grupo, ao mesmo tempo em que se busca manter,
por mínimo que seja, o domínio sobre o futuro do grupo familiar.
O sistema de plantio atual
Conforme vimos no capítulo quinto, na atualidade a mandioca é o plantio principal da
região. Embora tenha sido comum entrarmos em roças onde não se plantava nem cana, nem
banana, ou ambas, jamais vimos uma propriedade que não tivesse pelo menos um capãozinho
12
Conferir no capítulo primeiro o atual tamanho das propriedades, resultante do fenômeno do espremimento e do
cercamento.
187
de rama pra despesa.13
Conforme nos disse um informante, plantio hoje é mandioca e milho,
mas o milho já é mais só pra despesa, não é mais em grande quantidade para vender, é só
pra despesa. Mas o que planta pra vender mesmo é a mandioca, pra produzir a farinha e pra
venda.
Mesmo no conjunto de uma propriedade, normalmente essa relação de prioridade se
mantém. Se a mandioca tem na roça um campo seu, geralmente ocupando sozinha mais da
metade da área total da mesma, ela ainda é plantada no bananal, como acompanhante.
Somente com a cana é que não há possibilidade da mesma ser consorciada. Somando-se a este
privilégio na roça, em algumas propriedades é comum o plantio de uma pequena rocinha de
mandioca ao lado da casa. Assim, se o espaço da roça e da propriedade é atualmente
dominado pela mandioca, quando passamos a variável tempo, observamos a repetição deste
padrão.
Considerando o ciclo completo de plantio na região, que nos dias de hoje vai de
setembro a março, temos que a banana e a cana, por serem de ciclo longo, devem ser
preferencialmente plantadas em outubro, mais tardar em novembro. Já a mandioca é plantada
e colhida ao longo de todo o ciclo, pois a estratégia é sempre plantar pra sempre ter, como
podemos ver no diálogo abaixo.
Aqui plantou a rama foi um mês depois?
Aqui foi novembro.
Então é dois meses depois!
Aqui tem que ser assim, se plantar junto pode colher rapidamente num tempo só, pode
perder assim.
Então vocês plantam cada trecho numa época?
Nunca planta a terra toda na mesma época. Num dá porque tira todo mundo duma
vez, passa da época de tirar. Às vezes engrossa muito a mandioca então os comprador
quer sempre a mandioca magra.
Então assim vocês sempre têm a mandioca no ponto?
Planta em outubro, em novembro, dezembro...
E qual é o último mês que pode plantar?
Olha esse mês [março] é o último mês.
E sai boa ainda?
Olha vai depender da chuva, se tiver e se ela sair ainda guenta a seca.
Só que colhe mais tarde?
Ah, vai mais de oito mês pra colhe, só quando chove de novo.
A mandioca de feira que produz com oito meses e é vendida in natura é plantada
praticamente todos os meses em que chove, de setembro a março, o que implica que sua
colheita será igualmente escalonada. Por isso ela vai ser colhida de junho em diante, até
13
A roça do Morro da Casa de Pedra, em sua quase totalidade, é uma enorme monocultura de mandioca. Quem
tem terra nesta área planta somente a rama e, unicamente da variedade liberata.
188
novembro (a plantada em março). No entanto alguns produtores retardam esse procedimento
em alguns trechos do mandiocal, para ter o produto quando o preço for mais vantajoso. Não
colhe tudo agora, deixa um pouco de mandioca pra colher de janeiro em diante, que pega
preço. Aí, o que colhe até fevereiro, março, ainda dá pra plantar, mas dai pra frente, só
quando chover de novo. Deste modo, cada trecho que é colhido já é imediatamente preparado
para um novo plantio, de modo que não se rompa o sistema: sempre plantar para sempre ter.
Isso demonstra o domínio cognitivo sobre dois campos distintos. Primeiro, que por ser
a mandioca o plantio principal da região, este é escalonado para que tenhamos o equilíbrio do
uso da força de trabalho familiar, atualmente um elemento escasso. Segundo, que os
lavradores conhecem as relações de mercado e embora não tenha poder para controlá-las,
buscam se aproveitar ao máximo das mesmas. Assim, como os mesmos não têm como ficar
seis meses esperando o preço subir, vende-se um tanto de mandioca in natura no preço ruim,
sem se descuidar de fazer uma reserva para tirar o desconto quando o preço ta lá em cima.
Este conhecimento das leis de mercado, por parte dos lavradores, ficou claro para nós
na situação que se apresentou em março de 2004. Nesta época estivemos em Rosário
conversando com alguns técnicos da EMPAER e então nos foi colocado que no Cedral a
produção de farinha estava caindo e a farinheira estava ficando ociosa, porque já não havia
mais mandioca disponível. O argumento dos técnicos era de que o sistema de produção
tradicional, portanto primitivo, para eles, era ineficiente e resultava em baixíssima
produtividade.
Ao chegarmos ao Cedral, uns 15 dias após esta conversa, constatamos a veracidade do
fato – já quase não havia mais mandioca disponível –, mas não da crítica – de que não tinha
mais mandioca por que se plantou pouco. Na verdade, o que havia ocorrido é que o preço da
mandioca no final de 2003 alcançou uma alta histórica, nunca antes atingida, chegando a R$
20,00 (vinte reais) o saco. E é claro que nestas condições todo mundo vendeu o que tinha em
disponibilidade. Segundo os depoimentos dos lavradores, devido à necessidade dos
compradores de manter o fornecimento em seu mercado, passava qualquer tipo de mandioca.
Era vendida tanto a que seria considerada, em condições normais, totalmente fora do padrão,
quanto a guarapé vermelha, geralmente destinada à fabricação da farinha.
Portanto, a realidade não era de uma crise de produção, mas sim de uma queima de
todo o estoque pelo excesso de procura e valoração do preço. Qual seria a lógica, e os
lavradores eram plenamente sabedores disto (embora, ao que parece, os técnicos não), de se
guardar a mandioca para depois, quando o preço fatalmente cairia, o que de fato ocorreu em
março de 2004, quando o mesmo já tinha baixado para R$ 13,00 (treze reais).
189
Mudanças na simbólica do processo de trabalho
Normalmente ao perguntarmos aos atuais lavradores homens se a mulher trabalhava
na roça,14
tínhamos uma resposta padrão que se assemelhava à dos idosos, sobre o tempo de
antigamente. Ah geralmente é só o homem que trabalha aqui na roça, mulher fica em casa,
fazendo comida pra gente, e dando de comer aos porcos. Mulher não pega na foice, nem na
enxada, dificilmente, é difícil. No entanto com paciência e insistência, na medida em que nos
tornávamos mais conhecidos no grupo e a partir do estabelecimento de uma relação de
confiança, o discurso começou a mudar. Isto acaba por demonstrar que aqui igualmente se
reproduz a oposição entre discurso e prática ou mesmo, a duplicidade do discurso „oficial‟ e
do discurso „oficioso‟ (Bourdieu, 1989). No fim, apurados todas as falas, a mulher participa
de quase todos os momentos do trabalho na roça. Podemos perceber claramente os dois
pontos acima levantados – o discurso muda com a relação e, afinal, a mulher ajuda na roça –
na fala do mesmo lavrador, seis meses e muita conversa depois.
E aqui a mulher ajuda em alguma coisa na roça?
Ah ajuda!
E o que ela faz?
Carpi, leva comida, leva o boião pra nós, leva a merenda, outra ora até arranca
mandioca também, colhe milho, trata o porco.
No plantio?
Ela ajuda a plantar.
Não tem problema?
Não tem não.
E na derrubada?
Na derrubada não, roçar e derrubar mulher não pode participar.
Porque?
Ah, e que aqui ela não consegue fazer esse serviço, é pesado demais, só homem que
guenta mesmo.
No geral podemos perceber que a mulher, assim como os homens, por trabalharem
desde criança na roça possuem o domínio cognitivo de todo o processo. No Arruda é
considerado criança quem tem 13 anos de idade pra baixo, independente do sexo, pois, este é
um ser ainda assexuado. Assim este entra no trabalho da roça igualado à condição de sua mãe,
apenas como ajuda. O rapaz de 14 anos pra cima já trabalha.15
Para os meninos homens
temos, portanto “o ciclo de vida menino-rapaz-homem” ou seja, “a transição da ajuda para o
14
Evidentemente temos aqui um erro do pesquisador que, devido a um lapso, troca as categorias na hora de
elaborar a pergunta. No entanto este é um erro desculpável, uma vez que isto ocorreu na primeira vez que fomos
a campo na região do Arruda. Com o conhecimento do sistema de divisão sexual do trabalho local, que difere
muito pouco do utilizado em Santa Terezinha, por nós já plenamente conhecido a época, reelaboramos o
questionamento, conforme pode ser visto na pergunta seguinte do texto (conferir os sublinhados). 15
Alguns rapazes desta idade ainda estudam o ginásio, sendo assim poupados da lida diária durante o horário das
aulas.
190
trabalho e eventual governo, associada a outras passagens com significado ritual”
(Woortmann & Woortmann, 1997: 46). Já a mulher, apesar de passar pelo mesmo ciclo de
trabalho na roça, nunca passa da categoria de ajuda. Na cozinha ao contrário, onde ela
começa ajudando e termina por fim, governando, seus filhos homens jamais trabalharão. Os
pequenos um pouco mais freqüentemente e os maiores de 14 anos somente numa
eventualidade muito rara, apenas poderão ajudar a mãe neste território.16
Seguindo essa lógica da participação dos espaços em masculino/feminino, percebemos
em algumas casas o plantio de uma pequena roça no quintal e, nestes casos, os homens
assumiam a existência do trabalho feminino. Por uma vez observamos diretamente uma
mulher carpindo o canavial do lado de sua casa e, portanto, não o canavial da roça, que era da
responsabilidade do marido. Ao inquirirmos seu marido, o mesmo disse que: mulher no
quintal ela trabalha, ela planta, reuniu com todos nós. A carpição foi ela que cuidou aqui.
Já no espaço da roça, tivemos no conjunto duas versões para o trabalho feminino. No
caso da mulher viúva e com filhos pequenos ela pode trabalhar.
A mulher trabalha na roça?
Tem que trabalhar, tem mulher que faz esse trabalho, e outras não.
Porque tem essa diferença?
Diferente que as vez a mulher não tem o marido aí, ela tem que trabalhar.
E o pessoal não condena?
Não, que tem que trabalhar.
No entanto quando temos o padrão ideal e equilibrado de composição da família, com
membros masculinos e femininos para suprir a força de trabalho (Woortmann, 1999), esta
possibilidade acima colocada não é considerada legítima.
E quando tem o marido que ainda não tem filho?
Ah, aí o trabalho é mais pouco, o da roça, em casa ela faz direto.
Mas quem já tem muito filho grande?
A mãe não trabalha sempre não.
Se tiver um monte de homem em casa e a mulher for trabalhar na roça?
Aí é uma dureza... A mulher só trabalha quando é sozinha, se tem família ela fica em
casa.
Maria José Carneiro em seu trabalho sobre o campesinato francês apresenta que a
tradicional separação casa e quintal como territórios femininos e o espaço da produção como
assegurando a intimidade masculina não é absoluta. A simbólica da partição dos espaços entre
os gêneros não serve de empecilho para a participação da mulher no campo masculino. “No
entanto, essa representação social não supunha uma total exclusão da mulher das tarefas
16
A cerca da discussão sobre esta relação trabalho/ajuda no mundo rural, consultar (Heredia, Garcia e Garcia Jr.,
1984).
191
produtivas. Ao contrário, sua participação era fundamental para o bom andamento do
estabelecimento familiar” (1998: 68). Segundo a autora, a solidariedade da esposa com o
marido fazia daquela, a responsável parcial pelo sucesso ou fracasso deste. Ademais, da
mesma forma que levantamos na região do Arruda, onde a mulher somente trabalha na roça
quando é viúva, a mesma coloca que “na hierarquia familiar, a mulher só assumia uma
posição de autoridade máxima em caso de ausência ou invalidez do marido” (idem: 72). Nesta
mesma linha, Margarida Moura (1978) nos apresenta um exemplo de uma mulher que
substitui „interinamente‟ o marido.
Como vemos, não se levanta no discurso local da área camponesa do Arruda a questão
em si do trabalho ou da ajuda da mulher, mas sim deste fato aliado a condição social da
família. Se a mulher é sozinha, o que significa dizer que ela é viúva, mas não tem filhos
grandes,17
o seu trabalho na roça é aceito pela comunidade. Contudo, isto ocorre desde que
este trabalho esteja de alguma forma subordinado ao trabalho e governo de algum parente
masculino. Assim, a mulher somente poderá tocar seu serviço na roça (terreno amansado) se
um homem tiver anteriormente derrubado o mato (brabo e não domesticado). Temos desta
forma a realização de alguns ajustes necessários para que se mantenha no todo, o padrão
estabelecido. Contudo, se ela é casada e tem uma família grande, com muitos braços
masculinos para trabalharem na roça, a ajuda da mulher neste espaço é condenada. No caso
disto ocorrer, teremos a quebra de padrão e o perigo é percebido pelo grupo que cobre a
família de vergonha, numa tentativa de restabelecer a ordem.
No entanto, com a atual situação nenhum grupo familiar corresponde plenamente mais
a este modelo tradicional. Na atualidade temos uma pequena redução do numero de filhos por
casal. Aliado a isto, temos que a maioria dos filhos maiores de 10 a 12 anos, em idade de
estudar o Ensino Fundamental (de 5a a 8
a séries) e Médio (Segundo Grau), se encontra em
Rosário ou em Cuiabá realizando seus estudos. Decorre daí a perversa combinação de dois
fatores que desequilibram a relação entre produtores e consumidores dentro do grupo familiar
(Chayanov, 1966). Na roça está o casal sem filhos ou apenas com crianças muito pequenas, o
que implica o padrão o trabalho é mais pouco. Enquanto isso, na cidade estão várias bocas
que apenas consomem (e consomem mais, porque a vida na cidade custa mais caro), sem que
ocorra uma contribuição na produção, o que subverte o padrão anterior.
Algumas famílias conseguem equilibrar um pouco esta desvantajosa relação,
adequando o seu calendário produtivo às férias escolares, quando estes braços extras que
17
No caso de tê-los, os filhos grandes teriam a obrigação de assumir o trabalho na roça, sobre o governo de
algum parente adulto, o padrinho ou um tio materno ou paterno, por exemplo.
192
estão sub-aproveitados na cidade podem voltar a ser produtores e consumidores ao mesmo
tempo na roça. Da mesma forma temos que meninas têm mais facilidade de conseguir
trabalho na cidade do que os meninos, uma vez que existe uma razoável procura na região por
domésticas, eufemisticamente chamadas aí de „secretária‟.
Entendemos que é em função desta nova condição social da família que os
camponeses da região do Arruda reelaboraram a questão da ajuda da mulher na roça. Agora
esta é uma realidade necessária, embora ainda discursivamente encoberta, como podemos ver
no seguinte diálogo.
Mas tem família que a mulher trabalha?
Tem dela que trabalha, depende da necessidade, se não tem como pagar outro, um
companheiro, aí leva a mulher pra trabalhar. Mas geralmente elas não agüentam,
logo logo, já trabalham pouco vai pra sombra, então vai embora. O homem
geralmente, não se usa muito de mulher aqui que ela não guenta trabalhar na roça.
Nem no dia do plantio?
Ah sim, no dia do plantio ajuda, planta milho, planta maniva da mandioca.
E o que ela faz?
É que nós planta com enxada. Então quem faz a cova ali, no chão é o homem,
geralmente a mulher sai com os pedacinhos [da rama] semeando.
E o milho?
O milho também ela sai jogando, quando é na enxada.
Mas só na hora do plantio?
Só, só na hora do plantio.
E geralmente todas as famílias fazem assim?
É, geralmente todas as famílias, que estão com pouco homem, aí eles usam, elas
ajudam.
Ou ainda:
Mulher ajuda sim, fazer uma planta, assim plantar, fazer comida, que o marido ia lá
tirar e ela fazia a comida. Mas tinha muitos que trabalha na enxada mesmo, mulher
né, mas pouco... Mulher ajuda também no plantio, mesmo com marido e filho no
plantio ajuda, e em outras tarefas não, só aí.
E as filhas?
Também pode ajudar, pode ajudar... O homem abre a cova e a mulher joga a rama. É
que esse serviço tem que ser rápido, indo lá hoje, amanhã tem que terminar, pro dia
ta na quadra boa [da lua].
Portanto, percebemos que o atual padrão de organização do trabalho na roça com a
participação das mulheres se dá por causa da alteração do ciclo evolutivo do grupo familiar.
Ele se justifica na atualidade pelo desequilíbrio da relação dentro desse grupo, entre as
unidades de produção e de consumo (Chayanov, op. cit.). Na verdade, a mãe está apenas
substituindo o filho rapaz que, embora mantenha um padrão alto de consumo, está
193
momentaneamente impossibilitado de produzir.18
Da mesma forma, com esta prática se está
evitando a contratação de um companheiro, impedindo-se uma maior dispersão de recursos. E
isto condiz plenamente com a “lógica da auto-suficiência nas casas” (Wall, 1988: 103) ou
com o “Esforço em manter os supostos da produção internos ao sítio” (Woortmann &
Woortmann, op. cit.: 33).
Seguindo o mesmo padrão de encolhimento do grupo familiar, sem a proporcional
diminuição do consumo, o que traz a necessidade de se buscar mais braços ou mais tempo
para a produção, a relação entre o mundo dos homens e a esfera de Deus passa igualmente por
algumas modificações. Antigamente era costume se respeitar diversos dias santos como: Anjo
da Guarda, São João Degolado, São Miguel, Corpo de Cristo, Nossa Senhora da Conceição,
São Gonçalo, São Benedito, Santo Antônio, São Sebastião, Semana da Paixão e outros mais,
de acordo com a crença local ou específica do grupo familiar.
A concepção era a de que trabalhar num dia santo representava um grande perigo.
Quem desrespeitava a lei atraia a possibilidade de cair um castigo sobre si. Ao se trabalhar no
dia de um santo forte como São João, por exemplo, corria-se o risco de se morrer degolado.
Da mesma forma, se uma pessoa abusava do costume local, não guardando o dia santo,
qualquer acidente acontecido com o mesmo era logo atribuído a este fato. Este respeito se
dava em consideração ao papel que o santo tem na cosmologia camponesa presente em toda a
Baixada Cuiabana.
O santo ocupa um lugar central no panteão sagrado, e é colocado como o intercessor
dos homens diante de Deus, assumindo essa dimensão uma importância maior do que
a de modelo de vida daquele, „biografia exemplar‟, que a igreja oficial tanto salienta.
O santo é o que faz o milagre, e quanto mais próximo ao Criador maior é a sua
capacidade de intercessão. No caso de Baús o santo mais próximo é São Benedito,
considerado como um santo forte e que, portanto, é milagreiro (Castro 2001: 138).
Domingo, o dia do Senhor, exigia um respeito absoluto. Segundo os lavradores, neste
dia:
Não trabalha, não ninguém trabalha.
Nunca?
Não ninguém trabalha dia de domingo, aí não tem desculpa.
Já outro lavrador,
E trabalho dia de domingo?
Na roça não, só pega comida pra porco, a mandioca, o milho, mas outro tipo de
trabalho não pode.
18
Dentro desta mesma lógica de substituição de força de trabalho ausente, temos o atual processo de
motorização por que passa a atividade produtiva. Na roça, os filhos são substituídos pelo trator que gradeia a
terra, evitando-se assim um árduo esforço para prepara-la.
194
Domingo ninguém trabalha, porque?
Por causa da religião, que nós temos a religião aí nos semo informado que dia de
domingo, é o dia do Senhor. Então nesse dia vamos ocupar na reza, no culto, então
nesse dia nós ficamos sem fazer nada.
No entanto, hoje já temos uma nova realidade. Com o aperto no serviço, às vezes o
grupo familiar tem necessidade de completar uma tarefa urgentemente, sob pena de uma
perda grande para o mesmo. Neste caso, conhecendo a realidade do mesmo, a comunidade
não condena.
No dia de domingo, quando ta muito precisão, então nós vai e faz algum serviço.
E aí não tem problema?
Não, não, tando precisando sabe que foi por necessidade.
Mas quem trabalha no domingo tem algum castigo?
Muitas pessoas já ficam com aquele negócio que tinha antigamente de trabalhar
domingo, dia santo é castigado. Mas hoje nós já não tamos mais assim, os padres
ensina, sabe que não é nenhuma idolatria, sabe que quem ta trabalhando é por
precisão.
Já os dias santos, a partir da atuação da igreja, começam a ser esquecidos ou
suplantados pelas pessoas mais novas, enquanto ainda são respeitados pelos mais velhos. A
depender da localidade, além do Natal e Semana Santa, apenas uns poucos dias santos são
resguardados, pois tem muito dia santo hoje que o povo nem conhece. Um lavrador muito
ligado à moderna Igreja Católica colocou que:
Aqui tem muita gente que é dia santeiro, que antigamente a igreja mandava que tem
que guardar todo dia santo, São Benedito, Santo Antonio, São Sebastião, tudo era
crente, o pessoal era crente no dia santo. Daí a igreja veio com uma notícia que dia
santo ficou pra dia de domingo. Muita gente colocou isso na cabeça e aceitou, mas
tem muita gente que não aceita isso, chegou aquele dia e guarda mesmo, não
trabalha. (...) Só ficou sexta-feira da paixão, Nossa Senhora da Conceição e Corpo de
Cristo. Esses pra nós é dia santo e não trabalha.
Temos assim que com as novas condições sociais internas impuseram um processo de
negociação entre as necessidades da esfera do trabalho humano e a obrigação de respeitar a
realidade divina. Deste modo o camponês do Arruda ainda mantém o respeito a Deus criador,
aos Santos mais fortes, incluindo aí o padroeiro de sua comunidade e, finalmente, ao
padroeiro particular de seu grupo familiar. Os outros santos mais fracos, embora não tenham
sido esquecidos, pois ainda se realizam inúmeras rezas nas casas dos mais devotos, os seus
dias não são guardados mais como antigamente. Assim, temos uma mudança apenas de
formato mantendo-se o essencial, a comunhão solidária entre as esferas humana e divina.
Deste modo, não se descuida de manter o respeito em relação a todos os entes „do lado de lá‟,
195
enquanto se reforça a relação direta com os santos mais fortes, ou seja, com quem tem mais
poder de interferência „no lado de cá‟.
Neste processo foi fundamental a atuação dos padres progressistas da Igreja Católica
de toda a região. Com a substituição dos antigos padres tradicionais que se preocupava com as
festas, rezes e os santos por um padre moderno, preocupado com a consciência e a situação
político/econômica do grupo, temos uma nova configuração religiosa na região.19
Historicamente este novo segmento tem se empenhado em combater e superar o que eles
chamem de „supertição do povo do interior‟. Portanto, quando em missa nas igrejas das
comunidades rurais, faz parte das suas pregações o ensinamento do „catolicismo correto‟, ou
seja, a moderna vertente romana deste segmento. O objetivo deste segmento é claramente o de
combater o „catolicismo tradicional camponês‟ que remonta em suas origens às práticas
religiosas populares de Portugal introduzidas no Brasil colônia.
Sueli Castro, que pesquisou o festejo do Divino Espírito Santo na comunidade de Baús
(região de Cuiabá Rio Acima), apresenta-nos um claro exemplo desta prática de
discriminação da expressão religiosa local.
Para os agentes da Igreja a parte litúrgica é utilizada para que o povo reflita sobre a
religião e, leia-se aqui, supere as crendices. (...) Os sermões buscam sempre
demonstrar o sentido dessas devoções, fazendo o hagiológio dos santos. Recupera-se a
„verdadeira‟ história do santo, o porque de sua beatificação e, mais, o exemplo que deu
de sua fé nos ensinamentos da Igreja, no sentido de demonstrar os valores religiosos
do catolicismo oficial que, às vezes, se contrapõem ao culto religioso popular.
O sermão referente à missa dedicada ao Divino, com o maior número de fiéis
participantes, foi o que apresentou a doutrina formal de maneira mais incisiva. Apesar
de se colocar o sermão com uma linguagem mais popular, trazendo alguns exemplos
do quotidiano daquelas pessoas, o dogma da Santíssima Trindade não parece ser por
elas assimilado. Com raras exceções, para esses fiéis o Divino é um santo, assim como
São Benedito. É uma pessoa em si e não a terceira de uma. O Divino é um santo com
existência concreta.
O padre insistiu muito para que as pessoas compreendessem a concepção da terceira
pessoa da Santíssima Trindade e sobre a sua representação por uma pomba branca.
Cabia aos pais e padrinhos ali presentes a responsabilidade da transmissão de um
ensinamento ‘correto’, formal, aos que ali recebiam a glória do sacramento do
batismo.
Para os fiéis, que ali se faziam presentes, suas crenças são religiosas e não classificam
os seus ritos como crendices. Suas crenças em nenhum momento são vistas como uma
contradição ao rito católico, tal como este é vivido na base, em que crenças e religião
se interpenetram e são inteiramente coerentes, embora, às vezes, se coloque em
contradição com a doutrina (op. cit.: 174-175). 20
19
Não levantamos quando se deu esta passagem em Rosário, especificamente mas, esta é há muito tempo, a
linha hegemônica na diocese de Cuiabá. 20
Esta mesma relação de combate por parte da igreja oficial à religião popular camponesa, foi por nós observado
na região da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT, onde residimos por 15 anos. Na zona rural de Santa
Terezinha, até no formato dos festejos se tentou interferir, com a tentativa de se substituir as figuras do
196
Já em relação à prática de realizar o plantio no dia de algum santo, só levantamos três
casos: São Miguel (29/09), Todos os Santos (31/10) e Nossa Senhora da Conceição (08/12). O
costume era de plantar o milho na véspera desses dias, pois o dia mesmo devia ser guardado.
Este costume de se respeitar o dia e realizar a atividade relacionada ao mesmo na véspera é
replicado em todas as festas juninas do interior. Estas sempre começam na véspera do dia do
santo homenageado, pois no dia santo propriamente dito, não pode haver qualquer trabalho,
como os preparativos da festa, por exemplo.
„Capitão‟e da „Rainha‟ na direção dos mesmos. Pelo fato destas posições serem ocupadas geralmente pelos
camponeses mais fortes, o padre propunha que se colocasse em seu lugar, uma equipe coletiva „representativa da
comunidade‟, obviamente escolhida a partir da indicação do próprio sacerdote. A resistência camponesa na
defesa de suas tradições foi muito grande e, até nos mudarmos de lá, em 2000, as duas figuras continuavam a ser
escolhidas pelos festeiros de todas as colônias, no último dia de festa, na presença de todos e a partir de sua
própria tradição.
197
Panorâmica da sala dos lavradores com altares e quadros de santos
Festejo de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Sesmaria do Arruda
198
CONCLUSÃO
Os dados aqui levantados e analisados demonstraram na origem um grupo camponês
portador de um modo de vida tradicional comum a todas as sesmarias e bairros rurais da
região do Arruda, modelo este que era assentado sobre os seguintes aspectos. Um sistema de
reprodução social chamado localmente de modo de vida comum, onde o acesso aos meios de
produção e aos bens simbólicos e materiais sobre o controle do grupo se dava a partir do
respeito às normas estabelecidas pela comunidade de parentes. Um sistema de produção
informado pela matriz cognitiva geral em constante renovação e apoiado em um processo de
trabalho autônomo e governado pelo pai de família. O estabelecimento desta forma de
produção e de reprodução social do grupo era possível devido a diversas condições sócio-
ambientais, tais como: uma situação social do grupo familiar com uma composição etária e de
gênero ideal, segundo o modelo local; uma situação ambiental de grande quantidade de terras
de cultura localizadas nas inúmeras áreas de mata nas baixadas dos córregos e de abundância
áreas de campo com capim nativo, o que propiciou o plantio policultural de grãos e a criação
extensiva de gado e, finalmente; a facilidade de acesso aos mercados da zona mineradora das
nascentes do rio Paraguai e de Cuiabá.
A despeito da subordinação econômica e política a que o grupo estava submetido e das
inúmeras mudanças conjunturais por que o mesmo passa desde a sua origem, no final do
século XIX e por quase todo o século XX, com a alteração do sistema de acesso ao mercado,
do controle sobre o patrimônio (no caso da Sesmaria Arruda), e da incorporação de inovações,
este modo de vida tradicional assim como as condições que lhe davam sustentação, se
mantiveram com poucas alterações permitindo ao grupo reproduzir com êxito sua forma de
produção e de reprodução social. Os lavradores mais idosos se referem a este período como o
tempo da abundância.
No entanto, a partir da instauração da nova ordem econômica, representada pela
Fazenda Paribó temos a imposição sobre o grupo camponês, de um processo de
espremimento, ocorrido na década de 1970, e de cercamento, ocorrido na década de 1980,
que afeta de uma maneira profunda a estrutura agrária e o sistema produtivo. Decorre deste
processo a substituição da conjuntura sócio-ambiental com a perda de territórios de terra boa
de cultura necessária ao plantio policultural e à renovação das roças cansadas; com a intensa
derrubada da cobertura vegetal nativa para a formação de pastos, o que acaba por atrair novas
199
e desconhecidas pragas para a região; com o estabelecimento de inúmeras cercas, o que
impede a criação do gado no sistema de comum. São estes novos fatores que acabam por
quase inviabilizar a realização do „fundo de manutenção‟ do grupo (Wolf, 1976), resultando
no esfacelamento do modo de vida comum, o que induz o grupo ao atual tempo de cada um
pra si.
Este processo acaba por alterar a lógica interna da produção que passa da produção
para o autoconsumo subordinando a produção ao mercado, para a produção ao mercado
subordinando a produção para o autoconsumo na atualidade inaugurando um tempo em que o
processo de trabalho torna-se „cativo‟. Temos assim a chegada da „modernidade‟ à região do
Arruda, com a passagem de uma situação onde a partir da reciprocidade e da redistribuição, a
economia local estava imersa nas relações sociais, ou seja, onde “o sistema econômico [era]
dirigido por motivações não-econômicas” (Polanyi, 2000: 65), para uma nova configuração
onde a sociedade é que serve ao mercado, ou seja, “em vez de a economia estar embutida nas
relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico” (idem:
77). Em conseqüência deste processo de modernização e integração do meio rural ao
progresso, tem início o tempo de penúria.
A partir daí o grupo camponês que consegue sobreviver a este „moinho satânico‟
(Polanyi, op. cit.) é como que “„reinventado‟ ou „re-produzido‟ pelo capital” (Mireya et al,
1983: 155). Portanto, o campesinato local busca enfrentar as dificuldades da nova conjuntura
reciclando sua matriz cognitiva, pois “é a partir da própria necessidade de reprodução de seus
meios de vida que os (...) produtores camponeses desencadeiam permanentemente novos
ajustamentos” (Motta, 1983: 160). No entanto, este processo necessário de incorporação dos
diversos elementos da modernidade ocorre agora num ritmo cada vez mais intenso. Temos
assim a passagem de um processo onde tínhamos anteriormente uma seqüência „segura‟
(portanto duradoura) de absorção de mudanças (com m minúsculo) naturais e internas à lógica
do grupo para uma seqüência „violenta‟ (portanto sem muito futuro) de intromissão de
Mudanças (com M maiúsculo) que são impostas de fora para dentro. Isto se dá uma vez que
no plano produtivo, das estruturas estruturadas (Bourdieu, 1992), a lógica e o saber que
informavam a prática começaram a perder a sua operacionalidade, embora no plano
reprodutivo social algumas práticas ainda consigam se manter atualizadas.
Assim, a partir de um passado produtivo e reprodutivo comum, em decorrência deste
processo de espremimento e cercamento temos agora uma diferenciação interna entre os
distintos bairros rurais aqui analisados, como conseqüência da estrema diferenciação quanto
condição social do grupo familiar e da disponibilidade e qualidade de sua terra. Deste modo
200
se configura na atualidade uma situação que aponta para a especialização, onde temos dois
modelos produtivos distintos. Um no ‘alto’ São Pedro dos camponeses fortes que tornou-se
uma área de pequenos criadores de gado e beneficiadores de leite, estando situados num
processo de modernização mais avançado quanto às práticas produtivas. Outro nas ‘áreas
espremidas’ do Cedral e do Espia, onde se configura um campesinato mais fraco e que se
especializaram na pequena agricultura de mandioca e seu beneficiamento em farinha, sendo
que os mesmos ainda se mantêm relativamente próximos do modelo antigo. Apesar de cada
localidade ter se especializado, muitos lavradores ainda conseguem reter práticas tradicionais
ligadas ao consumo familiar, tais como produção de mel, plantio de hortas domésticas e
criação de pequeno porte, como galinha, cocar, pato, peru e porco.
No entanto, se o espremimento afetou profundamente o sistema produtivo, ainda não
conseguiu afetar da mesma maneira o domínio simbólico. Assim, se o processo produtivo está
mais atualizado, mais incorporado à modernidade pela via da motorização e da introdução de
alguns insumos externos, é no plano religioso que os três grupos ainda se identificam, uma
vez que estes ainda estão ligados à fé e ao sistema religioso tradicional. É exatamente neste
ponto que o grupo aqui estudado ainda apresenta sua campesinidade (Woortmann, 1990).
Contudo se o grupo sobreviveu ao espremimento, uma verdadeira reforma agrária ao contrário
que mudou as relações econômicas ampliando a sua subordinação, temos que justamente no
ponto onde o mesmo ainda consegue reproduzir a sua matriz camponesa original tem sido
alvo de um verdadeiro massacre ideológico que visa desacreditar seu saber e suas crenças.
A mesma época que estas mudanças conjunturais se davam na região da Baixada
Cuiabana e no Brasil como um todo, a visão corrente da bibliografia sobre a realidade social e
produtiva do meio rural era recorrente em tratar a lógica, o saber e a prática camponesa como
uma fonte de atraso e como responsável pela baixa qualidade de vida destas populações.
Numa publicação do IBGE que trata da geografia da região Centro Oeste sob o prisma
do desenvolvimentismo dos anos 1970, podemos ler que,
A região Centro-Oeste, embora disponha de recursos abundantes, mantém um
crescimento econômico limitado por algumas condições adversas, (...) Na lavoura
dominam também processos pouco evoluídos de exploração, sendo limitado o uso de
fertilizantes, de sementes selecionadas e de defesa sanitária vegetal [herbicidas], baixo
índice de mecanização da atividade agrícola e restrito a pequenas áreas o emprego de
sistemas agrícolas racionais (IBGE, 1977: 290).
Temos assim que os parâmetros utilizados para se aferir à mudança ou a estagnação
são aqueles ligados aos processos produtivos de uma agricultura „moderna‟, „tecnológica‟ e
„científica‟, que valoriza os aspectos quantitativos geradores de lucro. Decorre daí o desprezo
201
por qualquer processo de mudança qualitativa estranha a esta lógica que, por isso mesmo,
devem ser ou encobertos ou reduzidos à irracionalidade. Neste processo, o saber camponês é
pensado como um „ponto zero‟, como um „não saber‟, uma eterna e imutável „irracionalidade‟
e „falta de saber‟ que não tem origem e nem história. Para os adeptos desta visão, este saber
estagnado somente poderá ser resgatado desta imobilidade pelo progresso das inovações
científicas e tecnológicas.
Como conseqüência deste discurso recorrente e, por isso mesmo, estruturante de uma
identidade, o Mato Grosso é visto desde o tempo dos viajantes até a atualidade como um
verdadeiro „Eldorado‟, um território com uma enorme abundância de recursos inexplorados,
ocupado por uma população que é incapaz e ineficaz para aproveitá-los. A fala de um viajante
do final do século XIX demonstra exemplarmente o que afirmamos. “A população da capital
[Cuiabá] é, em geral muito pobre. A ribeirinha [da Baixada Cuiabana] vive da caça e da
pesca, é indolente e pouco amiga do trabalho” (Amorim, s.d.: 479). Da mesma forma que
Castro (2000), entendemos que este discurso, assim como a identidade por ele estruturada,
tem uma importante conseqüência prática.
Assim, manifestava-se a idéia de que o mundo natural, por mais diverso e exuberante
que fosse, precisava ser „domesticado‟e transformado para satisfazer as necessidades
humanas, então identificadas ao aumento das relações de troca e, conseqüentemente,
da riqueza econômica. Em termos mais simples e diretos, se a abundância levava a
ociosidade e mantinha „inertes‟ os habitantes locais, cabia eliminar a causa para se
obter o efeito desejado. Eliminação por duas vias: pelo controle do acesso aos recursos
naturais ou abrindo-se as terras para seu fim último e primordial, campos agrícolas,
cidades, indústrias, estradas... Apenas destruindo-se o suposto paraíso, lugar de
abundância e onde seres humanos sobreviviam com pouco trabalho, se poderia
organizar uma sociedade efetivamente civilizada (Castro, op. cit.: 283).
Portanto, cabe a este „discurso do progresso‟ (Lenharo, 1982) fornecer uma
legitimação ideológica para a ação desenvolvimentista predatória, meramente niveladora e
eliminadora dos diversos grupos camponeses e indígenas de todo o estado, em benefício de
grandes grupos econômicos.
Entendemos que é somente quando se parte do ponto de vista interno do grupo, de sua
lógica própria, que é possível superar esta visão preconceituosa sobre a prática camponesa.
Conforme bem coloca Woortmann (1999),
Se há um ponto sólido na teoria antropológica, é o de que não há valores irracionais.
Qualquer sistema social e cultural tem sua própria lógica e não há razão para acreditar
que um sistema camponês tenha a mesma lógica de um sistema urbano-industrial, ou
que os valores da classe média urbana façam sentido para camponeses ou para os
chamados marginais urbanos. De um lado, valores fazem sentido no contexto do
sistema social e cultural no qual emergem; de outro, valores não emergem por geração
202
espontânea, mas estão relacionados com os aspectos estruturais da sociedade, com a
posição situacional de grupos e subgrupos dentro da sociedade e com os requisitos
adaptativos de tais grupos (Woortmann, op. cit.: 51).
Foi a partir deste ponto, o entendimento de sua lógica e organização interna e dos
vínculos e relações que são mantidos com o mundo externo, que buscamos a compreensão dos
grupos camponeses aqui apresentados. Ao se desvendar o habitus estruturado tanto pela
tradição interna como pela relação de subordinação externa, assim como estruturante de sua
prática produtiva e reprodutiva (Bourdieu, 1989, 1992) que se tornou possível apreender os
padrões de mudanças e os sistemas de estratégias reprodutivas adotados pelo grupo.
Deste modo nos foi possível acessar a matriz cognitiva que informa o processo de
trabalho e a prática reprodutiva dos camponeses da região do Arruda. Num modelo muito
distante do alegado „saber ponto zero‟, demonstramos que este tem história, pois é um
processo construído ao longo de gerações e que se mantém ainda hoje em constante
atualização. E este verdadeiro renovar, ao mesmo tempo em que é manutenção, somente é
possível posto que o habitus grupal informa a atuação de agentes criadores de inovações
assim como de agentes observadores dos processos da natureza circundante, da prática de
outros grupos camponeses vizinhos e da sociedade moderna envolvente, buscando apreender
daí novos hábitos produtivos. Estes novos hábitos, uma vez experimentados, adequados à
lógica interna e aprovados pela sanção do grupo são incorporados ao habitus, possibilitando a
renovação da prática produtiva e reprodutiva. Temos assim que se a matriz cognitiva do grupo
camponês da região do Arruda existe enquanto uma tradição ou um ideal reproduzido, ao
mesmo tempo ela existe como mudança ou como uma adaptação deste modelo ideal ao real.
No entanto, é importante que se diga que este processo de incorporação e mudança
apresenta, ao longo do tempo, ritmos diversos. Nossa etnografia demonstrou que há processos
de mudança que são quase imperceptíveis, enquanto em outros processos a mudança é mais
visível e identificável. Além disto, constatamos que a mudança não se dá apenas pelo
acréscimo, mas igualmente pela perda de hábitos, sempre que estes deixem de trazer uma
contribuição para a reprodução social do grupo. Portanto temos aí diferentes ritmos de
mudança, e não estagnação ou mesmo ruptura. Da mesma forma, fica claro que este ponto é
percebido pelos lavradores, na medida em que os mesmos diferenciam os dois tempos ou
movimentos: o da fartura, quando tínhamos a mudança num ritmo considerado dentro da
ordem natural e, portanto, mantenedora da natureza e das relações sociais, respeitando-se a
criação e a divindade criadora; e o da penúria, quando temos a Mudança num ritmo que vem
desordenar toda a relação entre homens, natureza e Deus.
203
É por isto que temos um claro processo de construção da memória social por parte dos
mais idosos que por terem vivido em diferentes temporalidades da trajetória do grupo, a partir
desta percepção reconfiguram o discurso atual para diferenciar estas distintas temporalidades
de uma forma marcante (Pollak, 1989). Temos assim um tempo de fartura, onde a mercadoria
servia ao homem e a vida era mais forte, sucedendo-se num ritmo mais lento e natural e que
por isso mesmo durava mais: onde a comida era gostosa, cheirosa e sadia; onde os viventes
tinham o corpo cheio e resistente; e o processo de trabalho era autônomo gerando produção.
Sucedendo-se a este, temos o tempo de penúria, onde são os homens que servem à
mercadoria e a vida é mais fraca, acontecendo num ritmo antinatural e que, por isso, não
dura: onde a comida é fedida e venenosa; onde os viventes têm o corpo fofo e inchado; e o
processo de trabalho é cativo gerando prejuízo.
Deste modo, temos que o grupo trabalha na atualidade a partir de uma temporalidade
claramente linear, onde o modo de vida caminha para uma situação entrópica de decadência
(Soares, 1987; Stahel, 1998). Não temos como antecipar o futuro, mas podemos levantar
possibilidades. A matriz cognitiva do grupo, agora submetida a uma grande pressão pelo
aceleramento dos padrões de mudanças impostas de fora para dentro, acabará por se esgotar
na sua capacidade de informar a prática produtiva e reprodutiva? Ou, a partir da incorporação
de novos elementos externos ao custo de uma subordinação cada vez mais acentuada ao
capital, o grupo conseguirá superar o atual impasse produtivo, realizando uma nova junção da
modernidade com a tradição? Quem viver verá.
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