dor mental, sofrimento e mudança

10
DOR MENTAL, SOFRIMENTO E MUDANÇA Angélica Calaresi Wolff Cristina Vilela de Carvalho Paulo José da Costa DOR MENTAL, SOFRIMENTO E MUDANÇA Angélica Calaresi Wolff 1 Cristina Vilela de Carvalho 2 Paulo José da Costa 3 Resumo Segundo Fleming (2003), a dor mental pode fazer-se presente em todas as situações de vida e particularmente na experiência de análise, em que pode ser vivenciada com intensos efeitos, provocando reações mais ou menos veementes e defensivas, a depender da maior ou menor capacidade de tolerância do sujeito. Wilfred Ruprecht Bion (1897- 1979) conferiu à dor mental uma posição fundamental quando se trata de compreender o crescimento mental e suas vicissitudes. Partindo dessa perspectiva bioniana, propomo- nos a discutir a concepção de que as vivências de dor mental podem se constituir também em fenômenos relacionados às mudanças pertinentes a um proveitoso trabalho de análise. Palavras-chave: dor mental; mudança catastrófica; sofrimento psíquico; crescimento mental; W. R. Bion. Abstract According to Fleming (2003), mental pain can be present in all life situations and particularly in the analysis experience, where it can be lived with intense effects, inciting reactions more or less vehement and defensive, depending on the capacity of tolerance of the individual. Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) conferred to the mental pain a fundamental position when it has to do with the mental growth and its 1 Psicóloga, mestranda em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Desenvolvimento Humano CNPq-UEM. 2 Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo, professora assistente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Desenvolvimento Humano CNPq-UEM. 3 Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Desenvolvimento Humano CNPq-UEM.

Upload: leao-silva

Post on 26-Sep-2015

233 views

Category:

Documents


10 download

DESCRIPTION

Psicologia.

TRANSCRIPT

  • DOR MENTAL, SOFRIMENTO E MUDANA

    Anglica Calaresi Wolff

    Cristina Vilela de Carvalho

    Paulo Jos da Costa

    DOR MENTAL, SOFRIMENTO E MUDANA

    Anglica Calaresi Wolff1

    Cristina Vilela de Carvalho2

    Paulo Jos da Costa3

    Resumo

    Segundo Fleming (2003), a dor mental pode fazer-se presente em todas as situaes de

    vida e particularmente na experincia de anlise, em que pode ser vivenciada com

    intensos efeitos, provocando reaes mais ou menos veementes e defensivas, a depender

    da maior ou menor capacidade de tolerncia do sujeito. Wilfred Ruprecht Bion (1897-

    1979) conferiu dor mental uma posio fundamental quando se trata de compreender o

    crescimento mental e suas vicissitudes. Partindo dessa perspectiva bioniana, propomo-

    nos a discutir a concepo de que as vivncias de dor mental podem se constituir

    tambm em fenmenos relacionados s mudanas pertinentes a um proveitoso trabalho

    de anlise.

    Palavras-chave: dor mental; mudana catastrfica; sofrimento psquico; crescimento

    mental; W. R. Bion.

    Abstract

    According to Fleming (2003), mental pain can be present in all life situations and

    particularly in the analysis experience, where it can be lived with intense effects,

    inciting reactions more or less vehement and defensive, depending on the capacity of

    tolerance of the individual. Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979) conferred to the mental

    pain a fundamental position when it has to do with the mental growth and its

    1 Psicloga, mestranda em Psicologia na Universidade Estadual de Maring, membro do Grupo de

    Estudos e Pesquisas em Psicanlise e Desenvolvimento Humano CNPq-UEM. 2 Mestre em Psicologia pela Universidade de So Paulo, professora assistente do Departamento de

    Psicologia da Universidade Estadual de Maring, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em

    Psicanlise e Desenvolvimento Humano CNPq-UEM. 3 Doutor em Psicologia pela Universidade de So Paulo, professor adjunto do Departamento de Psicologia

    da Universidade Estadual de Maring, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanlise e

    Desenvolvimento Humano CNPq-UEM.

  • vicissitudes. From the Bionian perspective, we intend to discuss the conception that

    mental pain experiences can also be constituted in phenomena related to the pertinent

    changes to a profitable analysis work.

    Keywords: mental pain; catastrophic change; psychic suffering; mental growth; W. R.

    BION.

    1. Introduo

    Segundo Fleming (2003), a dor mental pode fazer-se presente em todas as

    situaes de vida e particularmente na experincia de anlise, em que pode ser

    vivenciada com intensos efeitos, provocando reaes mais ou menos veementes e

    defensivas, a depender da maior ou menor capacidade de tolerncia do sujeito. Wilfred

    Ruprecht Bion (1897-1979) conferiu dor mental uma posio fundamental quando se

    trata de compreender o crescimento psquico e suas vicissitudes. Ele acrescentou

    compreenso da clnica psicanaltica o vrtice da dor psquica como possibilidade de se

    constituir numa funo integradora para a mente.

    Em sua obra, Bion ressaltou que a armadura das resistncias no se organiza

    apenas contra o afeto reprimido, mas tambm contra a experincia de dor diante de

    verdades penosas. Desse modo, na sua concepo, no processo de anlise seria mais

    enriquecedor trabalhar com os aspectos primitivos do paciente, que mostram a cobertura

    defensiva neurtica funcionando como organizao patolgica para encobrir a no

    integrao (Bion, 1991).

    Segundo Bion (1973), os mecanismos dissociativos que repercutem na sesso de

    anlise poderiam provocar momentos muito difceis para o trabalho analtico,

    conduzindo a uma forte erupo psquica, equivalente aos grandes acontecimentos e

    desastres da vida que incidem sobre o psiquismo como estado de catstrofe; mas

    percebeu igualmente que aprender com a experincia de tolerar a dor mental e

    compartilhar sentimentos caticos e arbitrrios constitui um importante passo em

    direo ao conhecimento e s transformaes.

    Partindo dessa perspectiva bioniana, no presente trabalho nos propomos a

    discutir a concepo de que as vivncias de dor mental podem se constituir tambm em

    fenmenos relacionados s mudanas pertinentes a um proveitoso trabalho de anlise.

    2. A mudana catastrfica

  • Ao processo regressivo e de erupo psquica, conforme acima indicado, como

    resposta complexa perspectiva analtica de que as partes da personalidade dialoguem

    entre si gerando sucessivos estados de mudana, Bion (1971) denominou de mudana

    catastrfica. Dizendo de outro modo, o termo mudana catastrfica foi cunhado por

    Bion para designar um processo mental que subverte a ordem do funcionamento

    psquico de maneira to turbulenta e brusca que gera sensaes desastrosas, por se

    configurar numa alterao desorganizadora do sistema constitudo at ento (Bion,

    1971; Levine, 2009).

    Na compreenso de Bria (1992), a expresso mudana catastrfica perpassou

    toda a obra bioniana com o sentido de que verdadeiras mudanas internas poderiam ser

    sentidas como violao radical das leis da lgica pessoal instituda e como

    representao de morte, aniquilamento e terror, pois a parte psictica da personalidade

    (Bion, 1991), radical em sua lgica sobre a realidade interna e externa, quando se

    percebe conhecida e revelada, reage de modo intensamente aumentado, a isto levada por

    um estado emocional de terror e perigo (Bria, 1992).

    Para a parte da mente que funciona psicoticamente, at a atividade de pensar

    pode significar uma experincia catastrfica, acompanhada por alto grau de ansiedade,

    pois essa parte engendra um funcionamento parasitrio entre pensamento e pensador e

    constri uma formulao que, embora falsa, retm, como uma barreira, a verdade, visto

    que esta sentida como grande ameaa ao ordenamento psquico. Neste sentido, a

    mentira, opositora da verdade, e o pensamento institudo, opositor do no saber, so

    construes de uma verso onipotente mobilizada contra a turbulncia da mudana

    catastrfica, funcionando como uma armadura que paralisa o conhecimento, limita e

    engessa o espao mental (Bion, 1973). Conforme explica Rezze (2006), a parte

    psictica da personalidade se organiza de muitas maneiras para, ao invs de enfrentar as

    frustraes, evadir-se delas de modo que as situaes de mudana so experimentadas

    como fonte iminente de catstrofe.

    Alm disso, Bion (1973) acrescenta que o conceito de mudana catastrfica deve

    ser compreendido na perspectiva das transformaes, no sentido de que, embora

    represente uma fora que busca conter o impensvel, podendo ser acompanhada por

    grande sofrimento, tambm pode representar um fluxo de vitalidade na mente. Nessa

    perspectiva, o processo de mudana catastrfica um estado dinmico e penoso,

    entendido pelo enfraquecimento das frentes de batalha no conflito interno entre emoo

    e antiemoo, no embate das distintas partes do psiquismo: a parte no psictica e

  • adulta, que quer tomar conscincia das verdades penosas, e a parte infantil e psictica da

    personalidade, que obstrui e sabota um possvel crescimento adotando o uso

    inconsciente de relevantes negaes, com vista a preservar as iluses narcsicas. Por isso

    Zimerman (2004) acrescenta que, quando predomina o funcionamento no psictico da

    personalidade, a mudana catastrfica faz parte do crescimento mental.

    Voltando s angstias relacionadas mudana, Grinberg (1973) salienta que

    estas se apresentam como fora eruptiva e catastrfica porque os fragmentos evacuados

    da parte psictica acabam por romper as barragens defensivas. A transformao to

    rechaada e objeto de tanta resistncia porque oferece perigo megalomania do

    funcionamento psictico. Assim, a resistncia mudana catastrfica, quando est em

    jogo a personalidade psictica, ser proporcionalmente mais violenta e tenaz, j que a

    disrupo a que se v ameaada por enfrentar essa mudana tambm mais

    intensamente dolorosa e violenta (Grinberg, 1973, p. 106-107).

    Assim o catastrofismo se instaura ante a possibilidade de crescimento mental

    porque nesse processo a vivncia subjetiva que um estado mental existente morrer

    para dar lugar a outro estado mental. A passagem de um estado de mente conhecido

    para um desconhecido implica em perigo e ao mesmo tempo se refere possibilidade de

    construo, de crescimento e de ampliao da mente, podendo gestar psiquicamente um

    novo estado, sugerindo nascimento e morte na mesma atividade (Alves & Alves, 2009).

    A respeito disto, Bion (1987) destaca que o crescimento impe a condio de

    que a mente seja suficientemente tolerante para viver uma situao de tumulto

    emocional. Comentando sobre isso, Sandler (1988, p. 10) expe que, na concepo

    bioniana, para crescer, a mente necessita de certo grau de dificuldade ou resistncia

    (...) e a procura da verdade raramente isenta de esforo. Mas ela provoca dor e muitas

    pessoas parecem preferir a alucinao.

    3. O processo analtico e a mudana catastrfica

    O processo de mudana catastrfica, contemplando a perspectiva das

    transformaes, refere-se tanto aos acontecimentos reais que subvertem a ordem de

    funcionamento psquico quanto ao prprio processo psicanaltico. Zimerman (2004) e

    Bria (1992) apontam que o processo de mudana catastrfica pode representar uma

    etapa da anlise marcada pela sucesso de avanos e retrocessos mentais. Ao peregrinar

    por zonas psquicas desconhecidas e descortinar falsas verdades sobre o si mesmo e a

    realidade, e ao questionar as bases em que se assenta o emocional com o eu e com o

  • outro, a anlise pode conduzir a forte erupo psquica, equivalente aos grandes

    acontecimentos e desastres da vida que incidem sobre o psiquismo como estado de

    catstrofe.

    Assim, tanto do ponto de vista do paciente quanto do analista, a experincia

    analtica (...) potencialmente uma experincia desagradvel para ambos (...), [pois]

    numa operao analtica, ns no anestesiamos o paciente, pelo contrrio, estamos

    fazendo com que tome conscincia de sua dor. Estamos cientes de estarmos tentando lhe

    mostrar onde di. (Bion, 1992, p. 10).

    Por isso, pode-se entender por que o paciente, embora procure por ajuda,

    capaz, em outros momentos, de evadir-se do processo de autoconhecimento, em funo

    do enfrentamento desses momentos difceis do trabalho analtico, que causam dor

    mental e sofrimento. Por outro lado, desse estado pode emergir o crescimento mental,

    como j dito, pois aprender com a experincia de tolerar a dor psquica e compartilhar

    sentimentos caticos e arbitrrios constitui um importante passo em direo ao

    conhecimento e s mudanas (Alves & Alves, 2009). Estes mesmos autores ainda

    comentam que pode prevalecer um movimento psquico positivo e evolutivo de

    crescimento mental que comporte um universo psquico em expanso, por agregar

    novos pensamentos, sentimentos e vrtices de sentido.

    Rezende (1995) afirma que a capacidade de pensamento a capacidade

    organizadora da catstrofe, pois a capacidade de pensar dialoga com o pensamento,

    expande-o e o fecunda com outros pensamentos, ampliando o universo mental, para

    amparar e transformar sentimentos em significado e ao. Pensar pode fortalecer o

    psiquismo para suportar emoes intensas e confiar nos prprios recursos para conhecer

    e testar a realidade interna e externa rumo ao crescimento mental.

    Num funcionamento psquico predominantemente psictico, o indivduo se

    confina em um universo gerado por ele mesmo, ao passo que o conceito de crescimento

    mental inspira-se na ideia de um universo em expanso, agregando novas percepes,

    perspectivas e relaes. Assim, na perspectiva bioniana de expanso do universo

    mental, a mudana, emergente na e pela anlise, pode transportar a mente por um

    caminho desconhecido e calamitoso, mas presenteia a bagagem psquica com a

    autenticidade e a liberdade.

    O conceito nodal de Bion sobre a prtica clnica se expressa no aporte de que,

    embora o processo analtico bem-sucedido se destine ao alvio do sofrimento, tem-se,

    neste caminho, o aumento na capacidade para sofrer (Bion, 1994). Assim,

  • a anlise no procuraria acabar com a dor psquica, mas aumentar a tolerncia a

    ela, necessria para o enfrentamento com verdades dolorosas, mas inevitveis.

    (...); o trabalho psicanaltico no busca apenas levantar represses, mas expandir

    a capacidade da mente de transformar suas emoes em elementos pensveis

    (Mondrzak, 2007, p. 122).

    Por sua vez, comentando as ideias bionianas, Hartke (2005) observa que, ao

    prevenir-se de sofrer dor, a mente tambm fica impossibilitada de sofrer amor, da

    mesma forma que tamponar uma dor (ou prazer) que no sofrida tambm a impede de

    ser descoberta e conhecida. Como o progresso na capacidade de pensamento confronta

    o paciente com a dor do conhecimento de seu estado psquico, para defender-se da dor,

    a mente do paciente pode atacar com dio o trabalho do analista na tentativa de (...)

    dissociar a mente do analista, (...) impedir toda integrao em seu trabalho. (Rezende,

    1995, p. 179).

    Assim, a repercusso do processo de mudana catastrfica na sesso e no

    processo analtico acarreta momentos difceis para esse trabalho, podendo at incitar

    atuaes violentas como expresso de turbulncia mental e de sofrimento. Ela no s

    causa grande impacto no prprio paciente, mas atinge tambm, alm de seus

    circundantes, a mente do analista e a sua condio continente (Grinberg, 1973).

    A noo de mudana catastrfica alude, ento, a um estado mental de

    disponibilidade e descobrimento, representando transformaes tambm na mente do

    analista e no prprio curso do processo analtico. Implica a compreenso de que a

    relao analtica um vnculo que privilegia o conhecimento, mas nunca deixa de ser

    afetado pelo impacto do vnculo do amor e da agressividade (Zimerman, 2004).

    Ademais, cabe enfatizar a importncia de o analista compreender e respeitar esse estado

    psquico penoso, tendo em vista o reconhecimento do que se processa dentro da mente

    do paciente (Zimerman, 2004). Desse modo, como ressalva Cassorla (1998, p. 723),

    (...) o desafio do analista ser entrar em contato profundo com a loucura que permeia o

    trabalho da dupla, confrontando e por vezes deixando que se misturem aspectos

    psicticos do paciente com os dele mesmo, sem que enlouqueamos.

    O mesmo autor enfatiza que, mais do que qualquer outro recurso teraputico, a

    atitude mental do analista de escutar os prprios sentimentos, reaes, fantasias, sonhos

    e sintomas fsicos vincula-o ao material analtico e ao funcionamento mental do

  • paciente de tal modo que sua compreenso precisa ser emocional, e no somente

    intelectual, albergando at um estado possvel e comum de no compreenso.

    Nesse sentido, o trabalho psicanaltico dever estar voltado para um estado

    dinmico de mente que suporte o par desconhecido/conhecido que transita na realidade

    interna e na sesso de anlise, de modo que a atitude interna do analista de suportar a

    oscilao entre pacincia e segurana e entre saber e no saber, sem perseguir um fato

    ou razo, indcio de um trabalho exitoso (Alves & Alves, 2009).

    Destarte, o desafio colocado ao analista acompanhar o paciente no

    despojamento das cadeias lgicas do pensamento construdo, deixando-o exposto

    impotncia, confuso e insegurana diante da angstia, pois a dinmica psquica

    instituda uma forma extrema de defesa que, embora til, representa um

    empobrecimento que tolhe a energia mental em apenas uma parte da personalidade

    (Mondrzak, 2007). Em face desse desafio, destaca-se que as mudanas catastrficas so

    vivncias que (...) colocam a parceria entre paciente e analista em provas limites para

    suport-las e conseguir transform-las em mudanas criativas (Sapienza, 2009, p. 40).

    Diante disso, Grinberg (1973) e Rezende (1995) alertam para a necessidade de o

    analista tolerar a presena infindvel de inquietaes, meias-verdades, dvidas e

    mistrios humanos como condio preponderante no trabalho analtico, pois isto

    preserva e alimenta o crescimento mental da parceria. Do mesmo modo, atravs da

    continncia ao estado mental catastrfico que o analista oportuniza ao paciente a

    possibilidade de construir ou de reconstruir um espao interno capaz de gerar

    pensamentos (Mattos, 1992).

    Sapienza (1992) observa que, na prtica, a experincia analtica se apresenta

    como um grupo de trabalho (p. 305), quando analisando e analista se aliam por

    vnculos de amor, dio e conhecimento que infiltram o psiquismo de ambos, num

    campo interacional. Deste modo, esses vnculos podem ter capacidade tanto de

    alimentar as foras emocionais que visam aprendizagem e ao crescimento mental

    quanto de impregnar de hostilidade as foras que se opem mudana psquica. Em

    consonncia, tomando uma imagem como referncia, possvel afirmar que, (...) a

    exemplo de um mapa-mndi geogrfico que vai mudando a sua configurao com o

    correr das transformaes histricas, tambm na anlise as sucessivas transformaes

    que ocorrem no vnculo analtico visam modificar o mapa das capacidades afetivas e

    intelectivas do analisando (Zimerman, 2004, p. 166).

  • 4. Finalizando

    Conforme discutido no decorrer do presente trabalho, a expanso do universo

    mental e a ampliao da capacidade de pensar emergentes na e pela anlise podem

    transportar a mente por um caminho desconhecido e calamitoso, por aproximar o

    paciente do desvelamento de sua precariedade psquica. O estado de anticonhecimento

    defensivo causa automutilao psquica, porque, embora aparente normalidade e

    produo, impede o pensamento de crescer em discernimento e coerncia compartilhada

    (Marques, 2004; Hartke, 2005; Mondrzak, 2007). Assim, a evoluo precisa fazer par

    com a ruptura, de modo que o sofrimento possa ser o nascedouro da palavra e do

    pensamento, (Bion, 1987). Desse modo, o crescimento mental catastrfico porque

    impe mente a vivncia de um tumulto emocional.

    A noo de mudana catastrfica alude a transformaes tambm na mente do

    analista e no prprio curso do processo analtico, apresentando experincias emocionais

    que colocam a parceria da dupla em provas-limites (Sapienza, 2009), exigindo que

    tambm o analista, em sua funo, tenha condio de suportar a dor. Assim, no existe

    resposta ou crescimento final, pois cada crescimento abre um novo universo, de modo

    que um ato de sabedoria investigar o tumulto emocional ao invs de inibi-lo (Sapienza

    & Junqueira Filho, 1997). Destarte, o trabalho de um espao mental transformvel,

    dinmico e de infinitas interseces e desdobramentos entendido como um processo

    nunca saturado e em constante movimento, na direo de um estado infindvel de

    transformao mental, num contnuo vir a ser.

    5. Referncias

    Alves, D. B. & Alves, J. M. B. (2009). Mudana catastrfica. Viver Mente & Crebro:

    Memria da Psicanlise, 6, 82-89.

    Bion, W. R. (1971). Mudana catastrfica. (C. H. P. Affonso; M. R. M. Affonso,

    Trads.). Jornal de Psicanlise, 6(17), 18-26. (Original publicado em 1966).

    Bion, W. R. (1973). Continente e contido transformado. In: Bion, W. R. Ateno e

    interpretao (pp. 117-137). (C. H. P. Afonso, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.

    Bion, W. R. (1987). Turbulncia emocional. Revista Brasileira de Psicanlise, 21(1),

    121-141.

  • Bion, W. R. (1991). Diferenciao entre a personalidade psictica e a personalidade

    no-psictica. In: Spillius, E. B.. Melaine Klein Hoje: desenvolvimentos da

    teoria e da tcnica (p. 69-86). (B. H. Mandelbaum, Trad.). Rio de Janeiro:

    Imago. v.1.

    Bion, W. R. (1992). Seminrio Clnico com Bion. Ide, 22, 8-13.

    Bion, W. R. (1994). Notas sobre a teoria da esquizofrenia. In: Bion, W. R. Estudos

    Psicanalticos Revisados (p. 33-46). (W. M. M. Dantas, Trad.). Rio de Janeiro:

    Imago. (Original publicado em 1967).

    Bria, P. (1992). Catstrofe e transformaes. Revista Brasileira de Psicanlise, 26(3),

    389-396.

    Cassorla, R. M. S. (1998). Psicanlise e surto psictico: consideraes sobre aspectos

    tcnicos. Revista Brasileira de Psicanlise, 32(4), 721-745.

    Figueira, S. A. (1992). Algumas observaes sobre o status da teoria psicanaltica na

    obra de Bion e suas consequncias para a prtica clnica. Revista Brasileira de

    Psicanlise, 26(3), 285-300.

    Fleming, D. (2003). Dor sem nome: pensar o sofrimento. Porto: Edies Afrontamento.

    Grinberg, L. (1973). Introduo s idias de Bion. (T. O. Brito, Trad.). Rio de Janeiro:

    Imago.

    Hartke, R. (2005). A situao traumtica bsica na relao analtica. Revista Brasileira

    de Psicanlise, 39(1), 39-56.

    Levine, H. B. (2009). Reflections on catastrophic change. International Forum of

    Psychoanalysis, 18(2), 77-81.

    Marques, T. H. T. (2004). Conjecturando a expresso dos estados mentais primitivos na

    relao analtica. Revista Brasileira de Psicanlise, 38(4), 867-883.

    Mattos, J. A. J. (1992). Entrevista com Bion. Revista Brasileira de Psicanlise, 26(3),

    443-464.

    Mondrzak, V. S. (2007). Processo psicanaltico e pensamento: aproximando Bion e

    Matte-Blanco. Revista Brasileira de Psicanlise, 41(3), 118-134.

    Rezende, A. M. (1995). Wilfred R. Bion: uma psicanlise do pensamento. Campinas:

    Papirus.

    Rezze, C. J. (2006). Aprender com a experincia emocional. E depois? Turbulncia!

    Revista Brasileira de Psicanlise, 39(4), 133-147.

    Sandler, P. C. (1988). Introduo a Uma Memria do Futuro. Rio de Janeiro: Imago.

  • Sapienza, A. (1992). Uma leitura psicanaltica de Bion: cinco tpicos clnicos. Revista

    Brasileira de Psicanlise, 26(3), 301-312.

    Sapienza, A. (2009). O arquelogo da mente. Viver Mente & Crebro: Memria da

    Psicanlise, 6, 36-41, 2009.

    Sapienza, A. & Junqueira Filho, L. C. U. (1997). Eros tecelo de mitos. In M. O. A. F.

    Frana. (org.). Bion em So Paulo: Ressonncias (p. 185-200).

    Zimerman, D. E. (2004). Bion da teoria prtica: uma leitura didtica. 2. ed. Porto

    Alegre: ArtMed.