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Reportagem sobre o Douro, com texto de Carla Maia de Almeida e fotografias de Guto Ferreira. Publicado na Notícias Magazine, a 23/8/2009.

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Douro

REPORTAGEM

O que é que o Douro tem? Quase tudo,menos golfe e praia. ¬Nem épreciso.¬Porque pode tornar-se um destino perfeito,se conseguirsomar em vez de dividir,em benefício de uma imensa diversidade:paisagens superiores,um rio para navegar,património histórico e ar-queológico,quintas onde se produzem bons vinhos e onde não chegao desassossego da civilização.¬E o melhor:as pessoas.Gente quegosta de conversar e de receber,sem artifícios. ¬ Estivemos uma se-mana no Douro e achámos pouco,muito pouco.

TEXTO Carla Maia de Almeida ¬ FOTOGRAFIA Guto Ferreira

Sete dias no

Amesma estrada em quearriscámos a pele, a EN222, acabou por condu-zir-nos às portas da Via

Láctea, onde só os cometas abusam dos li-mites de velocidade. Para avistarmos o fio deestrelas outrora seguido pelos romeiros atéSantiago de Compostela, com paragem nasterras abençoadas de Lamego, é preciso veras muitas luzes do mundo a apagarem-sesob o amplexo da noite. Não é fácil consegui--lo, mas também por isso estamos no Douro.Mais precisamente na Quinta Nova de Nos-sa Senhora do Carmo, uma propriedade se-tecentista do Cima Corgo, a meia hora dedistância do Pinhão. Para aqui chegar, en-

frentámos um engarrafamento de autocar-ros turísticos (bastam três veículos de gran-de porte para causar um tumulto no Pi-nhão) e percorremos uma estrada aos «es-ses» que se aconselha a fazer de dia e livrede influências etílicas. Para trás ficou a já ci-tada EN 222, que apanhámos à entrada daRégua, num cruzamento manhoso com vis-ta para o posto em ruínas da Junta Autóno-ma de Estradas. Não é coisa bonita de se ver.Tal como não é bonito ver o lixo a enfeitaras silvas nas encostas ribeirinhas ou as de-zenas de carros estacionados em segundafila, ao longo de uma via que tem tudo paraser – mas ainda não é – uma fabulosa rotapanorâmica sobre o Douro.

Para já, aproveitamos a temperatura sua-ve de uma noite de Verão, nem sempre pos-sível face às amplitudes térmicas durienses.Comprada em 1999 pela família Amorim,recuperada e inaugurada em 2005, a Quin-ta Nova é um dos projectos ligados ao enotu-rismo que estão a propor o Alto Douro comoum destino alternativo de férias ou de fim--de-semana. Fora das estradas mais percor-ridas, pareceu-nos o lugar perfeito para uminterregno de descanso. Trocamos facil-mente o acesso à internet por uma hora noalpendre com vista para as vinhas e o rio.Trocamos ainda mais facilmente a televi-são por um estiramento nos sofás brancosjunto aos ciprestes, sobretudo se estiver-

Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo,enoturismo na região demarcada do Douro.

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te estes números. Israelitas e brasileiros fa-zem parte das novas nacionalidades emcrescimento, mas o tempo médio de estadacontinua a ser escasso: cerca de um dia emeio. É pouco, quando há tanto para conhe-cer e experimentar.

O modelo das quintas, não sendo para to-das as bolsas, é defendido por Ricardo Ma-galhães, chefe de projecto da Estrutura Mis-são Douro, como um pólo agregador do de-senvolvimento turístico da região. A razãoprende-se com o facto de estas serem «umamatriz identitária da paisagem vinhateira»,com capacidade para representar uma ofer-ta hoteleira que não classifica como «de eli-te», mas «qualificada». Calcula que existamcerca de sessenta quintas, contando com asassociadas à Rota do Vinho do Porto, embo-ra nem todas disponham de meios de aloja-mento ou estejam vocacionadas para o eno-turismo. Um dos mais recentes empreendi-mentos, inaugurado em Maio, é a Quinta doPégo, propriedade de uma família dinamar-quesa investida na importação e comercia-lização de vinhos de todo o mundo. Ro-deiam-na trinta hectares de vinha em bor-dadura (com os socalcos separados poroliveiras), mas a produção de vinho e deazeite não é feita ali. Alcandorada numa en-costa a 138 metros de altitude, com a melhor

vista sobre o rio que nos foi dada a ver, trans-formou-se num hotel de quatro estrelas comdez quartos, sendo maioritariamente pro-curada por estrangeiros.

Outro conceito de alojamento diferentedas quintas, mas igualmente apostado na

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mos acompanhados por um Vintage Portoda casa. Para os mais radicais, sugere-seuma partida de mikado (quem se lembra domikado?) ou a leitura de um coffee tablebook, à disposição nas várias salas de estar,amplas e confortáveis.

Situada no meio de uma propriedade de120 hectares, 85 dos quais de vinha, a QuintaNova de Nossa Senhora do Carmo foi buscaro nome à padroeira da capela construída noséculo XVII, junto à margem do rio, numa zo-na onde os naufrágios eram frequentes. Por

ali passa um dos três circuitos pedestres aces-síveis a hóspedes e a visitantes. Não subesti-me as distâncias do mapa nem o declive doterreno. É preferível começar por um pontoalto como o Pomar Romano e descer até à ca-pela; caso contrário, arrisca-se a naufragarde cansaço no meio do vinhedo e não haveráSenhora do Carmo que lhe acuda. Além dospasseios a pé ou de bicicleta (não são permi-tidos jipes à desgarrada), as propostas ligadasao enoturismo incluem visita à adega, segui-da de prova de vinhos do Porto e do Douro,com base nas três marcas aqui produzidas:Três Pomares, Grainha e Quinta Nova deNossa Senhora do Carmo. Estão para breveos programas de um dia nas vindimas e, por45 euros, pode trabalhar-se até à hora de al-moço e gozar a boa vida no tempo restante.

A matriz das quintas do DouroNos últimos cinco anos, tem crescido a ofertade alojamento no Douro, em quantidade equalidade. Os últimos dados tratados peloInstituto Nacional de Estatística reportam a2007 e referem mais de 228 mil dormidasanuais (contra 137 mil em 1997), 82 por centoprotagonizadas por portugueses, seguindo--se os espanhóis, ingleses e franceses. Entre-tanto, a expansão dos cruzeiros fluviais, coma Douro Azul à cabeça, já elevou ligeiramen-

Quinta do Pégo, um dos projectos de hotelaria mais recentes no Douro.

Jardins e pomares bem cuidados são um dos atractivos da centenária Casa de Santo António de Britiande.

Francisco Abrunhosa,da Casa de Gouvães,

aponta a «falta dedivulgação» como umproblema que começanos próprios agentes

turísticos da região:«Não vejo grande

motivação de parti-culares e algumas

entidades em darem a conhecer o Museudo Douro. O turismo

tem de criar e deixarvalor na região.»

Comboio histórico ou regional?Pela paisagem, não há dúvida: melhorserá eleger o comboio regional que fazvárias vezes por dia o percurso de ida evolta da Régua ao Pocinho, a última dasestações da linha do Douro. Paga 11euros e tem direito a carruagensdesconfortáveis e pouco limpas, quepodem ir apinhadas de turistas regres-sados dos cruzeiros. Pela experiência,também não há dúvida: o comboiohistórico é único. Sai aos sábados àtarde, de Maio a Outubro, e vai da Réguaao Tua, com paragem de vinte minutosno Pinhão, para fazer compras na WineHouse. Locomotiva a vapor, muitofumo, bancos de madeira, músicatradicional, muito fumo, um chisco debola de carne e um fundo de vinho do

qualidade global, é a Casa de Gouvães, a qua-tro quilómetros do Pinhão. Ideal para famí-lias ou grupos de amigos (acolhe entre seis enove pessoas), chega-se lá por uma estradasecundária de vistas largas que sobe serra aci-ma, e não é caminho para agradar ao turistajaponês. À saída do Pinhão, certifique-se ape-nas de que vai na direcção de Sabrosa e não deAlijó/Favaios. Plantada na bifurcação, existeuma linda magnólia cujos ramos cresceramaté cobrir as placas indicativas. Talvez sejauma estratégia da autarquia para nos obrigara sair do carro e observar de perto as árvores,tão maltratadas andam por esse país fora.

A «questão da má sinalética» seria umpalavrão recorrente ao longo da semana,reunindo consenso entre quem se senteprejudicado por não estar visível e quempretende chegar ao seu destino. Segundoum estudo do CED – Centro Mundial deExcelência de Destinos, ligado à Organiza-ção Mundial de Turismo, a sinalização éum dos pontos negros do Douro, a juntarao lixo disperso na paisagem e à desinte-gração da identidade das aldeias. Não poracaso, alguns quilómetros depois, iremosencontrar Francisco Abrunhosa literal-mente às voltas com o sinal que indica o ca-minho para Provesende. O tubo metáliconão aderiu ao cimento, ou vice-versa, e di-gamos que Provesende está agora entre-gue à sorte, acomodando-se aos pontoscardeais conforme lhe dá o vento. «Isto é osuficiente para perder mais umas dezenasde visitantes ao fim-de-semana», diz, ten-tando virar a placa para o sítio certo.

De Gouvães a ProvesendeFrancisco Abrunhosa, primo do músico como mesmo apelido, é responsável pela gestãoda Casa de Gouvães e mais do que isso. Em2006, topou com uma ruína na aldeia de Gou-

Porto no copo. Muito fumo. Ida e volta, a viagem demora duas horas e vinteminutos. Por 42 euros por pessoa, a CP podia oferecer melhor.

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vães do Douro e logo ali acreditou no «tre-mendo potencial» que tinha à sua frente. É preciso ver as fotografias iniciais para per-ceber que estamos perante um homem de fé.Durante mais de um ano, veio do Porto paraacompanhar a equipa encarregada da re-construção, que de vez em quando lá volta pa-ra mostrar a outros a obra feita. A recuperaçãodo património edificado é um dos motivospor que está no Douro: «Queria deixar aquialguma coisa que perdurasse no tempo.»

Obteve investimento financeiro junto deum casal francês residente em Macau e en-tregou o projecto a um arquitecto de VilaReal, Vivaldo Carrilho da Fonseca. Assim nas-ceu uma casa de campo disposta em socalcos,na confluência da traça rural com as linhas eos atractivos contemporâneos. Distinta, semchegar a ser luxuosa, não lhe faltam comodi-dades como o sistema Hi-Fi, DVD e SportTV,sendo também notório o culto dos pormeno-res. Do périplo pelas lojas e feiras de antigui-dades e velharias, Francisco Abrunhosatrouxe objectos que merecem agora honrasde exposição. Na parede, em molduras envi-draçadas, há envelopes de antigas casas co-merciais: Thiago Augusto Alberto de Almei-da, «especialidades em enchidos e paio dolombo»; Amorim, Coelho & Feio, Lda., «todosos artigos de confeitaria». Uma delícia.

Assistida por uma governanta incansável,que tem a seu cargo os pequenos-almoços eoutras refeições a pedido, o que falta à Casade Gouvães é reconhecido pelo seu mentor:«O Douro precisa de um alojamento de qua-lidade, não massificado, que providencie umconjunto de serviços além da simples dormi-da. Eu não tenho estrutura para muito mais,mas estou preocupado com os meus hóspe-des. Enviei muitos e-mails e cartas a entida-des da região que fazem animação turística enão me responderam.» Uma das quintas, queprefere não nomear, deu-lhe como troco alista de vinhos à disposição para venda ao pú-blico. «Falta atitude e consideração», subli-nha, «e é também por causa de respostas des-te género que o Douro tem um problema sé-rio de divulgação.» De vez em quando, senteo voto de desconfiança lançado a quem vemde fora, «uma característica marcante dotransmontano». A juntar ao «individualismoportuguês», tem como resultado o que está àvista: uma falta de informação articulada quedesorienta o turista e concorre para o des-perdício de recursos a todos os níveis.

Um atalho leva-nos de Gouvães a Prove-sende, aldeia histórica que atingiu o apogeuno século XVIII e mantém até hoje um gran-de número de casas brasonadas. Os fundosda Comissão de Coordenação e Desenvolvi-

mento Regional do Norte serviram parauma operação de requalificação nas ruas enas fachadas dos edifícios, mas há fios eléc-tricos a irromper das paredes e varandas degranito polido que desfiguram o conjunto.Os acabamentos irão alguma vez ser acaba-dos? De Provesende, regressaremos ao Pi-nhão com os enchidos das Papas Zaide emboa memória: o presunto, o salpicão raiado,a carne de porco curada e fumada… Por serdomingo, não havia pão fresco na PadariaFátima, casa de 1940 onde existe, contam--nos, o maior forno de lenha do concelho deSabrosa e do distrito de Vila Real. Tambémpor ser domingo, estava fechado o posto deturismo, um problema nacional, exemplo tí-pico de como a lógica institucional funcionaao contrário das vulgares expectativas deum cidadão em férias.

Aldeias nem sempre em festaProvesende, Barcos, Favaios, Salzedas, Tre-vões, Ucanha. O portal das Aldeias Vinhatei-ras do Douro continua online, mas as notíciasdo festival que há dois anos animou as seisterras integrantes do projecto não tiveramcontinuidade. Talvez este ano regresse, senão faltarem os fundos comunitários. NaUcanha, onde chegámos depois de cruzadoo rio para a margem esquerda, há quem selembre bem da festa que trouxe dança e ar-tes circenses às ruas, puxando o brio da po-pulação, logo ali animada para mostrar o seumelhor. No caso de Maria Adelaide Costa, aDelaidinha, são doces, geleias e compotasque dantes se diziam «caseiros» e hoje são«biológicos». Uma montra onde cabem osabugueiro, o medronho, a maçã bravo-de--esmolfe, o pêssego, o damasco, a pêra, a la-ranja e outros frutos retirados aos seus po-mares. Vende saquinhos de pano e de se-rapilheira, e também chás e infusões paravários males: oliveira para a hipertensão,hortelã-mouriscada para as dores de cabe-ça, carqueja para digestão e para o arroz decoelho, que uma coisa até ajuda a outra.

Adelaide Costa é uma mulher de armas.Casou-se ainda aos 16 e enviuvou dez anosdepois de um homem que «foi um pai, umamigo e uma paixão». Não é preciso maisnada para se ser feliz e nada foi com o que fi-cou, exceptuando duas filhas pequenas, en-tregues a um colégio no Porto antes de emi-grar para França. Aprendeu francês «com osolhos», quando a patroa abria os armários elhe soletrava o nome das coisas. Lembra-sedaquela vez em que lhe pediu arroz para ojantar, e ela, aflita, sem saber o que era «o ri,o ri», pensou que a patroa queria vê-la a rir--se, vá lá perceber-se porquê. De volta a Por-tugal, sobreviveu a um segundo marido e auma doença cancerosa, e então pôs-se a fa-zer doces como terapia. Aos 65 anos, refor-mada, afirma: «Não estou aqui para ganharpara comer, estou aqui por causa da minhadoença. Gostava de morrer e ver que as pes-

O Aquapura Douro Valley,o restaurante DOC e aQuinta do Seixo foram osvencedores ex aequodos prémios do Turismode Portugal para melhorprojecto privado. Antigamansão ligada à Quintada Pacheca, o AquapuraDouro Valley renovou osinteriores, numa linhaentre a sobriedade es-candinava e um certoexotismo oriental.Insere-se num conceitode hotelaria de luxo emque o spa é a grandemais-valia, estando

acessível a hóspedes eao público em geral, talcomo o restaurante.Nesta matéria, o DOCcontinua a ser o trunfoimbatível da região,conciliando uma cozinhade inspiração regionalcom a visão de autor dochef Rui Paula, à frentede uma equipa jovemque surpreende peladescontracção. Desde oDOC, ir à Folgosa passoua ser um capricho comjustificação óbvia. Maisperto do Pinhão, e aindana famigerada EN 222,

encontra-se a Quinta do Seixo, propriedade da empresa líder do mercado nacional devinhos do Porto, a Sogrape. Não se tratade alojamento emespaço rural, mas de umprojecto de enoturismocontemporâneo e estilizado. Durante asvindimas, a visita guiadaconduz aos lagares emactividade, antes determinar numa sala deprovas que é umautêntico belvederesobre o Douro.

Reorganização do Turismo do Douro Um pódio para três: DOC, Aquapura e Quinta do SeixoResponsável pela promoção turística de 19municípios, de Mesão Frio a Freixo de Espa-da à Cinta, António Martinho preside, desdeJaneiro de 2009, ao que era antes uma in-compreensível manta de retalhos. Com areorganização iniciada em 2008, o Turismodo Douro é hoje «o resultado da junção deduas ex-regiões de turismo, Douro Sul e Ser-ra do Marão, da Junta de Turismo de Caldasde Moledo e ainda de três municípios da re-gião do Nordeste Transmontano. Agregou--se a estes o município de Foz Côa, que nãointegrava nenhuma região de turismo, infe-lizmente, e por isso a dinâmica à volta dasgravuras nunca se consolidou». AntónioMarinho ainda não teve tempo de pôr emprática um plano de marketing capaz deproduzir os folhetos e mapas que rareiamem todo o lado, mas considera uma vitória a

abertura dos postos de turismo aos domingos em Vila Real, Régua e Lamego. Comoprioridades, refere a sinalização e a reconversão da EN 222 em estrada panorâmi-ca, dois estudos adjudicados pela Estrutura Missão Douro em fase de conclusão.Até ao final do mandato, em 2013, quer atingir o objectivo de trazer ao Douro meiomilhão de dormidas anuais, o dobro da cifra actual. Para muito breve, entre 9 e 13 deSetembro, prepara-se o primeiro festival de cinema internacional, Douro Film Har-vest (www.dourofilmharvest.com), que terá lugar em Vila Real, Lamego, Moncorvo eSanta Marta de Penaguião. «Estamos a pensar levar depois os filmes vencedores aoutras localidades, preparando o festival seguinte», afirma. «Se a população é rare-feita, não podemos esperar muita gente, mas é bom que as pessoas de cá tenhamqualidade de vida e acesso à cultura. Os públicos fazem-se.» Quinta do Seixo, um complemento às tradicionais caves da Sandeman.

O Aquapura Douro Valley manteve a arquitectura exterior da antiga quinta e integrou novos edifícios sem prejudicar o conjunto.

soas se deitassem a fazer qualquer coisa, co-mo eu fiz. A vida agora está melhor para unse pior para outros, mas as pessoas queixam--se na mesma.»

As casas recuperadas da rua mais íngremeda Ucanha, cores garridas e paredes de lou-sa em escamas, escondem uma pobreza en-vergonhada. Não há muito para fazer, aqui,e o recurso voltou a ser emigrar, como acon-teceu com Arlete, de quem nos falhou a no-ta do apelido. Mas é fácil encontrá-la: até No-vembro, Arlete, 21 anos, corpo de 15, divide--se entre o posto de turismo e as visitasguiadas à Torre de Ucanha, ex-líbris da ter-ra, juntamente com a ponte dos séculosXII/XV. É um emprego de férias, findo o qualregressará a Davos, na Suíça, onde trabalhaem hotelaria. Claro que gostaria de estudarHistória, mas onde iria arranjar emprego? A avaliar pelo estado da torre, aparentemen-te bem conservada, mas com o interior aoabandono e preenchido por um arremedode espólio etnográfico que se confunde comlixo, parece que ninguém se importa muitocom a dignidade de um conjunto classifica-do como Monumento Nacional.

Na Rotas das Vinhas de CisterDa margem direita para a margem esquerdado Douro, atravessando o viaduto de betãoda A24 em direcção de Lamego, a mudançana paisagem é quase abrupta. Os planaltosxistosos trabalhados pela mão do homem,

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pessoas são recebidas pelos donos da casa,essa é a marca. E têm também a oportuni-dade de obter informações sobre a regiãoque não existem noutro tipo de alojamentomassificado.» Numa casa de fachada qui-nhentista, cuja frescura se mantém com aajuda da vinha virgem que cobre as paredes,existem quatro quartos decorados combom gosto, combinando elementos tradi-cionais portugueses e um certo aconchegovery british. São exclusivos para casais. AnaMaria Pinto Ribeiro leva a sério «o concei-to de tranquilidade total» e encaminha asfamílias com filhos para duas suites espa-çosas exteriores à casa, perto da piscinaonde se serve o pequeno-almoço no Verão.Desde os jardins relvados com árvoresfrondosas até à zona de pomares, não faltaespaço para brincadeiras – haja pais dis-poníveis e crianças ainda não viciadas emjogos electrónicos.

A cerca de dez minutos da Casa de SantoAntónio de Britiande fica a Casa dos Viscon-des da Várzea. Foi outro tanto para atraves-sar um dos caminhos da propriedade de 180hectares, findo o qual deparámos com umaalameda de cedros e castanheiros imponen-tes. Também imponente é a mansão senho-rial convertida em hotel rural com «muitosquartos», certamente dos maiores na região.«Muitos quartos», desculpe o leitor a impre-

cisão, é tudo o que podemos adiantar. A in-formação não está disponível na internet enão tivemos tempo de inquirir a proprietá-ria, Maria Manuel Cyrne, que apressou ofim da entrevista ainda mal tínhamos co-meçado. Aparentemente, não gosta de serquestionada sobre um conceito que pode-ríamos chamar de «hotel rural comercial»[ver caixa], dada a profusão de objectos de-corativos para venda. Nada contra, mas per-guntar faz parte da profissão. Registámosuma das suas frases mais simpáticas: «Sequerem minimalismos, vão ao Aquapura.»Foi o que acabámos por fazer.

Novos enólogos e produtoresUma paragem em Lamego para comprar afamosa bola recheada levou-nos até à SéGourmet, loja de gastronomia, vinhos e ar-tesanato de João Rebelo. Professor de Mi-croeconomia e Econometria na Universida-de de Trás-os-Montes e Alto Douro, fala-nosda «revolução silenciosa» ocorrida no Dou-ro, com a reconversão tecnológica das estru-turas de produção da vinha e a chegada deuma nova geração de enólogos. «A universi-dade teve aqui um papel determinante, apartir do momento em que surgiu o curso deEnologia, a única licenciatura do país nesta

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onde impera a geometria das vinhas traba-lhadas em socalcos, patamares ou ao alto,dão lugar a terras mais húmidas e mais ele-vadas, férteis em pomares, soutos e árvoresde folha persistente. Nestes vales assenta-ram os monges de Cister, impulsionadoresdo desenvolvimento da região desde o sécu-lo XII. Dão nome à rota dos vinhos que se dis-tingue pelos seus brancos frescos e espu-mantes, com as Caves da Murganheira entreas maiores atracções locais.

Em matéria de património há tambémmuito para ver: o Convento de São Pedro dasÁguas, em Tabuaço; as igrejas matrizes de

Tarouca e Armamar; os mosteiros de Salze-das e de São João de Tarouca; o castelo, a sée o Santuário de Nossa Senhora dos Remé-dios, em Lamego. São alguns dos lugares re-comendados por Ana Maria Pinto Ribeiro,sempre que algum hóspede da Casa de San-to António de Britiande solicita informação.«Entre Lamego e Penedono há uma con-centração notável de património religioso,militar e civil», salienta, lembrando os pro-blemas de conservação «gravíssimos» queatingem sobretudo os mosteiros: «Há aquiduas tutelas que nem sempre estão de acor-do, a igreja e o Instituto Português do Patri-

mónio Arquitectónico. E depois há os pe-quenos poderes locais, que são poderosíssi-mos e estão cristalizados há muito tempo.»Mantendo o olhar crítico, deixa transpare-cer o optimismo: «Apesar de todas as dife-renças que existem nas várias regiões doDouro, estamos ligados por uma cultura debase. Há muito trabalho a fazer, mas já co-meçámos, com esta reorganização das re-giões de turismo.»

A Casa de Santo António de Britiande en-quadra-se noutra categoria de alojamentotambém alinhada com a identidade históri-ca do Douro: o turismo de habitação. «As

DOUROde António Barreto Edições Inapa, 1993«É talvez a região portuguesa so-bre a qual mais se escreveu, so-bretudo no século xIx e princípiosdo actual», diz o autor, ainda nabadana da obra. Publicado em1993, continua a ser um livro decabeceira para quem queira co-meçar a entender o Douro – o rio,a região, a história, as pessoas,os trabalhos, as localidades. As

itinerários a pé, para que nemtudo se deixe perder. Tâmega,Corgo, Tua, Sabor, Barca d’Alva. E outros daí em diante, para sul,sempre a dizer adeus ao comboio.

BARCA VELHA HISTÓRIAS DE UM VINHOde Ana Sofia Fonseca Dom Quixote, 2004Porque numa reportagem é rarocaber tudo o que se quer contar,há quem prolongue a escrita em

Seis sugestões de leitura à margem da ficção

A casa principal da Quinta do Vallado pertenceu a uma das figuras míticas do Douro: Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha.

Francisco Spratley Ferreira e João FerreiraÁlvares Ribeiro, da Quinta do Vallado.

Maria Manuel Cyrne ésenhora de umapersonalidade forte edeterminada, graças àqual foi mãe aos 50 anose recuperou apropriedade arruinadada família. Tudo isto emuito mais ficámos asaber mal cruzámos asoleira da porta, nos dezminutos mais animadosa que tivemos direitonesta reportagem. A partir do jantar, caímosem desgraça. À nossahesitação perante amesa posta no piorcanto da varanda, ondeacabámos por ficar nacompanhia dos mosqui-tos e outra bicharadanocturna, responderam--nos que tinha sidopreparada «com muitocarinho». Acontece queum hóspede não precisade «carinho», para isso

tem a família e os amigos.Precisa, isso sim, deprofissionalismo, discri-ção e gentileza. Precisaque lhe perguntem seprefere ou não jantar aoar livre. E que isso nãoseja comentado desde arecepção até à cozinha,e muito menos interpre-tado como uma ofensapessoal. Mas a Casa dosViscondes da Várzea éum hotel rural que é umacasa particular que éuma loja de decoração, edesta mistura de concei-tos surgem mal-entendi-dos. Quase não há móvelou bibelot que não estejaà venda; os preços estãomarcados por baixo enem a mesa do pequeno-almoço é sagrada.Quando perguntamos aMaria Manuel Cyrne se atodos os hóspedes temagradado esta ideia, a

resposta sai lapidar eofendida: «Toda a genteadora! Nunca ninguémse queixou.» Não éverdade. Ainda no diaanterior a secretária nosfalara de um senhor quesaiu a reclamar,argumentando queesperava uma coisa elhe saíra outra. «Era umlouco!» Então porquê?«Entrou aqui de chapéu!Já viu o que é alguémentrar em sua casa dechapéu?» Está explicadaa confusão. Nem vamosfalar do jacuzzi avariado,das teias de aranha noquarto e dos dejectoscaninos à porta. Fique oleitor avisado: comporte--se como convidado, nãoreclame, faça muita ceri-mónia e trate logo decontar a sua vidinha.Apostamos que serámuito bem recebido.

O estranho caso dos viscondes da Várzea

fotografias vintage de Alvão eEmílio Biel juntam-se às imagenscontemporâneas de MaurícioAbreu, algumas já impregnadasde uma nostalgia prematura.

RUI PAULA UMA COZINHA NO DOUROQuidNovi, 2009Eis o recente vencedor do prémiopara melhor primeira obra de gastronomia dos GourmandWorld Cookbook Awards, a que

concorreram mais de seis millivros. As fotografias de NelsonGarrido valeram-lhe também o terceiro prémio na categoria de melhor fotografia. Com textosde Celeste Pereira, termina comas receitas do chef Rui Paula.

PELAS LINHAS DA NOSTALGIA de Rui Cardoso e Mafalda CésarMachado, Afrontamento, 2008Sem perder de vista as linhas fér-reas abandonadas, sugerem-se

livro, num namoro sedutor entre ojornalismo e a literatura. Com pre-fácio de Francisco José Viegas,aqui se contam «as histórias daHistória do Barca Velha, o tintoportuguês de excepção» que teveorigem nas terras da Ferreirinha.

GUIA DE MUSEUS DO DOUROFundação Museu do Douro, 2009Um guia indispensável para cal-correar as três sub-regiões do Al-to Douro – Baixo Corgo, Cima Cor-

go e Douro Superior – em buscada sua unidade sociocultural. Nãoficam de fora lugares como aAdega das Giestas Negras, umaadega de xisto do fim da IdadeMédia, perto da Régua, ou o Mu-seu das Curiosidades, em Romeu.

BARÃO DE FORRESTERRAZÃO E SENTIMENTOFundação Museu do Douro, 2008Joseph James Forrester, inglêsde ascendência escocesa,

não se limitou a enriquecer com o vinho. Quis ser umconhecedor engagé da região,registando-a em mapas, pinturas e fotografias. O Museudo Douro fez dele a figura inaugural do seu programa e registou o estudo num catálogo aprofundado. Para breve, idêntico trabalho será feito sobre Antónia Adelaide Ferreira e o marquês de Pombal.

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área.» Outra instituição que está a contribuirpara o crescimento da formação qualificadaé a Escola de Hotelaria e Turismo de Lame-go. Contudo, para João Rebelo, «o turismonão é solução para tudo» nem chega para er-radicar dois problemas sociais que aqui sefazem sentir com acuidade: a distribuiçãoassimétrica dos rendimentos e a perda daspopulações rurais.

De volta à margem direita, perto da Ré-gua, encontramos na Quinta do Vallado umexemplo do esforço de modernização refe-rido por João Rebelo. Uma das mais antigasquintas durienses, construída no início doséculo XVIII, o Vallado passou mais tarde pa-ra as mãos de Dona Antónia Adelaide Ferrei-ra e mantém-se ainda na posse da família, in-do na sexta geração de descendentes. Fran-cisco Olazabal, o enólogo responsável pelospremiados vinhos de mesa brancos e tintos,e ainda dois vinhos do Porto tawnies, trouxe

para aqui o conhecimento científico adqui-rido na Universidade de Trás-os-Montes eAlto Douro. Quando a nova adega e cave es-tiverem prontas, em Setembro, a capacida-de da produção deverá duplicar. No Verão de2010, espera-se também ver aumentada acapacidade de alojamento, com mais oitoquartos e áreas comuns. Até lá, continuam aproporcionar-se provas com tábuas de quei-jos ou enchidos; piqueniques na quinta; re-feições para grupos com marcação prévia eoutras actividades ligadas ao enoturismo.

Francisco Spratley Ferreira e João Ferrei-ra Álvares Ribeiro integram os Douro Boys,um grupo informal de enólogos e proprietá-rios apostados em promover os seus rótulossem vinculações institucionais ou políticas.

Rui Paula e o DOC:o coração à boca

«Os fumeiros, o azeite, ascarnes, os milhos, os legumesda época. O que o Douro tem demelhor, eu aproveito.» Para RuiPaula, chefe do restauranteDOC, tudo que vai à mesa «temde ser bom», no sentido maisamplo e quase filosófico dotermo. O apuro estético decada prato conjuga-se comuma ética do paladar queaspira ao que é honesto everdadeiro. A cozinha da avóserve-lhe até hoje de referên-cia. Da mais singela erva domonte até ao azeite de trufabranca, tudo tem deencontrar o seu lugar numarquivo estudado com oscinco sentidos. «Apesar dehaver sabores que já nãoconsigo recuperar – os dasalgadeira da minha avó, porexemplo –, baseio-me semprena minha memória gustativa.»Mais: «Não acredito emcozinheiro nenhum do mundo,seja ele quem for, que nãosaiba fazer as receitastradicionais do seu país.Cozido à portuguesa, arroz defeijão com pataniscas, umcabrito assado – quem nãosouber fazer isso, não podeelaborar mais nada.» Depoisdo Cepa Torta e do DOC, «eagora que o Douro está a daros primeiros passos», comoreconhece, Rui Paula prepara--se para abrir um novo restau-rante no Porto, cidade ondenasceu, em 1967. Chamar-se-áDOP. Esperem por Fevereiro de2010. Pacientemente.

São também eles os gerentes e anfitriões deuma casa que, sem luxos nem cerimónias,cultiva a arte de bem receber. Parte do méri-to cabe às cozinheiras, cujo anonimato nãoimpede aqui a lembrança de uma deliciosasopa de tomate directamente remetida paraa nossa «memória gustativa», como diria ochefRui Paula [ver caixa]. A verdade é que, ape-sar de tanto se ouvir o chavão «no Norte é quese come bem», não é fácil para o turista incau-to descobrir restaurantes de nível intermédioonde se pratique uma cozinha à altura dospergaminhos da região. Entre a excelência deum DOC e o entrecosto carbonizado que noscalhou num restaurante do Pinhão, a via domeio tem de ser encontrada. Mesmo que te-nha de passar pela EN 222.«

As cores garridas das casas da Ucanha e os doces caseiros da Delaidinha .