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05 CONTOS/J Rodrigues Vieira
Ficção Brasileira/Literatura Brasileira/Livro Digital
ISBN: 978-85-63654-07-6
Diagramação e Arte:
Ana Paula Sousa
Capa:
Parma Direc
Arquivo Digital:
ÁTIMO LITERÁRIO
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J RODRIGUES VIEIRA3
DO AUTOR
Não poderia perder o material já escrito e descartado dos outros trabalhos.
Algumas modificações foram necessárias nos textos que formaram 05 CONTOS.
Apenas A CASA AZUL e LADOS E LADEIRAS NO TERREIRO DA HISTÓRIA, foram
escritos especialmente para o trabalho. CENAS NO INVISÍVEL LARGO URBANO,
não sofreu mudanças significativas, apenas sua personagem foi extraída do
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romance ESTAÇÃO 94. Também CANTO DE UM AMOR SEM CORAGEM, que estava
ambientado numa favela na Zona Sul de São Paulo no mesmo romance, passou
aos arredores da Central de Abastecimento de Salvador; enquanto CORTEJO
MISERÁVEL, que se passava num pequeno vilarejo baiano em CERRO EM
CHAMAS ENCANTADAS, foi adaptado para o sertão mítico.
A excitação e emotividade do conto me agrada. Por vaidade gostaria de
assinar como contista — e tenho me dedicado a isso. Como os outros trabalhos,
05 CONTOS é um caderno de aprendiz.
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CENAS NO INVISÍVEL LARGO URBANO
espercebido, um velho miserável se arrastava em trapos pelas
calçadas do centro fervescente no labirinto urbano de uma cidade
viva. Passava pouco do meio-dia depois de uma manhã cansada em
lembranças angustiantes de um amor que insistiam numa complexa dimensão
de espaço-tempo. Seu olhar sereno e aflito lhe trazia o véu dos últimos minutos
de um amor adolescente. Era como um encanto suspenso...
DEm milhões de pingos não vistos pelas ruas frias que se desenhavam
distantes, lágrimas se perdiam numa chuva miúda e insistente. Em silêncio
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cortante pareciam flutuar num fim de tarde na invernia cinza que baixava sobre
seus corpos sãos. Não poderia ser mais delírio o que já era uma manifestação
poética na flor dos anos. Não poderia ser segredo o que estava desenhado nas
ruas frias num fim de tarde. E assim se fazia o fim pelas ruas de um cenário
envolto na tristeza invernal perto da noite.
Não compreendiam o começo, também não lhes interessavam o que poderia
ser a intensidade que lhes queimava os sentidos num entusiasmo avassalador e
excitante. O amor se manifestava em tesão e ternura na flor dos anos com o
doce sabor dos beijos lascivos e leves numa descoberta intensa.
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Quando não estavam juntos, os ponteiros se arrastavam e o tempo passava
lento. Quando se encontravam, as horas aceleravam como o pulsar de seus
corações. Os riscos mais visíveis lhes pareciam simples desafios sem limites.
Equilibravam suas vontades no fio nu entre o prazer e o pecado nas tardes de
junho. Corriam livres pela cidade numa estação de inverno. E a cada estação de
parada, máquinas lhes transportavam para o céu de rosas sem o planto dos
mistérios e a incerteza dos milagres. As imagens passavam rápidas através do
vidro de segurança como uma tela viva. Vidas em cores neutras e movimentos
retardados sem importância.
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Buscavam os leves raios de sol que banhavam o parque central de luz.
Alimentavam-se de olhares carinhosos e contatos suaves ao sabor em êxtase.
Flutuavam adormecidos numa paixão sem culpa e uma vontade sem medo e
maldade. Eram flores dentre outras numa beleza exposta.
De impulso espontâneo e alheio à razão, se descobriram numa outra tarde de
encanto. Em febre experimentaram o grande prazer dos sentidos na inviolável
sala de reverências. Não sentiram remorso nem contrição após o clímax.
Extasiados acreditaram no para todo o sempre desejo adolescente... Nos
bilhetes recortados e lançados no tempo, as palavras postas definiam tão boa
manifestação em decurso na flor dos anos. Imprimiam signos sensíveis no
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concreto armado de uma cidade acesa em suas muitas faces. Espalhavam
essências aromáticas nas tardes frias de junho...
Meu amor em segredo amanheceu cansado
E meus olhos sem brilho encontraram você após uma noite em cor
Como paixão de mel e lua
De pele em flor.
Por tudo amor de intenso instante
Ardente e cortante
Por todo amor em versos livres
Por todo amor segredo intenso
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Amor instante.
Seu amor em segredo amanheceu em dor
E seus olhos suspensos em lágrimas
Buscavam o céu em rosas num beijo de encanto sabor.
Por tudo amor de intenso instante
Ardente e cortante
Por todo amor em versos livres
Por todo amor segredo intenso
Amor instante.
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...Milhões de pingos caiam insistentes numa tarde fria envolta num véu
triste. Um lapso lançou sentimentos adolescentes aos holofotes do julgamento.
Já não era segredo o crime contra a razão aceita. Era o rompimento de um amor
manifestado na flor dos anos. Um encanto suspenso onde arrastava-se em
trapos pelas ruas centrais, o despercebido miserável preso às lembranças de um
amor que insistia numa complexa dimensão de espaço-tempo. Solitário, seguia
para o parque da estação de luz em busca dos fracos raios de sol que aqueciam
os sentimentos envoltos num véu pairando sobre a cidade viva.
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A CASA AZUL
cupando uma das mesas num pequeno restaurante às margens da
estrada de rodagem, dois homens se lançavam ao dilema de seguir
viagem pelas horas mortas, ou se alojarem numa hospedaria anexa
ao ponto de refeição onde estavam. A longa viagem que se submetiam já
perdurava desde as primeiras horas da manhã quando deixaram os galpões do
mercado atacadista estabelecido no porto-seco que se localizava no centro do
Estado. Tinham como destino, um pequeno vilarejo encravado numa depressão
alongada de matas quase inexploradas onde se concentrava vastos bananais.
O
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Isvaldo Feirante, atarracado de bigode basto caído sobre os cantos da boca,
estava ansioso para alcançar o desvio da rodovia, onde entrariam numa estrada
carroçável que destinava ao dito vilarejo; Zino, alto, magro e molestado, pouco
opinava, pois ali estava como agregado para exercer as tarefas que atribuíssem
exercícios de menor inteligência. Assim decidiram então seguir viagem.
Mesmo desconfiando das condições mecânicas do galipão apelidado de
jabiraca, ganharam a malha asfáltica a bordo de uma caminhoneta que tinha a
explosão do motor a base de gás. A noite ia alta, enquanto o veículo cortava o
vento suave que soprava do lado de fora. Uma revoada de insetos noturnos
ocupava os espaços luminosos a medida do alcance das luzes fracas do
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automóvel. Nos pontos mais distantes, vaga-lumes piscavam num bailado de
faíscas como cintilantes estrelas baixas.
Isvaldo Feirante contabilizava introspectivo o lucro que teria devido a
mercadoria já certa de negócio no vilarejo. Quando percebeu o outro cochilar,
tratou de puxar conversa numa tentativa de mantê-lo acordado.
— Acorda, bicho-careta!... Gritou.
O outro se espantou ingênuo e fixou os olhos-grandes no asfalto à frente da
jabiraca que lhes conduziam.
—... Tu até parece um defunto sem choro infeliz!
Isvaldo Feirante sorria imaginando o deliciado lucro. Na carroceria tinha os
mais variados produtos: de vestimentas a embelezadores. Apesar de não serem
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produtos de primeira qualidade, era o que apraziam o povo naquele rincão
esquecido. Pois perdeu as contas das viagens em que fartas negociações se
realizavam. Era recebido com grande entusiasmo nas ocasiões em que
apresentava as novidades da cidade.
Zino já acompanhava o comerciante desde os primeiros tempos, quando
ainda dependiam dos caminhões que vez por outra por ali circulavam para o
transporte da produção local. Por um longo período Zino viajou nas carrocerias
de caminhões num sacolejo atormentador numa estrada ainda sem a cobertura
asfáltica, enquanto seu contratador se acomodava na boleia ao lado dos
condutores. Agora se sentia mais confortável na cabina da jabiraca.
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Sem que esperassem, um outro automóvel ultrapassa a caminhoneta numa
velocidade impressionante e se perde no horizonte — Tu viu? — Perguntou
Isvaldo. Calado o outro permaneceu.
— Tu viu, miserável? Insistiu o comerciante.
Com a voz fraca e engasgada Zino balbuciou um não.
— Já ouviste falar no Carro Encantado?
— Não senhor.
— Dizem que aparece e desaparece de uma hora pra outra, como esse aí...
Contava.
—... Tu viste a mancha de luz vermelha?
Concordou o outro.
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— Seu Lega me contou que certa feita, se viu atormentado pela besta-fera,
ali perto casa azul...
— Deus me livra dessas assombrações, seu Isvaldo!
— Pois ninguém sabe ao certo de onde sai essa criatura... — Contava —...
Acredita-se que na verdade trata-se do próprio demônio em pessoa, que sai das
profundezas em noites de lua cheia e corre pelas ruas dos povoados, só parando
quando chega em seus cemitérios e simplesmente, desaparece. Seria um ser
fantástico metade homem metade cavalo. O barulho dos seus cascos correndo é
motivo mais que suficiente para as pessoas se trancassem em suas casas nesses
dias. Por onde passa, uma matilha de cachorros, e ouros animais o acompa-
nham numa algazarra infernal. Vez por outra ele açoita os cachorros e os
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ganidos são pavorosos. Quando ele pára na porta de uma casa, dá para ouvir
sua respiração demoníaca e nessa hora, a pessoa deve rezar o "credo" para que
ele siga seu caminho, o animal que se atreve a chegar mais perto é açoitado
sem piedade.
Benzeu-se o paio, enquanto o automóvel seguia cortando o vento suave que
soprava numa noite clara e silenciosa cobrindo a imensidão na grandiosidade
fantástica daquela região, onde céu semeado de estrelas refletia a magia íntima
em sua natureza. A bordo na cabina, os homens agora mergulhavam em outros
mundos onde entes fantásticos vagariam em oposto à realidade.
Não tardou para que se confirmassem os temores dos viajantes quando
cacareco de motor a base de gás passou a engasgar numa parte íngreme da
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rodovia. Isvaldo Feirante e Zino, assistiram o motor pifar num solavanco
brusco. A desgraceira caiu de vez com o apagar das luzes do galipão.
— Agora lascou! Lamentou indignado o comerciante.
Estavam na rodovia sobre o clarão da lua. Atordoados miravam o infinito
breu e seus agouros. Na base da força física levaram o veículo até acostamento,
e exaustos sentaram-se na guia lateral da pista. A sinfônica noturna lhes
causava uma sensação inquieta ante a ameaça de um perigo real ou imaginário.
Depois de inúmeras tentativas numa labuta para fazer funcionar os faroletes
da caminhoneta, rogaram aos céus quando viram os pisca-piscas num acende e
apaga sem parar. O relógio caminhava para a hora grande quando ao longe
avistaram um esparge de luz na parte baixa da pista. Animou-se o comerciante,
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deduzindo um socorro providencial. À medida que a luz se aproximava, os
homens agitavam os braços no centro da pista.
— Pula, miserável! Gritava Isvaldo para o toleirão.
De súbito, o suposto automóvel surge e transpassa os dois homens que agora
sentiam um calafrio percorre-lhes os corpos. Aquilo não seria possível, o
suposto automóvel não alcançaria tamanha velocidade num instante; também
não poderiam estar ali após serem atingidos de maneira violenta.
— Tu viste, Zino? Quis saber o comerciante.
Encolhidos fora da pista, os homens inanimados assistiam os faroletes que
piscavam desvanecendo. Isvaldo Feirante consultou o relógio e percebeu os
ponteiros girando sem ordem em seu pulso palpitante.
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Quando os faroletes se apagaram, outras luzes se aproximaram vindas da
parte oposta as anteriores. Os homens buscaram proteção atrás de um barranco
quando um automóvel poderia ser visto desacelerando até parar ao lado da
caminhoneta. Ali ficaram em silêncio.
— Tem alguém aí? Gritou alguém de dentro do automóvel.
Nada responderam.
—... Precisam de ajuda?
— Vai lá, Zino... Sussurrou o comerciante.
— Num sou doido, patrão.
— Tu és covarde...
— Então vai o senhor, que é valente...
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— Eu te pago pra que, infeliz?
— Pra descarregar mercadorias, não tratar com assombração...
Enquanto discutiam sussurrando atrás do barranco, ouviram a porta do
automóvel se abrir. Também notaram quando um homem alto, de corpo
avantajado e chapéu de feltro desembarcar.
— Tem alguém aí? Perguntou novamente o homem, já fora do carro.
— Isvaldo Feirante, meu patrão! Criou coragem e respondeu.
— O que houve, amigo?
— Essa misera emperrou...
— Noite ruim heim!
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Desconfiados, deixaram o abrigo e se aproximaram. Avistaram um
automóvel de longa boleia e carroceria aberta. Presumiram tratar-se de
fazendeiros. Confiante, Isvaldo agora relatava o acontecido. Providenciaram o
cabo a fim de rebocar o galipão até o pátio da casa principal da fazenda, onde
passariam o resto da noite de assombro.
— Eita-pau que tu és mesmo um cagão heim, Zino...! — Bradava e ria o
comerciante —... Onde já se viu ter medo de gente dessa maneira...
— Eu também tenho cu, seu Isvaldo.
— E deve ser um exagero...
Assim seguiam aliviados na cabine da jabiraca arrastada pela malha
asfáltica numa noite alta. Quando deixaram a pista e ganharam uma vicinal
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poucos quilômetros depois, os homens no veículo a reboque avistaram uma
área de terra no alto de um morro com grandes mangueiras de troncos grossos.
— É época de manga... Murmurou Zino.
Ao entrar no terreiro, perceberam que estavam diante a contada e encantada
casa azul. Um palacete suspenso e iluminado em contrastes dignos de
maravilhas celestes aos olhos.
— Já viu, Zino?
— Eita que sentir um frio na espinhela, seu Isvaldo.
— É a casa azul...
Nesse instante, o toleirão quis saber se em algum instante o patrão tinha
visto o rosto do prestativo homem que lhes socorreram na pista.
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— O chapéu e a escuridão dificultavam a visão...
Também não notaram outros no interior da boleia longa da pick-up. Nesse
instante, as portas do veículo rebocador se abriram, quatro sujeitos deixaram a
cabine. Três deles caminharam rumo a varanda da casa de sede, o outro
avançou na direção dos assustados na boleia da jabiraca.
— Os amigos vão passar a noite aí dentro? Quis saber o homem.
— Mas de jeito nenhum! Respondeu Isvaldo no rompante de coragem.
— Então apeie...
Nesse instante, perceberam que o homem alto, de corpo avantajado e chapéu
de feltro não tinha rosto. Deixaram a cabine sustentando os corpos nas laterais
do galipão. Zino teve vontade de correr, mas não encontrava forças.
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— Sosseguem homens, garanto que nessa casa não tem ladrões, pois não se
preocupem com a mercadoria...
Garantia o sem rosto.
— Pois não se preocupe amigo, aqui não tem nada de valor, mercadorias de
quinta pra abastecer aquela gente simples do Taió...
Bambos, seguiram o homem rumo à varanda, onde se encontravam outros
três manipulando cartas de um baralho surrado numa mesa de jogo.
Cumprimentaram e não tiveram respostas. Nesse instante, o anfitrião consulta o
relógio e sinaliza aos outros que de imediato se põem de pé. Aturdidos, Isvaldo
Feirante e Zino sentiram o sinal dos tempos como prenúncio. O homem alto
posicionou ao centro da varanda.
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— Os amigos já sentiram o inferno em vida?
Zino se benzeu novamente, enquanto Isvaldo Feirante se conformou que
estava diante o místico e atemporal manifesto dos ventos que sopram no
destino repugnante. Estavam num dramático jogo de complexa dimensão numa
suposta predestinação.
— É meu caro Zino, não foi uma boa medida viajar pelas horas mortas...
O tambor de um revólver foi girado e fechado. Zino corria o risco da
provável morte. O pobre toleirão abriu a primeira rodada da roleta do destino,
tendo sobre sua cabeça um revólver de cinco câmeras. E cinco vezes o gatilho
foi puxado... Quando a arma disparou, Isvaldo Feirante sucumbiu naquele
turno... Zino tombou mais adiante...
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O tempo se desfez com os primeiros raios da manhã, milhares de flores
pequenas e ordenadas enfeitavam as mangueiras que circundavam a enigmática
casa azul no alto do morro.
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CANTO DO AFLITO AMOR SEM CORAGEM
esceu desorientado, apressado e ofegante pelas ruelas do Barro
Duro antes do meio dia na última sexta-feira de ventos etésios.
Quando alcançou a pista larga nas imediações da Central de
Abastecimento, sentiu uma pontada forte no peito. Olhou acima do paredão
onde se equilibrava pouco mais de uma centena de barracos irregulares num
terreno plano de barro forte, branco e seco, e sentiu uma profunda aflição
percorrer-lhe a alma. Ciel fugia da desgraça que lhe abatera naquele dia infeliz
na rua central da favela. Aquela agonia desarmônica, começou quando
deixaram os carros de frete no depósito nos fundos da Central, e saíram em
D
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busca do quiosque de Agapito instalado ao lado do barranco próximo ao ponto
onde estacionavam as peruas de transporte clandestino, que se destinavam às
praias e ao miolo da cidade...
Tudo aconteceu de repente quando Valdécio deixou escapar um comentário
curto sobre Marilúcia do salão. Já estava na terceira dose amical de cana pura
que Agapito recebia dos melhores alambiques do recôncavo, quando Ciel
voltou ao assunto que dizia respeito à dona do salão de beleza no centro da
favela do Barro Duro nas imediações da Ceasa. Por muito pelejar, Calú
desdisse o que havia comentado o outro — Não era nada daquilo — Vejam que
a jovem senhora em questão, ali chegou no começo da invasão, pouca coisa
trazia com ela, dois filhos na barra da saia e uma alegria irradiante que deixou
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muita gente acesa, e outras sem fiança numa mulher como aquela. Afinal,
Marilúcia, exibia em seu corpo as linhas venustas, um andar endiabrado, um
olhar de braseiro e um cheiro enfeitiçante como uma essência de forte atração
para o sexo. Uma balzaquiana mordaz, vaidosa e faceira de cabelos claros,
longos e macios, olhos de todas as cores e voz melodiosa. Valdécio
pronunciava por entre dentes e com mau humor, pormenores da vida íntima da
gostosona, que desfilava empinada pelas ruelas que cortava os barracos da
favela no alto do barranco, às margens da pista que beirava a Central de
Abastecimento da capital baiana. Logo naquele dia, o resmungão resolveu falar
sobre o imaginado entrosamento da apetitosa com Tonhe Gurgé, o contratador
de fretes que exercia forte influência no conjunto de galpões que abrigavam o
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sistema de distribuição de alimentos de todas as partes. Se tratava de um
vermelhão de tronco avantajado, cabelos levemente encaracolados e aloirados,
e de voz que parecia um trovão quando anunciava ordens. As conversas que
corriam no complexo davam conta de muita gente que sofreu debaixo de surra
na cisma do homem. O próprio Valdécio se deparou com tal situação certa
feita. Nessa ocasião, o desinfeliz resolveu tirar a semana para vagabundear,
assim passou a circular xumberga pelos galpões, aliás de quando em quando,
Valdécio passava dias fora da realidade numa embriagueis sem medida. Tudo
por conta de uma mulher rameira de quem foi amasio pros lados de Areia
Branca — Mas isso não interessa agora — Vamos tratar da surra que o freteiro
levou do contratador. Andava abusando o recinto numa bebedeira infernal, foi
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nesse momento que o vermelhão apareceu justo quando molestava um espanhol
que comercializava na feira de São Joaquim. O feirante, buscava ali nas
segundas-feiras, os produtos hortifrutícolas para o seu negócio. Valdécio era
seu fiel secretário na tarefa de carregar o negociado até a velha perua de
carroceria estacionada nos fundos das instalações de abastecimento. Porém,
naquele dia resolveu aporrinhar o feirante, e naquele mesmo dia o contratador
tava com a moléstia, pois esperava uma nomeação para um desses cargos na
administração, que infelizmente não saiu. Vejam que estava tudo pronto, fez o
que pôde para ajudar o deputado, na hora de receber pelos bons serviços, o
indivíduo se revelou completamente analfabeto de pai e mãe. Calú que o diga,
já sabia da ignorância do homem desde que ali chegou ainda guri no início dos
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anos oitenta. Sempre ficava nas imediações do ginásio em Areia Branca
gavionando as meninas, mas nunca esteve numa sala de aula.
Pois bem, o contratador já havia advertido o beberão, mas como se diz por
aí, bom conselho não rende bons resultados. Resolveu o vermelhão partir para
ignorância que lhe era peculiar. A biaba foi de lascar. E foi ali mesmo, na frente
de todo mundo. O coitado ficou sem beber por quase um ano. Aliás, não se viu
nenhum bêbado por ali por uma longa temporada depois da peia no infeliz. A
notícia da surra no pobre desorientado ganhou as imediações, e o conceito do
bruto aumentou junto aos negociantes, assim passou a exercer a nobre função
de contratador. Atribuição bem articulada. Cada freteiro lhe pagava vinte por
cento em cada carga, dessa porcentagem, quinze por cento ele passava ao chefe
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da fiscalização, que repassava sete e meio por cento ao escritório da gerência, e
os outros sete e meio por cento dividiam entre os demais fiscais. Assim ficava
todo mundo feliz, e os dias mais tranquilos na Central de Abastecimento de
Salvador.
Foi um alívio a partida do inconveniente Valdécio, que subiu o barranco
cambaleante. Os outros dois, Ciel e Calú, por ali ficaram de boa relembrando o
tempo entre um gole e outro na barraca de Agapito.
— Será possível que aquele desgraçado tá metido com a mulher de minha
vida?
Lamentava Ciel, se referindo a conversa de Valdécio. Segundo aquele que já
não estava ali, o contratador andava de conversas com a boazuda lá pros lados
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da administração. Na verdade, o conversador havia visto a mulher ali uma
única vez. Mas como se diz: o povo aumenta e engorda as histórias.
Ciel não achava certo, afinal, há tempos vinha se esforçando para fazer
todas as vontades da beldade que lhe tirava o sono. Foi ele que levantou seu
barraco, botou o salão e estava sempre por perto admirando a balzaca que
deixava em brasa seu juízo.
— Aquele lazarento tá querendo se meter com a mulher de minha vida...
Resmungava teimoso.
— É melhor não se meter com esse miserável, que anda com a porra...
Alertou o camarada.
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Sobre as sombras entrepostas das jaqueiras, bolinhas de gude corriam no
terreno plano, para alcançar o centro do triangulo, onde estavam postas outras
bolinhas para uma partida decisiva depois de uma manhã inteira de acirrada
disputa. Nesta partida, quatro garotos magricelas se perdiam nas horas matinais
sequenciadas no rolar das certeiras jogadas entre os melhores do lugar. Era
início dos anos oitenta nas ruas de terra do Capelão, e ali estava Ciel, Calú,
Valdécio e Tonhe Gurgé. Dois negros, um sarará e um branquelo grandalhão e
desengonçado. O tempo passou depressa como as rápidas e certeiras bolinhas
que corriam pelo terreno plano. Assim, dali seguiam empurrando galeotas pela
Estrada Velha do Aeroporto até a Central de Abastecimento, para defender
alguns trocados como a vida lhes cobrava.
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Ciel e Calú passaram da escola primária do bairro para o recém inaugurado
ginásio em Areia Branca. Na instituição, Ciel não passou mais de um ano
quando foi reprovado na quinta série; Calú seguiu até a oitava e até tentou sem
muito entusiasmo o magistério em Itapuã. De volta a Ceasa, determinou seu
destino na tarefa de freteiro ao lado dos outros — Bom de bola, Valdécio jogou
por alguns anos no Palmeiras do Capelão — Era um lateral esquerdo rápido e
habilidoso. Treinou no Fazendão, na Toca do Leão, vestiu a camisa do Galícia e
teve seus melhores dias no Flamengo de Lauro de Freitas — Foi vencido pelo
álcool e voltou ao duro e prazeroso ofício de freteiro ao lado dos camaradas,
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Tonhe Gurgé, nada aprendeu em sala de aula. Cresceu, botou corpo e se
tornou um brigador exorbitante naquele bairro afastado. Nunca foi bom de
carreto, gostava mesmo era de achanar os outros que se viam obrigados a
dividir o apurado com ele. Sempre viveu explorando e maltratando seus
camaradas. Seu corpo volumoso lhe dava certa vantagem sobre os outros
esquálidos.
O tempo passou, outros foram chegando, habitações toscas surgiam em
todos os cantos naquele lugar afastado enquanto os meninos cresciam... Ciel
até tentou aprender uma profissão na fábrica de móveis que funcionavam
bairro. Descobriu que seu negócio era no burburinho da Ceasa. Gostava do
calor humano, da gritaria e do fervilhar de pessoas. O mesmo caminho seguiu
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os outros: Calú ficou por ali até a morte do pai; Valdécio se enrabichou com
uma rameira que vivia numa ruela nos fundos de Areia Branca até ser expulso
pelos malandretes da área; Tonhe Gurgé depois de muita arenga se tornou
contratador da Central de Abastecimento e continuava a viver tirando proveito
dos outros. Aliás esse último era o único que continuava no Capelão. Invadiu
um terreno no areal onde funcionava o campinho das gloriosas peladas de fim
de tarde, construiu uma casa boa de alvenaria, e agora tinha até um fusca
ferrugento que funcionava aos trancos. Nunca teve um relacionamento conjugal
firme, sua índole violenta afastava qualquer possibilidade. Teve em suas mãos
a moça mais desejada do bairro, filha do gerente da fábrica de móveis que por
ali aparecia vez por outra. Viviam constantemente em pé de briga, e a coitada
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se viu obrigada a sumir dali quando não mais aguentou a mudança de
temperamento do abrutalhado. Isso lhe deixou atordoado, a ponto de ter a
ousadia de tirar satisfação com o pai da moça, que não vacilou e botou a
polícia no pé do desmedido. De polícia ele tinha medo, era até subserviente de
causar pena. Isso, depois de passar três meses no xilindró de Lauro de Freitas,
depois de se meter numa arenga no Itinga. Moeram o brigador no cacete, o
homem ficou gemendo por mais de uma semana numa cela apertada. E pra não
ficar barato, dizem, nada provado, que até comeram o rabo do infeliz.
As palavras de Valdécio tocaram forte o coração de Ciel, a exulcerante dor
mal contida explodiu como o raio, agora estava ali, com o olhar perdido
relembrando o surgimento da favela que se deu no verão de 1984.
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Foi Calú que descobriu o terreno enquanto se arriscava numa caçada de
caixeiro. Tinha uma lagoa boa, o terreno era plano e não tinha nenhuma cerca.
Ele então levou ao conhecimento de Ciel, Valdécio e outros camaradas. Logo
reuniram uma turma e ocuparam o terreno. Assim brotou umas dezenas de
barracos no alto barro duro nos arredores da Ceasa de Salvador.
O batalhão gregal não apareceu para descer o cacete, e eles agradeceram no
terreiro de Pai Didi da Quingoma numa noite de celebração. Gente chegava de
todos os lados, de Simões Filho, Camaçari, Lauro de Freitas, os expulsos dos
casarões do Centro Histórico, até de cidades mais distantes no centro do
Estado, como um fulano malandro conhecido como Paulo Mata Onça de Jequié
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— Aliás, foi esse mandrião o primeiro gaiato a lançar uma léria pra cima da
dona do salão.
Ninguém nunca soube ao certo de onde vinha Marilúcia, alguns se
arriscavam em dizer que era de Cachoeira, Santo Amaro da Purificação ou
Alagoinhas... Outros faziam bico, desdenhando como se desinteressados. O
certo foi que ali chegou numa manhã de quarta-feira de cinza. Trazia dois
filhos homens, o mais velho com seis anos como se supunha, o outro três ou
quatro anos. Algumas bolsas grandes e um aspecto sofrido. O primeiro a
oferecer lhe os préstimos, foi Ciel que voltava da derradeira noite de labuta
segurando cordas para garantir o sossego dos foliões que tinha a sorte de vestir
uma mortalha colorida. Não estava só, Calú e Valdécio estavam por ali, se
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preparavam para comer uma rama no quiosque de Agapito ainda no pé do
barranco. Logo, a mulher que ali apareceu de repente estava alojada num
barraco erguido às pressas num terreno cedido por Ciel na rua central. Aquilo
gerou um bafafá pequeno no início, talvez por inveja das outras menos
agraciadas com tanto apelo libidinoso. O disse-me-disse findou-se quando as
tais passaram a ser atendida no salão de beleza da beldade. Mais uma vez Ciel
foi dedicado, pois ajeitou os primeiros materiais para a esteticista. Coisas
baratas de segunda linha — Era o que dava pra ajeitar com o dinheiro dos
fretes. Aliás trabalhou como um corno naqueles dias. Só não gostava de ver o
tal Paulo Mata Onça de Jequié enfiado o dia inteiro no salão de conversa mole
pra cima da mulher. O pobre acreditava que a tesuda se encantaria com seus
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préstimos galanteadores e sofridos.
O passado de Marilúcia era tão obscuro, quanto à razão de pobres seres que
padeciam equilibrados em barracos no alto daquele terreno irregular. Já estava
ali há quase três anos e nada se sabia de fato da boazuda. Vez por outra se
enfiava nuns trajes mais decentes e sumia pros lados do centro da cidade sem
dizer ao certo para onde se destinava. Seus filhos ficavam na tutela de Ciel,
que lhes queriam bem como pai. O mais velho lhe acompanhava até a Central
de Abastecimento, onde se divertia com o fervilhar de gente; o mais novo,
ficava por ali aos cuidados de uma velha que vivia sozinha no fim da rua.
Ninguém perguntava, ninguém de nada sabia. Ciel não reunia coragem para
falar de seus sentimentos. Bem que a mulher sabia, e também nada falava.
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Agora estava ali, parado, distraído com um olhar perdido voltado para o
passado. O desinfeliz do Valdécio, andava dizendo que a boazuda era cacho do
contratador perverso — Não era possível — Pois o homem nem sabia direito da
existência da esteticista. Quase nunca pisava na favela, aliás, raras as vezes que
foi ali ficou de longe condenando o lugar. Valdécio tava inventando coisas, só
podia...
Naquele mesmo dia, não se aguentando, resolveu sondar o contratador.
Sorrateiramente perguntou ao homem se tinha ido na favela nos últimos dias.
As luzes se avermelharam com a resposta do bruto.
— A única coisa que me interessa naquele lugar miserável, é uma bucetuda
que o povo anda falando...
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O pobre engoliu o líquido amargo que lhe veio a boca e se retirou
envenenado buscando o quiosque de Agapito. Por ali ficou calado até a
chegada dos outros. Valdécio tinha razão, o desgraçado estava rondando a
mulher de sua vida. E agora ele tinha de arrumar um jeito de não ser passado
pra traz. Aquele filho da puta sempre levou vantagem sobre todo mundo. Desde
pivete, a figura terrível do grandalhão lhes impôs o medo. Ganhavam no campo
e perdiam na porrada. Pegava as meninas mais bonitas, tinha as melhores gudes
e sempre escolhia os melhores no campo. Infeliz o que não aceitava jogar de
seu lado, ganhava pau. Na Lagoa do Emídio, os faziam pubar por tardes
inteiras dentro d´água.
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Não aguentou sofrendo o peso da agonia e correu ao centro de Pai Didi da
Quingoma no dia seguinte. Se atirou aos pés do babalorixá, suplicou conselhos
e pediu proteção ao seu guia.
—O que é amor bonito dentro de você, está se tornando ódio terrível, meu
filho...
Fala o pai com a voz serena.
— ...Os homens não escolhem seus destinos... O que constitui a vida de um
homem, resulta de sua vontade...
Ciel escutava quase adormecido.
— ...Não julgue apenas pelo ouve... Não condene apenas pelo que ver...
Faça um pedido instante ao seu guia...
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Ao deixar o centro de Pai Didi da Quingoma, o rapaz estava decidido,
falaria de seu amor para mulher que arrebatou seus sentimentos. Subiu
apressado para favela já próximo ao meio dia. Pelo caminho foi relembrando
dos dias bons naquele lugar. Todos os cantos naquele antigo quilombo lhe
traziam de volta a infância alegre. Conhecia cada coqueiro, cada cajueiro, cada
amendoeira que lhe viram crescer. Seu povo descendente estava ali a mais de
cem anos num eterno sofrimento como a viva herança da senzala silenciosa.
Estava cheio de coragem e ânimo para falar de seu amor. Falaria apenas
assim:
— Marilúcia, quer ser minha mulher?
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Certamente ela diria que sim. Afinal, ela lhe gostava, lhe tinha respeito e
confiança. Depois ele a convidaria para o carnaval que se aproximava.
Celebrariam fantasiados ao cheiro de rosas na praça do povo...
Seguia entusiasmado e cheio de pensamentos bons para a favela do Barro
Duro, assobiando uma cançoneta às margens da pista asfáltica nas imediações
da Central e Abastecimento da capital baiana.
Num choque violento as coisas se avermelharam novamente. Quando
ganhou a rua central da favela, avistou o ferrugento velho e relho estacionado
em frente ao barraco da mulher a quem se derramaria de amor. Era a prova
visível do rabicho do contratador com a tesuda que lhe roubara os sentimentos
— Valdécio não estava errado, ele estava ali encalacrado no barraco da mulher
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...Desceu desorientado, apressado e ofegante pelas ruelas do Barro Duro
antes do meio dia na última sexta-feira de um janeiro quente. Quando alcançou
a pista larga nas imediações da Central de Abastecimento, sentiu uma pontada
forte no peito. Olhou acima do paredão onde se equilibrava pouco mais de uma
centena de barracos irregulares num terreno plano de barro forte, branco e
seco, e sentiu uma profunda aflição percorrer-lhe a alma.
Ciel fugia da desgraça que lhe abatera naquele dia infeliz na rua central da
favela. Deixou para traz sua vontade e se atirou perdido pelos caminhos do
mundo.
Não se teve mais notícias do freteiro de coração de ouro. O pobre rapaz
desapareceu no tempo carregando consigo a dor de um amor sem coragem.
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Admirados estavam Calú e Valdécio no quiosque de Agapito ao saber que a
boazuda do Barro Duro era a irmã bastarda de Tonhe Gurgé, o contratador sem
coração da Ceasa. Outros poderiam aparecer, já que seu pai, mulherengo
demais, rodou até o fim da vida no volante de um caminhão pelo interior do
Estado.
Ao ser abandonada na segunda gravidez, Marilúcia andou nômade aqui e
acolá nos arredores de Salvador. Quando encontrou uma tia abrigada numa casa
de assistência social, soube da existência do irmão que trabalhava Central de
Abastecimento. O que Valdécio viu na área administrativa da Ceasa, foi o
primeiro encontro dos irmãos. Porém, a ignorância do infeliz insistia em não
aceitar a consanguinidade. Mais embrutecido, o contratador andava perturbado
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naqueles dias. Mas, alguma coisa amoleceu seu como o soprar de uma prece,
ele então resolveu procurar a irmã e experimentar o amor fratricida.
Marilúcia, sentiu uma profunda aflição com desaparecimento de Maciel
Bispo dos Santos. Tempos depois, também deixou a favela do Barro Duro e
votou a caminhar aos quatro ventos...
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CORTEJO MISERÁVEL
uma madrugada de sentinela na Rua da Penúria no subúrbio de uma
cidade do interior no sertão mítico, onde as casas são quase todas
de taipa com esqueletos de vara vestidos com barro que torram ao
sol das longas estiagens, com pouco mais de um metro e oitenta de altura, um
pequeno grupo rodeava o caixão simples onde estava depositado o corpo de
Dona Conceição. Os que por ali passavam, resmungavam a falta de cachaça, de
café, e ou de alguma massamorda para preencher o vazio no estômago; outros
prosavam na frente da casa, contando causos simples que retratavam um
cotidiano lastimável e sem esperança nas terras caídas.
N
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Em ocasiões como aquela, o povo aproveitava o acontecido para se reunir e
comentar os fatos cotidianos do local. Como era um ano político, outro assunto
não merecia maior destaque. Sarim Gena conduzia as conversas atento, pois
sabia que qualquer desatenção, aquela gente manipulada poderia se libertar do
cabresto que lhes conduzia ao sufrágio do vereador Agamenon do Bode. Pois
naqueles dias, andava por ali, um sujeito metido a sabedor das coisas, e como
dizia o vereador “um comunista atazanador dos infernos”. Tratava-se de um
jovem que por uns tempos viveu na capital. De volta à cidadela, falava de
“ismos” perigosos que refletiam liberdade e direitos. Porém, o pobre não se
fazia suficiente para enfrentar o astuto Sarim, que há anos tocava com maestria
os destinos do arrabalde.
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Toda e qualquer ação do representante do povo na câmara municipal
passava pelo cabo eleitoral. A primeira eleição de Agamenon do Bode, se
elegeu com magras dezenas de votos, a partir daí, aumentou substancialmente
sua votação nos pleitos seguintes, graças ao empenho do indivíduo lhe defendia
nas ruas em troca de pequenas cifras ou favores ínfimos — Assim estava no
quinto mandato. Para o pleito daquele ano, foi cogitada a possibilidade do edil
compor a chapa majoritária como candidato a vice-prefeito no grupo
situacionista. Isso lhe queimou o juízo por dias, porém, não enxergava alguém
para ocupar seu lugar na egrégia casa. Por um momento pensou na vaga
possibilidade de lançar o pobre Sarim de Gena ao sufrágio, mas desanimava ao
se dar conta da ignorância do indivíduo. Pois era muito bom para lidar com
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outros iguais, mas não teria preparo para o palanque, a arte da retórica, e
também não seria hábil com as questões complicadas da Casa de Leis. Pois
aquele pobre miserável só lhe servia para arrebanhar outros miseráveis.
O cemitério ficava do outro lado da cidade, o cortejo fúnebre teria que
cortar toda a extensão demográfica para alcançar o terreno onde a pobre
Conceição seria enterrada numa cova rasa. Alguns sugeriram que o cortejo
seguisse pelas ruas recantadas, afinal, não se tratava de uma pessoa importante;
outros sugeriram que o cortejo seguisse pelo mangueiro que circundava a
cidade.
O dia raiou, e o vereador fez questão de conduzir a procissão pelas ruas
centrais, pois ali, o povo viria quem realmente estava ao lado do povo simples
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nas horas difíceis. Sarim de Gena se encarregaria de anunciar a presença do
vereador que caminharia imponente à frente daquela gente miserável.
O que não se esperava era a presença do jovem atazanador no cortejo, pois
ele chegou pouco antes do início. Educado, cumprimentou cada pessoa que ali
estava. Ocasião como aquela, reunia muita gente, aliás, em poucas ocasiões se
conseguiam reunir um povo sem ânimo. Até mesmo um pastor protestante que
por ali se aventurou, desistiu por falta de fiéis em seus cultos extasiados. A
presença do “comunista” não alegrava o vereador que ali estava desde as
primeiras horas da manhã. Assim, consultou o assessor sobre a presença do
invejável adversário. Mesmo contrariado, seguiu o planejado e desfilou pelas
ruas centrais da cidade ao lado caixão que levava o corpo de Dona Conceição.
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Muita gente simples estava no cemitério para assistir a cerimônia de
enterramento, ambiente propício para umas poucas palavras da autoridade
presente. Sarim de Gena se posicionou ao lado do homem que por sua vez
tomou fôlego e iniciou a discurseira acroática num português ruim. Falou
dúzias de palavras incompreensíveis para aquela gente que não entendia na
verborragia do edil. Quando encerrou e ordenou o início do sepultamento, foi
surpreendido com a manifestação do jovem “comunista”...
O rapaz discursava emocionado para uma plateia adormecida em dia de
enterro. Em suas palavras, uma voraz crítica respigava no prefeito da cidade. O
vereador Agamenon do Bode não se conteve, e saiu em defesa do aliado —
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Cala essa boca seu comunista de merda! Pois tu não tem moral pra falar das
autoridades dessa cidade que vive feliz! — O vereador tomou para si a
responsabilidade de defender os ofendidos na oratória do rapaz —... O prefeito
é um homem que vive para o povo, um homem que apesar de ser muito rico
gosta de gente simples, pois pergunte para qualquer pobre nessa cidade quem é
Elestino Leitão.
A contenda só teve fim quando vereador perdeu a paciência e partiu raivento
para cima do jovem. Porém dantes, foi contido pelo assessor que convenceu a
autoridade para a delicadeza de um ato como o pretendido poderia prejudicar
seus planos futuros. O auxiliar alertou em cochichos — Deixe ele com essas
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palavras bonitas, essa gente não entende bufas, e esse bosta não tem nada de
valor mesmo... Já viu pobre acreditar em pobre...
Enfim o caixão foi coberto de terra e os moradores da Rua da Penúria
seguiram eufóricos, espalhando e aumentando o acontecido naquela cerimônia
de enterramento.
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LADOS E LADEIRAS NO TERREIRO DA HISTÓRIA
iderando estava o mais astuto, o mais vigoroso e dotado de espírito
agudo. Liderando estava o mais capaz de transpor a barreira
policialesca sem medo numa noite imaginária no teatro da crueldade.
O cavalo-doido se preparava para disparar como um monstro fabuloso no pátio
dos reclusos de maus sentimentos. A noite não amanheceria na intempestiva
razão do cárcere, sem que as chamas infernais consumissem as complexas
palavras de magna carta de libertação na lei moral de magnífico esplendor.
LDe um lado, estavam todos os que tiveram a infeliz sorte de girar na roda
dos expostos. Filhos dessa nova senzala como herdeiros da miserável mecânica
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na epidêmica lógica social de sujeição que insiste na história; de outro,
estavam os adestrados caçadores catequizados para fazer cumprir a regra de
direito ditada pela autoridade estatal em nome de uma ordem.
Na viagem da história, voltamos ao massapé do recôncavo baiano, onde os
movimentos de corpos desafiavam as armas para garantir a liberdade. Um
ritual de resistência num jogo ágil de braços e pernas em golpes soltos no ar.
Era a capoeira de Bitinho, o menino que gingava malicioso no Terreiro de Jesus
ao som dos berimbaus, caxixis e pandeiros, enquanto seus companheiros
cantavam versos:
Iaiá vorta do mundo
Ioiô que o mundo dá...
05 CONTOS - ISBN: 978-85-63654-07-6
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Bitinho se benzia na boca da roda, cumprimentava o parceiro e gingava ao
som da orquestra. Nasceu na mística daquele lugar, onde os escravos eram
castigados e cresceu sadio naquele terreiro barroco. Veio ao mundo numa noite
de forte tempestade sobre as bênçãos de Iansã na ladeira dos lamentos. Sua
mãe ganhava a vida comerciando quitutes no cais do porto depois do
desaparecimento de seu pai na baia de todos os santos, enquanto fazia o
transporte de cargas em seu saveiro pequeno.
O menino Bitinho, era como o vento que soprava suave naquele terreiro de
agora. Era como a alegria multicolorida e cosmopolita eclodido num batuque
tribal e refletido na beleza de homens livres, intrínseco na sutil superioridade
05 CONTOS - ISBN: 978-85-63654-07-6
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de suas torres e na memória exposta de seus sobrados. Bitinho sonhava nos
becos estreitos e irregulares.
Na sucessão dos dias, o menino deixou as rodas de capoeira onde
expressava a vivacidade num gingado ao toque do batuque, onde adquiriu
destreza e equilíbrio.
Agora vagueava em outros cantos da cidade. Já não tinha ânimo para
participar dos espetáculos oferecidos no terreiro, já não tinha vontade de
recolher as mixarias depositadas nos pandeiros pelos viajantes pálidos.
Fora das regras, a capoeira é mortal em golpes sujos e safados. Aplicada
com malicia matreira, apresenta um poder mortal. Esse poder se manifestou
num encosto endemoninhado que lhe baixou em fúria. Procurou ajuda no
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Terreiro de Pai Joaquim. Num rito propiciatório, ofereceu oferendas a Exu com
animais votivos sacrificados, alimentos e bebidas. Sem resultados, a ira
permaneceu, e na varanda do mercado tramou contra um turista estrangeiro que
caminhava bobo pelas ruas estreitas da cidade elevada.
O fato virou notícia e ganhou o mundo numa peça redigida no sensacional
sistema midiático de comunicação. Sabiam os mais sensatos, que os textos não
correspondiam com a exata verdade, porém, interessavam aos mais vorazes o
sabor da desgraça.
Tendo como cúmplice Jussara, uma morena de toda boa e disposta, atraíram
para o golpe o viajante estrangeiro moleirão em busca de sexo fácil. No
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primeiro ato, a boazuda menina usaria seus atributos físicos e atrairia o pato
para os sabores das noites soteropolitanas. Assim, teria uma ficha detalhada do
homem; No segundo ato, lhe convenceria de uma situação na qual tinha um
namorado ciumento e possessivo que vivia lhe ameaçando. Ali a boazuda se
desmanchava num descarado e fingido choro. Relatava em detalhes, uma
possível vida de conflitos que lhe havia deixado graves prejuízos em dividas.
A trama se estendeu por três semanas. Assim o turista passou a frequentar
um sobrado alugado na Baixa do Bonfim. Foi ali que o homem conheceu o dito
caso da moça. Bitinho entrou em cena crescendo sua personagem. Gesticulou
numa ginga ameaçadora e raivosa e convenceu o pato apaixonado a pagar-lhe
uma quantia em moeda estrangeira naquela noite.
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― Não falei pra você, esses branquelos não aguentam um xibiu de mel... ―
Zombava.
Assim se concluía o plano e o homem seria deixado de lado. ― Não, estava
fácil demais, perceberam que a vítima era prevenida e seguiram na trama sem
preocupações. Ao decorrer da terceira semana, o viajante revelou que teria que
voltar à sua terra em breve. Bitinho então resolveu finalizar o golpe, exigindo
uma quantia mais substancial em ‘cash’ fácil. Assim marcaram um encontro no
Parque do Abaeté, onde se realizaria o ato final da peça ordinária.
Inocentes estavam ali, nas areias brancas do parque a espera da vítima numa
manhã quente e movimentada. Jussara já não mais suportava o moleirão de
língua embolada.
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― Não aguento mais esse broxa... Confessou ao parceiro.
Quando Bitinho recebeu a quantia combinada, homens armados e raivosos
surgiram de todos os lados e formaram um cerco intransponível. Com toda
disciplina interior em sua memória muscular, Bitinho não escapou, e como um
animal bruto foi recolhido num camburão que seguiu apressado abrindo
caminho com suas sirenes infernais.
Maldita hora que resolveu deixar as rodas iluminadas de capoeira do
Terreiro de Jesus e se lançar no submundo sórdido da avareza. Nunca
machucou ninguém, apenas queria uma parte das boas coisas anunciadas na
cidade multicolorida de festas profanas. Errou, e agora estava ali, no inferno de
maus-tratos, pancadarias, rebeliões, fugas, corrupção e sangue, usando a