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O CENÁRIO EPISTEMOLÓGICO DA MODERNIDADE E AS NOVAS
CONFIGURAÇÕES EPISTÊMICAS
Prof. Agemir Bavaresco1
A Epistemologia, classicamente, trilhou o caminho da oposição entre dois
pressupostos do ato de conhecer: a racionalidade e a historicidade. A estas duas
condições para efetuar-se a aprendizagem, correspondem, na modernidade, duas
posições paradigmáticas: a analítica e a histórica. Este é o cenário epistemológico que
descreveremos no 1º item.
Estes dois paradigmas, porém, não conseguem mais responder às inquietações
e às rápidas mudanças que se operam na epistemologia. Por isso, constata-se uma
ruptura de paradigmas e por conseqüência, necessita-se da construção de novas
configurações epistêmicas (2º item).
Enfim, no 3º item, apresentamos o cenário transdisciplinar como o
procedimento mais desafiador na epistemologia atual e também como superação da
oposição entre os paradigmas analítico e histórico.
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Professor do PPGFilosofia
PUCRS. Site: www.abavaresco.com.br
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1 - OS DOIS CENÁRIOS EPISTEMOLÓGICOS DA MODERNIDADE
Em primeiro lugar, é necessário que definamos o termo epistemologia, como
ele é compreendido no debate atual. “Epistemologia (do grego epistéme: ciência,
conhecimento + lógos: palavra, discurso). Teoria do conhecimento em geral e, de
forma especial, do conhecimento científico. A epistemologia se interessa pelos
métodos, objetos e formas de pensamento próprios da ciência. É um dos termos mais
usados para referir-se à discussão sobre a forma como construímos nossos
conhecimentos. Em muitas universidades, existem centros ou institutos com nomes
parecidos a este: Centro de Epistemologia e História da Ciência. Nas décadas mais
recentes, o conceito foi polarizando-se em direção às teorias sobre o que é aprender.
No MIT (Massachusettes Institute of Technology) existe uma linha de pesquisa sobre
Epistemology and Learning (Epistemologia e Aprendizagem) que, por sinal, enfatiza
os estudos relacionados com o modo pelo qual as máquinas “inteligentes” são
capazes de aprender e também sobre as novas estruturações do aprendizado, que
acontecem na relação entre seres humanos e computadores. O termo epistemologia
foi adquirindo, dessa maneira, um sentido mais específico do que a clássica expressão
filosófica teoria do conhecimento” 1.
A Epistemologia, conforme esta definição, é a teoria que estuda a construção
do conhecimento, ou seja, como o ser humano aprende. Neste sentido, existe uma
“Epistemologia Evolutiva” com duas dimensões: em primeiro lugar, a evolução como
desenvolvimento dos sentido e da corporeidade fornece as bases biológicas dos
processos cognitivos. Em segundo lugar, as próprias formas do conhecimento,
linguagens, culturas, idéias, teorias e modos de percepção formam parte de processos
evolutivos, cujos padrões podem ser estudados tanto a partir das ciências naturais,
quanto das humanas e sociais. Usualmente, costuma-se chamar esta Epistemologia
Evolutiva como uma „teoria evolucionária do conhecimento‟ 2.
1 . Hugo Assmann. Reencantar à educação. Petrópolis, Vozes, 1998, p.152.
2 . Id. p. 153.
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Considerando esta definição, vamos, agora, apresentar os cenários
epistemológicos deste século, isto é, os cenários que mostram como usualmente se
entende a produção do conhecimento. Neste sentido, o pressuposto da Epistemologia,
enquanto disciplina filosófica, é que a condição fundamental do conhecimento surge
a partir de dois elementos: a racionalidade e a historicidade 1. O problema é que estes
dois elementos dão origem a duas posições epistemológicas antagônicas. Estas duas
posições, na verdade, provocam a articulação de dois paradigmas epistemológicos: o
paradigma analítico e o histórico, ligados ao elemento racional e histórico,
respectivamente. Estes dois paradigmas englobam a historiografia da Epistemologia,
referente ao período compreendido entre os anos vinte e os anos setenta do século
XX.
Cabe, no entanto, observar que estas duas posições acabam gerando um
impasse entre os dois paradigmas. A solução desta contradição passa, primeiramente,
pelas novas configurações epistêmicas e, depois, pela transdisciplinaridade
epistemológica, ou seja, a produção de um conhecimento transdisciplinar. Vejamos,
portanto, em primeiro lugar, os cenários epistemológicos da modernidade: os
paradigmas analítico e histórico.
1 . Nesta parte seguiremos Luiz Carlos Bombassaro. As fronteiras da Epistemologia. Como se produz o
conhecimento. Petrópolis, Vozes, 1993, p. 9. “Racionalidade e historicidade, diz Bombassaro, são
termos que usamos para caracterizar, em sentido antropológico-filosófico, a “pertença”
(zugehörigkeit), aquilo que define o homem”. Cf. nota 1, p. 122. A racionalidade e a historicidade são
consideradas a base do modo de ser humano, ou seja, esses dois elementos constituem o fundamento
de tudo o que diz respeito ao homem. Quando se diz que o homem é racional assume-se a posição
clássica de Aristóteles: o homem é um animal dotado de uma alma racional, que o capacita a dizer o
mundo. O que é ser “racional”? Segundo Bombassaro, a definição de Habermas é fundamental: Para
Habermas existe uma relação intrínseca entre racionalidade e conhecimento. Todo conhecimento é
portador de racionalidade, porque está estruturado proposicionalmente. Não só as proposições podem
ser consideradas racionais, mas também o homem, formador de expressões lingüísticas, que dispõe do
conhecimento, deve ser considerado racional. Bombassaro tem, como propósito, a conjugação da
racionalidade e da historicidade, enquanto produzem uma ação humana peculiar: o conhecer. “É no
conhecer - processo pelo qual o homem compreende o mundo - e no conhecimento - conjunto de
enunciados (formalizados ou não) sobre esse mundo - que pode ser demonstrada a presença
inseparável das categorias apresentadas acima”. Id. p. 16.
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1.1 - O paradigma analítico 1
O paradigma analítico é denominado também de “teoria analítica da ciência”
ou “filosofia analítica da ciência”. Este paradigma foi predominante na primeira
metade do século passado e sua orientação teórica é o empirismo lógico do Círculo de
Viena, mais tarde, porém, é influenciado pela filosofia de Karl Popper. Vejamos
como ele se formou historicamente.
a) Raízes históricas: As raízes deste paradigma se encontram em diversos autores,
como por exemplo, em David Hume, no monismo metodológico do positivismo
de Augusto Comte e John Stuart Mill, a lógica semântica de Gottlob Frege, a
lógica matemática de Alfred Whitehead e Bertrand Russel, e, sobretudo a teoria
do Tractatus de Ludwig Wittgenstein.
b) A construção lógica do mundo: Rudolph Carnap publicou em 1928, o livro A
construção lógica do mundo, para demonstrar como seria possível, a partir de
experiências elementares, constituir logicamente os objetos do mundo.
c) O “contexto de descoberta” e o “contexto de justificação”: Hans Reichenbach
afirma que a Epistemologia deve distinguir estes dois elementos e ocupar-se,
exclusivamente, do “contexto de justificação”. Ele separa assim os dois
elementos, pois o “contexto de descoberta” envolve elementos psicológicos,
1 . Paradigma é um termo de origem grega: parádeigma: modelo, exemplo; e do verbo
paradeigmatítzo: propor, mostrar. Esse termo é colocado em cena pelo epistemólogo Thomas Kuhn
(The Structurs of Scientific Revolutions), no início dos anos 1960. Para Kuhn, o paradigma funciona,
primeiro, como filtro na percepção e projeção da realidade. O paradigma, depois, para tornar-se
público e implantar-se precisa de um “colegiado de suporte”. De modo geral, paradigma é o conjunto
de convicções e conceitos que caracterizam uma determinada maneira de perceber o mundo e interagir
com ele. Para a epistemologia, o paradigma é o conjunto de categorias e conceitos que formam o
marco de leitura e interpretação da realidade; na cultura, é o conjunto de atitudes e ações simbólicas
que se usam para representar o mundo. Hoje, fala-se em mudança de paradigma científico e da própria
forma mentis (do modo de configurar conhecimentos) sob a influência da inteligência coletiva e a
ecologia cognitiva.
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sociológicos e históricos. Enquanto que o “contexto de justificação” envolve-se
apenas com os elementos metodológicos da investigação científica.
d) O Círculo de Viena: O Círculo de Viena, fundado em 1929, é o representante
mais genuíno do paradigma analítico. Ele reuniu pesquisadores das mais diversas
áreas - Física, Matemática, Lógica, Filosofia etc. - com a finalidade de pesquisar a
concepção científica do mundo. O princípio fundamental que guiava suas
investigações era o da Filosofia Empirista e Positivista. Este princípio afirma,
primeiramente, que o conhecimento só é possível, partindo-se da experiência
imediata; depois, serve-se da análise lógica da linguagem, como método
filosófico; enfim, adota a separação entre o contexto de descoberta e o contexto
de justificação, introduzida por Reichenbach.
O programa de investigação do Círculo incluía, entre outros itens, os
seguintes: aplicar os conceitos lógicos para reconstruir, racionalmente, os conceitos
científicos; passar todos os enunciados científicos pelo princípio da verificabilidade;
procurar critérios de significado empírico que eliminassem pouco a pouco todo o
critério de fundamentação metafísica; superar a separação entre ciências da natureza e
humanas, através de uma ciência unificada lógica. Este programa, de um lado,
contribuiu para estabelecer na Epistemologia o rigor metodológico para a
investigação. Porém, de outro lado, é criticável a pretensão do Círculo, de querer
reduzir o mundo aos enunciados científicos. Por exemplo, a filosofia tinha como
única atividade tornar claras as idéias, conceitos e métodos através da análise lógica
da linguagem.
e) A autocrítica e a auto-renovação do Círculo de Viena: Alguns pontos do
programa de investigação do Círculo foram, aos poucos, sendo criticados e
mudados. Por exemplo, o critério de verificabilidade: Carnap, com a publicação
do Testability and Meaning, abandona aquele critério e o substitui pelo de
confirmabilidade. Por seu lado, K. Popper propõe não a confirmabilidade, mas a
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falseabilidade. Popper, ao mesmo tempo, defende os princípios da filosofia
empirista e critica o indutivismo e o positivismo do Círculo. No seu livro - A
lógica da pesquisa científica, 1934 - ele aponta três problemas na epistemologia:
a lógica da investigação, o critério de demarcação e a objetividade científica. Ele
propõe a seguinte solução: 1) elaborar uma lógica dedutiva, para avaliar a
validade das proposições científicas; 2) definir um novo critério de demarcação,
pois, antes, só eram consideradas científicas as teorias que seriam verificadas ou
confirmadas através da experiência. Agora, Popper sugere a falseabilidade como
único critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência. Assim, uma teoria só
pode ser considerada científica, se for falseada pela experiência, ou seja, se tiver a
capacidade de ser refutada ou testada 1. Com isso, introduz-se uma
“Epistemologia negativa”, porque o avanço do conhecimento científico estaria
vinculado à capacidade humana de errar. 3) afirmar que a objetividade científica
depende de uma base empírica que consiste de proposições existenciais
singulares, os “enunciados básicos”.
Após esta breve descrição das principais características do paradigma
analítico, podemos concluir que este paradigma se articula, segundo Wright, a partir
de três princípios: a) o monismo metodológico, isto é, a aplicação de um único
método científico para explicar a diversidade de objetos da investigação científica; b)
a consideração de que as ciências exatas, sobretudo a Física e a Matemática,
estabelecem uma regra ou um ideal metodológico o qual serve para medir o grau de
desenvolvimento e perfeição das demais ciências, entre elas as humanas; c) o
positivismo lógico que tem o princípio causal como eixo explicativo da ciência. Ou
seja, trata-se de englobar os casos particulares da natureza sob leis hipotéticas gerais 2
1 . Cf. POPPER, Karl. La logique de la découverte scientifique. Paris: Payot, 1984.
2 . Cf. Georg H. von Wright. Explicación y comprensión (Explanation and Understanding), p. 21. In: L.
C. Bombassaro. op. cit. p. 30.
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1.2 - O paradigma histórico
Trata-se de caracterizar este paradigma a partir do final da década de 1950 e
as décadas 60 e 70 do século passado. Dentro deste paradigma podemos situar três
grupos: a) o grupo da “nova Filosofia da ciência” formado por Norwood R. Hanson,
Stephen Toulmin, Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend; b) o grupo que
“combate os analíticos” composto por Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e
Michel Foucault; c) e o grupo da Escola de Frankfurt, representado por Theodor W.
Adorno e J. Habermas.
O que é comum a estes três grupos é uma reação crítica ao paradigma
analítico. Considerando essa característica, tomemos os representantes do primeiro
grupo para descrever os principais elementos deste paradigma: Norwood R. Hanson
(Patterns of Discovery, 1958), T. Kuhn (The Structure of Scientif Revolutions, 1962),
Imre Lakatos (History of Science and Its Rational Reconstructions, 1971), Paul
Feyerabend (Against Method, 1975). Como vemos, a grande produção deste grupo
está situada em duas décadas e essas obras são as que mais causam repercussão e
discussão na meio da comunidade científica.
Enumeremos quatro críticas feitas aos analíticos e ao mesmo tempo, as
correções propostas pelos históricos: a teoria empírica da percepção, ou seja, a tese
dos dados dos sentidos; a questão da mudança conceitual e o progresso teórico do
conhecimento científico; o princípio do monismo metodológico e o ideal da ciência
unificada; e o critério de demarcação. De modo geral, considera-se que os analíticos
tinham uma Epistemologia muito simplista, “pois, ao analisar o conhecimento
científico pelos seus enunciados lógicos, deixavam de considerar a ação efetiva dos
homens que faziam a ciência e o modo pelo qual essa ação se realizava” 1. Trata-se,
de fato, de uma ficção científica, ao invés de uma ciência do real. Por isso, os
históricos questionam os princípios da filosofia positivista e empirista.
1 . Luis C. Bombassaro. op. cit., p. 32.
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a) “Toda a observação está carregada de teoria”: Esta é a afirmação de
Hanson, a qual mostra que nossas percepções sempre têm algumas pressuposições ou
teorias sobre a realidade. Dito de outro modo, nossa observação vem carregada de
conhecimentos prévios, crenças e significados, que atribuímos ao que observamos.
Os analíticos, diante desta crítica, revêem sua teoria sobre os dados dos sentidos, isto
é, foi necessário levar em conta o “contexto de descoberta” e não, simplesmente,
fixar-se no “contexto de justificação”.
b) A ciência é evolutiva: Os analíticos sustentam a invariância do significado,
ou seja, querem fixar os conceitos e o conhecimento científico. Os históricos mostram
que a história da ciência revela uma mudança permanente no conhecimento
científico, produzido pela pesquisa. Por exemplo, Kuhn descreve a mudança ocorrida
na Astronomia do século XV, a qual provoca uma alteração nas teorias e no modo de
proceder da comunidade científica.
c) A pluralidade de métodos: Os analíticos querem a unidade da ciência, a
partir de um único método. Os históricos afirmam que existem muitos métodos para
acessar a realidade, por exemplo, os novos modelos introduzidos pelos estudos da
Biologia, da Antropologia, da Etnologia, etc. Toulmin é um exemplo de alguém que
se recusa a aceitar o modelo teórico fornecido pelas ciências físicas e matemáticas, e
adota as categorias extraídas da teoria da evolução.
d) A revalorização da Metafísica: O analítico, Popper, assim como outros,
coloca, como critério de demarcação científica, o princípio da falseabilidade. No
entanto, os históricos dizem que “nenhuma proposição fatual pode ser provada, a
partir da experiência”1. Há uma revalorização da Metafísica. Segundo Lakatos, “as
decisões epistemológicas adotadas pelos cientistas ao desenvolverem seus „programas
1 . Lakatos, O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica, nota 51, p. 34, in:
Bombassaro, op. cit., p. 34.
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de investigação‟ estão freqüentemente ligadas a um núcleo metafísico de fundo” 1.
Por exemplo, diz Lakatos, a Metafísica cartesiana foi fundamental na elaboração da
teoria mecanicista. Kuhn, de seu lado, fala de “um conjunto de compromissos de
nível elevado”, o qual possui “tanto dimensões metafísicas como metodológicas”, que
fornecem aos cientistas uma visão de mundo e um conjunto de regras como
pressupostos de suas pesquisas.
O que se percebe é que a proposta dos analíticos de superar a Metafísica pela
análise lógica da linguagem não foi realizada, porque a metafísica foi reintroduzida
pelos históricos. A ironia da história mostra que os analíticos, ao expulsarem a
Metafísica pela porta da frente, possibilitaram seu retorno pela porta dos fundos,
através dos históricos.
Estas são as caracterizações dos dois paradigmas científicos que construíram
os cenários epistemológicos da modernidade e, em especial, deste século. Vejamos,
agora, as novas configurações epistêmicas.
2 - AS NOVAS CONFIGURAÇÕES EPISTÊMICAS
Percebe-se que estamos ingressando numa nova etapa epistemológica. Antes,
vigoravam praticamente, em todos os âmbitos da natureza e da história, as supostas
“leis objetivas” que estariam garantindo a consistência do real. Hoje, o conceito de
vida está sendo redefinido como algo que se dá sempre na fronteira, entre a ordem e o
caos 2, ou seja, como a interpenetração de ambos. O cérebro/mente é analisado numa
perspectiva pós-mecanicista, como um sistema dinâmico, complexo e adaptativo. Da
mesma forma, a inteligência e a memória são reconceituadas como processos
complexos e dinamicamente auto-organizativos.
1 . Id. p. 35.
2 . A teoria do caos não pode ser confundida com o puro acaso, mas ela significa uma dinâmica
criativa, entre o fortuito e o aleatório e o surgimento de parâmetros ordenadores. Os seres vivos vivem
entre os estados caóticos e os estados ordenadores. Cabe notar que são os estados caóticos que
garantem a máxima flexibilidade e a melhor capacidade de aprender. Id. H. Assmann. Reencantar a
educação. p. 141.
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As Epistemologias modernas tinham como preocupação “fixar o real” em
formas estáticas de conhecimento. Elas usavam parâmetros ordenadores, tanto na
concepção da natureza e da história, como na visão do corpo e das formas de ativação
neuronal do cérebro denominadas “mente”. A nova Epistemologia tem, como
referência básica, a autopoeisis - o autofazer-se - dos processos vivos, imersos
interativamente em ambientações - ecologias cognitivas 1 - propícias ou adversas.
Enfim, o processo do conhecimento começa a reconciliar-se com a maneira dinâmica
na qual acontece a vida.
Hoje se fala em crise dos paradigmas, devido às múltiplas e rápidas
transformações do mundo. Segundo H. Assmann, a noção de paradigma e mudança
de paradigma está ficando estreita demais para acolher a complexidade de mudanças
que ocorrem. Por isso, sugerem-se enfoques epistemológicos mais abertos, através de
expressões como novos cenários epistemológicos ou novas configurações
epistêmicas.
As novas configurações epistêmicas situam-se em três áreas de avanços
científico-epistemológicos: a) as Biociências; b) a Tecnotrônica (Informática
Avançada, Realidade Virtual 2, Inteligência Artificial
3, Cibernética
4 de Segunda e
1 . Ecologia cognitiva é um termo criado por E. Morin e Pierre Levy. A EC estabelece as interfaces dos
agentes cognitivos (humanos e/ou máquinas), cria formas de conhecer e uma ambientação pedagógica
propícia às experiências através de tecno-ambientes (computadores, Internet, multimeios). 2 . Realidade virtual (do latim: vir, varão; daí, virtus: força, energia, virtude;) é tudo o que se aplica à
mídia eletrônica (a digitalidade) com sua base de existência e reprodutibilidade. A existência virtual (
de dados, informação, imagens, simulações etc.) se entrelaça com a experiência (bate-papo eletrônico,
chat, simulações etc.). Em sentido específico, a realidade virtual implica o uso de um conjunto de
implementos eletrônicos (hardwares e softwares). Cf. H. Assmann. Reencantar a educação, 1998, p.
187. 3 . O conceito de Inteligência artificial (IA) surgiu na informática e refere-se a teorias e programas que
têm como objetivo conseguir que as máquinas se tornem capazes de comportamentos inteligentes (o
reconhecimento de formas, tratamento de linguagens, versatilidade inovadora etc.). A IA imita o
processo básico do aprendizado humano por meio do qual novas informações são absorvidas e se
tornam disponíveis para referências futuras. A mente humana incorpora novos conhecimentos, sem
alterar seu funcionamento e sem atrapalhar os outros fatos que já estão armazenados no cérebro. Um
program de IA funciona quase do mesmo modo. Id. p. 150-160. 4 . Neologismo inventado por Norbert Wiener (do grego: kybernêin: governar; Kybernetés: timoneiro,
controlador. Ciência do controle do ir e vir (circulação) da informação e comunicação nos seres vivos,
nas máquinas ou em todos os sistemas naturais ou artificiais. Cibernética de primeira ordem é centrada
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Terceira Ordem, Vida Artificial 1); c) e os Sistemas Dinâmicos Complexos
2 que
englobam as duas áreas anteriores e elaboram novos conceitos de forma
transdisciplinar. A partir dessas novas configurações, enunciam-se alguns temas
fundamentais:
- a auto-organização dos sistemas vivos (autopoeiesis);
- a bio-psico-sociogênese do conhecimento humano;
- a coexistência da auto-organização e auto-regulação nos processos sócio-
históricos;
- as teorias dos sistemas (abertos, fechados, dinâmicos e complexos);
- as tecnologias e sistemas de interação cognitiva entre aprendentes humanos e
máquinas aprendentes (engenharia cognitiva, sistemas aprendentes etc.);
- a mimética, enquanto abordagem sociocultural das ideologias e do funcionamento
dos consensos e dissensos coletivos (memes = os genes da cultura) 3.
Nesse processo de elaboração de novas configurações epistêmicas, dois
princípios precisam ser levados em conta:
1º) O princípio da complexidade: A complexidade não significa coisas
complicadas, como se entende no senso comum, mas uma ruptura epistemológica
com a razão calculante do cientificismo moderno, que pensava analisar tudo pela
no estudo dos controles detectáveis e/ou possíveis, enquanto que a de segunda ordem ocupa-se no
estudo dos sistemas complexos (emergência de níveis imprevisíveis, autopoeisis etc.). Id. p. 143. 1 . A vida artificial (Artificial Life) é a busca de simular no computador tudo o que se possa imitar
acerca dos processos vivos. A hipótese de trabalho é que a vida é um processo sistêmico complexo
composto por múltiplas interações auto-organizativas pelo processo de aprendizagem e adaptabilidade.
A VA utiliza elementos artificiais, especialmente eletrônicos, para simular, explicar e emular processos
de vida, não tanto para imitar fenômenos biológicos de organismos vivos, tomados isoladamente, mas
introduz a interatividade e a adaptabilidade. Id. p. 185. 2 . Cf. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. Conferir em
especial: 2ª parte: cap. 1- O desafio da complexidade; cap. 10- Os mandamentos da complexidade. 3 . H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos? in: Teologia aberta ao futuro.
São Paulo, Ed. Loyola, 1997, p. 52-3. Cf. também de Assmann: Metáforas novas para reencantar a
educação. Epistemologia e didática. 2ª ed., São Paulo, Ed. UNIMEP, 1998, p. 87: “A reconfiguração
do cenário epistemológico”.
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somatória das análises parceladas. Os modelos mecanicistas nunca chegam a
capturar, por essa via, as interações que existem nos sistemas complexos.
A teoria da complexidade trata dos sistemas cujo comportamento se
caracteriza por uma dinâmica imprevisível. Por exemplo, um sistema vivo,
compreende-se a partir do conceito de auto-organização que implica sistemas
complexos e adaptativos. Estes superam o princípio mecânico de causa-efeito, porque
no comportamento de um sistema vivo interagem vários fatores. A análise de um tal
fenômeno requer um razão não-linear que compreenda os sistemas complexos, as
suas várias situações e os parâmetros que os configuram.
Em síntese, no entender de E. Morin, “a complexidade surge portanto no seio
do uno ao mesmo tempo como relatividade, relacionalidade, diversidade, alteridade,
duplicidade, ambigüidade, incerteza, antagonismo, e na união destas noções que são,
umas em relação às outras, complementares, concorrentes e antagônicas”. Daí, que “o
sistema é o ser complexo que é superior, inferior, distinto de si mesmo. É, ao mesmo
tempo, aberto e fechado. Não há organização sem antiorganização. Não há
funcionamento sem disfunção”1.
E. Morin propõe o paradigma da complexidade. Este é o conjunto dos
princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as
condições de uma visão complexa do universo (físico, biológico, antropossocial).
Alguns princípios da inteligibilidade são os seguintes: princípio complementar do
reconhecimento e de integração do tempo na física, na biologia e na organização, ou
seja, considerar a história em todas as descrições e explicações; ligar o conhecimento
das partes ao dos conjuntos; causalidade complexa, isto é, interferências, sinergias,
desvios, reorientações e auto-organização; considerar o fenômeno segundo uma
dialógica: ordem-desordem-interações-organização; princípio da distinção, mas não
de separação, entre o objeto ou o ser e seu ambiente interagindo com seu ecossistema;
princípio de relação entre o observador/concebedor e o objeto observado/concebido;
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problemática das limitações da lógica linear para compreender sistemas formais
complexos 2.
2º) O princípio da morfogênese do conhecimento: Constata-se, hoje, uma
profusão de linguagens novas sobre o conhecimento. As palavras “conhecimento” e
“aprender” voltaram a exercer um fascínio quase mágico. Fala-se em Sociedade do
Conhecimento (Knowledge society), sociedade aprendente (learning society),
sistemas com base conhecimento (knowledge management), engenharia do
conhecimento (knowledge engenneering), ecologia cognitiva etc. Qual é a gênese do
conhecimento?
De uns cinco anos para cá, atribui-se o nome de processos cognitivos ao
conjunto de operações mistas que acontecem na parceria entre seres humanos e
máquinas informáticas. O conhecimento implica, atualmente, todos os processos
naturais e sociais em que se geram as formas de aprendizagem. Tudo aquilo que é
capaz de aprender cumpre processos cognitivos. Isto não significa cair num
redutivismo que ignora as diferenças de grau e nível nas operações cognitivas.
Na área da Pedagogia precisa-se entender que existe uma equiparação entre
processos vitais e processos cognitivos. Onde não se propiciam processos vitais
tampouco se favorecem processos de conhecimento. Com isso, nós entramos no
terceiro ponto de nossa exposição: o cenário transdisciplinar.
3 - O CENÁRIO TRANSDISCIPLINAR
Vimos, inicialmente, que a oposição entre o paradigma analítico e o histórico
tornou-se rígida; depois, o surgimento das novas configurações epistemológicas
elabora outros conceitos para compreender o processo cognitivo. Enfim, a prática-
teórica transdisciplinar elabora os conceitos de um pensar transdisciplinar como
1 . MORIN, E. O método. V. 1: A natureza da natureza. (La Méthode). Portugal: Europa-América,
1997, p. 141. 2 . MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 333.
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superação do impasse inicial. As novas configurações epistêmicas exigem conceitos
que possam transitar transversalmente, através das diversas disciplinas. Para isso,
pode-se assinalar três temas emergentes no processo do conhecimento: a coincidência
entre processos vitais e processos de conhecimento; a insuficiência do modelo
computacional, para entender o cérebro/mente, enquanto sistema dinâmico e
complexo; e enfim, o tema da transdisciplinaridade em si mesmo.
Cabe destacar que o pressuposto do cenário transdisciplinar implica o
reconhecimento da teoria da complexidade que é a afirmação das disciplinas no
estudo de seu objeto específico, e ao mesmo tempo é o diálogo entre as diversas
disciplinas usando as múltiplas abordagens metodológicas sobre um mesmo objeto;
enfim, é ir além das disciplinas criando um novo campo epistemológico. H. Assmann
afirma que estamos nos aproximando de um tipo de pensamento radicalmente
transdisciplinar, que implica, ao mesmo tempo, uma nova disposição teórica e uma
atitude prática diante da vida e do mundo, isto é, uma refundamentação ético-
política 1. Esse pensar transdisciplinar elabora, inicialmente, a coincidência entre
processos vitais e processos de conhecimento.
3.1 - A coincidência entre processos vitais e processos de conhecimento
A escola clássica tinha como pressuposto a visão mecanicista do corpo,
proposta por Descartes, em que se procura domesticar o lado animal do corpo. Hoje,
sabe-se que todo o conhecimento tem sua origem e preservação numa inscrição
corporal. As formas do conhecimento geram-se, de um lado, pelos processos auto-
organizativos corporais, isto é, os processos endógenos do indivíduo e , de outro lado,
pela interação com o meio ambiente.
A afirmação básica é que toda morfogênese do conhecimento - sobretudo na
criança, mas também no adulto - instaura-se como cognição corporal. Todo o
1 . Cf. H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. p. 42-3.
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conhecimento é um texto corporal, ou uma textura corporal. Toda forma de
conhecimento é gerada bio-organizativamente. A auto-organização físico-orgânica
constitui em nós, que somos seres bio-sócio-culturais, um processo autopoiético, um
autofazer-se unificado com as formas simbólico-lingüísticas.
Até hoje sempre predominou a concepção mentalista do conhecimento, isto é,
os processos cognitivos eram, sobretudo, processos mentais. O ensino era, então, uma
transação entre mentes: da mente do professor para a mente do aluno. Este modelo
mentalista não é mais suficiente, considerando o funcionamento do cérebro/mente e a
função da corporeidade - há uma inscrição corporal do conhecimento - na profunda
identidade entre processos vitais e processos de conhecimento.
3.2 - O cérebro/mente como sistema complexo1 e dinâmico
O que é o cérebro/mente? Para a Epistemologia objetivista - entrega e
recepção de saberes - o cérebro/mente é um processador de símbolos, o espelho da
natureza, uma máquina abstrata para manipular símbolos. Enquanto que, para a
Epistemologia construtivista - construção interativa de conhecimento - ele é o criador
de símbolos, perceptor/intérprete da natureza e história, sistema conceitual para
construir a realidade.
A história das ciências cognitivas, grosso modo, tem três etapas: 1) o
simbolismo computacional, que modeliza os processos cognitivos como processos
digitais (entendendo-se por “símbolos” algo semelhante aos “bits” do computador);
1 . O conceito de complexidade não é simplesmente contraposto ao que é simples, nem ao do senso
comum que funciona como um curinga para dizer coisas complicadas. A teoria da complexidade se
ocupa de sistemas cujo comportamento é imprevisível. A complexidade se refere aqueles processos
que não podem ser analisados apenas pela somatória das partes. A complexidade se ocupa dos sistemas
que não se enquadram mais dentro do clássico princípio de causa e efeito, quando os fatores co-
determinantes são múltiplos e variados e que vão para além de um pensar linear. A experiência de
aprendizagem são processos emergentes entre indivíduos, grupos e organizações que encontraram ou
criaram um contexto - uma ecologia cognitiva - que propicia esta emergência. O aspecto fundante da
aprendizagem é que ela é a emergência de estados complexos da auto-organização do conhecimento.
Cf. H. Assmann. Reencantar a Educação, p. 148.
16
2) o conexionismo, que usa o modelo das redes neuronais complexas; 3) o
dinamicismo, que estuda o cérebro/mente como um sistema dinâmico complexo.
Predominam, agora, as posições científicas que usam os conceitos:
complexidade dinâmica, auto-organização (autopoiesis, na linguagem de Maturana e
Varela em Biologia, e em N. Luhman na teoria dos sistemas sociais), interpenetração
de caos e ordem. O cérebro/mente do ser humano possui uma plasticidade
extraordinária que rompe com as lógicas rígidas e lineares. Muitos cientistas afirmam
que as lógicas mais apropriadas com o modo de funcionar do nosso cérebro/mente
são as lógicas multivariantes e sistemicamente abertas como, por exemplo, a “lógica
nebulosa” (fuzzi logic) que leva em conta o predomínio de áreas oscilatórias e
indefinidas, e a elasticidade do cérebro/mente 1.
Por isso, recomenda-se uma pedagogia plástica e sinuosa que incentive
certezas operacionais imprescindíveis, capacite para modelizações da “realidade”,
mas preserve incertezas sobre os rumos, para que sejam desafios do ato de aprender.
Surge a oportunidade de optar por lógicas mais dinâmicas e mais conformes aos
sistemas dinâmicos e complexos. Fica aberto um caminho para uma pedagogia que
trabalhe o jogo de certeza e incerteza que constitui um aspecto importante do novo
cenário epistemológico da educação2.
1 . Podemos mencionar também a lógica para-consistente de Newton C. A. Costa como modelo lógico
não linear. Remetemos aos seus livros: Ensaios sobre os fundamentos da Lógica. São Paulo: Hucitec;
Sistemas formais inconsistentes. Paraná: UFPR, 1993. 2 . Cf. H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. p. 63-4.
17
3.3 - Uma epistemologia transdisciplinar
Considerando os cenários epistemológicos e as novas configurações
epistêmicas, constata-se uma forte tendência para a elaboração de uma epistemologia
transdisciplinar. Vejamos, primeiramente, os fatos que justificam essa epistemologia,
depois o seu desenvolvimento histórico e, enfim, a sua finalidade.
3.3.1 - Implicações do pensar transdisciplinar
Apontamos, abaixo, alguns fenômenos que implicam a produção de uma
epistemologia transdisciplinar:
a) A fragmentação das disciplinas ou a fragmentação do objeto e do método:
Constata-se uma crescente fragmentação das disciplinas, a qual corresponde a
fragmentação do próprio objeto e do método de estudo das disciplinas 1.
b) A perda da aptidão em unir os conhecimentos ou a perda da aptidão a
analisar e sintetizar: No entender de E. Morin, “nós sabemos que o modo de pensar
ou de conhecer parcial, compartimentado, monodisciplinar, quantificador nos conduz
a uma inteligência cega, na medida onde a aptidão humana normal a unir os
conhecimentos se encontra aí sacrificada em proveito da aptidão não menos normal a
separar. Pois conhecer, é num anel ininterrompido, separar para analisar, e unir para
sintetizar ou complexificar. A prevalência das disciplinas, separadora, nos faz perder
a aptidão a unir, a aptidão a contextualizar, isto é a situar uma informação ou um
saber no seu contexto natural. Nós perdemos a aptidão a globalizar, isto é a introduzir
os conhecimentos num conjunto mais ou menos organizado. Ora as condições de todo
conhecimento pertinente são justamente a contextualização, a globalização” 2.
1 . Jean Ladrière. In: Recherche interdisciplinaire et théologie. Paris: Cerf, 1970, p. 53-58.
2 . Edgar Morin. Réforme de pensée, transdisciplinarité, réforme de l’Université. Cf. CIRET, na
Internet.
18
c) A separação entre sujeito e objeto: “A crise da fragmentação começa por
uma ilusão, por uma miragem, que é a separação entre sujeito e objeto. Antes dessa
ilusão, há uma não-separatividade ou mesmo uma identidade entre o conhecedor, o
conhecimento e o conhecido, ou seja, entre sujeito, conhecimento e objeto” 1.
d) Mudança de paradigma epistemológico: A transdisciplinaridade trata “de
algo mais que a mera intensificação do necessário diálogo entre as distintas áreas e
disciplinas científicas, porque a questão que precisa ser explicitada é a da mudança de
paradigma epistemológico” 2.
e) A cisão entre cultura humanístico-artística e cultura científica; entre fé e
razão; entre a modernidade - razão única ou unicidade da razão - e a pós-modernidade
- multiplicidade de razões: fragmentação e nihilismo.
f) Mudar de sistema de referência: No Congresso Internacional de
Locarno/Suiça afirma-se enfaticamente que “a transdisciplinaridade corresponde a
um novo modo de conhecimento, não redutível ao conhecimento disciplinar, gera
uma nova teoria e uma nova prática da decisão. Na abordagem transdisciplinar, não
há mais condições iniciais bem definidas do problema a resolver. Mais precisamente,
conseqüência imediata da complexidade intrínseca do mundo em que vivemos, essas
condições “iniciais” mudam continuamente. Em nossa vida universitária, deparamo-
nos com isso todos os dias e, no entanto, ainda não perdemos a ilusão de uma
“reforma”, de um milagre capaz de eliminar todos os males que atingem as
universidades. Se as condições iniciais dos diferentes problemas mudarem
incessantemente e se uma reforma milagrosa for simplesmente impossível, estamos,
então, condenados a assistir, impotentes, à decadência progressiva, mas certa das
universidades? A resposta será certamente “não”, se aceitarmos mudar de sistema de
referência, isto é: 1) considerar cada problema não mais a partir de um único nível de
Realidade, mas situando-o simultaneamente no campo de vários níveis de Realidade;
1 . Pierre Weil et alii. Rumo à nova transdisciplinaridade. Brasília: Summus editorial, 1992, p. 15.
2 . Hugo Assmann. Reencantar a educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 95.
19
2) não mais esperar encontrar a solução de um problema nos termos de “verdadeiro”
ou “falso” da lógica binária, mas recorrer a novas lógicas, particularmente à lógica do
terceiro termo incluso: a solução de um problema só pode ser encontrada pela
conciliação temporária dos contraditórios, ligando-os a um nível de Realidade
diferente daquele no qual esses contraditórios se manifestam; 3) reconhecer a
complexidade intrínseca do problema, isto é, a impossibilidade da decomposição
desse problema em partes simples, fundamentais. Em outras palavras, substituir a
noção de “fundamento” pela coerência deste mundo multidimensional e
multireferencial” 1 .
Esses seriam alguns dos fenômenos que situam o problema da
transdisciplinaridade e que desafiam, ao mesmo tempo, a elaborar uma nova
epistemologia. Vejamos, agora, como evoluiu historicamente o movimento
transdisciplinar.
3.3.2 - O movimento para a transdisciplinaridade
Descreveremos, brevemente, os principais momentos que apontam para um
pensamento transdisciplinar.
1 - O momento da predisciplinaridade e a disciplinaridade: o todo e a fragmentação
Este momento predisciplinar caracteriza-se pela unidade entre sujeito e objeto,
entre exterior e interior. Aqui não há distinção entre arte, conhecimento religioso,
científico e filosófico. Porém, com o surgimento do paradigma newtoniano-cartesiano
temos uma visão mecanicista do mundo, o predomínio do racionalismo científico e a
conseqüência é a fragementação do conhecimento em disciplinas. Do todo
harmonioso passa-se a fragmentação das disciplinas 2.
1. Congresso Internacional de Locarno. Projeto CIRET-UNESCO. Evolução transdisciplinar da
Universidade. Locarno, Suíça, 30 de abril a 2 de maio de 1997, p. 7-8. Nas próximas citações
usaremos a abreviação CIL. 2 . P. Weil et alii. op. cit. p. 15-16.
20
2 - O momento da multi ou pluridisciplinaridade: o problema do objeto
No século XVII Descartes propõe um método científico que originará as
várias disciplinas. Porém, em pouco tempo percebe-se que a complexidade dos
fenômenos exige a justaposição dos conhecimentos das disciplinas que se chamará na
metade do século XX de pluridisciplinaridade. “A pluridisciplinaridade diz respeito
ao estudo de um objeto de uma única disciplina por diversas disciplinas ao mesmo
tempo. A abordagem pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade
permanece inscrita no quadro da pesquisa disciplinar 1.
3 - O momento da interdisciplinaridade: o problema do método
A interdisciplinaridade diz respeito à transferência dos métodos de uma
disciplina à outra. É possível distinguir três graus de interdisciplinaridade: a) o grau
da aplicação é, por exemplo, quando os métodos da física nuclear são transferidos à
medicina, possibilitando novos tratamentos do câncer; b) o grau epistemológico é,
por exemplo, a transferência dos métodos da lógica formal ao campo do Direito,
gerando novas análises na epistemologia do Direito; c) o grau da geração de novas
disciplinas é, por exemplo, a transferência dos métodos da matemática ao campo da
física gerando a física-matemática.
Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas,
porém, sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar.
4 - O momento da transdisciplinaridade: a razão transversal
Etimologicamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” o indica,
diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes
disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual,
e um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento” 1
.
Os três pilares da transdisciplinaridade são os níveis da realidade - a pesquisa
disciplinar restringe-se na melhor das hipóteses, a um único e mesmo nível da
realidade -, a lógica do terceiro termo incluso e a complexidade. A
1 . Cf. CIL, p. 3.
21
transdisciplinaridade não é uma nova disciplina, nem uma superdisciplina, mas ela
alimenta-se da pesquisa disciplinar, que, por sua vez, é clareada de uma maneira nova
e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido, as pesquisas
disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas complementares. No
entanto, a transdisciplinaridade é radicalmente distinta da pluridisciplinaridade quanto
a sua finalidade, pois a compreensão do mundo atual não pode ser totalmente
alcançada dentro do quadro de referência da pesquisa disciplinar. Se a
transdisciplinaridade é freqüentemente confundida com a interdisciplinaridade e com
a pluridisciplinaridade, isso se explica em grande parte pelo fato de que todas as três
ultrapassam as disciplinas. Enfim, “a disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as quatro flechas de um único arco:
o do conhecimento” 1.
A partir de 1950 a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade entraram
timidamente em algumas universidades. A transdisciplinaridade está, porém, quase
totalmente, ausente das estruturas e programas da Universidade. Nos EUA, por
exemplo, os poucos departamentos pluridisciplinares e interdisciplinares em várias
universidades conduziram na maioria dos casos, a uma simples justaposição passiva e
não interativa entre professores e estudantes. Esse impasse é compreensível, pois é
justamente a transdisciplinaridade, segundo o Congresso Internacional de Locarno, a
condição sine qua non de uma interação fecunda e duradoura entre a disciplinaridade,
a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Sua ausência equivale à ausência de
orientação, à falta de direção das abordagens que ultrapassam as fronteiras
disciplinares. Vejamos, por isso, como evoluiu o conceito de transdisciplinaridade.
A fonte do conceito de transdisciplinaridade encontra-se em Niels Bohr no
artigo - 1955 - sobre a unidade do conhecimento. O termo não aparece aí, mas o
conceito está subjacente: “O problema da unidade do conhecimneto está intimamente
ligado a nossa busca de uma compreensão universal, destinada a elevar a cultura
2. Cf. CIL, p. 3-4.
22
humana” 2. Esta atitude geral “caracterizada como um esforço para compreender
harmoniosamente os aspectos sempre mais vastos de nossa situação”, foi provocada
pela revolução quântica. Levando em conta isto, podemos constatar o seguinte, a
propósito do uso do termo transdisciplinar:
a) Jean Piaget : Segundo Basarab Nicolescu foi Jean Piaget quem usou pela primeira
vez o termo “transdiciplinar”, em 1970, no Colóquio sobre a
interdisciplinaridade realizado em Nice/França. “Enfim, diz Piaget, no estágio
das relações interdisciplinares, podemos esperar o aparecimento de um estágio
superior que seria “transdisciplinar”, que não se contentaria em atingir as
interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas
ligações no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entre as
disciplinas” 3.
b) Veneza: Em 7 de março de 1986 o Comunicado final do colóquio de Veneza que
tratou da “ciência face aos confins do conhecimento: o prólogo de nosso passado
cultural” afirma que “os desafios contemporâneos exigem a criação de órgãos de
orientação e mesmo de decisão de natureza pluri- e transdisciplinar” 4.
c) Portugal: De 2 a 6 de novembro de 1994 no Convento de Arrábida, em Portugal,
ocorreu o 1º Congresso Mundial da Transdisciplinaridade que lançou a Carta da
Transdisciplinaridade 5. Trata-se de um manifesto que torna pública a
transdisciplinaridade.
d) CIRET (Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires): De 30
de abril a 2 de maio de 1997, realizou-se em Locarno/Suiça o Congresso
Internacional que tinha por tema: Que Universidade para o amanhã? Em busca
de uma evolução transdisciplinar da Universidade. Neste Congresso elaborou-se
1 .Cf. CIL, p. 4.
2 Niels Bohr. The Unity of Knowledge. New York/Doubleday: 1955. Trad. Francesa. Physique et
connaissance humaine. Paris/Gallimard: 1991, p. 249-273. 3 . J. Piaget. Colloque sur l’interdisciplinarité. Nice: OCDE , 1970. Citado por Basarab Nicolescu:
Sciences et Tradition. Paris, Troisième Millénaire, nº 23, 1992, p. 83. In: P. Weil et alii. op. cit. p. 31. 4 . Declarção de Veneza. Veneza: 1986. Cf. Internet.
5 . CIL, p. 4.
23
o Projeto CIRET-UNESCO tendo o seguinte título: Evolução transdisciplinar da
Universidade. Este projeto foi elaborado pelo CIRET em colaboração com a
UNESCO desde 1995 através de um grupo de direção internacional e
transdisciplinar e com a realização de uma jornada de estudo em 1996. Com este
Congresso o conceito da transdisciplinaridade torna-se mais claro e definido e
estrutura-se um projeto transdisciplinar.
Dentro do movimento transdisciplinar encontramos várias tendências que
destacam um enfoque, uma área ou ainda uma racionalidade. Restringimo-nos,
porém, a apresentar o enfoque holístico e a razão transversal que parecem se tornar,
atualmente, hegemônicas.
a) O enfoque holístico 1: “É absolutamente fundamental que se tenha uma visão
global. A totalidade está sempre presente. O passo fundamental da mecânica
quântica, revelando o comportamento interativo das particulas, é reconhecido
como a essência do universo. A única possibilidade de conhecer a totalidade é
adotar um enfoque holístico [ítalico nosso] indo além das disciplinas,
transcendendo objetos e métodos disciplinares. Isto é a transdisciplinaridade 2”
D‟Ambrosio reconhece o holismo como um enfoque dentro do momento
transdisciplinar. P. Weil afirma que “o novo paradigma holístico consiste em
encontrar axiomas comuns entre a ciência e a tradição, principalmente nos seus
aspectos experiencial e transpessoal. E ao mesmo tempo é a procura de uma
axiomática transdisciplinar 3. Como vemos o enfoque holístico propõe ir além do
objeto e do método, acentuando a busca de axiomas comuns entre a tradição e a
ciência para construir, por sua vez, os axiomas transdisciplinares .
1 . P. Weil assim define a abordagem holística: “De um lado, holístico implica uma visão resultante de
uma experiência, que, por sua vez, é geralmente o resultado de uma combinação de holopráxis ou
prática experiencial com o estudo intelectual, ou holologia, de um enfoque analítico e sintético, de uma
mobilização das funções ligadas ao cérebro direito e esquerdo e da sua sinergia, de um equilíbrio entre
as quatro funções psíquicas, ou seja, a sensação, o sentimento, a razão e a intuição. Chamamos a essa
conjugação de „abordagem holística‟”. 2 . Id. P. Weil et alii. op. cit. p. 38.
3 . Id. P. Weil et alii. p. 40
24
b) A razão transversal: A Declaração de Veneza - 1986 - já anuncia “a aparição de
uma nova visão da humanidade, até mesmo de um novo racionalismo”, ou seja,
de uma nova razão. O Projeto CIRET-UNESCO define o projeto como sendo
transversal: “O presente projeto estratégico transversal [itálico nosso] Evolução
transdisciplianr da Universidade” 1. Trata-se de fato de uma nova racionalidade
que pode ser qualificada de transversal. O que é uma razão transversal?
1º) O uso da palavra transversalidade (enfoques transversais, temas
transversais) penetrou no vocabulário de reformas educacionais da Espanha e de
alguns países latino-americanos, incluído o Brasil. Nos Parâmetros Curriculares
Nacionais do MEC, o conceito se torna peculiar, porque apenas os temas ético-
humanistas levam o nome de Temas transversais.
2º) Qual é o tipo de racionalidade exigida para esse novo contexto
transdisciplinar? Na era dos hipertextos - texto eletrônico, como os da Internet e CD-
ROMs que admite sub-entradas, re-envios e múltiplas conexões - e dos multimeios, a
reconfiguração transdisciplinar dos conteúdos disciplinares exige um novo tipo de
racionalidade: a transversal. “Transversal significa o que perpassa de través ou
obliquamente (rua transversal). O termo provém da geometria. Transversalidade
tornou-se uma das metáforas para não-linearidade. Noção próxima a
transdisciplinaridade. Razão transversal é o nome que o filósofo alemão Wolfgang
Welsch dá ao tipo contemporâneo de razão que não se organiza segundo esquemas
hierárquicos, mas de forma transversal, cbomo q que possibilitam os hipertextos, a
Internet, o CD-ROM, os multimeios. Trata-se de uma lógica do transitar/transmigrar;
um novo modo de pensar e agir segundo uma racionalidade-em-trânsito. Mike
Sandbothe, filósofo alemão, fala das três características da era dos multimeios e da
1 . CIL, p. 1.
25
Internet: hipertextualidade, interatividade, transversalidade. Acrescentemos
modestamente uma sílaba: transversatilidade” 1.
No entender de H. Assmann “a razão linear tinha que ser abalada em seu
ponto de origem: a linearidade de Pitágoras projetada na matemática e na geometria.
A razão linear é, literalmente, uma lógica de uma única superfície, ou seja, ela é
superficial” 2. Por isso é necessário a afirmação da razão transversal. No entender
Welsch a razão e a lógica transversal se caracterizam pelo seguinte:
- “a constituição bio-orgânica e simbólico-lingüística da racionalidade se
caracteriza pela inclusão de parâmetros desordenadores intransponíveis;
- a razão é capaz, em princípio, de desconstruir/reconstruir e descrever com
precisão esse parâmetros caóticos;
- somente quando a razão consegue penetrar e entregar-se produtivamente aos
entrelaçamentos insconscientes da racionalidade ela passa a ter condições para
enfrentar adequadamente a solução dos problemas da atualidade” 3.
3.3.3 - O horizonte transdisciplinar
Por que pensar transdisciplinarmente? Quais são os objetivos deste
movimento? A razão transdisciplinar tem por finalidade as seguintes metas:
a) No entender de, H. Assmann, a transdisciplinaridade visa melhorar as disciplinas;
b) Fazer a Universidade evoluir para a sua missão, isto é, o estudo do universal;
c) A idéia central do projeto é a de que há uma relação direta entre paz e
transdisciplinaridade;
d) Considerar a Universidade não apenas como lugar de aprendizado de
conhecimentos, mas também como lugar de cultura, de arte, de espiritualidade e
de vida;
1 . H. Assmann. op. cit. p. 183.
2 . Id. p. 103-104.
3 . Id. p. 101.
26
e) Rigor, tolerância e abertura são três objetivos da transdisciplinaridade; f) A transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelo sentido. Uma educação
neutra e objetiva não passa de um fantasma que nos foi legado pela ideologia
cientificista. A transdisciplinaridade tem como ambição a unificação, em suas
diferenças, do objeto e do sujeito: o sujeito-conhecedor faz parte integrante da
Natureza e do conheicmento; g) A vocação transdisciplinar da Universidade está inscrita na sua própria natureza:
o estudo do universal é inseparável da relação entre os campos disciplinares,
buscando o que se encontra entre, através e além de todos os campos
disciplinares 1.
Para concluir este estudo desejamos citar uma experiência que a USP irá
implementar a partir de 2002. Trata-se de um Curso de Humanidades. O projeto é
pioneiro, sendo a característica fundamental a interdisciplinaridade.
O curso de Humanidades não habilitará para nenhuma profissão no mercado,
mas somente servirá para continuar a fazer pesquisa depois da graduação. O que ele
oferecerá de novo é um bom conhecimento de filosofia, literatura e artes. Isto servirá
para a formação de futuros pesquisadores em ciências humanas e sociais. “A filosofia
ensina a ler com rigor os conceitos, a literatura e as artes a lidar com as imagens e os
sons. A cultura assim será a base para chegar a pesquisas criativas” 2. No entender, de
um dos idealizadores, o Prof. Renato Janine Ribeiro, o curso destina-se para os que
têm uma curiosidade intensa.
Nós cremos que projetos como estes apontam para a construção de um cenário
transdisciplinar capaz de abrir horizontes para uma nova epistemologia.
1 . CIL, p. 13.
2 . + Personagem. Folha de São Paulo. Caderno MAIS. São Paulo, 24.06.2001, p. 3.