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2001: A Space Odyssey As representaes da ideia de civilizao no figurino eambientao do cenrio1
Lus Paulo PIASSI2
Escola de Artes, Cincias e Humanidades da USP, So Paulo, SP
RESUMO
Nesse trabalho realizamos a anlise de alguns elementos visuais da segunda parte dofilme 2001 uma Odisseia no Espao, dirigido por Stanley Kubrick. A anlise tem comofoco o figurino de alguns personagens femininas da tripulao das espaonaves daestao espacial, articulada com aspectos dos cenrios em que elas aparecem. Partimosdo referencial terico da semitica greimaisiana, sobretudo no que se refere ao nveldiscursivo, onde se constituem atores, espao e tempo e procuramos articular tal anlise
a aspectos da semiologia de Barthes e da semntica lexical de Pottier, com a finalidadede estabelecer as relaes figurativas ali presentes. Procuramos finalmente estabelecerrelaes com as condies de produo da obra, evidenciando alguns aspectosideolgicos implcitos no discurso sobre o futuro e o progresso da explorao espacial
presentes no filme.
PALAVRAS-CHAVE: Anlise flmica e processos de significao do textocinematogrfico; gneros do cinema; figurino; objetos de cena; semitica greimasiana.
INTRODUO
O filme 2001: Uma Odisseia no Espao, dirigido por Stanley Kubrick (2001) ainda
hoje uma importante referncia no cinema, sendo considerado por muitos uma das mais
importantes obras de fico cientfica. Nosso objetivo nesse artigo considerar um
alguns aspectos da segunda parte do filme, com foco no figurino de algumas
personagens com referncias aos cenrios e procurar extrair desses elementos
representaes sobre os conceitos de civilizao e progresso veiculados na obra.
Esse trabalho integra uma pesquisa mais ampla, que procura desenvolver instrumentos
tericos baseados na semitica greimasiana (GREIMAS, 1973; GREIMAS eCOURTS, 2008) para a interpretao de obras cinematogrficas, particularmente da
fico cientfica e fantasia, levando em conta os diversos elementos que compem o
discurso cinematogrfico, com destaque para elementos visuais como o figurino e o
cenrio, entre outros. Tal desenvolvimento tem sido sistematizado por meio da anlise
de algumas obras escolhidas, dentre elas, o filme de Kubrick.
1Trabalho apresentado no GP Cinema, XI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicao, evento componentedo XXXIV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. Apoio: CNPq. 2 Professor do Programa de Ps-graduao em Estudos Culturais da Escola de Artes, Cincias e Humanidades daUSP, email: [email protected].
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A SIGNIFICAO NO CINEMA
O estudo da significao na obra cinematogrfica certamente bastante complexo, no
apenas por envolver diferentes linguagens verbais e no verbais, mas tambm pelo fato
de que um estudo que leve em conta as condies de produo do discurso no cinemafatalmente dever considerar a multiplicidade autoral desse tipo de produo.
Nosso trabalho de pesquisa tem procurado articular trs esferas que julgamos relevantes
no estudo da obra cinematogrfica. A primeira dela diz respeito ao texto em si,
considerado como tudo aquilo que expresso na obra, desde a trilha sonora at as falas
dos personagens. Tal abordagem lana mo da semitica derivada do trabalho de
Greimas (1973, 2008), que investiga a significao a partir das relaes sintagmticas
internas ao texto, naquilo que lhe prprio, procurando evidenciar as estruturasnarrativas a presentes e evidenciar as oposies entre polos axiolgicos expressos
explicita ou tacitamente em seu contedo.
Uma segunda esfera tem como base o exame das condies de produo do discurso,
considerando a presena de um enunciador e de um enunciatrio e, sobretudo, que todo
ato de conversao , acima de tudo, um ato social e, portanto, eivado de
intencionalidades necessariamente ligadas ao contexto social de sua produo. Tais
consideraes, fundamentadas a partir de referenciais derivados da obra de Bahktin e
Voloinov (1986), embora para alguns entrem em choque com a hiptese estruturalista
da semitica, so entendidas como um viso complementar a ela. Entendemos que
alguns elementos de interconexo so necessrios para compatibilizar esses dois pontos
de vista que, tomados isoladamente, ao nosso ver, do apenas uma viso parcial para a
interpretao de um texto. Entre os possveis elementos articuladores, conforme
discutiremos mais adiante, vemos como promissores a retomada de alguns aspectos da
semiologia de Barthes (2006) e da semntica lexical de Pottier (GREIMAS, 1973, p.
50), que permitem considerar de forma mais sistemtica o processo de seleo dos
elementos do texto a partir de um dado universo semntico (sistema) que
fundamentalmente dependente do contexto de produo do discurso, conforme
argumentaremos.
Uma terceira esfera, um tanto alm do alcance dos instrumentos tericos da anlise de
discurso de inspirao bakhtiniana aquela que considera a obra como um fenmeno
cultural fundamentalmente ligado a determinadas condies concretas do contexto
scio-histrico objetivo em que tal produo se d. Tal abordagem, engendrada pelos
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tericos dos Estudos Culturais (KELNER, 2001), considera um produto como um filme
a partir do fenmeno geral do cinema em um dado momento histrico em uma dada
sociedade, realizado por determinados agentes concretos.
Charaudeau (2009, p. 23) considera o problema da construo do sentido a partir do queele denomina os trs lugares da mquina miditica: a produo, o produto e a recepo.
Em relao ao lugar das condies de produo, o autor considera duas instncias
interdependentes, uma ligada aos efeitos econmicos, outra mais relacionada aos
efeitos visados. Uma obra cinematogrfica, nesse contexto, pode por um lado ser
entendida como produto comercial que precisa reverter lucro a seus produtores e
investidores. Segundo Charaudeau (2009, p. 24), nesse espao, o alvo (pblico) no
considerado por seu saber ou por seu desejo de saber, mas confundindo todos os saberese desejos, por comportamentos comerciais. A outra instncia, ligada prtica de
realizao dos produtos compreende as condies semiolgicas da produo aquelas
que presidem prpria realizao do produto miditico (CHARAUDEAU, 2009, p.
25). Nosso foco de interesse est na segunda instncia, considerando, como aponta o
autor a influncia recproca entre as duas e, principalmente o lugar do produto em si,
cuja significao, para ser completamente compreendida desse contexto da produo
mas tambm de aspectos intrnsecos ao texto.
ELEMENTOS TERICOS DA SEMITICA
A semitica de linha francesa, derivada dos trabalhos de Greimas (1973) considera o
texto sob o ponto de vista narrativo. Trata-se de um modelo formal de abordagem da
significao que estabelece mecanismos tericos baseados em entidades abstratas e
operaes. O texto considerado a partir de trs nveis de abstrao. O primeiro deles,
mais superficial e diretamente acessvel ao leitor denominado nvel discursivo, onde
so considerados essencialmente a constituio dos atores, do espao e do tempo e as
relaes figurativas que esse processo engendra. O nvel seguinte o narrativo, no qual
procura-se enquadrar o texto em um modelo narrativo abstrato em que um sujeito est
em busca de um objeto. Essa busca denominada programa narrativo de base. Um dos
pressupostos de que possvel encontrar invariantes comuns a uma imensa gama de
textos que obedecem ao mesmo modelo. O terceiro nvel, denominado nvel
fundamental, o mais abstrato de todos. Nele, procura-se identificar as dicotomias
axiolgicas implcitas em oposies de sentido presentes no texto e o percurso entre os
polos dessas dicotomias. Os trs nveis so interdependentes de forma que a
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interpretao em um deles depende, interativamente, de aspectos fundamentais dos
outros dois, em um processo dito gerativo, comumente denominado percurso gerativo
de sentido.
A questo do figurino e do cenrio na obra cinematogrfica est ligada mais diretamenteao nvel discursivo. Aquilo que na literatura realizado pela descrio dos personagens
e dos ambientes, no cinema, como janela que se abre para a realidade (MERTEN,
2010, p. 17), dado em grande parte pelas imagens das cenas, que esto ali, dizendo por
si s. Os personagens esto vestidos com dada roupa, fazem gestos, tm vozes,
comportamentos, maquiagens e uma srie de elementos que se o escritor de um romance
pode deixar de lado, conforme sua opo narrativa, o diretor de cinema no tem essa
opo. H escolhas a serem feitas e essas escolhas so parte integrante da mensagemque se pretende passar. E essa escolha inclui a pessoa que interpretar o papel, o seu
figurino, a maquiagem e uma srie de outros elementos. A mesma coisa vale para o
cenrio: tudo o que ali aparece resultado de uma escolha.
A produo do nvel discursivo considerada semioticamente a partir da instituio dos
atores3, espao e tempo, pela reunio de diferentes elementos dos componentes
semntico e sinttico (GREIMAS e COURTS, 2008, p. 22). Na medida em que no
constituam componentes essenciais do enredo, o figurino e os elementos de cena
estariam, de acordo com essa definio, relacionados ao componente semntico, que
reveste de sentido atores, espao e tempo.
Um elemento dado traje de indumentria, de acordo com Barthes (2006, p. 67) constitui
um sintagma na medida em que a combinao das peas de vesturios no
intercambiveis entre si (por exemplo, camisa, cala e meia) formam uma composio
com significado: a combinao de uma camiseta esporte com uma cala formal
diferente em seu significado de outra em que temos uma camisa, gravata, palet e cala
formal. O sistema, por outro lado, constitui as escolhas virtualmente possveis para cada
pea do traje: um guarda-roupa com diversas possibilidades de camisas formais, por
exemplo. Cada pea, por outro lado, constitui por si s um sintagma, com elementos
lexicais selecionados pelo estilista que a produziu. A seleo ocorre dentro de um
sistema que envolve tecidos, cores, cortes e acessrios, entre outras coisas. Um mesmo
3 Aqui nos referimos ao conceito semitico de ator, lexema portador de pelo menos um papel temtico e
um papel actancial (GREIMAS e COURTS, 2008, p. 45) o que, evidentemente, nada tem a ver com apessoa fsica que interpreta um papel. Em 2001: Uma Odisseia no Espao o monlito negro e as antasso exemplos atores no desempenhados por pessoas.
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terno possui investimentos semnticos distintos se for confeccionado com um tecido
vermelho ou cinza, por exemplo.
O design de ambientes segue uma lgica similar em que cada objeto de decorao, cada
mvel, cada revestimento estabelece uma relao em presena, sintagmtica com osdemais, ao mesmo tempo em que constitui uma seleo a partir de um sistema virtual de
possveis objetos a ocuparem aquela posio. Novamente, cada objeto em si tambm
constitui um texto completo e, portanto, um sintagma. As selees realizadas pelo
designer incluem no apenas os formatos, mas os materiais e as cores, seguindo a
mesma lgica da pea de vesturio. Tanto em um caso como em outro, a disposio
espacial tambm constitui um elemento de significao.
A semitica semissimblica (PIETROFORTE, 2007) considera a relaes entreelementos da expresso e do contedo que, embora sejam arbitrrias em um mbito
geral, so interconectadas naquilo que Jakobson (1969, p. 129) denomina de funo
potica da linguagem. Um determinado texto produz efeitos estticos e semnticos por
meio dessa associao, como ocorre na poesia com as rimas. Assim as cores, desenhos e
materiais entre outros elementos, considerados como expresso no design de objetos e
vesturio, podem estar associados, de acordo com o contexto, a determinados
contedos. Couro preto, por exemplo, se aplicado a uma jaqueta pode significar
transgresso, mas em um sof pode significar sofisticao. Na semitica semissimblica
o interesse recai sobre oposies semnticas produzidas sobre categorias plsticas que
envolvem a disposio espacial dos elementos (categoria topolgica), seus aspectos
visuais (categoria eidtica) e suas cores (categoria cromtica) e suas associaes com
elementos de contedo.
Porm, enquanto esse modelo de abordagem se ocupa das relaes sintagmticas,
possvel tambm considerar as relaes paradigmticas, ou seja, as oposies entre as
escolhas realizadas e aquelas possveis no contexto do sistema virtual de possibilidades.
Nesse ponto encontramos utilidade no modelo de semntica lexical de Pottier
(GREIMAS, 1973, p. 50). Nesse modelo, consideramos as distines entre unidades
lexicais com proximidade semntica por meio de oposies entre traos distintivos,
denominadossemas. Assim, uma dada pea de vesturio pode ser definida dentro de um
sistema de valores, a partir das oposies que estabelece com aquelas que lhe so
prximas, ou de escolhas possveis dentro de um sistema de possibilidades. A presena
ou ausncia de um trao de expresso, como um decote, por exemplo, pode ser
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associado correspondente presena ou ausncia de um trao de contedo, tal como
sensualidade.
O ESPAO CIVILIZADO DE 2001
Nosso foco de interesse est na segunda parte do filme 2001: Uma Odisseia no Espao,dirigido por Stanley Kubrick (2001) a partir de roteiro produzido pelo diretor com o
escritor de fico cientfica britnico Arthur C. Clarke. O filme possui quatro partes. Na
primeira delas, homindeos pr-histricos em condies precrias de sobrevivncia so
visitados por um estranho objeto negro, que parece estar ali para provocar alguma
mudana nesses seres, que aprendem a manipular ossos como instrumento de caa e
defesa, o que garante a sobrevivncia da espcie. Um corte leva segunda parte, quatro
milhes de anos depois, com uma associao implcita entre o osso-instrumento e umanave espacial. Essa segunda parte nos fala sobre a descoberta de um objeto igual quele
da primeira parte do filme, mas dessa vez enterrado no solo lunar.
A sequncia se inicia ao som da valsa Danbio Azul de Strauss exibindo satlites e
espaonaves diversas em rbita da Terra e enfoca-se em um veculo espacial em
formato de avio, no qual se encontra o personagem principal dessa parte, o cientista
Dr. Heywood Floyd. No interior dessa espaonave vemos um ambiente muito similar a
uma aeronave de passageiros comercial, embora um tanto mais luxuoso do que seria
observado no final dos anos 1960, com poltronas e revestimentos de couro e incluindo
itens tecnolgicos como um monitor de TV individual no encosto de cada poltrona.
Floyd est dormindo em sua poltrona e o nico ocupante da cabine, que possui lugares
para dezenas de passageiros. A primeira cena que se v no interior dessa nave uma
caneta flutuando no ar. Uma comissria de bordo ingressa no ambiente, coloca a caneta
no bolso de Floyd e desliga seu monitor de TV.
Uma longa sequncia mostra a acoplagem desse nibus espacial a uma grande estao
orbital girante. As manobras realizadas pela nave, os procedimentos dos pilotos e os
movimentos dos artefatos espaciais. No final da sequncia vemos Floyd chegando ao
saguo da estao espacial, acompanhado de uma comissria de bordo (Figura 1c) em
um elevador.
Voloinov (1986, p. 9) inicia seu Marxismo e Filosofia da Linguagem dizendo que
qualquer corpo fsico pode ser percebido como uma imagem (...). Qualquer imagem
artstico-simblica que um corpo fsico emerge tambm um produto ideolgico.
Sudjic (2010, p. 91) d algumas perspectivas do sentido de luxo, incluindo aquelas que
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ele denomina com concepes antigas do luxo como trgua que a humanidade
encontrava para si da luta diria pela sobrevivncia. De uma forma geral, o luxo
caracterizado pelo excesso, por aquilo que vai bem alm do necessrio e est associado
noo de conforto. Os ambientes do filme, como os fotogramas a e b da figura 1 nosrevelam, so marcados no por uma opulncia ou por um exagero explcito, mas uma
espcie de desperdcio. Um elevador muito amplo com sofs de couro preto, uma
aeronave com dezenas de assentos confortveis, tudo isso aparentemente constituindo a
ideia geral de ambientes voltados para turistas, em grande nmero e, ao mesmo tempo,
sendo usado por um nico passageiro, Heywood Floyd. Um luxo discreto, mas ainda
sim um luxo. O conforto figurativizado como um aspecto da ordem, do bem-estar, da
civilidade.
Figura 1 Uniformes das funcionrias da estao espacial (c) e das espaonaves; (c) e (d) modelosde Hardy Amies para a rainha Elizabeth II4.
A sofisticao discreta desses ambientes aparentemente simples completada pela
hospitalidade representada pelas tripulaes das espaonaves, que em atitudes sempre
cordiais, garantem a Floyd um conforto que nos aparece como natural, como a
representao de um futuro idealizado em que e espao sideral ocupado pela
civilidade humana.
O figurino do filme foi completamente produzido por Hardy Amies (BERNSTEIN,
2000, p. 85), estilista oficial da rainha britnica Elizabeth II desde sua subida ao trono
at 1989 (BIOGRAPHY, 2011). De acordo com Bernstein (2000, p. 85) Kubrick
escolheu Amies em detrimento de outras opes de estilistas com tendncias tidas como
mais modernas na poca, temendo que o resultado final pudesse parecer como pouco
srio.
4 Fotos: (a) BBC (OBITUARY, 2003); (b) Daily Mail Online (QUEENS, 2008); (c) e (d) 2001: Uma Odisseia noEspao (KUBRICK, 2001).
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Os trajes (figuras 1a e 1b), assim como alguns produzidos para a monarca britnica
(figuras 1c e 1d), articulam modernidade e alegria com uma atitude contida, como nos
aponta Sudjic (2010, p. 134). Os cortes das roupas so retos, no h botes ou quaisquer
acessrios aparentes, no h qualquer espcie de apelo revelao do corpo. Ao mesmotempo, no so trajes convencionais, corriqueiros. Chamam a ateno pelo contraste que
estabelecem em relao ao comum, em uma medida calculada, ocupando a ateno sem
provocar surpresa excessiva.
Figura 2 Alguns figurinos femininos de filmes espaciais: (a) Barbarella (1968), (b), Tenente Uhura(Star Trek, 1966), (c) Tenente Ripley (Alien, 1979) e (d) Princesa Leia (Star Wars, 1977)
A modernidade sbria e discreta dos figurinos de 2001: Uma Odisseia no Espao
pode ser contrastada com um sistema de possibilidades de uniformes femininos emoutros filmes espaciais, com personagens que representam papis diferentes, o que
certamente um forte fator de distino, mas tambm em funo de uma viso mais
ampla a respeito da relao entre futuro, ocupao do espao e civilizao.
O uso de marcadores com traos distintivos binrios, derivados da semntica lexical de
Pottier (GREIMAS, 1973, p.50) permitiria, ao menos em tese, caracterizar um dado
elemento lexical em funo de sua distino com outros, dentro de um mesmo sistema.
Se na prtica isso no to simples mesmo para o lxico de uma linguagem verbal, nocaso mais complexo de um figurino, fica claro que invivel imaginar que qualquer
conjunto de traos, marcados com presena ou ausncia, possa caracterizar
completamente um dado traje. Ainda assim, acreditamos que o modelo til na medida
em que no pretenda caracterizar completa e univocamente um dado item lexical, mas
sim elucidar algumas oposies de valores em relao a um sistema relevante de itens
comparveis. No nosso caso, conforme apontamos, elegemos exemplos de personagens
femininas de filmes espaciais mas, mesmo assim, a disparidade muito grande a ponto
de podemos falar em uma proximidade lexical como aquela usada nos exemplos da
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semntica, em que os termos comparados so quase sinnimos. Mesmo assim,
conseguimos salientar alguns aspectos importantes que podem ser considerados na
anlise da relao entre as figuras e os temas relacionados actorializao, ao menos no
que se refere ao papel desempenhado pelo figurino nesse processo. Podemos nosreportar ao pequeno conjunto de exemplos apresentados na tabela 1.
Tabela 1 Exemplos de traos distintivos na comparao entre figurinos
Saia/Vestido
Cala
Acessrios
Distintivos
Justa
Braos
Pernas
Barriga
Formal
Profissional
Sofisticado
2001 Odisseia - + - + - - - - + + -Barbarella - - + - + + + - - + +Tenente Uhura + - - + + - + - + + -
Princesa Leia + - + - - - - - + - +Tenente Ripley - - - - + + + + - - -
A tabela traz categorias diversas de traos distintivos. Os primeiros se referem a peas
de vesturio, a presena de cala comprida, saia, vestido. Cada uma dessas peas, por
sua vez, possui seus prprios aspectos. H uma figuratividade presente em cada uma
delas e no conjunto como um todo. A presena de distintivos em uma blusa ou em um
chapu implica, por exemplo, uma certa instituio e, ao mesmo tempo um traje
profissional. Outro aspecto que pode ser considerado a relao entre as partes do
corpo que so exibidas ou ocultadas, assim como o fato da roupa ser mais folgada ou
justa, evidenciando ou ocultando as formas do corpo. Alm de aspectos ligados
sensualidade, tais traos implicam em valores semnticos ligados
formalidade/informalidade, espao pblico/ espao privado, atividade/passividade, entre
outros. Outros elementos importantes a serem levados em conta so as cores, as
texturas, a complexidade dos cortes e dos acessrios.
Em nossa anlise especfica, se os figurinos de personagens de outros filmes no bastam
para caracterizar a significao daqueles presentes em 2001: Uma Odisseia no
Espao, ao menos permitem estabelecer algumas relaes, por oposio, que nos
auxiliam na tarefa de interpretar o significado dos trajes usados pelas personagens no
contexto mais amplo da obra.
O modelo de uniforme que ocupa mais tempo de narrativa o do fotograma da figura
1b. Ele usado por trs personagens comissrias de bordo em duas espaonaves: uma
na a que transporta Floyd da Terra estao orbital e duas outras na nave que o leva dali
at a base lunar. A figura corresponde ao primeiro caso, em que a comissria adentra a
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cabine para guardar a caneta flutuante. Outras importantes sequncias do destaque a
atuao das comissrias. Assim como na cena da espaonave similar a um avio, aqui
temos um longo trecho sem dilogos, ao som de Danbio Azul.
Figura 3 Cenas que destacam o figurino das comissrias de bordo.
A figura 3 mostra a srie de eventos: (A) uma comissria tenta oferecer a bandeja de
alimentos do servio de bordo a Floyd, mas ele est dormindo; (B) uma comissria
serve alimento outra; (C) um close dado na bandeja; (D) a comissria vai at a copa
da nave e retira mais bandejas de uma mquina; (E) ela caminha por um compartimento
redondo, e fica de ponta cabea, evidenciando o efeito de imponderabilide no ambiente;(F) ela ingressa na cabine dos pilotos para servir a eles. Na sequncia da cena anterior,
ela aparece de ponta cabea e um giro lento de cmera a coloca novamente de cabea
para cima. Assim, nesses momentos, as comissrias evidenciam os fenmenos
interessantes da vida na ausncia de peso, com canetas flutuantes, caminhadas pelas
paredes e alimentos consumidos com canudinhos, ao mesmo tempo que reafirmam a
domnio humano sobre essas condies adversas, com todo o conforto e hospitalidade
que permitem que Floyd esteja sempre em um sono tranquilo.
Seu traje branco, sbrio e assptico, ao mesmo tempo causa pequena estranheza,
sobretudo pela esttica incomum da boina que oculta completamente os cabelos e que
presa por um elstico, possivelmente para que a imponderabilidade gravitacional no
permita fios de cabelos voando pelos acolhedores ambientes das espaonaves. Sua
simplicidade, despojamento e sobriedade, figurativizadas na cor branca, contrastam com
a multiplicidade de cores e materiais da luxuosa (mas no exuberante) decorao interna
dos veculos. O traje, que cobre todo o corpo e os cabelos, com seu corte reto e aspectofuncional despersonaliza as comissrias, tornando-as um elemento genrico, cuja funo
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servir. Interessante notar que em nenhuma cena Floyd interage com elas. Est sempre
dormindo e ignora sua presena.
Em comparao com outros trajes de filmes espaciais, verificamos alguns aspectos que
ajudam a confirmar essas observaes. A cor escolhida para o uniforme branca,
certamente uma escolha que tende mais para o sbrio do que para o chamativo. Outros
uniformes usados por funcionrias tambm optam por cores pouco vibrantes e com
tendncias suaves, como o rosa e o bege. A presena de boinas ou chapus em todos
eles, em contraste com os dos outros filmes, sugere formalidade e passividade, em
oposio a uma atividade fsica movimentada. As roupas no so justas, nem
excessivamente folgadas e tambm no expem qualquer parte do corpo alm de mos e
cabea, exceto a metade posterior do antebrao, em um comprimento de manga poucocomum, talvez justificvel em funo da funcionalidade especfica do trabalho.
O traje no pode ser considerado sofisticado. Seu corte simples e no h dobras ou
acessrios. Sequer existem botes ou cintos aparentes e a blusa desprovida de bolsos
ou gola. A cala tambm no possui bolsos ou quaisquer adereos. Tudo concorre para a
ideia de um traje funcional, profissional, genrico, produzido para tornar seu usurio
quase invisvel, como parte da paisagem. A boina, como elemento que mais chama
ateno, por outro lado, ao ocultar completamente os cabelos contribui com essa
atenuao da identidade.
CONSIDERAES FINAIS
Iniciamos esse trabalho mencionando trs esferas de anlise da obra cinematogrfica d
como texto. Consideramos um aspecto particular, parte do figurino e alguns elementos
do cenrio para produzir algumas reflexes sobre o significado desse elementos no
contexto mais geral da obra. Entendemos que o contexto scio-histrico da produo de
2001: Uma Odisseia no Espao possui importantes particularidades a serem
consideradas. Em primeiro lugar um contexto de guerra fria, que tem um lado
glamoroso na disputa tecnolgica que ficou conhecida como corrida espacial. A ideia de
que o espao pode ser colonizado, ou melhor ocupado, de forma civilizada, com o
conforto e a segurana que o discurso ideolgico ocidental preferia enfatizar, como
resultado das conquistas tecnolgicas decorrentes do modelo econmico. As
corporaes empresariais so onipresentes em 2001: Uma Odisseia no Espao, com
referncias explcitas a companhias como PanAm, IBM, Hilton, Howard Johnson, Bell
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e at a russa Aeroflot. A presena dos logotipos empresariais apresentam tambm um
domnio completo do espao orbital e lunar como expanso do espao terrestre, com
todos os benefcios que isso supostamente encerra.
O discurso do filme essencialmente apaziguador. A cincia e a tecnologia conseguem
estabelecer um nvel civilizatrio em que tudo est sob controle e uma pessoa como
Floyd pode ir para o espao e se lembrar de fazer ligaes videofnicas para sua
pequena filha que ir fazer aniversrio e conversar amenidades com uma colega
cientista russa, amiga de longa data. O conflito entre ideologias capitalistas e
comunistas superado por um objetivo maior: o conhecimento, o progresso e a
evoluo humanas, resultado do desenvolvimento cientifico e tecnolgico.
A escolha do figurinista, nesse contexto, dificilmente poderia ser mais feliz. A
sobriedade e a sofisticao contida de Hardy Amies ajuda a imprimir a ideologia da
tradio civilizatria da cultura britnica. No filme no h violncia nem sexualidade
apelativa nos humanos evoludos da era espacial, que trocaram a resoluo de conflitos
na base de golpes de osso, encenada pelos homindeos ancestrais, por cordiais e
cautelosas conversas em torno de assuntos potencialmente polmicos com as
contrapartes russas, igualmente civilizadas.
Analisar 2001: Uma Odisseia no Espao sem considerar esse contexto scio-histrico,
no nosso entender, traria perdas importantes na compreenso daquilo que vemos na tela:
na escolha coerente dos vrios elementos, dentre eles o figurino e o cenrio. A ideologia
do luxo contido, do conforto necessrio, proporcionado pelo modelo de sociedade
capitalista sustentada pelo aporte do conhecimento tecno-cientfico estabelece um
programa de desejos futuros, de utopia social a ser perseguida. E o melhor de tudo:
estamos no caminho certo. O espao orbital e lunar portanto mais um passo na
escalada da humanidade em direo a uma existncia qualitativamente superior. A
ideologia presente nos uniformes, nos corredores, nos ambientes e mveis com aspecto
sobriamente moderno procura nos convencer da possibilidade real desse programa. As
comissrias de bordo, com seus uniformes brancos esto l para mostrar como ser
nosso futuro civilizado e para nos dar vontade de chegar at l.
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