5º ENCONTRO
DA
ANDHEP (DE 17 A 19 DE SETEMBRO DE 2009 em Belém do Pará)
Direitos Humanos,
Democracia e diversidade.
“Acesso à justiça, por uma visão
tridimensional”
Autora: Raquel Coelho Lenz César
GT Acesso à Justiça e Direitos Humanos
Universidade Federal do Ceará
Pós-graduação: Faculdade de Direito
Após um longo processo de evolução política e jurídica do Estado Moderno, o
conceito teórico de acesso à justiça chega ao momento atual significando um direito
humano tutelado nas constituições dos países ocidentais democráticos.1 Sua
compreensão conceitual desenvolveu-se na modernidade associada a mecanismos
institucionais e processuais que pudessem dar condições ao cidadão de reivindicar
seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.2 Assim é que a
moderna processualística já apresenta importantes contribuições no sentido de buscar
uma efetivação desse acesso não só ao indivíduo, mas também a grupos e
coletividades, enquanto a organização judiciária se desdobra em tribunais mais
simplificados e informais para tentar suprir diferenças culturais, geográficas,
econômicas e, até mesmo, políticas.3 No entanto, como um direito humano, o conceito
de acesso à justiça parece não se esgotar nas vias processuais ou institucionais da
organização judiciária. Mas, sugere um repensar epistemológico que o aproxime de
uma concepção de justiça mais substancial, onde a ordem jurídica, ao invés de manter
o status quo e cristalizar as desigualdades que são institucionalizadas pelo liberalismo
político que a tem orientado, possa satisfazer as necessidades de inclusão e isonomia
dos mais desiguais na sociedade. 4
1 Embora CAPPELLETTI e GARTH considerem o "acesso" como o ponto central da moderna processualística, cuja tarefa básica é "expor o impacto substantivo dos vários mecanismos de processamento de litígios", eles também o reconhecem como um "direito social fundamental", o qual requer uma metodologia de análise que extrapole as fronteiras dos tribunais, utilizando outros parâmetros como "a sociologia, a política, a psicologia, a economia, e outros" que nos levem a aprender a compreender e a efetivar o "acesso" através de outras culturas. CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryan, Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p.13. Do mesmo modo, Boaventura de Sousa Santos confirma o status constitucional do direito ao acesso à justiça: "o acesso à justiça para todos é um Direito constitucionalmente consagrado (art.20, CRP), e consensual na sociedade portuguesa" ...Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento, 1996. Coleção Saber imaginar o social, n.8, p.485. Ainda sobre o tema, José Augusto Garcia, O princípio constitucional do acesso à justiça: dínamo da ordem jurídica brasileira, dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2001. 2 Conceito desenvolvido por CAPPELLETTI e GARTH. Op. cit., p. 3 Repensando essa necessidade, Paulo Cesar Pinheiro Carneiro, em seu trabalho Acesso à Justiça - Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública, (Rio de Janeiro: Forense, 1999), adverte para a necessidade de se construir um novo projeto ético "que resgate os valores desenvolvidos ao longo dos séculos e coloque em pauta, para discussão, diversas questões que abranjam diretamente o ser humano, destacando-se, dentre elas, a da justiça na sua acepção mais ampla, desde o direito a uma vida digna até a efetiva proteção judicial de todos. Este é o grande desafio do futuro", comenta o renomado processualista, p.31. 4 J.J. Calmon de Passos, em "Processo e Democracia", (org.) de Ada P. Grinover, 1998, afirma que o direito "é a única forma histórica de justiça. Isso não significa seja o direito a realização da justiça absoluta, ou de mais perfeita forma de justiça. Ele é apenas um projeto de justiça, nos limites da contingência que para ela ditam e para ela põem as correlações reais de forças na sociedade. Pode-se, pois, dizer que uma ordem jurídica realiza tanto mais justiça quanto menos necessidades deixa insatisfeitas e quanto menos expectativas desatendidas ocasiona, e tanto mais injusta quanto mais desiguala privilegiando, com o que agrava o número dos excluídos e dos insatisfeitos." p.87
É certo que as reformas institucionais e processuais ocorridas mais
recentemente em diversos Estados ocidentais, também podem ser compreendidas
como uma tentativa de romper com a concepção de uma justiça formal e imóvel,
fundamentada nos ideais de igualdade oferecidos pelo programa liberal.5 Entretanto,
elas têm demonstrado incompatibilidades práticas em atingir essa meta igualitária,
devido, principalmente, as atividades meio que desempenham. Com isso, reforçam a
constante necessidade de se repensar o acesso à justiça não apenas através da
igualdade das partes que formalizam uma lide, ou igual possibilidade de acesso ao
Judiciário, ou ainda, de técnicas processuais mais hábeis na solução dos conflitos
sociais. Mas, sobretudo através de uma ordem jurídica mais justa, compreendida neste
trabalho como aquela que busca a igualdade material das minorias excluídas na
sociedade brasileira.
Esse sentido não tem sido muito evidenciado nas vertentes institucionais e
processuais da justiça, as quais se inserem no debate, muito mais como complementos
instrumentais fundamentais na aplicação e interpretação de um direito substancial na
busca por um modo mais adequado à realização do justo do que como a própria
definição do acesso à justiça.
De qualquer modo, como a noção de acesso à justiça veio se desenvolvendo
atrelada, principalmente, a essas vertentes que são condições de meio e não de fim, ela
acabou por limitar toda a potencialidade do termo, deixando naqueles que mais
necessitam de uma real efetividade dele, a sensação do vazio, ou, como afirmou Ada
Pellegrini Grinover6, a constatação de que não existe justiça porque essa é injusta e
inacessível. Daí a compreensão conceitual do acesso à justiça como a realização de
uma justiça substancial, na tradução da busca do justo como a busca pelo igual,7 ser o
repensar metodológico fundamental que conduz todo o desenrolar teórico desse
artigo.8
5 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de, "A Informalização da Justiça Penal e a Lei 9.099/95 - entre a rotinização do controle social e a ampliação do acesso à justiça", In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.31, p.319. 6 GRINOVER, Ada Pellegrini. "A crise do Poder Judiciário ". In: O processo em evolução. 2ªed. São Paulo: Forense Universitária, 1998.p.21. 7 Afirmação elaborada filosoficamente pelos gregos. Foi Aristóteles mais precisamente quem desenvolveu a noção da justiça definida pela igualdade. Em sua obra Ética a Nicômaco, o grande formulador da antiguidade sobre a teoria da justiça a definia como... 8 Como nos ensina Karl Larenz: "A metodologia de uma ciência é a sua reflexão sobre a sua própria atividade. Ela não pretende somente, porém, descrever os métodos aplicados na ciência, mas também
1.1. O ACESSO À JUSTIÇA INSTITUCIONAL
O significado de justiça na Modernidade tem assumido várias conotações, não
havendo necessariamente uma aferição que seja mais precisa ou que traduza um
conceito único, aceito universalmente. Unger chega a afirmar que é mais fácil se
descobrir onde a injustiça reside do que identificar onde a justiça possa estar. Isso
porque os projetos de construção das sociedades liberais, dos quais o direito tem sido
parte fundamental foram, desde o início, orientados por critérios formalistas
simbolizadores do justo, os quais uma vez aproximados da realidade social, passaram a
apresentar uma fragilidade tão desconcertante teoricamente que para se acessar o que
fosse, de fato, mais justo, ter-se-ia que, ou modificar tais critérios ou cometer o que
aparentemente parecia injusto por contrariá-los.9 Por essa razão é que a partir da
distância, muitas vezes estabelecida entre o modelo democrático teórico e o mundo
social concreto, passou-se a buscar uma constante reconstrução político-jurídica
justificada mais em nossos erros do que em nossos acertos. Na expectativa da
funcionalidade de cada novo experimento10 está a crença de que ou estamos próximos
da justiça, ou já estamos promovendo o seu acesso aos que dela necessitam.
Este foi o modo como a forma institucional do acesso à justiça consolidou-se
como uma importante vertente de justiça nos dois últimos séculos, até que expusesse
sua crise interna já há muito reconhecida na sociedade. Marcada pelos ideais liberais,
esta vertente esteve representada desde a sua constituição pela funcionalidade do
compreendê-los, isto é, conhecer a sua necessidade, a sua justificação e os seus limites. A necessidade e a justificação de um método decorre do significado, da especificidade estrutural do objecto que por meio dele deve ser elucidado." LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, prefácio. 9 UNGER, Roberto Mangabeira. Knowledge and politics. "se nós tratamos direitos como algo derivado das circunstâncias da vida social, nós estamos forçados a explicar como padrões avaliadores ou norteadores do direito podem vir dos fatos. Se a lógica é que o direito deriva dos fatos, e os direitos naturais são idéias que surgem antes das leis, como elas poderiam também inferir nos fatos? Se, ao contrário, nós apresentamos os direitos como meios simplesmente prudentes para atingir fins, como paz e prosperidade, nós temos que explicar como vamos julgar as divergências entre esses fins e o que acontece quando, num caso particular, o objetivo parece melhor alcançado se desrespeitar o direito". (tradução livre). 10 Idéia defendida pelo Juiz da Suprema Corte Americana, Justice Holmes am Abrams v. United States, referindo-se à Constituição Americana: ..."It is an experiment, as all life is an experiment"(A constituição é um experimento, assim como toda vida é um experimento). Em outras palavras, o direito traduz um sistema de segurança jurídica, que se verifica à medida em que há uma consonância das normas jurídicas com as expectativas da sociedade, e o acreditar que, no conteúdo destas normas, está, de fato, o resguardo dos arranjos sócio-econômicos e políticos que rompam com todo o tipo de dependência humana não voluntária e, portanto, injusta.
Poder Judiciário, cuja atribuição exclusiva era de "pronunciar as sentenças da lei",11
amparada na teoria da separação dos poderes, e que confundia a justiça com o
Judiciário e seus operadores.
Embora parecesse lógica essa relação, pelo fato de caber aos Tribunais a
decisão sobre o direito e ser este o espaço designado na Modernidade para o
acolhimento das lides, o fictício equilíbrio entre os Poderes, combinado com a formal
mentalidade dos operadores do direito, a falta de controles eficazes sobre o exercício
da função jurisdicional, e a estrutura inadequada para acolher e acompanhar os litígios
resultantes da profunda transformação social que marcava o século XIX, cedo foi
desconsiderando a possibilidade de acesso à justiça somente através desse caminho.
Boaventura de Sousa Santos em sua pesquisa sobre os tribunais nas
sociedades contemporâneas12 observou que ao não definir um papel mais participativo
dos tribunais, na realidade político-jurídica, a teoria dos poderes, baseada na harmonia
e equilíbrio entre estes, estabeleceu, na prática, uma predominância do Poder
Legislativo sobre os demais, neutralizando politicamente a atuação do Judiciário na
construção de uma ordem social mais justa. Como o Legislativo definia o direito a partir
da proteção às autonomias privadas e à propriedade, cabia então aos tribunais apenas
conformarem suas decisões à cultura jurídica liberal vinculada estritamente ao princípio
da legalidade, impedidos que estavam de atuar contra legem. Com isso, assumiam um
papel passivo, aparentemente neutro, onde a sua independência era conferida apenas
na garantia das liberdades e na ausência de interferência no sistema político-
institucional.13
Esta "neutralização", que também pode ser compreendida como a própria
segurança do sistema, trazia a perspectiva de universalização da cidadania, através da
crença de que todos seriam iguais perante a lei e esta seria uma só para todos.14 Com
base nesse fundamento institucional, Rodrigo C. de Azevedo acrescenta que todos os
conflitos podiam "ser universalmente submetidos a um único sistema de tribunais, com
um único sistema de regras procedimentais desenvolvidas pouco a pouco. Do ponto de
11 Montesquieu.O espírito das leis. 2.ed. Trad.brasileira. Brasília: UNB, 1995, Livro XI, cap.VI, p.123. 12 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João; FERREIRA, Pedro Lopes. Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamentos, 1996., Colecção Saber Imaginar o Social, v.8. 13 Veja discussão sobre a construção da igualdade racial no direito brasileiro na quarta parte desta tese. 14 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. “A informalização da Justiça Penal e a Lei 9.099/95 - entre a rotinização do controle social e a ampliação do acesso à justiça”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.31, p.312
vista das instituições, o direito de julgar adquirido pelo Estado desenvolveu a
profissionalização do direito, pela organização da burocracia estatal especializada, e
pelo estabelecimento da força pública."15
A especialização do direto aplicado pelos tribunais ocorreu, sobretudo, na
atividade jurisdicional orientada pelo positivismo normativista, que prescindia de uma
aplicabilidade do direito condicionada à subsunção racional-formal de fatos a normas,
estas desvinculadas de quaisquer referências sociais, éticas ou políticas. A
compreensão do direito segundo a escola positivista era, como expõem Cappelletti e
Garth, meramente exegética, quando muito, consistindo em "julgar as normas de
procedimento à base de sua validade histórica e de sua operacionalidade em situações
hipotéticas, ou com base na teoria do procedimento, mas nunca orientada pelas
experiências do mundo concreto".16 Desse modo, os tribunais limitavam sua atividade a
um campo jurídico-político pré-constituído, onde a função jurisdicional principal era
"reconstituir uma realidade normativa plenamente constituída."17
As decisões judiciais guiavam-se não só pelo método positivista, como também
pela generalidade, universalidade e abstração das leis. A combinação desses fatores
nem sempre concedia uma segurança substancial às partes, principalmente quando se
referiam a casos concretos em que o universal não se aplicava ao particular e quando o
fim da decisão não estava na proteção humana, na promoção do seu bem-estar ou no
suprimento de sua necessidade material, mas sim, na aplicabilidade formal da norma
orientada pelo princípio da igualdade formal. Desse modo, a insegurança advinda de
procedimentos e de princípios universalistas era contornada, na síntese de Boaventura
de Sousa Santos, "quer pela secularização processual do presente (a observância das
regras de processo), quer pela secularização processual do futuro (o princípio do caso
julgado),"18 legando às partes uma solução formal ao caso associada a uma estranha
sensação de que a justiça não foi de todo alcançada.
Sob essa orientação metodológica, os tribunais foram evoluindo ao longo da
história, confinados à administração de uma justiça retributiva onde as decisões haviam
que ser encontradas dentro de um sistema que nem sempre lhes oferecia muita saída,
a não ser que ele próprio fosse reestruturado ou reinterpretado. Assim, o seu caráter
retroativo, sem participação alguma na elaboração da justiça distributiva elaborada
15 Ibid. 16 CAPPELLETTI e GARTH, op. cit. p.10. 17 SANTOS et al., op.cit,.p.23. 18 Idem, p.23
pelos outros Poderes,19 limitava, não apenas o imaginário da ordem jurídica, como
criava uma imagem de descrédito, desconfiança e insatisfação popular com o seu
desempenho.20
Acessar à justiça, nesse sistema liberal do laissez-faire, significava assim ter o
direito ao acesso a uma proteção judicial dogmática, formal.21 Como os direitos eram
tratados individualmente, o acesso à justiça, dentro dessa ordem, não requeria uma
intervenção estatal na sua implementação, precisando ser assegurado somente quando
a autonomia de cada um dos que podiam usufrui-lo fosse ameaçada. Desse modo, os
litígios que chegavam aos tribunais caracterizavam-se pela sua micro-litigiosidade, cuja
repercussão jurídica recaía somente entre as partes. Não havia, na perspectiva
jurisdicional, maiores preocupações com os problemas macro-sociais que se
agravavam com o desenvolvimento da indústria e da conseqüente expansão do
capitalismo econômico. A cultura jurídica criada a partir dessa realidade expandiu-se
por todo o século XX, afastando cada vez mais o Judiciário dos mais necessitados.
Mas além do problema da aplicação do direito e da sua individualização, os
problemas estruturais da burocracia apresentados pelo Judiciário também afastavam
seus usuários da possibilidade de um acesso democrático. Os principais problemas
estruturais do Judiciário podiam ser facilmente identificados nos três setores de maior
obstáculo para o acesso da população excluída. Primeiro, no setor econômico, o qual
realizava prima facie uma seleção "natural" do acesso ao Judiciário somente àqueles
que pudessem pagar os altos custos das ações. O segundo, no setor social, o qual,
devido à conjugação de novos conflitos sociais, foi sobrecarregando de tal modo a
instituição, que, no final do século passado, já a tinham como extremamente
inadequada para apresentar soluções eficientes e idôneas diante das demandas por
novos direitos. E, finalmente, no setor cultural, por não conseguir atender às
necessidades dos mais necessitados, inclusive ao clamor de uma melhor distribuição de
19 Idem, p.24 20 Sobre o assunto, Joaquim Falcão expôs, em encontro dos magistrados para discutir o problema do acesso à justiça no Brasil , que há um descrédito, uma desconfiança e uma insatisfação popular revelada nas pesquisas, sobre o desempenho do Judiciário. A mesma pesquisa a que se referia o pesquisador, também demonstrou que "a população quer e necessita do Poder Judiciário. Prefere-o à lei dos mais fortes, ou a qualquer outra forma de justiça alternativa." In: Justiça: Promessa e Realidade, o acesso à justiça em países íbero-americanos. Organizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996,p.281. 21 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Brian. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1988. p.9.
bens e direitos que possibilitassem o acesso dos mais pobres ao Judiciário.22 Esses
problemas não só criavam obstáculos para um acesso à justiça mais igualitária, como
tornavam o Judiciário um órgão de pouca utilidade para grande parte da população.
A crise que se instalava sobre o Judiciário era a própria crise do Estado que não
conseguia mais sustentar a "crença na naturalidade das hierarquias de poder ou de
distribuição de riquezas existentes".23 Como conseqüência dessa crise, as pressões
sociais passavam a cobrar uma maior instrumentalidade do direito, exigindo da
governabilidade uma atenção especial às suas demandas. O direito passava então a
ser fracionado e instrumentalizado para atender às diversas forças sociais, desde as
grandes corporações, até as camadas mais subrepresentadas na sociedade, ambas
insatisfeitas com os obstáculos burocráticos de acesso à justiça.
Como a ordem jurídica não era alterada de modo a reduzir substancialmente as
desigualdades sociais e, com isso, solucionar a maior parte dos conflitos gerados nas
classes mais pobres, a reconquista da legitimidade perante o Judiciário concentrava-se
sobre o aprimoramento de sua funcionalidade, para que fosse garantido aos grupos
demandantes, no mínimo, a produção de decisões na mesma velocidade em que
cresciam as demandas por novas sentenças. Segundo Joaquim Falcão, nas críticas que
se lançavam contra o desempenho do Judiciário não se chegava sequer a mencionar a
necessidade de se produzir sentenças de qualidade. Bastava que a sua produção fosse
equilibrada ao nível das demandas para que se tivesse um sistema funcionalmente
mais seguro.24 Quanto ao aspecto qualitativo, este deveria ser refletido com base, não
numa cultura estagnada, mas na necessidade de se romper com o caráter elitista da
instituição e de se criar uma cultura mais democrática na realização de direitos.
Uma resposta concreta a essa crise somente surgiu a partir de uma nova
mentalidade jurídico-política, e, conseqüentemente, de um novo instrumentalismo
jurídico divulgado internacionalmente nos países centrais na década de 70, que exigiam
do Estado um Judiciário mais informal. Esse movimento chegou aos demais países
ocidentais periféricos pressionando-os a acompanharem tais reformas.
A nova mentalidade começou por denunciar algumas contradições internas do
sistema jurídico como a utopia da separação e independência dos poderes estatais dos
22 GRINOVER, Ada Pellegrini. "A Crise do Poder Judiciário". In: O Processo em evolução. 2.ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998, p.21. 23 AZEVEDO, Rodrigo C. de, op. cit.p.313. 24 FALCÃO, Joaquim. "Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento. In: Promessa e realidade, o acesso à justiça em países íbero-americanos. Org. Associação dos Magistrados Brasileiros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p.272.
quais o Judiciário é parte25, a impossibilidade de se manter a doutrina do silogismo
judicial26 no atendimento às necessidades sociais, o excesso de formalidades que
comprometiam a qualidade das decisões judiciais e a insuficiência operacional do
Judiciário em apresentar soluções rápidas para os litígios. A partir daí, passou-se a
cobrar a criação de uma instrumentalidade que pudesse adequar-se às novas
demandas resultantes das questões sociais como forma de resgate parcial de uma
justiça mais próxima das necessidades do povo. Dentre outras medidas reformistas, o
movimento cobrava uma descentralização e desburocratização do Judiciário através,
tanto da criação de novas instalações mais acessíveis à população trabalhadora e
excluída, quanto do estabelecimento de ritos mais simplificados na disputa pelos novos
direitos.
O fato é que o Judiciário conseguiu um grande avanço com os desdobramentos
de sua estrutura funcional, aproximando-se geograficamente e politicamente da
sociedade. Mas, por outro lado, há que se considerar que a sociedade contemporânea
também cresceu, diversificando seus conflitos e esperando do mesmo modo que o
Judiciário os solucione a contento, o que parece não ter acontecido.
1.1. O ACESSO À JUSTIÇA PROCESSUAL
A concepção do acesso à justiça também tem sido bastante difundida no campo
do processo, até mesmo porque no ideário do Estado Liberal, direito, processo e
Judiciário, sempre caminharam juntos, tornando-se difícil refletir sobre os problemas de
um, sem se considerar o do outro. Como colocou Humberto Theodoro Jr., "compreender
o processo, é compreender o poder jurídico que se reconhece a alguém de se dirigir
aos órgãos de jurisdição e exigir deles uma resposta a uma pretensão contra outra
pessoa, em face da qual se estabeleceu um conflito de interesses".27 Por isso, acessar
à justiça significa, nesta vertente, reconhecer as regras que disciplinam o poder de cada
um conhecer o seu direito. Assim, o acesso à justiça será tanto melhor quanto melhor
instrumentalizado estiver esse poder individual.
25 Neste sentido, a artigo de Mário Machado é bastante elucidativo, "Raízes do controle externo do Judiciário", In: Monitor Público, n.8, ano 3, jan/fev/mar/1996. 26 CAPPELLETTI, Mauro. "O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época".In: Atualidades Internacionais, Direito Processual Civil. Vol.61, jan/mar 1991, p.146 27 THEODORO JR., Humberto. Direito e processo: direito processual civil ao vivo. Rio de Janeiro: Aide, 1997, v.5, p.15.
Nesta concepção, acessar não significa propriamente adquirir, mas sim, ter um
caminho hábil orientado juridicamente para se chegar a uma prestação jurisdicional
satisfatória. Embora seja essa a tônica atual da ciência processual, isto é, buscar extrair
do processo "todo o proveito que ele seja potencialmente apto a proporcionar, sem
deixar resíduos de insatisfação por eliminar e sem se satisfazer com soluções que não
sejam jurídicas e socialmente legítimas",28 na prática, constata-se uma desvinculação
da forma processual aos ideais teóricos.
A instrumentalidade formal do processo ainda predomina no meio jurídico muito
mais como um fim do que como um meio para se chegar à satisfação das necessidades
sociais. O direito de ação não se vincula necessariamente à concretização de um direito
material, mas a um rito autônomo cujo objetivo é especificado em cada momento
processual. A repercussão desta prática na sociedade é a certeza de que a justiça
ainda permanece condicionada a uma técnica processual, e que sem ela, não há direito.
Na feliz reflexão de Dinamarco, a formalidade da técnica sobrevalorizada, deixa nas
partes a falsa impressão de que criou direitos para elas, desviando as atenções da real
situação do direito material discutido na ação, para o modo como procederam e
condicionaram seus destinos a esses passos processuais.29
Não se quer, com isso, desvirtuar a importância do processo na Modernidade. É
indiscutível sua finalidade de evitar abusos do poder público de condicionar as partes a
um nível razoável de litigância e de estabelecer as regras de proteção dos direitos. Por
isso, quando se procura melhorar o acesso à justiça via processual, não se fala
necessariamente em "desprocessualizar" a ordem jurídica, mas em torná-la mais
transparente, menos misteriosa, sem a possibilidade de se criar artifícios e artimanhas
capazes de comprometer o próprio conceito de justiça.
Na verdade, uma perspectiva menos individualista começa a surgir com a
própria redemocratização do país, tendo sido iniciada pela Ação Civil Pública em 1985
e, posteriormente, alargada com os princípios processuais constitucionais, dentre eles,
o do devido processo legal, todos ampliando as margens de garantias comunitárias e
individuais na defesa dos direitos coletivos e individuais, respectivamente.
Embora essas reformas tentem renovar a ordem jurídica com direitos coletivos,
não se pode afirmar que elas tenham conseguido superar o sentido mais formal do
28 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.266. 29 Idem, p. 268
processo que imagina o acesso à justiça somente através da valorização da técnica e
da individualidade em detrimento muitas vezes do próprio direito material. Como o
processo é, de fato, forma e sua prática, com exceção do processo contencioso
trabalhista, evoluiu caracterizada pelo seu aspecto tecnicista e individualista, seria, no
mínimo, prudente indagar se as reformas conseguiriam romper com a cultura mais
conservadora do sistema jurídico e explorar todo o potencial pretendido com essas
inovações.
André Macedo Oliveira, ao analisar os desafios dos Juizados Especiais
Federais, nos lembra que as reformas constitucionais não têm conseguido romper com
a estrutura do sistema contaminado pela burocracia e pela cultura da ineficiência.30
Principalmente, porque enquanto os avanços processuais parecem agilizar demandas
mais comunitárias, o sistema jurídico ainda permanece comprometido com uma ordem
desigual, cujo direito de cidadania parece traduzir-se nas relações de consumo.
Esta observação também é encontrada na pesquisa de Paulo Cezar Pinheiro
Carneiro, ao indicar os limites do acesso à justiça processual. De todas as Ações Civis
Públicas pesquisadas em mais de uma década de vigência da Lei das ACPs, a maior
parte delas apresentava resultados favoráveis apenas em questões de direito do
consumidor. Quando se tratava de direito de cidadania, patrimônio cultural e
improbidade administrativa, questões fundamentais para se estabelecer uma relação
processual, no mínimo, de igualdade entre o Estado e os cidadãos, havia um único
desfecho judicial: a extinção da ação sem julgamento do mérito.31 Outro dado
desalentador ao acesso à justiça via este instituto processual revelava que eram as
próprias pessoas jurídicas de direito público, "a quem a lei confere legitimidade (estado,
município, órgãos da administração indireta - art.5º, caput, da LACP) para a defesa dos
direitos da coletividade em geral", quem, em segundo lugar, mais violavam esses
mesmos direitos.32
Torna-se, desse modo, contundente a posição de Roberto A R. de Aguiar ao
negar a igualdade formal "em relação presidida por uma harmonia preexistente ou por
um terceiro desinteressado, pois não existem desinteressados nesse mundo" [...] "Não
existe terceiro neutro, só existe uma idéia de justiça que se vai sedimentando na história
30 OLIVEIRA, André Macedo."Juizados especiais federais, novos desafios". In: Revista da CEJ, Brasília, n.14, p.85-90, maio/ago, 2001, p.86. 31 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Op. cit., p. 199 32 Idem, p.196.
e que está a serviço de uma dada ordem posta, e outra idéia de justiça que está a
serviço da contestação, da mudança".33
É inegável a importância das Ações Civis Públicas. Elas são imprescindíveis
para a proteção de direitos individuais e coletivos. Mas a imprescindibilidade que
apresenta não chega propriamente a reconstruir a organização social já constituída, ou
sequer, a vedar as fendas da desigualdade deixadas no tecido social pelo formalismo
do direito liberal. Talvez por isso mesmo, como outras reformas processuais mais
recentes, quer no campo constitucional ou infraconstitucional, não conseguem conter
nas suas prerrogativas, toda a possibilidade de acesso à justiça, e a construção de uma
ordem jurídica mais justa.
No caso dos ritos céleres nos Tribunais Especiais e das mini-reformas que o
Código de Processo Civil tem experimentado,34 a melhor doutrina processual brasileira
adverte que não se consegue a solução dos conflitos sociais e jurídicos apenas com os
melhores métodos de solução de conflitos ou com sofisticados recursos processuais. É
preciso que haja uma forte conexão entre leis justas, um sentido construtivo da
interpretação delas e regras processuais adequadas para a solução justa dos conflitos.
Como afirmou Joaquim Falcão, se o Poder Judiciário "não equaciona (os conflitos)
porque não decide ou decide tarde, não é legítimo, pois a legitimidade resulta tanto do
consenso de valores quanto da experiência da eficiência".35
Em outras palavras, é no equilíbrio entre consenso de valor e eficiência onde
está a legitimidade de uma ordem jurídica que proporciona, de fato, o acesso à justiça.
Como a vertente processual investiu muito mais em questões de forma, o problema do
valor ficou transferido para os critérios da lei. Porém, mesmo tentando possibilitar uma
prestação jurisdicional ágil, efetiva e informalizada, as reformas não conseguem
assegurar necessariamente uma justiça democrática.
O direito de ação, por exemplo, é reconhecidamente um direito caro não
acessível a todos, "uma verdadeira arena na qual os mais ricos, preparados e com
33 AGUIAR, Roberto A R. de.O que é justiça: uma abordagem dialética.São Paulo: Alfa-Ômega,1999. p.70. 34 V. Cândido Rangel Dinamarco, A Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1995; Flávio Galdino , "O acesso à justiça e a crise do direito", Revista Forense, v.333; J.J. Calmon de Passos, "A instrumentalidade do Processo e devido processo legal", in: Instituto de Direito; Ada P. Grinover, Participação e Processo.2ª ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998. 35 FALCÃO, Joaquim de Arruda. O ensino jurídico e a OAB. In: Ensino Jurídico - OAB - Diagnóstico, Perspectiva e Propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1993. p.139.
melhores advogados obtêm os resultados mais positivos".36 A própria Defensoria
Pública, incumbida de orientar juridicamente os mais necessitados sobre os seus
direitos e de prover-lhes defesa em todos os graus, ainda não consegue ser uma
referência de representação igualitária, pois sequer encontra-se organizada na
totalidade dos Estados do país.37 Quando está, parece não receber o devido tratamento
pelo Estado para assegurar a igualdade entre as partes e a defesa da cidadania. Cinthia
Robert e Elida Séguin, em seu trabalho sobre acesso à justiça e a Defensoria Pública,
assinalam que "a pobreza de alguns órgãos da Defensoria Pública no Estado do Rio de
Janeiro é franciscana, às vezes dispondo de uma única máquina, quebrada, para
atender ao Defensor e seus Estagiários. Faltam até mesas e cadeiras para que os que
estão trabalhando e para os que buscam assistência tenham o conforto que a dignidade
impõe a nobre missão que está sendo cumprida".38 Assim, seu caráter idealístico fica
longe de vencer os limites da justiça condicionados aos setores mais excluídos da
população, e, conseqüentemente, de assegurar um acesso que se coadune com a
realização plena e democrática do direito de ação.
Este talvez seja o maior desafio para a compreensão do acesso à justiça, isto é,
não limitar o seu campo de compreensão apenas nas instituições ou nos ritos
processuais, mas também, na realização de um direito que vença, até mesmo
independentemente do Judiciário, os obstáculos de justiça impostos aos excluídos.
Como salientou Joaquim Falcão, a justiça:
é um ideal permanente que comporta diversas experiências históricas de concretização. No caso brasileiro, o grande desafio jurídico está em superar as contradições sociais e de efetivar o acesso à justiça substantiva, processual e jurisdicional aos pobres e excluídos. Como não existe necessariamente uma equivalência entre pobreza e exclusão da justiça, este desafio consiste em imaginar uma prestação jurisdicional que vença os limites da pobreza e da exclusão social.39
Certamente, o caminho de um rito processual mais eficiente, ou de uma
prestação jurisdicional mais participativa e célere, só aponta para uma reta de chegada
se traçado paralelamente a uma vertente de justiça mais substancial, onde a igualdade
36 CARNEIRO, Paulo Cesar, ob.cit., p.138... 37 ROBERT, Cinthia; SÉGUIN, Elida. Direitos humanos, Acesso à justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.164. 38 Idem, p. 172. 39 FALCÃO, Op. cit., p.274.
é a justiça e o acesso está condicionado aos caminhos que projetam meios reais, e até
pragmáticos, de se chegar lá.
1.1. O ACESSO À JUSTIÇA SUBSTANCIAL
O acesso à justiça é repensado neste trabalho como a combinação dos
caminhos institucional e processual de justiça, com uma justiça mais substantiva capaz
de incorporar regras distributivas de direitos igualitários e coordenar o resultado da sua
aplicabilidade aos fins que almeja. Em um sentido mais pragmático, 'acessar à justiça'
significa estabelecer critérios políticos e jurídicos fundamentais que respondam à
satisfação das necessidades humanas básicas através do acesso dos cidadãos mais
excluídos a bens escassos, no sentido de torná-los mais iguais.
A importância dessa noção de acesso deriva, por um lado, da insuficiência que o
quadro teórico do Direito Natural apresenta e que contribuiu para a concepção de
justiça igualitária baseada na abstração de um ideal, o que limitou a definição do seu
conteúdo na solução das desigualdades sociais. Por outro lado advém da insatisfação
que o raciocínio formalista produziu ao adotar a generalidade e a neutralidade na
aplicação das normas, como base da justiça para a sociedade liberal. Com isso foi
eliminada a possibilidade de se elaborar, e mesmo aplicar regras igualitárias
diferenciadas para grupos que buscam eqüidade de tratamento para com os demais na
sociedade. Acima de tudo, não se permitiu que o acesso à justiça rompesse com a
abstrata noção de direitos humanos, e pudesse ser visto como o resultado de longas
lutas políticas que atribuem um significado social a cada bem adquirido e a cada direito
que os protege na garantia do justo.
Refletir sobre essas duas perspectivas teóricas, uma mais relacionada ao direito
material e a outra ao método de interpretação da regra, implica em se reconsiderar,
ainda que de modo breve, o processo histórico pelo qual a tensão entre emancipação e
regulação foi sendo gerada, até que o próprio direito fosse reconciliado com critérios de
justiça mais substancial.
1.2. O Problema do Direito Natural
O Direito Natural constituía-se na crença da existência de um ordenamento das
relações humanas superior ou transcendental às leis do direito, criadas pelos homens.
A sua fundamentação remonta às leis morais do mundo antigo e medieval, mas é na
Modernidade, com o propósito de unificação do direito e de uma concepção única sobre
a natureza humana, que o Direito Natural ressurge no contratualismo dos séculos XVII e
XVIII, legitimando a ordem social moderna.
O Direito Natural expressava-se sob a forma de princípios de condutas válidas e
justas, emanadas da natureza, reveladas por Deus ou apreendidas pela Razão, com
características de universalidade, generalidade e objetividade. A universalidade, em
particular, fundava-se na idéia única de natureza humana que se justificava em si
mesma. Para que todos os homens tivessem a mesma natureza, o indivíduo era
compreendido num patamar de abstração vinculado mais à sua biologia do que mesmo
à condição concreta que o tornava um ser social. Na abstração da espécie humana
bastava que todos os indivíduos apresentassem as mesmas características para
receberem a proteção do Direito Natural. Desse modo, o Direito Natural poderia
identificá-lo em qualquer parte do universo e assumir uma validade universal sem correr
o risco de ser invalidado por qualquer outro padrão de justiça.
Embora a igualdade universal das pessoas tenha sido o motor das
Revoluções40, prometendo o exercício pleno da liberdade a todos, a hierarquia social,
reforçada pelo desenvolvimento do capitalismo, e a classificação do homem em coisa,
levantavam questionamentos sobre o real sentido de emancipação dos homens através
dos princípios do Direito Natural.
De fato, se observarmos a tradicional tese da construção dos direitos humanos,
podemos perceber que, em seu momento inicial, os direitos naturais, sintetizados na
tríade da justiça liberal composta pela liberdade, igualdade e fraternidade, apresentam
uma forte natureza universalista, sendo compreendidos como um fim em si mesmos, e
não como meio para a construção de uma nova ordem social mais igualitária41.
40 Tese defendida por TOCQUEVILLE em A Democracia na América; leis e costumes.São Paulo: Martins Fontes, 1998. 41 Fábio Konder Comparato nos lembra que "enquanto os norte-americanos mostraram-se mais interessados em firmar sua independência em relação à coroa britânica do que em estimular igual movimento em outras colônias européias, os franceses consideraram-se investidos de uma missão universal de libertação dos povos. E efetivamente o espírito da Revolução Francesa difundiu-se, em pouco tempo, a partir da Europa, a regiões tão distantes quanto o subcontinente indiano, a Ásia Menor e a América Latina", o que caracteriza uma viabilidade real de se universalizar os ideais revolucionários. No entanto, a contradição que se estabelece entre o ideal e a sua realização, assenta-se na própria natureza das revoluções. COMPARATO complementa essa reflexão mostrando que "o espírito original da democracia moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a minoria rica, mas sim a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios estamentais e de governo irresponsável. Daí porque, se a democracia ateniense tendia, naturalmente, a concentrar poderes nas mãos do povo (demos), a democracia moderna surgiu como um movimento de limitação geral dos poderes governamentais, sem qualquer preocupação da maioria pobre contra a minoria rica". A afirmação histórica dos Direitos Humanos,2.ed, São Paulo: Saraiva, 2001. p.49.
Nesse sentido, os Direitos Naturais proclamados nas teorias contratualistas do
século XVII e XVIII, e nas Cartas de Direitos das Revoluções liberais seguintes,
referiam-se às chamadas liberdades negativas, de religião, de opinião e de imprensa,
as quais deveriam ser respeitadas pelo Poder Público instituído, bem como à idéia de
autonomia projetada, tanto na esfera moral privada quanto na pública, através da
participação política dos cidadãos. O fundamento moral de ambos os conceitos da
liberdade era, sem dúvida, a igualdade natural ou moral dos seres humanos.
Segundo a concepção Kantiana, a justiça está na segurança jurídica das
liberdades pessoais que todo cidadão deve gozar e nos limites das interferências do
Estado nas esferas de atuação dos homens. O direito é afirmado como um dom
inerente ao indivíduo independentemente de seu estado interno ou de qualquer situação
externa ao seu ser. É um direito que pertence ao homem pela sua simples condição de
ser humano, com um valor e um fim em si próprio na proteção de cada pessoa contra
os abusos do Estado. O direito assume a função de garantir uma proteção universal que
recaia sobre cada um independentemente dos papéis sociais que desempenhe com
uma finalidade única de agir em nome do ser moral, criando, com isso, a idéia de
tolerância quando limita o direito de um onde começa o do outro. Assim, o indivíduo é
identificado uti singulus, prevalecendo a idéia do homem abstrato para quem o igual
tratamento e proteção formal da lei são a maior garantia de acesso à justiça.
Com base nessas premissas, a justiça do Direito Natural não dependia da
vontade do legislador, ou do resultado da organização social que diferenciava os
homens. Pois era um direito que não questionava, através do controle do justo ou do
injusto, as diferenças e desigualdades manifestadas na ordem social. As diferenças e
desigualdades eram tidas como obras da natureza sobre as quais nenhum critério de
justiça substancial poderia ser aplicado.
De qualquer modo, era com base na promessa desse tratamento igualitário
contido na expressão "all men are created equal" que as Revoluções liberais se
legitimavam, levando Tocqueville a reconhecer no fluxo da história a primazia do ideal
humano por uma igualdade de condições. Conforme expressa em seu trabalho A
Democracia na América, nesse período liberal inicial, a busca pelo ideal igualitário
tornava-se muito mais evidente, considerada até mesmo em suas palavras: "insaciável,
incessante, invencível".42
42 "The principle of equality may be established in civil society, without prevailing in the political world. Equal rights may exist of indulgind in the same pleasures, of entering the same professions, of frequenting
Embora este ideal liberal fosse o motor das revoluções político-jurídicas, dotando
o indivíduo de razão com a liberdade de aceitar ou não ter que decidir sobre aceitar um
determinado modo de vida imposto pelo Estado, as promessas que a sociedade liberal
oferecia em troca, cedo se revelaram de grande inutilidade para os propósitos iniciais de
reconstrução da ordem social.
Apesar do ideal da igualdade manter vivas as expectativas do Direito Natural,
havia o paradoxo das premissas jusnaturalistas não conseguirem resolver os problemas
a que se destinavam, desiludindo aos poucos todo o imaginário liberal edificado.
Passou-se a reconhecer tanto teoricamente, quanto na prática, que não é o Direito
Natural que garante a liberdade dos homens e provê a sua igualdade, mas sim, um
modelo de organização político-institucional fundamentado nas possibilidades concretas
de realização das necessidades humanas. 43
A igualdade jurídica não proporcionou a igualdade de fato, ou uma plena
participação de todos no usufruto dos direitos, como o da liberdade, pois numa época
em que a base de todo o direito era a proteção à propriedade, podendo contratuar sobre
ela, para aqueles que não se igualavam neste patamar material, o direito parecia ser tão
abstrato quanto lhes era a condição isonômica conferida pela lei. Como resultado desse
processo, tivemos não só o favorecimento do aumento da pauperização das massas
proletárias como também o aparecimento de critérios utilitários na aplicação dos
direitos. As pessoas de maior privilégio econômico e político passaram a requerer a
proteção da lei e não o seu controle sobre os desajustes que a proteção formal
igualitária pudesse acarretar.
1.2.2 O Problema do Formalismo Jurídico
Unger coloca o problema do formalismo jurídico como uma das características
do Estado de Direito, cuja governabilidade deveria ser exercida através de regras the same places-in a world, of living in the same manner and seeking wealth by the same means, although all men do not take equal share in the government". In: EBENSTEIN, William e EBENSTEIN, Alan O. Great Political Thinkers - Plato to the present .5. ed., Orlando: Harcourt Brace, 1990, p.637. Ver ainda: TOCQUEVILLE, op. Cit. 43 Sobre essa temática, Bobbio levanta o questionamento sobre a natureza do direito natural: "Que é o direito fundamental do homem segundo a sua natureza? O direito do mais forte, como quis Spinoza, ou o direito à liberdade, como quis Kant? O segundo modo - o apelo à evidência - tem o direito de se situar para além de qualquer prova e de se recusar a qualquer argumentação possível de caráter racional: na realidade, tão logo submetemos valores, proclamados evidentes, à verificação histórica, percebemos que aquilo que foi considerado como evidente por outros, em outro momento". A Era dos Direito. 11.ed., Rio de Janeiro: Campus Ed, 1992, p.26-27.
gerais, neutras, uniformes, positivas e públicas. A forma generalizada e uniforme da
aplicação das regras sobre um maior número possível de pessoas e atos garantiria a
justiça no processo.
Essa noção formal de justiça possibilita a interpretação formalista do direito,
segundo a qual "a mera invocação das regras e a dedução das conclusões a partir
dessas regras são consideradas suficientes para qualquer decisão jurídica
autorizada".44 Desse modo, qualquer desigualdade advinda da autonomia mais acurada
de indivíduos mais aptos, favorecidos por esse tratamento uniforme, seria fruto da
própria condição natural humana e nunca o resultado de uma determinada organização
político-institucional, cuja processualidade contribui com esse fim. Neste sentido, a
forma generalizada e uniforme da aplicação das regras, principalmente, através da
igualdade de todos perante a lei, nada tinha a ver com o conteúdo das normas jurídicas,
prevalecendo uma concepção de justiça muito mais como meio do que como fim.45
Como definir o conteúdo das regras é, muitas vezes, fazer opções por categorias
de pessoas ou coisas, a formalidade trazida pelo Estado de direito tornava-se útil por
romper com os caprichos do rei ou da aristocracia. A impessoalidade do poder, através
de regras gerais e de aplicação uniforme, cuja elaboração era desconhecida do
administrador, impediria que indivíduos ou grupos de indivíduos pudessem ser punidos
ou beneficiados de maneira discricionária, com alteração de seu conteúdo.46 Com isso,
acreditava-se que o governo assumia um papel de neutralidade, não sendo responsável
por qualquer sistema excludente que diferenciasse, na prática, os indivíduos, embora
tivesse o controle de reduzir o problema da desigualdade injustificada de classes e de
grupos a patamares mais toleráveis. Por sua vez, o cidadão estaria a salvo de qualquer
ingerência tirânica do administrador.
O grande problema que a justiça formalista criava, alertado por Unger, é que,
assim como não era verdade que o governo tivesse um controle significativo sobre o
problema da desigualdade social, também não era verdade que as regras formais
pudessem tornar esse poder administrativo e político do Estado imparcial. Pois as
hierarquias na sociedade que afetam a situação de um indivíduo são estabelecidas,
sobretudo, pela família, pelas relações de trabalho, e pelo mercado. "O compromisso
com a igualdade formal perante a lei não desfez nem realmente corrige essa
44 UNGER, Knowledge and Politics, op.cit. P.204. 45 UNGER, Roberto Mangabeira. O direito na sociedade moderna: contribuição à crítica social.Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1979. Coleção Perspectivas do Homem, v.130. 46 Idem, p.187.
desigualdade, tampouco elas são subvertidas, pelo menos a curto prazo, pelos
mecanismos de democracia política".47
Quanto à imparcialidade do administrador, esta se torna utópica por não se
poder separar o processo do resultado. Todo sistema de regras define o modo como o
poder deve ser distribuído na sociedade e como os conflitos sociais devem ser
resolvidos.48Mesmo que não se defina com tanta transparência onde está a preferência
na distribuição de bens e de poder, elas se manifestam no resultado da aplicação das
próprias normas.
Assim, ainda que a aplicação uniforme e generalizada das regras fosse o
fundamento dessa modalidade de justiça, trabalhando com princípios que promovem a
distribuição do que já está distribuído, sem enfrentar opções entre valores em conflito,49
como a igualdade, por exemplo, ela não resolveria o problema da subjetividade do valor
que sempre conduz as relações humanas e sociais, criando, juntamente com a
igualdade abstrata do Direito Natural, um senso de ilegitimidade da ordem político-
institucional para a população mais desigual. Como não há pureza na formalidade da
lei, e o formalismo parece se ater mais a justificativas de sustentação de doutrinas e
decisões judiciais que evitam os caminhos para uma igualdade mais substancial,
permanece a crença da sua inutilidade para lidar com situações de desigualdades e
discriminação.
Por isso é que a igualdade formal, fundamentada nos ideais jusnaturalistas, ao
ser aplicada na sua generalidade, obscurecia a relação entre fato e valor, fazendo
prevalecer apenas o processo e a interpretação formal da regra igualitária.
A relação processual somente estaria isenta de subjetividade se conseguisse
assegurar ao legislador, ao administrador, e ao aplicador das regras, a independência
de suas concepções pessoais. Desse modo, o Estado de Direito, "supostamente neutro
do conflito social, é sempre envolvido no antagonismo dos interesses privados e
transformado em instrumento de uma ou outra facção. Assim, procurando disciplinar e
justificar o exercício do poder, os homens estão condenados a perseguir objetivos que
estão proibidos de alcançar. E essa contínua frustração profunda abre mais o abismo
entre a visão do ideal e a experiência da realidade".50
47 Idem, p.190. 48 UNGER, ibidem 49 Idem, p.204. Ibid 50 Idem, p.191. Ibid.
CONCLUSAO
A inquietude resultante das insuficiências teóricas e práticas da doutrina do
Direito Natural e do formalismo como interpretação das regras fez florescer um rico
campo intelectual de proposições alternativas "saneadoras" das deficiências de cada
um. Principalmente, após a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, nas três últimas
décadas, houve uma profusão de teses intermediárias entre o positivismo jurídico, cujo
formalismo é uma de suas principais características, e o Direito Natural,51 em busca da
legitimidade político-institucional questionada.
No âmbito das correntes contrárias ao Direito Natural, prevaleceu a
compreensão de que o Direito não poderia limitar-se ao abstrato campo do espírito, e
de que outros arranjos político-institucionais eram possíveis na implementação da
justiça. Porém, considerou-se a necessidade de se resguardar um núcleo de justiça
garantidor das imunidades do homem em relação aos arbítrios do Estado, cuja
legitimidade estaria positivada no próprio texto constitucional. Com isso, buscou-se uma
conciliação dos elementos éticos e morais com um direito positivado para além do
formalismo jurídico. Neste sentido, não só as constituições ocidentais concentraram um
amplo rol de direitos fundamentais ao homem, como medidas legislativas infra-
constitucionais foram sendo criadas com o objetivo de ampliar as condições sociais e
jurídicas do cidadão para um padrão mais próximo da justiça substancial, o que tornava,
em muitos casos, imprescindível a existência do elemento ético e moral na atividade
discursiva dos tribunais52. Dentro dessa nova roupagem teórica e metodológica é que a
discussão sobre justiça redistributiva é retomada a partir dos trabalhos de John Rawls, e
um novo campo doutrinário sobre justiça procedimental é inaugurado na tentativa de se
51 MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Orgs). Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p.15. 52 Margarida Lacombe refere-se a essa transição de interpretação jurídica, como o momento em que o método sistemático, "de tendência isolacionista, que marcou o positivismo filosófico dos séculos anteriores, não correspondia mais às perplexidades e à insegurança causadas por um mundo de novos e variados valores. Necessário seria construir um novo modelo de legitimação para as decisões jurídicas, o que só se tornaria possível quando se reconhecesse a natureza dialética e argumentativa do direito. A lógica formal, de feição cartesiana, não dava resposta satisfatória à razoabilidade exigida nas soluções jurídicas. Daí, verificamos na filosofia do direito do século XX, toda uma tendência em se resgatar a antiga arte retórica dos gregos e a prática jurídica dos romanos, para construir um modelo de fundamentação mais adequado à decisão jurídica, visando sua validez e eficácia. Essa dimensão prática ensejou o aprofundamento da reflexão sobre a atividade discursiva, sob o ponto de vista ético. "Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp.134-135.
chegar a uma justiça mais concreta onde forma, processo e substância convergem para
o fim da proteção igualitária do homem.
O acesso à justiça, segundo essa corrente, implica na transferência dos direitos
de um plano individual abstrato para um contexto social mais concreto, onde o homem
tem presente, passado e futuro. O direito não é inerente ao homem, mas é por ele
construído à medida que dele necessita. Uma vez tendo-o construído, é que o homem
possui o direito de reclamá-lo.53
Neste sentido, a existência humana deixa de ter uma finalidade na
individualidade do homem, e este deixa de agir como um ser isolado de seu contexto
social. Por sua vez, os direitos humanos tomam uma conotação mais concreta, mais
próxima das necessidades materiais que desigualam as relações entre os homens no
mundo real. O direito também perde a sua concepção de neutralidade e passa a acolher
em si a noção de valor, fins e obrigações positivadas. Como valor, há o reconhecimento
do aspecto ideológico que o direito manifesta na sua proteção libertária e igualitária.
Como fim, investe na proteção do homem em vários aspectos; e como obrigação,
reconhece como direito somente aquilo que possa promover a igualdade entre os
homens, conduzindo o controle dos desequilíbrios através de uma moral acessível a
todos.54
Dois modelos de ordem social igualitária foram, então, produzidos em direção a
essa orientação de justiça. Ambos surgiram de movimentos organizados de
trabalhadores no final do século XIX e início do século XX, visando modificar a ordem
político-econômica de modo que ela criasse um mínimo de proteção aos trabalhadores,
período em que o compromisso ético e político do legislativo tornou-se fundamental à
proteção de direitos. Apesar das reformulações que sofreram no final do século 53 Na análise de Habermas, o século XIX vem acrescentar ao repertório de conceitos elaborados no século XVIII uma dimensão histórica, que situa o homem dentro de uma realidade mais concreta: "O sujeito singular começa a ser valorizado em sua história de vida, e os Estados - enquanto sujeitos do direito internacional - passam a ser considerados na tessitura da história, das nações. Coerente com essa linha, Hegel constrói o conceito 'espírito objetivo'. Sem dúvida, tanto Hegel como Aristóteles estão convencidos de que a sociedade encontra sua unidade na vida política e na organização do Estado; a filosofia prática da modernidade parte da idéia de que os indivíduos pertencem à sociedade como os membros a uma coletividade ou como as partes a um todo que se constitui através da ligação de suas partes."HABERMAS, Jurgen, Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1, p.17. 54 Neste sentido, Peces-Braba defende a tese de que a propriedade, por impor um propósito diferenciador entre os homens, "no puede ser una pretensión justificada, base ética de un derecho fundamental, porque no se puede extender a todo el mundo, y eso es un privilegio, pero, al carecer de la generalidad, no un derecho igual de todos os seres humanos: no cabe por razones de escasez y porque no existen bienes libres para alcanzar la igualdad como equiparación, aplicar la técnica de la igualdad como diferenciación para equiparar en el punto de llegada."Op.cit.,p.170
passado ambas deixaram a experiência positiva de que os direitos não se afirmam
apenas nas pretensões subjetivas e individualistas dos princípios de orientação
jusnaturalista, mas sim em políticas igualitárias promotoras de uma justiça mais
distributiva de bens e de direitos. Acima de tudo, consolidaram a certeza de que numa
democracia igualitária, o conjunto de decisões não poderia estar esgotado no conjunto
de regras apresentado pelo sistema constitucional daquela sociedade, mas deveria
também confiar a cidadãos ou instituições, "como funcionários e a juízes, a tarefa da
interpretação, sempre presente no exercício da decisão" [...]" O modelo consensual
pressuporia, ao contrário, uma correspondência quase perfeita entre uma vontade
popular sempre ativa e a lei positiva".55
Assim é que para as correntes que reconheciam a necessidade de se manter os
padrões humanitários, a condição de validez e eficácia tornava-se fundamental. A
positivação era importante, mas não poderia esgotar toda a concepção de direito nos
limites formais de sua elaboração e conteúdo. Valores, princípios, ordens e condutas,
deveriam ser transferidas para a experiência jurídica, além de outras relações com
elementos culturais, éticos e políticos a fim de concretizar a justiça.
Ambas as correntes contribuem para a construção de uma concepção de direitos
humanos que busca não só proteger a dignidade humana no seu sentido mais amplo,
como também construir uma noção que esteja mais próxima dos reclamos de uma
justiça macro, de natureza distributiva e igualitária. Como se posiciona Celso Mello, na
mesma linha do pensamento de Marcuse, uma concepção que admite a "essência do
homem" e "se mantém apesar de toda 'perversão' que venha a existir de fato. Mesmo
quando há 'desvios' o homem acaba por coincidir com sua essência".56 Mais ainda,
procura, inspirado na sua essência humana, reconstruir a justiça social perdida nas
instituições político-jurídicas.
Neste sentido, o homem se situa em um contexto histórico e os seus direitos
humanos extrapolam a função originária da liberdade individual, para integrarem um
sistema axiológico que atua como fundamento material de todo o ordenamento jurídico,
ao qual Ingo Sarlet denomina de direitos fundamentais do homem. Estes direitos
mantém uma relação com a norma internacional, mas diferenciam-se do Direito Natural
devido a sua positivação no texto constitucional:
55 BERTEN, André. Republicanismo e motivação política. In: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Orgs.) Op. Cit.. p.29-30. 56 MELLO, C. D. de A., op. cit., p. 773
O primeiro movimento no sentido de abrigar direitos humanos positivados pode
ser encontrado, inicialmente, em três setores do Direito Internacional: "no direito
humanitário, na luta contra a escravidão e na regulação dos direitos do trabalhador
assalariado". 57 Posteriormente, na Declaração Universal de Direitos do Homem de
1948, e demais Convenções e Protocolos, cuja obrigatoriedade em cada Estado, ocorre
pelo seu reconhecimento e positivação nas Constituições, nas leis e tratados
internacionais. E, por fim, nas constituições dos Estados de Direitos refeitos após
longos períodos autoritários, como é o caso do Brasil, onde a Constituição Federal de
1988 converteu todos os direitos da Declaração da ONU em direitos legais, instituindo
ainda uma série de mecanismos processuais para dar-lhes eficácia.58
Tão importante quanto a positivação dos novos direitos foi a discussão sobre o
seu significado e de como eles poderiam compor uma estrutura normativa compatível
com o pluralismo de concepções individuais acerca da vida digna, e com a
multiplicidade de formas específicas de valores, costumes e tradições. Discussão essa
que recaiu sobre o papel da Constituição nas sociedades contemporâneas e do ideal de
sociedade justa realizado através da efetivação desses direitos ou do acesso à justiça
substancial que eles se propunham a prover pelos poderes do Estado.
Uma vez positivado, o acesso à justiça substancial solidifica-se quando o projeto
da Modernidade afasta-se das tradições individuais e abstratas que circundam o
conceito de justiça liberal e busca sua realização em uma justiça social mais concreta,
onde o homem é o seu principal destinatário. Na construção desses direitos não se
vislumbra propriamente uma construção de direitos que caracterize um processo
evolutivo linear iniciado pelo reconhecimento dos direitos civis, seguidos dos direitos
sociais e os de terceira geração, como pregam as tradicionais teorias sobre a
construção dos direitos humanos. Até mesmo porque o embate dialético na história do
reconhecimento e positivação dos direitos humanos oscila no Brasil, entre
implementação de direitos sociais e ausência de direitos civis, ou, eficácia dos direitos
civis e ausência dos direitos sociais.59 Mas reconhece-se a existência de processos
paralelos e alternados de conquistas de direitos que apontam ora para a construção de
direitos civis, ora na direção dos direitos sociais, ambos na busca de uma real
57 COMPARATO, Fábio Konder.Op. cit.p.,.52. 58 Vide a esse respeito o trabalho de Gisele Cittadino Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea, (2000), p.12. 59 Cf. Vide, neste sentido, o trabalho de José Murilo de Carvalho, A Cidadania no Brasil, o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
equiparação de todos os homens em cidadania e em igualdade substancial, ainda que
para alcançá-la, seja preciso desigualar em significado, procedimento e conteúdo
desses direitos.