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A arteque seperdeu
Texto VITOR PAMPLONA [email protected] REJANE CARNEIRO [email protected]
A paixão pelo cinema a partir dasmemórias de Renato Fróes,
desenhista de anúncios de filmesentre as décadas de 1940 e 1980
Acamisa não estava à mão.
Do fundo do corredor, aba-
fada pelos azulejos do ba-
nheiro, a voz de Renato Ma-
ria Deolindo Fróes pedia um
pouco de paciência. “Já es-
tou indo, estou trocando de camisa”. Abo-
toada a blusa, o fundo escuro do aparta-
mento de três quartos na Graça revela uma
figura esguia, de cabelos bem penteados e
notável cautela nos movimentos. Duas ou
três frases depois, o veredicto: um homem
afetuoso e educado.
Os indícios de sensibilidade são atraves-
sados por lembranças de um ofício perdido
no tempo. Desenhista de anúncios de fil-
mes impressos entre as décadas de 1940 e
1980 nos principais jornais baianos – a pro-
dução teve um intervalo estratégico nos
anos 1960 –, Fróes guarda em casa, numa
caixa de papelão, resquícios da memória
cinematográfica de uma cidade.
São dezenas de cartazes feitos com car-
tolina, cola, nanquim e tinta guache. Em
preto-e-branco, iluminam uma era extinta,
quando o cinema era “um marca indelével
da sociedade”, o artista se encarrega de as-
sinalar. “Nos lançamentos no Cine Liceu,
no Pelourinho, as senhoras iam até de ves-
tido longo”, lembra Renato, como quem
arrola as provas de um processo ganho.
“Foi um tempo fabuloso. Hoje, os jor-
nais nem publicam mais anúncios de cine-
ma. Por isso digo que é uma arte que se
perdeu”. As linhas e sombreados entraram
tardiamente em sua vida. Começou a ra-
biscar formas geométricas aos 18 anos,
nas aulas de desenho da última série do gi-
násio (atual ensino médio).
Da carteira escolar ao escritório do Cine
Excelsior, na Praça da Sé, poucos dias se
passaram. O destino bateu à sua porta em
uma aula de datilografia, por acaso tam-
bém frequentada por um funcionário do ci-
nema. Da máquina de escrever, o contínuo
foi soprar no ouvido de José de Araújo, dis-
tribuidor dos estúdios Warner, Paramount
e RKO em Salvador, o traço preciso contido
nos exercícios feitos por Renato para a aula
de desenho. Da visita ao Excelsior, naquele
ano de 1939, uma das nobres salas de exi-
bição soteropolitanas, Fróes voltou contra-
tado. Imediatamente, começou a dominar
a técnica de reproduzir, adaptar ou criar do
nada os anúncios que levariam milhares de
pessoas, por algumas horas, a se enfurnar
no festim diabólico de som e movimento
da sala escura.
LINHA DE MONTAGEMO trabalho começava como artesanato.
Quando o distribuidor fora do Brasil man-
dava cartazes, a missão era a menos com-
plicada: desenhar por cima dos títulos ori-
ginais seus equivalentes em português e
acrescentar locais e horários de exibição.
Se o estúdio enviava só fotos de divulga-
ção, aproveitavam-se as imagens para
compor melhor o anúncio.
Mas, vez ou outra, existia só o rolo na
sala de projeção, e era preciso fazer todo o
resto, a começar pela invenção de um con-
ceito capaz de traduzir graficamente o filme
– mesmo quando ninguém no hemisfério
tinha assistido.
Depois de pronto, o cartaz, que original-
mente chegava a ter mais de meio metro
de largura, entrava na linha de montagem
da imprensa para ser comprimido pela pro-
dução industrial. Nas mãos do clicherista,
Da Bahia para o mundo: cartaz
de Redenção (1958), primeiro
longa produzido no Estado
Renato Fróes em frente ao Cine Excelsior, na Praça da Sé. O cinema foi o primeiro a contratá-lo para desenhar anúncios
«Nos lançamentosno Cine Liceu,no Pelourinho,as senhoras iam atéde vestido longo»Renato Fróes
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era fotografado – antes do filme fotográfico, o negativo era im-
presso no vidro –, banhado em ácido e zinco para diferenciar partes
claras de escuras, em seguida transferido para uma placa de
chumbo, até que, como por mágica, reaparecia numa folha de jor-
nal após passar pela rotativa. Páginas inteiras preenchidas pelos
cinemas.
Fróes, 87 anos completados no último 18 de maio, enumera
suas criações preferidas: Vinhas da Ira, de John Ford, seu diretor
preferido; Relíquia Macabra, de John Huston; Cantando na Chuva,
de Stanley Donen e Gene Kelly; My Fair Lady, de George Cukor; e
Redenção, o primeiro filme baiano, dirigido por Roberto Pires. Tí-
tulos cuja grandiosidade, beleza ou pioneirismo são partilhados
como se o cartazista tivesse um dedo nas produções. “Alguns fil-
mes têm importância maior ainda para mim porque desenhei os
cartazes deles”, reconhece.
EDUCAÇÃO SENTIMENTALJustiça seja feita, a ordem mais precisa é a inversa. Antes dos
cartazes, vieram os filmes. A paixão pelo cinema, a quem foi apre-
sentado na infância por Charles Chaplin, fez a cabeça de Renato
Fróes e muitos de seus contemporâneos ainda quando o silêncio
reinava nas telas. O advento do som no cinema, que o crítico fran-
cês André Bazin (1918-1958) saudou como crucial para uma arte
cujo destino era se aproximar ao máximo da realidade, foi apenas
a primeira das revoluções assistidas das primeiras filas.
Depois da banda sonora, seguiram-se décadas de educação
sentimental em sessões que começavam às duas da tarde, com os
cinejornais, e iam até a noite, quando eram exibidos os filmes prin-
cipais. De uma ponta a outra do programa, o espaço era preen-
chido por episódios dos Três Patetas, um desenho animado, trai-
lers das produções do horário nobre e, antes das grandes atrações,
séries como Buck Rogers no Século 25 (a original, de 1940) e Flash
Gordon (dois episódios por semana).
“Íamos, eu e muitos amigos, direto da escola para o cinema.
Passávamos praticamente o resto do dia lá. Ainda dávamos um
jeito com o bilheteiro de ficar para as sessões noturnas, proibidas
para menores de idade”, recorda Fróes.
O gosto pelo cinema foi herdado do pai, o maestro Sílvio Deo-
lindo Fróes, fundador do Instituto de Música da Universidade Ca-
tólica do Salvador (Ucsal). Amante dos clássicos, o severo professor
não simpatizava com modernices. Tocar violão, instrumento àque-
la altura cada vez mais popular e atraente aos mais novos, seria
sempre “coisa de malandéu”. O jazz, ritmo preferido do jovem car-
tazista, não entrava em casa a não ser secretamente.
Com o cinema, seja lá por qual razão, foi
diferente. O maestro rigoroso com o DNA
das melodias era fã e frequentador assí-
duo. Mas ainda um pai precavido. À falta
de uma classificação etária para os filmes,
Sílvio Fróes assistia aos filmes antes para
ver se a trama autorizava-o a levar os filhos
– além do caçula Renato, duas meninas,
Estela e Anita.
GONGO DE VARGASSe o cinema foi o centro de gravidade de
sua juventude, a guerra revolucionou a
mecânica de sua vida. Precisamente em 25
de junho de 1941 – a memória humana
funciona como caixa registradora em mo-
mentos dramáticos –, Renato foi convoca-
do a engrossar as fileiras da Força Expedi-
cionária Brasileira. Após ensaiar a discipli-
na militar no 19º Batalhão de Caçadores,
no Cabula, e no Forte de São Pedro, no
Campo Grande, já estava conformado com
o embarque para os campos de batalha.
Foi salvo pelo gongo disparado pelo di-
tador Getúlio Vargas, que assinou um de-
creto liberando os casados. Para se livrar
do fuzil, Renato casou-se com a namorada.
“Foi uma catástrofe. Eu não quis ir para a
guerra, mas fui para outra muito pior”.
O primeiro casamento durou 12 anos e
lhe deu quatro filhos. O segundo, mais
duas meninas e uma companheira para to-
da a vida. Adyr, nove anos mais nova que o
marido, que a chama de Dida, ilumina-se
ao falar da destreza manual de Renato.
Os cartazes estão lá, sobre a mesa, mas
o talento sublime a que ela se refere é o de
restaurador, faceta descoberta por Renato
já em idade madura. Imagens de santos,
objetos de porcelana ou argila, todo tipo
de escultura. Por suas mãos, ele calcula,
passaram mais de 50 peças.
Praticamente destruídas, talhadas e até
em migalhas, obras aparentemente irre-
cuperáveis ressuscitaram na ponta de seus
dedos. “Ele é mesmo fantástico com as
mãos, é o melhor que sabe fazer. Ele tem
muita habilidade”, decreta Dida.
Como a época dos anúncios dos filmes
nos jornais, a era dos reparos terminou. O
tempo não teve razão. A velhice tomou de
Renato o controle absoluto das mãos, e a
última tentativa de restauro transfor-
mou-se numa sessão de estresse. “Um dia,
senti que ele não tinha mais capacidade de
fazer aquilo”, relata Dida.
Renato silencia. Subitamente, cita no-
mes de cartazistas e diagramadores com
quem trabalhou ou o influenciaram. Ânge-
lo Martins, desenhista português que de-
pois substituiu na rede de cinemas de An-
tonio Phiton, Tischenko, clicherista do jor-
nal A TARDE, e Tosca, velho conhecido do
Diário de Notícias.
Mais segundos de silêncio. Os olhos
paralisados viajam no tempo. A mudez é
interrompida por uma descompostura
em toda uma civilização: “O lamentável
é que a Cidade do Salvador não tem me-
mória histórica. Os cinemas não foram
preservados. Liceu, Pax, Aliança, Excel-
sior e tantos outros. O Jandaia, uma sala
de luxo em plena Baixa dos Sapateiros,
faz pena. Se você visse o teto do Jandaia,
só o teto. Era um espetáculo“. «
De cima para baixo, Tenda dos
Milagres (1977), Uma Noite no
Rio (1941) e O Eterno D. Juan
(1940): arte com recortes
A Flauta Mágica, adaptação cinematográfica da ópera de Mozart dirigida por Ingmar Bergman: paixão em preto-e-branco