PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
THULIO CAMINHOTO NASSA
A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO
ADMINISTRATIVO
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2010
1
THULIO CAMINHOTO NASSA
A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO ADMINISTRATIVO
MESTRADO EM DIREITO ADMINISTRATIVO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo / COGEAE, como
exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Direito Administrativo, sob
orientação do Prof. Doutor Clovis Beznos.
SÃO PAULO
2010
2
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
À Marlene Caminhoto Nassa (mãe), Fernanda Nogueira Silveira Nassa (esposa),
Giulia Silveira Nassa e Beatriz Silveira Nassa (filhas), mulheres da minha vida, grandes
estrelas que me inspiram, guiam, incentivam e compreendem com esperança as horas
que me dedico ao Direito. Não fossem elas, eu certamente não seria ninguém. Tudo
faço em seus nomes. Com todo meu amor.
Agradeço ao meu pai, Sandoval Antonio Lappa Nassa, jornalista e exemplo de
cidadão, que durante toda sua vida lutou pela democracia e pela defesa dos direitos
individuais e coletivos. Paradoxalmente fez despertar em mim o desejo pela carreira
jurídica, e, em especial, pelo Direito Público.
Agradeço também aos meus irmãos, Thiago Caminhoto Nassa, jornalista, e
Thalissa Caminhoto Nassa, médica veterinária, que compartilharam comigo todas as
descobertas da vida com imensa fraternidade, fortalecendo-me contra os medos e
confortando-me contra as angústias.
Agradeço, de maneira impenhorável, ao meu grande amigo, mestre e exemplo
de vida, Professor Clovis Beznos, que, além da orientação deste trabalho, plantou em
mim e noutros alunos do Mestrado o interesse apaixonado pelo estudo do regime
jurídico de direito administrativo e de seus princípios informadores. Certamente destas
generosas mãos surgirão administrativistas que farão eternos seus ensinamentos, os
quais servem, e muito, ao direito hodierno.
4
Agradeço ao Professor Marcio Cammarosano, pelas contribuições oferecidas a
este trabalho e, sobretudo, por me fazer enxergar o Direito além do horizonte, fruto de
sua visão aguçada.
Agradeço também ao Professor Fernando Dias Menezes de Almeida,
componente da Banca Examinadora representando a Faculdade de Direito do Largo
São Francisco (USP/SP), o que só me honra, sobretudo por ter fornecido valiosas
contribuições sobre os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança.
Por fim, agradeço a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a
realização deste trabalho, como os Professores da PUC/SP Silvio Luis da Rocha
Ferreira, Celso Antônio Bandeira de Mello, Lucia Vale Figueiredo, Maria Garcia, Ricardo
Marcondes Martins, Maria Helena Diniz, Paulo de Barros Carvalho, dentre tantos outros.
5
RESUMO
O objetivo deste trabalho consiste em revelar a boa fé diante do regime
jurídico de direito administrativo, que a contamina e que lhe confere especial
concepção.
Justifica-se a necessidade científica de sua análise pelo fato de que,
muito embora se apresente como princípio fundamental desse ramo do direito,
não recebe da doutrina especializada um tratamento sistemático.
A metodologia empregada caminha no sentido de identificar a origem da
boa fé, analisar seu processo de transposição ao direito administrativo,
conceituá-la, estabelecer suas diferenças com outros institutos jurídicos para
que, ao final, seja possível descrever sua aplicação nas diversas atividades
administrativas.
É tratada nos aspectos subjetivo e objetivo, e também abordada como
fenômeno jurídico da proteção à confiança na tutela do interesse público pelo
administrador, conforme os padrões de conduta exigidos pelo Direito.
Do desenvolvimento desta dissertação, resultou que a boa fé consiste
num princípio dotado de autonomia científica no direito administrativo, e que
incide em praticamente todas as espécies de atividade do Estado, além de
receber da jurisprudência hodierna grande encampação.
Palavras chave: boa fé, boa-fé, confiança, princípio, direito administrativo.
6
RESUME
The objective is to prove the good faith before the legal system of
administrative law, which infects and that its special design.
Justifies the need for its scientific analysis by the fact that, while
presenting himself as a fundamental principle of this branch of law, the doctrine
does not receive specialized treatment routine.
The methodology goes to identify the source of good faith, consider the
process of implementing administrative law, its concept and identify differences
with other legal institutions so that in the end, it is possible to describe its
application in various administrative activities.
It is treated in the subjective and objective aspects, and addressed as
legal phenomenon of intellectual confidence in the protection of the public
interest by the administrator, as the standard of conduct required by law.
Developing this thesis, which resulted in good faith is a principle of
scientific freedom endowed on administrative law, and deals on virtually all kinds
of activity of the state, and receive the case today's big takeover.
Keywords: good faith, confidence, principle, administrative law.
7
SUMÁRIO
PARTE I – INTRODUÇÃO
PARTE II – DESENVOLVIMENTO
Capítulo I – O instituto da boa fé.
1 – Origem filosófica na Grécia...............................................................14
2 – Origem no Direito Romano...............................................................20
3 – A boa fé no Direito Alemão...............................................................24
4 - A boa fé no Direito Civil Brasileiro.....................................................28
5 – A boa fé positivada como princípio geral no Direito Brasileiro .........31
Capítulo II – O direito administrativo, seu regime jurídico e a boa fé.
1– Metodologia.......................................................................................37
2 - Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de
Direito.....................................................................................................38
3 - Relação de administração.................................................................42
4 – O “dever-poder” no exercício de função administrativa....................44
5 – O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé......................46
6 – Classificação principiológica no regime administrativo....................53
8
Capítulo III – A boa fé administrativa.
1 – Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus
Gonzáles Peres).....................................................................................60
2 - Análise do conceito na doutrina nacional..........................................69
3 - Conceito próprio de boa fé administrativa.........................................81
4 – Boa fé administrativa objetiva e subjetiva........................................85
5 – Relações e diferenças com outros termos do direito
administrativo.........................................................................................89
5.1 - Desvio de poder.....................................................................90
5.2 -. Proporcionalidade.................................................................93
5.3 - Moralidade administrativa.......................................................97
5.4 – Improbidade administrativa..................................................104
5.5 – Segurança Jurídica .............................................................106
5.5 - Dever de “boa administração”..............................................109
Capitulo IV – Aplicação do princípio da boa fé administrativa.
1. Introdução.......................................................................................112
2. A boa fé e o ato administrativo........................................................113
2.1. Sujeito...................................................................................115
2.2. Motivo....................................................................................121
2.3. Causa....................................................................................123
2.4. Finalidade..............................................................................124
2.5. Formalização.........................................................................127
9
3. A boa fé e o processo administrativo..............................................132
3.1. Processo e procedimento......................................................132
3.2. A boa fé no processo administrativo federal.........................133
4. A boa fé em face do exercício de competência vinculada e
discricionária.......................................................................................140
5. A boa fé e os contratos administrativos..........................................147
5.1. Contratos da Administração e contratos administrativos......147
5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93...................149
PARTE III – CONCLUSÃO
PARTE IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
10
PARTE I – INTRODUÇÃO
Após o reconhecimento de que o Direito, como sistema, não contém
apenas regras literais, mas, especialmente, que também seleciona e positiva
valores da experiência humana, e assim o faz exatamente para preencher o
sentido e a finalidade das normas jurídicas, passou a fazer parte da rotina do
cientista o papel de investigar o elemento comumente denominado princípio
jurídico.
Isto porque, numa visão dinâmica, sistemática, e ao mesmo tempo
juspositivista do direito (ao menos numa concepção mais atual do positivismo
jurídico), regra (lei stritu sensu) e princípio (valores juridicizados) precisam se
interagir constantemente, numa relação lógica entre a positivação legal dos
comandos permitidos, proibidos e obrigatórios (que são as regras), com o
sentido e a finalidade que o Direito atribui a mesmos comandos (aferíveis pelos
princípios).
Nesse linha, o presente trabalho tem por finalidade o estudo mais
aprofundado do princípio da boa fé no direito administrativo e não apenas de
uma ou outra norma legal que sobre ela eventualmente viesse a dispor.
Inicialmente será abordada a origem da boa fé (ainda que forma
sintética), já que, na medida em que o Direito seleciona e recolhe da realidade
humana um objeto que lhe é externo, se afigura adequado que a ciência do
direito, para melhor descrevê-lo, possa conhecer a realidade na qual se
configurou.
11
Em outras palavras, ao conhecer melhor a boa fé em si mesmo, será
possível descrever sem grandes distorções aquilo que o Direito resolveu colher
de fora para dentro de seu sistema.
Nesse sentido, o objeto de estudo será, num primeiro momento,
identificar o princípio na sua origem, especialmente no campo da filosofia (o que
será feito, frisa-se, de forma resumida, tendo em vista o escopo do trabalho),
para depois analisarmos sua evolução na história, e, ao final, ser possível
enxergar seu processo de positivação pelo direito atual.
No entanto, ao mesmo tempo em que se justifica a importância desta
metodologia cognitiva, alerta-se para o fato de que, ao jurista importará, no final
do processo de escolha, o princípio projetado pelo Direito e não o princípio
enquanto mera realidade exterior.
Ou seja, o estudo do princípio anterior ao sistema será útil para
apreendermos seu conceito, mas por óbvio não poderá fundamentar, por si só,
sua aplicação jurídica.
Isto porque, nesse processo de passagem, o princípio que está dentro do
campo do Direito sofre alterações em relação ao valor original, e isso ocorre
exatamente pela carga de influência que recebe de outros valores juridicizados,
que também gravitam a mesma órbita jurídica.
Será possível perceber que a boa fé projetada no Direito, muito embora
concebida fundamentalmente pela filosofia grega, apresentará alguns contornos
peculiares, os quais se tornam ainda mais sensíveis em face do direito hodierno.
12
Nesse trecho do trabalho, procuraremos demonstrar que a boa fé,
atualmente, emergiu no sistema como princípio geral, aplicável portanto a todos
os ramos do direito.
Conhecida originariamente e explicitada sua positivação jurídica, a
proposta do trabalho passa a ser, a partir de então, descrever a boa fé
especialmente no regime jurídico de direito administrativo, a fim de que
possamos visualizar a projeção do princípio que nele se delineia de forma ainda
mais categórica (razão pela qual passaremos a denominá-la como boa fé
administrativa).
Diante deste objetivo, o presente trabalho buscará superar uma sensível
dificuldade, qual seja, o fato de que a doutrina nacional e quiçá internacional,
infelizmente, não se dedicaram com o devido mister no delineamento do regime
jurídico de direito administrativo, isto é, tomado como objeto principal do estudo
científico (ou seja, tomado em si mesmo, e não apenas pelo estudo das normas
que dele se projetam) - tal registro, aliás, pode ser constatado na monumental
obra de Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo 1.
Não obstante, sabe-se que a análise de um regime jurídico seria o
método científico-descritivo que permitiria conhecermos sua estrutura e seus
elementos formadores, isto é, que possibilitaria identificar o conjunto que faz
emanar sentido próprio às normas (princípios e regras). Assim, tal lacuna
doutrinária tem provocado, em muitos casos, a inadequada percepção dos
princípios que deveriam ser desenhados especialmente no âmbito do direito
administrativo. 1 Bandeira de Mello, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, 22ª Edição, p. 51.
13
Por isso mesmo, o espírito desse trabalho consiste em revelar a boa fé
diante de um regime jurídico próprio, que a contamina e que lhe confere especial
concepção, já que referido princípio vem sendo relegado, muitas vezes, à
doutrina civilista, a qual, muito embora forneça valiosos estudos, é filiada a outra
ramificação sistemática, e, portanto, não poderia ter o papel de esgotar o tema
para o direito administrativo.
Ademais, a boa fé, quando é tratada no campo do direito administrativo,
freqüentemente aparece, sem muita precisão, como simples referência de
moralidade administrativa ou de desvio de poder (muito embora possa existir
relações íntimas de implicação e aproximação entre os termos jurídicos
assinalados), ou seja, como se o estudo destes dois institutos pudesse, de forma
oblíqua, suprir os reclamos jurídicos para a compreensão daquela.
Acredita-se, assim, que essa dissertação poderá contribuir modestamente
para a ciência jurídica, como uma simples semente na missão muito maior de
identificar corretamente um dos princípios que reputamos como relevante no
regime jurídico de direito administrativo, estando positivado pela Constituição da
República, e que, portanto, em razão da existência de um Estado Democrático
de Direito, ainda devemos respeito, independentemente de ser ou não o mais
desejável para determinados setores sociais, e por mais sedutoras que sejam as
razões de ordem meta-jurídica invocadas.
Ainda, ao contrário do que se possa imaginar, entendemos que a
aplicação dos princípios positivados contribui sensivelmente para afastar o
cidadão do risco de interpretações judiciais pessoais e arbitrárias, pois vinculará
14
o juiz a decidir de forma racional, isto é, conforme uma pauta de valores que não
foram eleitos pessoalmente por ele, mas sim por meio de um processo
democrático constituinte e legislativo.
Da mesma forma, pode tornar mais efetivo o controle dos atos
administrativos, uma vez que propicia aos administrados o conhecimento dos
valores que a sociedade, expressada no direito, espera na conduta do
administrador, muito além do simples respeito à formalidade da lei.
Daí que a boa fé administrativa possa funcionar como elemento
importante de controle dos atos administrativos, como verdadeiro princípio
jurídico solucionador de causas judiciais nas quais a “letra fria” da lei (isto é, a
regra isolada do princípio) seria por si só insuficiente - nesse sentido, lembremos
dos êxitos logrados pela razoabilidade no controle do ato administrativo em
competência discricionária, ou da impessoalidade, no caso do nepotismo, dentre
tantos outros.
15
PARTE II - DESENVOLVIMENTO
Capítulo I – O instituto da boa fé.
1. Origem filosófica na Grécia. 2. Origem no direito romano. 3. A boa fé no direito
alemão. 4. A boa fé no direito civil brasileiro. 5. A boa fé como princípio geral no direito
brasileiro.
1. Origem filosófica na Grécia.
A expressão exata ou o signo específico denominado boa fé, atualmente
utilizada em termos semânticos para expressar o princípio jurídico que é objeto
deste trabalho, aparece como tal, e originariamente, no direito romano (o que
será tratado no item 2 deste capítulo).
Assinala-se, por isso, que a remissão grega é pouco mencionada nos
estudos a respeito da matéria.2
No entanto, a par do seu significado etimológico, veremos que os ideais
da boa fé, antes dos romanos, já haviam sido detectados pelos filósofos gregos,
sobretudo no campo das regras morais 3.
2 Nesse sentido, vide na literatura brasileira, José Guilherme Giacomuzzi, em “A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública”, Malheiros, 2002, e, na literatura estrangeira, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, em “Da Boa Fé no Direito Civil”, Coleção Teses, Almedina, 2007. Ainda, a ausência da remissão grega também é sentida na festejado obra de Jesus Gonzáles Peres, quando trata “El Principio General de La Buena Fe en El Derecho Administrativo, 3ª Ed, Madrid, Editora Civitas, 1999. 3 Tomamos a expressão regras morais no sentido que lhe atribui Hannah Arendt, em “Algumas questões de filosofia moral”, p. 113, isto é, como sendo aquelas que dizem respeito à conduta e ao comportamento individual, às regras e aos padrões segundo os quais os homens costumam distinguir o certo e o errado e são invocados para julgar ou justificar os outros e a si mesmo.
16
Com efeito, a antiguidade anterior à filosofia grega era marcada pela
reunião da moral em torno da religião, a qual era a fonte criadora dos deveres de
comportamento. Logo, o homem, inserido nesse contexto, deveria se comportar
de acordo com um mandamento divino ou sagrado, ou seja, na obediência pura
a seres supremos, mitológicos, símbolos ou outras coisas imateriais.
Ocorre que os gregos, preocupados em romper com estas tradições,
passaram a estudar, por meio da natureza humana (e não sobre-humana),
padrões de comportamento que pudessem ser racionalmente identificados como
certos ou errados, como virtuosos ou desvirtuosos.
Encontraram, pois, na própria realidade humana de viver em sociedade,
parâmetros objetivos de conduta (standards) que eram necessários para manter
o convívio entre seus indivíduos, tais como aqueles relacionados ao bom pai de
família, ao bom amigo, ao bom cidadão, dentre outros modelos que serviam aos
interesses da sociedade grega, em detrimento da mera vontade individual ou
egoísta de seus membros, ou ainda da vontade arbitrária dos Deuses 4.
Logo, é a partir da razão, ou seja, da observação dialética sobre a
realidade social do homem (e não mais da obediência ao mítico), que os gregos
passam a identificar um conjunto de comportamentos dotados de
perceptível constância na consciência social e que, por isso, deveriam ser
seguidas como certos, virtuosos.
4 Dentre as obras de filosofia grega que tratam da busca das regras de comportamento pela observação da realidade humana, nos baseamos em Platão, por meio da dialética ou técnica de investigação conjunta (“A República”) e Aristóteles, segundo o qual a construção das virtudes se dá pelo hábito, entendido como a ação humana repetida (“Ética a Nicômaco”).
17
Como bem disse Hannah Arendt, esse processo de identificação de
comportamentos humanos objetivados por uma sociedade, e de forma racional,
ocorre pela existência da chamada “teia de relações humanas” 5, ou seja, num
processo de exteriorização das ações e discursos de cada indivíduo perante um
grupo ou conjunto social, compondo um conteúdo histórico, concreto e
materializado, da realidade humana, a que todos integrantes, pelo registro
gerado, podem consultar.
Trata-se, portanto, de uma teia, de uma verdadeira e concreta trama
social, na qual os indivíduos deixam sua marcam quando agem e quando falam.
Marcas estas que, ao longo do tempo, demonstrarão a coerência do
comportamento com o discurso de cada indivíduo, bem como os padrões de
comportamentos adotados numa sociedade.
E, exatamente diante deste modelo filosófico, surgem as primeiras idéias
da boa fé, as quais estavam ligadas inicialmente à necessidade da promessa,
ou melhor, da necessidade da coerência entre a palavra e a ação futura de
cada membro da sociedade, o que era registrado exatamente pela “teia de
relações”.
Isto porque, para que se pudesse controlar ou minimizar os riscos da
imprevisibilidade do comportamento humano - o que atentava contra a
subsistência da unidade social - se fazia necessário colher do indivíduo a
palavra da conduta futura segundo a qual se comprometeria a exercer, pois
apenas assim a sociedade poderia dele esperar algo e cobrá-lo nesse sentido.
5 Arendt, Hannah. A condição humana, p.189-191.
18
Assim, ao registrar sua promessa na “teia de relações humanas”, tornar-
se-ia possível aferir, concreta e objetivamente, a coerência de sua intenção com
a ação produzida.
Surge, destarte, o que chamamos do dever da boa fé, como condição
necessária para a manutenção do convívio social. Ou seja, torna-se fundamental
que o cidadão cumpra com a conduta prometida ou com a intenção declarada, e,
portanto, nessa medida esperada pela sociedade, sob pena de provocar
verdadeira insegurança contra o “pacto social”.
A boa fé relaciona-se, nesse mister, com a virtude da verdade em
cada pessoa (promessa versus uma ação coerente). Daí fala-se em boa fé
subjetiva.
Além do mais, a partir do registro histórico e continuado das promessas
e das ações realizadas pelos indivíduos componentes na mencionada “teia de
relações”, a própria sociedade (e não mais o indivíduo isoladamente) passa a
escolher aqueles padrões de comportamento (standards) que se mostraram
reiteradamente, e conforme os diversos processos de eleição, mais virtuosos
para a vida social, e que, portanto, todos deveriam adotar daqui para frente, e
isto tudo independentemente da vontade ou da intenção de cada um.
Eis que, de forma concomitante e da mesma raiz filosófica, emerge a
boa fé também no aspecto objetivo. Diz respeito ao dever de exercer a
conduta futura de acordo com padrões eleitos de forma convencional, de
maneira objetiva, e, portanto, independentemente da vontade ou da
promessa específica (traços subjetivos) de um determinado indivíduo.
19
Sobre esse processo de eleição de comportamentos esperados, que a
torna objetiva, interessante anotar as idéias já percebidas por Aristóteles e
citadas de forma muito bem garimpada por Camilla de Jesus Mello Gonçalves,
em valiosa obra sobre referido princípio 6 (obra esta com enfoque prevalente no
campo da filosofia e do direito civil).
Vejamos, pois, seu precioso registro: “Aristóteles reconhece que as
ações belas e justas investigadas pela “ciência política não são passíveis de
raciocínios precisos por igual, devendo-se admitir uma variedade e uma
flutuação de opiniões. Diante disso, concluiu que as ações belas e justas não os
são por natureza, mas sim por convenção, devendo-se contentar com a
indicação da verdade por aproximação e em linhas gerais. Essa idéia aplica-se
ao conceito de boa-fé objetiva, pois os parâmetros de conduta são
estabelecidos, por convenção, a respeito do que é desejado e admitido e do que
não é. Por outro lado, a mesma concepção pode ser dirigida as criticas à
utilização de cláusulas abertas, baseadas em sua definição imprecisa, pois a
impossibilidade de exatidão do conceito não o torna maléfico, sendo possível
construir uma idéia de boa-fé "por aproximação e em linhas gerais". Assim,
evita-se a insegurança e permite-se a consideração de elementos importantes
na formulação de respostas pelo Direito.” 7
E, assim, a partir da objetivação convencional dos standars, ocorrida
inicialmente no campo social e antropológico da “teia de relações” (como visto),
é que a boa fé passará para o campo do direito, na medida em que o homem,
6 Princípio da Boa-Fé, Perspectivas e Aplicações, Campus Jurídico, 2008. 7 Idem; cit. p. 14.
20
futuramente, positivará padrões sociais de comportamento virtuosos na “teia de
relações” como normas jurídicas, isto é, dotadas de coercibilidade estatal (o que
veremos a partir do item 3 deste Capítulo).
Logo, nesse momento é importante registrar que as primeiras idéias
relevantes da boa fé surgem na Grécia, sendo relevante para esse trabalho fixar
que referido valor aparece na qualidade de espécie de regra moral de
comportamento, que é necessária à manutenção da unidade ou “pacto” da vida
social, e que especialmente se relaciona com o dever de coerência da promessa
de cada indivíduo com sua ação (boa fé subjetiva), bem como do dever de
exercer a conduta futura independentemente de sua vontade, mas de acordo
com standards objetivamente eleitos pela sociedade (boa fé objetiva).
Aí estão, efetivamente, os elementos de formação inicial da boa fé e que
o direito, mais para frente, resolveu encampar, ainda que sobre ela tenha
atribuído especial coloração num dado momento histórico.
21
2. A boa fé no direito romano.
Como dito anteriormente, o signo “fé” – do ponto de vista etimológico e
que consta na expressão “boa fé” - proveio dos romanos.
Representava, inicialmente, a deusa mitológica romana denominada
Fides, a qual personificava a confiança da palavra dada. Os juramentos a ela
ocorreriam com a mão direita erguida, tal como a simbologia que se utiliza hoje
em muitos juramentos solenes 8.
Por tal razão, o signo semântico fides que contém esse mesmo sentido
na língua portuguesa curiosamente não é a palavra “fé” (tida como crença
religiosa), mas sim o termo “fidúcia”, podendo ser traduzido pela confiança no
compromisso assumido pela palavra 9.
Já o signo “boa” provém do latim bonna e representa o adjetivo ‘bom’ no
feminino, ou seja, positiva, virtuosa, salutar.
Boa fé, portanto, significava etimologicamente a qualidade de bem
corresponder à confiança depositada.
8 Segundo a enciclopédia livre na internet Wikipédia, categoria Deuses Romanos, a deusa Fides, na mitologia romana, consistia na personificação da palavra dada. Era representada como uma idosa de cabelos brancos, sendo entendida como mais velha que o próprio Júpiter. Desta maneira pretendia-se transmitir a noção que a palavra dada, o compromisso, era a base da sociedade e da ordem política. Acreditava-se que o próprio culto da deusa era muito antigo e que teria sido introduzido no tempo de Numa Pompílio. A deusa possuía um templo no Capitólio, perto do templo de Júpiter Óptimo e Máximo, que foi mandado erguer pelo cônsul Aulus Atilius Calatinus. O templo foi consagrado à deusa no dia 1 de Outubro de 254 a.C. (o 1 de Outubro tornou-se assim o dia da festa da deusa). Para oferecer um sacrifício à deusa era necessário envolver a mão direita com um pano de cor branca. Este templo era ocasionalmente usado pelo Senado romano para as suas reuniões. Nas suas paredes eram colocados tratados e leis inscritos em tábuas de bronze. Por volta de 58 a.C. o templo foi restaurado por Marco Emílio Escauro. 9 Vide o significado destas expressões e outras correlatas no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Editora Moderna Ltda, 2ª Edição, 2004.
22
De outro lado, ao analisar a boa fé pelo Direito e não meramente pela
Etimologia, verificar-se-á, em Roma, a presença dos mesmos elementos
apreendidos pela filosofia grega, mas agora transportados para o campo do
direito. E, por essa razão, foram os romanos quem efetivamente desenvolveram-
na, pois produziram sobre ela normas jurídicas (regras e princípios) que até
hoje, sobretudo no direito civil, aplicamos quase que integralmente.
Daí haver igual relevância analisar, ainda que de forma sintética
(reconheça-se), a boa fé no direito romano.
Para o estudo do tema, encontrar-se-á na magistral obra “Boa-Fé no
Direito Civil Português”, de Menezes Cordeiro, uma consistente e abrangente
visão de seu aparecimento e evolução, razão pela qual a ela recorremos 10.
Com efeito, referido autor relata que a boa fé romana surge com a idéia
de fides, a qual continha três enfoques distintos.
(a) Fides-sacra, documentada em diversas normas religiosas: (a1)
extraída na Lei das XII Tábuas, quando esta prescrevia sanções religiosas
contra o patrão que defraudasse a fides do cliente (Patronus si clienti fraudem
fecerit, sacer esto); (a2) no culto à deusa Fides, que solenizava o ritual da
entrega da palavra e da lealdade pelo homem diante desta entidade divina 11;
(a3) na análise de poderes extensos atribuídos, pela Igreja, ao pater sobre a
família, e nas fórmulas iniciais de sua limitação.
(b) Fides-facto, assim denominada por apresentar-se autônoma em
relação às regras religiosas ou puramente morais. Tal acepção também
10 Da Boa-Fé no Direito Civil. Coleção Teses. Almedina, p. 53/70. 11 Vide nota 6.
23
compreendia a fides como uma espécie de garantia, relacionada ao instituto
jurídico da clientela. No entanto, citando a leitura Beseler (ACI Roma I, 1934,
133-167 e 141), Menezes Cordeiro aponta que a fides-facto concebida pelos
romanos trazia a idéia de ligação entre os indivíduos por um fato humano, qual
seja, o empenhamento da palavra, que os uniria exatamente por essa ocorrência
(um fato), tal como o faria a lótus grega (flor de origem indo-européia utilizada
para atar coisas).
(c) Fides-ética, concebida desde o momento em que a garantia
expressa pela fides passou a residir na qualidade de uma pessoa, e, portanto,
ganhando coloração moral. Mais do que em simples fato, a fides implicaria agora
o sentido de dever. 12
Diante desta panorama, mister reconhecer que o direito romano, muito
embora fosse excessivamente formalista, adota a fides para permitir ao pretor,
no julgamento do caso concreto, uma investigação além da simples letra da lei,
mas também comprometido em assegurar o respeito dos deveres assumidos
pelas partes, pelas crenças depositadas e pelas promessas feitas. Exemplos
desta positivação tem-se claramente no surgimento, pelos romanos, dos
institutos da boa fé contratual, ou da boa fé do possuidor, como condição de
aquisição de bem imóvel por usucapião.
Desta feita, o direito romano encampa a boa fé, sobretudo no aspecto
subjetivo, e lhe confere positivação jurídica, relacionando-a, portanto, com o
dever de lealdade de uma parte para com outra, quer seja numa relação
obrigacional, quer seja numa relação de direito real. 12 Idem nota 8, p. 55/56.
24
Posteriormente, os romanos também percebem que, no comportamento
leal à parte contrária, não poderia ser levado em conta apenas o compromisso
assumido pela palavra dada por alguém (subjetivo), uma vez que este mesmo
compromisso poderia ser injusto.
Assim, pela insuficiência da fides isolada para o alcance da justiça,
acrescentam-lhe o qualificativo bonna (bonna fides), no sentido de que a palavra
assumida não deveria apenas ser honrada, mas, antes disto, deveria ser justa,
ou seja, conforme a pauta de valores aplicada no caso concreto por quem
detinha o papel de dizer o direito (daí um exemplo magno da importância da
construção da jurisprudência romana; daí a intimidade da boa fé com a
necessidade de introduzir valores no ordenamento jurídico, ainda que emergidos
pelo pretor).
Tem-se, portanto, pontuadas as primeiras positivações jurídicas do valor
da boa fé, mantendo-se, como evidenciado, os principais elementos de sua
formação filosófica.
25
3. A boa fé no Direito Alemão.
Nesse tópico, dedicaremos algum esforço para tratar da boa fé no
direito alemão, o que faremos em razão de sua peculiar formação e
desenvolvimento, os quais, de certa forma, influenciaram a encampação do
princípio jurídico no Brasil.
A “boa fé” no Direito Alemão, segundo Staudinger (citado por Karina
Nunes Fritz 13), não teria relação de descendência direta com a bonna fides do
Direito Romano, mas seria proveniente das expressões Guten Glauben (boa fé
subjetiva) e Treu und Glauben (boa fé objetiva), as quais teriam suas raízes nas
tradições medievais dos “juramentos de honra dos cavalheiros”, impregnados
pelas idéias de lealdade, retidão de conduta, honra, fidelidade à palavra dada e
consideração pelo outro.
Nessa linha, treu significava, segundo Heinrich Dorner, “um
comportamento que compreendesse confiança, sinceridade e consideração na
relação dos participantes.” E glauben significa “a confiança nesse tipo de
comportamento da outra parte. A combinação das palavras contém, com isso, a
necessidade de um comportamento honesto e leal, com justas considerações
aos interesses legítimos do outro. Essa necessidade compreende a idéia de
proteção da confiança”. 14
No entanto, a par das diferenças culturais, etimológicas e influências
que receberam, evidente reconhecer que, em ambos os casos (romano e
13 Julius Von Staundinger aparece citado por Karina Nunes Fritz, em “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”, p. 89/91. 14 Citado por Karina Nunes Fritz. “Boa-Fé Objetiva na fase Pré-Contratual”. p. 90.
26
germânico), o núcleo central da boa fé seria semelhante, pois diz respeito à
proteção jurídica da confiança, do cumprimento da palavra, ou seja, dos valores
“verdade”e “coerência”, fazendo crer que esta realmente afigura-se como
objeto inerente e essencial para a segurança dos indivíduos ao viver em
sociedade, independentemente do momento histórico-cultural.
Destarte, a diferença mais sensível entre o conceito da boa fé romana e
da germânica pode ser encontrada no fato de que a bonna fides se propagava
na Idade Média de forma distinta daquela que surgia com os povos germânicos.
A primeira passava por uma forte influência do cristianismo, o qual unificou o
conceito de boa fé em torno do pecado, retrocedendo-a, portanto, ao aspecto
subjetivo 15.
Por sua vez, a Treu und Glauben germânica, exatamente por se manter
imune à influência cristã, foi concebida, naquele momento, com significação
distinta, desprovida, pois, do elemento subjetivo pecaminoso.
Logo, o que sobreleva anotar no Direito Alemão é que, a partir da Idade
Média, foram os germanos quem melhor desenvolveram a boa fé no aspecto
objetivo, enquanto Roma mergulhava no chamado “período das trevas”,
queimando livros, fazendo cruzadas, perseguindo cientistas e, de forma geral,
cegando os olhos dos cidadãos para o conhecimento científico que fugisse à
doutrina religiosa.
Com efeito, os germanos passaram a reconhecer que numa relação
jurídica existem deveres (de boa fé) que dizem respeito estritamente às
15 A influência cristã sobre a bonna fides romana, na Idade Média, e sua distinção com a Treu und Glauben germânica, também é abordada por Menezes Cordeiro, em “A Boa-Fé no Direito Civil”, bem como de Karina Nunes Fritz, em “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”.
27
obrigações recíprocas entre as partes, da mesma forma em que há deveres (e
também de boa fé) que não se relacionam estritamente às obrigações das
partes, mas sim a deveres secundários, anexos, correlatos, e até mesmo
sociais, ou ainda que possam atingir terceiros, externos ao pacto obrigacional.
Esta seria, pois, a feição objetiva da boa fé de maior intensidade que a
história do direito concebeu, isto é, no dever de cumprir regras objetivadas pela
sociedade e que são externas à simples promessa feita pelas partes, o que o
direito hodierno passou a encampar.
Assim, por exemplo, o Código Civil do Estado de Baden, de 1810,
prescrevia, no art. 1134, III, que os contratos deveriam ser executados
honestamente.” Ademais, no art. 1135, que os contratos vinculam também a
tudo aquilo que decorre da “equidade, dos usos e das leis”, o que fora
reproduzido, em essência, nos Códigos da Renânia (1814), da Saxônia (1863) e
de Dresden (1866).
Ou seja, a proteção jurídica não se limitaria aos sujeitos ou as
obrigações principais pactuadas por eles, mas incluiria deveres anexos, como os
de equidade e honestidade, entre eles e com terceiros.
Proteger-se-ia, em última analise, a própria sociedade em geral,
fazendo com que o direito alemão atingisse notável grau de abstração e
objetividade no que tange à aplicação da boa fé.16
16 Nesse particular, convém transcrever trecho do estudo de Karina Nunes Fritz (“Boa-Fé Objetiva na fase Pré-Contratual”. p. 47 e 51), a qual, pelo escopo de seu trabalho, faz longa pesquisa sobre a boa fé no Direito Alemão: “Percebe-se do exposto que a noção de relação obrigacional na Alemanha – melhor seria falar em fenômeno obrigacional – tem uma dimensão muito ampla e abrangente que supera muito a visão de obrigação como vinculo jurídico entre devedor e credor em função do qual pelo menos um deve uma prestação ao outro, cuja origem repousa na concepção romana de obrigação, difundida no Ocidente com a recuperação do direito romano. O primeiro golpe desferido no sólido conceito de obrigação foi obra da
28
Não obstante, para justificar a pertinência da realidade germânica no
estudo da boa fé no direito brasileiro, bastaria verificar que o direito civil
contratual encampou tais deveres de conduta em relação aos contratantes
reciprocamente, mas também destes em face da chamada “função social” do
contrato.17
É o que se colhe dos artigos 2421 e 422 do CC Brasileiro de 2002, in
verbis: Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Posto isto, tem-se, por essas simples assertivas, desde já justificada a
proposta de trazer à colação um panorama, ainda que resumido, da boa fé no
direito germânico, na medida em que, de forma íntima, influenciou o direito
nacional com a teoria objetiva que especialmente cuidou de talhar.
jurisprudência alemã que, logo após a Primeira Guerra Mundial, deixou de considerar a obrigação como uma prestação do credor – superando a própria visão do direito das obrigações como o estatuto do credor – e passou a concebê-la como um processo ou organismo, dinâmico, no dizer de Heinrich Siber, composto por uma gama de direito e deveres.” E ainda, citando Clóvis de Couto e Silva e Martins-Costa, referida autora relata: “Clóvis de Couto e Silva, amparado na doutrina alemã, defendeu pioneiramente a compreensão da obrigação como um processo teleológico composto por um conjunto de direitos e deveres dirigidos a uma finalidade comum e isso influenciou sensivelmente o pensamento brasileiro. Seguindo seus ensinamentos, a doutrina mais atualizada postula a superação da concepção tradicional de obrigação como vínculo estático em função do qual apenas o sujeito ativo tem direitos. ... (Martins-Costa) Arremata, porém, que a imagem de uma pessoa a que incumbem os direitos e outra obrigada ao dever de cumprimento é, na verdade, uma concepção demasiadamente simplista para ser real. Em torno de cada u dos intervenientes da relação se compõe um feixe de direitos, obrigações, deveres secundários, anexos, poderes formativos, ônus etc., articulados dinamicamente.”. No esmo sentido, confira Arnold Wald, em “Direito Civil - Direito das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos”, p. 212. 17 Interessante anotar que a boa fé contratual do Código Civil é aplicável nos contratos administrativos brasileiro, por força do art. 54 da Lei Federal 8.666/93.
29
4. A boa fé no direito civil brasileiro.
O primeiro ramo que se ocupou do instituto da boa fé no direito brasileiro
foi, efetivamente, o direito civil, e talvez por isso o desenvolvimento do tema e
sua positivação, nele, ocorreram de forma mais notável.
No entanto, o que mais nos interessará, para o objeto deste trabalho,
passa a ser a influência e a penetração da boa fé civil no direito administrativo, e
não preponderantemente o estudo completo dela própria (o que certamente
demandaria uma dissertação específica e à parte).
Por isso mesmo, procuraremos traçar de forma resumida suas bases no
direito civil para depois meramente projetá-la no direito administrativo (aliás,
anote-se que o Capítulo III, 1 e 2, tratará da boa fé administrativa como figura
própria e diversa).
Com efeito, sobre o surgimento da boa fé civil, convém registrar que o
civilista Adalberto Pasqualatto anotara que o Direito Civil Brasileiro já havia
positivado-a pelo Código de 1916, ainda que de forma implícita e na sua forma
subjetiva – reconheça-se. 18
Destacou na ocasião o art. 120, pois tal dispositivo conferia
conseqüências diversas segundo o “mau comportamento” das partes numa
relação obrigacional. Isto porque considerar-se-ia verificada a condição cujo
implemento fora maliciosamente obstado pela outra parte; e não verificada a
condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem seu implemento
18 “A boa-fé nas obrigações civis”. In: O ensino jurídico no limiar do novo século. Edição comemorativa do cinqüentenário da Faculdade de Direito.
30
aproveitava, ou seja, a norma determinava nitidamente a inversão do efeito da
condição contra aquele que atuasse de má fé.
Além das observações de Pasqualatto, ainda podemos citar ainda outras
passagens no Código Civil de 1916, o que se mostrará suficiente para
sintetizarmos uma idéia de seu conceito. Talvez, o exemplo mais categórico
estivesse no art. 85, que assim dispunha: “Nas declarações de vontade se
atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”. Nele, fica
evidente que a boa fé civil consiste num importante princípio de interpretação,
prevalecendo, inclusive, sobre o sentido da escrita contido no documento.
Nota-se, pois, que a boa fé estava ligada à intenção do agente, ou seja,
consiste no comportamento que o indivíduo, no seu interior, desejava com a
prática do ato, e não meramente a tradução fria e literal do instrumento que
declara seu ato.
Logo, tem-se que a boa fé introduzida pelo Código Civil de 1916 é
subjetiva, podendo ser conceituada como a proteção jurídica da intenção
interior do agente contra os defeitos da linguagem (art. 85) ou contra os defeitos
de lealdade praticados pela parte contrária numa relação obrigacional (art. 120).
Já a boa fé objetiva no direito civil, inspirada plenamente pelo Direito
Germânico (Cap. I.4), foi positivada apenas pelo recente Código Civil de 2002,
com a inserção das seguintes normas: “Art. 187. Também comete ato ilícito o
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.” (...) “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
31
limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios
de probidade e boa-fé.”
Neles, a presença do caráter objetivo estaria no fato de que o exercício
de um direito ou a celebração e execução de um contrato devem ser realizados
não apenas para respeitar a intenção subjetiva de cada parte, mas, extrapolando
a relação interna dos membros da relação jurídica, devem respeito às normas e
padrões exigidos e em favor da sociedade, como verdadeiros modelos,
arquétipos ou standards de comportamentos, objetivados no ordenamento
jurídico (no caso a função social do contrato, os fins econômicos, os bons
costumes, etc.).
Hodiernamente, o desenvolvimento da boa fé objetiva é notável e já
penetra diversas espécies de relações jurídicas no direito civil.
Destarte, para o eminente prof. Silvio Luis Ferreira da Rocha “o princípio
da boa-fé também informa todo o direito obrigacional. A boa-fé que hoje
influencia grandemente o direito obrigacional é a boa-fé objetiva, e não a boa-fé
subjetiva.”, concluindo ainda que a boa-fé objetiva desempenha três importantes
funções no sistema jurídico civilista: “(...) a de cânone hermenêutico-integrativo;
a de norma de criação de deveres jurídicos; e a norma de limitação ao exercício
de direitos subjetivos.” 19
Deveras, pode-se notar – a par do modesto resumo – que os
ensinamentos fornecidos pelo direito civil brasileiro são importantes e relevantes.
19 Direito Civil 1 – Parte Geral, Malheiros, 2010, p. 23 e 25.
32
Contaminam, efetivamente, o direito administrativo de duas maneiras: a)
direta, quando a Administração Pública está submetida à relações jurídicas cujo
regime privado e civilista a ela se aplica (por exemplo: nos contratos de compra
e venda, locação, contratos, etc.); b) indireta, quando as fontes doutrinárias do
direito civil fornecem elementos de compreensão para institutos próprios do
direito administrativo, ou quando as normas civilista se aplicam de maneira
subsidiária (tal como nos casos do art. 54 da Lei Federal 8.666/93, que trata da
incidência das normas das teoria geral dos contratos nos contratos
administrativos).20
5. A boa fé como princípio geral no direito brasileiro.
Para alguns civilistas brasileiros21, a positivação da boa fé, como
princípio geral do ordenamento jurídico, se operou conseqüentemente à
positivação do princípio da “dignidade da pessoa humana” e da finalidade
fundamental da República em construir uma sociedade não apenas baseada na
liberdade, mas na liberdade regrada pela justiça e solidariedade, o que está
estampado no art. 1º, III, e 3º, I, da Constituição República de 1988. 22
20 “Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.” 21 Nesse sentido, vide: Claudia Lima Marques, em “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, p. 417; e Claudio Luis Bueno de Godoy, “Função Social do Contrato”, p. 129. 22 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III - a dignidade da pessoa humana; ...
33
Nesse sentido, Larenz (citado por Karina Nunes Fritz), enxerga que a
raiz do princípio da boa fé encontrar-se-ia no chamado personalismo ético, cujas
raízes decorrem da necessidade elementar de respeito à pessoa e à sua
dignidade” 23.
Tal assertiva, efetivamente, pode ser considerada no âmbito do direito
brasileiro. Isto porque a conduta exigida do homem, inserido numa comunidade
solidária e que respeita a dignidade do outro (artigos 1º, III e 3º, I, da CF), jamais
poderá ser absolutamente livre.
Deve, em verdade, agir sempre de acordo com os valores sociais
juridicizados, na qual a idéia de cooperação e respeito ao próximo são deveres
de comportamento necessários à subsistência deste modelo constitucional.
Aí está, desde logo, notada a boa fé como princípio jurídico (agir
conforme o comportamento esperado pelo Direito), bastando para tanto
relembrarmos sua significação construída ao longo da história da filosofia e do
direito (vide Capítulo I.1, I.2, I.3 e I.4).
Por tal razão, notaremos que o exercício da liberdade ou da propriedade
- como o de formar contratos, o de empreender atividade econômica – pelo
Direito, jamais são absolutos ou totalmente livres, desprovidos de qualquer
obrigação de boa fé.
Ao invés disto, apenas poderá ser exercitado conforme os padrões de
comportamento objetivos e esperados pelo corpo social.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ... I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; 23 “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”, p. 105.
34
Exemplo fértil desta positivação ainda podemos detectar no caso do
exercício do poder de polícia administrativa, no qual, segundo o magistério do
eminente administrativista Clovis Beznos, caberia ao Estado verificar se a
liberdade e a propriedade, pelo cidadão, estariam exercitados conforme seu
desenho social, isto é, pelos contornos já delimitados no ordenamento jurídico. 24
Nesse sentido, o cidadão não poderia, jamais, empreender atividade
econômica livremente sem respeitar os padrões de comportamentos sanitários
ou ambientais, ou ainda não poderia edificar propriedade imóvel sem respeitar
as posturas e a política de desenvolvimento urbano. O desenho que o
ordenamento jurídico confere ao exercício de um direito jamais tem contornos ou
fronteiras infinitas, de acordo com a mera vontade de seu titular.
Assim é que, diante do pacto social, o ordenamento jurídico não
concedeu o exercício de liberdade, da vontade, da propriedade, ou dos demais
valores individuais, como absolutos. Com efeito, se a Constituição positivou que
a vida em sociedade exigirá solidariedade, a qual limita a liberalidade do homem
por meio de padrões objetivos de conduta, a fim de evitar comportamentos
inesperados pelo ordenamento jurídico, tutelando a confiança social desta
maneira, inexoravelmente introduziu a boa fé em sua máxima expressão, qual
seja: tipicamente objetivada e, assim, desvinculada da vontade individual de
cada um.
Pela preconização dos referidos artigos constitucionais, tem-se a
positivação da boa fé, ora tratada como “princípio geral de direito”.
24 “Poder de Policia”, Ed. RT, 1979, p. 46/60.
35
Muito embora voltaremos ao tema (Cap. II.6), diz-se, aqui, “princípio
geral de direito” conforme a definição empregada por Miguel Realle, a qual, por
retidão teórica, convém transcrever ipsis litteris 25: “Nosso estudo deve começar pela
observação fundamental de que toda forma de conhecimento filosófico ou cientifico implica a
existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base
de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber. É claro que estamos
cuidando da palavra “princípio” apenas em seu significado lógico, sem nos referirmos à acepção
ética desse termo, tal como se dá quando demonstramos respeito pelos “homens de princípios”,
fiéis, na vida prática, às suas convicções de ordem moral. Restringindo-nos ao aspecto lógico da
questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de
conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas
também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos
pelas necessidades da pesquisa e da práxis. A nosso ver, princípios gerais de direito são
enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão
do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para elaboração de
novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o
de sua atualização prática.
Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força
de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe
a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de
irretroatividade da lei para proteção dos direitos adquiridos etc. A maioria dos princípios gerais
de direito, porém, não constam de textos legais, mas representam contextos doutrinários ou, de
conformidade com a terminologia assente no Capitulo XIV, são modelos doutrinários ou
dogmáticos fundamentais. Como se vê, e é salientado por Josef Esser, enquanto são princípios,
eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando os consagra, dá-lhes força
cogente, mas não lhes altera a substancia, constituindo um jus prévio e exterior à lex. Nem todos
25 Miguel Reale, em, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição, p. 314.
36
os princípios gerais têm a mesma amplitude, pois há os que se aplicam apenas neste ou naquele
ramo do Direito, sendo objeto de estudo da Teoria Geral do Direito Civil, do Direito
Constitucional, do Direito Financeiro etc. Fácil é perceber que, sendo elementos condicionadores
ou fundantes da experiência jurídica, podem ter as mais diversas origens, consubstanciando
exigências de ordem ética, sociológica, política, ou de caráter técnico. Vê-se por conseguinte,
que eles se desenvolvem no plano do Direito Positivo, embora se fundem, de maneira mediata,
em razões éticas ou de Direito Natural, desde que este seja concebido em função da experiência
jurídica, como logo mais veremos, e não como uma duplicata inútil do Direito Positivo.
Nessa linha, considerando que a positivação da boa fé de que trata o
artigos 1º, III, e 3º, I, da CF, permeia todo o sistema jurídico brasileiro, e, por isso
mesmo, considerando se tratar de princípio geral do direito brasileiro, seria
totalmente válida a afirmação de que deveríamos aplicá-la, com esta mesma
carga, perante à Administração Pública.
Ora, se a Administração se submete ao ordenamento jurídico e se figura
como titular de direitos e obrigações, resta insofismável seu dever de adotar os
mesmos padrões de comportamentos (no caso, o dever de agir conforme
padrões objetivos de boa fé, coloridos pela solidariedade e dignidade à pessoa
humana) que foram juridicizados constitucionalmente a todos.
Fornecidos os principais elementos da boa fé, como objeto da realidade
filosófica, e, posteriormente, como instituto jurídico positivado, esse trabalho
voltará seus olhos, especialmente, para o estudo do tema dentro do direito
administrativo.
Para tanto, propor-se-á uma premissa anterior, consubstanciada na
identificação do regime jurídico de direito administrativo, a fim de inserir, como
38
Capítulo II – O direito administrativo, seu regime jurídico
e a boa fé.
1. Metodologia. 2. Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de
Direito. 3. Relação de administração. 4. O “dever-poder” no exercício da função
administrativa. 5. O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé. 6. Classificação
principiológica no regime de direito administrativo.
1. Metodologia.
Para a descrição científico-dogmática de determinado objeto de estudo,
tal como sugerem Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Miguel Reale, tem-se, como um
método importante, a delimitação primeira do ordenamento jurídico que o
envolve, ou seja, da completude do sistema e de seus pontos de partida, a fim
de permitir, com coerência, o conhecimento dedutivo das espécies nele
inseridas.26
26 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação; Editora Atlas; 5ª Edição, p. 47/51. Sobre o método dedutivo, relevante transcrever o pensamento de Miguel Reale, em Lições Preliminares de Direito, Editora Saraiva, 21ª Edição, que assim se posiciona: “Ao contrario do processo indutivo, temos o dedutivo, que se caracteriza por ser uma forma de raciocínio que, independentemente de provas experimentais, se desenvolve, digamos assim, de uma verdade sabida ou admitida a uma nova verdade, apenas graças as regras que presidem à indiferença das proposições, ou, por outras palavras, tão-somente em virtude das leis que regem o pensamento em sua “consequencialidade” essencial. Deve-se lembrar também que há duas espécies de dedução, a silogística e a amplificadora. A primeira, a do silogismo, se distingue porque, postas duas proposições, chamadas premissa maior e premissa menor, delas resulta necessariamente uma conclusão, a qual, se esclarece ou particulariza um ponto, nada acresce substancialmente ao já sabido. Na dedução amplificadora, que muitos erroneamente atribuem somente às Matemáticas, do cotejo lógico de duas ou mais posições podemos elevar-nos a uma verdade nova, que não se reduz, ponto por ponto, às proposições antecedentes.” (p. 83/84) “Já dissemos que as normas jurídicas se ordenam logicamente. Essa ordenação tem múltiplos centros de referencia, em função dos campos de relações sociais que elas disciplinam, havendo uma ou mais idéias básicas que as integram em unidade. Desse modo, as normas da mesma natureza, em virtude de uma comunhão de fins, articulam-se em modelos que se denominam institutos do penhor, da hipoteca, da letra
39
Desta feita, entende-se que é de suma importância descrever, mesmo
resumidamente (reconheça-se), o direito administrativo e seu regime, pois
são eles que conferem um conjunto, uma unidade da qual, como conseqüência
lógica, emergirá a boa fé sobre a forma de princípio geral (classificação esta que
adiante será explicada).
A seguir, passaremos, então, a analisar panoramicamente o regime
jurídico de direito administrativo, o que faremos – insista-se – de forma limitada e
resumida, mas, por outro lado, certo de que revelará, ainda assim, a importância
metodológica para que o estudo da boa fé possa se tornar mais adequado.
2. Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de
Direito.
Diz-se que o direito, numa visão genérica a abstrata, pode ser concebido
como objeto de construção do homem que, por viver em sociedade, pretende
ordenar coercitivamente o comportamento. E esta coercitividade (emprego da
força estatuída para o cumprimento da norma), segundo Miguel Reale, é
exatamente o que diferencia-o do campo da moral, que apenas cuida de regular
o comportamento humano sem o emprego desta força estatuída.27
de câmbio, da falência, da apropriação indébita. Os institutos representam, por conseguinte, estruturas normativas complexas, mas homogêneas, formadas pela subordinação de uma pluralidade de normas ou modelos jurídicos menores a determinadas exigências comuns de ordem ou a certos princípios superiores, relativos a uma dada esfera da experiência jurídica.” (p. 191) 27 Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Ed., p.1/2e 46.
40
Desta feita, somente seria possível falar em direito quando houvesse a
existência de deveres de conduta, e, portanto, que pudessem compelir alguém,
sob pena de sanção, a um comportamento obrigatório, proibido ou permitido.
Assim, se o direito administrativo é um ramo do direito que se ocupa de
regular a atividade administrativa (conceito que melhor trataremos a partir do
item seguinte28), tem-se que sua formação somente ocorreria, como
conseqüência óbvia, quando o Estado passasse a se submeter a essa mesma
organização coercitiva da conduta, da qual seu conjunto objetivo se denomina
ordenamento jurídico.
Por tudo isso, pode-se deduzir que a formação do direito administrativo,
tal como concebemos na atualidade, é recente, na medida em que até o século
XVII a história nos mostra um Estado que não se submetia efetivamente ao
ordenamento jurídico, isto é, ao conjunto de regras jurídicas de comportamento
sob pena de sanção.
Lembremo-nos que Maquiavel, numa concepção acentuada do Estado-
Poder, mas reveladora de sua linha filosófica empírica, aconselhou Lourenço de
Médicis no século XVI ao afirmar que a única atividade típica do governante, e
que ele tinha que se preocupar, era manter seu comando através da guerra, da
organização, e das disciplinas militares.29
28 Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, a função administrativa consiste no “cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica” ob. cit. p. 27. 29 Nicolau Maquiavel aconselhou Lourenço de Médicis afirmando: “Preconizo que um príncipe não tenha outro objeto de preocupações nem outros pensamentos a absorvê-lo, e que tampouco se aplique pessoalmente a algo que fuja aos assuntos da guerra e à organização e à disciplina militares, porquanto apenas estes concernem à única arte atinente ao seu comando.” O Príncipe, Traduzido do Italiano por Antonio Caruccio-Caporale, L&M Pocket, vol. 110, p. 69.
41
Esta, e não outra, seria a tarefa do Estado, isto é, a de fonte e de
preservação de poder.
Ademais, se afirmava na França que “Le roi ne peut mal faire”, ou na
Inglaterra, “The King can do not wrong”, expressões que, em ambos os casos,
podem ser interpretadas como o rei nunca erra, sintetizadas, pois, na idéia de
que o Poder Governamental não estaria sujeito a controle ou imposições.
Somente com a Revolução Francesa, fundada em parte nas teorias de
Montesquieu sobre a virtude da democracia 30, é que nasce o chamado “Estado
de Direito”, expressando que o governo democrático, em contraposição ao poder
monárquico que se encontrava acima e à margem do ordenamento jurídico,
deve, ao mesmo em que executa as leis, suportar seu peso, ou seja, submeter-
se aos seus mandamentos.
Tais ideais, consolidados (bem verdade) pela jurisprudência francesa
posterior à Revolução (o chamado Conselho de Estado), foram objeto de
positivação posterior pela maioria das Constituições dos países ocidentais, tal
com ocorreu no Brasil.
Assim sendo, diante desta nova concepção, na qual o Estado, além dos
poderes e prerrogativas instrumentais que continuava diferenciando-o dos
administrados, passaria a se sujeitar ao ordenamento jurídico que lhe impunha
30 Montesquieu, em sua obra Do Espírito das Leis, Coleção Universidade de Bolso, Editora Ediouro, cit. P. 52, escrevera que “Não é preciso muita probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico se mantenha ou se sustente. A força da lei, no primeiro, no segundo o braço do príncipe sempre erguido, regulam e abrangem tudo. Mas, num estado popular, torna-se necessário um dispositivo a mais, que é a virtude. Isto que eu digo acha-se confirmado em toda a contextura da história, e acha-se muito conforme a natureza das coisas. Porque é claro que, em uma monarquia, onde aquele que faz executar as leis se julga acima das mesmas, necessita de menos virtude do que em um governo popular, onde aquele que faz executar as leis sente que ele próprio a estas se acha submetido, e delas suportará o peso.”
42
deveres de conduta, surge, como conseqüência natural, a necessidade de se
estabelecer um conjunto de normas e regras peculiares, as quais, concatenadas
em torno de uma unidade própria, pudesse regular o exercício da função
administrativa.
Daí que, por meio da criação sucessiva e fértil desse conjunto de regras
jurídicas que se faziam úteis para regular de forma peculiar a atividade
administrativa, emerge o que denominamos de “direito administrativo”. E assim
ocorre na qualidade de ramo especial do direito que, ao mesmo tempo, se
inseria como parte integrante do sistema jurídico unitário.31
Frisa-se, portanto, que o surgimento do direito administrativo, originado na
França como conseqüência do “Estado de Direito” (em oposição ao Estado-
Poder, como visto), é fenômeno da história recente nos países ocidentais,
valendo a pena conferir, em rodapé, o relato contido nas obras de Renato Alessi
e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, retratando o ocorrido na Itália e no Brasil,
respectivamente32.
31 Lembremo-nos, sempre das lições de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1957, n. 274, PP. 284285), quando afirma que: “De fato, o direito especial abrange relações que, pela sua índole e escopo, precisam ser subtraídas ao Direito Comum. Entretanto, apesar desta reserva, constitui também, por sua vez, um sistema orgânico, e, sob certo aspecto, geral.” 32 Na Itália, vale transcrever Renato Alessi, que, ao estudar o surgimento do Direito Administrativo naquele país, fez a seguinte observação: “Se comprende, por lo tanto, que el Derecho Administrativo tanga, en todo ordenamiento, un carácter relativamente reciente, posterior a la aparición de los regímenes constitucionales, com los cuales se dio nacimiento (al menos en la Europa continental) a un sistema de normas jurídicas obligatorias para la Administración, reguladoras del ejercicio de la función administrativa y que constituyen una garantía para los intereses y los derechos de los súbditos que pueden ser lesionados por el ejercicio de la citada función. Por lo que respecta as Derecho administrativo italiano, es evidente que el mismo se remonta a la formación del Reino. Dado que el nuevo Estado italiano que se formó por la anexión al Reino de Piamonte de las otras regiones italianas, no es más que la continuación de este Reino, según la opinión que nos parece acertada, es asimismo evidente que los orígenes de nuestro ordenamiento administrativo han de encontrarse en el ordenamiento administrativo sardo-piemontés, el cual, a su vez, surgió gradual y profundamente influido por el ordenamiento francés
43
3. Relação de administração.
No ciclo de formação do direito administrativo, pudemos observar que o
Estado deixou de ser fonte de poder absoluto, acima e à margem do
ordenamento jurídico. As Constituições de grande parte dos países ocidentais
passam, destarte, a estabelecer como preceito fundamental e positivado nas
Constituições dos países o Estado Democrático de Direito, no qual o poder
estatal provém do povo e em seu nome será exercido.33
Nesse contexto, pois, interessante anotar que a relação de poder entre
Estado e cidadão passa, agora, a subsistir por mera delegação deste, ou seja, o
Estado passa a ser uma espécie de representante do povo, recebendo, assim,
poderes limitados que esse especialíssimo mandato lhe confere (mandato, aqui,
em sentido lato), isto é, com o único fim de cumprir, de representar e de dar
concretude a um processo democrático explicitado nas leis.
de la época napoleónica y postnapoleónica, aun después de la Reestructuración, si bien, naturalmente, de manera más acusada después de la introducción del régimen constitucional. ... Em 1865 podemos considerar finalizado el primer período de la historia de nuestro Derecho administrativo, durante el cual, al tiempo en que se llevó a cabo sustancialmente la unificación administrativa Del Reino, se levantaron los cimientos Del ordenamiento administrativo.” Trad. espanhola de Instituciones de Derecho Administrativo, Tomo I, Bosch, Casa Editorial, Urgel, 51 bis, Barcelona, cit. p. 20/21. No Brasil, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao tratar do surgimento do Direito Administrativo, reconheceu que ele “só surgiu no século passado, embora sempre tenham existido normas jurídicas ordenando a atividade do Estado-Poder.” Princípios Gerais, Editora Forense, de Direito Administrativo, 2ª Ed., 1979, cit. p. 51. 33 A Constituição Brasileira de 1988 encampou referido mandamento no art. 1º, Parágrafo Único.
44
Tratam-se, portanto, de poderes instrumentais e não mais de poderes
originários, tendo como fonte e destinatário o povo e não o governo ou seus
“governantes”.
Essa nova relação de poder, que dá legitimidade à atuação do Estado,
que lhe permite executar a função administrativa, é bem definida por Jürgen
Habermas em sua teoria do discurso, nos seguintes termos: “o princípio da
soberania do povo significa que todo poder político é deduzido do poder
comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima
pelas leis que os cidadãos criam para si mesmo numa formação de opinião e da
vontade estruturada discursivamente.”34
A partir de toda essa ilação podemos justificar a tese de que o Estado
não pode ser concebido mais como fonte pura do poder político, ou, no campo
do direito administrativo, não é mais proprietário da res pública, pois administra
coisa alheia que não lhe pertence originariamente.
Em verdade, sua relação com a população (relação jurídica) passa a ser
de servo e não de senhor, de administrador e não de proprietário, e, assim,
passa a agir em razão de um dever e de uma finalidade, e não mais por livre
vontade (recebe o poder do povo e apenas em seu nome o exerce).
Nesse sentido, Cirne Lima demonstrou, de forma muito clarividente, que
essa relação jurídica de administração entre Estado e população impera apenas
o dever e finalidade de quem tutela coisa alheia. Em contraposição, numa
34 Direito e Democracia – Entre Faticidade e Validade. Vol. I. Biblioteca Tempo Universitário 101. 1997.
45
relação de propriedade ou de domínio, aí sim, prevaleceria a vontade do titular,
que da coisa poderia livremente dispor. 35
4.- O “dever-poder” no exercício da função administrativa.
Ao lado e à frente da relação de administração como corolário da
expressão constitucional de que todo poder emana do povo e em seu nome será
exercido (art. 1º, Parágrafo Único), e com a finalidade de consolidar a existência
35 Rui Cirne Lima, em Princípios de Direito Administrativo, Malheiros, 7ª Edição, p. 105/106, assim se expressou: “Concebe-se geralmente a relação jurídica como expressão de um poder do sujeito de direito sobre um objeto do mundo exterior, seja aquele uma cousa existente per se, seja uma abstenção ou um fato, esperados de outro sujeito. (...) À relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente, chama-se relação de administração. Chama-se relação de administração, segundo o mesmo critério pelo qual os atos de administração se opõem aos atos de propriedade (Código Civil Frances, art. 1988). Na administração, o dever e a finalidade são predominantes. Esse traço característico da administração é salientado no Código do Imperador Justiniano, quando afirma que ‘aquele que é administrador e senhor de sua cousa, nem todos os negócios realiza, mas a maior parte por sua vontade própria. Os negócios de outrem, porém, devem ser administrados com a maior exatidão; a esse respeito nada do que foi negligenciado ou mal administrado se isenta de falta’. (...) No domínio a vontade é predominante. Na definição do Conselheiro Lafayte Rodrigues Pereira, o ‘domínio é o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na substancia, acidentes e acessórios’. (...) É no direito administrativo, porém, que a relação de administração adquire a plenitude de sua importância. Avulta essa importância quando se consideram, comparativamente, no direito privado e no direito administrativo, os efeitos da relação de administração sobre a relação de direito subjetivo, como sujeito diverso, acaso existente sobre o mesmo objeto júris. A relação de administração coexiste, não raro, sobre o mesmo objeto, com um direito subjetivo, do titular diverso do daquela. Os bens dos filhos são propriedade destes, embora administrados pelos pais (Código Civil, art. 1689, II). O bem de família pode ser propriedade do marido, se o regime dos bens do casamento for o da comunhão, ou, ainda, da mulher, no regime de separação (Clóvis Bevilacqua, Código Civil Comentado, t. I, Rio de Janeiro, 1921, p. 301). Dentro do direito privado, os conflitos entre a relação de administração e a de direito subjetivo, resolvem-se em favor desta última. Ao pai ou à mãe, que arruína os bens da família, suspende-se, com o pátrio poder, a administração, a este inerente (Código Civil, art. 1637, caput). Quanto ao bem de família, lícito é ao instituidor, revogar-lhe a vinculação à finalidade legal (Decreto-lei 3.200, de 19.4.1941, art. 21. O instituidor, se não tem a propriedade, tem, entretanto, sempre a disposição do bem quoad institutionem). Diversamente, no Direito Administrativo, a relação de administração domina e paralisa a de direito subjetivo. Relação de administração, exempli gratia, é a que se estabelece, segundo o Direito Administrativo, sobre os bens destinados ao uso público. ‘Desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo’ (Lei 6.766, de 19.12.1979, art. 22).
46
de um regime próprio de direito administrativo, fundamental acrescentar a
construção teórica traçada por Celso Antônio.
Nela, o grande administrativista brasileiro verificou que o objeto de
regulação do direito administrativo, qual seja, a função administrativa, representa
- pelas mesmas bases desse Estado de Direito e dessa relação de
administração -, um “dever-poder”.
Ou seja, tratando-se de “função”, a atividade administrativa demanda,
antes, uma obrigação, que é a de executar o mandamento legal (vontade
popular discursivamente personificada 36), e, portanto, apenas como meio
instrumental e ancilar para o cumprimento desta referida função, é que poderes
lhes são atribuídos 37.
Assim, o raciocínio sobre a relação de administração - na administração,
o dever e a finalidade são predominantes, enquanto que no domínio a vontade
seria prevalente – aqui (no exercício de função administrativa) se aplica de
forma íntegra, retirando-se do Estado todo e qualquer liberdade de agir (o agir
deve se dar conforme o dever e a finalidade legal).
Como conseqüência desta base Teórica do direito administrativo, Celso
Antônio elege como fundamento axiológico desse regime a “indisponibilidade 36 Conforme Habermas, idem nota 7. 37 “Tem-se função quando alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender a finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja, são conferidos como maios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente da função deverá suprir. (...) Com efeito, fácil é ver-se que a tônica reside na idéia de dever, não de poder. Daí a conveniência de inverter os termos desse binômio (dever-poder) para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que o poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio de uma finalidade. (...) Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar o interesse de outrem: a coletividade.” Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 22ª Edição, p. 94/95
47
do interesse público”, ou seja, “sendo interesses qualificados como próprios da
coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de
quem quer que seja, por inapropriáveis.” 38
Com esta visão mais ampla do “Estado do Direito”, da relação de
administração e do exercício da função administrativa (que pressupõe
indisponibilidade do interesse público) - todos concatenados logicamente -,
identificam-se, finalmente, as bases para a concepção de um ramo do direito
peculiar (Direito Administrativo), o qual, a partir desta estrutura criada,
necessitará de regras e princípios próprios para regulação da atividade estatal
que se subsume a essa nova realidade.
E, dentre as regras e princípios que emergirão deste novo ramo do
direito, conferindo-lhe um regime jurídico peculiar, finalmente encontrar-se-á a
boa fé.
Vejamos.
5. O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé.
Como visto, a partir da identificação da fundação do direito
administrativo e de seus elementos mais fundamentais, enfim, pode-se traçar
um contorno, ainda que sintético, de seu regime jurídico, isto é, do conjunto de
formação e orientação das regras e princípios nele inseridos, para que, na exata
38 Curso de Direito Administrativo. Citação extraída da14ª Edição, p. 45.
48
medida do método dedutivo lógico, possam ser feitas assertivas sobre a boa fé
que nele se insere. 39
Seu conceito decorre, pois, dos elementos de formação do direito
administrativo vistos nos tópicos anteriores, e são: conjunto de regras e
princípios que partem da existência de um Estado de Direito e, com ele, do
dever da atividade administrativa de se submeter ao ordenamento jurídico
e de buscar o interesse público positivado por meio de um processo
formal-democrático.
Esta seria, para os fins deste trabalho, a melhor concepção do regime
jurídico de direito administrativo, o que, para melhor compreensão, assim pode
ser decomposto:
a) emerge a partir da existência do chamado “Estado de Direito”, no
qual o Estado se encontra submetido ao ordenamento jurídico;
b) afigura-se como regime jurídico pela existência de um conjunto de
normas jurídicas peculiares (regras e princípios) que tem por objeto regular a
função administrativa;
39 Nesse sentido, vide Miguel Reale; Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição: “Já dissemos que o ordenamento jurídico nacional se distribui em “faixas normativas” ou sistemas de modelos jurídicos distintos, correspondentes às diferentes regiões ou esferas da realidade social. Se assim é, cada “região jurídica” pressupõe, por sua vez, diretrizes ou conceitos básicos que asseguram a unidade lógica dos institutos e figuras que a compõem. É mister, por conseguinte, estudar os princípios gerais do Direito Civil, do Direito Processual, do Direito do Trabalho etc., e, mais particularmente, do Direito de Família, do Direito Cambial etc. Os princípios gerais de Direito põem-se, destarte, como as bases teóricas ou as razões lógicas do ordenamento jurídico, que deles recebe seu sentido ético, a sua medida racional e a sua força vital ou histórica. A vida do Direito é elemento essencial do diálogo da história.”
Aliás, já ensinava Carlos Maximiliano que “Descobertos os métodos de interpretação, examinados
em separado, um por um; nada resultaria de orgânico, de construtor, se os não enfeixássemos em um todo lógico, em um complexo harmônico.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1957, p. 156)
49
c) a partir da concepção de que todo poder emana do povo e em seu
nome será exercido (art. 1º, Parágrafo Único, da CF), tem como elemento
axiológico fundamental deste conjunto de regras o princípio da tutela
indisponível do interesse público, na qual a atividade administrativa, numa
relação de administração, se preordena ao alcance do interesse público
previsto pelo ordenamento jurídico.
No entanto, parece restar inquieta a seguinte indagação: afinal de
contas, qual a relação específica de toda esta construção do regime jurídico de
direito administrativo com a aparição da boa fé?
A resposta, por sua vez, consiste numa relação de total pertinência e
relevância, a qual se mostrará crucial para o desenvolvimento do tema ora
proposto.
Deveras, se o direito administrativo hodierno (e positivado pela
Constituição da República) funda-se na delegação de poder do povo para o
Estado numa perfeita relação de administração (como visto, pelo art. 1º,
Parágrafo Único, da CF), inegável reconhecer que, nessa situação de mero
representante e guardião do interesse coletivo, o dever de boa fé, isto é, o de
corresponder à confiança depositada na tutela de interesse que não lhe
pertence, consiste num princípio fundamental para o exercício da atividade
administrativa.
Por certo, é da essência do Estado de Direito que a coletividade delega
ao Estado (como instituição) a tutela dos interesses tidos como públicos
50
unicamente porque confiou que esta organização institucionalizada pudesse
executar em boas mãos tal mister.
Não se trata, aqui, de recorrer a argumentos meta-jurídicos, uma vez
que a confiança da coletividade de que o Estado deva tutelar o interesse público
não é invocada pela vontade social ou pela intenção do legislador, mas, pura e
simplesmente, como decorrência lógico-interpretativa da relação jurídica de
administração que foi devidamente positivada ou juridicizada pela Constituição
da República, e, que assim, se deduz dogmaticamente da fundação do Estado
de Direito.
Ou seja, ao interpretar o direito posto (e não a fase anterior de formação
desse direito), é que percebemos o elemento confiança como princípio geral e
essencial da existência de uma relação jurídica baseada na administração de
interesse alheio.
É ela, afinal, quem produz o liame necessário a manter íntegra a relação
jurídica de administração.
Trata-se, pois, de puro e legítimo exercício de interpretação
sistemática40, já que o elemento obrigacional (no caso a confiança) sempre
corresponderá ao fio de sustentação da relação jurídica formada pelo Estado e
coletividade. 41
40 Nesse particular, convém citar Juarez Freitas, em sua obra Interpretação Sistemática do Direito, Malheiros, 3ª Ed., p. 70, quando afirma:”Qualquer exegese comete, direita ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito. Assentes tais pressupostos, convém assinalar que todas as frações do sistema guardam conexão entre si, daí resultando que qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios, de regras e de valores componentes da totalidade do Direito. Retido este aspecto, registre-se que cada preceito deve ser visto como parte viva do todo, eis que apenas no exame de conjunto tende a ser melhor equacionado qualquer caso.” 41 Sobre a função da obrigação numa relação jurídica, confiram-se as lições de Silvio Rodrigues, Direito Civil Vol. II, in Parte Geral das Obrigações, cit., pp. 3 e 4
51
Logo, como admitir-se o exercício da função administrativa pelo Estado,
que a exerce apenas para corresponder à confiança juridicamente depositada
pela coletividade, sem a presença da boa fé?
Evidentemente, pois, que a boa fé é um princípio fundamental do direito
administrativo e decorre duma positivação já implícita nos elementos formadores
do seu regime jurídico (Estado de Direito, relação de administração e
indisponibilidade do interesse público).
Por isso, funciona nesse sistema da mesma forma que o princípio da
legalidade (dever da atividade administrativa se sujeitar à lei e ao direito, e não à
vontade do administrador); que o princípio da responsabilidade do Estado (dever
de se submeter às conseqüências do ordenamento jurídico); ou até mesmo que
o princípio da impessoalidade (proibição de conferir tratamento pessoal, numa
relação de administrar interesse que não lhe pertence); dentre outros de igual
escalão que gravitam em torno dos elementos estruturais do regime de direito
administrativo tal como os planetas gravitam em torno do sol.
Daí decorre que a boa fé - imbricada com a idéia do exercício de um
mandato do interesse público, nos termos do art. 1º, Parágrafo Único, da CF –
também implica como corolários o dever de prestar contas da atividade
administrativa realizada, o de publicar os atos administrativos, o de motivar o ato
administrativo, dentre tantos outros que demonstram que a atividade
administrativa deve ser conduzida de acordo com padrões de comportamento
previamente exigidos pela sociedade ao confiar na tutela do interesse público
pelo Estado.
52
Por essa razão, a boa fé no regime jurídico de direito administrativo
emerge como o princípio do dever de atuação, pelo administrador, de acordo
com o comportamento esperado de quem tutela o interesse público.
Este comportamento é representado tanto pelo dever de lealdade entre
as partes especialmente envolvidas numa relação especial (boa fé subjetiva,
entre o administrador e o cidadão) bem como pelo dever de conduta segundo
padrões de comportamento previstos no ordenamento jurídico (boa fé objetiva),
características estas que melhor analisaremos no Capítulo seguinte.
Na essência, observa-se que a boa fé e semelhante daquela que nasceu
pela filosofia grega e que influenciou toda a positivação jurídica posterior (vide
Capítulo 1). Difere, contudo, do colorido que a preenche especialmente, ou
melhor, da “pauta de comportamentos esperados” pelo direito administrativo.
E isto não é pouco.
Com efeito, o Estado de Direito, a relação de administração e a
indisponibilidade do interesse público, como visto, farão com que essa “pauta de
comportamentos esperados” seja muito diversa daquela que se exigiria, por
exemplo, de um membro da sociedade grega antiga, de um proprietário de um
bem particular, ou de um livre empreendedor, e assim por diante.
Vejamos, por exemplo, que o comportamento esperado de um
administrador privado será o de se comportar sempre com vistas a buscar o
aumento consistente do lucro, que é a vocação natural da sociedade comercial
que representa. Já para o administrador público, a situação se inverte, uma vez
que o aumento da arrecadação atentaria, muitas vezes, contra o poder
53
econômico da população, e, assim, o comportamento esperado, ou melhor, a
boa fé subjetiva ou objetiva do administrador recomendaria outra conduta
exatamente porque a pauta de valores referencial não é mais o aumento da
“receita”, mas sim a melhora da condição de vida das pessoas administradas, o
que pode ser alcançado com a diminuição, e não com o aumento, da carga
tributária.
Ademais, a boa fé inserida e impregnada pelo regime jurídico é capaz de
nos fornecerá, deveras, a segurança necessária para evitar a discricionariedade
ou o abuso que freqüentemente são cometidos pelo aplicador do Direito. Ora,
diante de conceito tão fluido, vago e indeterminado, a pauta de valores
juridicizada evitaria a substituição por aquela preferida subjetivamente pelo juiz,
com sua visão muitas vezes autoritária das coisas, ou por aquela que
pretenderia impor o promotor de justiça, movido por suas sanhas pessoais,
ideológicas ou até mesmo políticas, ou ainda por aquela que julgasse mais
conveniente o administrador, movido pelas mais diversas razões (algumas
absolutamente inconfessáveis).
Logo, a boa fé para os fins deste trabalho nasce e se forma como tal
rigorosamente dentro do regime jurídico de direito administrativo, e assim deve
ser fruída, da mesma forma que a maçã nasce e se forma como tal por
intermédio da macieira, pois somente assim forneceria seu peculiar sabor.
54
6. Classificação principiológica no regime de direito administrativo.
Entende-se que a boa fé administrativa consiste num princípio
positivado na Constituição da República, o qual, muito embora não esteja
explicitado de forma expressa, deve ser reconhecido na forma implícita como
emergente lógico do regime jurídico de direito administrativo (o que já foi
explicado no tópico anterior), sobretudo a partir do elemento “confiança” extraído
do especialíssimo mandato conferido pelo citado Parágrafo Único de seu artigo
1º. 42
E, sobre o reconhecimento de princípios implícitos no ordenamento
constitucional, valemo-nos do escólio do eminente Canotilho, segundo o qual:
“Os princípios se beneficiam de uma objetividade e presencialidade que os
dispensam de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito
particular.” 43
Classificamos a boa fé, destarte, como “princípio” por entendermos
que consiste numa norma axiológica de conteúdo aberto e genérico, que se
irradia e orienta a interpretação de todas as demais normas do regime jurídico
de direito administrativo.
Por isso, a boa fé de quem cuida de interesse alheio (no caso o
interesse público), como nítida razão lógica da expressão de que o poder emana
42 Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 43 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição; Livraria Almedina, 3ª Edição, Coimbra, 1999.
55
do povo e em seu nome será exercido (base teórica do Estado de Direito), deve
permear toda atividade da Administração Pública, assim como deve orientar a
exegese do jurista em tese, e, por fim, vincular a jurisdição no caso concreto.
Contudo, ao entender que ela incide como norma de otimização, isto é,
em graus de ponderação e sopesamento quando em colidência com os demais
princípios de igual hierarquia, adota-se a rotulação de “princípio” traçada por
Robert Alexy, o que se faz para diferenciá-la do que o referido autor chama de
“postulado” - e ainda que existam inúmeras formas científicas de classificarmos
o fenômeno principiológico. 44
44 Sobre a classificação adotada (princípio geral), deixa-se registrado que a ciência adota diversas formas refinadas e controvertidas de denominar as expressões que servem para designar as premissas que, não sendo normas jurídicas explícitas, compõe a estrutura do sistema jurídico como ponto de partida para a interpretação do sentido e alcance destas mesmas normas (meta-norma). Destacamos, a priori, Humberto Ávila, que, apoiado nas idéias de Robert Alexy, faz uma distinção entre princípios e postulados, asseverando que estes correspondem às “condições de possibilidade do fenômeno jurídico”, ou seja, explicam o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido, e, portanto, não admitem flexibilização e nem incidiriam em graus, tal como os princípios incidiriam. Humberto Bergmann Ávila; (A Distinção entre princípios, regras e a redefinição do dever de proporcionalidade; RDA 215:151-179, p. 165). O próprio Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, Malheiros, 2008, traduzida por Virgílio Afonso da Silva, cf. p. 90, explica que a terminologia princípio deve ser empregada como “mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua atuação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. E sobre “regras” (como outra espécie de norma, além do princípio; e ao lado de postulado), o autor ainda dispõe: “Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras conte, portanto, determinações daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é uma regra ou princípio.” Sobre a diferença entre regras e princípios (deixando, aqui, os postulados de fora), muito clara e precisa é a definição de Wilis Santiago Guerra, para o qual regras são estruturas lógico-deônticas, constituídas pela descrição de uma hipótese e a previsão de uma conseqüência, a realizar-se quando da ocorrência da moldura fática nela prevista. Já os princípios, longe de fornecerem tratamento para situações assemelhadas, emanam a prescrição de um valor que, pela sua inclusão no sistema, adquirem positividade (Notas em Torno do Princípio da Proporcionalidade, artigo publicado em Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976, Coimbra Editora, 1996, v. I, p. 249).
56
Já Miguel Reale, em, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição, p. 314, concebe a expressão princípio como gênero, explicitado seu pensamento da seguinte maneira: “Nosso estudo deve começar pela observação fundamental de que toda forma de conhecimento filosófico ou cientifico implica a existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber.”
É claro que estamos cuidando da palavra “principio” apenas em seu significado lógico, sem nos referirmos à acepção ética desse termo, tal como se dá quando demonstramos respeito pelos “homens de princípios”, fiéis, na vida prática, às suas convicções de ordem moral.
Restringindo-nos ao aspecto lógico da questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem pratica de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.
A nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática.
Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para proteção dos direitos adquiridos etc.
A maioria dos princípios gerais de direito, porém, não consta de textos legais, mas representam contextos doutrinários ou, de conformidade com a terminologia assente no Capitulo XIV, são modelos doutrinários ou dogmáticos fundamentais.
Como se vê, e é salientado por Josef Esser, enquanto são princípios, eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando os consagra, dá-lhes força cogente, mas não lhes altera a substancia, constituindo um jus prévio e exterior a lex.
Nem todos os princípios gerais têm a mesma amplitude, pois há os que se aplicam apenas neste ou naquele ramo do Direito, sendo objeto de estudo da Teoria Geral do Direito Civil, do Direito Constitucional, do Direito Financeiro etc. Fácil é perceber que, sendo elementos condicionadores ou fundantes da experiência jurídica, podem ter as mais diversas origens, consubstanciando exigências de ordem ética, sociológica, política, ou de caráter técnico. Vê-se por conseguinte, que eles se desenvolvem no plano do Direito Positivo, embora se fundem, de maneira mediata, em razões éticas ou de Direito Natural, desde que este seja concebido em função da experiência jurídica, como logo mais veremos, e não como uma duplicata inútil do Direito Positivo.” De outro lado, Nicola Abbagnano, em Dicionário de Filosofia, Editora Martins Fontes, 2003, p. 782, registra que, em geral, se diferenciam as expressões postulado e axioma, sendo o primeiro uma premissa que, servindo para demonstrar um procedimento, ainda não foi admitida, e, sendo admissível, deve ser demonstrada. Já o axioma seria o princípio stritu sensu, ou seja, também serve como premissa para demonstrar um procedimento, mas é admitido por si só, com valor próprio, e, portanto, independe de ser demonstrável. Por fim, registra que a distinção entre postulado e axioma deixou de ser usada na lógica e na matemática moderna. Para o administrativista Celso Antonio Bandeira de Mello, princípio também seria visto como gênero, definindo-o como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a Tonica que lhe dá sentido harmônico.” (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, cit. p. 53).
57
E assim se faz não meramente para se instaurar uma logomáquica, uma
disputa de palavras ou rótulos. Com efeito, a adoção da classificação
principiológica de Alexy se justifica pela sensível necessidade de se especificar
estritamente de que forma a boa fé deve ser aplicada no sistema jurídico, ou
seja, a função que desempenha.
Isto porque, se a compreendermos na concepção genérica de princípio
de Miguel Reale – o que inclui os “enunciados lógicos admitidos como condição ou
base de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber” 45 -
poderemos concluir erroneamente que a boa fé não incidiria em graus de
ponderação com os demais princípios, já que serviria, como norma formal
constante, para explicar o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido (o
que para Alexy seria classificado como “postulado” 46).
Ao justificar a posição adotada, o que também reforçará a utilidade da
classificação proposta, podemos traçar alguns exemplos esclarecedores.
Com efeito, a hierarquia entre as leis é pressuposto que incide sempre
de maneira constante e inflexível. Serve para explicar como o sistema jurídico
deve ser interpretado, ou seja, de modo a observar sempre que a norma
constitucional prevalece sobre aquela infraconstitucional, e assim por diante. O
mesmo ocorre com a irretroatividade, com a razoabilidade ou com a
proporcionalidade, as quais funcionam no sistema como meta normas, ou seja,
para explicar as técnicas de interpretação e aplicação de todas as normas
(regras e princípios) do sistema.
45 Vide nota 44. 46 Vide nota 44.
58
Daí porque são estruturas formais em termos absolutos, chamadas de
“postulados” e não admitindo ponderação.
Já o princípio da boa fé, em nítida distinção, contém carga axiológica
pura, e por isso mesmo incide em graus de ponderação com demais princípios
que também veiculam valores igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico.
Vejamos, como exemplo categórico, o terrível caso do apossamento de
fato pela Administração Pública, isto é, a chamada vulgarmente “desapropriação
indireta” que nada mais é do que a invasão ou o esbulho possessório de área
que não lhe pertence, a fim de edificar obra pública e nela instalar serviços
essenciais, como uma escola ou um hospital público. Evidentemente que nesses
casos não há justa e prévia indenização e sequer o respeito ao devido processo
administrativo (previstos como obrigatórios no instituto jurídico da
desapropriação, em nível constitucional inclusive). Tem-se, pois, uma hipótese
de máxima violação do dever de boa fé, já que a própria Administração Pública -
de quem mais se esperaria o comportamento fiel aos meios legais - age em total
afronta e deslealdade com as instituições jurídicas.
Contudo, a par desta tremenda violação ao dever de boa fé, é fato que a
doutrina em geral e os Tribunais vem reconhecendo, inspirados na doutrina
francesa segundo a qual l’ouvrage public mal plante ne se detruit pás 47, que não
se deve desfazer o ato (considerando a obra pública edificada) com efeitos ex
47 A tradução corresponde, em português, a “não se desfaz obra pública mau plantada”.
59
tunc, concedendo ao proprietário esbulhado apenas o direito a uma
indenização.48
Em outras palavras, equivale dizer, precisamente, que a boa fé,
exatamente por desempenhar a função comum aos princípios, foi relativizada
ou ponderada no caso concreto em favor do princípio da “continuidade do
serviço público”.
Sem prejuízo, ainda outros exemplos de ponderação serão abordados
no Capítulo IV, o qual cuidará dos desdobramentos práticos da boa fé
administrativa.
Ora, caso a boa fé fosse uma meta-norma de interpretação sobre o
sistema jurídico (um postulado, como a hierarquia das leis), ou ainda uma
espécie de alicerce lógico e de validade de um regime jurídico (tal como o
exercício de função administrativa no regime de direito administrativo), não seria
possível relativizá-la, pois aí se desmontaria o sistema ou o próprio regime
jurídico.
Daí porque é importante frisar que ela se classifica como princípio na
exata definição proposta por Alexy, sempre ponderável no caso concreto diante
de outros princípios de igual escalão. 49
Ainda seria interessantíssimo trazer à colação o registro do pensamento
de Aristóteles, o qual, muito embora tenha sido formulado há milênios, já
constatava com tremenda clarividência a natureza não absoluta dos fenômenos
48 Confira-se o registro doutrinário e jurisprudencial sobre a “desapropriação indireta” na magistral obra de Clovis Beznos “Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação”, Editora Fórum, 2006, Cap. 3, p. 53/66. 49 Vide nota 44.
60
axiológicos, sintetizados como virtudes (e dentre elas a boa fé, encampada pelo
direito).
Vejamos: “As virtudes nascem dos atos que praticamos, que
estabelecem a diferença de caráter entre o valente e o covarde ou o calmo e o
irascível. Essas características são, de fato, modos diversos de reagir diante da
mesma circunstância, tornando importante nos acostumarmos a agir desta ou
daquela maneira, desde a juventude, na formação do caráter.50 O objetivo de
Aristóteles não é saber o que é virtude, mas sim o que fazer para nos tornarmos
bons, em linhas gerais e não de maneira precisa, pois, para ele, questões de
conduta não são rígidas e devem ser consideradas em cada caso. Mesmo em
relação a boa-fé, o dever de veracidade cede passo diante de outras
virtudes como a justiça, a compaixão, a generosidade e o amor,
demonstrando a inexistência de dever absoluto, universal ou
incondicional.51”
Enfim, traçados os contornos do regime jurídico que faz emergir a boa
fé, e analisado o tipo das funções que pode desempenhar no sistema jurídico,
passemos a analisá-la por dentro.
50 Aristóteles, em Ética a Nicômaco, p. 64. 51 Idem, p. 67-68.
61
Capítulo III – A boa fé administrativa.
1. Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus Gonzáles
Peres). 2. Análise do conceito na doutrina nacional. 3. Conceito próprio de boa
fé administrativa. 4. Boa fé objetiva e subjetiva. 5. Relações e diferenças com
outros termos administrativos. 5.1. Desvio de poder. 5.2. Proporcionalidade.
5.3 Moralidade. 5.4 Improbidade. 5.5 Segurança Jurídica. 5.6 Dever de boa
administração.
1. Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus
Gonzáles Peres).
Diante da escassez do tratamento da boa fé no direito administrativo -
estranho fenômeno que também se deu na doutrina internacional (o que foi
percebido pelo português Menezes Cordeiro 52) - foi Jesus González Perez,
renomado autor espanhol, quem procurou abordar o tema com maior nível de
aprofundamento no direito público, razão pela qual sua obra vem sendo a fonte
científica mais consultada.53
Aqui abro um parêntese para comentar que a boa fé provavelmente
nunca encontrou espaço adequado no campo do direito administrativo pela forte
52 Referido autor anota que a boa-fé nas obras de direito administrativo aparecem, quando raro, em referencias escassas e desalinhadas. Observa que falta abordá-la segundo sua natureza, aplicações e formas de aplicação (Da Boa-Fé no Direito Civil; Coleção Teses, Edições Almedina. 2007, p. 391). 53 Outro raro autor que se ocupou monograficamente sobre o tema da boa-fé no direito administrativo, pela doutrina internacional, muito embora sem o mesmo destaque de Peres, foi o italiano Francesco Manganaro, em Principio di Buona Fede e Attivitá delle Admministrazioni Pubbliche, o que será abordado na seqüência.
62
carga que o princípio da legalidade representou neste regime jurídico (é o que
suponho, numa tentativa de explicar tamanha lacuna). Com efeito, no direito civil
sempre vigorou a máxima de que “tudo que não for proibido em lei é permitido”,
e que, por isso mesmo, “na declaração de vontade prevalece mais a intenção
das partes do que a literalidade do ajuste” (vide artigos 104, III, 107, 112 e 113
do Código Civil).
Assim, a liberdade de atuação sempre foi muito maior entre os
particulares e daí porque sempre se justificou uma preocupação maior com a
confiança que é depositada por uma parte em relação à outra numa relação
jurídica – típica incidência do princípio da boa fé subjetiva, o que despertou o
interesse pelos estudos no direito civil, até chegar ao aspecto objetivo.
Já no campo do direito administrativo, por causa da idéia de que “a
atuação administrativa só é permitida se houver previsão legal e nos limites
desta”, sem campo considerável de liberdade, considerava-se irrelevante
averiguar a intenção ou a vontade do agente público, o que nos permite deduzir,
destarte, que isso teria provocado o desinteresse pelo tema.
Entretanto, ao considerarmos que o regime jurídico de direito
administrativo, após o Estado de Direito, baseia-se na delegação de poder do
povo ao administrador, que age em seu nome numa relação especial de
confiança (vide Cap. II, 5), podemos concluir que a omissão da boa fé neste
ramo jurídico é despropositada.
63
Ora, sendo princípio jurídico relevante do direito administrativo (Cap. II, 6),
a boa fé incide de maneira tão forte que provoca, em confronto com outros
princípios, a relativização deles, inclusive o da própria legalidade.
Como exemplo, fiquemos por ora com os chamados “limites à invalidação
dos atos quando ampliativos de direito em prol da boa fé”, numa clara
ponderação desta com o princípio da legalidade, o que colhemos da significativa
obra de Weida Zancaner, ou então com “o efeito do ressarcimento ao terceiro de
boa fé mesmo diante de ato ilegal”, tal como proposto por Ricardo Marcondes
Martins, em seu completíssimo “Efeitos dos Vícios dos Atos Administrativos”. 54
Voltando, agora, ao conceito da boa fé no campo do direito administrativo
segundo Perez, podemos trazer à colação que o referido autor define-a, apoiado
na jurisprudência espanhola e nas idéias de Lacruz e Dromi, como um “valor
ético de la confianza. Representa las vías más fecundas de irrupción del
contenido ético social en el orden jurídico, y, concretamente, el valor de
confianza. Sirve de cauce para la integración del idea de fidelidad y de crédito, o
de creencia y confianza. La buena fe supone una regla de conducta o
comportamiento civiliter, una conducta normal, recta y honesta, la
conducta de un hombre corriente, de un hombre medio. Se mide en la
relación concreta en la que opera, al igual que sucede con la noción de
buen conductor, según la jurisprudencia contencioso-administrativa. No 54 A Professora Weida Zancaner trata da boa-fé x legalidade em sua magistral obra “Da convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos, Malheiros, 3ª Edição”, cit. p. 73/74. Deve-se anotar que o Professor Ricardo Marcondes Martins, em obra de notável e igual conteúdo científico (Efeitos dos Vícios do Ato Administrativo, Malheiros, 2008), defende que a boa-fé do terceiro atingido poderá, conforme o conceito que a compreende e dependendo do sopesamento com a legalidade, não afastar a invalidação do ato, mas apenas servir para lhe garantir a reparação de danos. Entretanto, o que interessa observar, em ambas as obras citadas, é o reconhecimento da boa-fé como valor suficiente para sopesar a própria legalidade no direito administrativo.
64
hace referencia al comportamiento general de la persona, sino a su posición en
una concreta relación jurídica, bien en su nacimiento, en el ejercicio de los
derechos o en el cumplimiento de las obligaciones en que se concreta.” 55
Referido autor, situa a boa fé, portanto, como um dever de conduta
honesta, normal e reta (ou seja, de um homem médio), de modo a corresponder
à confiança depositada.
Por isso, sintetiza seu conceito em torno do valor confiança, o qual seria
aferível pelo comportamento esperado. 56
A partir destas valiosas lições é que a ciência do direito pôde discutir mais
a fundo a matéria no seio do direito administrativo, sucedendo, como é natural,
outras luzes a respeito do tema, como observações, interpretações ou até
mesmo discordâncias (daí é que se prova, deveras, o sucesso da iniciativa
científica).
De nossa parte, reputa-se como adequado interligar o conceito de boa fé
ao dever de confiança, pois estaria de acordo com a maneira pela qual
sustentamos que referido princípio emerge no regime jurídico de direito
administrativo, ou seja, a partir de uma relação fiduciária que se estabelece
quando a sociedade (titular do poder) delega ao Estado (mandatário) a tutela do
interesse público (vide Cap. II, 5).
Entretanto, impõe como relevante fazer uma interpretação, desde já,
sobre o chamado comportamento esperado, haja vista que o dever do agir
55 “El principio general de buena fe em el derecho administrativo”, Civitas, Tercera Edición, p. 74. 56 Idem 51.
65
previsivelmente não se pode relacionar com o histórico, anterior e previsível, do
comportamento de alguém.
A coerência exigida, a rigor, não é com o passado.
Em verdade, o comportamento esperado e que caracteriza a boa fé
administrativa, não seria meramente o comportamento anterior, mas, ao invés
disto, deve ser aquele que se exige conforme os padrões de conduta vigentes
pela sociedade e desde que reconhecidos pelo direito positivo,
independente e desvinculado da experiência anterior do indivíduo analisado.
Para confirmar o alegado, bastaria recorrer à máxima de que “ninguém
pode se aproveitar da própria torpeza”, ou seja, um histórico anterior e
inadequado de comportamento jamais poderá conferir a alguém o direito de
continuar exercendo-o sob pretexto de coerência pessoal.
Em outras palavras: o comportamento de má fé repetido não se torna, por
isso, de boa fé.
A invocação do histórico anterior ainda poderia revelar a pior espécie de
má fé, pois, pela prática reiterada de um comportamento que foge da pauta de
valores juridicizada, pretende-se, pela banalização da conduta, torná-lo aceito,
suportável, e, assim, definitivo.
É uma espécie sofisticada e dissimulada de proceder de forma contrária
aos ditames da boa fé, já que a má fé repetida mil vezes realmente provoca, em
muitos casos, o efeito da acomodação, o que nos cega os olhos para enxergar o
que seria, de fato, a boa fé.
E os exemplos, infelizmente, são fartos, senão vejamos.
66
Razões desta natureza (muitas vezes não detectadas) estão nas
entrelinhas, por exemplo, da edição reiterada de emendas constitucionais
tendentes a perenizar o calote no pagamento dos precatórios, em flagrante
violação ao dever de responsabilidade do Estado. E tudo isso – frisa-se –
apoiado na justificativa de que o Poder Público, pelo seu histórico de mau
pagador contumaz, pretende não ser mais responsabilizado na forma da
Constituição e das leis, as quais, segundo essa linha, teriam de ser alteradas em
seu favor.
Ora, muito embora o cidadão brasileiro até pudesse esperar este tipo de
comportamento, em razão do histórico anterior do Estado, é obvio que o dever
de boa fé encontrar-se-ia por demais afetado. 57
Ou ainda, lembremo-nos da prática reiterada da Administração Pública
em realizar concurso público e não nomear os servidores aprovados para o
57 Sobre o tema, nada melhor do que simplesmente transcrever a redação do art. 2º da atual Emenda Constitucional 62, de 09 de dezembro de 2009, na parte que introduziu alterações no art. 97 do ADCT, para verificar que o Estado, se valendo da torpeza de mau pagador, cria nova moratória ao cidadão que já amarga décadas para receber o que lhe é devido.. Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 97: "Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional. § 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos ao regime especial de que trata este artigo optarão, por meio de ato do Poder Executivo: I - pelo depósito em conta especial do valor referido pelo § 2º deste artigo; ou II - pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15 (quinze) anos, caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o § 2º deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, excluída a incidência de juros compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento.
67
número certo das vagas postas em disputa (o que era feito por razões
inescrupulosas, como, por exemplo, o simples intuito de arrecadar o dinheiro da
inscrição).
Com efeito, tal exemplo de má fé demorou muito tempo para ser
repudiado pela jurisprudência pátria, a qual, nitidamente levada pela artimanha
do comportamento anterior, entendia que o candidato não poderia confiar e
esperar que a conduta administrativa no final do certame fosse a nomeação,
mas apenas que, se houvesse alguma nomeação, que se respeitasse a ordem
de classificação.
Em suma: até a posição adotada pelo STF em 2008, dizia-se, na espécie,
que sequer havia direito adquirido, mas apenas expectativa de direito. 58
Talvez o exemplo mais interessante de que o comportamento esperado
não pode se relacionar com a praxe administrativa, sobretudo por ainda estar
desapercebido pela jurisprudência, colhe-se na importante obra de Clovis
Beznos sobre os “Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação”.59
Nela, o perspicaz professor, em total aversão à conduta reiterada e até de
certa forma já aceita pela sociedade, defende a tese de que a execução na ação
de desapropriação deveria, pela sua natureza declaratória em favor do Poder
Público, ser realizado por este (e não pelo expropriado), mediante o pagamento
integral do valor transitado em julgado e conseqüente transcrição no Cartório
Imobiliário, a fim de não causar mais prejuízos ao expropriado.
58 Vide RE 227480, STF, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA; Julgamento: 16/09/2008, Órgão Julgador: Primeira Turma. 59 Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação, Editora Fórum, 2006.
68
E o resultado prático disto seria incrível: não existiria mais precatório nas
desapropriações judiciais, uma vez que o Poder Público é quem promoveria a
execução do julgado.
E, aliás, nada mais seria natural do que exigir tal comportamento. Uma
desapropriação apenas ocorre porque a Administração Pública unilateralmente
manifesta a vontade de se apropriar do bem particular, e, portanto, ao obter o
título judicial que fixa o justo valor da aquisição em seu interesse, deveria ela
própria concluir o processo.
Esta, e não outra, deveria ser a conduta esperada da Administração.
No entanto, o Poder Público, em nítida posição de má fé (sobretudo
quando já se imitiu na posse sem o pagamento total do valor da indenização
devida), omite-se em relação à satisfação do julgado, deixando que o réu do
processo (o expropriado), que sequer título executivo ostenta, tenha de utilizar-
se duma espécie de “execução invertida” (execução pelo réu da ação e que
sucumbiu ao titulo declaratório), e assim seja obrigado a cair na ardilosa e
interminável fila de precatórios. 60
60 “Vê-se que não se aloca a indenização na ação de desapropriação no conceito de pagamento devido pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária, mesmo porque, como acima foi referido, não se constitui a indenização na ação expropriatória em direito autônomo do réu, exeqüível como um provimento condenatório. O que aparta essa situação judicial das condenações da Fazenda Pública, sujeitas aos trâmites preconizados nos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil, com base no artigo 100 da Constituição Federal, é que a sentença declaratória na desapropriação, ao contrário das sentenças condenatórias, não faz surgir o título determinante de uma execução, mas tem por objetivo tão-somente, com seu trânsito em julgado, fixar o valor devido, para a concretização da desapropriação. Desse modo só se pode concluir que é absolutamente equivocada a prática da execução da indenização pelos expropriados, com fundamento no artigo 100 da Constituição Federal e nos termos dos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil.” Em outro trecho, Clovis Beznos chega a ser ainda mais enfático quando assevera: “Considera-se que, quanto ao aspecto em tela, é evidente a crise de efetividade da justiça, o que acarreta descrédito, colocando em xeque a credibilidade do Poder Judiciário e das instituições democráticas, eis que intermináveis são as filas de precatórios, além do fato de que usualmente as Fazendas Públicas, salvo honrosas exceções,
69
Tem-se, evidentemente, um histórico pernicioso na conduta
administrativa, o qual deixa claro que a boa fé não pode ser relacionada com o
comportamento passado administrativo (ou comportamento reiterado), mas,
como já afirmado, deve mirar o comportamento esperado em razão dos
valores juridicizados pela sociedade, numa relação espaço-tempo.
Por isso é que a exata compreensão do comportamento esperado é o
remédio mais eficaz para evitar que a Administração Pública acabe se valendo
de sua própria torpeza.
E, para tanto, vincular o comportamento esperado à pauta de
comportamentos juridicizados, e não ao histórico fático, será fundamental.
Compreendem-se como tais os comportamentos esperados pelo direito,
segundo suas normas em vigor (regras e princípios), e não pelo histórico
individual de cada um. Somente assim o dever de boa fé administrativa poderá
ser aplicado com segurança e efetivamente controlado pelo Judiciário.
De outro turno, ainda merece destaque na doutrina internacional o escólio
de Francesco Manganaro, o qual também se ocupou como monografista da boa
fé no campo do direito administrativo em sua obra Principio di Buona Fede e
Attivitá delle Admministrazioni Pubbliche.
Nela, o jurista italiano sustenta que a boa fé administrativa consistiria
numa decorrência do princípio da solidariedade positivado no art. 1175 do
Código Civil Italiano e no art. 2º de da Constituição daquele País. O conteúdo
utilizam todos os expedientes possíveis para retardar os feitos em que lhes possam impor condenações em favor dos administrados, atuando como verdadeiros litigantes de má-fé, o que é simplesmente lamentável”. Ou ainda: “Entretanto, essa prática é inquestionavelmente desafiadora da lógica e desconforme com o regramento da espécie. Vide nota 22, p.142 e 136/138.
70
semântico impregnado estaria ligado à idéia de que o exercício de um direito
não poderia ser realizado a ponto de provocar o sacrifício excessivo dos
interesses de todos. 61
Ou seja, para Manganaro o princípio da boa fé administrativa não seria
outra coisa senão a aplicação do princípio geral da boa fé comum que se
espraia nos demais ramos do direito.
Neste particular, muito embora já reconhecemos um princípio geral da
boa fé aplicável em todos os ramos do direito, inclusive no direito administrativo
(vide Cap. II.5), e que deriva realmente do dever de solidariedade, assevera-se
que a existência desta como princípio específico do direito administrativo, e, o
mais importante, com sentido e utilidade próprios – o que veremos nos itens
subseqüentes.
2. Análise do conceito na doutrina nacional.
A par do desenvolvimento da boa fé como princípio geral do direito e que
ganhou luzes mais brilhantes no campo do direito civil (Cap. II, 5), é fato que a
doutrina brasileira administrativista, tal como a estrangeira, apresenta-se muito
escassa quanto à sua adequada descrição científica.
Raríssimas exceções, não se tem, infelizmente, desenvolvido
metodologicamente o tema no regime jurídico de direito administrativo, faltando-
61 Principio di Buona Fede e Attivitá delle Admministrazioni Pubbliche – Nápoles, Edizioni Scientifiche Italiane, 1995
71
lhe uma investigação de sua natureza, de seu conceito, de suas hipóteses de
incidência e de suas conseqüências.
Encontram-se apenas referências vagas e isoladas sobre a boa fé,
desprovidas de qualquer inserção sistemática.
Acredita-se, ainda, que a carga representada pelo princípio da legalidade
provavelmente também funcionou para a doutrina nacional como inibidor do
aprofundamento da boa fé (vide comentário no item 1 deste Capítulo).
O primeiro autor nacional que se ocupou um pouco mais detidamente do
princípio da boa fé no direito administrativo foi Almiro do Couto e Silva, em 1981,
quando a tratou dentro do tema “Responsabilidade do Estado” 62. Situava que o
Estado, ao incentivar a atuação dos administrados mediante promessas, não
poderia quebrá-las à luz do princípio da proteção à confiança, sob pena de ser
responsabilizado. 63
Assim, a boa fé, também como proteção da confiança, passou a ser
reconhecida como incidente no campo do direito administrativo, mas inserida
especialmente no tema da responsabilidade do Estado pelas promessas
concretamente realizadas, sob influxo da segurança jurídica (que cuidaremos de
tratar no item 5.5 deste Capítulo).
Entretanto, o fato mais sensível é que após a positivação explícita do
princípio da moralidade administrativa pela Constituição Brasileira de 1988, a
62 “A responsabilidade do Estado no quadro dos problemas jurídicos resultantes do planejamento”, tese esta que foi publicada na RF 278/366-371, e, depois, em “Responsabilidade pré-negocial e culpa in contrahendo no direito administrativo brasileiro” artigo publicado na RDA 217/163-171) 63 Idem nota acima (p. 370).
72
boa fé passou a ser tratada pela doutrina pátria, de forma reflexa, como
elemento contido no conceito daquela.
Nesse sentido, o grande mestre Celso Antônio Bandeira de Mello bem
ilustra a posição brasileira: “Princípio da moralidade administrativa: De acordo
com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de
princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando
ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio
assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição.
Compreende-se em seu âmbito, como é evidente, os princípios da lealdade
e da boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesus
Gonzáles Peres em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da
boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com
sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso,
eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o
exercício de direitos por parte dos cidadãos.” 64
Assim, a boa fé para o grande mestre, inserida no campo do dever ético
da moralidade administrativa, é vista como o dever do comportamento
verdadeiro e movido com boas intenções em relação aos administrados.
Trata-se, portanto, da proteção no que toca ao aspecto subjetivo, o que
não está errado afirmar (reconheça-se), mas que não poderia esgotar, por si só,
o estudo do referido princípio (o que o grande mestre jamais mencionou ter a
pretensão de fazê-lo – reconheça-se novamente).
64 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 119.
73
E, nesse particular, caminhou a doutrina de uma forma geral 65 até que
José Guilherme Giacomuzzi publicou, em 2002, sua dissertação de mestrado
sobre o tema “A moralidade administrativa e a boa-fé da administração
pública”.66
Nela, o autor, que faz um estudo mais focado sobre o princípio da
moralidade, abre um capítulo dedicado a boa fé no direito administrativo. Nesta
parte, fornece a esperada distinção sobre a dicotomia objetivo x subjetivo, para,
em seguida, concluir que a boa fé, no aspecto subjetivo, seria o “estado de
consciência; é subjetiva porque o intérprete, ao aplicá-la busca a intenção do
agente; a má-fé é seu contrário” 67, e, quanto à faceta objetiva, significaria “um
modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico ligado às idéias e
ideais que animaram a boa-fé germânica do § 242 do BGB: regra de conduta
baseada na honestidade, na retidão, na lealdade, e, principalmente, na
consideração para com os interesses de terceiros, vistos como um membro do
conjunto social que é juridicamente tutelado.” 68
Destarte, Giacomuzzi trata da boa fé subjetiva e objetiva, também no
campo do direito administrativo, como dois fenômenos jurídicos distintos e
aplicáveis.
Entretanto, ao reconhecer que sua obra não teve por finalidade tratar da
boa fé de forma específica e minuciosa, acaba, no final das contas, reduzindo
65 No mesmo sentido, citamos a posição dos insignes juspublicistas Carmen Lucia Antunes Rocha (Princípios Constitucionais da Administração Pública, Del Rey, 1994), e Marcio Cammarosano (O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa, Fórum, 2006), dentre outros. 66 A moralidade administrativa e a boa-fé da administração pública, Malheiros, 2002. 67 Idem nota acima, cit. p. 240. 68 Idem.
74
seu estudo a meras referências sacadas de outras normas ou princípios do
direito administrativo. 69 Quanto ao aspecto subjetivo, ela se reduziria ao dever
de probidade administrativa, e, quanto ao aspecto objetivo, seria a própria
veiculação do princípio da moralidade administrativa. 70
Ainda em 2002, emerge, finalmente, a publicação da tese de
doutoramento de Edilson Pereira Nobre Junior, sobre o tema específico
“Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro”. 71
Nela, o autor, enfim, a descreve como objeto especial pela ciência do
direito. Aborda seu surgimento a partir do Direito Romano, bem como a visão do
direito comparado e a positivação no direito brasileiro, para, ao final, trazer luzes
sobre sua aplicação em algumas atividades administrativas, como processo ou
contrato administrativo, dentre outros.
Quanto ao acolhimento da boa fé no direito administrativo brasileiro,
Nobre Junior rompe com a tradição de concebê-la unicamente como espécie
inserida dentro do campo da moralidade administrativa, passando a enxergar
que o processo de sua positivação é variado e se deduziria, também, da
imbricação com muitos outros cânones constitucionais, tais como a
solidariedade, o devido processo legal, e a proporcionalidade. 72
E assim o faz exatamente porque, influenciado pelos ideais da boa fé do
direito comparado e aperfeiçoados pelo direito civil nacional (aqui tratado no
69 O autor revela a abrangência do estudo da boa-fé, nesse particular, a fls. 229, em A moralidade administrativa e a boa-fé da administração pública, Malheiros, 2002. 70 Idem cit. p. 242 e 249/250. 71 Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Editora Sergio Antonio Fabris, 2002. 72 Idem nota 70, cit. do item 4 do Capítulo III, páginas 153/161.
75
Cap. I), reconhece a altíssima carga de abstração que o valor nela veiculado
representa, ultrapassando a barreira simples da moralidade.73
Também vale menção a posição de Ricardo Marcondes Martins,
publicada em 2008 no bojo de sua citada obra sobre “Efeitos dos Vícios dos
Atos Administrativos”, sobretudo porque referido autor se preocupou em definir
um conceito para a boa fé administrativa independentemente de sua co-relação
com outros princípios do sistema. 74
73 Nesse sentido, diz o insigne Doutor (Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Editora Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 153/158): “Conforme exposto linhas passadas, não há a menor dúvida quanto à presença da boa-fé como um dos pontos cardeais de nossa realidade administrativa. A maneira pela qual torna-se realidade é variada. Melhor dizendo, advém a sua descoberta, mediante o labor hermenêutico, de dispositivos não específicos da Lei Fundamental, podendo também sobressair expresso de textos legais, ou ainda através de recursos a preceitos do direito privado. Na primeira situação, em que se tem a boa-fé como princípio magno implícito, forçoso considerar, como ponto de partida, a sua consideração como conceito jurídico indeterminado, a fim de que se possa, diante de casos concretos, apontar-se o seu enquadramento em uma determinada regra ou princípio que se afigure como o melhor dotado para respaldar uma solução justa. Firmada tal asserção, impõe-se sustentar, atento à classificação exposta por Antonio Francisco de Souza, configurar a boa-fé como conceito normativo de valor, porquanto, demais de sua conexão com o mundo das normas, somente poderá ter, em cada caso, a sua determinação delineada com base em uma norma de valoração. Feito isso, passemos aos múltiplos dispositivos que encarnam, no seu conteúdo, o princípio da boa-fé, tornando-o aplicável não só ao direito privado, mas, por igual, ao direito administrativo. Primeiramente, tem-se a visualização da boa-fé no art. 3º, I, da Lei Fundamental, ao indigitar, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. ... Doutro lado, há que se notar a forte influência ostentada pela boa-fé, ao servir de suporte para o arcabouço principiológico da função administrativa. É induvidoso a Constituição de 1988 não erigi-la, às expressas, ao nível de princípio cardeal da Administração Pública. Sem embargo, aquela é facilmente extraída do standard da moralidade, inscrito no art. 37, caput, da Lei Máxima. ... Pelo menos, mais dois outros dispositivos de nossa Norma Básica conferem amparo à boa-fé Omo diretriz da Administração. Em primeiro lugar, emerge à ribalta o art. 5º, LIV, da CF, prescrevendo a adoção expressa, em nosso direito, do devido processo legal para a privação de bens ou de liberdade. ... Ao lado, integrando-lhe, surge o art. 5º, §2º, da Constituição Federal, de cujo teor emana o princípio da proporcionalidade, a atuar tanto no sentido de conter os limites da atuação material da Administração quando no de balizar os contornos da atividade normativa não arbitrária. 74 “Efeitos dos Vícios do Atos Administrativo”, Malheiros, 2008, cit. p. 316.
76
Ao ensejo, Martins sugere uma diferença original e muito interessante,
entre o princípio da boa fé e o princípio da confiança (muito embora reconheça
existir uma aproximação entre os termos comparados).
Para ele, “o princípio da confiança legítima protege a confiança do
administrado na correção dos atos estatais; o princípio da boa-fé exige que o
administrado e a Administração ajam com ética e lealdade entre os dois
princípios”. E nessa linha conclui que “a inserção do princípio da confiança
legítima dá-se com a inserção de uma norma no sistema jurídico (...) o princípio
da boa-fé é bem mais complexo: ele exige que os sujeitos, ao se relacionarem,
atuem com lealdade e ética e, de certa forma, favorece quem tenha obedecido a
essa exigência e desfavorece quem a tenha violado”. 75 76
Contudo, ainda que seja clarividente e necessário analisar, em foco
separado, a boa fé entre Administração e parte numa relação jurídica específica,
daquela que ocorre entre Administração e sociedade em geral (o que já é de
enorme contribuição para o desenvolvimento do tema), simplesmente
discordamos das premissas semânticas traçadas por Martins, e, assim, da
conclusão a que se chegou.
75 Idem nota 74. 76 Anota-se que Maria Sylvia Zanella Di Pietro, apenas na 23ª edição do livro “Direito Administrativo”, publicada em 2010, p. 87, acolhe a distinção entre os termos nos mesmos moldes adotados por Ricardo Marcondes Martins. Diz a insígne autora: “Há quem identifique o princípio da boa-fé e o da proteção à confiança. É o caso de Jesús Gonçales Perez, em sua obra El pincipio general de la buena fe en el derecho administrativo. Na realidade, embora em muitos casos, possam ser confundidos, não existe uma identidade absoluta. Pode-se dizer que o princípio da boa-fé deva estar presente ao lado da Administração e do lado do administrado. Ambos devem agir com lealdade, com correção. O princípio da proteção protege a boa-fé do administrado; por outras palavras, a confiança que se protege é aquela que o particular deposita na Administração Pública. O particular confia em que a conduta da Administração esteja correta, de acordo com a lei e com o direito. É o que ocorre, por exemplo, quando se mantêm atos ilegais ou se regulam efeitos pretéritos de atos inválidos.”
77
Com efeito, a carga semântica da boa fé, que foi moldada desde os
gregos pela filosofia e que se manteve incólume na história do direito (conforme
tratado no Cap. I), carrega como gênero as duas acepções que se tenta
fragmentar, isto é: a proteção do cumprimento da promessa feita pelas partes e
entre elas (o que foi chamado estritamente de boa fé), bem como a proteção da
pauta de comportamentos esperados social e objetivamente (o que se chamou
de proteção à confiança).
E mais, o que está por trás dos deveres de lealdade e ética entre as
partes (o que seria o núcleo da boa fé para Martins), também é a mesma
proteção do princípio da confiança, pois sem fidúcia nada haveria que se exigir
da parte contrária além da simples entrega do objeto pactuado.
Em outras palavras: sem a proteção jurídica da confiança, não haveria
que se falar em dever de boa fé de uma parte para com a outra.
Por isso, sustento que a boa fé positivada pelo direito administrativo
abrange duas vertentes do próprio valor da confiança, sem descolar dele, senão
vejamos: (a) protege as partes numa relação jurídica, para que não atuem, uma
com a outra, de má fé ou com deslealdade (proteção, aqui, subjetiva e objetiva,
respectivamente); b) da mesma forma que protege a boa fé do administrado
que, fora de uma relação jurídica específica, confia que a Administração adotará
um comportamento adequado conforme os padrões objetivos de lealdade e
honestidade, fixados como standards no ordenamento jurídico (proteção, aqui,
objetiva e extrapartes).
78
Por isso, apartar o valor da confiança desnudaria a própria essência da
boa fé, que é exatamente o de proteger a confiança depositada num
comportamento esperado, objetiva ou subjetivamente, intrapartes ou
extrapartes.
Aliás, o que se convencionou chamar de proteção à confiança, pelo direito
administrativo, nada mais é do que uma vertente da boa fé objetiva e que foi
encampada do direito germânico, isto é: o de reconhecer que os deveres de
lealdade e honestidade não se limitavam entre as partes, mas também diante de
terceiros, que aguardavam um comportamento segundo arquétipos sociais ou
modelos de conduta objetivados pelo Direito. 77
Por tudo isso, restringir a boa fé apenas no dever ético entre as partes
não me parece coadunar com o sentido e a dimensão (ampliativos) que o
ordenamento jurídico conferiu a este notável princípio.
Permaneço, assim com a posição inicial do mestre espanhol Gonçales
Perez, ao imbricá-la com o valor da confiança 78, muito embora reconheço que a
posição de Ricardo Marcondes Martins clarifica a compreensão da boa fé
administrativa intraparte e extraparte.
Mesmo assim, alguém ainda poderia dizer que a divergência entre as
posições seria meramente uma logomaquia, porquanto o que se chama de boa
fé objetiva poder-se-ia chamar de princípio da proteção à confiança, e o que se
convenciona chamar de boa fé subjetiva seria chamado simplesmente de boa fé,
ou vice-versa.
77 Sobre a boa-fé no direito alemão, vide Cap. I.3. 78 “El principio general de buena fe em el derecho administrativo”, Civitas, Tercera Edición, p. 74.
79
Mas, na realidade, além do problema conceitual, existem outras
distinções entre as duas posições que ora temos de enfrentar.
Na primeira delas, não admitimos que a boa fé (aqui subjetiva) possa
decorrer de padrões de lealdade ou ética que não seriam previstos
normativamente, tal como proposto quando se fez a separação desta com o
princípio da proteção à confiança (nesse caso, apenas o último decorreria de
uma norma inserida no sistema jurídico).
A rigor, na boa fé, quer seja subjetiva ou objetiva, o que se protege é
sempre uma pauta de valores juridicizada.
A diferença está no fato de que a violação subjetiva ocorrerá mediante
uma ação intencional de quebrar a confiança depositada pela parte contrária
numa relação jurídica, mas tudo conforme os padrões éticos colhidos dentro do
ordenamento jurídico, e não fora dele.
A má fé (contrário da boa fé subjetiva) residiria na intenção de frustrar a
própria confiança, no ânimo do agente em violar o comportamento esperado, e
não sobre o tipo ou a origem da pauta de valores violada.
Esta, sobretudo nos sistemas que não partem da common law, será
sempre fixada pelo direito, sob pena de cairmos na terrível insegurança de que
cada um poderá eleger de maneira diferente aquilo que entende por correto x
incorreto, bom x ruim, honesto x desonesto, leal x desleal.79
A segunda conseqüência distinta que pode ser aferida entre os escólios é
que a segmentação proposta por Martins levaria os signos da boa fé e da
79 Vide as diversas formas de classificar o fenômeno da boa-fé administrativa, objetiva e subjetiva, no item 4 deste Capítulo.
80
confiança a receber um tratamento diverso quando em conflito com o princípio
da legalidade, a fim de decidir pela manutenção ou anulação dos atos
administrativos.
Na posição do astuto jurista, a ilegalidade, quando em confronto com o
princípio da confiança, seria sempre relativizada em favor da manutenção do
ato, enquanto que o mesmo choque com a boa fé provocaria necessidade de
ponderação no caso concreto para decidir em favor de uma de outra.
E isto se daria pela existência, no sistema, de faixas de pesos pré-
concebidas em favor do princípio da confiança, o que não ocorreria da mesma
forma com a boa fé.80
De nossa parte, entretanto, não se vislumbram que os valores jurídicos
em termos de boa fé (lealdade, verdade, solidariedade, etc) contenham pesos
distintos e apriorísticos no ordenamento em favor de um ou de outro.
Isto porque, tanto o princípio especial da proteção à confiança
(supostamente extraído da idéia de boa fé), como também da chamada boa fé
em si mesma (supostamente ligada apenas à proteção da lealdade e da
honestidade) incidem como princípios fundamentais do regime de direito
administrativo, e, portanto, contém pesos iguais e que são ponderáveis sempre
no caso concreto, de acordo com o postulado da proporcionalidade.
Diante destas asserções sobre a boa fé no direito administrativo,
notamos, enfim, que a doutrina nacional começa a volver seus olhos com mais
atenção no trato do tema.
80 “Efeitos dos Vícios dos Atos Administrativos”, Malheiros, 2008, cit. p. 316.
81
E a prova maior disto é exatamente a oportunidade que se tem, a partir de
agora, de confrontar duas ou mais posições de valor científico, permitindo ao
leitor ou ao aplicador do direito eleger aquela que lhe pareça mais adequada.
Nessa linha, é interessante observar que Maria Sylvia Zanella di Pietro,
até o final de 2009 81, não tratava do princípio da boa fé dentro dos princípios
arrolados no direito administrativo, fazendo apenas mera referência desta no
seio da moralidade.
Contudo, na 23ª Edição de sua obra “Direito Administrativo”, publicada em
2010, a autora passa, enfim, a tratar da boa fé como princípio autônomo. Nela,
Maria Sylvia registra que o princípio já se encontra positivado expressamente
pela lei federal de processo administrativo (Lei Federal 9.784/99) 82, e, o mais
importante, nos fornece mais um desenho, dentro do direito administrativo, entre
sua acepção objetiva e subjetiva, assim explicitado: “a boa-fé abrange um
aspecto objetivo, que diz respeito à conduta leal, honesta, e um aspecto
subjetivo, que diz respeito à crença do sujeito de que está agindo corretamente.
Se a pessoa sabe que a atuação é ilegal, ela está agindo de má-fé.” 83
81 O registro se refere à sua obra Direito Administrativo, considerada até a 22ª Edição. 82 Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades; IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; 83 Direito Administrativo, 23ª Edição, p. 87.
82
Enfim, traçados e analisados todos estes enfoques doutrinários, os quais
inspiram este trabalho e servem de maneira valiosíssima para as conclusões
aqui tomadas, passemos a construir um conceito próprio da boa fé no direito
administrativo, e, a partir daí, poderemos estabelecer relações íntimas e
distinções com outros institutos afins.
3. Conceito próprio da boa fé administrativa.
A partir de sua carga semântica, e, principalmente, a partir da análise
dos elementos que fundamentam o regime jurídico de direito administrativo
(Cap. II, 5), é possível sustentar a existência de um conceito próprio da boa fé
sem a necessidade de referi-la a outro princípio posteriormente estabelecido
dentro deste mesmo sistema.
Se o direito administrativo hodierno (e positivado pela Constituição da
República) funda-se na delegação de poder do povo para o Estado numa
perfeita relação de administração, inegável reconhecer que, nessa situação de
mero representante e guardião do interesse público, o dever de boa fé figura
como princípio originalmente concebido pelo sistema.
Não há aqui, portanto, necessidade de qualquer referência à positivação
de outros princípios igualmente subalternos a este regime jurídico para
localizarmos o valor jurídico que representa. Basta, para tanto, a aparição do
regime jurídico de direito administrativo como tal.
83
Por isso, pode-se afirmar que a boa fé administrativa, influenciada a partir
dos elementos iniciais de seu regime jurídico, consiste no dever de corresponder
à confiança depositada pelo cidadão na tutela do interesse público, conforme os
padrões de conduta exigidos e juridicizados pela sociedade numa relação de
espaço-tempo.
Nota-se, pois, que esta recebe da filosofia, da história do direito e do
recente direito civil a carga semântica que sempre lhes foram comum, ou seja, o
valor de proteção à confiança. Com efeito, no exercer da atividade
administrativa, a Administração Pública deverá atuar de acordo com o dever de
conduta, assumido e esperado pela sociedade, não cabendo, assim, espaço
para a deslealdade e incoerência.
Entretanto, a idéia de que o comportamento esperado se liga à finalidade
de tutelar o interesse público é que lhe confere especial coloração e
característica singular, diferenciando-a com a boa fé típica a outros regimes
jurídicos.
Relembremos das lições de Hector Escola, segundo o qual o regime de
direito administrativo, do ponto de vista teleológico, gira em torno do interesse
público e, a partir daí, apareceria um conjunto de princípios e normas jurídicas
próprios. 84
Destarte, é a partir do interesse público que nasce uma pauta de
comportamentos específica, preenchendo, em última análise, o conteúdo da boa
fé administrativa.
84 “El Interes Público como Fundamento del Derecho Administrativo”, Buenos Aires, Desalma, 1989, cit. p. 15.
84
Fosse outro o foco almejado pela proteção da confiança, o dever de boa
fé jamais seria o mesmo. Na tutela de interesse público, espera-se do
administrador que torne público os negócios jurídicos celebrados pelo respectivo
ente administrado, enquanto que na tutela de interesses particulares o
comportamento normalmente aguardado seria exatamente o oposto, ou seja,
que as partes contratantes mantivessem sigilo quanto aos termos da avença
apalavrada.
Outro traço marcante do conceito de boa fé administrativa ora proposto é
a existência de uma pauta de comportamentos juridicizada, que proteja o dever
de atuação conforme os modos de conduta pré-exigidos pelo direito e não fora
dele.
Isto porque, o povo, como titular do interesse público e destinatário da
proteção à confiança administrativa (art. 1º, Parágrafo Único, da CF), é uma
típica abstração jurídica do sistema jurídico republicano. Não tem vida própria, e,
assim, manifesta sua vontade apenas por meio das leis de um País.
Destas premissas, enfim, será inexorável concluir que o comportamento
esperado do administrador, pelo povo, somente pode ser encontrado dentro do
direito positivo, local este onde se encontra depositada e registrada a promessa
administrativa e a confiança popular. Fora dele, o dever de boa fé passa a ser
meramente uma regra consuetudinária ou, no mínimo, desvinculada do regime
jurídico de direito administrativo.
Não há, destarte, campo para proteção das confianças pessoais ou
subjetivas de um ou de outro indivíduo, considerado isoladamente na sociedade.
85
A boa fé administrativa se relaciona, destarte, com os compromissos
assumidos dentro do direito positivo, quer seja numa relação jurídica onde o
Estado figure como parte, quer seja em qualquer outra atividade administrativa
onde isto não ocorra.
Exemplo categórico desta situação estaria na quebra unilateral, pela
Administração, das cláusulas estabelecidas num contrato administrativo. Com
efeito, este tipo de conduta administrativa atentaria claramente contra a
confiança depositada por alguém que firmou um contrato e que, por isso,
aguardaria que ele fosse honrado de acordo com os termos iniciais. Nítida
incidência da boa fé comum, voltada aos bons hábitos daquilo que normalmente
cada um espera da parte contrária. Entretanto, ao atentarmos para a existência
da regra que possibilita a alteração unilateral dos contratos administrativos, com
vistas a preservar interesses públicos (art. 65 da Lei Federal 8.666/93),
poderemos constatar que a boa fé comum se choca com o comportamento
esperado pela sociedade de acordo com o direito objetivo, e, assim, o interesse
do contratado em manter o pacto inicial não receberia proteção jurídica alguma.
Resta-nos, destarte, analisar os aspectos objetivo e subjetivo da boa fé
administrativa.
86
4. Boa fé administrativa subjetiva e objetiva.
A classificação objetivo versus subjetivo serve, no direito, para distinguir
os mais diversos e distintos fenômenos jurídicos. O próprio direito pode ser
classificado em direito objetivo (conjunto concreto de leis) ou direito subjetivo
(possibilidade do exercício de um direito). Os mais variados ramos do direito
também se valem desta classificação para separar fenômenos jurídicos ou
hipóteses de incidência, tal como o direito penal, que analisa o elemento
subjetivo ou objetivo para tipificar uma conduta como criminosa.
Adotamos assim a classificação de boa fé administrativa, objetiva ou
subjetiva, conforme as acepções que reputamos mais úteis para reforçar sua
significação e seus desdobramentos, bem como para reafirmarmos os casos de
sua incidência.
Nessa linha, valendo-se da evolução histórica de seu instituto (Cap. II), e,
mais especificamente, de sua evolução no direito civil brasileiro (Cap. II.4),
podemos classificá-la em subjetiva ou objetiva segundo dois pontos de vista.
(a) O primeiro consiste em analisar a boa fé sob o ângulo dos envolvidos
na relação jurídica. Será subjetiva quando disser respeito ao cumprimento da
promessa assumida apenas pelos sujeitos da relação jurídica específica. E será
objetiva quando extrapolar a relação jurídica específica e versar sobre o dever
de lealdade para com terceiros, mediante padrões de conduta juridicizados,
também chamados de standards.
87
Neste caso, é evidente que a boa fé administrativa - considerando o dever
de corresponder ao comportamento esperado na tutela de interesse público –
abrange as duas categorias. Com efeito, o regime jurídico de direito
administrativo, com muito mais razão que o direito civil, deve proteger o valor da
lealdade não apenas perante o sujeito de uma relação jurídica específica, mas
também perante toda a sociedade em geral.
A Lei Federal 8.666/93 contém prova disso quando, ao dispor sobre os
contratos administrativos, protege o contratado ao exigir que a Administração
formalize devidamente a relação jurídica travada (art. 60), da mesma forma que,
extrapolando o limite estrito das partes contratantes, exige que a Administração,
em nítido dever de boa fé objetiva em favor de todos os cidadãos, dê publicidade
a este mesmo contrato no órgão oficial de imprensa (art. 61, Parágrafo Único). 85
(b) A segunda maneira de visualizar a classificação em objetiva ou
subjetiva decorre da natureza volitiva da violação cometida.
85 Art. 60. Os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem. Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" desta Lei, feitas em regime de adiantamento. Art. 61. Todo contrato deve mencionar os nomes das partes e os de seus representantes, a finalidade, o ato que autorizou a sua lavratura, o número do processo da licitação, da dispensa ou da inexigibilidade, a sujeição dos contratantes às normas desta Lei e às cláusulas contratuais. Parágrafo único. A publicação resumida do instrumento de contrato ou de seus aditamentos na imprensa oficial, que é condição indispensável para sua eficácia, será providenciada pela Administração até o quinto dia útil do mês seguinte ao de sua assinatura, para ocorrer no prazo de vinte dias daquela data, qualquer que seja o seu valor, ainda que sem ônus, ressalvado o disposto no art. 26 desta Lei. (Parágrafo único incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
88
Neste contexto, a boa fé administrativa pode ser quebrada
intencionalmente ou não. Será subjetiva quando houver violação intencional, e
objetiva quando a violação não contar com o elemento volitivo.
Quanto à quebra anímica (subjetiva), por se tratar de modalidade mais
grave, não teríamos maiores problemas em aceitar tal conduta como sendo
patológica à luz do direito. Até porque o contrário semântico da boa fé subjetiva
seria a própria “má-fé”.
A dificuldade se colocaria, nestes termos, no acatamento de que a
ausência do exercício de um comportamento esperado, mesmo sem a intenção
de fazê-lo, também provocaria a contaminação da conduta do administrador
diante do dever de boa fé.
Para resolvermos o problema acima criado, tomemos inicialmente as
seguintes hipóteses:
1) na primeira situação, determinado agente público, no curso de
procedimento licitatório que se encontrava suspenso um dia antes da entrega da
documentação de habilitação e proposta, faz publicar aviso de reabertura do
certame com as mesmas regras, marcando data para a entrega dos envelopes
já para o dia seguinte, e assim o faz com o intuito de restringir o universo de
participantes e favorecer determinado concorrente;
2) na segunda hipótese, outro agente político, em licitação posterior,
procede da mesma maneira, mas o faz apenas acreditando ser aquela a praxe
adotada pelo respectivo setor de licitação, e, portanto, atua sem qualquer
intenção de prejudicar ou favorecer concorrentes.
89
Ocorre que, tanto no caso ‘a’ (conduta intencional – subjetiva) como no
caso ‘b’ (conduta não intencional - objetiva), afigura-se que os administrados não
receberam da Administração Pública o “comportamento esperado”, qual seja:
que o aviso de reabertura do certame contivesse, sem sobressaltos, um prazo
razoável para que pudessem se preparar para a nova data da entrega dos
documentos.
Certamente seria esta a conduta juridicamente esperada, esta a crença
depositada no exercício da função administrativa. Logo, parece evidente que
houve quebra da boa fé no exercício da função administrativa nos dois casos,
tendo ambos os agentes públicos expedidos os atos administrativos no “contra-
pé” dos administrados 86.
E assim se processou independentemente de violação à letra da lei de
regência – já que a Lei Federal 8.666/93, em seu art. 21, §4º, apenas determinaria a
reabertura do prazo original para entrega dos documentos apenas quando houvesse
modificação das regras do certame que alterasse o modo de formulação das propostas.
Com efeito, há padrões de conduta juridicizados por meio de princípios -
tal como, no exemplo acima, tem-se com a ampla publicidade (art. 37 da CF) -,
os quais exigem do administrador comportamentos objetivos e que independem
de sua intenção em violar ou não a regra jurídica.
Nesse contexto, ao reconhecer a quebra da boa fé especialmente em ‘b’,
por conseqüência lógica se reconhece o caráter objetivo deste princípio, isto é,
de que a confiança depositada ao administrador - no sentido de exercer a função
86 Jargão extraído da cultura popular do futebol brasileiro, e que representa o ato do atacante chutar a bola no sentido oposto da que o goleiro estaria esperando.
90
administrativa procedendo conforme padrões juridicizados de conduta - não
pode ser desrespeitada mesmo diante da ausência de intenção de seu infrator.
Espera-se objetivamente (e não apenas subjetivamente) que a
Administração Pública aja conforme os comportamentos e padrões juridicamente
esperados pela norma que confere competência a agentes públicos, pois, de um
jeito ou de outro, ter-se-ia frustrada a confiança nela depositada. 87
5. Relações e diferenças com outros termos administrativos.
Conceituada a boa fé e situada no âmbito do regime jurídico de direito
administrativo, caberia, agora, estabelecer suas relações e diferenciá-la dos
signos que, inseridos nesse mesmo regime, com ela mais se assemelhariam.
São eles: o desvio de poder (ou desvio de finalidade), a
proporcionalidade, a moralidade administrativa, a improbidade, a segurança
jurídica, e o dever de boa administração.
Verificaremos que as estruturas acima apresentam, quando interligadas
no mesmo sistema jurídico, inter-relações que as aproximam semanticamente
ou que as colocam, em dadas situações, como incidentes de forma
concomitante à boa fé. E isto se dá pelo grau de abstração que possuem.
87 No entanto – muito embora não seja escopo deste trabalho – importante registrar que o Direito Brasileiro (sobretudo penal e/ou administrativo disciplinar), tratará das duas condutas violadoras da boa-fé com reações diversas, punindo com maior rigor na situação dolosa.
91
Entretanto, noutros casos perceberemos que a boa fé se dissociará ou
até mesmo se chocará com os termos comparados, forçando o aplicador do
Direito a eleger, no caso concreto, qual deles deve prevalecer.
E apenas isso já justificaria a utilidade, pela ciência do direito, de
estabelecer o discrimen.
5.1. Desvio de poder ou desvio de finalidade.
O desvio de poder se caracteriza, segundo Augustín Gordillo (que dedica
capítulo especial para tratar dos vícios de vontade no direito administrativo 88),
“toda vez que o respectivo agente atua com uma finalidade distinta daquela
perseguida em lei”. 89
No direito espanhol, tal patologia encontra-se positivada no artigo 70.2, da
Ley de la Jurisdicción como sendo “o exercício de potestades administrativas
para fins distintos dos fixados pelo Ordenamento Jurídico”.
Para Celso Antônio, a mesma noção central se repete, mas com os
seguintes desdobramentos: a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao
88 Tratado de Derecho Administrativo, 6ª Edição, Tomo 3, Del Rey, Capítulo IX. 89 “Existe desviación de poder toda vez que el funcionario actúa con la finalidad distinta de la perseguida por la ley. El acto está así viciado aunque su objeto no sea contrario al orden jurídico. En efecto, se interpreta que las normas que confieren una determinada facultad al administrador lo hacen para que el funcionario satisfaga la finalidad expresa o implícita del ordenamiento jurídico, no para realizar lo que a él le plazca, con el fin que le plazca. El administrador tiene su competencia circunscripta a lo que las normas determinan, por lo cual la facultad que ellas le confieren está necesariamente restringida y orientada al cumplimiento de la propia finalidad del sistema normativo. Cuando el administrador se aparta de la finalidad prevista por el sistema, su conducta es por ello sólo antijurídica: no estaba jurídicamente autorizado para usar del poder de las normas sino con finalidad prevista por ellas.” (Tratado de Derecho Administrativo, 6ª Edição, Tomo 3, Del Rey, IX 23/24)
92
interesse público ou b) quando o agente busca uma finalidade, ainda que de
interesse público, mas alheia à categoria do ato que utilizou.90
Referido mestre brasileiro, além de registrar o emprego da expressão
sinônima do “desvio de finalidade”, traz à colação exemplo de grande clareza,
qual seja, o do agente público que, dentro de sua esfera de competência,
remove funcionário com o intuito de castigá-lo, quando, por evidente, a
finalidade do ato de remoção não seria punitiva.91
Trata-se, portanto, de vício teleológico (ligado à finalidade do ato
administrativo).
De qualquer sorte, o que interessa anotar é que, no exemplo citado, o
desvio de poder se cumulará com a violação da boa fé, fornecendo razões
obvias para detectarmos uma forte aproximação entre os dois citados vícios do
ato administrativo.
Contudo, em raros casos, os deveres de boa fé podem ser violados
mesmo por razões distintas daquelas ligadas à finalidade do ato administrativo.
Em outras palavras: pode o agente atender a finalidade do ato em específico, e,
ainda assim, não exercer o “comportamento esperado”.
Exemplo desta situação ocorre quando o agente, ao frustrar a conduta
que dele se esperava, pratica ato diverso do comportamento normal, muito
embora o tivesse praticado adstrito à finalidade da função administrativa que lhe
incumbia.
90 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 22ª Edição, p. 387/389. 91 Idem nota 26.
93
Vejamos o caso típico do exercício de competência discricionária em
procedimento de autorização sobre porte de arma no direito brasileiro. Quando
determinado agente vier a indeferir o pedido sem justificativa de ordem objetiva
e razoável, não estará necessariamente, violando a finalidade do ato (que era
exatamente a de acolher ou negar o pedido), mas, destacadamente, estará
agindo contrário às exigências de boa fé quando exercitou sua competência
discricionária.
Assim, a finalidade do ato, ainda que executada materialmente, não se
traduziu por meio de um comportamento aceitável. Isto porque o administrado
deveria, por certo, receber uma justificativa de ordem razoável, sobretudo ao
ensejo do exercício de competência discricionária. 92
Perez, outrossim, assinala outra diferença entre os termos jurídicos
postos em paradigma, qual seja, a de verificar que a má fé pode ocorrer em
relações da Administração em que não haja uso de potestades públicas (e,
portanto, incidiria em situações cujo desvio de poder não poderia ocorrer), o que
também reforça a separação da boa fé com o chamado “desvio de poder” (ou
desvio de finalidade). 93
92 Não se adota, aqui, o sentido da expressão “exercício de competência discricionária” como mera liberdade conferida de imediato ao agente político para decidir, mas como a margem de liberdade que resultaria apenas se, no caso concreto, houvesse duas ou mais alternativas que igualmente alcançassem o interesse público. 93 El Principio General de la Buena Fe em el Dereceho Administrativo, Terceira Ed., Civitas, p. 69.
94
5.2. Proporcionalidade.
Conforme importante registro contido na obra “Os Princípios da
Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro”, de
José Roberto Pimenta Oliveira 94, extrai-se que o princípio da proporcionalidade
nasceu no direito alemão, pela obra de Otto Mayer, que o correlacionava, de
início, apenas com a idéia de atuação administrativa na medida da
necessidade.95
Em seguida a Mayer, Hartmut Maurer, ao verificar que “uma medida que é
levada a efeito com vistas à consecução de um fim (ou um resultado)
determinado deve obrigatoriamente ser conforme a proporcionalidade no sentido
amplo do termo, isto é, deve ser apropriada, necessária, e ditada nas justas
proporções requeridas pelo seu fim” 96, concebeu a proporcionalidade sob três
enfoques que, cumulativamente, deveriam ser atendidos:
a) utilidade, uma vez que a medida adotada somente seria proporcional
quando se mostrasse apta para a realização de seu resultado perseguido;
b) necessidade, isto é, a medida adotada seria apta apenas se outra
menos prejudicial à pessoa afetada e/ou à coletividade não pudesse ser
praticada;
c) proporcionalidade em sentido estrito, cujo conteúdo dispõe que a
conduta deve ser proporcional sempre em relação com o resultado perseguido,
isto é, numa relação de exata medida entre o ato e sua finalidade.
94 Malheiros, 2006, p. 43. 95 Deutsches Verwaltungsrecht, vol. I, Leipzig, 1895, p. 267. 96 Hartmut Maurer, in Droit Administratif Allemand, p. 248.
95
Ainda nesse juízo de proporcionalidade estrita emergiria, como
conseqüência, a necessidade ponderar todos os princípios envolvidos na
questão, de modo a eleger aquele que, se aplicado, provocaria menos ablação
dos demais.
Perez, apoiado nesses conceitos, sustenta haver uma correlação
indissociável entre a boa fé administrativa e o princípio da proporcionalidade.
Suas razões se encontram explicitadas, resumidamente, na seguinte
passagem: “Podría entenderse que una atuación desproporcionada es contraria
a las exigencias de la buena fe, en cuanto el sujeto adopta una conducta que no
es la conducta normal y recta que podría esperarse de una persona asimismo
normal. No es normal exigir algo más de lo que es necesario exigir para cumplir
el fin perseguido. No actúa de buena fe el que grava a otro innecesariamente, el
que impone limitaciones superiores a las necesarias para cumplir la finalidad
pretendida o exige prestaciones demasiadas. El principio de proporcionalidad
vendrá a coincidir en ciertos aspectos con el principio de la buena fe.”97
Desta feita, tem-se por coerente o pensamento segundo o qual a
proporcionalidade, em certos aspectos, venha a coincidir com a boa fé.
No entanto, importante destacar a ressalva “em certos aspectos” que está
contida na assertiva supramencionada, pelo fato de que, nesse ponto, há uma
necessidade de maior aprofundamento.
Isto porque existe uma sensível diferença da função lógica que
desempenham a proporcionalidade e a boa fé no regime jurídico de direito
administrativo. E, destarte, a missão de identificar todas as funções dos termos 97 El Principio General de Buena Fe em el Derecho Administrativo – Civitas – 1989, cit. p. 71.
96
jurídicos no sistema não seria irrelevante, conforme bem explica Gregório
Robles: “é papel da Ciência do Direito descrever, com maior grau de exatidão
possível, não apenas as significações pragmáticas (sentido prático) dos termos
jurídicos, mas também as diversas funções semânticas (conceituação) e
sintáticas (funções) que desempenham no sistema. Caberá sempre ao novo
intérprete, e, com maior razão ao juiz, se valer destas fontes científicas para
encontrar seu alcance no caso concreto.” 98
Nesse sentido, já vimos que, para Miguel Reale, os princípios são
gêneros e desempenham distintas funções, abrangendo o papel axiológico, bem
como fornecendo as regras do funcionamento do sistema. Já Dworkin Alexy faz
uma distinção clara entre princípios e postulados, asseverando que estes
correspondem às “condições de possibilidade do fenômeno jurídico”, ou seja,
explicam o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido, e, portanto, não
admitem flexibilização e nem incidiriam em graus tal como os primeiros. 99
Nessa linha, a proporcionalidade desempenha no regime jurídico de
direito administrativo a função explicativa de como o direito deve ser aplicado
(necessidade, utilidade e proporcionalidade). Trata-se, portanto, de postulado na
visão de Dworkin ou de princípio formal, na visão de Reale, e assim será
imutável e inflexível.
Já a boa fé desempenha função bem diversa, haja vista que, mesmo
sendo princípio fundador e irrenunciável do Estado de Direito, funciona como
98 O Direito como Texto, Editora Manole, cit. p. 46. 99 Vide nota 19.
97
valor em si mesmo, de conteúdo flexível e mutável determinado espaço-tempo
em que ele se projeta, aplicado sempre em graus de otimização.
Por isso, a boa fé, como princípio axiológico (ou princípio estritu sensu, na
visão de Dworkin), poderá refletir-se na realidade como uma exigência de um
determinado comportamento que, num dado momento histórico, seja diverso do
que se exigiria em outro.
Com efeito, vimos que o comportamento exigido pelo direito positivo atual,
no sentido de preservar a confiança depositada pela sociedade, é bem diverso
(no sentido de mais rigoroso, conforme a multiplicidade de diplomas legais
emergindo nesse sentido) daquele que se exigia cem anos atrás.
De outro lado, a demonstração da possibilidade de relativização da boa fé
em favor de outro princípio que com ela colida num caso concreto (o que não
ocorre com a proporcionalidade) pode ser bem ilustrada com a citada
“desapropriação indireta” 100. Nela, o Direito determinaria, em prol do princípio da
continuidade do serviço público, a manutenção da obra pública edificada mesmo
diante do apossamento de bem imóvel sem o mínimo respeito ao devido
processo legal.
E, assim sendo, comprova-se que o valor da boa fé será sempre
ponderável num caso concreto, o que não ocorre com o postulado da
proporcionalidade.
Em outros cenários, podemos exemplificar que a boa fé estará contida
como um dos princípios que, dentre outros, entrarão no juízo da
100 O caso da “desapropriação indireta” é explicado em minúcias no Cap. II, 6.
98
proporcionalidade, o que realça ainda mais a diferença pragmática entre ambos
os conceitos.
Tal situação, destarte, pode ser colhia na atividade sancionadora
administrativa, porquanto nesta tarefa o agente público levará em conta não
apenas a boa fé, mas também o grau de ofensa à legalidade, a ocorrência ou
não de prejuízo ao erário, dentre outros fatores.
Diante do exposto, apresentam-se, por estes refinamentos teóricos e
práticos, as diferenças que se afiguram mais relevantes entre a
proporcionalidade e a boa fé.
5.3. Moralidade administrativa.
Como visto, as primeiras construções científicas e claramente
registradas, sobre os antigos objetos moral e boa fé, surgem perante a filosofia
grega (Cap. I). E, nelas, já se apontavam características muito próximas sobre
os dois signos.
A rigor, as virtudes, conforme Aristóteles 101, poderiam ser intelectuais
ou morais. As virtudes intelectuais seriam adquiridas naturalmente pela
experiência e capacidade de cada um, tal como a sabedoria, a compreensão, a
sagacidade, etc. Ou seja, seriam qualidades aferíveis no plano interior.
Já as virtudes morais, ao contrário, seriam aferíveis no plano exterior,
não sendo adquiridas por condição natural e interna. Por isso, Aristóteles
afirmava que elas sempre surgiam através dos hábitos, dos atos que 101 Ética à Nicômaco, p. 64.
99
praticamos, isto é, do resultado histórico de nossas ações, independentemente
do sentimento interior e da condição natural 102.
Portanto, mesmo diante duma fraqueza interior, o sujeito poderá revelar
uma virtude moral pela ação contrária a essa debilidade. Estão relacionadas
com prazeres e dores, já que a excelência moral apareceria para aquele que
age se abstendo dos prazeres corporais e se deleita com a própria abstenção.
Quem sofre e suporta a dor é valente, enquanto quem sucumbe aos desejos é
covarde. São exemplos (ou espécies) de virtudes morais a generosidade, a
caridade, a temperança, etc.
Nesses termos, pois, a boa fé aparecia como espécie (ou exemplo) de
virtude moral, mas especialmente qualificada pela conduta reta e verdadeira do
sujeito em relação à sua promessa, devendo, por essa razão moral, abster-se de
descumpri-la, mesmo diante das mais terríveis dores internas e mesmo diante
das maiores e prazerosas tentações.
Estabelece-se, pois, uma primeira diferença (semântica) entre moral e
boa fé, qual seja, a primeira seria gênero da qual a segunda seria espécie.
A moral se referia a todo e qualquer tipo de virtude adquirida pela ação
reiterada, tal como a generosidade e a caridade, enquanto que a boa fé seria
uma virtude especial do hábito, caracterizada pela virtude do agir coerente com
a promessa.
Do ponto de vista etimológico, os dois termos já não aparecem
diferenciados por mera relação de gênero e espécie. A expressão moral, que
provém do termo latim moralis, significava “relativo aos costumes”, enquanto que 102 Idem.
100
a expressão “boa fé”, de bonna fides, significava pacto de confiança, de
fidúcia.103
De outra parte, ao verificar a moralidade jurídica, e, ainda, mais
especificamente, a própria moralidade administrativa, constaremos outras
diferenças ainda mais significativas.
Com efeito, aponta-se pacificamente que o conceito da moralidade
administrativa surgiu na França, com Hauriou104, a partir da tese de que o
agente público não deveria se preocupar apenas em cumprir à lei (stritu sensu),
mas especialmente atender ao “conjunto de regras tiradas da disciplina interior
da Administração”.
Disto, surgia a obrigação de cumprir a lei e também mais aquilo que se
entendia por “moralidade administrativa”.
Em nível nacional, a moralidade administrativa (ao lado da legalidade,
impessoalidade, publicidade e eficiência) foi positivada como princípio
explicitado no art. 37, caput, da Constituição da República de 1988. Por tal
razão, atualmente são inúmeras as obras brasileiras com referência específica
ao assunto 105.
Seu conceito, efetivamente, é o que mais se assemelha com a boa fé,
haja vista que, além da aproximação semântica de ambas as expressões, suas
103 Bonna fides - vide Capítulo I, item 2. A definição de moral pode ser encontrada no Dicionário latino-português, de Ernesto faria, p. 621. 104 Hauriuou. Précis Élémentaires de Droit Administratif, Paris, 1926, p. 197. 105 Destacamos os seguintes autores do tema: Marcelo Figueiredo: “O Controle da Moralidade na Constituição”; 1997; Tese de Doutorado. PUC/SP. 1997; e “Probidade Administrativa”; Malheiros, 1995; Marcio Cammarosano; “O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa”, Editora Fórum, 2006; José Augusto Delgado; “Princípio da Moralidade Administrativa; RDA, v. 25. P. 457; setembro de 1951; Celso Antonio Bandeira de Mello, Revista de Direito Tributário, São Paulo, vol. 69, p. 180-207.
101
funções no sistema são as mesmas, isto é: a de princípio axiológico do direito
administrativo. 106
Como melhor expressão de seu significado jurídico, adotamos a definição
oferecida por Marcio Cammarosano em sua magistral tese de doutoramento, a
qual, pela retidão teórica e metodológica, convém transcrever:
“Como há normas jurídicas que consubstanciam, explícita ou
implicitamente, valores e preceitos sacados desta ou daquela ordem moral,
violar estas normas é violar, a um só tempo, o Direito e a Moral. O ato que viola
norma deste tipo, do ponto de vista jurídico é inválido; do ponto de vista moral é
imoral. (...) O que não nos é dado fazer é associar referido princípio direta e
indiretamente à moral comum, vigente na sociedade num certo momento
histórico, como se toda a ordem moral supostamente prevalecente tivesse sido
juridicizada por força do mesmo. Para o Direito só é relevante a ofensa a ele
perpetrada. Mas sua reação é mais acentuada diante da invalidade (ofensa
jurídica) decorrente de ofensa a valor ou preceito moral juridicizado. E é mais
acentuado porque o próprio Direito assim estabelece. Na medida em que o
próprio Direito consagra a moralidade administrativa como bem jurídico
amparável por ação popular, é porque está outorgando ao cidadão legitimação
ativa para provocar o controle judicial dos atos que sejam inválidos por ofensa a
valores ou preceitos morais juridicizados. São esses valores ou preceitos que
compõe a moralidade administrativa.”. 107
106 Sobre as funções no sistema, confira Cap. II. 6, nota 43. 107 “O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa”, Editora Fórum, 2006, p. 112/113.
102
No núcleo da moralidade administrativa existe, pois, a proteção dos
valores morais juridicizados, e, partir daí, podemos extrair uma importante
distinção com a boa fé administrativa, qual seja, o âmbito de proteção dos
valores assegurados.
O princípio da boa fé administrativa, como visto anteriormente (item 3
deste Capítulo), se volta na proteção de que a Administração atuará de acordo
com o comportamento esperado juridicamente numa atividade que tenha por
finalidade tutelar o interesse público.
Logo, diz respeito ao dever de exercer todo e qualquer tipo de
comportamento esperado e protegido juridicamente, quer seja decorrente de
uma norma moral ou não.
É, de fato, muito mais abrangente que a moralidade.
Disto, permitimos concluir que o âmbito de aplicação da boa fé diz
respeito ao que é esperado em termos de exercer o mandato de tutelar o
interesse público, enquanto que a moralidade administrativa, desvinculada a
isso, diz respeito ao dever específico de respeitar as normas morais
juridicizadas.
Ainda podemos trazer algumas situações práticas que muito bem
ilustrariam o alegado. Vejamos.
A alteração de uma política pública no meio de sua execução, a fim de
melhor atender o interesse público segundo a avaliação do administrador
competente, não viola a moralidade administrativa, mas, por certo, viola o dever
de boa fé, isto é, atenta contra a confiança depositada pelos administrados de
103
que a política pública seria concluída, razão pela qual poderiam ter feito até
investimentos nesse sentido.
Nesse caso, poder-se-ia suscitar, de um lado, a indenização àqueles que
se prejudicaram com a ocorrência de comportamento inesperado (à luz da
proteção ao comportamento esperado, que está na boa fé), mas não caberia,
evidentemente, a tipificação da conduta do administrador como violadora da
moralidade administrativa, pois nenhuma regra moral juridicizada teria sido
ofendida, até porque a alteração nesse caso – repita-se - foi movida pelo
interesse público, com pureza de espírito.
Assim sendo, se limitássemos a boa fé ao conceito da moralidade
administrativa, a solução da indenização jamais poderia ser colocada na
situação acima.
Outrossim, o inverso também pode ocorrer, ou seja, poderá haver quebra
do dever de moralidade administrativa ao mesmo tempo em que a manutenção
deste ato se faça necessária para preservar a boa fé de terceiros atingidos.
Num caso hipotético, imaginemos um servidor que escuta o preço de uma
das propostas do certame (feita pelo licitante A) e o comunica para um dos
licitantes que pretende favorecer (licitante B). Contudo, vence a disputa pelo
menor preço um terceiro concorrente (licitante C), que, nada tendo a ver com a
imoralidade administrativa cometida, pretende da Administração o
comportamento normalmente esperado, qual seja, que lhe nomeie como
vencedor do certame e lhe adjudique o objeto contratual. Sendo assim, não
obstante existir na espécie violação ao dever de moralidade (e, diga-se, grave,
104
punindo-se pessoalmente o servidor), proteger-se-á a confiança, depositada
pelo licitante vencedor, de que agindo licitamente e oferecendo o menor preço,
ser-lhe-á garantida a vitória, e, assim, o ato do julgamento não será anulado
mesmo diante do cometimento da imoralidade administrativa. Isto é: típico
conflito entre a proteção da moralidade administrativa e da boa fé, o que justifica
a distinção.
Entretanto, alguém poderia sustentar que a diferença traçada entre boa fé
e moralidade no direito administrativo apenas seria possível se tomado o
conceito de moralidade administrativa segundo Cammarosano.
E a provocação merece registro, uma vez que há quem entende que a
moralidade administrativa possui valor autônomo, isto é, sem a necessidade de
referenciá-la a outro valor moral juridicizado, mas apenas voltada para o dever
de cumprir modelos de comportamento aceitos, por regras de costume, numa
sociedade, num determinado espaço-tempo 108.
Entretanto, ainda que consideremos como mais adequada a definição
acima (o que, embora não concordamos, temos a obrigação científica de
considerar), ainda assim a diferença entre os institutos paradigmáticos
subsistiria, e, aliás, de forma ainda mais acentuada.
Ora, se a boa fé se reporta a comportamentos esperados com base na
pauta de valores juridicizada para o exercício da função administrativa (item 4
deste Capítulo), e se a moralidade administrativa cuidasse de controlar o ato
108 Nesse sentido, invocamos Marya Sylvia Zanella Di Pietro, em “Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 111, que defende a autonomia do princípio, muito embora, nas razões esposadas, associa o conceito de moralidade com a proporcionalidade, razoabilidade, economicidade, finalidade, dentre outros princípios.
105
administrativo com base no respeito aos “bons costumes” sacados fora do
ordenamento jurídico (ainda que fruto de consenso social), aí estaria a enorme
diferença entra ambas: enquanto a primeira se relaciona com o direito positivo, a
outra se voltaria para o mundo dos costumes.
Portanto, ainda que existam inegáveis aproximações entre os institutos
paradigmáticos, o trabalho, neste tópico, tem a simples missão de frisar que o
cientista do direito deverá tratar da boa fé com autonomia, e não apenas como
referência vaga e reflexa nos estudos de moralidade administrativa, já que, pelas
diferenças apontadas, e ainda que sejam fruto de refinamentos excessivos,
decorrem conseqüências práticas relevantes sobre o controle dos atos
administrativos.
5.4. Probidade administrativa.
A probidade, do ponto de vista etimológico e semântico, abrangeria a
moralidade e a boa fé numa só toada. E isto se dá pela amplitude de seu
significado, que geralmente é retratado pela acepção inversa da improbidade
(por isso passaremos a tratar da probidade pelo seu antônimo).
No “Dicionário Jurídico” de De Plácido e Silva encontraremos:
“ÍMPROBO. Do latim in e probus, entende-se mau, perverso, corrupto, devasso,
desonesto, falso, enganador. É atributivo da qualidade de todo homem ou de
toda pessoa que procede atentando contra os princípios ou as regras da lei, da
106
moral e dos bons costumes, com propósitos maldosos ou desonestos. O
ímprobo é privado de idoneidade e de boa fama.” 109
Juristas dedicados ao estudo do tema enxergam a carga semântica da
improbidade sempre ligada à imoralidade ou a desonestidade, conforme
disposto por Marcelo Figueiredo: “Improbidade. Do latim improbitate.
Desonestidade. No âmbito do direito o termo vem associado a conduta do
administrador amplamente considerado. Há sensível dificuldade doutrinária em
fixar-se os limites do conceito de ‘improbidade’. Assim, genericamente comete
maus-tratos à probidade o agente público ou particular que infringe a moralidade
administrativa.” 110
Nesses termos, é evidente que a probidade administrativa se
confundiria com a boa fé subjetiva, da mesma forma que a má fé se inter-
relacionaria com a improbidade.
Ocorre que, ao volvermos os olhos para os temas dentro do sistema
jurídico, encontraremos uma profunda diferença. Enquanto que a boa fé é um
princípio jurídico aberto, na medida em que representa um valor que permeia
todas as demais normas do sistema, o direito insere a improbidade como uma
regra jurídica, ou seja, como uma estrutura fechada, constituída pela descrição
de uma hipótese e a previsão de uma conseqüência respectiva, a realizar-se
quando da ocorrência da moldura fática nela prevista (vide Cap. II, 6).
109 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 416. Realçando esse aporte jurídico-intelectivo do termo, é o significado que lhe atribui Aurélio Buarque de HOLANDA, como falta de probidade, mau caráter, desonestidade. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 925). 110 “Probidade Administrativa”, Editora Malheiros, 4° Edição, p. 23/25.
107
Afirma-se que a improbidade é uma regra jurídica e não um princípio
porque sua positivação no direito nacional assim se processa. Com efeito,
dispõe o §4º do art. 37 da Carta Magna: § 4º - Os atos de improbidade
administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função
pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
E a lei que estabelece essas molduras fáticas com a previsão de uma
conseqüência respectiva é a Lei Federal 8.429/92, a qual tipifica como ato de
improbidade as hipóteses de incidência previstas taxativamente no art. 9 (atos
de improbidade que provocam enriquecimento ilícito), no art. 10 (atos de
improbidade que causam prejuízo ao Erário), e no art. 11 (atos de improbidade
que atentam contra os princípios da Administração Pública).
Assim sendo, a improbidade será, no direito nacional, aquilo que a lei
define como tal (podendo incluir ou não a boa fé administrativa numa hipótese
de subsunção), enquanto que a boa fé administrativa, como princípio, tem seu
conteúdo haurido do regime jurídico de direito administrativo, e assim, muito
mais ampla e abstrata, incidirá como valor aplicável em toda atividade pública.
5.5. Segurança Jurídica.
O Direito preordena-se a regular a vida em sociedade, a fim de propiciar
uma convivência ordenada e harmônica. Os indivíduos, organizados num Estado
de Direito, necessitam saber de antemão de que forma devem se comportar,
108
conhecer o que é proibido ou o que é permitido. Além do mais, as pessoas
atuam em função destas ordenações, gerando relações e conseqüências
devidamente programadas.
Isso tudo proporciona tranqüilidade e segurança, conferindo ao Direito a
credibilidade necessária para regular a vida em sociedade.
Assim sendo, o princípio que assegura a previsibilidade do Direito,
protegendo a manutenção das relações jurídicas e suas conseqüências
estabilizadas, é exatamente o que convencionamos chamar de “segurança
jurídica”.
Os postulados da irretroatividade e do direito adquirido, bem como as
regras da decadência e da prescrição são, todos eles e por isso mesmo,
decorrências daquela.
Por estas razões, afirma-se que a segurança jurídica é um princípio
geral do Direito. E, assim sendo, funciona como substrato do próprio
ordenamento jurídico, o que afirmou Celso Antônio, apoiado em Garcia de
Enterría.111
Diante desta abrangência, é evidente que a segurança jurídica se inter-
relaciona com praticamente todos os demais princípios do sistema. A própria
legalidade, num ponto de vista, pode ser considerada como desdobramento da
necessidade de previsibilidade do Direito. Da mesma forma opera-se diante da
boa fé, já que, em certas ocasiões, o ordenamento protege o valor da confiança
legítima também em prol do valor da segurança jurídica.
111 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 123.
109
Nesse sentido, Fernando Dias Menezes de Almeida, em excelente
artigo sobre “Segurança Jurídica e Confiança Legítima”, observa que a primeira,
com o sentido de atender à exigência de previsibilidade, abrangeria
inegavelmente os princípios de proteção de direitos adquiridos, não-
retroatividade, estabilidade das relações contratuais e da própria confiança
legítima, o que estabelece, sem sombra de dúvidas, um intercâmbio vivo com a
boa fé. 112
Todavia, é mister esclarecer que, em outras situações, o valor de
proteger a previsibilidade do direito e das relações estabilizadas se diferenciará
e até mesmo entrará em choque com o valor que protege terceiros contra atos
de má fé.
E, nesse passo, haverá necessidade de sopesamento entre os
princípios aparentemente sobrepostos, para se saber qual deles prevaleceria à
luz do Direito.
Exemplo desta situação está contido expressamente no art. 54 da Lei de
Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99), que disciplina: Art. 54. O direito da
Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis
para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados,
salvo comprovada má-fé.
Está claro, na primeira parte da redação legislativa, que o prazo
decadencial serve para evitar que se anule atos eivados de vício num futuro
muito distante, exatamente porque a segurança jurídica recomendaria manter 112 “A segurança jurídica e a proteção à confiança em matéria de Direito constitucional e administrativo e seu acolhimento pela jurisprudência constitucional no Brasil” - In: Anna Cândida da Cunha Ferraz. (Org.) - Direitos Humanos Fundamentais: Doutrina, Prática, Jurisprudência - Osasco: Edifieo, 2009, v. 2, p. 165-194, cit. p. 172.
110
seus efeitos que já se estabilizaram no decorrer do tempo e que já provocaram
inúmeras relações jurídicas.
Todavia, ao adentrar na questão conflituosa a má fé daquele que pratica
o ato contrário ao direito, o legislador, num típico juízo de ponderação,
relativizou o princípio da segurança jurídica para permitir que o ato anulatório
alcance período retroativo superior aos cinco anos originalmente previstos como
limite razoável.
Aqui, valeu-se da máxima de que ninguém pode se aproveitar de sua
torpeza, que é corolário típico da proteção da boa fé.
Portanto, o Direito, quando diante da hipótese mais grave de violação ao
princípio da boa fé, pode conferir peso maior à sua proteção do que à própria
segurança jurídica.
5.6 Dever de boa administração.
Guido Falzone, na Itália, já demonstrava em 1953 que a atividade
administrativa, como exercício de um dever especial ou de uma função, teria de
ser bem realizada, o que significa o dever de utilizar o meio mais idôneo,
oportuno e conveniente para a satisfação do interesse público. 113
113 “Nel ribadire ora tale doverositá degli enti pubblici e nel porla in risalto come uno dei caratteri della funzione amministrativa pubblica, rileviamo preliminarmente che d’un dovere di um buon esercizio della funzione amministrativa, intenso come dovere del migliore suo adempimento attraverso l’uso dei mezzi Che siano i piu idonei, piu opportuni e convenienti per Il soddisfacimento dell’interesse pubblico Che costituisce Il fine especifico di quella particolare attività dello Stato, e cioe di un dovere di buona amministrazione per gli enti pubblici puo paslarsi sostanzialmente, nello stesso con cui di un tale dovere puo dirsi per ogni altra funzione, variando, per tali enti, soltando La natura speciale degli interessi tutelati.” (Guido Falzoni, em Il Dovere di Buona Amministrazione, Parte I, Milano, Dott. A. Giuffre, Editore, 1953)
111
No Brasil, Celso Antônio vislumbrou que o princípio da eficiência,
positivado pelo art. 37, caput, da Constituição da República, nada mais seria do
que uma faceta do dever de boa administração, acrescentando ainda que o
gestor público, no exercício de competência discricionária, sempre teria o dever
de adotar a solução excelente prescrita pela norma. 114
Extrai-se, daí, que o dever de boa administração se relaciona com a
qualidade dos meios escolhidos para se atingir resultados mais favoráveis ao
interesse público.
Sua diferença com o dever de boa fé é muito tênue. Nesta, o dever de
conduta não se fixa necessariamente na adoção do melhor meio, mas no
respeito pela adoção do meio que já era previsível. Aqui, protege-se
preferencialmente o valor da confiança; acolá, o valor da eficiência.
A partir destas premissas conceituais é possível estabelecer conflitos,
diante de casos concretos, entre a boa fé e o dever de boa administração,
sobretudo no campo do controle de políticas públicas.
Suponha a divulgação de uma campanha pública de incentivo e fomento
a determinado setor econômico, gerando investimentos excepcionais por
terceiros de boa fé que confiaram naquela atuação administrativa. Ocorre que,
em razão de fato superveniente, revoga-se repentinamente a diretriz adotada em
razão de se adotar outro meio para melhor atender o interesse público.
Na espécie, será evidente que a conduta administrativa atendeu o dever
de boa administração, da mesma forma que, de outro lado, frustrou a confiança
legítima depositada pelos administrados envolvidos na campanha original. Com 114 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 122
112
efeito, poder-se-ia sustentar a manutenção do ato revocatório em prol do dever
de boa administração, relativizando-se à proteção da confiança. De outro turno,
o Direito reservaria àqueles que experimentaram prejuízos pela quebra da
expectativa legítima o direito a uma indenização, como nítida expressão que o
ordenamento jurídico confere conseqüências distintas aos dois princípios postos
em paradigma (boa fé e boa administração).
113
Capítulo IV – Incidência do princípio da boa fé
administrativa.
1. Introdução. 2. A boa fé e o ato administrativo. 2.1. Sujeito. 2.2. Motivo. 2.3. Causa
2.4. Finalidade. 2.5. Formalização. 3. A boa fé e o processo administrativo. 3.1.
Processo e procedimento. 3.2. A boa fé no processo administrativo federal. 4. A boa fé
em face do exercício de competência vinculada e discricionária. 5. A boa fé e os
contratos administrativos. 5.1. Contratos da Administração e contratos administrativos.
5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93.
1. Introdução.
Já vimos nos capítulos anteriores que a boa fé é um princípio
fundamental do direito administrativo e que, nessa qualidade, aplica-se em toda
atividade administrativa.
Tem conceito próprio, mas incide em faixas de otimização, sendo
sempre ponderável no caso concreto pela coexistência de outros princípios que
o direito administrativo também protege, tal como a legalidade, a segurança
jurídica, a moralidade, e outros.
Diante desta estrutura, a boa fé administrativa incide no direito de forma
dinâmica, sofrendo múltiplas influências conforme as mais variadas espécies da
atuação administrativa.
O papel do cientista, nessa linha, será o de averiguar e descrever a
incidência da boa fé nas espécies de atuação em que ela se afigura de forma
114
mais evidente, desdobrando-a nas relações e conseqüências que se façam
pertinentes.
Contudo, ressalva-se, desde já, que esse trabalho não tem a pretensão
dissecar todas as possíveis incidências concretas da boa fé no direito
administrativo, até porque tal mister seria impossível, tendo em vista serem
infinitos os fenômenos casuísticos.
Sem embargo, veremos que sua aplicação é notável nos mais diversos
campos da atividade administrativa, sendo cada vez mais crescente sua
encampação pelo direito positivo e seu reconhecimento pela jurisprudência.
2. A boa fé e o ato administrativo.
A unidade mais nuclear da atuação administrativa é o ato administrativo.
Diz-se, por isso, que ao estudar a tipologia do ato administrativo pode-se
compreender o Direito Administrativo como um todo.
Para bem apreendermos seu conceito, mister se faz recorrer, uma vez
mais, ao grande administrativista brasileiro Celso Antônio Bandeira de Mello,
segundo o qual o ato administrativo consiste em: “declaração do Estado (ou de
quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público),
no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências
jurídicas complementares da lei a titulo de lhe dar cumprimento, e sujeitas a
controle de legitimidade por órgão jurisdicional”. 115
115 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Ed., cit. p. 378.
115
Trata-se, destarte, da maneira pela qual o Estado, via de regra, declara
sua atividade, gerando conseqüências jurídicas (direitos e obrigações).
Sua tipologia percorre etapas de perfeição, validade e eficácia. A
perfeição é o ciclo necessário para a formação do ato, sem o qual este não
adquire existência jurídica como tal. Validade é a qualidade da adequação do
ato às exigências do ordenamento jurídico, muito embora ele possa ter
percorrido o ciclo de formação (daí que se pode afirmar que o ato inválido é, por
essência, ilegal ou viciado, pois formado de forma contrária ao Direito). Eficácia,
por sua vez, seria a aptidão do ato que já lhe permitiria a produção de seus
típicos efeitos. 116 117
Já a boa fé administrativa, como princípio que veicula um dever de
atuação conforme um comportamento esperado juridicamente para o exercício
da função administrativa de tutelar o interesse público se liga, portanto, às
condições de validade do ato. Este último, se editado de forma contrária às
exigências daquela será, por conclusão lógica, considerado inválido.
O problema é que nem sempre a condição potencial de invalidade de
um ato levará, como conseqüência imediata, na sua retirada no mundo jurídico
pelo instituto da anulação, haja vista que, além do princípio da legalidade, outros
incidem e, por vezes, podem influenciar a decisão de manter os efeitos do ato
viciado, ou ainda de corrigir seus defeitos.
116 Idem, p. 380/381. 117 Contudo, frisa-se desde já que o estudo completo e suficiente da tipologia do ato administrativo extrapolaria a extensão deste trabalho, razão pela qual o que nos interessa, em foco, diz respeito apenas aos itens que reputamos mais relevantes quando considerados este em relação à boa-fé administrativa.
116
Nesse contexto, será importante didaticamente averiguar qual o papel
desempenhado pela boa fé administrativa considerando cada um dos requisitos
de validade do ato administrativo, sendo estes os mais conhecidos:
sujeito/competência, motivo (de fato e de direito), finalidade, causa e
formalidade. 118
2.1. Sujeito.
Quanto ao sujeito, tem-se que o ato administrativo deve ser editado por
agente competente, isto é, por quem detenha as atribuições legais para seu
exercício.
Ademais, pelo fato de que o vício exclusivamente de competência não
contamina essencialmente o motivo, a causa e a finalidade do ato administrativo,
a violação ao princípio da legalidade será menor, e, portanto, a incidência da
boa fé será bem mais variada, levando à necessidade de analisá-la diante de
quatro hipóteses, abaixo destacadas.119
118 Além da doutrina em geral, registra-se que a Lei Federal 4.717/65 (Lei da Ação Popular) traz, no seu art. 2º, a relação de vícios que, de certa forma, se assemelham à relação proposta neste trabalho - Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. 119 Colhemos na obra de Ricardo Marcondes Martins quatro vertentes fáticas que são extremamente didáticas para analisar as diversas aplicações da boa fé: a) boa fé da Administração e do administrado; b) má fé de ambos; c) boa fé da Administração e má fé do administrado; d) má fé da Administração e boa fé do administrado; e tudo isso nos desdobramento de atos restritivos ou ampliativos de direito. (“Efeitos dos Vícios dos Atos Administrativos”, Malheiros, 2008, p. 320/323.
117
(a) Administração e administrado não agem com má fé.
(a.1) Quando o ato for ampliativo de direito e o administrado está de boa
fé, o Direito deve protegê-lo, pois legitimamente confiou que a atuação
administrativa seria regular (isto é: editada por agente competente), e, assim,
não haverá invalidação do ato.
Protege-se, pois a boa fé objetiva em decorrência da confiança legítima,
e, portanto, independe se o vicio de competência se deu em decorrência de ato
doloso.
Um bom exemplo pode ser extraído num julgado do Tribunal de Justiça
de São Paulo, no curso da Apelação nº 990.09.331147-0, onde uma pessoa
integrante da Administração Indireta (sociedade de economia mista) e que
estava gerenciando um contrato administrativo de limpeza pública (exercendo,
portanto, atividade administrativa) firmou um termo de confissão de dívida com o
prestador do serviço sem observar sua adequada competência interna.
Neste caso, quando o pacto não foi honrado e empresa credora ajuizou
a respectiva cobrança mas, no bojo da execução, o defeito de competência foi
levantado como pretensão para anular o título. E destarte, vejamos a conclusão
chegada pelo Judiciário, conforme a ementa que abaixo transcrevemos:
“EXECUÇAO DE TITULO EXTRAJUDICIAL Instrumento de Confissão de
Dívida. Alegação de nulidade e inexistência do título de crédito - Título
subscrito por apenas um Diretor, enquanto o Estatuto Social prevê a
necessidade de assinatura de dois diretores para firmar contratos em nome da
118
sociedade de economia mista - Condições do Estatuto da empresa
contratante que não podem ser impostas ao terceiro de boa-fé -
Ressarcimento de eventual prejuízo que deve ser postulado junto ao Diretor
que não foi diligente. Pretensão negada.”
A exceção deste comando ocorreria quando a edição do ato
dependesse do exercício de uma competência discricionária, situação esta que
levaria à necessidade de sua ratificação pela autoridade competente.
Com efeito, a atuação administrativa dependerá, nesse caso, do juízo
pessoal do agente público sobre a oportunidade e conveniência da solução
adotada, o que, evidentemente, somente poderia ter sido exercido pelo titular do
cargo ou função.
Ademais, caso a autoridade competente não faça a mesma escolha do
agente anterior, a revisão do ato então deverá ocorrer, mas com efeitos ex nunc,
isto é, preservando-se os efeitos hauridos em favor do administrado de boa fé.
(a.2) Quando o ato for restritivo de direito, a situação se inverte e
revisão sempre se impõe, devendo o processo administrativo ser anulado a
partir do momento em que houve a decisão do incompetente, e a partir daí
retomado pela autoridade competente.
Isto ocorre porque a proteção jurídica resguarda o administrado de boa
fé contra o comportamento inesperado da Administração, e, assim, como o ato
editado por agente incapaz lhe causou prejuízo, é evidente que não poderá
subsistir.
119
Outrossim, importa anotar que incide na espécie, reforçando a
conseqüência acima, o princípio do devido processo legal previsto no art. 5º,
incisos LIV e LV, da Constituição da República, o qual, carregado com as cargas
adjetivas e substantivas exigiria que a atuação punitiva ou de perdimento de
direitos fosse feita mediante um processo legal e ao mesmo tempo justo.120
(b) Administração age de má fé e administrado de boa fé.
Nessa situação, as conseqüências do exemplo anterior não se alteram.
Aliás, se o direito protege o administrado de boa fé contra o vício de
competência praticado sem dolo pela Administração, com muito mais força o
acolherá quando esta agir de má fé.
Quando o ato for restritivo de direito, parece crível, portanto, que a
solução da revisão do ato seja realmente concretizada.
E, no que tange aos atos ampliativos de direito, interessante notar que a
conseqüência do item a.1 também deve ser mantida, não se anulando o ato
mesmo que a Administração tenha agido de má fé.
Suponha, por exemplo, que determinado agente público tenha avocado
a competência de um cargo que não lhe pertence, até mesmo para obter
vantagens pessoais. Ocorre que, no curso de suas atividades, declarou a
aposentadoria (compulsória ou voluntária, tanto faz) da forma como requerida
pelo servidor de boa fé, concedendo-lhe, assim, os benefícios dela decorrentes.
120 Sobre o aprofundamento do tema o princípio do devido processo legal, consultar Carlos Roberto Siqueira Castro, em “O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade”, Forense, Rio de Janeiro.
120
Pois bem, o vicio da incompetência por ato de má fé, mesmo assim, não
autorizará a cassação do ato que ampliou a esfera de direitos do servidor de boa
fé, e ainda que a investidura desonesta no cargo possa levar à punição pessoal
do agente.
Fosse o contrário, seria um caminho aberto para perseguições, pois
bastaria que o administrador, com ânimo para impedir alguém de boa fé de
prover seus direitos, agir propositadamente para tornar o ato administrativo
respectivo contaminado com o vício da incompetência.
Com efeito, aí estaria, realmente, a força da proteção da confiança
legítima que o ordenamento confere, ou seja, de resguardar a parte que, de boa
fé, confia na atuação legítima da parte contrária, sobretudo no exercício da
função administrativa, onde impera a presunção (relativa) de legitimidade dos
atos, independentemente mesmo se houve quebra por razões de ordem
subjetiva ou objetiva.
(c) A Administração está de boa fé, mas o administrado age de má fé.
Aqui a situação se altera, pois a proteção jurídica da boa fé não estará
mais ao lado o administrado. Ele próprio atua de má fé, e, nessa medida o
Direito o repreende.
Destarte, o alvo da tutela jurídica será a própria a sociedade, lesada
objetivamente se houver desrespeito à norma de interesse público.
121
Imaginemos, por exemplo, que determinado administrado tome
comprovadamente ciência do vicio de competência e, munido de má fé, omite tal
defeito a fim de obter benefícios.
Nesta situação, é liquido e certo que o Direito não poderá permitir a
manutenção do ato, determinando a remessa do procedimento ao agente
competente para re-analisar a questão e, se for o caso, para cassar a decisão
anterior.
Já no ato restritivo de direito, a questão da má fé do administrado nem
se coloca de maneira relevante, pois este não agiria propositadamente para
obter prejuízo.
(d) Ambos estão de má fé.
A questão apenas não se coloca nos atos restritivos de direito, porque,
como já observamos, o administrado não agiria propositadamente para obter
prejuízo.
Nos demais casos, teremos efetivamente a hipótese de violação mais
grave da boa fé no exercício da função administrativa. E, provavelmente, terá
ocorrido conluio entre as partes, razão pela qual a anulação do ato se impõe,
somada à responsabilização pessoal do agente e do beneficiário do ato, na
forma da lei.
122
2.2. Motivo (de fato e de direito).
Motivo é a situação de fato e de direito que serve de fundamento para a
edição do ato administrativo.
O pressuposto de fato é a ocorrência de determinada situação que
permite ou obriga a prática de um ato administrativo. E o pressuposto jurídico se
refere à norma legal que serve de fundamento para a prática do ato,
funcionando, pois, como corolário do princípio da legalidade.
Logo, a ausência de motivo, ou a invocação de motivo falso ou
inadequado provocariam, via de regra, a anulação do ato administrativo.
Aqui, portanto, não se coloca as vertentes da má fé pelo lado da
Administração Pública ou do administrado. Com efeito, tanto o erro ou a má fé
na detecção do motivo levariam do mesmo jeito à invalidação do ato.
Tomemos o exemplo da licença para construir. É evidente que na
ausência do pressuposto de fato (cumprimento das regras de edificação
exigidas) e/ou do pressuposto jurídico (norma permitindo ou não proibindo
aquela edificação) não poderá ser expedida a licença, independentemente da
boa ou má fé dos envolvidos na relação jurídica específica.
Incide na espécie, e de maneira prevalente, o princípio da legalidade e
da típica proteção da boa fé da sociedade (boa fé administrativa, na acepção
objetiva), no sentido de que a Administração exerça o comportamento esperado,
de quem tutela o interesse público e não do particular que pretende construir.
123
De outro turno, assevera-se que a boa fé administrativa também poderia
incidir no motivo defeituoso para salvaguardar terceiros que inocentemente
tenham confiado na atuação administrativa e deles obtiveram ampliação de
direitos (aqui, também falamos da proteção à boa fé objetiva).
Nesse cenário, a melhor hipótese estaria na aprovação de loteamento
irregular, quando, há anos ou décadas atrás, terceiros de boa fé adquiriram seus
lotes e neles estabeleceram suas residências. No problema sugerido, se não
houver o risco de grave lesão a outros princípios tutelados (como segurança e
meio ambiente), a ponderação entre legalidade (para anular o ato) e boa fé de
terceiros se resolverá em favor desta, mantendo-se os efeitos da posse e da
propriedade.
Logo, quando se estiver diante da situação acima, o aplicador do direito
deverá realizar um juízo de proporcionalidade entre a legalidade e boa fé de
terceiros, a fim de saber, sempre no caso concreto, se os efeitos do ato devem
ser preservados ou não.
Foi exatamente isto que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no REsp
141.879 / SP, cuja ementa e trecho do voto abaixo transcrevemos:
“Loteamento. Pretensão de anulação. Boa-fé. A teoria dos atos
próprios impede que a Administração Pública retorne sobre os
próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na
regularidade de seu procedimento.”
(...)
124
“Sabe-se que o princípio da boa fé deve ser atendido também pela
administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu
comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado
pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os
próprios passos depois de estabelecer relações em cuja seriedade os
cidadãos confiaram.”
2.3. Causa.
A causa do ato administrativo é aferida mediante uma relação de
adequação lógica entre o motivo do ato e seu próprio conteúdo. O que está em
jogo, precipuamente, é a atuação proporcional da Administração, como muito
bem destacou Celso Antônio. 121
Desta feita, a relação entre boa fé e proporcionalidade é antiga e bem
detectada por Gonçales Perez 122, sobre a qual já se nos posicionamos quando
diferenciamos os dois institutos no Cap. III, item 5.2.
A proporcionalidade é um postulado fixo de interpretação, a fim de
verificar se atuação administrativa foi realizada de maneira necessária,
adequada e ponderada diante dos vários bens que muitas vezes se chocam no
caso concreto. 121 Curso de Direito Administrativo, 25ª Edição, p. 401. 122 El Principio General de Buena Fe em el Derecho Administrativo – Civitas – 1989, cit. p. 71. “Podría entenderse que una atuación desproporcionada es contraria a las exigencias de la buena fe, en cuanto el sujeto adopta una conducta que no es la conducta normal y recta que podría esperarse de una persona asimismo normal. No es normal exigir algo más de lo que es necesario exigir para cumplir el fin perseguido. No actúa de buena fe el que grava a otro innecesariamente, el que impone limitaciones superiores a las necesarias para cumplir la finalidad pretendida o exige prestaciones demasiadas. El principio de proporcionalidad vendrá a coincidir en ciertos aspectos con el principio de la buena fe.”
125
O que sobreleva anotar, assim, é que a proteção ao comportamento
esperado impedirá que a Administração atue além dos limites racionalmente
previstos pelo comando legal. E não poderá fazê-lo intencionalmente e nem por
erro, pois em ambos os casos haverá violação ao Direito.
Quando a Administração concede, com dolo ou por erro, um direito
aquém ou além do que faria jus o administrado, deverá revê-lo, da mesma forma
que procederá quando restringir os direitos de forma desproporcional.
Por isso é que na espécie se aplicam os mesmos desdobramentos
quanto ao defeito do motivo (item anterior), incidindo a boa fé na proteção da
sociedade sobre a correção dos atos administrativos e na proteção de terceiros
de boa fé, mediante ponderação no caso concreto sobre a manutenção ou não
dos efeitos gerados pelo ato em exame.
2.4. Finalidade.
A finalidade consiste no atributo de que o ato administrativo deve ser
editado para alcançar o resultado pretendido pela norma jurídica. Trata-se, pois,
do pressuposto teleológico.
Ocorrerá o chamado “desvio de poder” quando um ato administrativo for
preordenado a atingir finalidade diversa daquela pretendida pelo ordenamento
jurídico para a sua categoria.
Nesse particular, já demonstramos, conforme a posição de Celso
Antônio (Cap. III, item 5.1), que a finalidade diversa se daria: a) quando o agente
126
busca uma finalidade alheia ao interesse público ou b) quando o agente busca
uma finalidade, ainda que de interesse público, mas alheia à categoria do ato
que utilizou.
No caso do desvio de poder descrito na hipótese ‘a’, verificaremos que
haverá confusão entre o dever de finalidade e o dever de boa fé administrativa,
na sua acepção objetiva.
Isto porque, se a boa fé supracitada representa o dever de exercer o
comportamento esperado na tutela do interesse público, e se o ato analisado
incorreu em desvio dessa finalidade, evidente será a intersecção de ambos.
O Direito, nesses casos, invalidará o ato desvirtuado da finalidade,
independentemente da intenção do agente público ou do administrado
especialmente atingido.
Da mesma forma, a proteção do princípio da boa fé que poderia
neutralizar a cassação dos efeitos do ato também seria aquela descrita nos itens
anteriores 2.2 e 2.3, isto é, para manter estabilizados os efeitos experimentados
por terceiros de boa fé.
Quanto ao desvio de poder descrito na alínea ‘b’ (quando o agente
busca uma finalidade, ainda que de interesse público, mas alheia à categoria do
ato que utilizou), o caso é bem peculiar.
O desvio aqui não atingirá a finalidade de interesse público, e, portanto,
terá menos repulsa do ordenamento. A finalidade principal e esperada na
atuação administrativa é alcançada, e, assim, pode-se dizer que a boa fé
objetiva da sociedade foi preservada.
127
Todavia, de outro lado, haveria violação à boa fé subjetiva, porquanto o
agente público, muito embora possa ter alcançado o resultado esperado pela
norma em termos de interesse público, aproveitou-se disto para buscar
finalidade diversa da categoria específica do ato.
Tome-se o caso hipotético da desapropriação de imóvel que realmente
atinge a finalidade do interesse público, mas que está contaminado por motivo
de vingança contra o expropriado. De um lado, atingiu-se o comportamento
esperado pela sociedade na boa utilização do imóvel, agora publicizado. Mas,
de outro turno, infringiu-se da maneira mais grave possível o dever ético de uma
parte para com a outra (Administração versus proprietário expropriado), tomando
a propriedade de alguém com absoluta desonestidade.
No cenário tormentoso acima, apenas a ponderação no caso concreto,
com uso do postulado da proporcionalidade em sentido estrito 123, é que nos
poderia dizer se o Direito deve acolher a proteção da boa fé subjetiva contra o
desvio de poder, anulando o ato expropriatório; ou se deve preservar a boa fé
objetiva da sociedade, e, assim, manter o bem publicizado em prol de seu uso
voltado ao interesse público.
Logo, se o imóvel expropriado ainda não estiver sendo fruído
coletivamente (aguardando, por exemplo, a edificação de um prédio escolar), a
anulação do ato expropriatório se impõe, uma vez que esta solução, num juízo
de proporcionalidade estrita, atenderá por completo a boa fé subjetiva em
123 Vide Cap. III, item 5.2.
128
mínimo prejuízo da boa fé da sociedade, que ainda poderá receber da
Administração uma outra alternativa.
Entretanto, se o imóvel estiver em plena fruição pela coletividade, o
desfazimento do ato, muito embora possa reparar o status quo da violação da
boa fé subjetiva, traria consigo um efeito colateral muito alto e por isso
indesejável em termos de proporcionalidade estrita, qual seja, o de suprimir a
continuidade de um serviço público relevante à milhares de cidadãos. Caberia,
pois, ao expropriado o direito à uma indenização, inclusive moral, pelo agravo
sofrido, bem como se faria necessário punir pessoalmente a conduta do agente
desonesto, muito embora a utilização pública do imóvel tivesse de ser mantida.
2.5. Formalização.
A formalização é um requisito de validade ligado à maneira pela qual o
ato de deve ser exteriorizado. Ela é menos importante que o motivo, a causa ou
a finalidade (é bem verdade), porque não atinge o núcleo do ato administrativo,
mas nem por isso será sempre irrelevante. Serve para proporcionar o efetivo
controle dos atos administrativos. Exemplos desta natureza seriam a
necessidade de contrato escrito, a maneira específica de uma determinada
publicidade, ou ainda a forma exigida para sua exteriorização (como Portarias,
Atos, Resoluções) etc.
129
Desta forma, há necessidade de desdobrá-la nas mesmas quatro
vertentes que utilizamos no vício de competência (cf. item 2.1 deste Capítulo).
(a) Administração e administrado não agem de má fé.
(a.1) Quando o ato for ampliativo de direito e o administrado está de boa
fé, o Direito deve protegê-lo, pois legitimamente confiou que a atuação
administrativa seria regular (isto é: formalizada adequadamente), e, assim, não
haverá invalidação do ato.
Imagine-se a convocação administrativa para a entrada em exercício de
um servidor sem a edição da chamada “Portaria de Nomeação”. No exemplo,
proteger-se-á, pois, a confiança depositada pelo servidor nomeado, e, portanto,
independentemente se o vício de formalização ocorreu em decorrência de má fé
administrativa.
(a.2) Quando o ato for restritivo de direito, a situação se inverte e
revisão do ato se fará obrigatória.
Os motivos para tanto são os mesmos elencados no item 2.1, no
sentido de proteger a boa fé do administrado, que sofreu restrição, contra o
comportamento inesperado da Administração, bem como, por incidir, na espécie,
130
o devido processo legal, adjetiva e substancialmente (princípio este a orientar
que o informalismo deve ocorrer em prol do administrado; nunca contra 124).
(b) Administração age de má fé e administrado de boa fé.
Nessa situação, as conseqüências do exemplo anterior não se alteram.
Aliás, se o direito protege o administrado de boa fé contra o vício de
competência praticado sem dolo pela Administração, com muito mais força o
acolherá quando esta agir de má fé.
Quando o ato for restritivo de direito, parece crível, portanto, que a
solução da revisão do ato seja realmente concretizada.
E, no que tange aos atos ampliativos de direito, interessante notar que a
conseqüência do item a.1 também deve ser mantida, não se anulando o ato
mesmo que a Administração tenha agido de má fé.
Suponha, por exemplo, que o administrador tenha deixado de expedir a
Portaria de Nomeação narrada no item ‘a.1’ intencionalmente, por motivo de
perseguição. Pois bem, o vicio da formalização, com muito mais razão, não
autorizará a cassação do ato que ampliou a esfera de direitos do servidor de boa
fé.
124 Sobre o aprofundamento do tema o princípio do devido processo legal, convém consultar Carlos Roberto Siqueira Castro, em “O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade”, Forense, Rio de Janeiro.
131
(c) A Administração está de boa fé, mas o administrado age de má fé.
Nesse ínterim, os argumentos e as conseqüências são rigorosamente
iguais ao contido no item 2.1 deste Capítulo, alínea ‘c’.
Em suma: no ato ampliativo a situação se inverte, e o Direito
repreenderá a má fé do administrado, impedindo que este obtenha benefício
valendo-se de sua torpeza. No ato restritivo, a questão da má fé do administrado
nem se coloca de maneira relevante, pois não agiria propositadamente para
obter prejuízo.
(d) Ambos estão de má fé.
A questão apenas não se coloca nos atos restritivos de direito, porque,
como já observamos, o administrado não agiria propositadamente para obter
prejuízo.
No caso dos atos ampliativos, teremos efetivamente a hipótese de
violação mais grave da boa fé no exercício da função administrativa. E,
provavelmente, terá ocorrido conluio entre as partes, a fim de impedir a
formalização adequada do ato e o conseqüente controle pela sociedade.
Nessa esteira, evidente que a invalidação do ato se impõe, somada à
responsabilização pessoal do agente e do beneficiário do ato, na forma da lei.
132
(e) Exceção à regra: a formalização é uma condição legal da validade
do ato.
Quando a formalização se constituir numa condição legal da validade do
ato, o defeito respectivo importará na invalidação deste independentemente da
posição de boa ou de má fé (subjetiva) dos envolvidos na relação específica
(Administração versus administrado atingido pelo ato).
Um exemplo interessante seria a ausência de publicidade em jornal de
grande circulação para abertura do procedimento de concorrência pública,
conforme previsto pelo art. 21 da Lei Federal 8.666/93 125. A maneira pela qual o
ato de chamamento deve ser exteriorizado não seria uma formalização
irrelevante, mas verdadeira condição legal para a validade de todo o
procedimento licitatório, haja vista que somente por meio desta será possível
garantir uma multiplicidade de princípios administrativos, a saber: acesso
universal aos administrados; ampla competitividade; isonomia; possibilidade
maior de obter proposta mais vantajosa, a própria legalidade, dentre outros.
125 Art. 21. Os avisos contendo os resumos dos editais das concorrências, das tomadas de preços, dos concursos e dos leilões, embora realizados no local da repartição interessada, deverão ser publicados com antecedência, no mínimo, por uma vez: (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) I - no Diário Oficial da União, quando se tratar de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Federal e, ainda, quando se tratar de obras financiadas parcial ou totalmente com recursos federais ou garantidas por instituições federais; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) II - no Diário Oficial do Estado, ou do Distrito Federal quando se tratar, respectivamente, de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Estadual ou Municipal, ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) III - em jornal diário de grande circulação no Estado e também, se houver, em jornal de circulação no Município ou na região onde será realizada a obra, prestado o serviço, fornecido, alienado ou alugado o bem, podendo ainda a Administração, conforme o vulto da licitação, utilizar-se de outros meios de divulgação para ampliar a área de competição. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)
133
Por estas razões, a boa intenção das partes envolvidas (Administração
e vencedor da licitação) será irrelevante diante da imposição formalística.
Assegurar-se-á a boa fé administrativa (objetiva), em prol da sociedade, de que
a conduta administrativa deve ocorrer de acordo com os standards
objetivamente juridicizados (no caso: a forma específica de uma publicidade)
3. A boa fé e o processo administrativo.
3.1. Processo e procedimento.
A priori, cabe situar que a expressão “processo administrativo” irá se
referir neste tópico a uma relação jurídica processual centrada
predominantemente na existência de um conflito ou litígio a ser dirimido na
esfera administrativa 126, a fim de distingui-la da expressão “procedimento
administrativo”, a qual abrangeria todo e qualquer iter sucessivo e
desencadeado de atos concatenados logicamente à edição final de um ato
administrativo 127.
E assim se procede porque, em razão de cortes metodológicos, o
estudo da boa fé no procedimento administrativo forçosamente recairia no ato
administrativo, o que já foi abordado no item 1 deste Capítulo.
126 Aqui adotamos a definição de Sergio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, em “Processo Administrativo”, Malheiros, 2º Edição, p. 35. 127 Sobre a expressão “procedimento administração” confira Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo, Malheiros, p. 477.
134
Já o processo administrativo, pela conceituação acima, dispõe de
componentes peculiares que mais o distanciam do ato administrativo. E, por fim,
está no processo (e não no procedimento) o âmbito da lei federal que será
analisada em fico daqui para frente e que contém férteis positivações da boa fé
que nos interessará.
3.2. A boa fé no processo administrativo federal.
Para o ente federal, a boa fé já se constitui num princípio
expressamente positivado no campo do processo administrativo, conforme
disposto no art. 2º, Parágrafo Único, inciso IV, da Lei Federal 9.874/99. 128
No entanto, é possível sustentar seu influxo nessa seara antes mesmo
da lei citada, porquanto toda atividade que se sujeita ao regime jurídico de direito
administrativo deve obediência a este princípio (o que já vimos no Cap. II.5).
Não obstante, a boa fé também emergiria como decorrência lógica do
devido processo legal, esculpido no art. 5º, incisos LIV e LV da Carta Magna 129,
128 Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades; IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; 129 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
135
mormente no seu aspecto substancial, que exige um processo legal e ao mesmo
justo (justo no sentido de razoável, proporcional, honesto e leal)
Desta feita, é possível concluir que boa fé administrativa incide sobre
toda e qualquer disciplina processual da Administração Pública Direta e Indireta,
quer seja em nível federal, estadual, distrital, ou municipal.
As hipóteses que melhor retratam sua permeabilidade nesse campo,
sem prejuízo de outras, podem ser assim arroladas: a) no direito ao efetivo
contraditório; b) na vedação da aplicação retroativa de nova interpretação; c)
como elemento de ponderação à segurança jurídica, na questão do prazo
decadencial; d) na proibição da reformatio in pejus antes da cientificação do
interessado; e) na obrigação de conduta do administrado.
(a) A boa fé no direito ao efetivo contraditório.
São inúmeros os conceitos e dimensões sobre o direito ao contraditório,
sobretudo no campo do direito processual civil.
Em todas elas, o referido princípio também aparece ligado e como
conseqüência lógica da positivação do devido processo legal, conforme art. 5º,
incisos LIV e LV da Lei Fundamental.
Naquilo que nos interessa, que é a esfera do direito administrativo,
Sergio Ferraz e Adilson Abreu Dallari se ocuparam do tema de forma muito
profícua, pontuando-o nos seguintes termos:
136
“A instrução do processo deve ser contraditória. Isso significa que não
basta que a Administração Pública, por sua iniciativa e por seus meios, colha os
argumentos ou provas que lhe pareçam significativos para a defesa dos
interesses do particular. É essencial que ao interessado ou acusado seja dada a
possibilidade de produzir suas próprias razões e provas e, mais que isso, que
lhe seja dada a possibilidade de examinar e contestar os argumentos,
fundamentos e elementos probantes que lhe sejam desfavoráveis. O
princípio do contraditório exige um dialogo: a alternância das manifestações das
partes interessadas, durante a fase instrutória.” 130
De outra parte, o art. 3º, II e III, da Lei Federal 9.784/99, ao prescrever
que é direito do administrado ter ciência dos autos e das decisões, formular
alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de
consideração pelo órgão competente 131, também positiva o princípio do
contraditório no âmbito do processo administrativo federal.
De todo exposto, extraímos, sem sombra de dúvida, que a boa fé está
por trás de uma das facetas do contraditório, qual seja, a de proibir que a
Administração considere qualquer argumento, fato ou prova que seja
desfavorável ao administrado antes de lhe oportunizar o direito de conhecê-los
e/ou de se manifestar sobre eles.
130 Processo Administrativo, Malheiros, 2ª Edição, p. 92. 131 Art. 3º. O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: (...) II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;
137
E isto ocorre porque, se a boa fé veicula a obrigação de uma atuação
previsível pela Administração, é evidente que esta não poderá se valer de um
elemento novo em prejuízo do administrado, surpreendendo-o. Qualquer
atuação diversa daria ensejo a um comportamento inesperado – que é um
pecado mortal contra a boa fé.
Em suma, podemos dizer que a proibição do julgamento com base em
elemento novo não seria outra coisa senão o próprio componente de lealdade
contido no contraditório.
Daí porque a boa fé penetra no princípio do contraditório,
potencializando seu significado e alcance.
A atuação desconforme a esse padrão de boa fé dará ensejo,
evidentemente, a invalidação do ato, salvo se não houver decorrido prejuízo
algum contra o administrado.
(b) A boa fé na vedação da aplicação retroativa de nova interpretação.
No art. 2º, Parágrafo Único, inciso XIII, da Lei Federal 9.784/99, consta
outra projeção da boa fé, conforme se apura do seguinte comando: “Parágrafo
Único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o
atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova
interpretação.”.
Desta feita, a norma em comento protege nitidamente o princípio da
confiança de que a Administração, ao adotar uma certa interpretação, assim o
138
fará para os todos casos análogos, razão pela qual o administrado acredita num
comportamento esperado, numa conduta previsível.
A alteração da interpretação sedimentada provoca, por isso mesmo,
sobressalto indesejável, encarna conduta contraditória ao comportamento
anterior (venire contra factum proprium), efeito este que o Direito tende a
minimizar exatamente quando determina que a nova postura incida apenas em
casos futuros.
Tem-se, aqui, um excelente exemplo de veiculação da boa fé objetiva,
pois consubstanciada conforme uma pauta de comportamento pré-estabelecida
pelo ordenamento jurídico e que tem por finalidade proteger a confiança do
administrado na previsibilidade da atuação administrativa.
Ademais, salienta-se que nessa situação a boa fé se confundiria com a
proteção da segurança jurídica, o que não ocorrerá, contudo, em outras
passagens da mesma lei de processo administrativo federal, quando, em sentido
contrario, colocará estes mesmos princípios em choque e sopesamento. 132
(c) A boa fé como elemento de ponderação à segurança jurídica, na
questão do prazo decadencial.
A boa fé, como dito, ora pode incidir no processo administrativo como
elemento de ponderação à segurança jurídica.
132 Sobre a diferença entre boa fé e segurança jurídica, vide Cap. III, item 5.5.
139
O caso em concreto está contido no art. 54 da Lei Federal 9.874/99 133,
na medida em que este relativiza a segurança jurídica para evitar que um
terceiro de má-fé se aproveite do prazo decadencial.
Tem-se que o exemplo acima foi abordado de maneira mais detalhada
no Cap. III, item 5.5 (aqui, remetemos à leitura).
Sem embargo, reafirma-se que a segurança jurídica tem por finalidade
manter estabilizados os efeitos jurídicos já assimilados pela sociedade, a fim de
que o próprio Direito seja previsível. Daí porque estabelece prazos de
decadência e de prescrição. Já a boa fé nem sempre age nesse sentido.
Procura, muitas vezes, tutelar especialmente a conduta humana diante dos
deveres objetivos e subjetivos de verdade, lealdade, coerência, e assim, não
permite que determinado indivíduo (administrador ou administrado) venha se
valer de um comportamento desleal, inclusive para se aproveitar dos efeitos da
própria segurança jurídica.
(d) A boa fé na proibição da reformatio in pejus antes da cientificação do
interessado.
Nessa passagem da lei de processo administrativo, a lei federal nada
mais faz do que trazer um desdobramento especialíssimo da boa fé no princípio
do contraditório que foi objeto de comentário no item ‘a’.
133 Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé
140
Aqui, esta influenciará ainda mais o sentido e alcance do direito ao
contraditório pela inserção da regra disposta no art. 64, a qual proíbe o
julgamento gravoso em sede recursal (reformatio in pejus) antes que o
administrado seja cientificado e que formule suas alegações. 134
Tem-se, pois, que o administrado não poderá ser surpreendido com a
majoração de uma decisão desfavorável antes de saber exatamente sobre tal
possibilidade e antes que tenha o direito de se manifestar em defesa contra o
risco deste gravame.
Trata-se, portanto, de regra que faz valer o princípio da boa fé na
atividade administrativa processual, na medida em que protege o administrado
contra uma atuação inesperada e repentina do órgão recursal.
(e) A boa fé na obrigação de conduta do administrado
Diferente do que se ocorreu nos casos anteriores, a proteção da boa fé
no processo administrativo, pelo art. 4º, passa a se preordena a regular
especialmente a conduta do administrado. 135
134 Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência. Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão. 135 Art. 4o São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo: I - expor os fatos conforme a verdade; II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III - não agir de modo temerário; IV - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos.
141
Nele, a boa fé aparece como dever geral de postura do administrado
envolvido na relação processual. Aliás, todas as obrigações especialmente
arrolados ao lado da boa fé no art. 4º - I - expor os fatos conforme a verdade; II -
proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III - não agir de modo temerário IV -
prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos
fatos - são meras decorrências desta.
O influxo da boa fé nessa vertente se dará de forma objetiva e subjetiva.
Impedirá, nesse sentido, que a má-fé (subjetiva) seja meio para alcance
da decadência ou que o administrado se valha de prova falsa, da mesma
maneira em que obriga o administrado a prestar informações e colaborar com o
esclarecimento dos fatos, numa nítida posição de lealdade objetiva com a
Administração e com terceiros.
Esta situação demonstra, uma vez mais, a incrível profusão da boa fé
no regime jurídico de direito administrativo, reforçando a idéia de que o estudo
do tema – aqui não esgotado – jamais deveria ser amesquinhado.
4. A boa fé em face do exercício de competência vinculada e discricionária.
Em decorrência do princípio da legalidade, a atuação administrativa
pode ocorrer com maior ou menor grau de liberdade na escolha da alternativa
que melhor atenda o interesse público.
Daí decorrerá a existência de exercício de uma competência vinculada
ou discricionária, conforme o caso.
142
Celso Antônio averba com extrema lucidez: “No interior das fronteiras
decorrentes da dicção legal é que pode vicejar a liberdade administrativa. A lei,
todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta
para o administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma a ser
implementada prefigura antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os
pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este
obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista.
Nestes lanços diz-se que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser
expedido é vinculado.
Reversamente, fala-se em discricionariedade quando a disciplina legal
faz remanescer em proveito e a cargo do administrador uma certa esfera de
liberdade, perante o quê caber-lhe-á preencher com seu juízo subjetivo, pessoal,
o campo de indeterminação normativa, a fim de satisfazer no campo concreto a
finalidade da lei.” 136
Fica a seguinte lição do grande mestre: na vinculação, a conduta do
administrador é a mais objetiva possível, já que a lei predetermina apenas uma
alternativa; na discricionariedade, o exercício da competência comporta, diante
do caso concreto, margem de liberdade na atuação administrativa para eleger a
alternativa que satisfaça a finalidade legal.
Resta-nos, destarte, averiguar de que forma a boa fé interage diante do
exercício vinculado ou discricionário.
(a) No exercício de competência vinculada. 136 Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 25ª Edição, p. 247.
143
Como visto, a atuação administrativa se apresentará com uma única
alternativa possível.
Nessa conjectura, a boa fé no aspecto subjetivo será totalmente
irrelevante para o ato administrativo, pouco importando a intenção do agente
quando expediu o ato.
Um bom exemplo seria o exercício de competência no ato que declara a
aposentaria compulsória de um servidor público, ao completar setenta anos.
Com efeito, ainda que haja comprovado desejo de vingança pessoal pela
autoridade administrativa, a aposentadoria se imporá, de qualquer forma,
quando o servidor perseguido se enquadrar objetivamente no comando legal. 137
Já no aspecto objetivo, a boa fé incidiria de duas maneiras.
Quando a expedição do ato em competência vinculada não provocar o
efeito colateral de prejudicar terceiros, o dever da conduta administrativa
vinculada atenderá, ao mesmo tempo, o princípio da legalidade e da boa fé.
De outro turno, quando houver prejuízo de terceiros de boa fé, a
proteção à confiança legítima pode funcionar, num juízo concreto de
ponderação, como causa externa de afastamento para sua edição, ou ainda, no
caso do ato ser anulatório, poderá servir para manter seus efeitos estabilizados.
Relembre-se, nesse ínterim, da aprovação irregular de loteamento que
provoca, aos adquirentes de boa fé, a confiança legítima de que a atuação
administrativa era regular. Inobstante o ato de invalidação encerrar um exercício
137 Diz-se que a má-fé é irrelevante para o ato administrativo, uma vez que a conduta desonesta do administrador pode dar ensejo, é bem verdade, na apuração de responsabilidade pessoal por ofensa à moralidade e/ou improbidade.
144
de competência vinculada, já vimos que a jurisprudência, em prol da boa fé
destes terceiros, bloqueará a expedição do ato anulatório e determinará a
manutenção de seus efeitos. 138
Nessa linha, inclusive, caminha também a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, sendo pertinente citar dois casos emblemáticos.
No julgamento do MS 26.603, o STF decidiu que a infidelidade partidária
não se aplicaria aos casos já praticados antes da data em que o Tribunal
Superior Eleitoral apreciou a consulta n. 1.398/DF, tendo em vista que somente
a partir desta resposta é que se passou a rechaçar uma prática até então
reiterada. Invocou-se, na ocasião, a seguinte vertente da proteção à confiança:
“a subsistência dos atos administrativos e legislativos praticados pelos
parlamentares infiéis: conseqüência da aplicação da teoria da investidura
aparente”.
No julgamento do RE 197.917, o STF decidiu emitir nova interpretação
sobre a proporcionalidade entre população e número de vereadores,
determinando a redução do número de assentos na Câmara Municipal de um
determinado Município, o que teria efeito erga omnes. Contudo, em nítido juízo
de sopesamento entre os efeitos da legalidade e da boa fé, o STF fixou que a
regularização não poderia alcançar retroativamente aqueles Vereadores
138 Foi exatamente isto que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 141.879 / SP, cuja ementa e trecho do voto abaixo transcrevemos: “Loteamento. Pretensão de anulação. Boa-fé. A teoria dos atos próprios impede que a Administração Pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento.”
145
ocupantes das cadeiras em excesso que, de boa fé, confiavam na interpretação
em vigor dos Tribunais Eleitorais que os diplomaram.
O mesmo juízo de ponderação ainda pode ser verificado nas leis de
efeito concreto que concedem anistia a imóveis cujos requisitos para o
licenciamento da edificação não foram completamente atendidos, mas cuja
omissão administrativa, há muito tempo, provocou a estabilidade de relações e
efeitos a inúmeros administrados.
Nesse último exemplo, contudo, interessante anotar que a acepção da
boa fé na anistia não será tipicamente a tutela da confiança legítima numa
atuação administrativa regular, tal como ocorreu nos casos acima. Em rigor, ela
decorreria simplesmente da proteção dos administrados diante da maneira que a
Administração atua de forma consolidada e há muito tempo. Aqui, o que se
busca evitar é a apenas a incoerência da postura administrativa, no sentido de
promover o saneamento de uma situação há muito tempo admitida e cujos
efeitos da invalidação repentina trariam ainda mais insegurança jurídica.
Noutras situações, entretanto, é fundamental deixar claro que esse
mesmo juízo de ponderação não recomendaria a prevalência pelo vetor da boa
fé como causa excludente da invalidação do ato ou até mesmo da manutenção
de seus efeitos.
Ora, suponha-se a aprovação irregular de loteamento em “área de
risco”, ou seja, em local cujas normas de engenharia não permitiram qualquer
edificação, sob pena de deslizamento ou desabamento. Nesta situação,
146
evidentemente que a proteção à confiança não poderá excluir o ato de
invalidação.
Logo, de todo exposto é possível concluir que a boa fé incide
objetivamente no exercício de competência vinculada, sendo que o critério de
eleição em favor desta ou da legalidade será, como sempre, o juízo de
proporcionalidade no caso concreto. 139
(b) No exercício de competência discricionária.
Neste tipo de atuação administrativa, a boa fé incide em todas as suas
formas, sobretudo no aspecto subjetivo.
Isto porque, tratando-se de exercício de competência no qual o
administrador exerce juízo pessoal para definir o ato administrativo, o aspecto
subjetivo de sua conduta também será, por obvio, mais relevante.
Imaginemos a revogação de um convênio com determinada entidade
sem fins lucrativos e que tinha por objeto o repasse de verbas para
desenvolvimento de projetos sociais, com a justificativa de destinar o recurso
para outros projetos que, segundo juízo de oportunidade e conveniência do
administrador, melhor atenderiam o interesse público. É certo que, não havendo
uma zona de certeza a recomendar a continuidade do convênio como a melhor
forma de atender o interesse público, ter-se-ia típico exercício de competência
discricionária.
139 O juízo de proporcionalidade é explicado no Cap. III, item 5.2.
147
Ocorre, entretanto, que havendo comprovação de que a revogação do
ajuste foi motivada por questões de foro interno, como, por exemplo, para
prejudicar a entidade gerida por grupo político adversário, a intenção do agente
será relevante para determinar a anulação do ato, e tudo isso ocorreria mesmo
que a alternativa eleita também pudesse atender a reclamos legítimos.
Na hipótese, é evidente que a proteção da boa fé subjetiva impedirá que
a entidade conveniada seja substituída em decorrência de ato doloso da
autoridade administrativa. O Direito, aqui, rechaça a má-fé da maneira mais
veemente possível.
De outro lado, o exercício de competência discricionária também poderá
ser sindicado no plano da boa fé objetiva. Nesse mister, a regra do controle seria
a mesma que autoriza a intervenção judicial quando o ato discricionário
transborda os postulados da razoabilidade e proporcionalidade, e assim viola,
por excesso, todo e qualquer princípio do regime de direito administrativo.
Nesse sentido, mostram-se perfeitamente válidas as ilações de Juarez
Freitas, em obra dedicada ao controle da discricionariedade:
“Existe discricionariedade administrativa imune a controle? Existe ato
exclusivamente político cujo controle seria defeso ao Poder Judiciário? Não, pois
é inarredável a vinculação aos princípios e direitos fundamentais. Ao menos
negativamente, o controle latu sensu precisa sindicar, em fundo calado, os vícios
decorrentes de excessos, desvios e insuficiências no exercício de competências
administrativas. Não fosse assim, o ato exclusivamente político e não-sindicável
orbitaria num espaço do juridicamente irrelevante, o que se mostrou sem
148
sentido. Nesses termos, o controle não será total, sob pena de ser usurpatório,
mas os vícios decorrentes da inadequação sistêmica serão sempre
controláveis.”140
Logo, ainda que o gestor público, em competência discricionária, não
tenha agido dolosamente, mas apenas desproporcionalmente, o dever de boa fé
na melhor acepção do comportamento esperado no exercício de função
administrativa impedirá, por óbvio, sua atuação além do mínimo necessário,
sobretudo quando esse excesso provoca lesão a terceiros que seria
desnecessária.
Deveras, de todo exposto, pode-se bem extrair a magnitude do princípio
da boa fé no direito administrativo, bem como sua alta carga de permeabilidade
nesse regime, a qual incide com diversas facetas no exercício de competência
vinculada ou discricionária.
5. A boa fé nos contratos administrativos.
5.1. Contratos da Administração e Contratos Administrativos.
A Administração Pública estabelece, como ente capaz de gerar direitos
e obrigações, diversas relações contratuais que podem estar submetidas ao
regime civil ou administrativo.141
140 Discricionariedade Administrativa e o Direitos Fundamental à Boa Administração, Malheiros, 2007, p. 123.
149
Partindo desta premissa, e ainda que haja divergência a respeito, adota-
se a definição de Maria Sylvia Zanella di Pietro, segundo a qual “A expressão
contratos da Administração é utilizada, em sentido amplo, para abranger todos
os contratos celebrados pela Administração Pública, seja sob regime de direito
público, seja sob regime de direito privado. E a expressão contrato
administrativo é reservada para designar tão somente os ajustes que a
Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas ou jurídicas,
públicas ou privadas, para a consecução de fins públicos, segundo regime
jurídico de direito público.”. 142
Assim, para os fins deste trabalho, interessa anotar que o Poder
Público poderá estar numa relação contratual onde impera o regime privado
(chamada simplesmente de contrato da Administração), ou o regime público
(chamada de contrato administrativo).
E isso tudo será extremante relevante para definirmos a boa fé
aplicável, pois, sendo a boa fé um princípio geral de direito, mas projetada de
forma peculiar em cada regime jurídico, chega-se a conclusão inexorável de que
nos contratos administrativos impera a boa fé administrativa enquanto que nos
demais contratos vigora a boa fé comum ao direito civil (esse ponto de vista
também foi sustentado no Cap. I, itens 4 e 5).
141 Exemplo de que a Administração celebra contratos sob regime do direito civil está no inciso I, do §3º, do art. 62, da Lei Federal 8.666/93, o qual prescreve que os contratos de seguro, financiamento e locação na posição de locatário detém conteúdo, predominantemente, de direito privado. 142 Direito Administrativo, 23ª Edição, Editora Atlas, p. 251.
150
Interessa-nos, destarte, analisar mais detidamente a boa fé projetada
nos chamados “contratos administrativos”, os quais são submetidos ao regime
de direito público de que trata basicamente a Lei Federal 8.666/93.
5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93.
São inúmeras as passagens da boa fé administrativa nos contratos
regidos pela Lei Federal 8.666/93.
(a) Exigência de vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a
dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta do licitante.
Consta no art. 55, X, da citada lei, que a Administração deverá
estabelecer cláusula que disponham sobre a exigência de vinculação ao edital
de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta
do licitante.
Tal mandamento representa clara expressão do dever de boa fé
administrativa, na medida em que obriga a Administração agir de forma coerente
diante das regras da licitação que pré-estabeleceu e até mesmo com os
licitantes que participaram do certame sem sucesso. Explico.
Quando o Poder Público define o objeto contratual no Projeto Básico
para colocá-lo em disputa (art. 7º, §2º, I), em cima dele estabelece as regras de
151
habilitação e de elaboração de propostas, sobre as quais (e apenas sobre as
quais) os licitantes poderão ser igualmente comparados e avaliados.
Logo, a manutenção das regras do edital (ou do termo equivalente) e da
proposta, no instrumento contratual, são fundamentais para que a conduta
administrativa seja coerente com o procedimento de escolha do contratado.
Em caso contrário, a Administração produziria uma licitação pública
absolutamente desleal, no qual as regras do jogo seriam meramente “cortinas de
fumaça”, porquanto totalmente desvinculadas daquilo que realmente se
pretendia contratar.
No mesmo sentido, o dever de vinculação ao ato convocatório é bem
retratado por Marçal Justen Filho, em obra dedicada a “Licitações e Contratos
Administrativos”, pelo que vejamos: “O contrato administrativo filia-se ao ato que
lhe deu origem. Haja ou não licitação formal, o contrato é produto de atos
anteriores, que lhe dão determinada configuração. Por isso, todo contrato deve
ser interpretado em consonância com o ato convocatório da licitação ou com as
condições norteadoras da dispensa ou inexigibilidade da licitação.” 143
Daí porque incide o dever de boa fé, determinando um comportamento
esperado na fase contratual fidedigno e vinculado àquele adotado na fase pré-
contratual.
Sua projeção ocorreria tanto no aspecto subjetivo e/ou objetivo, ou seja,
independentemente da presença de dolo na conduta do agente quando, na fase
contratual, resolveu se desvincular do procedimento de escolha.
143 Comentários à Lei de Licitação e Contratos Administrativos, Dialética, 11ª Edição, p. 495.
152
Interessante anotar ainda que este dever de vinculação é típico da
pauta de valores especialmente projetada pela boa fé administrativa, já que, no
campo do direito civil não seria possível obrigar o particular, nesses termos, a
firmar contratos com base nos procedimento internos de seleção, em razão do
princípio da liberdade de escolha que ali vigora.
(b) A boa fé na obrigação do contratado em manter, durante a fase
contratual, as mesmas condições de habilitação e qualificação exigidas na
licitação.
A regra é decorrente da obrigação prevista no art. 55, XIII, da citada Lei
Federal 8.666/93. Volta-se ao dever de boa fé do contratado. Com efeito,
espera-se daquele que se dispõe a contratar com o Poder Público que ostente
capacidade não apenas para vencer uma licitação, mas efetivamente para
executar o contrato durante toda sua vigência.
Atentaria contra o dever de boa fé admitir que um licitante pudesse, com
a finalidade única de vencer o certame, apresentar qualificações apenas naquele
momento, para, em seguida, delas abrir mão e assim provocar risco de
descontinuidade na prestação em que se obrigou atender.
A norma em comento encarna, nessa seara, a boa fé objetiva e
subjetiva, protegendo não apenas a Administração como contratante, mas
também a toda sociedade que espera do contratado que honre as condições de
executar o pacto cuja finalidade é o próprio interesse público.
153
(c) A boa fé na anulação do contrato administrativo.
O art. 59, parágrafo único, da Lei Federal nº 8.666/93 ao mesmo tempo
em que prevê a anulação dos contratos administrativos – em nítido atendimento ao
princípio da legalidade – põe a salvo o contratado quando lhe garante o direito à
indenização do que houver executado.
Eis o precitado dispositivo: Art. 59. A declaração de nulidade do contrato
administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele,
ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos. Parágrafo
único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o
contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e
por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja
imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
Nesses termos, a boa fé seria o termômetro de que o Direito precisa
para minimizar ou não os efeitos jurídicos da anulação contratual, concedendo
ou negando o pleito indenizatório. Se a causa da nulidade não for imputável ao
contratado, significa que este agiu de boa fé no curso contratual e, portanto, não
poderá ser prejudicado patrimonialmente pelos efeitos da regularização de uma
legalidade ferida. De outro lado, se a causa lhe for atribuível, por presunção
legal desapareceria a boa fé, e, assim, o ordenamento passaria a lhe punir com
a perda do direito à indenização.
Tem-se, na hipótese, dupla incidência da boa fé, objetiva e/ou subjetiva.
Uma em prol do contratado, ao proibir que a Administração se escuse do dever
154
indenizatório quando o motivo da nulidade é sua própria torpeza. E outra em prol
da sociedade, ao proibir que o contratado venha a fruir de verba reparatória
mediante ilegalidade que ele próprio provoca ou que, ao menos, concorre.
Sensível a este cenário, a jurisprudência hodierna do Superior Tribunal
de Justiça já vem reconhecendo na boa fé o fundamento por de trás do
parágrafo único do art. 59, conforme exposto na ementa do julgado abaixo
colacionado.
REsp 547196 / DF. RECURSO ESPECIAL 2003/0019993-2. Relator(a)
Ministro LUIZ FUX (1122). Data do Julgamento 06/04/2006. Data da
Publicação/Fonte DJ 04/05/2006 p. 134. REPDJ 19/06/2006 p. 100. RDR vol.
40 p. 220.
2. Alegação de invalidade pela própria parte que o engendrou, resultando na
violação do princípio que veda a invocação da própria torpeza ensejadora de
enriquecimento sem causa.
3. Acudindo o terceiro de boa-fé aos reclamos do Estado e investindo em prol
dos desígnios deste, a anulação do contrato administrativo quando o
contratado realizou gastos relativos à avença, implica no dever do seu
ressarcimento pela Administração. Princípio consagrado na novel legislação
de licitação (art. 59, Parágrafo Único, da Lei n.º 8.666/93).
(d) A boa fé na manutenção da equação econômico-financeira.
155
Nesse tópico, talvez temos a incidência mais relevante do dever de boa
fé na relação jurídica contratual regida sob o direito público.
De início, cumpre assinalar que o regime jurídico caracterizador de um
contrato firmado pela Administração como espécie de contrato administrativo
reside na possibilidade legal que é conferida ao gestor público no sentido de
desestabilizar unilateralmente as cláusulas inicialmente ajustadas – em oposição
ao preceito civilista do pacta sunt servanta. 144
Tais prerrogativas são denominadas de “cláusulas exorbitantes” e estão
previstas no art. 58 da citada lei, conferindo o direito ao Poder Público de
unilateralmente modificar e rescindir o contrato, dentre outros poderes.145
Assim sendo, permite-se institucionalmente ao Estado, como parte na
relação contratual, afetar o princípio da boa fé, uma vez que seria defeso à parte
contrária exigir seu componente fundamental, qual seja, um comportamento
previsível de que manterá a conduta inicial tal como se obrigou.
Entretanto, aí é que entraria, como contrapeso à insegurança causada
pela “cláusula exorbitante”, o direito à manutenção do chamado equilíbrio
econômico-financeiro, isto é, do dever de preservar em toda execução
contratual, com ou sem alteração unilateral, a mesma proporção entre os
encargos e o lucro da proposta inicial do contratado.
144 Celso Antônio Bandeira de Mello anota que a doutrina praticamente unânime reconhece esses traços como sendo caracterizadores do chamado “contrato administrativo”, reconhecendo-lhe as mesmas características que lhes são imputadas no Direito francês (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 612). 145 Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei;
156
Tal preceito está expressamente previsto em nível constitucional (art.
37, XXI) 146 e legal (art. 58, §§ 1º e 2º, da Lei 8.666/93) 147, o qual, como
verdadeiro limitador no uso dos poderes exorbitantes pela Administração,
obrigará a revisão proporcional e eqüitativa do valor contratual.
Em outras palavras, podemos dizer que a lei garante o direito de
alteração unilateral, o que gera insegurança e incoerência de conduta por si só,
mas garante, como contrapeso, a intangibilidade da condição econômica
inicialmente estabelecida.
Daí sustentar que o direito à manutenção do equilíbrio econômico-
financeiro encontra fundamento na boa fé, no sentido de proteger
patrimonialmente o contratado diante da imprevisibilidade administrativa.
Nesse sentido, intuitivamente já assinalava Celso Antônio: “Com efeito,
o Estado não é especulador e não se pode converter em explorador ganancioso.
Em relação que pressupõe um voluntário atrelamento de vontades
convergentes, onde primam os deveres de lealdade e boa fé, descabe à
Administração procurar esquivar-se ao dever de restaurar o equilíbrio econômico
segundo cujos termos obteve a vinculação espontânea de outrem”. 148
146 XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. 147 §1º. As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado. § 2º. Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual. 148 Contratos administrativo: fundamentos da preservação do equilíbrio econômico-financeiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 211, p. 26, jan/mar 1998.
157
A posição acima ainda é reforçada pelo escólio de Edilson Pereira
Nobre Junior: “A consagração constitucional e legal do equilíbrio econômico-
financeiro dos contratos administrativos, de fundo moral, encontra, sem dúvida,
respaldo no princípio que impõe à Administração agir segundo a boa-fé. (...) Não
se nega, de forma alguma, a competência da Administração, tradicionalmente
reconhecida sob a denominação de cláusulas exorbitantes, em determinar a
rescisão unilateral dos contratos administrativos. Recomenda-se, ao revês, que
seja precedida de maneira equitativa, pena de enfrentar a boa-fé.” 149
E, por derradeiro, vale citar a posição do STJ no curso do julgamento do
RMS 1694/RS, conforme sua ementa a seguir transcrita: “ADMINISTRATIVO -
CONTRATO DE ESTÁGIO EM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE SAÚDE
PÚBLICA - REMUNERAÇÃO VINCULADA A DOS RESIDENTES MEDICOS - BOA-FÉ
- EQUILÍBRIO ECONÔMICO - CONGELAMENTO - SE O ESTADO, EM CONTRATO
FIRMADO COM ESTAGIÁRIOS, LHES PROMETE REMUNERAÇÃO IGUAL A QUE
PAGA AOS MÉDICOS RESIDENTES, NÃO PODE, NO CURSO DO CONTRATO
ROMPER ESTA IGUALDADE, EM DETRIMENTO AOS ESTAGIÁRIOS. OS
CONTRATOS ADMINISTRATIVOS NÃO ESTÃO IMUNES AOS PRINCÍPIOS DA BOA-
FÉ E DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO.”
(e) A boa fé na aplicação de penalidades decorrentes do contrato
administrativo.
149 Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Editora Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 215/217.
158
A Lei Federal 8.666/93 estabelece que a inexecução total ou parcial do
contratado poderá acarretar, além de sua rescisão, na aplicação de penalidades
administrativas.
A disciplina está contida nos artigos 87 e 88, os quais prevêem as
seguintes sanções: a) advertência; b) multa, c) suspensão temporária de
participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por
prazo não superior a 2 (dois) anos; d) e declaração de inidoneidade para licitar
ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos
determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a
própria autoridade que aplicou a penalidade. 150
150 Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: I - advertência; II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior. § 1º Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente. § 2º As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias úteis. § 3º A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação. Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei: I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos; II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação; III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.
159
Diante deste quadro, pois, será possível traçar algumas projeções da
boa fé administrativa.
De início, assevera-se que uma das finalidades da aplicação da
penalidades administrativas consiste em registrar o histórico comportamental
daqueles que contratam com o Poder Público. E isto ocorre porque o elemento
confiança, fundamental na relação contratual, desapareceria por completo
quando, pelos registros anteriores, não se poderia mais esperar uma conduta
idônea do promitente executor do pacto.
Nessa alçada, é evidente que a boa fé incide como requisito da
contratação administrativa.
Noutro pólo, a boa fé funcionaria como elemento valorativo para a
Administração exercer o juízo de proporcionalidade na aplicação e na dosimetria
das penalidades.
Como visto, o direito protege o inocente e repulsa a má-fé em diversas
situações, e isto também ocorre na regência dos contratos administrativos.
Destarte, quando a inexecução contratual ocorrer sem a presença da má-fé, a
conseqüência será a eleição de pena mais branda ou até mesmo a exclusão
sancionadora pela irrelevância do comportamento reprovável. E o contrário
também produziria o efeito de valorar o comportamento ofensivo como mais
grave e punível com maior rigor.
Hodiernamente, o entendimento acima encontra ressonância pela
jurisprudência, e um dos exemplos que melhor retrata a posição ora defendida
160
está no julgamento recente do REsp 914087 (DJ 29/10/2007, p. 190), pelo
Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa assim se destaca:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO
DO ART. 87 DA LEI N. 8.666/93.
1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau
assim ementado (fls. 186): DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO
ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE
ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/93. MANDADO DE SEGURANÇA.
RAZOABILIDADE.
2. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade
militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em
licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os
produtos contratados.
3. O art. 87, da Lei nº 8.666/93, não estabelece critérios claros e objetivos
acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por
óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro
incisos do dispositivo legal.
3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais
relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade,
fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato,
inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem
perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser
informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade
no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual.
161
4. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade
aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87,
da Lei nº 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade,
adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do
contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.
5. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas.
162
PARTE III – CONCLUSÃO
Concebendo o Direito de forma sistemática, gravitam em sua órbita e se
inter-relacionam postulados lógicos e normas jurídicas, as quais consubstanciam
regras fechadas de comportamento bem como princípios, sendo estes últimos
veículos abertos que carregam valores penetráveis em todo ordenamento ou a
um determinado regime jurídico.
A boa fé consiste num importante princípio axiológico, que se espraia
em todo ordenamento e também no regime jurídico de direito administrativo.
Contudo, percebe-se que ainda faltam pela doutrina estudos
aprofundados sobre o fenômeno de sua incidência no direito administrativo,
carecendo de metodologia que a descreva aprioristicamente como objeto da
filosofia e da história do direito, que a transporte no regime jurídico de direito
administrativo, e, a partir daí, que se estabeleçam suas diferenças com outros
institutos (pois somente assim seria possível lhe conferir autonomia científica), e,
por fim, que sejam identificadas suas principais aplicações e desdobramentos na
prática jurídica.
Pretendeu-se nesse trabalho, portanto, resgatar as origens da boa fé
para depois analisá-la dentro da esfera do direito administrativo.
No campo da filosofia, os gregos, a fim de minimizar os riscos da
imprevisibilidade da conduta humana (o que atentava contra a vida em
sociedade), conceberam a boa fé como objeto de proteção à promessa, e,
163
portanto, impondo a necessidade da coerência entre a palavra e a ação futura
de cada membro da sociedade. Esse foi germe da boa fé subjetiva.
Avançando sobre o tema, os gregos ainda perceberam que o registro
dos comportamentos na chamada “teia de relações” (conforme a nomenclatura
batizada por Hannah Arendt) permitia, depois de um certo tempo de
observações, identificar certos arquétipos constantes e virtuosos da conduta
humana, os quais deveriam ser praticados pelos membros da sociedade
independentemente de sua vontade. Teciam-se, assim, as primeiras idéias da
boa fé também no seu aspecto objetivo.
Posteriormente, a boa fé passa pela história do direito, se tornando
protagonista no direito romano, que a insere no campo do direito civil, e depois
no direito germânico, que aperfeiçoa seu aspecto objetivo. Seus traços
conceituais, contudo, são os mesmos apreendidos pela filosofia grega.
No Direito Brasileiro, é positivada inicialmente como princípio do direito
civil pelo Código de 1916, mas no aspecto subjetivo. Como princípio geral de
direito, tem início pela Constituição Republicana de 1988, ao tratar do dever de
solidariedade em contraposição às liberdades absolutas. Já em 2002, o Código
Civil a traz de forma abrangente, reproduzindo as principais regras subjetivas e
objetivas da doutrina alemã.
No campo do direito administrativo, tal princípio surge como
conseqüência lógica desse regime jurídico, o qual se baseia num conjunto de
regras e princípios regulador da relação de administração de quem tutela
interesse público indisponível.
164
Assim, se o direito administrativo hodierno funda-se na delegação de
poder do povo para o Estado numa perfeita relação de administração (art. 1º,
parágrafo único, da CF), inegável seria reconhecer que, nessa situação de mero
representante e guardião do interesse coletivo, o dever de boa fé, isto é, o de
corresponder à confiança depositada na tutela de interesse que não lhe
pertence, consiste num princípio fundamental para o exercício da atividade
administrativa.
Por todas essas razões, a boa fé no direito administrativo é influenciada
e colorida singularmente em relação à sua projeção nos outros ramos do direito.
Apresenta conceito próprio que assim pode ser sintetizado: dever de
corresponder à confiança depositada pelo cidadão na tutela do interesse
público, conforme os padrões de conduta exigidos e juridicizados pela
sociedade numa relação de espaço-tempo.
Abrange as acepções objetiva e subjetiva. Por isso inclui a proteção à
confiança, bem como os deveres éticos de fidelidade, lealdade, veracidade e
honestidade, tanto numa relação jurídica especial como, fora dela, diante da
sociedade como um todo.
A boa fé administrativa também adquire propriedade científica quando é
possível diferenciá-la de outros institutos afins, o que justifica ainda mais a
necessidade de seu estudo analítico. Dentre os conceitos diferenciados estão o
desvio de poder, a proporcionalidade, a moralidade, a improbidade, a segurança
jurídica e o dever de boa administração.
165
Por se tratar de princípio com alto grau de abstração, seu âmbito de
incidência na atividade administrativa é muito fértil, sendo infinitas as
possibilidades fáticas nas quais a boa fé pode figurar.
As atividades mais relevantes para o influxo da boa fé e que foram
abordadas neste trabalho dizem respeito ao ato, processo e contrato
administrativos, bem como diante do exercício de competências vinculadas e
discricionárias.
O magno princípio poderá funcionar como motivo bastante para
determinar a invalidação dos atos praticados pela Administração Pública, bem
como para impor sua manutenção ou preservação de seus efeitos.
E tudo isso pode ser constatado nas atividades acima arroladas e ainda
em outras que a dinâmica do direito combinada com a evolução da sociedade
podem revelar.
Daí porque a conclusão final que se pode estabelecer é a de que a boa
fé consiste num princípio fundamental também para o direito administrativo,
sendo notável e extremamente permeável seu âmbito de aplicação. Ademais,
encontra cada dia mais respaldo pela jurisprudência brasileira.
Urge, por tais evidências, sua assimilação ordenada e sistematizada
pelos cultores do direito administrativo, tarefa da qual este trabalho,
modestamente, procurou contribuir.
166
PARTE IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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