Download - A Construção Dos Numeros
Universidade Federal de São Carlos
Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia
Departamento de Matemática
A construção dos números
Autora: Gabriela Maria Machado
Orientador: Luiz Hartmann
Disciplina: Trabalho de Conclusão do Curso
Curso: Licenciatura em Matemática
Professores Responsáveis: Karina Schiabel SilvaSadao MassagoVera Lúcia Carbone
São Carlos, 13 de Março de 2014.
A construção dos números
Autora: Gabriela Maria Machado
Orientador: Luiz Hartmann
Disciplina: Trabalho de Conclusão do Curso
Curso: Licenciatura em Matemática
Professores Responsáveis: Karina Schiabel SilvaSadao MassagoVera Lúcia Carbone
Instituição: Universidade Federal de São CarlosCentro de Ciências Exatas e de TecnologiaDepartamento de Matemática
São Carlos, 13 de Março de 2014.
Gabriela Maria Machado(aluna)
Luiz Hartmann (orientador)
À vida e ao amor.
Agradecimentos
Agradeço,
À minha família (minha mãe Maria José, meu pai Geraldo, meus irmãos, Cristina, Ricardo
e Arenildo e meu a�lhado Arthur), pela devoção e suporte desde sempre.
À XDani, por toda dedicação, companheirismo, paciência e estímulo que tornaram possível
esta realização.
Aos meus amados amigos, pela partilha de toda e qualquer emoção.
À todos os professores, pela contribuição à minha formação.
Em especial, ao Professor Hartmann, pela con�ança, oportunidade de aprendizado e exce-
lente forma de �ndar meu curso e à Professora Liane, que muito contribuiu e ajudou durante
todo o trabalho.
Conteúdo
1 Considerações Iniciais 6
1.1 Relações de Equivalência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
2 Números Naturais 15
2.1 Axiomas de Peano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
2.2 Adição de elementos de A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
2.3 Multiplicação dos Números Naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
2.4 Relação de ordem em N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
3 Números Inteiros 30
3.1 Relação de Equivalência em N× N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
3.2 Adição de números inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
3.3 Multiplicação dos inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
3.4 Relação de Ordem em Z . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
3.5 Conjuntos enumeráveis e a Hipótese do Contínuo . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
4 Números Racionais 50
4.1 Construção dos números racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
4.2 Operações em Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
4.3 Relação de Ordem em Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
5 Números Reais 64
5.1 Cortes de Dedekind . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
5.2 Relação de ordem em C . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
5.3 Operações em C . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
5.4 Representação decimal dos números reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
5.5 R não é enumerável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
6 Números Complexos 89
6.1 Construção dos complexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
6.2 C não é ordenável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
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Resumo
Apresentamos a construção dos conjuntos numéricos, com o enfoque voltado para o ensino
e formação de um educador com todo o rigor matemá�co necessário. Foram desenvolvidas as
construções dos números inteiros, dos racionais, dos reais e dos complexos a partir do conjunto
dos números naturais, este introduzido através dos axiomas de Peano.
Introdução
A noção de número e suas generalizações estão intimamente ligadas à história da humani-
dade. E a própria vida está impregnada de matemática. Grande parte das comparações que
o homem formula, assim como gestos e atitudes cotidianas, aludem conscientemente ou não
a juízos aritméticos e propriedades geométricas. Sem esquecer que a ciência, a indústria e o
comércio nos colocam em permanente contato com o amplo mundo da matemática.
Em todas as épocas da evolução humana, mesmo nas mais atrasadas, encontra-se no homem
o sentido do número. Esta faculdade lhe permite reconhecer que algo muda em uma pequena
coleção (por exemplo, seus �lhos, ou suas ovelhas) quando, sem seu conhecimento direto, um
objeto tenha sido retirado ou acrescentado.
O primeiro estudo esquemático dos números como abstração é comumente atribuído aos
�lósofos gregos Pitágoras e Arquimedes. Entretanto, estudos independentes também ocorreram
por volta do mesmo período na Índia, China, e Mesoamérica.
Os números naturais e as frações têm sua origem das atividades de contagem e medida, o
que talvez tenha levado os membros da escola pitagórica a postularem que na natureza tudo
é número devido acreditarem que tudo podia ser contado, logo atribuído um número, e que a
qualquer medida também se poderia atribuir um número ou uma razão entre números.
Iniciamos o trabalho fazendo uma abordagem ao conceito de relação de equivalência, dado
que foi bastante usado no decorrer dos estudos. Para isto, introduzimos os conceitos de partes
de um conjunto, de�nição de par ordenado, produto cartesiano, de�nição de operação, assim
como conceito de relação.
Fizemos a formalização no conjunto dos naturais através dos Axiomas de Peano, conside-
rando o zero como um número natural. Assumimos que existe um conjunto satisfazendo tais
axiomas e fomalizamos todas as propriedade, demonstrando-as através dos Axiomas. Após
isto, denotamos este conjunto por N e chamamos de Naturais. O que �zemos, foi formalizar e
demonstrar rigorosamente o que já sabíamos intuitivamente desde o Ensino Básico, seguindo a
construção consistente que foi desenvolvida no século XIX por Giuseppe Peano.
Richard Dedekind (1831-1916) estabeleceu uma relação de equivalência entre pares ordena-
dos de números naturais e fez referência da subtração como inversa da adição: a − b = c − d,logo a+ d = b+ d. Dedekind demonstrou que esta relação é de equivalência, e que o conjunto
das classes de equivalência é o conjunto dos números inteiros. Na construção dos inteiros que
�zemos neste trabalho, utilizamos esta construção, de forma que, de�nimos um inteiro como
uma classe de equivalência e o conjunto dos números inteiros como o conjunto dessas classes de
equivalência.
A construção dos racionais é feita a partir do mesmo raciocínio que os inteiros, utilizando o
3
conceito de relação de equivalência, mas esta construção se da de forma mais rápida do que a
dos inteiros, por ter muitas consequências diretas deste.
A construção dos números reais feita neste trabalho foi baseada na construção feita por
Dedekind, através dos chamados Corte de Dedekind, que considera o conjunto de todos os
cortes, de�nindo a adição e a multiplicação nele e, em seguida, mostrando que ele possui as
propriedades aritméticas deQ e mais uma propriedade queQ não possui, a chamada completude
dos reais.
Por �m, mas não menos importante, a construção dos números complexos, que foram de�-
nidos como pares ordenados de números reais e, a partir disto, foram provadas todas as propri-
edades aritméticas, mostrando que o conjunto dos números comeplexos possui uma estrutura
de corpo, assim como os reais e racionais, mas possuindo uma grande diferença dos anteriores,
pois não possui uma relação de ordem.
Estas construções provêm de estudos de matemáticos do século XIX e início do século XX
que foram em busca dos fundamentos da matemática acumulados até a época, principalmente
a partir de cálculo diferencial e integral de Newton e Leibniz, no século XVII.
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Capítulo 1
Considerações Iniciais
No decorrer deste trabalho lidaremos diretamente com o conceito de relação de equivalência,
por isso faremos uma abordagem tratando desta questão. Trabalharemos com conceitos prévios
e com a noção intuitiva de conjuntos durante todo o trabalho e, em particular neste capítulo,
trabalharemos intuitivamente com os conjunto numéricos e as propriedades básicas de suas
operações, lembrando que estudaremos o conceito rigoroso desses conjuntos numéricos nos
capítulos seguintes.
Utilizaremos, usualmente, N, Z, Q, R e C para representar os conjuntos dos números natu-
rais, inteiros, racionais, reais e complexos, respectivamente.
1.1 Relações de Equivalência
De�nição 1.1.1. Dado um conjunto A qualquer, o conjunto das partes de A, ou conjunto
potência de A, denotado por P(A), é o conjunto cujos elementos são todos os subconjuntos de
A.
Seguem alguns exemplos:
Exemplo 1.1.2.
1. Se A = {a, b}, então P(A) = {∅, {a}, {b}, A};
2. Se A = {1, 2, 3}, então P(A) = {∅, {1}, {2}, {3}, {1, 2}, {1, 3}, {2, 3}, A};
3. Se A = ∅, então P(A) = {∅}, pois o ∅ é o único subconjunto de A;
4. Se A = P({1}), então A = {∅, {1}}, logo, P(A) = {∅, {∅}, {{1}}, A}.
De�nição 1.1.3. Seja A um conjunto não vazio com a, b ∈ A. De�nimos o par ordenado (a, b)
como sendo o conjunto {{a}, {a, b}}.Observação: (a, b) ⊂ P(A).
Desde o Ensino Fundamental consideramos um par ordenado como um par de objetos onde a
ordem tem importância. A de�nição acima formaliza matematicamente esta ideia intuitiva. O
teorema seguinte mostra que um par ordenado é exatamente o que idealizamos intuitivamente.
Teorema 1.1.4. Seja A um conjunto onde a, b, c, d ∈ A. Temos que:
6
(a, b) = (c, d)⇔ a = c e b = d
Demonstração.
(⇐) Suponhamos a = c e b = d. Dessa forma, é claro que (a, b) = (c, d).
(⇒) Seja, agora, (a, b) = (c, d), isto é, {{a}, {a, b}} = {{c}, {c, d}}. Temos assim, dois casos:
• a = b.
Nesta situação (a, b) = (a, a) = {{a}, {a, a}} = {{a}, {a}} = {{a}}. Dessa forma,
{{a}} = {{c}, {c, d}}, ou seja, {c} = {a} e {c, d} = {a}. Assim, c = a e d = a.
Como a = b, obtemos a = c = b = d.
• a 6= b.
Por hipótese {{a}, {a, b}} = {{c}, {c, d}}. Se {a, b} = {c}, então, a = b = c, contradi-
zendo a hipótese a 6= b. Logo, {a, b} = {c, d}, o que acarreta c 6= d. Disso, concluímos
que {a} não pode ser igual a {c, d}, logo, {a} = {c}, ou seja, a = c. Já concluímos que
{a, b} = {c, d}, a 6= b, c 6= d, de onde segue que b = d.
�
De�nição 1.1.5. Seja A um conjunto qualquer. De�nimos o produto cartesiano de A por A,
denotado por A×A, como o conjunto de todos os pares ordenados compostos por elementos de
A, isto é, A× A = {(x, y) | x, y ∈ A}.
Seguem alguns exemplos:
Exemplo 1.1.6.
1. Se A = {a, b} então A× A = {(a, a), (b, b), (a, b), (b, a)}
2. Se A = ∅, então A× A = ∅
3. Se A = {a1, a2, a3, . . . , an}, tem n elementos, A × A possui n2 elementos, pois, tem-se n
possilidades para o primeiro elemento do par ordenado e n para o segundo.
De�nição 1.1.7. Dados dois conjuntos A e B, se x ∈ A e y ∈ B, então x, y ∈ A ∪ B.De�nimos o produto cartesiano de A por B como sendo o conjunto A× B = {(x, y) | x ∈ A e
y ∈ B}.Observação: (x, y) = {{x}, {x, y}} ⊂ P(A ∪ B), pois, como x, y ∈ A ∪ B, obviamente,
{x}, {x, y} ∈ P(A ∪B)
A seguir temos alguns exemplos:
Exemplo 1.1.8.
1. Seja A = {x} e B = {y}. Temos que A × B = {(x, y)} = {{x}, {x, y}} e B × A =
{(y, x)} = {{y}, {y, x}}. Para que A × B = B × A, precisaríamos que {x} = {y}ou {x} = {x, y}, ou seja, x = y. Como x e y são quaisquer, não podemos dizer que
A×B = B × A.
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2. Sejam A = ∅ e B um conjunto qualquer. Suponhamos que exista (x, y) ∈ A × B. Por
de�nição de par ordenado, x ∈ A e y ∈ B, o que é uma contradição, pois, por hipótese,
A = ∅. Portanto, não existe (x, y) pertencente a A×B.
De�nição 1.1.9. Dado um conjunto A não vazio, uma operação em A é uma função ∗ :
A × A −→ A. A imagem ∗((x, y)) de um par ordenado (x, y) pela função ∗ é usualmente
denotada por x ∗ y.
Levando em conta o nosso conceito intuitivo de conjuntos numéricos e de suas operações
aritméticas, podemos ver que, das quatro operações, apenas a soma e o produto são de fato
operações, no sentido da de�nição acima, no conjunto dos números naturais.
De�nição 1.1.10. Uma relação binária R num conjunto A é qualquer subconjunto do produto
cartesiano A× A, isto é, R ⊂ A× A.
Exemplo 1.1.11. Se A = {a, b, c}, então R = {(a, a), (b, a), (c, b), (c, a)} é uma relação binária,
dado que é um subconjunto de
A× A = {(a, a), (a, b), (a, c), (b, a), (b, b), (b, c), (c, a), (c, b), (c, c)}.
No contexto deste trabalho, diremos que a está relacionado com b (escreve-se aRb) se R é
uma relação binária em A e se (a, b) ∈ R, isto é, (a, b) ∈ R ⇔ aRb. Uma relação binária será
chamada apenas de relação. No exemplo 1.1.11, temos bRa, mas não aRb.
De�nição 1.1.12. Seja dado um conjunto A e uma relação R sobre ele. Diz-se que R é uma
relação de equivalência se possuir as seguintes propriedades:
1. Re�exiva: aRa, para todo a ∈ A;
2. Simétrica: se a, b ∈ A, e aRb, então bRa;
3. Transitiva: para a, b, c ∈ A, se aRb e bRc, então aRc.
A relação R do exemplo 1.1.11 não é re�exiva, pois, b ∈ A e (b, b) /∈ R, nem simétrica, dado
que bRa, mas não aRb. Entretanto, ela é transitiva (basta ver que cRb, bRa e cRa). Como não
satisfaz as três propriedades, ela não é uma relação de equivalência.
Exemplo 1.1.13. Seja A = {1, 2, 3} R = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (1, 2), (2, 1)} é uma relação de
equivalêcia, pois:
1. Vale a re�exiva: 1, 2, 3 ∈ A, 1R1, 2R2 e 3R3;
2. Vale a simétrica: 1, 2 ∈ A, 1R2 e 2R1;
3. Vale a transitiva: 1, 2 ∈ A, 1R2, 2R1 e 1R1.
No exemplo seguinte será usada uma noção intuitiva de conjuntos numéricos e suas pro-
priedades aritméticas básicas, mas apenas a título de esclarecimento do conceito de relação de
equivalência. A construção dos conjuntos não dependerá deste exemplo.
Exemplo 1.1.14. Seja a, b ∈ Z com a 6= 0. Diremos que a divide b se existir c ∈ Z, tal queb = ac. Escrevemos a|b para simbolizar que a divide b. Esta relação de divisibilidade em Z não
é uma relação de equivalência, pois, apesar de ser re�exiva e transitiva, ela não é simétrica:
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1. Vale a re�exiva: para todo a ∈ Z, a = ac com c = 1 ∈ Z, portanto aRa.
2. Não vale a simétrica: Se a, b ∈ Z e a divide b, temos que, b = ac1 para algum c1 ∈ Z. Seb dividisse a, teríamos a = bc2 para algum c2 ∈ Z e assim, a = ac1c2 ⇒ a = ac ⇒ c =
c1c2 = 1, o que signi�ca que c1 = c2 = 1, ou c1 = c2 = −1, o que leva a conclusão que só
vale a simétrica quando a = b ou a = −b, portanto, não vale a simétrica para quaisquer
a, b ∈ Z onde a divide b.
3. Vale a transitiva: Se a, b, c ∈ Z, a divide b e b divide d, temos b = ac1 e d = bc2 com
c1, c2 ∈ Z, logo d = ac1c2 ⇒ d = ac, com c = c1c2 ∈ Z, logo, a divide d.
Exemplo 1.1.15. Seja A um conjunto. Temos que A×A = {(x, y) | x, y ∈ A} é uma relação
de equivalência em A. De fato,
1. Vale a re�exiva: seja x ∈ A, claramente (x, x) ∈ A×A, portanto, xRx, para todo x ∈ A.
2. Vale a simétrica: sejam x, y ∈ A e xRy, ou seja, (x, y) ∈ A × A. Como x, y ∈ A, é
imediato que (y, x) ∈ A× A, logo, yRx.
3. Vale a transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz, ou seja, (x, y), (y, z) ∈ A × A, como
x, z ∈ A, (x, z) ∈ A× A, ou seja, xRz.
Exemplo 1.1.16. R = {(x, x) | x ∈ A} é uma relação de equivalência em A. Esta relação se
chama igualdade em A (ou identidade de A), e se denota por “ = ”. Logo (x, x) ∈ R para todo
x ∈ A, que escrevemos usalmente como x = x, ∀ x ∈ A. Mostremos que esta relação, de fato,
é de equivalência em A.
1. Re�exiva: seja a ∈ A qualquer. Claramente (a, a) ∈ R, ou seja, a = a.
2. Simétrica: se a, b ∈ A e (a, b) ∈ R, temos que existe x ∈ A tal que (a, b) = (x, x), de onde
concluímos que a = b. Como (x, x) = (a, b) ∈ R e a = b, então (x, x) = (b, a) ∈ R;
3. Transitiva: se a, b, c ∈ A, (a, b) ∈ R e (b, c) ∈ R, procedendo como no item anterior,
obtemos que a = b e b = c, portanto, a = c. Logo, (a, c) ∈ R.
Exemplo 1.1.17. Qualquer relação de equivalência em A está compreendida entre os dois
exemplos anteriores, ou seja, “ = ” ⊂ R ⊂ A × A. De fato, seja A um conjunto e R uma
relação de equivalência qualquer sobre A. Obviamente R ⊂ A × A, por de�nição de relação.
Temos que “ = ” = {(x, x) | x ∈ A}. Tomemenos (x, x) ∈ “ = ” para um x pertencente a A
qualquer. Claramente, (x, x) ∈ R (pela propriedade re�exiva, que nos garante que, para todo x
em A, xRx). Logo, “ = ” ⊂ R. Dessa forma “ = ” ⊂ R ⊂ A× A, como queríamos.
De�nição 1.1.18. Sejam R uma relação de equivalência em A e a ∈ A um elemento �xado
arbitrariamente. O conjunto a = {x ∈ A | xRa} chama-se classe de equivalência de a pela
relação R. Ou seja, a é o conjunto constituído dos elementos de A que se relacionam com a.
Exemplo 1.1.19. As classes de equivalência dadas pela relação R do exemplo 1.1.13 são 1 =
{1, 2}, 2 = {2, 1} e 3 = {3}
Observe, neste exemplo, que 1 = 2, isso se deve ao fato de que 1R2. O seguinte teorema
mostra isso de forma generalizada.
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Teorema 1.1.20. Seja R uma relação de equivalência em um conjunto A e a, b elementos
quaisquer de A, então:
1. a ∈ a;
2. a = b⇔ aRb;
3. a 6= b⇔ a ∩ b = ∅
Demonstração.
1. a = {x ∈ A | xRa}. Como R é uma relação de equivalência, aRa (pela propriedade
re�exiva), logo a ∈ a;
2. (⇒) Suponhamos a = b, onde a = {x ∈ A | xRa} e b = {y ∈ A | yRb}. Seja a ∈ a, deonde segue que, a ∈ b (pois por hipótese a = b). Logo, pela de�nição de b, aRb;
(⇐) Suponhamos agora aRb. Devemos mostrar que a = b, ou seja, a ⊂ b e b ⊂ a. Pois
bem:
• Seja a ∈ a. Como, por hipótese, aRb, temos que a ∈ b, logo, a ⊂ b;
• Seja b ∈ b. Por hipótese, aRb e como R é uma relação de equivalência, temos que
bRa e portanto b ∈ a. Logo b ⊂ a.
3. (⇒) Seja a 6= b, com a = {x ∈ A | xRa} e b = {y ∈ A | yRb}. Suponhamos que exista
c ∈ a ∩ b, ou seja, c ∈ a e c ∈ b. Sendo assim, cRa e cRb, que nos garante que aRb.
Assim, pelo item 2 deste teorema, concluímos que a = b, o que contradiz a nossa hipótese.
Portanto, não existe c qualquer na intersecção de a e b.
(⇐) Seja a ∩ b = ∅. Suponhamos a = b, que signi�ca, pelo item 2 deste teorema, que
aRb, ou seja, a ∈ b. Claramente a ∈ a, sendo assim, a está em a e em b, o que contradiz
a hipótese de que a ∩ b = ∅. Portanto, a 6= b.
�
O teorema anterior nos fornece propriedades muito importantes. Ele nos fornece a ideia de
que todo elemento de uma classe de equivalência a tem a mesma classe de equivalência que a,
ou seja, a pode ser representado por x, para todo x ∈ a. Ele nos garante também que duas
classes de equivalência distintas são disjuntas.
Da mesma forma que já �zemos anteriormente nesta sessão, o seguinte exemplo faz referência
aos números inteiros, mas ele serve apenas para clarear a ideia de classe de equivalência e não
in�uenciará nas construções seguintes.
Exemplo 1.1.21. Sejam A = Z e R a relação dada por: aRb quando o resto das divisões de a
e b por 2 forem iguais. Por exemplo, (5, 21) ∈ R, (6, 14) ∈ R, mas (5, 8) 6= R. Vamos veri�car
se esta relação é de equivalência em Z:
1. Re�exiva: seja x ∈ Z. A divisão x por 2 tem resto t e obviamente t = t, portanto, xRx,
para todo x ∈ Z;
2. Simétrica: sejam x, y ∈ Z e xRy, ou seja, x e y divididos por 2 têm o mesmo resto s,
logo yRx;
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3. Transitiva: sejam x, y, z ∈ Z, xRy e yRz. Dessa forma, x e y divididos por 2 possuem
o mesmo resto t, assim como y e z divididos por 2 possuem o mesmo resto s. Como y
dividido por 2 possui o resto t e também o resto s, concluímos que r = s e, portanto, o
resto da divisão de x e z por 2 é o mesmo, ou seja, xRz.
Usando esta relação de equivalência, temos os seguintes exemplos:
1 = {. . . ,−3,−1, 1, 3, . . .} = 3 = 7 = −5
2 = {. . . ,−4,−2, 0, 2, 4, . . .} = 0 = 4 = −2
Sabemos ainda que todo número inteiro é classi�cado como ímpar ou par, onde o par pode ser
escrito da forma a = 2n e o ímpar da forma a = 2n + 1. Sendo assim, quando dividimos um
número par por 2, obetemos a = 2n+0, ou seja, o resto da divisão é 0. Já quando dividimos um
número ímpar por 2, obtemos a = 2n+ 1, ou seja, resto 1. Dessa forma, a divisão de qualquer
inteiro por 2 nos fornece restos 1 ou 0. Portanto, só existem duas classes de equivalência
distintas para esta relação de equivalência. Mais precisamente, tem-se a = 0 para a par e a = 1
para a ímpar.
De�nição 1.1.22. Seja R uma relação de equivalência num conjunto A. O conjunto constituído
das classes de equivalência em A pela relação R é denotado por A/R e denominado conjunto
quociente de A por R. Assim, A/R = {a | a ∈ A}
Veja os exemplos que seguem:
Exemplo 1.1.23.
1. Se R é a relação do exemplo anterior, então A/R = {0, 1}
2. Se A = {1, 2, 3}, temos que,
A× A = {(1, 1), (1, 2), (1, 3), (2, 1), (2, 2), (2, 3), (3, 1), (3, 2), (3, 3)}.
Dessa forma, temos as classes de equivalência 1 = {x ∈ A | xR1} = {1, 2, 3}, 2 =
{y ∈ A | yR2} = {1, 2, 3} e 3 = {z ∈ A | zR3} = {1, 2, 3}, assim 1 = 2 = 3. Como
A/A×A = {a | a ∈ A}, então A/A×A = {1, 2, 3}, ou apenas A/A×A = {1} = {2} = {3}
3. Consideremos a relação de equivalência denotada por “ = ”, isto é, R = {(x, x) | x ∈ A}.Se A = {1, 2, 3}, então R = {(1, 1), (2, 2), (3, 3)} e, portanto, 1 = {x ∈ A | xR1} = {1},2 = {y ∈ A | yR2} = {2} e 3 = {z ∈ A | zR3} = {3}, logo A/R = {a | a ∈ A} = {1, 2, 3}.
Exemplo 1.1.24. Seja ∼ uma relação em Z, de�nida como segue: x ∼ y quando os restos das
divisões de x e y por 3 forem iguais. Esta é uma relação de equivalência. Com efeito,
1. Re�exiva: Claramente, para todo x ∈ Z, x ∼ x;
2. Simétrica: Sejam x, y ∈ Z e x ∼ y, ou seja, o resto das divisões de x e y por 3 é o mesmo,
logo, y ∼ x;
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3. Transitiva: Se x, y, z ∈ Z, x ∼ y e y ∼ z, temos que, o resto das divisões de x e y por 3 é
o mesmo, digamos t, e o resto das divisões de y e z por 3 é o mesmo, digamos s. Sendo
assim, o resto da divisão de y por 3 é dado por s e por t, logo s = t. Portanto, o resto
das divisões de x e z por 3 é o mesmo, o que sigini�ca que x ∼ z, como queríamos.
O resto da divisão de um número x ∈ Z por 3, é sempre 0, 1, ou 2, portanto, as clas-
ses de equivalência são 0 = {. . . ,−6,−3, 0, 3, 6, . . .}, 1 = {. . . ,−7,−4,−1, 1, 4, 7, . . .} e 2 =
{. . . ,−8,−5,−2, 2, 5, 8, . . .}. Sendo assim, temos que o conjunto quociente Z/ ∼ = {0, 1, 2}.
Exemplo 1.1.25. Seja A o conjunto de todas as pessoas e R a relação em A dada por: xRy
quando x for mãe de y. Esta relação não é de equivalência. De fato,
1. Não vale a re�exiva: seja x ∈ A qualquer, x não pode ser mãe de x;
2. Não vale a simétrica: sejam x, y ∈ A e xRy, ou seja, x é mãe de y. Dessa forma, y não
é mãe de x;
3. Não vale a transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz. Assim, x é mãe de y e y é mãe de
z, isso signi�ca que x é avó de z e não mãe.
Exemplo 1.1.26. Seja A o conjunto de todas as pessoas e R a relação em A dada por: xRy
quando x for irmão de y, ou quando x e y forem a mesma pessoa (diremos aqui que x e y
são irmãos quando são �lhos biológicos dos mesmos pais). Esta é uma relação de equivalência,
pois:
1. Vale a re�exiva: se x ∈ A, xRx pois, x e x são a mesma pessoa;
2. Vale a simétrica: sejam x, y ∈ A e xRy, ou seja, x é irmão de y, portanto y é irmão de
x, logo, yRx;
3. Vale a transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz. Como x é irmão de y e y é irmão de z,
claramente os três possuem os mesmo pais biológicos, portanto, x é irmão de z, ou seja,
xRz.
Observe que, se a relação fosse de�nida apenas como “xRy quando x for irmão de y”, não
teríamos uma relação de equivalência pois não valeria a re�exiva (xRx).
Exemplo 1.1.27. Seja A um conjunto e A = A1 ∪A2 ∪A3 . . . ∪An uma partição �nita de A,
isto é, uma decomposição de A como união �nita de uma família de subconjuntos de A que são
dois a dois disjuntos e não vazios. Para x e y ∈ A, de�nimos a seguinte relação: xRy quando
x e y pertencem ao mesmo elemento da partição, isto é, xRy ⇔ existe i ∈ {1, . . . , n} tal quex, y ∈ Ai. Esta é uma relação de equivalência. De fato,
1. Re�exiva: se x ∈ A, claramente x ∈ Ai e assim, xRx;
2. Simétrica: se x, y ∈ A e xRy, temos que x, y ∈ Ai, portanto, yRx;
3. Transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz. Dessa forma, x, y ∈ Ai e y, z ∈ Aj com
i, j ∈ {1, . . . , n}. Como y está em Ai e em Aj, e sabemos que os conjuntos são disjuntos
dois a dois, concluímos que i = j e portanto, x e z estão no mesmo conjunto Ai=j, logo,
xRz.
12
Observe que se os conjuntos não fossem disjuntos dois a dois, ou seja, Ai∩Aj 6= ∅, poderíamos
ter y na intersecção de Ai e Aj e assim não nos valeria a transitiva e, portanto, esta relação
não seria de equivalência.
Exemplo 1.1.28. Seja A = {1, 2, 3}. Já vimos que A× A, assim como “ = ” são relações de
equivalêcia em A. Vimos também que quaisquer outras relações de equivalência neste conjunto
estão entre essas duas. Seguem estas relações:
R1 = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (1, 2), (2, 1)};R2 = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (1, 3), (3, 1)};R3 = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (2, 3), (3, 2)}.
Exemplo 1.1.29. Sejam A = {x ∈ Z | −5 ≤ x ≤ 10} e R a relação sobre A de�nida por:
xRy ⇔ x2 = y2. Vamos ve�rifcar que R é uma relação de equivalência:
1. Re�exiva: se x ∈ A, claramente x2 = x2, portanto, xRx;
2. Simétrica: se x, y ∈ A e xRy, temos que x2 = y2, portanto y2 = x2, ou seja, yRx;
3. Transitiva: se x, y, z ∈ A, xRy e yRz, então , x2 = y2 e y2 = z2, logo, x2 = z2 e assim
xRz.
Exemplo 1.1.30. Seja A como no exemplo anterior e S uma relação de�nida por: xSy ⇔existe k ∈ N tal que x2 = y2 + k. Veri�quemos agora a relação S:
1. Re�exiva: seja x ∈ A. Existe k = 0 ∈ N, tal que que x2 = x2 + k, portanto xSx;
2. Simétrica: sejam x, y ∈ A e xSy, ou seja, existe k1 ∈ N tal que x2 = y2+k1. Disso temos
que x2 ≥ y2. Consideremos dois casos:
• Seja x2 = y2. Neste caso, existe k2 = 0 ∈ N tal que y2 = x2 + k2, ou seja, yRx.
• Seja x2 > y2. Neste caso, é impossível que exista k2 ∈ N tal que y2 = x2 + k2, pois,
se isto acontecesse, teríamos y2 ≥ x2, que contradiz a hipótese de que x2 > y2
Sendo assim, temos que a simétrica só vale quando x2 = y2. Como a propriedade deve
valer pra quaisquer x, y ∈ A, temos que a simétrica não é válida. O par ordenado (−5,−4)é um exemplo que mostra que essa relação não é simétrica, pois (−5,−4) satisfaz a con-
dição da relação, ou seja, existe k ∈ N tal que (−5)2 = (−4)2 + k, porém, (−4,−5) não a
satisfaz.
3. Transitiva: se x, y, z ∈ A, xSy e ySz, temos que existem k1, k2 ∈ N, tais que x2 = y2+ k1
e y2 = z2 + k2. Subtituindo a segunda na primeira, obtemos x2 = z2 + k2 + k1. Como
k1, k2 ∈ N, claramente k1 + k2 = k ∈ N, assim, x2 = z2 + k, logo xSz.
Com isso concluímos que apenas a simétrica não é válida, o que é su�ciente para que a relação
S não seja de equivalência.
Observemos que se a relação do exemplo anterior nos desse a condição com k ∈ Z no lugar
de k ∈ N, teríamos que a relação seria de equivalência. Com efeito, seja x, y ∈ A e xSy, ou seja,
existe k1 ∈ Z tal que x2 = y2 + k1, e assim, y2 = x2 − k1 ⇒ y2 = x2 + k2 com k2 = −k1 ∈ Z.Logo, yRx, como queríamos.
13
Exemplo 1.1.31. Seja A ainda como no exemplo 1.1.29 e T de�nida como segue: xTy ⇔existe k ∈ Z tal que x− y − 3k = 0. Vamos veri�car se T é uma relação de equivalência.
1. Re�exiva: seja x ∈ A. Claramente x− x− 3k = 0 com k = 0 ∈ Z, ou seja, xTx;
2. Simétrica: sejam x, y ∈ A e xTy, ou seja, existe k1 ∈ Z, tal que x − y − 3k1 = 0, o que
implica que −x+ y + 3k1 = 0 e disso obtemos y − x+ 3k1 = 0, que pode ser escrito como
y − x− 3k2 = 0 com k1 = −k2 ∈ Z e, portanto, yTx;
3. Transitiva: se x, y, z ∈ A, xTy e yTz, temos que existem k1, k2 ∈ Z tais que x−y−3k1 = 0
e y − z − 3k2 = 0. Isolando o y na segunda equação e substituindo na primeira obtemos
x− (z+3k2)− 3k1 = 0 e assim, x− z− 3(k2 + k1) = 0, que signi�ca x− z− 3k = 0, com
k = k1 + k2 ∈ Z, ou seja, xRz.
Portanto, a relação T é de equivalência em A.
14
Capítulo 2
Números Naturais
Desde os primórdios existe a necessidade de contagem e são exatamente os números naturais
que estão envolvidos com esta ideia de quantidade, que é considerada básica nos dias atuais.
Os números naturais tiveram suas origens nas palavras utilizadas para a contagem de objetos,
começando com o número um.
O primeiro grande avanço na abstração foi o uso de numerais para representar os números.
Isto permitiu o desenvolvimento de sistemas para o armazenamento de grandes números. Um
avanço muito posterior na abstração foi o desenvolvimento da ideia do zero com um número com
seu próprio numeral. Um dígito zero tem sido utilizado como notação de posição desde cerca de
700 a.C. pelos babilônicos, porém ele nunca foi utilizado como elemento �nal. Os Olmecas e a
civilização maia utilizaram o zero com um número separado desde o século I AC, aparentemente
desenvolvido independentemente, porém seu uso não se difundiu na Mesoamérica. O conceito
da forma que ele é utilizado atualmente se originou com o matemático indiano Brahmagupta
em 628. Hoje temos este conceito de zero formalizado, poratanto, nossa construção foi feita
incluindo o zero como um número natural, porém, outros matemáticos, preferem seguir a
tradição antiga e excluir o zero dos números naturais.
Formalizaremos este conceito utilizando uma axiomática, método que, apesar de ser con-
siderado uma construção, na verdade, apenas assume a existência do conjunto dos naturais,
satisfazendo axiomas que caracterizam rigorosamente a ideia intuitiva. Em outras palavras,
assumiremos a existência do conjunto e mostraremos que ele obedece a tais axiomas.
Esta axiomatização foi dada por Giuseppe Peano, no �nal do século XIX, e se apresenta
aqui de forma adaptada a simbologia matemática atual.
2.1 Axiomas de Peano
Durante a formação de um matemático, muito se ouve falar sobre o Princípio da Indução
Finita, que é, na verdade, um conceito menos intuitivo e imediato do que a ideia de que o
conjunto dos Naturais começa no 0 e prossegue de um em um.
Suponhamos que A seja um subconjunto dos números naturais, contendo o 3 e a propriedade
de que possui o sucessor natural de qualquer elemento seu, ou seja, se x ∈ A, então x+ 1 ∈ A.Dessa forma, A contém o 4, pois contém o 3 e, claramente, possui o 5, já que contém o 4, e
assim segue. Logo A contém {3, 4, 5, 6, . . .}. Se esse nesse conjunto tivesse como hipótese inicial
que o 0 está nele, no lugar do 3, teríamos que A é o conjunto dos naturais.
15
Os Axiomas de Peano apresentam a formalização rigorosa destas ideias intuitivas, utilizando
conceitos já conhecidos ou admitidos aqui, como segue:
Axioma 2.1.1 (AXIOMAS DE PEANO). Existe um conjunto A e uma função s : A −→ Averi�cando:
1. s é injetora;
2. Existe um elemento em A, que denotaremos por 0, e chamaremos de zero, que não está
na imagem de s, isto é, 0 /∈ Im(s).
3. Se um subconjunto X de A satis�zer os subitens abaixo, então X = A:
(a) 0 ∈ X;
(b) Se k ∈ X, então s(k) ∈ X.
A função s é chamada função sucessor, de modo que, se x ∈ A, então s(x) é chamado
sucessor de x. Os axiomas anteriores nos dizem que cada x de A possui sucessor diferente e
expressam, ainda, o fato de que 0 não é sucessor de nenhum elemento de A.Temos garantido que tal A é diferente de vazio, pelo segundo axioma de Peano. Como
0 /∈ Im(s) e s(0) ∈ Im(s), concluímos que 0 6= s(0), e, portanto, A possui pelo menos dois
elementos: 0 e s(0). Da mesma forma, podemos observar que s(s(0)) é diferente de 0, pois
0 /∈ Im(s), e diferente s(0), pois s é injetora, ou seja, s(0) 6= 0 ⇒ s(s(0)) 6= s(0). Assim,
A possui pelo menos três elementos: 0, s(0) e s(s(0)). Prosseguindo desta forma, concluímos
que s(s(s(0))) também está em A e é diferente de 0 (pois 0 /∈ Im(s)), diferente de s(0) (0 6=s(s(0))⇒ s(0) 6= s(s(s(0))), pois s é injetora) e diferente de s(s(0)) (s(0) 6= s(s(0))⇒ s(s(0)) 6=s(s(s(0))), pois s é injetora). Agora temos que A possui pelo menos quatro elementos: 0, s(0),
s(s(0)) e s(s(s(0))).
Tomando estes sucessores de forma repetida, vemos que cada elemento novo é diferente dos
anteriores mencionados. Isto será provado rigorosamente neste capítulo. Prosseguindo assim,
consideramos A como um conjunto in�nito, que vamos de�nir formalmente a seguir.
De�nição 2.1.2. Dado um conjunto X, dizemos que ele é in�nito se existir uma função injetora
f : A −→ X. Um conjunto é dito �nito quando não é in�nito.
Em outras palavras, podemos dizer que X é in�nito quando possui um subconjunto Y em
bijeção com A, ou ainda, dizendo que este Y é equipotente a A. Uma outra de�nição de conjunto
in�nito, equivalente a esta, que existe devido a Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor (1845-
1918)(ele rompeu com o paradigma grego de que o todo é sempre maior do que qualquer uma
das suas partes próprias), é a seguinte: um conjunto diz-se in�nito quando existir uma bijeção
entre ele e um subconjunto próprio dele.
O terceiro axioma de Peano é conhecido como Princípio de Indução Finita e ele é utilizado
na demonstração de propriedades que dizem respeito aos números naturais. Veremos muitos
exemplos no decorrer deste capítulo.
Já o segundo axioma de Peano fala que 0 /∈ Im(s). O teorema a seguir nos diz quem é
Im(s).
16
Teorema 2.1.3. Se s : A −→ A é a função sucessor, então, tem-se:
1. s(n) 6= n, para todo n ∈ A, ou seja, nenhum número de A é sucessor de si mesmo;
2. Im(s) = A \ {0}, isto é, 0 é o único elemento de A que não é sucessor de nenhum outro
elemento de A.
Demonstração.
1. Consideremos um subconjunto B de A, constituído dos n ∈ A tais que s(n) 6= n, isto é
B = {n ∈ A | s(n) 6= n}. Vamos, através do princípio de indução �nita, mostrar que
B = A, isto é, s(n) 6= n, para todo n ∈ A
(a) Pelo axioma 2 de Peano, temos que 0 /∈ Im(s), sendo assim, 0 6= s(0), e, portanto,
0 ∈ B;
(b) Seja k ∈ A, ou seja, k 6= s(k). Como, pelo axioma 1, s é injetora, obtemos que
s(k) 6= s(s(k)) e, portanto, s(k) ∈ B.
Assim, pelo princípio de indução �nita, B = A.
2. Novamente usaremos indução �nita. Seja B ⊂ A dado por B = {0} ∪ Im(s):
(a) Claramente, 0 ∈ B;
(b) Seja k ∈ B. Com isso s(k) ∈ Im(s) ⊂ B, daí, s(k) ∈ B.
Logo, B = A. Como 0 /∈ Im(s), concluímos que Im(s) = A \ {0}.
�
Todo elemento de A\{0} é sucessor de um único elemento de A, que se chama seu antecessor.
2.2 Adição de elementos de A
Vamos, agora, formalizar a operação que chamaremos de adição e representaremos por (+),
que é, na verdade, a operação que já conhecemos do ensino básico.
De�nição 2.2.1. Dado m ∈ A, de�nimos recursivamente:{m+ 0 = m,
m+ s(n) = s(m+ n).
Isto é, �xado m, se p = 0, m + p = m e se p 6= 0, p = s(n) para algum n ∈ A, daí
m+ p = m+ s(n) = s(m+ n).
Esta de�nição nos fornece o seguinte:
m+ s(0) = s(m+ 0) = s(m),
ou ainda,
m+ s(s(0)) = s(m+ s(0)) = s(s(m)),
17
e assim por diante. Esta é a idéia intuitiva que iremos formalizar a seguir utilizando o Princípio
da Indução, que mostra que m+ n está de�nido para todos m,n ∈ A.
Proposição 2.2.2. A soma m+ n está de�nida para todo par m,n de A.
Demonstração. De fato, vamos de�nir o conjunto Sm = {n ∈ A | m + n está de�nida}, paracada m ∈ A �xado arbitrariamente.
1. m+ 0 está de�nido, portanto, 0 ∈ Sm.
2. Seja k ∈ Sm, isto é, m + k está de�nido. Temos que m + s(k) = s(m + k) está de�nido,
logo s(k) ∈ Sm.
Logo, pelo axioma 3, Sm = A. Como m é arbitrário, Sm = A para todo m ∈ A. Sendo assim,
m+n está de�nida para todo par (m,n) de A×A, o que signi�ca que a adição é, de fato, uma
operação em A.�
Introduziremos agora a notação para os números naturais que é conhecida desde o ensino
básico.
De�nição 2.2.3. Indica-se por 1 e lê-se �um� o elemento de A que é sucessor de 0, ou seja,
1 = s(0).
Proposição 2.2.4. Para todo m ∈ A, tem-se s(m) = m + 1 e s(m) = 1 + m. Portanto
m+ 1 = 1 +m.
Demonstração. Provemos as duas igualdades:
• Temos que m+ 1 = m+ s(0) = s(m+ 0) = s(m), ou seja, m+ 1 = s(m);
• Consideremos agora o conjunto B = {m ∈ A | s(m) = 1 +m} e provemos por indução
que B = A:
1. Claramente 1 + 0 = 1 = s(0), sendo assim, s(0) = 1 + 0 e portanto, 0 ∈ B.
2. Seja, agora, m ∈ B, isto é, s(m) = 1+m. Daí s(1+m) = s(s(m)) e como s(1+m) =
1 + s(m), obtemos que s(s(m)) = 1 + s(m) e, portanto, s(m) ∈ B.
Sendo assim, B = A.
�
Já temos as notações 0 e 1 = s(0). Vamos de�nir, agora, a continuação:
s(1) = 2 (dois), s(2) = 3 (três), s(3) = 4 (quatro), s(4) = 5 (cinco)
e assim sucessivamente. Esta é a notação indo-arábica de base dez para os elementos de A.Dessa forma, A contém o seguinte conjunto:
{0, s(0), s(s(0)), s(s(s(0))), . . .} = {0, 1, 2, 3, . . .}.
18
O teorema seguinte mostra que os axiomas de Peano formalizam a ideia intuitiva do conjunto
dos números naturais, isto é, A não contém elementos além desses.
Teorema 2.2.5. A = {0, 1, 2, 3, . . .}
Demonstração. Seja N = {0, 1, 2, 3, . . .} subconjunto de A. Veri�quemos por indução que
N = A:
1. Por construção 0 ∈ N;
2. Novamente por construção, N contém o sucessor de qualquer elemento contido nele, ou
seja, se n ∈ N, então s(n) ∈ N.
Logo, N = A.�
De�nição 2.2.6. Chamaremos este conjunto A de Conjunto do Números Naturais e denota-
remos, a partir daqui, por N.
Utilizando a notação anterior, temos as seguintes adições em N:
1. 1 + 1 = s(1) = 2;
2. 2 + 1 = s(2) = 3;
3. 3 + 1 = s(3) = 4;
4. 3 + 2 = 3 + s(1) = s(3 + 1) = s(4) = 5;
5. 0 + 2 = 0 + s(1) = s(0 + 1) = s(1 + 0) = s(1) = 2.
De�nição 2.2.7. Seja f : X −→ X e IdX a função identidade no conjunto X. Sendo assim,
de�nimos f 0 = IdX e, para n ≥ 1, fn = f ◦ (fn−1). Chamamos a função fn de n-ésima iterada
de f , ou ainda, dizemos que f foi iterada n vezes.
Proposição 2.2.8. Se m e n são naturais quaisquer, então vale a igualdade m + n = sn(m),
isto é, somar n a m é somar 1 a m iteradamente n vezes.
Demonstração. Seja Sm = {n ∈ N | m+n = sn(m)} para umm natural �xado arbitrariamente.
Provemos por indução que Sm = N
1. s0(m) = m = m+ 0, portando 0 ∈ Sm;
2. Seja k ∈ Sm, ou seja, m + k = sk(m). Temos ainda que m + s(k) = s(m + k), daí, pela
hipótese, m+s(k) = s(sk(m)) = s◦sk(m). Por de�nição, s◦sk(m) = sk+1(m) = ss(k)(m),
e assim, m+ s(k) = ss(k)(m), logo, s(k) ∈ Sm.
Como m foi �xado arbitrariamente, temos Sm = N para todo m ∈ N.�
Exemplo 2.2.9. Segue um exemplo do que acabou de ser demonstrado:
5 + 3 = s3(5) = s(s2(5)) = s(s(s(5))) = s(s(6)) = s(7) = 8
19
Vamos enunciar e demonstrar agora uma proposição que será fundamental para a prova do
próximo teorema.
Proposição 2.2.10. Para todo m ∈ N, temos que m+0 = m = 0+m, isto é, m é um elemento
neutro da adição em N.
Demonstração. Por de�niçãom+0 = m. Provemos agora que 0+m = m. De fato, consideremos
o conjunto A0 = {m ∈ N | 0 +m = m}.
1. Por de�nição 0 + 0 = 0, portanto 0 ∈ A0;
2. Suponhamos k ∈ A0, isto é, 0 + k = k e provemos que s(k) ∈ A0. Com efeito, 0 + s(k) =
s(0 + k) = s(k), ou seja, s(k) ∈ A0.
Logo, por indução, concluímos que A0 = N.�
O seguinte teorema mostra as propriedades da adição que são admitidas intuitivamente
desde a escola.
Teorema 2.2.11. Se m, n e p são números naturais arbitrários, temos que as seguintes a�r-
mações são verdadeiras:
1. Propriedade associativa da adição: m+ (n+ p) = (m+ n) + p.
2. Propriedade comutativa da adição: n+m = m+ n.
3. Lei do cancelamento da adição: m+ p = n+ p⇒ m = n.
Demonstração.
1. Para esta prova, consideremos o conjunto A(m,n) = {p ∈ N | m + (n + p) = (m + n) + p}com m e n naturais �xados arbitrariamente. Vamos aplicar indução sobre este conjunto.
(a) Temos que m+ (n+ 0) = m+ n = (m+ n) + 0, logo, 0 ∈ A(m,n);
(b) Suponhamos que k ∈ A(m,n), isto é, m+(n+ k) = (m+n)+ k. Agora, provemos que
s(k) ∈ A(m,n). De fato,
(m+ n) + s(k) = s((m+ n) + k), e por hipótese,
(m+ n) + s(k) = s(m+ (n+ k)), daí,
(m+ n) + s(k) = m+ s(n+ k), o que signi�ca,
(m+ n) + s(k) = m+ (n+ s(k)), logo, s(k) ∈ A(m,n).
2. Para esta prova, consideremos o conjunto An = {m ∈ N | n+m = m+ n}, com n �xado
arbitrariamente e provemos que N = An.
(a) Temos, pela proposição 2.2.10, que n+ 0 = 0 + n, portanto, 0 ∈ An;
(b) Suponhamos que k ∈ An, ou seja, n+ k = k+n, e provemos que s(k) ∈ An. De fato,
n+ s(k) = s(n+ k) = s(k + n) = (k + n) + 1,
daí, pelo primeiro item deste teorema,
n+ s(k) = k + (n+ 1), e pela proposição 2.2.4 obtemos
n+ s(k) = k + (1 + n) = (k + 1) + n e assim,
n+ s(k) = s(k) + n, o que signi�ca que s(k) ∈ An.
20
Concluímos assim, por indução, que An = N.
3. Consideremos o conjunto A(m,n) = {p ∈ N | m + p = n + p ⇒ m = n}. Provemos agora
que A(m,n) = N.
(a) Temos que 0 ∈ A(m,n), pois m+ 0 = n+ 0⇒ m = n, pela proposição 2.2.10;
(b) Suponhamos k ∈ A(m,n), isto é, m+ k = n+ k ⇒ m = n. Temos que
m+ s(k) = n+ s(k) ⇒ s(m+ k) = s(n+ k)
⇒ (m+ k) + 1 = (n+ k) + 1
⇒ m+ (1 + k) = n+ (1 + k) pelos itens anteriores
⇒ (m+ 1) + k = (n+ 1) + k
⇒ s(m) + k = s(n) + k
⇒ s(m) = s(n) por hipótese
⇒ m+ 1 = n+ 1⇒ m = n
Logo, m+ s(k) = n+ s(k)⇒ m = n, ou seja, s(k) ∈ A(m,n).
Desta forma, concluímos que A(m,n) = N.
�
O teorema anterior deixa bem claro a importância da Indução Finita nas demonstrações. A
seguinte proposição é um complemento da proposição 2.2.10.
Proposição 2.2.12. Suponhamos que exista u ∈ N tal que m+ u = m (ou u+m = m), para
todo m ∈ N. Então u = 0. Assim, 0 é o único elemento neutro para a operação de adição.
Demonstração. Temos 0 = 0 + u = u para u como na hipótese.
�
2.3 Multiplicação dos Números Naturais
Assim como foi de�nida a adição, de�niremos agora a operação que chamaremos de multi-
plicação:
De�nição 2.3.1. Dado m ∈ A, de�nimos recursivamente:{m · 0 = 0,
m · (n+ 1) = m · n+m.
Ou seja, �xado m, se p = 0, m · p = 0 e se p 6= 0, p = n + 1, para algum n ∈ N, daí
m · p = m · (n+ 1) = m · n+m.
Para designar m · n, usaremos a notação de justaposição mn. Será enunciado e provado, a
seguir, um teorema com as propriedades da multiplicação, mas antes disso, enunciaremos duas
proposições que serão úteis para a demonstração de tal teorema.
Proposição 2.3.2. Para todo m ∈ N, temos que 0 ·m = 0.
21
Demonstração. Consideremos o conjunto S = {m ∈ N | 0 ·m = 0} e utilizemos indução para
mostrar que S = N:
1. 0 · 0 = 0 por de�nição, portanto, 0 ∈ N;
2. Suponhamos que k está em S, ou seja, 0 · k = 0 e provemos que s(k) ∈ S. De fato,
0 · s(k) = 0(k + 1) = 0k + 0, por de�nição, e ainda, 0k + 0 = 0k = 0, por hipótese de
indução. Logo, 0 · s(k) = 0, ou seja, s(k) ∈ S
Dessa forma, concluímos que S = N.�
Proposição 2.3.3. Sejam m,n ∈ N tais que m+ n = 0. Então m = n = 0.
Demonstração. Suponhamos n 6= 0, isto é, n = s(n1) = n1 + 1, para algum n1 ∈ N. Sabemos
que 0 = m+ n = m+ (n1 + 1) = (m+ n1) + 1 = s(m+ n1), o que é um absurdo pois 0 não é
sucessor de nenhum elemento de N. Logo, n = 0, sendo assim,m+n = 0⇒ m+0 = 0⇒ m = 0,
como queríamos.
�
Teorema 2.3.4. Sejam m,n, p ∈ N, então são válidos os itens abaixo:
1. mn ∈ N, isto é, a multiplicação é uma operação em N;
2. Existe um elemento neutro multiplicativo: 1 · n = n · 1 = n;
3. Distributividade: m(n+ p) = mn+mp e (m+ n)p = mp+ np;
4. Associatividade: m(np) = (mn)p;
5. mn = 0⇒ m = 0 ou n = 0;
6. Comutatividade: mn = nm
Demonstração.
1. Consideremos o conjunto Sm = {n ∈ N | mn está de�nido} para m ∈ N �xado arbitra-
riamente.
(a) m · 0 = 0 está de�nido, logo, 0 ∈ Sm;
(b) Suponhamos k ∈ N e provemos que s(k) ∈ N. De fato, m ·s(k) = m(k+1) = mk+m.
Por hipótese de indução mk está de�nido e, como visto na seção anterior, a soma
de quaisquer dois naturais também. Logo, m · s(k) = mk +m está de�nido, o que
signi�ca que s(k) ∈ Sm.
Sendo assim, por indução Sm = N. Como m foi �xado arbitrariamente, a igualdade vale
para qualquer m ∈ N.
2. Temos que n·1 = n(0+1), e por de�nição n(0+1) = n·0+n = n, logo, n·1 = n. Agora, para
mostrar que 1 · n = n para todo n ∈ N, consideremos o conjunto S = {n ∈ N | 1 · n = n},e mostremos que N = S.
22
(a) Temos que 1 · 0 = 0, por de�nição, logo, 0 ∈ S;(b) Suponhamos que k ∈ S, ou seja, 1 · k = k. Sabemos que 1 · (k + 1) = 1 · k + 1, daí,
por hipótese de indução, 1 · (k + 1) = k + 1. Portanto, k + 1 ∈ S.
Sendo assim, por indução S = N.
3. Sejam m,n naturais �xados arbitrariamente e usemos indução sobre p. Seja Am,n = {p ∈N | m(n+ p) = mn+mp}.
(a) De fato, 0 ∈ Am,n poism(n+0) = mn emn+m·0 = mn, ou seja,m(n+0) = mn+m·0;(b) Mostremos agora que, se k ∈ Am,n, isto é, m(n+k) = mn+mk, então (k+1) ∈ Am,n.
Com efeito, m(n+ (k + 1)) = m((n+ k) + 1) = m(n+ k) +m = (mn+mk) +m =
mn + (mk +m) = mn + (m(k + 1)). Todas estas igualdades se justi�cam com base
em propriedades estabelecidas anteriormente. Sendo assim, (k + 1) ∈ Am,n.
Assim, concluímos, por indução, que Am,n = N.
4. Novamente, consideremos m,n ∈ N �xados arbitrariamente e apliquemos indução sobre
p. Seja Sm,n = {p ∈ N | m(np) = (mn)p}:
(a) m(n · 0) = m · 0 = 0 e (mn) · 0 = 0, logo, m(n · 0) = (mn) · 0. Assim, 0 ∈ Sm,n;
(b) Suponhamos que k ∈ Sm,n, isto é, m(nk) = (mn)k. Consideremos as seguintes
igualdades: m(n(k+1)) = m(nk+ n) = m(nk) +mn = (mn)k+mn = (mn)(k+1).
Dessa forma, k + 1 ∈ Sm,n
Logo, Sm,n = N.
5. Seja mn = 0. Suponhamos n 6= 0. Então n = n1 + 1 para algum n1 em N. Assim,
mn = 0⇒ m(n1 + 1) = 0⇒ mn1 +m = 0, daí, pela proposição 2.3.3, mn1 = m = 0. Da
mesma forma, supondo m 6= 0, concluímos que n = 0. Como queríamos.
6. Suponhanhamos Sm = {n ∈ N | mn = nm}, para um m ∈ N �xados arbitrariamente.
Mostremos que Sm = N:
(a) Por de�nição, m · 0 = 0 e, pela proposição 2.3.2, 0 ·m = 0, logo, m · 0 = 0 ·m, isto é,
0 ∈ Sm;
(b) Suponhamos k ∈ Sm, ou seja, mk = km. Temos que m(k+1) = mk+m = km+m,
por hipótese de indução, e ainda, km + m = (k + 1)m. Sendo assim, m(k + 1) =
(k + 1)m, que signi�ca k + 1 ∈ Sm.
Logo, por indução, Sm = N. Como m é arbitrário, a igualdade vale para todo m em N.
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Novamente pudemos perceber o quão é importante a existência do terceiro Axioma de Peano.
Completaremos agora esta parte, mostrando que o elemento neutro, visto no segundo item do
teorema anterior, é único.
Proposição 2.3.5. Se p ∈ N é tal que np = n (ou pn = n), para todo n ∈ N, então p = 1.
Demonstração. Para um tal p, 1 = 1p = p, como queríamos.
�
23
2.4 Relação de ordem em N
A ideia intuitiva que trazemos desde a escola, de que 0 é menor que 1, que é menor que
2 e assim sucessivamente, vem da relação de ordem que existe nos naturais, que nos permite
comparar os números deste conjunto, formalizando a ideia intuitiva.
De�nição 2.4.1. Seja R uma relação binária em um conjunto não vazio A e x, y, z elementos
quaisquer de A. Dizemos que R é uma relação de ordem em A quando satisfaz as seguintes
condições:
1. Re�exividade: xRx;
2. Antissimetria: se xRy e yRx, então x = y;
3. Transitividade: se xRy e yRz, então xRz.
Dizemos ainda que tal A, diferente de vazio e munido de uma relação R, é chamado de conjunto
ordenado.
Vamos de�nir agora uma relação de ordem em N através da operação adição, o que o torna
um conjunto ordenado.
De�nição 2.4.2. Dados m,n ∈ N, dizemos que mRn se existir p ∈ N tal que n = m+ p
Exemplo 2.4.3.
1. Temos que 2R7, pois 7 = 2 + 5;
2. 4R4, dado que 4 = 4 + 0.
Proposição 2.4.4. A relação R da de�nição 2.4.2 acima é uma relação de ordem em N
Demonstração. De fato, vejamos que valem as propriedades re�exiva, antissimétrica e transi-
tiva:
1. Re�exiva: dado m ∈ N, claramente m = m+ p, para p = 0 ∈ N, logo, mRm;
2. Antissimétrica: sejam m,n ∈ N, mRn e nRm, isto é, existem p, q ∈ N, tais que n = m+p
e m = n+ q. Substituindo a primeira igualdade na segunda, obtemos, m = (m+p)+ q ⇒m = m + (p + q), o que signi�ca que p + q = 0, assim, pela proposição 2.3.3, p = q = 0,
logo, m = n;
3. Transitiva: Sejam l,m, n ∈ N, lRm e mRn, ou seja, existem p, q ∈ N tais que m = l + p
e n = m+ q. Substituindo a primeira igualdade na segunda, obtemos, n = (l+ p) + q, ou
ainda, n = l + (p+ q). Temos que p+ q = r ∈ N, portando, podemos reescrever a última
equação como segue: n = l + r. Sendo assim, concluímos que, lRn.
Logo, a relação R é de ordem em N, como queríamos.
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De�nição 2.4.5. Sejam m,n ∈ N e R a relação da de�nição 2.4.2 acima. Se mRn, diremos
que m é menor ou igual a n e passaremos a escrever m ≤ n no lugar de R, ou seja, m ≤ n
signi�cará mRn.
24
Seja (A,+) um grupo abeliano e ≤ uma relação de ordem em A que satisfaz a ≤ b ⇔b = a + c para algum c ∈ A. Denotamos por A∗ = A \ {0}, B+ = {x ∈ B | x ≥ 0} e
B− = {x ∈ B | x ≤ 0}.Seguem algumas variações desta notação:
• m ≤ n pode ser escrito como n ≥ m. Leremos n é maior ou igual a m;
• Se m ≤ n, mas m 6= n, escrevemos m < n e dizemos que m é menor que n;
• m < n pode ser escrito como n > m e leremos n é maior que m.
Proposição 2.4.6. Para todo n ∈ N∗, 0 < n. Em particular, 0 < 1.
Demonstração. Devemos mostrar que existe p ∈ N tal que n = 0 + p (p 6= 0, pois, 0 ≤ n, mas
n 6= 0). De fato, como n 6= 0, dado que n ∈ N∗, podemos dizer que, n = s(n1) = s(n1) + 0 =
0+s(n1), para algum n1 ∈ N. Sendo assim, encontramos, n = 0+p, com p = s(n1) ∈ N∗, como
queríamos. Temos ainda que 1 = 0 + 1, portanto, 0 < 1.
�
Proposição 2.4.7. Para todo n ∈ N, s(n) > n.
Demonstração. Novamente, devemos mostrar que s(n) = n+ p, com p 6= 0. De fato, temos que
s(n) = n+ 1, claramente 1 6= 0, logo, s(n) > n.
�
Proposição 2.4.8 (Lei da Tricotomia dos Naturais). Para quaisquer m,n ∈ N temos que uma,
e somente uma, das relações seguintes ocorre:
1. m < n;
2. m = n;
3. m > n.
Demonstração. Vamos mostrar primeiro que duas delas não podem ocorrer simultanemante e
depois mostrar que obrigatoriamente uma delas deve ocorrer.
• Claramente, 1 e 2, não podem ocorrer simultanemante, pois, teríamos n = m + p com
p ∈ N∗ e m = n, daí, subtituindo a segunda igualdade na primeira, obteríamos que,
m = m+ p e disso, p = 0, o que é uma contradição, pois, p ∈ N∗. Da mesma forma, 2 e 3
não podem ocorrer juntas. Suponhamos agora que 1 e 3 ocorram ao mesmo tempo, isto
é, n = m+ p e m = n+ q, com p, q ∈ N∗. Substituindo a primeira igualdade na segunda,
obtemos, m = (m+ p) + q ou ainda, m = m+ (p+ q), que nos remete a 0 = p+ q. Pela
proposição 2.3.3, concluímos que p = q = 0, o que é uma contradição, pois p, q ∈ N∗.
• Mostremos esta parte por indução. SejaM = {x ∈ N | x = m ou x > m ou x < m}com m sendo um natural qualquer.
1. Temos que 0 ∈M , pois 0 = m ou 0 6= m. Se 0 6= m, pela proposição 2.4.6, 0 < m.
25
2. Suponhamos agora que k ∈ M , isto é, k = m ou k > m ou k < m. Analisemos os
três casos:
(a) k = m⇒ k + 1 = m+ 1⇒ k + 1 > m⇒ k + 1 ∈M ;
(b) k > m⇒ k = m+p para p ∈ N∗ ⇒ k+1 = (m+p)+1⇒ k+1 = m+(p+1)⇒k + 1 > m⇒ k + 1 ∈M ;
(c) k < m⇒ m = k+p para p ∈ N∗. Como p 6= 0, temos que p = p1+1 com p1 ∈ N.Logo, m = k + p ⇒ m = k + (p1 + 1) ⇒ m = (k + 1) + p1. Se p1 = 0 teremos
m = k+ 1 e portanto, k+ 1 ∈M . Se p1 6= 0, então, k+ 1 < m, logo, k+ 1 ∈M .
Sendo assim, conluímos que, se k ∈M , então k + 1 ∈M .
Logo, por indução, N =M .
�
A Proposição 2.4.8 anterior nos fornece o fato de que dois naturais são sempre compará-
veis pela relação de ordem acima de�nida. Chamamos uma relação de ordem que obedece a
tricotomia de relação de ordem total. Veja a seguir uma relação de ordem que não obedece a
tricotomia. Neste caso diremos que é uma relação de ordem parcial.
Exemplo 2.4.9. Sejam X um conjunto e R a relação de inclusão entre os elementos de P(X).
Esta é uma relação de ordem em, P(X), mas só é de ordem total quando X é vazio ou unitário.
De fato, seja X um conjunto qualquer. Vamos veri�car primeiramente que esta é uma
relação de ordem:
1. Re�exiva: seja Y um elemento qualquer de P(X). Como Y = Y , claramente, Y ⊂ Y ;
2. Antissimétrica: sejam Y e Z elementos de P(X), Y ⊂ Z e Z ⊂ Y . Disso já temos que
Y = Z;
3. Transitiva: sejam Y , Z e W elementos de P(X), Y ⊂ Z e Z ⊂ W . Obviamente, Y ⊂ W .
Concluímos, assim, que esta é uma relação de ordem. Precisamos agora veri�car se é de ordem
total.
Consideremos primeiro X diferente de vazio e não unitário, por exemplo, X = {a, b}. Comisso, P(X) = {∅, {a}, {b}, {a, b}}. Vemos facilmente que {a} * {b} e {b} * {a}, portanto,não obedece a tricotomia. Concluímos então que esta é uma relação de ordem parcial em X
diferente de vazio e não unitário.
Suponhamos agora X = ∅ e assim, P(X) = {∅}. Esta é uma relação de ordem total, pois
o único subconjunto de P(X) é o conjunto vazio, e, obviamente, ∅ = ∅, além de ∅ não está
propropriamente contido em ∅.Seja agora X um conjunto unitário qualquer, digamos X = {a}. Sabemos que P(X) =
{∅, {a}}. O vazio é subconjunto de qualquer conjunto, sendo assim, ∅ ⊂ {a} e ainda, {a} * ∅,ou seja, satisfaz a tricotomia. Veri�camos, assim, que a relação de inclusão é de ordem em
todo caso, mas é relação de ordem total apenas quando X é vazio ou unitário.
Teorema 2.4.10. Sejam a, b, c ∈ N. Valem os seguintes itens:
1. a ≤ b⇔ a+ c ≤ b+ c;
26
2. a ≤ b⇔ ac ≤ bc com c 6= 0;
Demonstração.
1. (⇒) a ≤ b⇒ existe p ∈ N tal que b = a+ p. Daí, b+ c = (a+ p) + c = (a+ c) + p, logo
b+ c ≥ a+ c.
(⇐) a+c ≤ b+c⇒ b+c = (a+c)+p para algum p ∈ N. Daí temos, b+c = (a+c)+p⇒b+ c = (a+ p) + c⇒ b = a+ p, logo a ≤ b.
2. (⇒) a ≤ b ⇒ b = a + q para algum q ∈ N. Suponhamos que bc < ac, ou seja,
ac = bc + p para algum p ∈ N∗. Substituindo a primeira igualdade nesta última ob-
temos ac = (a + q)c + p ⇒ ac = ac + qc + p ⇒ 0 = qc + p, daí, pela proposição 2.3.2,
qc = p = 0, o que é uma contradição, pois p ∈ N∗. Logo, ac ≤ bc, como queríamos.
(⇐) ac ≤ bc ⇒ bc = ac + p para algum p ∈ N. Suponhamos b < a, ou seja, a = b + q
para q ∈ N∗. Substituindo esta igualdade na anterior, obtemos, bc = (b+ q)c+ p⇒ bc =
bc + qc + p ⇒ 0 = qc + p ⇒ 0 = qc = p, daí, pelo item 5 do teorema 2.3.4, obtemos que
q = 0 ou c = 0. Como c 6= 0, nos resta que, q = 0, o que é uma contradição, pois q ∈ N∗ .Portanto, pela tricotomia, a ≤ b.
�
Note que o teorema anterior é válido com < no lugar de ≤ e a demostração segue da mesma
forma.
Teorema 2.4.11 (Lei do cancelamento da multiplicação). Sejam a, b, c ∈ N, com c 6= 0, tais
que ac = bc, então a = b.
Demonstração. Suponhamos que a 6= b. Pela tricotomia devemos ter a < b ou b < a. Se a < b,
pelo teorema anterior, temos, ac < bc, contradizendo a hipótese de que ac = bc, da mesma
forma, b < a⇒ bc < ac, também contradiz a hipótese. Logo, a = b.
�
Teorema 2.4.12. Sejam a, b ∈ N. Temos que a < b se, e somente se, a+ 1 ≤ b.
Demonstração.
(⇒) a < b⇒ b = a+ p, com p ∈ N∗, assim, podemos escrever p = s(p1) = p1 + 1, com p1 ∈ N.Temos: b = a+ p⇒ b = a+ (p1 + 1)⇒ b = (a+ 1) + p1 ⇒ b ≥ a+ 1.
(⇐) a + 1 ≤ b ⇒ b = (a + 1) + p, p ∈ N ⇒ b = a + (p + 1) ⇒ b = a + s(p). Obviamente
s(p) ∈ N∗, logo, b > a, como queríamos.
�
Concluímos da relação de ordem em N que, se a ∈ N, então, a < s(a), pois s(a) = a + 1.
Dessa forma 0 < 1 < 2 < 3 < . . .. Notemos, ainda, que não existem naturais entre a e s(a),
para todo a ∈ N, pois a < r < a+ 1 implicaria, pelo teorema anterior, que a + 1 ≤ r < a + 1,
ou seja, a+ 1 < a+ 1, o que não pode acontecer.
27
O próximo teorema aborda um conceito intuitivamente claro desde o Ensino Fundamental:
todo subconjunto não vazio de números naturais possui um menor elemento. Mas antes dele
introduziremos o conceito de menor elemento.
De�nição 2.4.13. Dado um conjunto ordenado A, dizemos que a ∈ A é um menor elemento
de A se a ≤ x para todo x ∈ A.
Proposição 2.4.14. Se A é um conjunto ordenado que admite um menor elemento, então este
menor elemento é único e chamado de elemento mínimo de A e denotado por minA.
Demonstração. Sejam a1 e a2 menores elementos de A. Como a2 é um menor elemento de A,
temos que a2 ∈ A e ainda, como a1 ≤ x, ∀x ∈ A, temos que a1 ≤ a2. Da mesma forma,
a1 ∈ A e a2 ≤ x, ∀x ∈ A, logo a2 ≤ a1. Se a1 ≤ a2 e a2 ≤ a1, pela antissimetria a1 = a2,
como queríamos.
�
De modo análogo ao que foi feito no teorema anterior, maxA é o maior elemento ou elemento
máximo de um conjunto ordenado.
Teorema 2.4.15 (Princípio da Boa Ordem). Todo subconjunto não vazio de números naturais
possui um menor elemento.
Demonstração. Seja S um tal subconjunto de N e consideremos o conjunto M = {n ∈ N | n ≤x, ∀x ∈ S}. Claro que 0 ∈ M . Como S 6= ∅, tomemos s ∈ S. Então s + 1 /∈ M , pois s + 1
não é menor ou igual a s. Assim, M 6= N. Como 0 ∈ M e N 6= M , deve existir k ∈ M tal que
k + 1 /∈M , caso contrário, pelo princípio de indução, M = N.A�rmamos que este k é o menor elemento de S, isto é, k = minS.
Como k ∈ M , então k ≤ x, ∀x ∈ S. Só falta mostrar que k ∈ S. Suponhamos que k /∈ S.Então k < x, ∀x ∈ S. Pelo teorema anterior teríamos k + 1 ≤ x, ∀x ∈ S, o que signi�caria que
k + 1 ∈M , contradizendo a escolha de k.
Logo k ∈ S, como queríamos.
�
Vimos que o Princípio de Indução implica no Princípio da Boa Ordem. Estes dois princípios
são equivalentes. Neste caso assumimos o Princípio de Indução e provamos o da Boa Ordem, mas
poderíamos ter assumido o da Boa Ordem e demonstrado o outro como teorema, conseguindo
os mesmo resultados.
Proposição 2.4.16. Seja X um subconjunto de N satisfazendo os dois itens abaixo:
1. a ∈ X;
2. n ∈ X ⇒ n+ 1 ∈ X.
Então, temos que {a, a+ 1, a+ 2, . . .} ⊂ X.
Demonstração. Queremos mostrar que se m ∈ N então a+m ∈ X, ou seja, queremos mostrar
que Y = {m ∈ N | a+m ∈ X} = N. Consideremos Y dessa forma e apliquemos indução sobre
ele:
28
1. 0 ∈ Y pois a+ 0 = a ∈ X por de�nição de X;
2. Suponhamos agora k ∈ Y e provemos que k+1 ∈ Y . Se k ∈ Y , então a+ k ∈ X, daí, por
de�nição de X, (a+ k) + 1 ∈ X, ou ainda, a+ (k+1) ∈ X, o que signi�ca que k+1 ∈ Y .
Logo N = Y .
�
Proposição 2.4.17. Seja s : N −→ N a função sucessor. Para cada n ≥ 1, tem-se sn(0) 6=sk(0), para todo k < n.
Demonstração. Seja X = {n ∈ N∗ | sn(0) 6= sk(0),∀k < n}. Vamos mostrar, usando a
proposição anterior, que X = N∗:
1. 1 ∈ X, pois s1(0) = s(0) = 1 6= 0 = s0(0);
2. Seja n ∈ X, isto é, sn(0) 6= sk(0), para todo k < n. Apliquemos s a ambos os lados
dessa desigualdade, isto é, sn+1(0) 6= sk+1(0), para todo k < n. Podemos dizer que
sn+1(0) 6= sl(0) para todo l de 1 até n. Temos ainda que, sn+1(0) 6= 0 = s0(0), daí
sn+1(0) 6= s1(0), para todo l < n+ 1, o que diz que n+ 1 ∈ X, como queríamos.
Sendo assim, por indução X = N∗.�
29
Capítulo 3
Números Inteiros
Por conta do rigor matemático, não é adequado seguir a ideia de número inteiro que é
introduzida na escola. Faremos aqui uma construção rigorosa com todas as demonstrações
precisas deste conjunto numérico, através das noções básicas de Teoria dos Conjuntos e de
relações de equivalência.
3.1 Relação de Equivalência em N× N
De�niremos aqui, um número inteiro como uma classe de equivalência dada por uma relação
de equivalência no conjunto N × N. Dessa forma, o conjunto Z dos inteiros será o conjunto
destas classes de equivalência. Em seguida, iremos de�nir duas operações em Z e mostrar que
Z possui uma cópia algébrica de N. De�niremos a operação subtração em Z e �nalizaremos a
sua construção.
Comecemos então de�nindo esta relação em N× N e provando que é de equivalência:
De�nição 3.1.1. Sejam (a, b), (c, d) ∈ N × N. Dizemos que (a, b) está relacionado com (c, d)
quando a+ d = b+ c. Denotaremos por (a, b) ∼ (c, d).
Teorema 3.1.2. A relação descrita acima é de equivalência.
Demonstração.
1. Re�exiva: Se (a, b) ∈ N× N, então a+ b = b+ a, por herança da comutativa em N, logo,(a, b) ∼ (a, b).
2. Simétrica: Se (a, b), (c, d) ∈ N×N e (a, b) ∼ (c, d), então, a+d = b+c, e disso, c+b = d+a,
que signi�ca, (c, d) ∼ (a, b).
3. Transitiva: Se (a, b), (c, d), (e, f) ∈ N × N, (a, b) ∼ (c, d) e (c, d) ∼ (e, f), temos que,
a+d = b+c e c+f = d+e. Assim temos a+d+e = b+c+e e a+c+f = a+d+e,
daí,
b+ c+ e = a+ c+ f ⇒ b+ e = a+ f ⇒ a+ f = b+ e.
Logo, (a, b) ∼ (e, f).
�
30
Pensando de forma intuitiva, por um momento, considerando a subtração de inteiros, no-
tamos que a + d = b + c é equivalente a a − b = c − d, isto é, dois pares ordenados são
equivalentes, segundo a de�nição acima, quando a diferença entre suas coordenadas, na mesma
ordem, coincidem.
Esta foi a forma encontrada pelos matemáticos do século XIX para iniciar a construção
do conjunto Z sem mencionar a subtração, mas trazendo a sua essência, tendo como ponto de
partida os naturais e suas operações.
Denotaremos por (a, b) a classe de equivalência do par ordenado (a, b) pela relação ∼, istoé,
(a, b) = {(x, y) ∈ N× N | (x, y) ∼ (a, b)}.
Exemplo 3.1.3.
1. (3, 2) = {(2, 1), (3, 2), (4, 3), (5, 4), . . .};
2. (1, 7) = {(0, 6), (1, 7), (2, 8), (3, 9), . . .};
3. (5, 4) = {(2, 1), (3, 2), (4, 3), (5, 4), . . .}.
Podemos ver que (3, 2) = (5, 4).
De�nição 3.1.4. O conjunto quociente N × N/ ∼ constituído pelas classes de equivalência
(a, b) será denota por Z e chamado de conjunto dos números inteiros. Assim, Z = N×N/ ∼={(a, b) | (a, b) ∈ N× N}.
3.2 Adição de números inteiros
De�niremos agora a operação (+) em Z que denominaremos por adição. Voltando à nossa
intuição, se (a, b) expressa, em essência, a �diferença� (a− b) e (c, d) expressa (c− d), a mate-
mática elementar nos dá (a− b) + (c− d) = (a+ c)− (b+ d). Esta última expressão se traduz
em (a+ c, b+ d). Esta é a motivação para a de�nição formal de (a, b) + (c, d), que daremos a
seguir.
De�nição 3.2.1. Sejam (a, b), (c, d) ∈ Z. A soma (a, b) + (c, d) é dada por (a+ c, b+ d).
Vamos mostrar a seguir que esta operação de adição está bem de�nida.
Teorema 3.2.2. Se (a, b) = (a′, b′) e (c, d) = (c′, d′), então, (a, b) + (c, d) = (a′, b′) + (c′, d′),
isto é, a adição de números inteiros está bem de�nida.
Demonstração. Como (a, b) = (a′, b′), temos que, (a, b) ∼ (a′, b′), ou seja,
a+ b′ = b+ a′ (3.1)
Da mesma forma,
c+ d′ = d+ c′ (3.2)
31
Temos, por de�nição, que (a, b) + (c, d) = (a+ c, b+ d) e (a′, b′) + (c′, d′) = (a′ + c′, b′ + d′).
Devemos mostrar que (a+ c, b+ d) = (a′ + c′, b′ + d′). De fato, somando os primeiros e segun-
dos membros de (3.1) e (3.2), na ordem dada, obtemos,
(a+ b′) + (c+ d′) = (b+ a′) + (d+ c′)⇒ (a+ c) + (b′ + d′) = (b+ d) + (a′ + c′).
Portanto, (a+ c, b+ d) = (a′ + c′, b′ + d′), como queríamos.
�
Teorema 3.2.3. A adição em Z é comutativa, associativa e tem (0, 0) como elemento neutro.
Demonstração.
1. Comutativa: Devemos mostrar que, dados (a, b) e (c, d) em Z, temos (a, b) + (c, d) =
(c, d) + (a, b). De fato, (a+ b) + (c+ d) = (a+ c, b+ d) = (c+ a, d+ b) = (c, d) + (a, b).
2. Associativa: Queremos mostrar que, dados (a, b), (c, d) e (e, f) em Z, temos (a, b)+((c, d)+
(e, f)) = ((a, b) + (c, d)) + (e, f)
(a, b) + ((c, d) + (e, f)) = (a, b) + ((c+ e, d+ f))
= (a+ (c+ e), b+ (d+ f))
= ((a+ c) + e, (b+ d) + f)
= (a+ c, b+ d) + (e, f)
= ((a, b) + (c, d)) + (e, f)
3. Elemento Neutro: Dado (a, b) e (0, 0) em Z.
(a, b) + (0, 0) = (a+ 0, b+ 0) = (0 + a, 0 + b)
= (0, 0) + (a, b) = (a, b)
�
Teorema 3.2.4 (Cancelamento da Adição). Dados α, β, γ ∈ Z e α+ β = γ + β, então α = γ.
Demonstração. Seja α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f). Assim,
(a, b) + (c, d) = (e, f) + (c, d) ⇒ (a+ c, b+ d) = (e+ c, f + d)
⇒ (a+ c) + (f + d) = (b+ d) + (e+ c)
⇒ a+ f = b+ e
⇒ (a, b) = (e, f)
�
Teorema 3.2.5. Vale a propriedade do elemento oposto: dado (a, b) ∈ Z, existe um único
(c, d) ∈ Z tal que (a, b) + (c, d) = (0, 0). Este (c, d) é o elemento (b, a).
32
Demonstração. Provaremos inicialmente a existência deste elemento oposto e, em seguida, a
sua unicidade.
Seja (a, b) ∈ Z. Tomemos (c, d) = (b, a) ∈ Z e assim,
(a, b) + (c, d) = (e, f) ⇒ (a, b) + (b, a) = (e, f)
⇒ (a+ b, b+ a) = (e, f)
⇒ a+ b+ f = b+ a+ e
⇒ f + 0 = e+ 0
⇒ (f, e) = (0, 0)
⇒ (a, b) + (c, d) = (0, 0).
Sendo assim, existe um elemento (c, d) = (b, a) ∈ Z, tal que, (a, b) + (c, d) = (0, 0).
Suponhamos que existam dois elementos distintos desta forma, (c, d), (c′, d′) ∈ Z, isto é,
(c, d) 6= (c′, d′) ⇒ c+ d′ 6= d+ c′. (3.3)
Como ambos são opostos a (a, b), temos:
(a, b) + (c, d) = (0, 0) ⇒ (a+ c, b+ d) = (0, 0)
⇒ a+ c = b+ d (3.4)
e
(a, b) + (c′, d′) = (0, 0) ⇒ (a+ c′, b+ d′) = (0, 0)
⇒ a+ c′ = b+ d′ (3.5)
Somando o primeiro membro de (3.4) ao segundo de (3.5) e o primeiro de (3.5) com o segundo
de (3.4) obtemos:
a+ c+ b+ d′ = b+ d+ a+ c′ ⇒ c+ d′ = d+ c′,
o que contradiz (3.3). Portanto, (c, d) = (c′, d′), com queríamos.
�
De�nição 3.2.6. Dado α ∈ Z, o único β ∈ Z, tal que, α+ β = (0, 0) chama-se simétrico de α
(ou oposto de α, ou inverso aditivo de α). Sua unicidade permite que o denotemos por −α.
Dessa forma, α + (−α) = (0, 0) e, como visto, −α = (b, a). A existência e unicidade de
oposto de um número inteiro permite que de�namos uma terceira operação em Z, denominada
subtração.
De�nição 3.2.7. A subtração em Z, denotada por (−), é a operação de�nida da seguinte
forma: se α, β ∈ Z, então α− β = α + (−β).
Assim, a subtração α− β é a soma de α com o oposto de β.
Proposição 3.2.8. Para α, β, γ ∈ Z, vale:
33
1. −(−α) = α;
2. −α + β = β − α;
3. α− (−β) = α + β;
4. −α− β = −(α + β);
5. α− (β + γ) = α− β − γ;
Demonstração.
1. Seja α = (a, b), então, −α = (b, a), e assim,
−(−α) = −(b, a) = (a, b) = α.
2. Seja α = (a, b) e β = (c, d). Claramente, −α = (b, a). Temos:
−α + β = (b, a) + (c, d) = (b+ c, a+ d)
= (c+ b, d+ a) = (c, d) + (b, a)
= β − α.
3. Seja α = (a, b) e β = (c, d), e assim, −α = (b, a) e −β = (d, c).
α− (−β) = (a, b)− (d, c)
= (a, b) + (c, d) = α + β.
4. Se α = (a, b) e β = (c, d), teremos, −α = (b, a) e −β = (d, c), e assim:
−α− β = (b, a)− (c, d) = (b, a) + (d, c)
= (b+ d, a+ c) = −(a+ c, b+ d)
= −((a, b) + (c, d)) = −(α + β).
5. Se α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f), então, −α = (b, a), −β = (d, c) e −γ = (f, e) e
assim:
α− (β + γ) = (a, b)− ((c, d) + (e, f)) = (a, b)− (c+ e, d+ f)
= (a, b) + (d+ f, c+ e) = (a, b) + (d, c) + (f, e)
= α− β − γ.
�
3.3 Multiplicação dos inteiros
De�niremos a seguir outra operação em Z, a qual denotaremos por (·) e chamaremos de
produto. Pensando intuitivamente, se (a, b) nos expressa (a − b), (c, d) expressa (c − d) e
34
(a− b) · (c− d) = a · c+ b · d− (a · d+ b · c), temos a motivação para a seguinte de�nição.
De�nição 3.3.1. Dados (a, b) e (c, d) em Z, de�nimos o produto (a, b) · (c, d) como sendo
(a · c+ b · d, a · d+ b · c).
Teorema 3.3.2. A multiplicação em Z está bem de�nida, isto é, se (a, b) = (a′, b′) e (c, d) =
(c′, d′), então, (a, b) · (c, d) = (a′, b′) · (c′, d′).
Demonstração. Seja (a, b) = (a′, b′), isto é, a+ b′ = b+ a′, que nos fornece:
ca+ cb′ = cb+ ca′ (3.6)
e
da+ b′d = bd+ a′d. (3.7)
Somando as equações (3.6) e (3.7) obtemos
ac+ bd+ a′d+ b′c = ad+ bc+ a′c+ b′d
(ac+ bd, ad+ bc) = (a′c+ b′d, a′d+ b′c)
(a, b) · (c, d) = (a′, b′) · (c, d). (3.8)
Do mesmo modo, (c, d) = (c′, d′)⇒ c+ d′ = d+ c′, de onde obtemos:
a′c+ a′d′ = a′d+ a′c′ (3.9)
e
b′c+ b′d′ = b′d+ b′c′. (3.10)
Novamente somando as equações (3.9) e (3.10) obtemos
a′c+ b′d+ a′d′ + b′c′ = a′d+ b′c+ a′c′ + b′d′
(a′c+ b′d, a′d+ b′c) = (a′c′ + b′d′, a′d′ + b′c′)
(a′, b′) · (c, d) = (a′, b′) · (c′, d′). (3.11)
Dessa maneira, observando (3.8) e (3.11), obtemos que
(a, b) · (c, d) = (a′, b′) · (c′, d′),
como queríamos.
�
Teorema 3.3.3. A multiplicação em Z é comutativa, associativa, tem (1, 0) como neutro mul-
tiplicativo e é distributiva em relação a adição. Além disso, vale a propriedade do cancelamento
multiplicativo, isto é, se α, β, γ ∈ Z, com γ 6= (0, 0) e αγ = βγ, então α = β.
Demonstração.
35
1. Comutativa: Sejam α = (a, b) e β = (c, d) em Z. Temos,
αβ = (a, b) · (c, d) = (ac+ bd, ad+ bc) (3.12)
βα = (c, d) · (a, b) = (ca+ db, cb+ da). (3.13)
Podemos ver que (3.12) é igual a (3.13), isto é, (ac+ bd, ad+ bc) = (ca+ db, cb+ da), que
signi�ca αβ = βα.
2. Associativa: Sejam α = (a, b), β = (c, d), γ = (e, f) ∈ Z.
α(βγ) = (a, b) · ((c, d) · (e, f)) = (a, b) · (ce+ df, cf + de)
= (a(ce+ df) + b(cf + de), a(cf + de) + b(ce+ df))
= (ace+ adf + bcf + bde, acf + ade+ bce+ bdf). (3.14)
(αβ)γ = ((a, b) · (c, d)) · (e, f) = (ac+ bd, ad+ bc) · (e, f)= ((ac+ bd)e+ (ad+ bc)f, (ac+ bd)f + (ad+ bc)e)
= (ace+ bde+ adf + bcf, acf + bdf + ade+ bce). (3.15)
Podemos ver que (3.14) é igual a (3.15), logo, α(βγ) = (αβ)γ.
3. Elemento Neutro: Sejam α = (a, b) e β = (1, 0) ∈ Z.
α · β = (a, b) · (1, 0)= (a · 1 + b · 0, a · 0 + b · 1)= (a, b) = α. (3.16)
4. Distributiva: Sejam α = (a, b), β = (c, d), γ = (e, f) ∈ Z.
α(β + γ) = (a, b) · ((c, d) + (e, f)) = (a, b) · ((c+ e, d+ f))
= (a(c+ e) + b(d+ f), a(d+ f) + b(c+ e))
= (ac+ ae+ bd+ bf, ad+ af + bc+ be)
= (ac+ bd, ad+ bc) + (ae+ bf, af + be)
= (a, b) · (c, d) + (a, b) · (e, f) = αβ + αγ.
5. Cancelamento Multiplicativo: sejam α = (a, b), β = (c, d), γ = (e, f) ∈ Z, com (e, f) 6=(0, 0) tais que αγ = βγ, isto é,
(ae+ bf, af + be) = (ce+ df, cf + de)
que equivale a
ae+ bf + cf + de = af + be+ ce+ df
36
e disso,
e(a+ d) + f(b+ c) = e(b+ c) + f(a+ d).
Como (e, f) 6= (0, 0), temos que e + 0 6= f + 0 ⇒ e 6= f . Suponhamos e > f (ou
f > e), ou seja, e = f + p, com p ∈ N∗. Com isso, desenvolvendo os dois membros de
cada igualdade teremos:
(f + p)(a+ d) + f(b+ c) = (f + p)(b+ c) + f(a+ d)
⇒ fa+ fd+ pa+ pd+ fb+ fc = fb+ fc+ pb+ pc+ fa+ fd
⇒ pa+ pd = pb+ pc ⇒ p(a+ d) = p(b+ c)
⇒ a+ d = b+ c ⇒ (a, b) = (c, d)⇒ α = β.
�
Proposição 3.3.4. Se α, β ∈ Z e αβ = (0, 0), então, α = (0, 0) ou β = (0, 0).
Demonstração. Seja α = (a, b) e β = (c, d).
αβ = (0, 0) ⇒ (a, b) · (c, d) = (0, 0)
⇒ (ac+ bd, ad+ bc) = (0, 0)
⇒ ac+ bd+ 0 = ad+ bc+ 0
⇒ ac+ bd = ad+ bc. (3.17)
Suponhamos (a, b) 6= (0, 0), isto é a 6= b. Dessa forma a > b (ou b > a), e assim, a = b+ p, com
p ∈ N∗. Substituindo esta igualdade em (3.17) obtemos:
(b+ p)c+ bd = (b+ p)d+ bc ⇒ bc+ pc+ bd = bd+ pd+ bc
⇒ pc = pd.
Como p ∈ N∗, podemos usar a lei do cancelamento, e concluir que c = d, o que signi�ca que
(c, d) = (0, 0). Analogamente, se supormos que (c, d) 6= (0, 0), concluiremos que (a, b) = (0, 0).
�
Proposição 3.3.5. Se α, β ∈ Z, temos:
1. (−α)β = −αβ = α(−β);
2. (−α)(−β) = αβ.
Demonstração.
1. Seja α = (a, b) e β = (c, d) e assim, −α = (b, a) e −β = (d, c). Dessa forma,
(−α)β = (b, a) · (c, d)= (bc+ ad, bd+ ac) (3.18)
37
−αβ = −(a, b) · (c, d)= −(bd+ ac, bc+ ad)
= (bc+ ad, bd+ ac) (3.19)
α(−β) = (a, b) · (d, c)= (ad+ bc, ac+ db) (3.20)
Claramente, (3.18), (3.19) e (3.20) são iguais, isto é, (−α)β = −αβ = α(−β).
2. Consideremos os mesmos α e β do item anterior:
(−α)(−β) = (b, a) · (d, c) = (bd+ ac, bc+ ad)
= (a, b) · (c, d) = αβ
�
Proposição 3.3.6. Dados α, β, γ ∈ Z, é válida a propriedade distributiva da multiplicação em
relação a subtração, isto é, α(β − γ) = αβ − αγ.
Demonstração.
α(β − γ) = α(β + (−γ))= αβ + α(−γ).
Assim, pelo item 1 da Proposição 3.3.5, α(β − γ) = αβ − αγ, como queríamos.
�
3.4 Relação de Ordem em Z
Façamos, como em N, uma comparação dos elementos de Z através de uma relação de ordem.
De�nição 3.4.1. Dados os inteiros (a, b) e (c, d), escrevemos (a, b) ≤ (c, d), quando a + d ≤b+ c.
Proposição 3.4.2. A relação de�nida anteriormente está bem de�nida, isto é, se (a, b) =
(a′, b′), (c, d) = (c′, d′) e (a, b) ≤ (c, d), então, (a′, b′) ≤ (c′, d′).
Demonstração.
(a, b) = (a′, b′) ⇒ a+ b′ = b+ a′. (3.21)
(c, d) = (c′, d′) ⇒ c+ d′ = d+ c′. (3.22)
38
(a, b) ≤ (c, d) ⇒ a+ d ≤ b+ c
⇒ a+ b′ + d ≤ b+ b′ + c
⇒ a+ b′ + d+ d′ ≤ b+ b′ + c+ d′. (3.23)
Subtituindo (3.21) e (3.22) em (3.23), obtemos
b+ a′ + d+ d′ ≤ b+ b′ + d+ c′ ⇒ a′ + d′ ≤ b′ + c′
⇒ (a′, b′) ≤ (c′, d′).
�
Teorema 3.4.3. A relação ≤ de�nida acima é uma relação de ordem em Z, ou seja, é re�exiva,
antissimétrica e transitiva.
Demonstração.
1. Re�exiva: Seja α = (a, b) ∈ Z. Claramente, (a, b) ≤ (a, b), pois, (a, b) = (a, b).
2. Antissimétrica: Sejam α, β ∈ Z, α ≤ β e β ≤ α. Consideremos α = (a, b) e β = (c, d) e
assim,
α ≤ β
(a, b) ≤ (c, d)
a+ d ≤ b+ c
e
β ≤ α
(c, d) ≤ (a, b)
c+ b ≤ d+ a.
Pela tricotomia dos naturais, obtemos que, a+ d = b+ c, isto é, (a, b) = (c, d).
3. Transitiva: Sejam α, β, γ ∈ Z, α ≤ β e β ≤ γ, com α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f).
Destas desigualdades obtemos a + d ≤ b + c e c + f ≤ d + e. Sendo assim, existem
p, q ∈ N tais que,
a+ d+ p = b+ c
e
c+ f + q = d+ e.
Somando os primeiros e segundos membros das duas igualdades, na ordem dada, obtemos
a+ d+ p+ c+ f + q = b+ c+ d+ e
a+ f + p+ q = b+ e
Como p+ q ∈ N, concluímos que, a+ f ≤ b+ e, ou seja, (a, b) ≤ (e, f), como queríamos.
39
�
Teorema 3.4.4. A relação ≤ é compatível com as operações em Z, isto é,
1. α ≤ β ⇒ α + γ ≤ β + γ;
2. α ≤ β e γ ≥ (0, 0)⇒ αγ ≤ βγ;
3. Apenas uma das situações seguintes ocorre: α = (0, 0) ou α < (0, 0) ou α > (0, 0).
Demonstração.
1. Tomemos α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f) em Z. Assim,
(a, b) ≤ (c, d) ⇒ a+ d ≤ b+ c
⇒ a+ e+ d+ f ≤ b+ f + c+ e
⇒ (a+ e, b+ f) ≤ (c+ e, d+ f)
⇒ (a, b) + (e, f) ≤ (c, d) + (e, f)
⇒ α + γ ≤ β + γ.
Como queríamos.
2. Sejam α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f). Dessa forma obtemos, a+ d ≤ b+ c e e ≥ f .
Sendo assim, existem p, q ∈ N, tais que, b+ c = a+ d+ p e e = f + q. Temos que,
b+ c = a+ d+ p ⇒ be+ ce = ae+ de+ pe, (3.24)
b+ c = a+ d+ p ⇒ bf + cf = af + df + pf (3.25)
e
e = f + q ⇒ pe = pf + pq. (3.26)
Somando o segundo membro da igualdade (3.24) com o primeiro da igualdade (3.25) e o
primeiro membro de (3.24) com o segundo de (3.25), obtemos,
ae+ de+ pe+ bf + cf = be+ ce+ af + df + pf.
Substituindo (3.26) nesta última igualdade, obtemos
ae+ de+ pf + pq + bf + cf = be+ ce+ af + df + pf
ae+ de+ bf + cf + pq = be+ ce+ af + df
ae+ de+ bf + cf ≤ be+ ce+ af + df
(ae+ bf, af + be) ≤ (ce+ df, cf + de)
(a, b) · (e, f) ≤ (c, d) · (e, f)αγ ≤ βγ.
40
3. Suponhamos α > (0, 0) e α < (0, 0) simultaneamente, com α = (a, b).
(a, b) > (0, 0)⇒ a > b
e
(a, b) < (0, 0)⇒ a < b,
o que é um absurdo pela tricotomia dos naturais. Suponhamos agora α = (0, 0) e α < (0, 0)
(ou α > (0, 0)) simultaneamente.
(a, b) < (0, 0)⇒ a < b
e
(a, b) = (0, 0)⇒ a = b,
o que novamente é um absurdo, pela tricotomia dos naturais. Como queríamos.
�
O seguinte teorema mostra que Z é não só ordenado, como também, totalmente ordenado,
isto é, a relação ≤ é de ordem total em Z.
Teorema 3.4.5 (Tricotomia dos Inteiros). Para α, β, γ ∈ Z, uma e apenas uma das situações
seguintes ocorre: α = β ou α < β ou β < α.
Demonstração. Suponhamos α < β e β < α simultaneamente:
α < β ⇒ (a, b) < (c, d)⇒ a+ d < b+ c
β < α⇒ (c, d) < (a, b)⇒ c+ b < d+ a,
absurdo pela tricotomia dos naturais. Da mesma forma, suponhamos α < β (ou β < α) e
α = β simultaneamente:
α < β ⇒ (a, b) < (c, d)⇒ a+ d < b+ c
α = β ⇒ (a, b) = (c, d)⇒ a+ d = b+ c
Absurdo pela tricotomia dos naturais. Além disto, novamente pela tricotomia dos naturais,
necessariamente uma das seguintes ocorre:
a+ d < b+ c, b+ c < a+ d, a+ d = b+ c.
Isto signi�ca que uma das seguintes deve ocorrer
(a, b) < (c, d), (c, d) < (a, b), (a, b) = (c, d).
�
Teorema 3.4.6. Para α, β ∈ Z, α ≤ β e γ < (0, 0), temos que αγ ≥ βγ.
Demonstração. Sejam α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f). Temos que,
(e, f) < (0, 0)⇒ e < f ⇒ (0, 0) < (f, e).
41
Daí, como α ≤ β, pelo item 2 do Teorema 3.4.4
(a, b) · (f, e) ≤ (c, d) · (f, e) ⇒ (af + be, ae+ bf) ≤ (cf + de, ce+ df)
⇒ af + be+ ce+ df ≤ ae+ bf + cf + de
⇒ (ce+ df, cf + de) ≤ (ae+ bf, af + be)
⇒ (c, d) · (e, f) ≤ (a, b) · (c, d)⇒ βγ ≤ αγ.
�
De�nição 3.4.7. Dado (a, b) ∈ Z, dizemos que:
1. (a, b) é positivo quando (a, b) > (0, 0);
2. (a, b) é não negativo quando (a, b) ≥ (0, 0);
3. (a, b) é negativo quando (a, b) < (0, 0);
4. (a, b) é não positivo quando (a, b) ≤ (0, 0);
Observemos que se (a, b) > (0, 0) então a > b, e assim, existe m ∈ N∗ tal que b+m = a, que
equivale (a, b) = (m, 0). Analogamente, se (a, b) < (0, 0), existe m ∈ N∗, tal que a +m = b e
dessa forma, (a, b) = (0,m). Dessa forma, temos que Z = {(0,m) | m ∈ N∗}∪{(0, 0)}∪{(m, 0) |m ∈ N∗}, onde esta união é disjunta. Além disso,
Z∗− = {(0,m) | m ∈ N∗}, Z− = {(0,m) | m ∈ N∗} ∪ {(0, 0)}Z∗+ = {(m, 0) | m ∈ N∗}, Z+ = {(m, 0) | m ∈ N∗} ∪ {(0, 0)}
Observemos que Z+ está em bijeção com N, o que mostra que Z+ é uma cópia algébrica de Nem Z, como o seguinte teorema traduz.
Teorema 3.4.8. Seja f : N −→ Z dada por f(m) = (m, 0). Então f é injetora e valem as
seguintes propriedades:
1. f(m+ n) = f(m) + f(n);
2. f(mn) = f(m)f(n);
3. Se m ≤ n, então f(m) ≤ f(n);
Demonstração. Provemos inicialmente que f é injetora. De fato,
f(m) = f(n)⇒ (m, 0) = (n, 0)⇒ m+ 0 = 0 + n⇒ m = n.
Provemos agora os três itens. Sejam m,n ∈ N.
1. f(m+ n) = (m+ n, 0) = (m, 0) + (n, 0) = f(m) + f(n);
2. f(mn, 0) = (mn, 0) = (m, 0) · (n, 0) = f(m)f(n);
3. Se m ≤ n, temos que, (m, 0) ≤ (n, 0), ou seja, f(m) ≤ f(n).
42
�
O teorema acima nos garante que f é um homomor�smo injetor, ou seja, um monomor�smo.
Dessa forma, o conjunto f(N) = Z+, tem a mesma estrutura algébrica que N. Por exemplo,
2 + 3 = 5, corresponde, via f , a (2, 0) + (3, 0) = (5, 0). Do mesmo modo, 2.3 = 6, corresponde,
via f , a (2, 0) · (3, 0) = (6, 0). A relação 2 ≤ 3 se preserva, via f , como (2, 0) ≤ (3, 0),
con�rmando a ideia de que a ordem em Z é uma extensão da ordem em N. Dizemos que N é
um subconjunto de Z.A função f descrita acima, chama-se imersão de N em Z, o que mostra, pela De�nição 2.1.2,
que Z é in�nito, dado que f é injetora.
Notemos que, se m ∈ N, o simétrico de (m, 0) é (0,m), logo, se identi�carmos (m, 0) com
m através de f , obtemos −m = −(m, 0) = (0,m). Dessa forma, identi�cando N com Z+, via
f , obtemos o que será de�nido a seguir.
De�nição 3.4.9. De�nimos o conjunto dos inteiros como
Z = {−m | m ∈ N∗} ∪ {0} ∪ N∗ = {. . . ,−m, . . . ,−2,−1, 0, 1, 2, . . . ,m, . . .}.
Usaremos, a partir de agora, esta identi�cação e, então, consideraremos N como um sub-
conjunto de Z. Assim podemos obter
a− b = (a, 0)− (b, 0) = (a, 0) + (−(b, 0)) = (a, 0) + (0, b) = (a, b)
conforme nossas motivações intuitivas feitas anteriormente. Dessa forma, sendo x um inteiro
qualquer, podemos identi�car −x por (−1) · x, pois, sendo x = (a, b),
(−1) · x = (0, 1) · (a, b) = (b, a) = −(a, b) = −x
Teorema 3.4.10. Se x, y ∈ Z temos:
1. Se x > 0 e y > 0, então xy > 0;
2. Se x < 0 e y < 0, então xy > 0;
3. Se x < 0 e y > 0, então xy < 0.
Demonstração.
1. Como x e y são elementos positivos de Z, podemos identi�ca-los por x = (x, 0) e y = (y, 0).
Dessa forma, xy = (x, 0) · (y, 0) = (xy, 0). Sabemos que (xy, 0) > (0, 0), portanto, xy > 0.
2. Pelo Teorema 3.4.6, x < 0⇒ −x > 0 e y < 0⇒ −y > 0, sendo assim,
−x = (−x, 0)⇒ x = −(−x, 0) = (0,−x)e
−y = (−y, 0)⇒ y = −(−y, 0) = (0,−y).
Temos:
xy = (0,−x) · (0,−y)= ((−x)(−y), 0) (3.27)
Sabemos que ((−x)(−y), 0) > (0, 0), portanto, xy > 0.
43
3. Pelo Teorema 3.4.6, x < 0⇒ −x > 0, sendo assim,
−x = (−x, 0)⇒ x = −(−x, 0) = (0,−x).
Temos:
xy = (0,−x) · (y, 0)= (0, (−x)y). (3.28)
Sabemos que, (0, (−x)y) < (0, 0), portanto, xy < 0.
�
De�nição 3.4.11. Seja X um subconjunto não vazio de Z. Dizemos que X é limitado inferi-
ormente se existe α ∈ Z tal que α ≤ x, para todo x ∈ X. Tal α chama-se cota inferior de X.
Dizemos que X é limitado superiormente se existir β ∈ Z tal que x ≤ β para todo x ∈ X. Tal
β é chamado cota superior de X.
Exemplo 3.4.12. Claramente 0 ≤ x para todo x ∈ N ⊂ Z, logo, 0 é cota inferior de N. Da
mesma forma, −1 e qualquer inteiro negativo também o é.
Teorema 3.4.13. N não admite cota superior em Z.
Demonstração. Devemos mostrar que, para todo β ∈ Z, existe x ∈ N, tal que β < x. Seja
β ∈ Z:
• Se β < 0, basta tomar qualquer x ∈ N que já obtemos β < x;
• Se β = 0, basta tomar x = 1 ∈ N, daí, β < x;
• Se β > 0, então, β ∈ N, portanto, s(β) ∈ N. Sabemos que β < s(β), isto é, β < β + 1.
Sendo assim, para todo β > 0 em Z, existe x = β + 1 ∈ N, tal que β < x.
�
Teorema 3.4.14 (Princípio da Boa Ordem). Seja X ⊂ Z não vazio e limitado inferiormente.
Então X possui elemento mínimo.
Demonstração. Seja α uma cota inferior de X, isto é, α ≤ x para todo x ∈ X. Consideremos
X ′ = {x − α | x ∈ X}. Claramente, X ′ ⊂ N (identi�cado com Z+) e, pelo Princípio da Boa
Ordem em N, o conjunto X ′ possui elemento mínimo , digamos, m′. Assim, m′ ∈ X ′ e m′ ≤ y
para todo y ∈ X ′. Como m′ ∈ X ′, m′ = m−α, para algum m ∈ X. A�rmamos que m = m′+α
é elemento mínimo de X. Só falta veri�car que m ≤ x para todo x ∈ X, mas isso equivale a
m−α ≤ x−α para todo x ∈ X, ou ainda, m′ ≤ x−α, que é verdade, pela de�nição de m′ ≤ y.
Logo, m é o mínimo de X.
�
Corolário 3.4.15. Seja x ∈ Z tal que 0 < x ≤ 1. Então x = 1.
44
Demonstração. Seja A = {y ∈ Z | 0 < y ≤ 1}. Temos que A 6= ∅, dado que 1 ∈ A, e A
é limitado inferiormente por 0. Pelo Princípio da Boa Ordem, A possui elemento mínimo,
digamos, m. Suponhamos m < 1. Sendo assim, 0 < m < 1, logo, 0 < m2 < m < 1, o que
signi�ca que m2 ∈ A e é menor do que m, contradizendo a minimalidade de m. Portanto,
m = 1. Como 1 é o máximo e o mínimo de A, temos que, A = {1}.�
Corolário 3.4.16. Sejam n, x ∈ Z tais que n < x ≤ n+ 1. Então x = n+ 1.
Demonstração. Seja A = {x ∈ Z | n < x ≤ n+1, n ∈ Z}. Temos que A 6= ∅ (pois n+1 ∈ A),e A é limitado inferiormente por n. Pelo Princípio da Boa Ordem, A possui elemento mínimo,
digamos, m. Como m ∈ A, temos que n < m ≤ n+1, de onde segue que 0 < m−n ≤ 1. Como
m,n ∈ Z, m− n ∈ Z, assim, pelo Corolário 3.4.15, m− n = 1, ou seja, m = n+ 1.
�
Vamos agora de�nir o conceito de módulo ou valor absoluto de um número inteiro.
De�nição 3.4.17. Seja x ∈ Z. De�nimos o valor absoluto de x (ou módulo de x), denotado
por |x|, como sendo:
|x| =
{x, se x ≥ 0,
−x, se x < 0.
Exemplo 3.4.18.
1. | − 3| = |3| = 3;
2. |0| = 0.
Proposição 3.4.19. Para todo x ∈ Z, temos que:
1. |x| ≥ 0;
2. |x| = 0⇔ x = 0.
Demonstração.
1. Provemos que |x| ≥ 0, para todo x ∈ Z.
• Se x > 0, por de�nição, |x| = x, logo, |x| > 0;
• Se x < 0, por de�nição, |x| = −x, e ainda, pelo Teorema 3.4.6, −x > 0. Portanto,
|x| > 0;
• Se x = 0, temos que |x| = x = 0.
Assim, para todo x ∈ Z, temos |x| ≥ 0.
2. (⇒) Seja |x| = 0.
• Se x > 0, então |x| = x = 0. Contradição pela tricotomia;
• Se x < 0, então |x| = −x = 0, isto é, x = 0. Novamente, contradição pela tricotomia.
45
Portanto, x = 0, como queríamos.
(⇐) Seja x = 0. Logo, |x| = x = 0.
�
Proposição 3.4.20. Para todo x, y ∈ Z, temos que |xy| = |x||y|.
Demonstração. Consideremos em casos.
• Se x > 0 e y > 0, temos, pelo Teorema 3.4.10, xy > 0, e assim, por de�nição de módulo,
|xy| = xy. Pela mesma de�nição, |x| = x e |y| = y, logo, |x||y| = xy. Portanto,
|x||y| = |xy|.
• Se x < 0 e y < 0, pelo Teorema 3.4.10, xy > 0, e assim, |xy| = xy. Temos que,
x < 0⇒ |x| = −x e y < 0⇒ |y| = −y, sendo assim, pelo item 2 da Proposição 3.3.5,
|x||y| = (−x)(−y) = xy. Logo, |xy| = |x||y|.
• Se x < 0 e y > 0 (ou x > 0 e y < 0), pelo Teorema 3.4.10, xy < 0, isto é, |xy| = −xy.Temos que, x < 0⇒ |x| = −x e y > 0⇒ |y| = y, sendo assim, |x||y| = (−x)(y) =−xy. Logo, |xy| = |x||y|.
• Se x = 0 e y é qualquer (ou y = 0 e x qualquer), temos xy = 0, logo, |xy| = 0. Como
|x| = 0 , claramente, |x||y| = 0 · |y| = 0. Portanto, |xy| = |x||y|.
Dessa forma, concluímos que, |xy| = |x||y|, para todos x, y ∈ Z.�
Proposição 3.4.21. Para n ∈ N∗, tem-se:
|x| = n⇔ x = n ou x = −n.
Demonstração. (⇒) Seja |x| = n.
• Se x > 0, |x| = x. Sendo assim, x = n.
• Se x < 0, |x| = −x. Logo, −x = n, isto é, x = −n.
(⇐) Seja x = n ou x = −n.
• Se x = n, então, |x| = |n|. Como n ∈ N∗, obviamente, n > 0, logo, |n| = n, ou seja,
|x| = n.
• Se x = −n, então |x| = | − n|. Como n > 0, pelo Teorema 3.4.6, −n < 0, sendo assim,
por de�nição de módulo, | − n| = −(−n) = n. Logo, |x| = n.
�
De�nição 3.4.22. Um elemento x ∈ Z diz-se inversível se existe y ∈ Z tal que xy = 1.
Proposição 3.4.23. Os únicos elementos inversíveis de Z são 1 e −1.
46
Demonstração. Seja x ∈ Z inversível e y ∈ Z, tal que, xy = 1. Sendo assim, |xy| = |x||y| = 1.
Como |x| ≥ 0, |y| ≥ 0 e |x||y| = 1, segue que |x| > 0 e |y| > 0, que signi�ca, |x| ≥ 1 e |y| ≥ 1.
Multiplicando esta última desigualdade por |x|, em ambos os membros, obtemos, |x||y| ≥ |x|.Sendo assim, 1 = |x||y| ≥ |x| ≥ 1, o que nos garante |x| = 1. Daí, pela Proposição 3.4.21, x = 1
ou x = −1, como queríamos.
�
3.5 Conjuntos enumeráveis e a Hipótese do Contínuo
Vimos que a função f : N −→ Z, dada por f(m) = (m, 0), é injetora. Outro exemplo
de função injetora que vai de N em Z, pode ser dada por, f(m) = (0,m), ou ainda, f(m) =
(m+ 1, 0). Vejamos a seguir, uma função que exibe uma bijeção entre N e Z, apresentandouma outra demonstração de que Z é in�nito.
Exemplo 3.5.1. A função σ : Z −→ N é de�nida como segue:
σ(n) =
{2n− 1, se n > 0,
−2n, se n ≤ 0.
Esta função é bijetora, como veremos adiante.
De�nição 3.5.2. Seja A um conjunto qualquer. Se existe uma bijeção entre A e N, dizemos
que A é enumerável. Dizemos ainda que qualquer bijeção de N em um conjunto enumerável A
chama-se uma enumeração para A, segundo a qual o primeiro elemento de A é a imagem do
1, o segundo é a imagem do 2, e assim por diante (a imagem do 0 é o zero-ésimo elemento de
A).
Dessa forma, o Exemplo 3.5.1 nos diz que Z é enumerável e a inversa da bijeção σ é uma
enumeração para Z.
Exemplo 3.5.3. Sendo σ a função do Exemplo 3.5.1, a enumeração σ−1 : N −→ Z é dada
por:
σ−1(n) =
n+ 1
2, se n for ímpar,−n2, se n for par.
Dessa forma temos:
1. σ−1(8) =−82
= −4, isto é, o oitavo elemento de Z é −4.
2. σ−1(3) =4
2= 2, ou seja, o terceiro elemento de Z é 2.
Podemos ver que σ−1 ◦ σ : Z −→ Z, e ainda,
σ−1(σ(n)) = σ−1(2n− 1) =(2n− 1) + 1
2=
2n
2= n
ou
σ−1(σ(n)) = σ−1(−2n) = −(−2n)2
=2n
2= n.
47
Do mesmo modo, σ ◦ σ−1 : N −→ N, e ainda,
σ(σ−1(n)) = σ
(n+ 1
2
)= 2 · n+ 1
2− 1 = n+ 1− 1 = n
ou
σ(σ−1(n)) = σ
(−n2
)= −2 · −n
2= n.
Como σ−1 ◦ σ = Id e σ ◦ σ−1 = Id, �ca claro que σ é inversível, e portanto, bijetora.
Os estudos de Cantor, além de terem rompido com o paradigma grego de que �o todo
é sempre maior do que qualquer uma das suas partes próprias�, ainda generalizaram para
conjuntos in�nitos o fato conhecido para conjuntos �nitos de que o número de elementos de
um conjunto é sempre menor do que o número de elementos das partes desse conjunto. Vamos
denotar o número de elementos de um conjunto �nito X por η(X)
Proposição 3.5.4. Se η(X) = n, então η(P(X)) = 2n
Demonstração. Seja A = {n ∈ N|η(X) = n⇒ η(P(X)) = 2n}.
1. 0 ∈ A, pois, se η(X) = 0, temos que X = ∅, sendo assim, P(X) = {∅}, isto é, η(P(X)) =
20 = 1.
2. Suponhamos que n ∈ A e provemos que n+1 ∈ A, isto é, temos η(X) = n⇒ η(P(X)) =
2n. Se temos η(X) = n+ 1, por hipótese, η(P(X)) = 2n+1, como queríamos.
Desta forma, por indução, A = N. Portanto, se η(X) = n, então η(P(X)) = 2n, para todo
n ∈ N.�
Cantor generalizou para conjuntos in�nitos a ideia contida na proposição anterior, como
demonstraremos no último teorema deste capítulo. Intuitivamente, o tipo de in�nito de P(X)
é estritamente maior do que o tipo de in�nito de X. Expressamos este fato dizendo que a
cardinalidade de P(X) é maior do que a cardinalidade de X. Continuando com esse raciocínio,
obtemos η(P(X)) < η(P(P(X))).
Tomando partes de conjuntos das partes sucessivamente, chegamos aos conjuntos in�nitos
de Cantor. Ele tornou estas questões rigorosas matematicamente através da sua aritmética
trans�nita. Consideremos agora a cadeia crescente de cardinalidades
η(N) < η(P(N)) < η(P(P(N))) < . . .
Esta cadeia começa com a cardinalidade de N. A De�nição 2.1.2, nos diz que um conjunto X
é in�nito quando existe uma função injetora que vai de N em X. Claramente, o conjunto X,
com menor cardinalidade, que permite esta injeção é o próprio N, sendo assim, a cardinalidade
de N pode ser considerada a menor in�nita.
Mostraremos adiante que η(R) > η(N), além disso, veremos que η(R) = η(P(N)), ou seja,
R e P(N) são equipotentes. Esta desigualdade é um caso particular do que vimos no parágrafo
anterior. A suposição de que não há cardinalidades intermediárias entre a de N e a de P(N),trata-se da Hipótese do Contínuo.
48
Chama-se Hipótese Generalizada do Contínuo a suposição de que não há cardinalidades
intermediárias entre duas consecutivas da cadeia acima. O matemático austríaco naturalizado
americano Kurt Godel (1906-1978) provou que a Hipótese Generalizada do Contínuo não é
contraditória com outros axiomas da Teoria dos Conjuntos, ou seja, não obtemos contradições
extras na matemática ao adicionar a Hipótese Generalizada do Contínuo aos demais axiomas
da Teoria dos Conjuntos.
Dessa forma, assumindo a Hipótese do Contínuo, concluímos que entre R e N não são obtidas
cardinalidades distintas das desses dois conjuntos, ou seja, qualquer subconjunto de R, ou é
equipotente a N, ou é equipotente a R.Demonstraremos agora a generalização feita por Cantor.
Teorema 3.5.5. Seja X um conjunto não vazio qualquer. Nenhuma função f : X −→ P(X)
pode ser sobrejetora.
Demonstração. Para cada x ∈ X, f(x) é um subconjunto de X. Seja A = {x ∈ X|x /∈ f(x)}.Vamos mostrar que A /∈ Im(f). Suponhamos que A ∈ Im(f), isto é, que existe a ∈ X tal que
f(a) = A. Dessa forma, ou a ∈ A ou a ∈ X \ A. Se a ∈ A, pela de�nição de A, devemos
ter a /∈ f(a). Mas f(a) = A, logo, contradição. Se a ∈ X \ A, devemos ter a ∈ f(a), o que
também é contradição, pois f(a) = A. Portanto, A /∈ Im(f), isto é, a Im(f) é diferente do seu
contradomínio, ou seja, f não pode ser sobrejetora.
�
49
Capítulo 4
Números Racionais
No contexto do Ensino Básico, um número racional é apresentado como a razão entre dois
inteiros, onde razão signi�ca divisão. Aqui de�niremos razão e divisão a partir do conjunto dos
inteiros e suas propriedades já demonstradas. Utilizaremos o conceito de relação de equivalência
a partir dos inteiros, do mesmo modo que o utilizamos para de�nir um número inteiro a partir
dos naturais.
4.1 Construção dos números racionais
Consideremos o conjunto Z× Z∗ = {(a, b) | a ∈ Z e b ∈ Z∗}.
De�nição 4.1.1. Sejam a ∈ Z e b ∈ Z∗. A relação ∼ é dada por (a, b) ∼ (c, d) quando ad = bc
Teorema 4.1.2. A relação ∼ de�nida acima é de equivalência.
Demonstração.
1. Re�exiva: Temos que, se a ∈ Z e b ∈ Z∗, ab = ba, portanto (a, b) ∼ (a, b).
2. Simétrica: Se a, c ∈ Z, b, d ∈ Z∗ e (a, b) ∼ (c, d), então, ad = bc, ou ainda, cb = da, isto é,
(c, d) ∼ (a, b).
3. Se a, c, e ∈ Z, b, d, f ∈ Z∗, (a, b) ∼ (c, d) e (c, d) ∼ (e, f), temos:
ad = bc⇒ adf = bcf
cf = de⇒ bcf = bde
Dessa forma, adf = bde, como d 6= 0, af = be, que signi�ca, (a, b) ∼ (e, f).
�
Consideremos, por um momento, nossas noções intuitivas de números racionais. Temos que,
ad = bc ⇔ a
b=c
d, ou seja, se as divisões de a por b e c por d coincidem, podemos dizer que
(a, b) ∼ (c, d),
Exemplo 4.1.3.
1. (3, 6) ∼ (1, 2) ∼ (−6,−12);
50
2. (−35, 5) ∼ (−7, 1) ∼ (14,−2).
De�nição 4.1.4. Dado (a, b) ∈ Z× Z∗, denotamos pora
b(a sobre b) a classe de equivalência
do par (a, b) pela relação ∼ acima. Assim,a
b= {(x, y) ∈ Z× Z∗ | (x, y) ∼ (a, b)}
Exemplo 4.1.5.3
6= {(x, y) ∈ Z× Z∗ | (x, y) ∼ (3, 6)} = {(x, y) ∈ Z× Z∗ | 6x = 3y}.
Com isso, (1, 2) ∈ 3
6, (−6,−12) ∈ 3
6e (1, 3) /∈ 3
6.
Teorema 4.1.6 (Propriedade Fundamental das Frações). Se (a, b) e (c, d) são elementos de
Z× Z∗, entãoa
b=c
dse, e somente se, ad = bc.
Demonstração. Pelo item 2 do Teorema 1.1.20, temos:a
b=c
d⇔ (a, b) ∼ (c, d)⇔ ad = bc,
como queríamos.
�
De�nição 4.1.7. Denotamos por Q, e denominamos por conjunto dos números racionais, o
conjunto quociente de Z× Z∗ pela relação de equivalência ∼, isto é,
Q = (Z× Z∗)/ ∼={ab| a ∈ Z e b ∈ Z∗
}.
4.2 Operações em Q
De�nição 4.2.1. Sejama
bec
dnúmeros racionais, isto é, elementos de Q. De�nimos operações
chamadas de adição e de multiplicação, respectivamente, por:
a
b+c
d=ad+ bc
bde
a
b· cd=ac
bd.
Denotaremosa
b· cd
pora
b
c
d.
Exemplo 4.2.2.
1.2
3+
4
6=
2 · 6 + 3 · 43 · 6
=24
18=
4
3;
2.2
3· 46=
2 · 43 · 6
=8
18=
4
9.
Teorema 4.2.3. As operações em Q estão bem de�nidas, isto é, sea
b=a′
b′ec
d=c′
d′, então,
a
b+c
d=a′
b′+c′
d′e
a
b· cd=a′
b′· c′
d′.
Demonstração. Por hipótese, ab′ = ba′ e cd′ = dc′. Temos:
a
b+c
d=ad+ bc
bde
a′
b′+c′
d′=a′d′ + b′c′
b′d′.
Queremos provar que as duas somas são iguais, ou seja, que (ad+ bc)b′d′ = (a′d′ + b′c′)bd, isto
é, adb′d′+ bcb′d′ = a′d′bd+ b′c′bd, ou ainda, (ab′)(dd′)+ (cd′)(bb′) = (a′b)(dd′)+ (bb′)(c′d), o que
é fato, pois, ab′ = ba′ e cd′ = dc′. Temos também:
51
a
b· cd=ac
bde
a′
b′· c′
d′=a′c′
b′d′.
Da mesma forma, queremos provar queac
bd=
a′c′
b′d′, isto é, acb′d′ = bda′c′, ou, (ab′)(cd′) =
(dc′)(a′b), que é verdadeiro, pela hipótese acima.
�
Teorema 4.2.4. O conjunto Q, munido das operações acima, adição e multiplicação, tem as
propriedades algébricas de Z onde o elemento neutro aditivo é0
1e o neutro multiplicativo é
1
1.
Além disso, dado um racionala
b6= 0
1, existe
c
dem Q tal que
a
b· cd=
1
1, isto é, todo elemento
não nulo de Q possui inverso multiplicativo.
Demonstração. Sejam r, s, t ∈ Q com r =a
b, s =
c
de t =
e
f:
1. Comutativa da Adição:
r + s =a
b+c
d=ad+ bc
bd
=bc+ da
db=c
d+a
b= s+ r.
2. Associativa da Adição:
(r + s) + t =(ab+c
d
)+e
f=ad+ bc
bd+e
f
=(adf + bcf) + bde
bdf=adf + (bcf + bde)
bdf
=a
b+cf + de
df=a
b+
(c
d+e
f
)= r + (s+ t).
3. Elemento Neutro da Adição:
r +0
1=
a
b+
0
1=a · 1 + 0 · b
b · 1=a
b= r.
4. Elemento simétrico (ou oposto):
Existe r′ tal que r + r′ =0
1. Seja r′ =
−ab,
r + r′ =a
b+−ab
=ab+ (−ab)
bb=
0
bb=
0
1.
5. Comutativa da Multiplicação:
rs =a
b
c
d=ac
bd=ca
db=c
d
a
b= sr.
52
6. Associativa da Multiplicação:
(rs)t =(ab
c
d
) ef=(acbd
) ef=ace
bdf
=a
b
(ce
df
)=a
b
(c
d
e
f
)= r(st).
7. Elemento Neutro da Multiplicação:
r · 11
=a
b
1
1=a · 1b · 1
=a
b= r.
8. Elemento Inverso:
Se r 6= 0
1, existe r′′ tal que rr′′ =
1
1. Seja r′′ =
b
a:
rr′′ =a
b
b
a=ab
ba=ab
ab=a
a
b
b
=1
1
1
1pelo item anterior
=1
1.
9. Distributiva da Multiplicação em relação a Adição:
r(s+ t) =a
b
(c
d+e
f
)=a
b
(cf + de
df
)=a(cf + de)
b(df)
=acf + ade
bdf=fac+ dae
dbf=b
b
fac+ dae
dbf=b(fac+ dae)
b(dbf)
=bfac+ bdae
bdbf=ac
bd+ae
bf=a
b
c
d+a
b
e
f= rs+ rt.
�
Proposição 4.2.5 (Cancelamento Aditivo e Multiplicativo). Sejam r, s, t ∈ Q. Então, valem
os itens abaixo:
1. s+ r = t+ r ⇔ s = t;
2. Para r 6= 0
1, sr = tr ⇔ s = t.
Demonstração.
1. Sejam s =a
b, t =
c
de r =
e
f:
s+ r = t+ r ⇔ a
b+e
f=c
d+e
f⇔ af + be
bf=cf + de
df
⇔ (af + be)(df) = (cf + de)(bf)⇔ afdf + bedf = cfbf + debf
⇔ f(afd+ bed) = f(cfb+ deb)⇔ afd+ bed = cfb+ deb
⇔ afd = cfb⇔ ad = cb⇔ a
b=c
d⇔ s = t.
53
2. Sejam s =a
b, t =
c
de r =
e
f6= 0
1:
sr = tr ⇔ a
b
e
f=c
d
e
f⇔ ae
bf=ce
df⇔ (ae)(df) = (ce)(bf)
⇔ ad = cb⇔ a
b=c
d⇔ s = t.
�
Proposição 4.2.6. Os elementos r′ e r′′ são únicos e denotam-se por −r e r−1, chamados de
simétrico e inverso de r, respectivamente.
Demonstração. Suponhamos que u′ seja também um simétrico de r. Assim, u′ + r =0
1e
r′ + r =0
1, dessa forma, u′ + r = r′ + r, daí, pelo item 1 da Proposição 4.2.5, u′ = r′.
Suponhamos agora que u′′ seja também um inverso de r. Assim, u′′r =1
1e r′′r =
1
1, dessa
forma, u′′r = r′′r, daí, pelo item 2 da Proposição 4.2.5, u′′ = r′′ (r 6= 0
1para possuir inverso).
�
De�nição 4.2.7. A subtração em Q, denotada por (−), é a operação de�nida da seguinte
forma: se r, s ∈ Q, então:
s− r = s+ (−r).
Assim, a subtração s− r nada mais é do que a soma de s com o simétrico de r.
Proposição 4.2.8. Se r, s ∈ Q, então:
1. (−r)s = −rs = r(−s);
2. (−r)(−s) = rs.
Demonstração.
1.
(−r)s =(−ab
) cd
= −ab
c
d= −rs
−rs = − cd
a
b=(− cd
) ab
= (−s)r = r(−s).
2.
(−r)(−s) =(−ab
)(− cd
)= −a
b
(− cd
)= −
(−ab
) cd
pelo item anterior
= −(−acbd
)= −
(−(acbd
))=ac
bdpelo item 2 da Proposição 3.3.5
=a
b
c
d= rs.
�
54
Proposição 4.2.9. Vale a distributiva da multiplicação em relação à subtração: r(s − t) =
rs− rt.
Demonstração. Sejam r =a
b, s =
c
de t =
e
f:
r(s− t) =a
b
(c
d− e
f
)=a
b
(c
d+
(− ef
))=
a
b
c
d+a
b
(− ef
)=a
b
c
d+
(−ab
e
f
)=
a
b
c
d− a
b
e
f= rs− rt.
�
Proposição 4.2.10. Para (a, b) ∈ Z× Z∗, temos que:−ab
=a
−b= −a
b= −−a−b
.
Demonstração. Para (a, b) ∈ Z× Z∗, herdando as propriedades dos inteiros temos:
(−a)(−b) = ab = −(a)(−b) = −(−a)(b),
que nos dá respectivamente:−ab
=a
−b= −a
b= −−a−b
.
�
Segundo esta Proposição 4.2.10, sea
b∈ Q, então b pode ser tomado positivo. Este fato será
utilizado para de�nir a relação de ordem em Q a seguir.
4.3 Relação de Ordem em Q
De�nição 4.3.1. Sejama
bec
dnúmero racionais com b, d > 0. Escrevemos
a
b≤ c
dquando
ad ≤ bc e dizemos quea
bé menor ou igual a
c
dOs símbolos ≥, > e <, de�nem-se de forma análoga à que que �zemos para a relação de
ordem em N.
Teorema 4.3.2. A relação ≤ está bem de�nida e é uma relação de ordem em Q.
Demonstração. Vamos mostrar inicialmente que a relação está bem de�nida.
Sejaa
b=
a′
b′, isto é, ab′ = a′b. Temos que
a
b≤ c
d⇒ ad ≤ bc, e, como b′ > 0, obtemos
ab′d ≤ bcb′, daí, pela igualdade acima, a′bd ≤ bcb′, de onde concluímos que a′d ≤ cb′, ou seja,a′
b′≤ c
d.
Do mesmo modo, comoc
d=c′
d′⇒ cd′ = dc′,
a′
b′≤ c
d⇒ a′d ≤ cb′ ⇒ a′dd′ ≤ cb′d′ ⇒ a′dd′ ≤ c′db′ ⇒ a′d′ ≤ c′b′ ⇒ a′
b′≤ c′
d′.
Logo, comoa
b≤ c
d⇒ a′
b′≤ c
de
a′
b′≤ c
d⇒ a′
b′≤ c′
d′, concluímos que
a
b≤ c
d⇒ a′
b′≤ c′
d′.
Provemos, agora, que esta é uma relação de ordem:
55
1. Re�exiva: sea
b∈ Q, claramente,
a
b=a
b, isto é,
a
b≤ a
b;
2. Simétrica: sea
b,c
d∈ Q,
a
b≤ c
dec
d≤ a
b, temos que ad ≤ bc e cb ≤ ad, daí, pela tricotomia
dos inteiros, obtemos, ad = bc, isto éa
b=c
d;
3. Transitiva: sea
b,c
d,e
f∈ Q,
a
b≤ c
dec
d≤ e
f, temos ad ≤ bc e cf ≤ ed. Multiplicando
f na primeira e b na segunda desigualdade (podemos fazer isto, pois, b, d > 0), obtemos
adf ≤ bcf e bcf ≤ bed, daí, pela transitividade dos inteiros, obtemos, adf ≤ bed, ou ainda,
af ≤ be (d > 0), que signi�ca,a
b≤ e
f.
�
Proposição 4.3.3. Se r, s, t ∈ Q, são válidos os itens seguintes:
1. r ≤ s⇔ r + t ≤ s+ t;
2. Se r ≤ s e t ≥ 0
1, então rt ≤ st;
3. Se r ≤ s e t ≤ 0
1, então rt ≥ st.
Demonstração. Sejam r =a
be s =
c
de t =
e
f:
1.
a
b≤ c
d⇔ da ≤ bc⇔ daf ≤ bcf pois f > 0
⇔ daf + dbe ≤ bcf + dbe por propriedade dos inteiros
⇔ d(af + be) ≤ b(cf + de)⇔ df(af + be) ≤ bf(cf + de)
⇔ af + be
bf≤ cf + de
df⇔ a
b+e
f≤ c
d+e
f.
2. Como t =e
fe t ≥ 0
1, temos
e
f≥ 0
1⇒ e ≥ 0. Assim:
a
b≤ c
d⇒ ad ≤ cb
⇒ aedf ≤ cebf pois e ≥ 0 e f > 0
⇒ ae
bf≤ ce
df⇒ a
b
e
f≤ c
d
e
f.
3. Como t =e
fe t ≤ 0
1, temos
e
f≤ 0
1⇒ e ≤ 0. Assim:
a
b≤ c
d⇒ ad ≤ cb⇒ adf ≤ cbf pois f > 0
⇒ aedf ≥ cebf pois e ≤ 0
⇒ ae
bf≥ ce
df⇒ a
b
e
f≥ c
d
e
f.
�
56
Como em Z, temos aqui:
Q∗ ={ab| (a, b) ∈ Z∗ × Z∗+
}, Q∗+ =
{ab| (a, b) ∈ Z∗+ × Z∗+
},
Q∗− ={ab| (a, b) ∈ Z∗− × Z∗+
}, Q− =
{ab| (a, b) ∈ Z∗− × Z∗+
}∪{0
1
},
Q+ ={ab| (a, b) ∈ Z∗+ × Z∗+
}∪{0
1
}e Q = Q∗− ∪
{0
1
}∪Q∗+.
Teorema 4.3.4 (Tricotomia em Q). Dados r, s ∈ Q, uma, e apenas uma, das situações seguin-
tes ocorre: ou r = s, ou r < s, ou s < r.
Demonstração. Seja r =a
be s =
c
dcom b, d > 0. Pela tricotomia em Z, ou ad = bc, caso em
que ocorre r = s, ou ad < bc, caso em que ocorre r < s, ou bc < ad, caso em que ocorre s < r.
Além disso, só uma delas pode ocorrer.
�
Vamos ver agora a função imersão de Z em Q, a mesma que falamos, de N em Z, nacontrução dos inteiros.
Teorema 4.3.5. A função i : Z −→ Q, de�nida por i(n) =n
1é injetora. Além disso, ela
preserva as operações e a relação de ordem de Z em Q no seguinte sentido:
1. i(m+ n) = i(m) + i(n);
2. i(mn) = i(m)i(n);
3. Se m ≤ n, então i(m) ≤ i(n).
Demonstração. Provemos inicialmente que f é injetora. Se i(m) = i(n), temos quem
1=n
1,
isto é, m · 1 = n · 1, ou ainda, m = n, logo, i(m) = i(n)⇒ m = n, portanto, i é injetora.
1. i(m+ n) =m+ n
1=
1 ·m+m · 11 · 1
=m
1+n
1= i(m) + i(n);
2. i(mn) =mn
1=m · n1 · 1
=m
1
n
1= i(m)i(n);
3. m ≤ n⇒ m · 1 ≤ n · 1⇒ m
1≤ n
1⇒ i(m) ≤ i(n).
�
Novamente temos um homomor�smo injetor, de modo que, o conjunto i(Z) ={n1| n ∈ Z
}é uma cópia algébrica de Z em Q. Como existe uma cópia algébrica de N em Z, essa imersão
de Z em Q mostra que Q é in�nito.
Faremos agora uma série de demonstrações para conseguirmos chegar ao teorema que garante
que Q é enumerável. Antes de enunciar a próxima proposição, devemos lembrar que:
X \ (∪n∈NAn) = ∩n∈N(X \ An) (4.1)
e
X \ (∩n∈NAn) = ∪n∈N(X \ An). (4.2)
57
Estes resultados estão demonstrados em [9].
Lema 4.3.6. Todo subconjunto in�nito de N é enumerável.
Demonstração. Seja X um subconjunto in�nito de N. Pelo Princípio da Boa Ordem, X possui
menor elemento, digamos x0. Como X é in�nito, o conjunto Y0 = X \ {x0} é não vazio.
Seja agora x1 o menor elemento de Y0. Como X é in�nito, o conjunto Y1 = X \ {x0, x1} é
não vazio. Obtidos x0, x1, x2, . . . , xn(n ∈ N) dessa forma acima, obtemos xn+1 como sendo o
menor elemento de Yn = X \ {x0, x1, x2, . . . , xn}. A existência do menor elemento xn+1 se deve
novamente ao Princípio da Boa Ordem, dado que Yn é não vazio para todo natural n (pois X
é in�nito).
Temos de (4.3) que X \ (∪n∈NAn) = ∩n∈N(X \ An) = ∩n∈NYn, onde, neste caso, An =
{x0, x1, x2, . . . , xn}.Se existisse x ∈ X \ (∪n∈NAn), esse x também seria elemento de ∩n∈NYn e, como tal, deveria
ser maior do que x0, por estar em Y0, deveria ser maior do que x1 por estar em Y1 e, assim
sucessivamente, x deveria ser maior do que xn para todo n ∈ N. Dessa forma, o conjunto
in�nito ∪n∈NAn = {x0, x1, x2, . . . , xn, . . .} estaria contido no conjunto �nito {1, 2, 3, . . . , x}, oque é um absurdo. Portanto, não existe x ∈ X \ (∪n∈NAn), isto é, X \ (∪n∈NAn) = ∅, ou ainda,
X = ∪n∈NAn = {x0}∪ {x0, x1}∪ {x0, x1, x2}∪ . . . = {x0, x1, x2, . . . , xn, . . .}, o que signi�ca que
X é enumerável.
�
Enunciaremos um resultado bastante interessante que pode ser demonstrado com as propri-
edades de Z, prova esta que pode ser encontrada em [7], ele é chamado Teorema Fundamental
da Aritmética: todo número natural maior que 1 pode ser expresso como produto de números
primos. Além disso, essa fatoração é única, a menos da ordem dos fatores.
Lema 4.3.7. Todo número racional positivoa
b(a, b > 0), pode ser escrito, de modo único,
como uma fração irredutível, isto é, na formam
n, onde m e n são primos entre si, ou seja, não
possuem fatores primos em comum.
Demonstração. Seja km uma decomposição de a e kn uma decomposição de b, onde k é o
produto de todos os fatores primos comuns a a e a b. Sendo assim,a
b=km
kn, daí,
a
b=m
n,
onde m e n são primos entre si, portanto,m
né uma fração irredutível. Seja
m′
n′uma fração
irredutível igual am
n:
m′
n′=m
n⇒ m′n = mn′.
Pela unicidade da decomposição em fatores primos, m′ deve conter os fatores primos de m e
vice-versa e n′ deve conter os fatores primos de n e vice-versa ((pois m′ e n′ são primos entre
si, assim como m e n), logo, m′ = m e n′ = n.
�
Proposição 4.3.8. Q∗+ é enumerável.
58
Demonstração. Consideremos os números racionais escritos na forma irredutível, como no lema
anterior. Seja f : Q∗+ −→ N dada por f(mn
)= 2m · 3n. Se f
(mn
)= f
(m′
n′
), então, 2m · 3n =
2m′ · 3n′ , daí, pelo Teorema Fundamental da Aritmética e pela a unicidade da representação
de frações na forma irredutível, dada pela proposição acima, 2m = 2m′e 3n = 3n
′, ou seja,
m = m′ e n = n′, que nos garante que,m
n=
m′
n′. Logo, f é injetora e tem como imagem
um subconjunto in�nito de N, que é, pelo Lema 4.3.6, enumerável. Daí segue o que queríamos
provar.
�
Proposição 4.3.9. A união de dois conjuntos enumeráveis é enumerável. Além disso, a união
de uma família �nita de conjuntos enumeráveis é enumerável.
Demonstração. Sejam A e B dois conjuntos enumeráveis. Claramente, ou A ∩ B = ∅ ou
A ∩B 6= ∅.Suponhamos primeiro que A ∩B = ∅:Como A é enumerável, existe f1 : A −→ N bijetora. Temos que existe também uma função
g1 : N −→ Np (onde Np são os números naturais pares), dada por g1(n) = 2n para todo n ∈ N.Como para todo 2n existe n, tal que g(n) = 2n e 2n = 2m ⇔ n = m, esta função é bijetora,
sendo assim, podemos ter h1 = g1 ◦f1 : A −→ Np, dada por h1(x) = 2f(x), bijetora. Do mesmo
modo, como B é enumerável, existe f2 : B −→ N bijetora e também g2 : N −→ Ni (onde Ni
são os números naturais ímpares), dada por g2(n) = 2n+ 1 para todo n ∈ N, que é claramente
bijetora. Desta forma, obtemos h2 = g2 ◦ f2 : B −→ Ni, dada por h2(x) = 2f2(x) + 1, bijetora.
Sendo assim, f : (A ∪B) −→ (Np ∪ Ni), dada por
f(x) =
{h1(x) se x ∈ A,h2(x) se x ∈ B.
é bijetora. Como A ∩B = ∅, f está bem de�nida e, como Np ∪ Ni = N, A ∪B é enumerável.
Seja agora, A ∩B 6= ∅:Seja C = A \ B, um conjunto tal que A ∪ B = C ∪ B. Temos B ∩ C = ∅ por construção,
portanto, pelo que já foi demonstrado acima, C ∪B é enumerável, logo, A ∪B também o é.
Sejam agora A1, A2, . . . , An conjuntos enumeráveis. Precisamos provar que⋃
k∈{1,2,...,n}Ak
é enumerável. Provemos por indução �nita. Já sabemos que se n = 2 isto é verdade, então
suponhamos que⋃
k∈{1,2,...,n−1}Ak é enumerável e provemos que⋃
k∈{1,2,...,n}Ak também é. De
fato, como⋃
k∈{1,2,...,n−1}Ak é enumerável e An também, obviamente,⋃
k∈{1,2,...,n−1}Ak ∪ An é
enumerável, como queríamos.
�
Proposição 4.3.10. A união de um conjunto �nito com um conjunto enumerável é enumerável.
Demonstração. Seja X um conjunto enumerável, isto é, existe g : N −→ X, bijetora. Seja
também Y = {y1, y2, . . . , yn} com n ∈ N um conjunto �nito qualquer. Temos que, ou X∩Y = ∅ou X ∩ Y 6= ∅.
Suponhamos primeiro que X ∩ Y = ∅:Assim, podemos ter f : N −→ X ∪ Y dada como segue:
59
f(k) =
{yk se 1 ≤ k ≤ n,
g(k − n) se (n+ 1) ≤ k.
Esta função está bem de�nida, pois X ∩ Y = ∅ e, claramente, é bijetora, portanto, X ∪ Y é
enumerável.
Seja agora, X ∩ Y 6= ∅:Seja C = X \ Y , um conjunto tal que X ∪ Y = C ∪ Y . Temos Y ∩ C = ∅ por construção,
portanto, pelo que já foi demonstrado acima, C ∪ Y é enumerável, logo, X ∪ Y tmabém é.
�
Teorema 4.3.11. Q é enumerável.
Demonstração. Se escrevermos Q como Q∗− ∪ {0} ∪ Q∗+, pelas Proposições 4.3.9 e 4.3.10 con-
cluímos diretamente que Q é enumerável.
�
O conjunto dos números racionais está munido das duas operações, adição e multiplicação,
estudadas no decorrer deste capítulo, além da subtração e divisão, que são de�nidas a partir
das duas primeira e simbolizadas por (−) e :, respectivamente. A subtração já foi de�nida
anteriormente como: se r, s ∈ Q, r − s = r + (−s). Já a divisão, é dada da seguinte forma:
De�nição 4.3.12. Sejam r, s ∈ Q com s 6= 0. Dizemos que r dividido por s é dado por
r : s = r · s−1.
Olhando a de�nição exatada de operação, podemos ver que, a divisão não é uma operação
em Q, dado que o seu domínio é Q×Q∗ e não Q×Q.
Proposição 4.3.13. Se a, b ∈ Z, com b 6= 0, entãoa
1:b
1=a
b.
Demonstração. Pela De�nição 4.3.12,a
1:b
1=a
1· 1b=a · 11 · b
=a
b.
�
Dessa forma, identi�cando Z com sua cópia algébrica i(Z) em Q, a igualdade da proposiçãoacima se escreve a : b =
a
b.
Proposição 4.3.14. Sea
b,c
d∈ Q, com
c
d6= 0
1, então
a
b:c
d=ad
bc.
Demonstração.a
b:c
d=a
b· dc=ad
bc.
�
É usual, nos textos elementares de matemática, adotar-se a notaçãoabcd
paraa
b:c
d, exten-
dendo a notação da proposição anterior.
Proposição 4.3.15. Admitindo a identi�cação de Z com i(Z), para r, s racionais arbitrários,
valem:
1. Se rs = 0, então s = 0 ou r = 0;
60
2. Se r > 0 e s > 0, então rs > 0;
3. Se r > 0 e s < 0, então rs < 0;
4. Se r < 0 e s < 0, então rs > 0;
5. Se r > 0, então r−1 > 0;
6. Se r < s, então r < (r + s) · 2−1 < s;
Demonstração. Sejam r =a
be s =
c
d.
1. Suponhamosc
d6= 0, ou seja, c 6= 0:
a
b
c
d=ac
bd= 0⇒ ac = 0⇒ a = 0,
portanto,a
b= 0. Da mesma forma, supondo
a
b6= 0, concluímos que
c
d= 0, como
queríamos;
2.a
b> 0⇒ a > 0 e
c
d> 0⇒ c > 0, sendo assim, ac > 0, logo
ac
bd> 0;
3.a
b> 0⇒ a > 0 e
c
d< 0⇒ c < 0, sendo assim, ac < 0, logo
ac
bd< 0;
4.a
b< 0⇒ a < 0 e
c
d< 0⇒ c < 0, sendo assim, ac > 0, logo
ac
bd> 0;
5.a
b> 0⇒ a > 0. Temos que b > 0, por convenção, sendo assim,
b
a> 0, isto é, r−1 > 0;
6. Se r < s, temos que, 2r < r + s e r + s < 2s, daí, 2r < r + s < 2s e assim,
2 · ab<a
b+c
d< 2 · c
d⇒ a
b< 2−1
(ab+c
d
)<c
d,
isto é, r < 2−1(r + s) < s.
�
Teorema 4.3.16. Q não é bem ordenado.
Demonstração. Devemos provar que existem subconjuntos de Q não vazios, limitados inferior-
mente, mas que não possuem elemento mínimo. De fato, seja X ={ab∈ Q | 2−1 < a
b
}.
Temos que X é limitado inferiormente por 2−1 e X 6= ∅, dado que 1 ∈ X. Suponhamos que
X possua um elemento mínimo, digamosc
d. Sendo assim
c
d≤ a
bpara todo
a
b∈ X. Como 2−1
é limitante inferior de X, 2−1 <c
d, daí, pelo item 6 da Proposição 4.3.15:
2−1 <c
d⇒ 2−1 <
(2−1 +
c
d
)2−1 <
c
d,
assim,(2−1 +
c
d
)2−1 ∈ X e
(2−1 +
c
d
)2−1 <
c
d, o que é uma contradição com a minima-
lidade dec
d. Logo, X não possui elemento mínimo.
�
61
Acabamos de ver que Q não é um conjunto bem ordenado como Z, porém, ele possui, além
de todas as propriedades aritméticas de Z, a propriedade de que todo elemento não nulo possui
inverso.
De�nição 4.3.17. Sejam (K,+, ·) um conjunto munido de duas operações. Dizemos que K é
um corpo, se:
1. + e · são associativas;
2. + e · possuem elementos neutros distintos;
3. + possui elemento simétrico e · elemento inverso, para todo elemento distinto do neutro
da adição;
4. + e · são comutativas;
5. · é distributiva em relação a +.
E ainda, se este corpo tiver uma relação de ordem compatível com suas operações, ele é
chamado de corpo ordenado.
Um exemplo de tal corpo ordenado é Q. Vejamos a seguir uma propriedade de corpos
ordenados em geral.
Proposição 4.3.18. Seja K um corpo ordenado, cujo elemento neutro de + é representado
por 0 e a relação de ordem é denotada por ≤. Então 0 ≤ x2 para todo x ∈ K.
Demonstração. Se x < 0, temos que x2 > 0, se x = 0, então x2 = 0 e, se x > 0, temos que
x2 > 0, logo, para todo x ∈ K, x2 ≥ 0.
�
Teorema 4.3.19. Q não possui elemento máximo e nem mínimo.
Demonstração. Suponhamos que exista um elemento máximo em Q, digamos, mx =m
n, isto é,
a
b≤ m
npara todo
a
b∈ Q. Claramente,
m
n+ 1 =
m+ n
n∈ Q, além disso,
m
n<m+ n
n, o que
contradiz a maximalidade de mx, portanto Q não possui um elemento máximo. Procedendo da
mesma forma, obtemos que Q não possui um elemento mínimo.
�
Já vimos que um conjunto X ⊂ Q diz-se limitado superiormente quando existe algum b ∈ Qtal que x ≤ b para todo x ∈ X. Neste caso, diz-se que b é uma cota superior de X. Vejamos,
partir disso a seguinte de�nição:
De�nição 4.3.20. Seja X ⊂ Q limitado superiormente e não vazio. Um número b ∈ Q, chama-
se o supremo do conjunto X quando é a menor das cotas superiores de X, isto é, quando é
a cota superior mínima de X. Em outras palavras, b é o supremo de X quando cumpre as
seguintes condições:
1. Para todo x ∈ X, tem-se x ≤ b;
2. Se c ∈ Q é tal que x ≤ c para todo x ∈ X então b ≤ c;
62
Escrevemos b = supX para indicar que b é o supremo do conjunto X. O ín�mo de um
conjunto é dado analogamente, sendo a maior das cotas inferiores (cota inferior máxima de X)
e, escreve-se a = infX, quando a é o ín�mo do conjunto X.
Temos que, se existe o supremo b de X, então este supremo é único. De fato, suponhamos
que existam dois supremos b1 e b2. Dessa forma, x ≤ b1 para todo x ∈ X e, se c ∈ Q tal que
x ≤ c para todo x ∈ X, então b1 ≤ c. Analogamente x ≤ b2 para todo x ∈ X e, se c ∈ Q tal
que x ≤ c para todo x ∈ X, então b2 ≤ c. Daí, como b1, b2 ∈ Q, então b1 ≤ b2 e b2 ≤ b1, logo
b1 = b2.
De�nição 4.3.21. Seja K um corpo ordenado. Dizemos que K é arquimediano se, dados
a, b ∈ K, existe n ∈ N tal que n · a > b;
Teorema 4.3.22.
1. O conjunto N ⊂ Q não é limitado superiormente;
2. O ín�mo do conjunto X =
{1
n| n ∈ N∗
}é igual a 0;
3. Q é um corpo arquimediano.
Demonstração.
1. Suponhamos que existaa
b∈ Q tal que
a
b≥ n para todo n ∈ N. Como, por convenção,
b > 0, temos que a, b ∈ Z∗+, isto é, a, b ∈ N∗. Dessa forma, b ≥ 1 e, assim, a ≥ a
b.
Se a >a
b, como a ∈ N∗, encontramos uma contradição com o fato de que
a
bé um limitante
superior de N em Q.
Se a =a
b, então a + 1 > a =
a
be, como a ∈ N∗ ⇒ a + 1 ∈ N, encontramos uma
contradição com o fato de quea
bé um limitante superior de N em Q. Logo, N não é
limitado superiormente em Q;
2. Claramente, 0 é uma cota inferior de X. Basta então provar que nenhum c > 0 é cota
inferior de X. Dado c > 0, existe, pelo item 1, um número natural n >1
c, daí,
1
n< c,
como queríamos;
3. Dados a, b ∈ Q, usamos 1 para obter n ∈ N tal que n >b
a. Então, n · a > b.
�
As três propriedade acima são equivalentes. Vale ressaltar que estas propriedades são válidas
desta mesma forma, não só para Q, mas também para todo corpo ordenado.
63
Capítulo 5
Números Reais
Os números reais foram construídos de duas formas diferentes, a partir dos racionais. Uma
delas foi por Classes de Equivalência de Sequência de Cauchy e foi dada por Cantor. A outra
foi através dos Cortes de Dedekind. Faremos aqui, esta última, que foi apresentada por Julius
Wilhelm Richard Dedekind, inspirado na Teoria das Proporções de Eudoxo.
Quando se fala deste conjunto no contexto escolar, diz-se que nem todos os pontos da reta
correspodem a números racionais, sendo que a esses pontos correspondem a números chamados
irracionais. Geralmente isto é introduzido exempli�cando a diagonal do quadrado de lado 1.
Neste mesmo contexto, admite-se que a representação decimal dos números racionais é
sempre periódica e toda representação decimal periódica representa um número racional. Sendo
assim, de�ni-se número irracional como sendo aqueles que possuem representação decimal não
periódica. Dessa forma, chama-se conjunto dos números reais aquele constituído pelos racionais
e irracionais.
Estas são formas nas quais os números reais são abordados na matemática escolar, entre-
tanto, faremos aqui uma construção rigorosa deste conjunto a partir dos números racionais com
suas propriedades, assim como foi feito nos conjuntos anteriores.
Vamos, inicialmente, de�nir a noção de corte de Dedekind, considerar o conjunto de todos os
cortes, de�nir a adição e multiplicação nele e, em seguida, mostrar que ele possui as propriedades
aritméticas de Q e mais uma propriedade que Q não possui. Chamaremos este conjunto de
cortes de conjunto dos números reais, que será denotador por R.
5.1 Cortes de Dedekind
De�nição 5.1.1. Um conjunto α de números racionais diz-se um corte se satis�zer as seguintes
condições:
1. α 6= ∅ e α 6= Q;
2. Se r ∈ α e s < r (s racional) então s ∈ α;
3. Em α não existe elemento máximo.
Exemplo 5.1.2. O conjunto A =
{x ∈ Q | x < 3
5
}é um corte:
1. A 6= ∅, pois 0 ∈ A e A 6= Q, pois 1 ∈ Q e 1 /∈ A;
64
2. Seja r ∈ A e s < r, assim, s < r <3
5, logo s <
3
5, isto é, s ∈ A;
3. Suponhamos que exista uma máximo em A, digamos m. Sendo assim, r ≤ m para todo
r ∈ A. Sabemos que m <3
5, portanto, pela Proposição 4.3.15, m <
(m+
3
5
)2−1 <
3
5, o
que contradiz a maximalidade de m. Logo, A não possui máximo.
Portanto, A é um corte.
Exemplo 5.1.3. O conjunto B =
{x ∈ Q | x > 3
5
}não é um corte:
1. B 6= ∅, pois 1 ∈ B e B 6= Q, pois 0 ∈ Q e 0 /∈ B;
2. Seja r ∈ B e s < r. Tomemos r = 1 e s = 0, assim, s < r, entretanto, s /∈ B.
Logo, B não é um corte.
Exemplo 5.1.4. O conjunto C =
{x ∈ Q | x ≤ 3
5
}não é um corte:
1. C 6= ∅, pois, 0 ∈ C e C 6= Q pois 1 ∈ Q e 1 /∈ C;
2. Seja r ∈ C e s < r, assim, s < r ≤ 3
5, logo s <
3
5, isto é, s ∈ C;
3. Temos que x ≤ 3
5para todo x ∈ C. Sendo assim, podemos ver que m =
3
5, é o máximo
deste conjunto, por de�nição de máximo.
Portanto, C não é um corte.
Exemplo 5.1.5. O conjunto D =
{x ∈ Q | −3 < x <
8
5
}não é um corte:
1. D 6= ∅, pois, 0 ∈ D e D 6= Q pois 2 ∈ Q e 2 /∈ D;
2. Seja −3 < r <8
5e s < r. Tomemos s = −4 e r = 0. Assim, s < r, entretanto, s /∈ D.
Logo, D não é um corte.
Exemplo 5.1.6. E = Q \ {0} não é um corte.
1. E 6= ∅, pois, 1 ∈ E e E 6= Q pois 0 ∈ Q e 0 /∈ E;
2. Seja r ∈ E e s < r. Tomemos s = 0 e r = 1. Assim, s < r, entretanto, s /∈ E.
Sendo assim, E não é um corte.
Exemplo 5.1.7. F =
{1, 4,
3
5
}1. F 6= ∅, pois, 1 ∈ F e F 6= Q pois 0 ∈ Q e 0 /∈ F ;
2. Seja r ∈ F e s < r. Tomemos s = 0 e r = 1. Assim, s < r, entretanto, s /∈ F .
Portanto, F não é um corte.
65
Proposição 5.1.8. Sejam α um corte e r ∈ Q. Então, r é cota superior de α se, e somente
se, r ∈ Q \ α.
Demonstração. (⇒) Se r é uma cota superior de α, então x ≤ r, para todo x ∈ α, entretanto,pelo item 3 da de�nição de corte, α não possui elemento máximo, portanto r não está em α,
isto é, r ∈ Q \ α.(⇐) Seja r ∈ Q \ α e s ∈ α. Temos que, ou r ≥ s, ou r < s. Se o segundo caso ocorre, pelo
item 2 da de�nição de corte, r ∈ α, o que é uma contradição com a hipótese, logo, r ≥ s, isto
é, r é uma cota superior de α.
�
Proposição 5.1.9. Se r ∈ Q e α = {x ∈ Q | x < r} então α é um corte e r é a menor cota
superior de α.
Demonstração.
1. α 6= ∅, pois x = r − 1 ∈ α e α 6= Q pois r ∈ Q e r /∈ α;
2. Sejam s ∈ α e t < s. Assim, t < s < r, logo t < r, ou seja, t ∈ α;
3. Suponhamos que exista s ∈ α tal que x ≤ s para todo x ∈ α. Como s ∈ α, então s < r,
daí, s < (s+ r)2−1 < r. Como (s+ r)2−1 ∈ Q e (s+ r)2−1 < r, então (s+ r)2−1 ∈ α,o que contradiz a maximalidade de s, portanto, α não possui um elemento máximo.
Seja s ∈ Q uma cota superior de α. Suponhamos que s < r, o que implica que s ∈ α, assim s
é um elemento máximo de α, contradizendo o fato de α ser corte. Logo, r ≤ s para toda cota
superior s de α, ou seja, r é a menor cota superior de α.
�
De�nição 5.1.10. Os cortes do tipo da proposição anterior são chamados cortes racionais e
se representam por r∗.
Proposição 5.1.11. Todo corte que possui cota superior mínima é racional.
Demonstração. Seja α um corte com cota superior mínima r, isto é, x ≤ r para todo x ∈ α.Temos que r /∈ α pois, caso contrário, r seria máximo de α, o que não pode acontecer, por
de�nição de corte, sendo assim x < r para todo x ∈ α. Como r é a mínima das cotas superiores
de α, temos que, qualquer s ∈ Q, tal que s < r, não é cota superior de α, isto é, pertence a α.
Logo, se r ∈ Q é cota superior mínima de α, então α = {x ∈ Q | x < r} , ou seja, α é racional.
�
Faremos a seguir um exemplo importante para concluir a próxima demonstração.
Exemplo 5.1.12. A equação x2 = 2 não tem solução em Q. De fato, só precisamos mostrar
que o número x o qual é solução desta equação não é um número racional. Suponhamos por
absurdo que seja.
Se tal x é racional então ele tem formaa
bcom a ∈ Z, b ∈ Z e b 6= 0, isto é, x =
a
b, a ∈ Z,
b ∈ Z∗ e ainda podemos admitir, sem perda de generalidade, que m.d.c : (a, b) = 1. Elevando
ao quadrado ambos os membros da equação x =a
b, obtemos 2 =
a2
b2, ou seja, a2 = 2b2. Isto
66
implica que a2 é par, daí, podemos a�rmar que a também é par (quadrado de um número par
é um número par e o quadrado de um núumero ímpar é um número ímpar). Vamos indicar a
por a = 2m.
Agora, a2 = 2b2 ⇒ (2m)2 = 2b2 ⇒ 2m2 = b2. Isto sign�ca que b2 é par, novamente,
podemos a�rmar que b também é par. Concluímos que a é par e b é par, logo, o m.d.c(a, b) = 2,
o que é uma contradição, uma vez que o m.d.c(a, b) = 1. Portanto, x /∈ Q.
Teorema 5.1.13. Seja α = {x ∈ Q | x ≤ 0} ∪ {x ∈ Q | x2 < 2}. Então α é um corte que não
é racional.
Demonstração.
1. α 6= ∅ pois 0 ∈ α e α 6= Q pois 2 ∈ Q e 2 /∈ α.
2. Sejam r ∈ α e s ∈ Q, s < r.
• Se s ≤ 0 então s ∈ α;
• Se s > 0 e s < r, então s2 < r2 < 2, isto é, s ∈ α;
3. Para cada r ∈ α é possível encontrar um racional s ∈ α tal que r < s. De fato, suponhamos
que r ∈ α, logo r2 < 2.
• Se r ≤ 0, então s = 1 ∈ α e r < s;
• Se r > 0 e r2 < 2, tomemos h ∈ Q, 0 < h < 1 e h <2− r2
2r + 1(existe h nessas condições,
pois Q é arquimediano). Seja s = r + h, logo s ∈ Q, s > r.
Temos s2 = r2 + h2 + 2rh = r2 + (h + 2r)h. Como 0 < h < 1 , s2 < r2 + (1 + 2r)h,
daí, como h <2− r2
2r + 1, s2 < r2 + (2− r2) = 2. Portanto, s ∈ α e r < s.
Sendo assim, α não possui um elemento máximo.
Disto temos que α é um corte.
Veri�quemos agora que α não possui cota superior mínima. Os racionais que não pertencem
a α são os positivos que têm quadrado maior ou igual a 2, e sabemos que não existe racional
cujo quadrado é igual a 2, pelo Exemplo 5.1.12. Sendo assim, q é uma cota superior de α se
q > 0 e q ∈ Q tal que q2 > 2. Mostraremos que, para cada cota superior p, encontraremos
outra cota superior q tal que q < p. De fato, seja p uma cota superior, isto é p ∈ Q e p2 > 2.
Seja q = p− p2 − 2
2p. Dessa forma, 0 < q < p e
q2 = p2 − 2p
(p2 − 2
2p
)+
(p2 − 2
2p
)2
= 2 +
(p2 − 2
2p
)2
> 2.
Portanto, q < p e q2 > 2, como queríamos.
�
Teorema 5.1.14. Seja α um corte. Se p ∈ α e q /∈ α, então p < q.
67
Demonstração. Uma vez que p e q são números racionais e a relação de ordem usual em Q é
uma ordem total podemos a�rmar que p = q ou p < q ou p > q.
Se p = q, então q ∈ α, o que contradiz a hipótese. Se p ∈ α e q < p segue da condição 2
da de�nição de corte que q ∈ α, mas isto contradiz, novamente, nossa hipótese. Portanto, nos
resta que q > p.
�
Desta forma, os elementos de um corte α serão, daqui por diante, chamados números infe-
riores de α, enquanto que os racionais que não estão em α serão chamados números superiores
de α.
Denotaremos, a partir daqui, por C o conjunto de todos os cortes.
5.2 Relação de ordem em C
Inicialmente, de�niremos em C uma relação de ordem.
De�nição 5.2.1. Sejam α, β ∈ C. Dizemos que α é menor do que β e escrevemos α < β
quando β \ α 6= ∅. Em outras palavras, α < β se existe um racional p tal que p ∈ β e p /∈ α.
Exemplo 5.2.2.
1. 5∗ >
(4
5
)∗, pois 1 ∈ 5∗ \
(4
5
)∗;
2. 1∗ > 0∗ pois1
2∈ 1∗ \ 0∗;
3. (−1)∗ < 0∗, pois −1
2∈ 0∗ \ (−1)∗;
4. Se α = {x ∈ Q+ | x2 < 2} ∪Q∗−, então α < 2∗, pois18
10∈ 2∗ \ α.
De�nição 5.2.3. Se α ∈ C e α > 0∗, α chama-se corte positivo. Se α < 0∗, é chamado de
corte negativo. Se α ≥ 0∗, α é não negativo e se α ≤ 0∗, ele chama-se corte não positivo.
Proposição 5.2.4. Para α, β ∈ C, valem as equivalências:
1. α < β ⇔ α ⊂ β e α 6= β;
2. α ≤ β ⇔ α ⊂ β.
Demonstração.
1. (⇒) α < β ⇒ existe p ∈ β tal que p /∈ α. Claramente α 6= β. Suponhamos que
α * β, isto é, existe p ∈ α tal que p /∈ β, o que é uma contradição, pois por de�nição, se
isto ocorre, então β < α. Logo α ⊂ β.
(⇐) Se α ⊂ β e α 6= β, então existe p em β tal que p não está em α, ou seja, α < β;
2. (⇒) α ≤ β ⇒ α < β ou α = β. Se α < β, pelo item anterior α ⊂ β. Se α = β,
obviamente α ⊂ β.
(⇐) α ⊂ β implica, pelo item anterior, que α < β, ou seja, α ≤ β.
68
�
Teorema 5.2.5 (Tricotomia). Sejam α, β ∈ C, então uma e somente uma das possibilidades
a seguir ocorre:
α = β ou α < β ou β < α.
Demonstração. Se α = β, temos por de�nição de igualdade de conjuntos que, α ⊂ β, daí pelo
item 2 da Proposição 5.2.4, α ≤ β. Se α < β, obteríamos uma contradição, pois, pelo item 1
desta mesma proposição teríamos, α 6= β. Portanto, a igualdade α = β, exclui as outras duas
possibilidades. Temos ainda que, α < β ou β < α excluem α = β, pelo item 1 da Proposição
5.2.4. Veri�quemos agora que as posibilidades α < β e β < α se excluem mutuamente. Para
isto, suponhamos que α < β e β < α ocorrem ao mesmo tempo.{α < β ⇒ α ⊂ β e α 6= β,
β < α⇒ β ⊂ α e β 6= α.
Dessa forma temos α ⊂ β, β ⊂ α e α 6= β, o que é um absurdo, por de�nição de igualdade de
conjunto.
Devemos mostrar ainda que uma das três deve ocorrer. Temos que α = β ou α 6= β. Se
α = β não há o que provar. Se α 6= β, então α \ β 6= ∅ ou β \ α 6= ∅. No primeiro caso, β < α
e, no segundo caso, α < β, por de�nição.
�
Teorema 5.2.6. A relação ≤ é uma relação de ordem em C.
Demonstração.
1. Re�exiva: Seja α ∈ C. Obviamente α = α, portanto, α ≤ α;
2. Antissimétrica: Sejam α, β ∈ C, α ≤ β e β ≤ α. Pela tricotomia, α = β;
3. Transitiva: Sejam α, β, γ ∈ C, α ≤ β e β ≤ γ.{α ≤ β ⇒ α ⊂ β,
β ≤ γ ⇒ β ⊂ γ.
Temos que a inclusão de conjuntos é transitiva, portanto, α ⊂ β e β ⊂ γ implicam que
α ⊂ γ, daí α ≤ γ.
�
5.3 Operações em C
Iniciaremos esta seção enunciando um teorema fundamental para a de�nição da operação
de soma nos cortes.
Teorema 5.3.1. Sejam α, β ∈ C. Se γ = {r + s | r ∈ α e s ∈ β}, então γ ∈ C.
Demonstração. Devemos mostrar que γ ∈ C, isto é, provar que satisfaz as três considições paraser um corte:
69
1. Como α 6= ∅ e β 6= ∅, claramente γ 6= ∅. Sejam t ∈ Q \ α e u ∈ Q \ β. Sendo assim, t > r
para todo r ∈ α e u > s para todo s ∈ β, daí, t+ u > r + s, para todo r ∈ α e para todo
s ∈ β. Sendo assim, t+ u /∈ γ, logo γ 6= Q.
2. Sejam r ∈ γ e s ∈ Q com s < r. Como r ∈ γ, temos que r = p+ q com p ∈ α e q ∈ β, daí,s < p+ q. Sendo assim, podemos tomar q′ < q (como β é corte, q′ ∈ β) tal que s = p+ q′,
portanto, s ∈ γ.
3. Devemos mostrar que γ não possui elemento máximo, isto é, para todo r ∈ γ, existe s ∈ γtal que r < s. De fato, temos que r = p + q com p ∈ α e q ∈ β. Como existe p′ ∈ α tal
que p < p′, o racional s = p′ + q ∈ γ e é maior do que r.
�
De�nição 5.3.2. Denotamos por α + β e chamamos soma de α e β, o corte γ do teorema
anterior, isto é,
α + β = {r + s | r ∈ α e s ∈ β}.
Teorema 5.3.3. A adição em C é comutativa, associativa e tem 0∗ como elemento neutro.
Demonstração.
1. Comutativa: sejam α, β ∈ C. Devemos mostrar que α + β = β + α. De fato, tomemos
r + s ∈ α+ β tal que r ∈ α e s ∈ β. Já vimos que a comutativa é válida em Q, portanto,r+s = s+r. Sabemos que s+r ∈ β+α com s ∈ β e r ∈ α, sendo assim, r+s ∈ β+α. Daí,α+β ⊂ β+α. Da mesma forma podemos concluir que β+α ⊂ α+β, logo, α+β = β+α.
2. Associativa: sejam α, β, γ ∈ C. Devemos mostrar que α+(β+ γ) = (α+β)+ γ. De fato,
tomemos r+(s+ t) ∈ α+(β+γ) tal que r ∈ α, s ∈ β e t ∈ γ. Já vimos que a associativa é
válida em Q, portanto, r+(s+ t) = (r+ s)+ t. Sabemos que (r+ s)+ t ∈ (α+β)+γ com
r ∈ α, s ∈ β e t ∈ γ, sendo assim, r+(s+t) ∈ (α+β)+γ. Daí, α+(β+γ) ⊂ (α+β)+γ. Da
mesma forma, podemos concluir que, (α+β)+γ ⊂ α+(β+γ), logo, α+(β+γ) = (α+β)+γ.
3. Elemento Neutro da Adição: devemos mostrar que α + 0∗ = α. Seja r = p + q ∈ α + 0∗
com p ∈ α e q ∈ 0∗, isto é, q < 0. Assim, r < p, portanto, r ∈ α. Logo, α + 0∗ ⊂ α.
Tomemos agora r ∈ α e s ∈ α, tal que r < s. Podemos expressar r como r = s+ (r − s),onde r − s < 0 e, portanto, (r − s) ∈ 0∗. Logo, r ∈ α + 0∗ e assim, α ⊂ α + 0∗, de onde
segue que, α = α + 0∗.
�
Lema 5.3.4. Sejam α ∈ C e r ∈ Q∗+. Então existem números racionais p e q tais que p ∈ α,q /∈ α, q não é cota superior mínima de α e q − p = r.
Demonstração. Tomemos s arbitrário em α e consideremos a sequência sn = s + nr para
n = 0, 1, 2, . . .. Seja A = {n ∈ N | sn ∈ α}. Temos que:
• A ⊂ N, por de�nição de A;
• A 6= ∅, pois 0 ∈ A;
70
• A é �nito, por consequência das condições 2 e 3 para α ser corte.
Portanto podemos a�rmar que o conjunto A assume um máximo m. Isto acarreta que sm ∈ αe sm+1 /∈ α.
Se s + (m + 1)r não for cota superior mínima de α, devemos tomar p = s + mr e q =
s + (m + 1)r, daí, q − p = r. Se s + (m + 1)r for cota superior mínima de α, devemos tomar
p = s+mr +r
2e q = s+ (m+ 1)r +
r
2, daí, q − p = r.
�
Teorema 5.3.5. Dado α um corte, existe um único corte β tal que α + β = 0∗. Como nos
casos dos inteiros e racionais, tal β denota-se por −α e se chama simétrico (ou oposto) de α.
Demonstração. Provemos inicialmente a unicidade. Suponhamos que α + β = α + β′= 0∗:
β′= β
′+ 0∗ = β
′+ (α + β) = (β
′+ α) + β = 0∗ + β = β.
Provemos agora a existência e um corte β que satisfaça α + β = 0∗. O primeiro passo é
tomar um β e mostrar que é corte. Seja
β = {p ∈ Q | −p /∈ α e − p não é cota superior mínima de α}.
1. (a) Para mostrar que β 6= ∅, consideremos dois casos:
• α não possui cota superior mínima:
Como α é um corte, então α 6= Q e potanto, existe q ∈ Q tal que q /∈ α. Assim,
basta tomar p = −q ∈ Q e −p = q /∈ α. Logo p ∈ β e portanto β 6= ∅.• α possui cota superior mínima m:
Como m é cota superior mínima de α, m /∈ α (se m ∈ α, m seria máximo de α, o
que contradiz a de�nição de corte) e com isso, m+ 1 /∈ α. Seja p = −m− 1 ∈ Qe −p = m+ 1 /∈ α e, além disso, −p = m+ 1 6= m. Portanto p ∈ β e β 6= ∅.
(b) Para mostrar que β 6= Q, consideremos novamente dois casos:
• α não possui cota superior mínima:
Como α é corte, então α 6= ∅ e portanto existe r ∈ α (daí r ∈ Q). Tomemos
p = −r ∈ Q e, portanto, −p = r ∈ α. Logo p /∈ β e p ∈ Q, isto é, β 6= Q.• α possui cota superior mínima m:
Como m é cota superior mínima de α, então m − 1 ∈ α (caso contra¯io, m − 1
seria uma cota superior de α menor do que m, contradizendo a minimalidade de
m). Seja p = −m + 1 ∈ Q e −p = m − 1 ∈ α. Portanto, p /∈ β e p ∈ Q, isto é,
β 6= Q.
2. seja p ∈ β e q ∈ Q tal que q < p. Queremos mostrar que q ∈ β. Como p ∈ β, temos que
−p /∈ α e −p não é cota superior mínima de α. Como q < p, então
−p < −q (5.1)
daí, −q /∈ α (visto que −p /∈ α). Temos também que −q não é cota superior mínima de
α (pois caso contrário, sabendo que −p /∈ α, ou seja, é uma cota superior de α, teríamos
71
−q ≤ −p, contradizendo (5.1)). Como q ∈ Q, −q /∈ α e −q não é cota superior mínima
de α, concluímos que q ∈ β.
3. Seja p ∈ β, queremos mostrar que existe q ∈ β tal que p < q. Dividiremos em dois casos.
• α não possui cota superior mínima:
Como −p /∈ α e α não possui cota superior mínima, então existe uma cota superior
q de α (isto é, q /∈ α), tal que q < −p. Assim, −q ∈ β e p < −q, logo β não possui
máximo.
• α possui cota superior mínima m:
Seja r =−m+ p
2∈ Q. Como p ∈ β, temos que −p /∈ α, ou seja, é uma cota superior
de α, mas não é cota superior mínima de α, portanto, m < −p, daí, p < −m. Sendo
assim,
r =−m+ p
2=−m2
+p
2>p
2+p
2= p.
Por outro lado,
−r = m− p2
=m
2− p
2>m
2+m
2= m,
portanto, −r 6= m. Como −r > m, então −r /∈ α. Finalmente, como r ∈ Q, −r /∈ αe −r não é cota superior mínima de α, temos que r ∈ β e p < r, logo, β não possui
máximo.
Para �nalizar, basta mostra que α+β = 0∗. Para isso, mostremos que α+β ⊂ 0∗ e 0∗ ⊂ α+β.
• Seja q + r ∈ α + β com q ∈ α e r ∈ β (r ∈ Q, −r /∈ α e −r não é cota superior mínima
de α). Como q ∈ α e −r /∈ α, então, q < −r, daí, q + r < 0, isto é, q + r ∈ 0∗.
• p ∈ 0∗ ⇒ p ∈ Q e p < 0 (−p > 0). Sejam r ∈ α e r′ /∈ α (r′ não sendo cota superior
mínima de α), tais que r′ − r = −p (Lema 5.3.4). Segue que p = r + (−r′), com r ∈ α e
−r′ ∈ β, ou seja, p ∈ α + β.
Portanto, α + β = 0∗, como queríamos.
�
De�nição 5.3.6. De�nimos a subtração em C por α− β = α + (−β), para todo α, β ∈ C.
Proposição 5.3.7. Se α ∈ C, então α = −(−α).
Demonstração. Já vimos que oposto de α é −α, portanto,
α + (−α) = α− α = −α + α = 0∗.
Por outro lado, sabemos que o oposto de (−α) é −(−α), logo
(−α) + (−(−α)) = −α + (−(−α)) = 0∗.
Sabemos também que o oposto de um corte é único, sendo assim, α = −(−α).�
72
Teorema 5.3.8 (Compatibilidade da relação de ordem com a adição). Sejam α, β, γ ∈ C tais
que α ≤ β. Então α + γ ≤ β + γ.
Demonstração. α ≤ β ⇔ α ⊂ β. Seja t ∈ α + γ, isto é, t = r + s com r ∈ α e s ∈ γ. Como
α ⊂ β, então r ∈ β, e t = r + s ∈ β + γ, ou seja, α + γ ⊂ β + γ. Portanto, α + γ ≤ β + γ.
�
Teorema 5.3.9. Sejam α e β cortes tais que α ≥ 0∗, β ≥ 0∗. Seja γ = {p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈Q | q = rs, onde r ∈ α, s ∈ β, r ≥ 0, s ≥ 0}. Então γ é um corte.
Demonstração.
1. p = −1 ∈ γ, portanto γ 6= ∅. Temos ainda que,{α 6= Q⇒ ∃p0 ∈ Q tal que p0 /∈ α,β 6= Q⇒ ∃q0 ∈ Q tal que q0 /∈ β.
Logo, p0q0 ∈ Q. Mostremos que p0q0 /∈ γ. Suponhamos que p0q0 ∈ γ, isto é, existem
p ∈ α, q ∈ β, p ≥ 0 e q ≥ 0 tal que p0q0 = pq. Não podemos ter p0 ≤ p (pois teríamos
p0 ∈ α), nem q0 ≤ q (pois teríamos q0 ∈ β). Assim, p < p0 e q < q0, daí, pq < p0q0, o que
é uma contradição com p0q0 = pq. Portanto, p0q0 /∈ γ e, assim, γ 6= Q.
2. Sejam r ∈ γ e s < r. Devemos mostrar que s ∈ γ. De fato, se s < 0, s ∈ γ. Suponhamos
s ≥ 0 e, portanto r > 0. Como r ∈ γ, existem p ∈ α e q ∈ β, tais que r = pq, com p ≥ 0
e q ≥ 0.
Como r > 0, segue que p > 0 e q > 0. Seja t =s
p(s ≥ 0, p > 0 ⇒ t ≥ 0). Se q ≤ t,
teríamos pq ≤ pt, isto é, r ≤ s, o que é um absurdo, pois, s < r. Logo, devemos ter t < q
e, como q ∈ β, então t ∈ β. Assim, como s = pt, p ∈ α, t ∈ β, p > 0 e t ≥ 0, então s ∈ γ.
3. Seja r ∈ γ e mostremos que existe s ∈ γ tal que r < s. De fato, se r < 0, basta tomar
s =r
2< 0, daí s > r. Suponhamos r ≥ 0. Neste caso, r ∈ γ signi�ca que r = pq, com
p ∈ α, q ∈ β, p ≥ 0 e q ≥ 0. Existem t ∈ α e u ∈ β tais que p < t e q < u (pois α e β não
possuem máximo). Logo, r = pq < tu. Tomando s = tu, temos s ∈ γ (pois s = tu com
t ∈ α, u ∈ β, t > 0 e u > 0) e s > r . Portanto, γ não tem máximo.
�
De�nição 5.3.10. Denotamos por αβ e chamamos produto de α e β o corte γ do teorema
anterior, isto é,
αβ = {p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈ Q | q = rs, onde r ∈ α, s ∈ β, r ≥ 0, s ≥ 0}.
Para de�nir produto de cortes que contêm fatores negativos, começamos com noção de valor
absoluto de um corte.
De�nição 5.3.11. A cada corte α associamos um corte |α| que chamamos valor absoluto de
α, de�nido por
|α| =
{α se α ≥ 0∗,
−α se α < 0∗.
73
Proposição 5.3.12. Se α < 0∗, então −α > 0∗.
Demonstração. Sabemos que α < 0∗ se, e somente se, existe q ∈ 0∗ tal que q /∈ α, e podemos
admitir, sem perda de generalidade que q não é cota superior mínima de α. Como q ∈ 0∗, então
q < 0. Tomemos r = −q, que nos fornece r > 0. Nesta condições, vemos que r ∈ −α (por
de�nição de corte oposto, pois −r = q, q /∈ α e q não é cota superior mínima de α) e r > 0,
isto é, r /∈ 0∗, o que nos garante que −α > 0∗.
�
Proposição 5.3.13. Para qualquer α ∈ C, tem-se:
1. |α| ≥ 0∗;
2. |α| = 0∗ ⇔ α = 0∗.
Demonstração.
1. Se α ≥ 0∗, então |α| = α ≥ 0∗, daí, |α| ≥ 0∗.
Se α < 0∗, então |α| = −α e ainda, −α > 0∗ (pela Proposição 5.3.12), assim, |α| > 0∗.
2. (⇒) Seja |α| = 0∗.
Se α > 0∗ então |α| = α > 0∗, contradição, pois, por hipótese, |α| = 0∗.
Se α < 0∗, pela Proposição 5.3.12, −α > 0∗ e, por de�nição, |α| = −α > 0∗, novamente
contradição.
Logo, pela tricotomia, α = 0∗.
(⇐) Seja α = 0∗.
α = 0∗ ⇒ |α| = α = 0∗.
�
Podemos agora completar a de�nição de multiplicação.
De�nição 5.3.14. Sejam α, β cortes. De�nimos:
αβ =
−(|α||β|) se α < 0∗ e β ≥ 0∗,
−(|α||β|) se α ≥ 0∗ e β < 0∗,
|α||β| se α < 0∗ e β < 0∗.
Teorema 5.3.15. Sejam α, β, γ ∈ C. Valem:
1. Comutativa: αβ = βα;
2. Associativa: (αβ)γ = α(βγ);
3. Elemento Neutro 1∗: α · 1∗ = α.
Demonstração. Suponhamos que α, β, γ ≥ 0∗.
74
1. Seja r ∈ αβ. Se r < 0, então r ∈ βα, por de�nição de produto. Suponhamos r ≥ 0.
Então r = pq, p ∈ α, q ∈ β, p ≥ 0 e q ≥ 0. Portanto r = pq = qp, q ∈ β, p ∈ α, q ≥ 0 e
p ≥ 0, isto é, r ∈ βα. Logo αβ ⊂ βα. Desse modo, analogamente r ∈ βα⇒ r ∈ αβ, istoé, βα ⊂ αβ, o que nos garante que αβ = βα.
2. Esta propriedade tem demonstração análoga a anterior, se dando imediatamente pela
associativa dos racionais, isto é,
(αβ)γ = {p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈ Q | q = (rs)t, r ∈ α, s ∈ β, t ∈ γ, r ≥ 0, s ≥ 0, t ≥ 0} ={p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈ Q | q = r(st), r ∈ α, s ∈ β, t ∈ γ, r ≥ 0, s ≥ 0, t ≥ 0} = α(βγ)
3. Seja r ∈ α · 1∗ e r < 0. Se α = 0∗, r < 0, então r ∈ 0∗ = α, portanto r ∈ α. Se α > 0∗,
temos que existe p ∈ α tal que p /∈ 0∗, daí p ≥ 0. Dessa forma, r < 0 ≤ p, logo r ∈ α.
Suponhamos agora r ≥ 0 e r ∈ α · 1∗, assim, r = pq com p ∈ α, q ∈ 1∗, p ≥ 0 e q ≥ 0.
Como q ∈ 1∗, temos que, q < 1, daí pq < p · 1, isto é, r = pq < p. Como p ∈ α, r = pq < p
e α é corte, então r ∈ α, logo, α · 1∗ ⊂ α.
Por outro lado, seja r ∈ α. Se r < 0 então r ∈ α, por de�nição de produto. Suponhamos
r ≥ 0. Tomemos p ∈ α tal que 0 ≤ r ≤ p (pois α não tem máximo). Se q =r
pentão
0 ≤ q < 1 e portanto q ∈ 1∗. Concluímos que, como r = pq, p ∈ α, q ∈ 1∗, p > 0, q ≥ 0,
então r ∈ α · 1∗. Portanto α ⊂ α · 1∗. Logo α = α · 1∗
Os outros casos (α < 0∗ e β ≥ 0∗, α ≥ 0∗ e β < 0∗, α < 0∗ e β < 0∗) são consequências da
parte já demonstrada, por exemplo, a comutativa, quando α < 0∗ e β ≥ 0∗: αβ = −(|α||β|) =−(|β||α|) = βα, por de�nição de módulo, pelo que foi demonstrado anteriormente (|α| ≥ 0 e
|β| ≥ 0) e por de�nição de produto.
�
Teorema 5.3.16. Seja α ∈ C com α > 0∗. O conjunto β = {p ∈ Q | p ≤ 0 ou p−1 /∈α e existe q /∈ α tal que q < p−1} é corte.
Demonstração.
1. 0 ∈ β, portanto β 6= ∅. Seja p ∈ α tal que p > 0 (este p existe pois, como α > 0∗ existe
q ∈ Q, q ∈ α e q /∈ 0∗, isto é, q ≥ 0. Devemos provar agora que p−1 /∈ β. De fato, se
p−1 ∈ β, então teríamos que (p−1)−1 = p /∈ α, isto é, p /∈ α, o que é contradição, pois
p ∈ α. Logo, p−1 /∈ β, ou seja, β 6= Q;
2. Seja p ∈ β e q ∈ Q com q < p. Devemos mostrar que q ∈ β. Se q ≤ 0, então q ∈ β, pelade�nição de β. Suponhamos então q > 0. Assim, temos 0 < q < p. Daí, como p, q ∈ Q∗+e q < p, pelas propriedades dos racionais, p−1 < q−1. Como p−1 /∈ α, segue que q−1 /∈ α.Assim, p−1 /∈ α, q−1 /∈ α, p−1 < q−1, o que signi�ca que q−1 não é cota superior mínima
de α, logo q ∈ β.
3. Seja p ∈ β.
Mostraremos que existe q ∈ β tal que p < q.
Sem perda de generalidade, vamos supor p > 0. Como p ∈ β e p > 0, então p−1 /∈ α e
existe r /∈ α tal que r < p−1. Tomemos s =r + p−1
2. Assim temos r < s < p−1. Tomando
75
q = s−1 temos q = s−1 > p > 0, portanto, q > 0. De fato, q−1 = s /∈ α (pois s > r e
r /∈ α), q−1 = s > r e r /∈ α, logo q ∈ β, isto é, β não possui máximo.
�
De�nição 5.3.17. Seja α um corte tal que α 6= 0∗ . Se α > 0∗, então o corte β do teorema
anterior é denotado por α−1 e chamado de inverso de α. Se α < 0∗, então de�nimos o inverso
de α como α−1 = −|α|−1.
Teorema 5.3.18. Seja α um corte tal que α 6= 0∗. Então αα−1 = 1∗. Além disso, o inverso
de α é único.
Demonstração. Consideremos dois casos, α > 0∗ e α < 0∗.
• α > 0∗:
Seja r ∈ αα−1. Se r ≤ 0, então r ∈ 1∗. Suponhamos r > 0. Como r ∈ αα−1 existem
s ∈ α, p ∈ α−1 tal que r = sp, s ≥ 0, p ≥ 0. Como r > 0, devemos ter s > 0 e p > 0.
Como p ∈ α−1 e p > 0, existe q /∈ α tal que q < p−1. Como s ∈ α e q /∈ α, então s < q.
De q < p−1, temos p < q−1, daí, sp < sq−1. Portanto, como s < q, temos que sq−1 < 1, e
assim, r = sp < sq−1 < 1, daí r ∈ 1∗.
Reciprocamente, seja r ∈ 1∗, isto é, r < 1. Se r < 0, então r ∈ αα−1, por de�nição de
produto. Se r = 0, temos r = p · 0, ponde p ∈ α, 0 ∈ α−1 e p > 0, logo r ∈ αα−1.
Suponhamos agora, 0 < r < 1. Seja s ∈ α com s > 0. Seja n o maior natural que
satisfaz s (r−1)n /∈ α (este n existe, pois, r−1 > 1 e se s (r−1)n ∈ α para todo n ∈ N,teríamos α = Q, o que é uma contradição, pois α é corte). Tomemos p1 = s (r−1)
n−1 ∈ αe t = s (r−1)
n/∈ α. Seja p ∈ α tal que p1 < p (α não possui máximo). Tomemos
q = t−1p−1p1, isto é, q−1 = tpp−11 . Assim, podemos ter
p1 < p⇒ p1p−11 < pp−11 ⇒ 1 < pp−11 ⇒ t < tpp−11 ⇒ t < q−1.
Assim, como t /∈ α, q−1 /∈ α e q−1 não é a menor cota superior de α. Temos ainda,
q = t−1p−1p1 ⇒ pq = pt−1p−1p1 ⇒ pq = t−1p1
⇒ pq =(s(r−1)n)−1
s(r−1)n−1
⇒ pq = s−1rnsr−n+1 ⇒ pq = r.
Desta forma, p ∈ α e, como q−1 /∈ α e existe t /∈ α tal que t < q−1, então, q ∈ α−1.
Portanto r ∈ αα−1.
Assim, concluímos que, se α > 0∗, então αα−1 = 1∗.
• α < 0∗:
Se α < 0∗, por de�nição, α−1 = −|α|−1. Sabemos que |α|−1 > 0∗ (pelo item 1 da
Proposição 5.3.13), e disso, −|α|−1 < 0∗ (pela Proposição 5.3.12), isto é, α−1 < 0∗. Daí,
por de�nição de produto, αα−1 = |α||α−1| = |α|| − |α|−1| = | = |α||α|−1 = 1∗.
76
Provemos agora a unicidade de α−1. Suponhamos que existam α−11 e α−12 , tais que αα−11 = 1∗
e αα−12 = 1∗. Assim,
α−11 = α−11 · 1∗ = α−11
(αα−12
)=(α−11 α
)α−12 = 1∗ · α−12 = α−12 .
�
Teorema 5.3.19 (Distributividade). Se α, β, γ ∈ C, então α(β + γ) = αβ + αγ.
Demonstração. Demonstraremos apenas o caso em que α > 0∗, β > 0∗ e γ > 0∗.
Mostremos inicialmente que α(β + γ) ⊂ αβ + αγ. De fato,
α(β + γ) = {q ∈ Q | q < 0} ∪ {p ∈ Q | p = rs onde r ∈ α, s ∈ (β + γ), r ≥ 0, s ≥ 0} .
Dessa forma, se x ∈ α(β+ γ), então, ou x ∈ 0∗ ou x = rs com r ∈ α, s ∈ (β+ γ), r ≥ 0 e s ≥ 0.
Se x ∈ 0∗, entãox
2∈ 0∗ e
x
2+x
2= x, que signi�ca que x ∈ αβ + αγ.
Se x = rs com r ∈ α, s ∈ (β + γ), r ≥ 0 e s ≥ 0, então s = q + p onde q ∈ β, p ∈ γ, q ≥ 0
e p ≥ 0. Portanto, x = rs = r(q + p) = rq + rp, logo x ∈ αβ + αγ. Assim, concluímos que
α(β + γ) ⊂ αβ + αγ.
Mostremos agora que αβ + αγ ⊂ α(β + γ). Com efeito,
αβ + αγ = {t ∈ Q | t = ps+ pq onde ps ∈ αβ, pq ∈ αγ} .
Seja u ∈ αβ + αγ, isto é, u = ps+ pq, com ps ∈ αβ, pq ∈ αγ.
• ps ∈ αβ ⇒ ps < 0 ou p ∈ α e s ∈ β com p ≥ 0 e s ≥ 0;
• pq ∈ αγ ⇒ pq < 0 ou p ∈ α e q ∈ γ com p ≥ 0 e q ≥ 0.
Desta forma, temos quatro casos:
1. Suponhamos ps < 0 e pq < 0. Claramente, u ∈ α(β + γ) pois u = ps+ pq < 0;
2. Suponhamos ps < 0 e p ∈ α e q ∈ γ com p ≥ 0 e q ≥ 0. Como ps < 0 e p ≥ 0, então
s < 0, daí, se −s > q, então s+ q < 0 e, portanto, u = ps+ pq = p(s+ q) < 0. Se −s ≤ q,
então s+ q ≥ 0 e, como p ≥ 0, temos u = p(s+ q) ∈ α(β + γ), pois p ∈ α e s+ q ∈ β + γ
com p ≥ 0 e s+ q ≥ 0;
3. Supondo p ∈ α e s ∈ β com p ≥ 0 e s ≥ 0 e pq < 0, podemos obter, analogamente ao caso
anterior que u = ps+ pq ∈ α(β + γ);
4. Suponhamos que p ∈ α, s ∈ β e q ∈ γ, com p ≥ 0, s ≥ 0 e q ≥ 0. Dessa forma,
u = ps + pq = p(s + q), onde p ∈ α e s + q ∈ β + γ, com p ≥ 0 e s + q ≥ 0, logo
u ∈ α(β + γ).
Provamos, então, que existe a dupla inclusão entre αβ + αγ e α(β + γ), isto é, αβ + αγ =
α(β + γ). �
Teorema 5.3.20. Para α, β ∈ C, temos (−α)β = α(−β) = −(αβ) e (−α)(−β) = αβ.
77
Demonstração. De fato, temos,
(−α)β + αβ = (−α + α)β = 0∗ · β = 0∗. (5.2)
Isso signi�ca que (−α)β = −(αβ), pois, como já foi provado, o oposto de um corte é único.
Temos também,
α(−β) + αβ = α(−β + β) = α · 0∗ = 0∗. (5.3)
Do mesmo modo, α(−β) = −(αβ).Temos ainda,
(−α)(−β) = −(α(−β)) por (5.2)
= −(−(αβ)) por (5.3)
= αβ pela Proposição 5.3.7.
�
Teorema 5.3.21 (Compatibilidade da relação de ordem com a multiplicação). Se α ≤ β e
γ ≥ 0∗, então, αγ ≤ βγ.
Demonstração. Como α ≤ β, pelo Teorema 5.3.8, 0∗ = α + (−α) ≤ β + (−α), portanto,β + (−α) ≥ 0∗. Além disso, como γ ≥ 0∗, temos (β + (−α))γ ≥ 0∗, por de�nição de produdo
de cortes. Daí, βγ + (−α)γ ≥ 0∗ e, novamente pelo Teorema 5.3.8, βγ ≥ αγ, isto é, αγ ≤ βγ.
�
Proposição 5.3.22. Seja α um corte qualquer, então α · 0∗ = 0∗.
Demonstração. Temos, α ·0∗ = α(0∗+0∗) = α ·0∗+α ·0∗, daí, α ·0∗−α ·0∗ = α ·0∗+α ·0∗−α ·0∗,portanto, 0∗ = α · 0∗, como queríamos.
�
Proposição 5.3.23. Sejam α e β cortes. Nesta condição, αβ = 0∗ se e somente se α = 0∗ ou
β = 0∗.
Demonstração. Se α = 0∗ ou β = 0∗, temos que αβ = 0∗, pelo resultado anterior.
Seja, agora, αβ = 0∗. Suponhamos α 6= 0∗, isto é, existe γ ∈ C, tal que αγ = 1∗. Dessa
forma,
β = β · 1∗ = β(αγ) = (αβ)γ = 0∗γ = 0∗.
Reciprocamente, se supormos que β 6= 0∗, concluiremos que α = 0∗.
�
Temos, então, C munido de duas operações e uma relação de ordem, de forma que C é
um corpo ordenado. Em particular, de�ne-se também a divisão em C e adota-se a notação
de fraçãoα
β, como nos racionais. Vejamos a seguir, uma aplicação injetora de Q em C, assim
como foi feito em Z e em Q.
78
Teorema 5.3.24. A aplicação j : Q −→ C, dada por j(r) = r∗ é injetora e preserva adição,
multiplicação e ordem, isto é, os seguintes itens são válidos:
1. j(p) + j(q) = j(p+ q), ou seja, p∗ + q∗ = (p+ q)∗;
2. j(p)j(q) = j(pq), isto é, p∗q∗ = (pq)∗;
3. j(p) < j(q) se e somente se p < q, ou ainda, p∗ < q∗ se, e somente se p < q;
4. j(p) = j(q) se e somente se p = q, ou seja, p∗ = q∗ se, e somente se, p = q.
Demonstração.
1. Seja t ∈ p∗ + q∗, isto é, t = r + s com r ∈ p∗ e s ∈ q∗, ou ainda, r < p e s < q. Dessa
forma, t = r + s < p+ q, ou seja, t = r + s ∈ (p+ q)∗.
Seja, agora, u ∈ (p+ q)∗, isto é, u < p+ q. Sejam h = p+ q − u, s = p− h
2e t = q − h
2.
Dessa forma, s < p e t < q, ou seja, s ∈ p∗ e t ∈ q∗. Logo u = s+ t ∈ p∗ + q∗.
2. Provaremos apenas para o caso p > 0 e q > 0, os outros casos podem ser provados de
forma análoga.
Se r ∈ p∗q∗, então, ou r < 0 ou r = st, com p > s ≥ 0 e q > t ≥ 0, de modo que, ou r < 0
ou r = st < pq e assim, r ∈ (pq)∗.
Seja r ∈ (pq)∗, então podemos a�rmar que ou r < 0 ou 0 ≤ r < pq. Se r < 0, claramente
r ∈ p∗q∗, pela de�nição de corte positivos. Se 0 ≤ r < pq então existem p1 ∈ Q e q1 ∈ Qtais que 0 < p1 < p, 0 < q1 < q e, ainda, r < p1q1 < pq. É evidente que p1 ∈ p∗, q1 ∈ q∗,p1q1 ∈ p∗q∗ e assim, r ∈ p∗q∗.
3. Se p < q, então p ∈ q∗. Como p /∈ p∗, concluímos que p∗ < q∗.
Analogamente, se p∗ < q∗, existe um racional r tal que r ∈ q∗ e r /∈ p∗, isto é, r < q e
r ≥ p. Logo p ≤ r < q, ou seja, p < q.
4. Se p = q, obviamente p∗ = q∗.
Suponhamos p∗ = q∗. Como p /∈ p∗, segue que p /∈ q∗, logo p ≥ q. Por outro lado, como
q /∈ q∗, segue que q /∈ p∗, então p ≤ q. Com isso, pela tricotomia, p = q.
�
Mais uma vez obtivemos uma cópia algébrica de um conjunto em outro, isto é, um homo-
mor�smo injetor. Desta vez, j(Q) é uma cópia de Q em C, sendo j(Q) precisamente o conjunto
dos cortes racionais. O Teorema 5.1.13 mostra que existem cortes não racionais em C. Assim,
C \ j(Q) 6= ∅.Notemos ainda que o corpo ordenado dos números racionais é isomorfo (bijetor, preserva
a soma, o produto e a ordem) ao corpo ordenado de todos os cortes racionais (C∗) o que nos
permite identi�car o corte racional r∗ como o número racional r. Naturalmente r∗ não é, de
modo algum, o mesmo número racional, mas as propriedades que interessam (aritméticas e
ordem) são as mesmas nos dois corpos ordenados.
Proposição 5.3.25. Se α ∈ C, temos que r ∈ α se, e somente se, r∗ < α.
79
Demonstração. Se r ∈ α, como r /∈ r∗, então r∗ < α. Reciprocamente, se r∗ < α, existe s ∈ α,tal que s /∈ r∗. Temos então, s ≥ r e s ∈ α, logo, r ∈ α.
�
Teorema 5.3.26. Se α, β ∈ C e α < β, então existe um corte racional r∗ tal que α < r∗ < β.
Demonstração. Do fato que α < β, podemos a�rmar que existe um número racional s ∈ β, talque s /∈ α. Uma vez que s ∈ β, segue da defnição de corte que existe um racional r tal que
s < r e ainda r ∈ β, o que implica r∗ < β, pelo resultado anterior.
Segue do item 3 do Teorema 5.3.24 que, s∗ < r∗, portanto, α ≤ s∗ < r∗ (como s /∈ α, pelaProposição anterior, s∗ ≥ α) e assim, chegamos a conclusão que, α < r∗ < β.
�
De�nição 5.3.27. O conjunto C dos cortes será, a partir de agora, denominado de conjunto
dos números reais e denotado por R. Os cortes racionais serão identi�cados, via injeção j, com
os números racionais. Todo corte que não for racional será denominado número irracional.
A identi�cação j(Q) com Q nos permite escrever Q ⊂ R. O conjunto R \ Q representa o
conjunto dos números irracionais.
A seguir vamos enunciar e demonstrar a principal propriedade que difere o conjunto dos
números racionais do conjunto dos números reais. Essa propriedade é conhecida como Teorema
de Dedekind.
Teorema 5.3.28 (Dedekind). Sejam A e B subconjuntos de R tais que:
1. R = A ∪B;
2. A ∩B = ∅;
3. A 6= ∅ e B 6= ∅;
4. se α ∈ A e β ∈ B, então α < β.
Nestas condições, existe um, e apenas um, número real γ tal que α ≤ γ ≤ β, para todo α ∈ Ae para todo β ∈ B.
Demonstração. Provemos inicialmente a unicidade:
Suponhamos que existam dois números distintos γ1 e γ2, com γ1 < γ2 (ou γ2 < γ1, sem
perda de generalidade) nas condições do enunciado. Consideremos γ3 tal que γ1 < γ3 < γ2,
que existe, como foi provado no Teorema 5.3.26. Temos que γ2 ≤ β, para todo β ∈ B, dessaforma, se γ3 ∈ B, teríamos γ2 ≤ γ3, o que não pode acontecer, pois γ1 < γ3 < γ2, portanto,
como R = A ∪ B, temos que γ3 ∈ A. Analogamente, de γ1 < γ3, obtemos γ3 ∈ B. Resulta
então γ3 ∈ A ∩B, uma contradição. Portanto não podemos ter γ1 e γ2 distintos nas condições
do enunciado.
Provemos agora a existência:
Seja γ = {r ∈ Q | r ∈ α, para algum α ∈ A}. Devemos mostrar que γ é um corte.
1. Como A 6= ∅, obviamente γ 6= ∅. Para mostra que γ 6= Q, tomemos β ∈ B. Seja s ∈ βum racional. Como α ⊂ β, para todo α ∈ A, então, s /∈ α, para todo α ∈ A, de onde
resulta s /∈ γ;
80
2. Seja r ∈ γ e s < r. Temos que r ∈ α para algum α ∈ A e, como s < r, então s ∈ α, deonde segue que s ∈ γ;
3. Temos que r ∈ α para algum α ∈ A e, como α é um corte, existe s > r em α, logo s ∈ γ;
Dessa forma, γ é um número real e temos que α ≤ γ para todo α ∈ A, pois, pela de�nição
de γ, sabemos que α ⊂ γ, para todo α ∈ A.Falta mostrar apenas que γ ≤ β para todo β ∈ B. Suponhamos que exista β ∈ B com
β < γ. Com isso, existe um racional r ∈ γ, tal que r /∈ β. Como r ∈ γ, então r pertence a
algum α ∈ A e, não sendo elemento de β, obtemos β < α, contradizendo a última hipótese do
teorema. Logo, γ ≤ β para todo β ∈ B.�
Exemplo 5.3.29. Consideremos os seguintes subconjuntos de Q:
A ={x ∈ Q+ | x2 < 2
}∪Q∗− e B =
{x ∈ Q+ | x2 > 2
}.
Podemos ver que A e B satisfazem as hipóteses do teorema anterior, com Q em lugar de R,mas que não existe r ∈ Q satisfazendo s ≤ r para todo s ∈ A e r ≤ t para todo t ∈ B. Notemos
que, este exemplo nos diz, informalmente, que em R não há �lacunas�, mas em Q, há. Por esta
razão, dizemos que R possui a propriedade da completude ou que R é completo.
Corolário 5.3.30. Nas condições do Teorema 5.3.28, ou existe em A um número máximo, ou,
em B, um número mínimo.
Demonstração. Seja γ como no teorema anterior. Então, pela primeira hipótese, γ está em A
ou γ está em B e, em apenas um desses conjuntos, pela segunda hipótese. Se γ ∈ A, então ele
é elemento máximo de A. Se γ ∈ B, então, ele é elemento mínimo de B.
�
Observemos que, se o conjunto A do Teorema 5.3.28 não contiver γ, então ele é um corte
em R, no sentido da de�nição de corte em Q apresentada. A diferença entre ambas a situações
é que em Q não se tem necessariamente, como no Teorema 5.3.28 para os números reais, um
elemento como γ. Essas lacunas é que geram os cortes irracionais. Como tais lacunas não
ocorrem em R, então cortes em R não geram elementos novos.
Antes de apresentar o próximo resultado, devemos retomar o conceito de supremo. As de�-
nições de supremo e ín�mo, dadas para o conjunto dos racionais, são equivalentes no conjunto
dos reais. Por exemplo, se A é um subconjunto de R, limitado superiormente, e existe um cota
superior de A, digamos s, que seja mínima, então, s diz-se supremo de A. O ín�mo é dado
analogamente.
Teorema 5.3.31. Se X ⊂ R é um conjunto não vazio e limitado superiormente, então existe
supX.
Demonstração. Sejam A = {α ∈ R | α < x, para algum x ∈ X} e B = R \ A, isto é, A é o
conjunto constituído precisamente pelos números reais que não são cotas superiores de X e B
é o conjunto constituído pelas cotas superiores de X.
Vamos veri�car que A e B satisfazem as condições do Teorema 5.3.28.
81
As duas primerias condições são obviamente válidas.
Veri�quemos a terceira. Temos que, como X 6= ∅, existe x ∈ X, e assim, qualquer α < x
pertence a A, ou seja, A 6= ∅. Como X é limitado superiormente, B 6= ∅.Para veri�car a útima condição do teorema, sejam, α ∈ A e β ∈ B. Assim, existe x ∈ X tal
que α < x. Como x ≤ β, obtemos α < β.
Dessa forma, veri�camos que A e B satisfazem as codições do Teorema 5.3.28, logo, pelo
Corolário 5.3.30, ou A possui máximo, ou B possui mínimo. Devemos mostrar que A não possui
máximo. De fato, tomemos α arbitrário em A. Existe x ∈ X tal que α < x. Consideremos α′
tal que α < α′ < x. Como α′ < x, então α′ ∈ A e é maior do que α, ou seja, nenhum elemento
de A é maior do que os demais, ou seja, A não possui máximo. Sendo assim, obrigatoriamente
B possui mínimo, isto é, X possui supremo.
�
Essa propriedade válida para R não se veri�ca em Q, isto é, não é verdade que todo subcon-junto de números racionais não vazio e limitado superiormente em Q sempre admita supremo
em Q. Por exemplo, o conjunto A = {x ∈ Q+ | x2 < 2} não possui supremo racional, mas tem
supremo, se considerado como subconjunto de R.O resultado seguinte mostra que R, assim como Q, é um corpo arquimediano.
Teorema 5.3.32. O conjunto N dos naturais é ilimitado em R.
Demonstração. Se N ⊂ R fosse limitado superiormente, existiria α = supN, pelo Teorema
5.3.31. Dessa forma, α ≥ n, para todo n ∈ N. Como n + 1 ∈ N, para todo n ∈ N, entãon+ 1 ≤ α para todo n ∈ N, de onde obtemos n ≤ α− 1 para todo n ∈ N, daí, concluímos que
α − 1 é uma cota superior para n ∈ N, o que é uma contradição, pois α − 1 < α e α é a cota
superior mínima.
�
Vamos, a seguir, de�nir potência de base real e expoente inteiro.
De�nição 5.3.33. Seja a ∈ R e n ∈ N . De�nimos a potência an, recursivamente, como
sendo:
an =
{1, se n = 0,
a · an−1, se n > 1.
Finalmente, se a 6= 0, de�nimos:
a−n =(a−1)n.
Proposição 5.3.34. Se a e b são reais e n,m inteiros positivos, então são válidos:
1. (ab)n = an · bn;
2. anam = an+m;
3. (an)m = amn.
82
Demonstração. Faremos a prova apenas do primeiro item, dado que as outras se dão do mesmo
modo. Provemos por indução �nita:
Se n = 0, por de�nição (ab)0 = 1 e a0 · b0 = 1 · 1 = 1, logo (ab)0 = a0 · b0.Suponhamos, agora, que a igualdade seja válida para n = k e provemos que é verdadeira
para n = k + 1.
Hipótese de Indução: (ab)k = ak · bk.Por de�nição, (ab)k+1 = (ab)(ab)k+1−1 = (ab)(ab)k, daí, por hipótese de indução,
(ab)k+1 = (ab)akbk. (5.4)
Novamente por de�nição,
ak+1bk+1 = aak+1−1bbk+1−1 = aakbbk = (ab)akbk. (5.5)
Assim, por (5.4) e (5.5), concluímos que (ab)k+1 = ak+1bk+1. Logo, por indução a igualdade é
válida.
�
Estas propriedades são válidas, ainda, para m,n ∈ Z, e a prova é simples, basta notarmos
que, se m < 0, então m = −n para algum n em N, daí, am = a−n = (a−1)n e, assim, voltamos
aos itens do teorema anterior. Vale ressaltar que, para expontes negativos, a base deve ser não
nula.
Teorema 5.3.35. Seja a um real positivo e n > 0 natural. Existe um único número real positivo
que é solução da equação xn = a.
Demonstração. A prova deste teorema depende fundamentalmente da completude de R. Ela
está feita com bastante rigor em [3] e não será feita aqui.
�
De�nição 5.3.36. Dado um número real positivo a, o único número real positivo que é solução
da equação xn = a, estabelecido pelo teorema anterior, chama-se raiz n-ésima de a e é denotado
por n√a, ou por a
1n . A raiz n-ésima de a permite que se de�na expoente racional do seguinte
modo: se m e n são inteiros positivos, amn =
(a
1n
)me, como para expoentes inteiros, a−
mn =
(a−1)mn .
Proposição 5.3.37. Se a e b são reais positivos, n inteiro positivo e r, s racionais positivos,
temos que:
1. (ab)1n = a
1n b
1n ;
2. aras = ar+s;
3. (ar)s = ars;
4. (ab)r = arbr.
83
Demonstração. Novamente provaremos o primeiro item, os seguintes decorrem do mesmo modo,
através de manipulações algébricas com o uso das propriedades já demonstradas.
Sejam a e b reais positivos e n ∈ N∗. Se temos αn = a e βn = b, então, por de�nição,
existem as seguintes soluções reais: α = a1n e β = b
1n . Dessa forma,
ab = αnβn = (αβ)n,
assim, por de�nição, αβ = (ab)1n , daí, a
1n b
1n = αβ = (ab)
1n , como queríamos.
�
Mostramos anteriormente que qualquer subconjunto de R limitado superiormente possui
supremo, o seguinte teorema mostra um resultado análogo se tratando de ín�mo.
Teorema 5.3.38. Todo subconjunto não vazio de números reais, limitado inferiormente, possui
ín�mo.
Demonstração. Seja X ⊂ R limitado inferiormente e consideremos o conjunto −X = {−x ∈R | x ∈ X}. Claramente −X ⊂ R. Como X é limitado inferiormente, dizemos que existe M
tal que M ≤ x para todo x ∈ X. Disso temos que −M ≥ −x para todo −x ∈ −X, isto é, −Xé limitado superiomente, logo, −X possui supremo, digamos c = sup (−X). Vamos mostrar
que −c = infX. De fato, c ≥ −x para todo −x ∈ −X, ou ainda, −c ≤ x para todo x ∈ X.
Dessa forma −c é uma cota inferior de X. Suponhamos que exista d tal que −c < d ≤ x para
todo x ∈ X. De d ≤ x para todo x ∈ X, temos −d ≥ −x para todo −x ∈ −X, isto é, −dé cota superior de −X, porém, temos que −c < d ⇒ c > −d, o que é uma contradição, pois
c é supremo de −X. Logo, −c é a maior das cotas inferiores de X, isto é, −c = infX, como
queríamos.
�
5.4 Representação decimal dos números reais
Sendo conhecida a representação dos inteiros na base dez, faremos o estudo da representação
decimal dos números reais. Para isto, demonstraremos um resultado a respeito da representação
decimal dos números reais não negativos menores do que 1, a partir do qual a representação
decimal dos demais números reais será automática, com auxílio de um resultado anterior.
Proposição 5.4.1. Dado um número real não negativo α, existe um número natural máximo
que é menor ou igual a α. Além disso 0 ≤ α− n0 < 1.
Demonstração. Seja dado α ∈ R+. Consideremos o conjuntos A = {n ∈ N | n ≤ α}. Devemos
mostrar que A possui um elemento máximo. De fato, seja B = {p ∈ N | p > α}. Claramente
B ⊂ N e, ainda, B 6= ∅, pois, como vimos no Teorema 5.3.32, N é ilimitado em R. Com isso,
pelo Princípio da Boa Ordem, B possui um elemento mínimo, digamos p0. Dessa forma, p0 ≤ p
para todo p ∈ B. Sendo assim, α < p0 ≤ p para todo p ∈ B. Desse modo, p0 − 1 /∈ B, isto é,
p0 − 1 ≤ α, logo, p0 − 1 ∈ A.A�rmamos que p0 − 1 é o máximo de A, ou seja, p0 − 1 ≥ n para todo n ∈ A. Com efeito,
suponhamos p0 − 1 < n para algum n ∈ A, daí, p0 − 1 < n ≤ α, ou ainda, p0 ≤ n ≤ α, o que é
uma contradição, pois p0 > α.
84
Tendo que n0 é o máximo de A, claramente n0 ≤ α < n0 + 1, donde 0 ≤ α− n0 < 1.
�
Teorema 5.4.2 (Representação decimal dos números reais).
1. A cada número real α, não negativo e menor do que 1, corresponde uma única sequência
de dígitos (nk)k∈N∗, satisfazendo :
(a) 0 ≤ nk ≤ 9, para todo k ∈ N∗;
(b) (nk)k∈N∗ não possui in�nitos dígitos consecutivos iguais a 9;
(c) de�nindo, para cada k ∈ N∗, Sk como a soman1
10+n2
102+ . . .+
nk
10k, α será supremo
do conjunto S = {Sk | k ∈ N∗}.
2. Reciprocamente, a cada sequência de dígitos (nk)k∈N∗, satisfazendo 1a e 1b acima, e de�-
nindo Sk como em 1c, corresponde um único número real α, não negativo e menor do que
1, que é o supremo do conjunto limitado superiormente S = {Sk | k ∈ N∗}.
Demonstração. A demonstração deste resultado é um tanto trabalhosa, mas decorre de resul-
tados já demonstrados aqui e está feita em [3].
�
De�nição 5.4.3.
1. Dado um número real α, com 0 ≤ α < 1, seja (nk)k∈N∗ a sequência de dígitos corres-
pondentes a α, sem in�nitos noves consecutivos, construída na primeira parte do teorema
acima. A representação decimal de α se de�ne como sendo a expressão 0, n1n2n3n4 . . ..
Se nk 6= 0 e nl = 0, para todo l > k, convenciona-se representar 0, n1n2n3n4 . . . por
0, n1n2n3n4 . . . nk, que será dita representação decimal �nita de α.
2. Se α ≥ 1, seja n0 o maior natural que é menor ou igual a α, dado na Proposição 5.4.1.
Seja 0, n1n2n3n4 . . . nk . . . a representção decimal de α − n0 de�nida em 1. De�nimos a
representação decimal de α como sendo a expressão n0, n1n2n3n4 . . . nk . . ..
3. Se α < 0, de�nimos sua representação decimal como sendo −r, onde r é a representação
decimal de −α.
Já sabemos que as representações decimais não consideram, então, expressões com in�nitos
noves consecutivos, entretanto, podemos atribuir a elas um signi�cado similar ao das expressões
sem in�nitos noves consecutivos. Consideremos a expressão 0, 9999 . . .. Estendendo o que vimos
para representações sem in�nitos noves sucessivos, o número real α a ela associado deve ser o
supremo do conjunto S = {Sk | k ∈ N∗}, onde Sk =9
10+
9
102+ . . . +
9
10k, . . ., que converge
para 1 (fato que está bem demonstrado em [4]).
Por outro lado, a representação decimal de 1 é, pela de�nição acima, 1, 00000 . . ., que con-
vencionamos representar pelo próprio 1. Dessa forma, considerando expressões com in�nitos
noves consecutivos como representações decimais, tem-se como resultado que elas representam
também números reais com representação decimal �nita e, reciprocamente, qualquer represen-
tação decimal �nita, diferente do 0, tem uma representação decimal in�nita com in�nitos noves
consecutivos nos termos acima.
85
Exemplo 5.4.4. A representação decimal 2, 79999 . . . também representa o número 2, 8. De
fato, neste caso, n0 = 2 e o número real α− n0 deve ser o supremo do conjunto S = {Sk | k ∈N∗}, onde Sk =
7
10+
9
102+. . .+
9
10k, . . .. Analogamente ao que foi visto acima,
9
102+. . .+
9
10k, . . .
converge para 0, 1, daí, Sk converge para 0, 8, ou seja, a representação deste α, segundo a
de�nição anterior é 2, 8. Do mesmo modo, a representação decimal com in�nitos noves de
0, 47 é representada por 0, 469999 . . ..
Deste modo, estamos apontando para o fato de que representações decimais �nitas ou perió-
dicas correspondem a números racionais. De fato, seja α = 0, a1a2 . . . an um número real com
representação decimal �nita. Multiplicando por 10n em ambos os lados da igualdade obtemos,
10nα = a1a2 . . . an ⇒ α =a1a2 . . . an
10n,
o que nos garante que α é um número racional.
Do mesmo modo, seja α = 0, a1a2 . . . ana1a2 . . . an . . . um número real com representação
decimal periódica (n ≥ 1). Multiplicando por 10n em ambos os lados desta igualdade obtemos
10nα = a1a2 . . . an, a1a2 . . . an . . . a1a2 . . . an . . .. Subtraindo os lados destas duas igualdades, na
ordem dada, obtemos
10nα− α = a1a2 . . . an ⇒ (10n − 1)α = a1a2 . . . an ⇒ α =a1a2 . . . an10n − 1
,
o que nos garante que α é um racional.
Reciprocamete, pode-se provar que todo número racional possui representação decimal �nita
ou periódica ([3] é uma referência para uma demonstração rigorosa deste fato).
5.5 R não é enumerável
A representação decimal dos números reais feita acima, permite que mostremos que R não
é enumerável. Mas, antes disso, precisamos de dois resultados.
Proposição 5.5.1. Todo subconjunto in�nito de um conjunto enumerável é enumerável.
Demonstração. Seja X um conjunto enumerável e Y um subconjunto in�nito de X. Como X
é enumerável, existe f : X −→ N bijetora. Dessa forma, tomemos f |Y : Y −→ N, com isso,
f(Y ) ⊂ N, daí, pelo Lema 4.3.6, f(Y ) é enumerável, isto é, existe g : f(Y ) −→ N bijetora.
Sabendo que g e f |Y são bijetoras, obtemos que g ◦ f |Y : Y −→ N é bijetora, portanto Y é
enumerável, como queríamos.
�
Lema 5.5.2. O intervalo I = ]0, 1[ não é enumerável.
Demonstração. Devemos mostrar que, qualquer que seja a enumeração estabelecida para ele-
mentos de I, sempre existirá um elemento de I não considerado na dada enumeração, isto é,
qualquer subconjunto enumerável de I é diferente de I, de onde obteremos que I não pode ser
enumerável.
De fato, seja I ′ um conjunto enumerável constituído de elementos de I que, portanto, pode
ser escrito na forma I ′ = {x0, x1, x2, . . .}, onde, para cada n ∈ N, xn representa a imagem de n
86
por um certa bijeção de N em I ′. Vamos representar cada elemento de I ′ pela sua representção
decimal dada acima, sem in�nitos noves consecutivos:
x0 = 0, x00x01x02 . . .
x1 = 0, x10x11x12 . . .
x2 = 0, x20x21x22 . . ....
xk = 0, xk0xk1xk2 . . ....
Vamos construir um número real x ∈ I, diferente de todos os elementos de I ′ através da
seguinte representação decimal: 0, a0a1a2 . . ., onde, para cada n ∈ N, o dígito decimal an dessa
representação é diferente de 9, de 0 e do dígito decimal xnn da representação de xn. Pela bijeção
estabelecida acima, a representação decimal 0, a0a1a2a3 . . . corresponde a um único número real
de I que é diferente de todos os elementos de I ′, como queríamos. Este argumento se deve a
Cantor e se chama método diagonal de Cantor, por conta da disposição de matriz in�nita em
que foram coloados os elementos de I ′ acima.
�
Teorema 5.5.3. O conjunto dos números reais é não enumerável.
Demonstração. Pelo Lema 5.5.2, o subconjunto I de R é não enumerável, logo, pela Proposição
5.5.1, R não pode ser numerável.
�
O importante Teorema de Schroder-Bernstein pode ser encontrado com mais detalhes em
[9] e diz que:
Teorema 5.5.4 (Schroder-Bernstein). Se A e B são conjuntos e existem sobrejeções f : A −→B e g : B −→ A, então A e B são equipotentes, isto é, existe uma bijeção entre esses conjuntos.
Pode-se obter a mesma conclusão se considerarmos f e g funções injetoras em vez de so-
brejetoras. Este resultado é bastante importante e será usado na prova da proposição que
segue.
Proposição 5.5.5. Os conjuntos R e P(N) são equipotentes.
Demonstração. Vamos mostrar que existem duas funções injetoras ϕ : R −→ P(Q) e f :
P(N) −→ R. Como Q é enumerável, temos que existe uma bijeção entre N e Q, isto é, eles
são equipotentes e, assim, os conjuntos P(Q) e P(N) também são, isto é, existe uma bijeção
ψ : P(Q) −→ P(N). A função g = ψ ◦ ϕ : R −→ P(N) será, portanto, injetora. Das
injetividades de f e g, concluímos, pelo Teorema de Schroder-Bernstein, que R e P(N) são
equipotentes. Precisamos, então, apenas de�nir ϕ e f e mostrar que são injetora.
De�nimos ϕ : R −→ P(Q) como segue: cada a ∈ R, ϕ(a) = {x ∈ Q | x < a}. Para mostrar
que ϕ é injetora, sejam a e b reais distintos, digamos a < b, sem perda de generalidade. Pelo
5.3.26, existe a < r < b com r racional. Como r < b, então r ∈ ϕ(b) e, ainda, como a < r,
temos que r /∈ ϕ(a), logo ϕ(a) 6= ϕ(b). Concluímos assim que ϕ é injetora.
Para de�nirmos f : P(N) −→ R, seja A ∈ P(N) e consideremos a função XA : N −→ {0, 1},dada por
87
XA(n) =
{1, se n ∈ A,
0, se n ∈ N \ A.
Com o auxílio dessa função, de�nimos f(A) como sendo o número real cuja representação
decimal será 0,XA(0)XA(1)XA(2)XA(3) . . .. Para mostrar que f é injetora, seja A 6= B, isto
é, existe n0 ∈ A tal que n0 /∈ B (ou n0 ∈ B tal que n0 /∈ A). Dessa forma XA(n0) = 1 e
XB(n0) = 0, daí, podemos ver que
f(A) = 0,XA(0)XA(1) . . .XA(n0) . . . = 0,XA(0)XA(1) . . . 1 . . .
e
f(B) = 0,XB(0)XB(1) . . .XB(n0) . . . = 0,XB(0)XB(1) . . . 0 . . .
o que signi�ca que f(A) 6= f(B). Logo, f é injetora.
�
88
Capítulo 6
Números Complexos
Os números complexos são ensinados no Ensino Médio como expressões do tipo a+ bi, onde
a, b ∈ R e i é a unidade imaginária, com a propriedade de que i2 = −1. Dessa forma, pode-se
manipular tais expressões como expressões algébricas reais, sob a condição de que i2 = −1. Oque faremos agora é justi�car a origem desta unidade imaginária com rigor matemático.
6.1 Construção dos complexos
Relembremos, por um momento, como lidávamos com números complexos no ensino básico:
Dois números, a + bi e c + di, são iguais apenas quando a = c e b = d, o que nos lembra a
igualdade entre os pares coordenados (a, b) e (c, d). Temos também, que,
(a+ bi) + (c+ di) = (a+ c) + (b+ d)i
e que,
(a+ bi) · (c+ di) = (ac− bd) + (ad+ bc)i.
Admitindo um número complexo como um par ordenado, podemos de�nir formalmente as
operações de adição e multiplicação como segue.
De�nição 6.1.1. Consideremos o conjunto R × R = R2. Se (a, b), (c, d) ∈ R2, de�nimos a
adição e a multiplicação da seguinte forma, respectivamente:
(a, b) + (c, d) = (a+ c, b+ d) e (a, b) · (c, d) = (ac− bd, ad+ bc).
O conjunto R2, munido dessas operações, será chamado conjunto dos números complexos e
denotado por C, onde cada par ordenado é chamado de número complexo.
Teorema 6.1.2. As operações em C têm as seguintes propriedades: a adição e a multiplica-
ção são comutativas, associativas e têm elemento neutro: (0, 0) para a adição e (1, 0) para a
multiplicação. Além disso, dado (a, b) ∈ C, seu simétrico existe, −(a, b), que é (−a,−b) e, se
(a, b) 6= (0, 0), seu inverso existe, (a, b)−1, que é
(a
a2 + b2,−b
a2 + b2
). Finalmente, a multiplica-
ção é distributiva em relação à adição.
Demonstração. Sejam (a, b), (c, d), (e, f) ∈ C.
89
1. Comutatividade da adição:
(a, b) + (c, d) = (a+ c, b+ d) = (c+ a, d+ b) = (c, d) + (a, b);
2. Associatividade da adição:
(a, b) + ((c, d) + (e, f)) = (a, b) + ((c+ e, d+ f)) = (a+ (c+ e), b+ (d+ f))
= ((a+ c) + e, (b+ d) + f) = ((a+ c, b+ d)) + (e, f)
= ((a, b) + (c, d)) + (e, f);
3. Elemento Neutro da adição: (0, 0) ∈ C.
(a, b) + (0, 0) = (a+ 0, b+ 0) = (a, b);
4. Comutatividade da multiplicação:
(a, b) · (c, d) = (ac− bd, ad+ bc) = (ca− db, cb+ da) = (c, d) · (a, b);
5. Associatividade da multiplicação:
(a, b) · ((c, d) · (e, f)) = (a, b) · ((ce− df, cf + de))
= (a(ce− df)− b(cf + de), a(cf + de) + b(ce− df))= (ace− adf − bcf − bde, acf + ade+ bce− bdf)= ((ac− bd)e− (ad+ bc)f, (ac− bd)f + (ad+ bc)e)
= (ac− bd, ad+ bc) · (e, f)= ((a, b)(c, d)) · (e, f).
6. Elemento Neutro da multiplicação (1, 0) ∈ C:
(a, b) · (1, 0) = (a · 1− b · 0, a · 0 + b · 1) = (a, b);
7. Simétrico de (a, b): (−a,−b) ∈ C.
(a, b) + (−a,−b) = (a+ (−a), b+ (−b)) = (0, 0).
O simétrico de (a, b) será denotado por −(a, b);
8. Inverso de (a, b) 6= (0, 0):
(a
a2 + b2,−b
a2 + b2
)∈ C.
(a, b) ·(
a
a2 + b2,−b
a2 + b2
)=
(a2
a2 + b2+
b2
a2 + b2,−aba2 + b2
+ab
a2 + b2
)= (1, 0).
O inverso de (a, b) 6= (0, 0) será denotado por (a, b)−1;
90
9. Distributividade da multiplicação em relação a adição:
(a, b) · ((c, d) + (e, f)) = (a, b) · (c+ e, d+ f)
= (a(c+ e)− b(d+ f), a(d+ f) + b(c+ e))
= (ac+ ae− bd− bf, ad+ af + bc+ be)
= (ac− bd+ ae− bf, ad+ bc+ af + be)
= (ac− bd, ad+ bc) + (ae− bf, af + be)
= (a, b) · (c, d) + (a, b) · (e, f).
�
Assim como �zemos em todos os conjuntos anteriores, vamos imergir R em C através de
uma função injetora que preserva as operações de adição de multiplicação, mostrando que existe
uma cópia algébrica de R em C. Observemos inicialmente que um número complexo arbitrário
(a, b) pode ser escrito como (a, b) = (a, 0) + (b, 0)(0, 1).
Teorema 6.1.3. Seja k : R → C, dada por k(x) = (x, 0). Temos que, k é injetora e preserva
as operações de adição e multiplicação, isto é, k(x+ y) = k(x) + k(y) e k(xy) = k(x)k(y).
Demonstração. Provemos que k é injetora. De fato, se k(x) = k(y), então, (x, 0) = (y, 0), que
signi�ca, x = y, logo k é injetora. Temos ainda que,
k(x+ y) = (x+ y, 0) = (x, 0) + (y, 0) = k(x) + k(y)
e
k(xy) = (xy, 0) = (x, 0) · (y, 0) = k(x)k(y).
�
Desta forma, k(R) é uma cópia algébrica de R em C, o que nos permite identi�car R com
k(R) e considerar R ⊂ C. Admitindo esta identi�cação e adotando o símbolo i para o número
complexo (0, 1), a expressão mensionada acima, (a, b) = (a, 0) + (b, 0)(0, 1), pode ser escrita
como a+ bi, como é ensinada no Ensino Médio.
Notemos que i2 = (0, 1)2 = (−1, 0), que pode ser identi�cado por −1. Temos que, os
números complexos escritos da forma a + bi, com b 6= 0, chamam-se números imaginários, e,
se além disso, a = 0, obtemos os imaginários puros. Tal denominação provém do fato que
os complexos demoraram a ser aceitos como números, dessa forma, o termo �imaginários� tem
sentido contraposto a �reais�.
Teorema 6.1.4. C não é enumerável.
Demonstração. Vimos que R ⊂ C. Pela Proposição 5.5.1, se C fosse enumerável, R também
deveria ser, o que contradiz o que já mostramos. Portanto C não é enumerável.
�
91
6.2 C não é ordenável
Vistas as propriedades aritméticas de C (Teorema 6.1.2), veri�ca-se que são as mesmas
que as de R e Q, sendo assim, podemos dizer que C é um corpo. Entretanto, vimos que os
elementos, tanto de R quanto de Q mantêm uma relação de ordem, o que não ocorre em C,isto é, intuitivamente falando, não temos como dizer se 3 é maior ou menor do que 3i, por
exemplo. Dessa forma, como R e Q são dotados de uma relação de ordem compatível com as
suas operações, eles são ambos ordenados.
Vamos provar a seguir que C é um corpo não ordenável, isto é, mostraremos que é impossível
dotar C de uma relação de ordem compatível com as suas operações aritméticas. No entanto,
C possui uma propriedade algébrica que R e Q não têm, o Teorema Fundamental da Álgebra,
cuja demonstração foi a tese de doutorado de Johann Carl Friedrich Gauss (1777 -1855). Tal
teorema a�rma que todo polinômio não constante com coe�cientes complexos admite uma raiz
em C (argumentos elementares da prova deste teorema podem ser encontrados em [8]).
Teorema 6.2.1. C não é um corpo ordenável.
Demonstração. Como C é um corpo, se C fosse ordenado, teríamos que x2 ≥ 0 para todo x ∈ C(pela Proposição 4.3.18), entretanto, como i ∈ C e sabendo que i2 = −1 < 0, encontramos uma
contradição, o que mostra que C não é um corpo ordenável.
�
Podemos notar que Z não é um corpo, pois seus únicos elementos inversíveis são 1 e −1.No entanto, Z possui todas as outras propriedades de corpo, além de uma relação que satisfaz
o Princípio da Boa Ordem, sendo assim, Z diz-se um domínio de integridade bem ordenado,
enquanto N não possui nem a propriedade do elemento simétrico. Diante de todas estas cons-
truções, o grá�co abaixo representa as imersões próprias de N em Z, de Z em Q, de Q em R e
de R em C.
•2
•(2,0) •(0,2)
•2/1 •-2/1 •2/5
•(2/1)* •(-2/1)* •(2/5)* 2
•(2,0) •(-2,0) •(2/5,0) 2•( ,0) • i
Figura 6.1: Diagrama de Imersões Próprias
Após todas estas contruções, podemos nos perguntar se os conjuntos numéricos param por
aí, isto é, se existem conjuntos nos quais C pode ser imerso propriamente. Na verdade, fazendo
R2 × R2 como foi feito na contrução dos complexos, podemos obter o anel dos quatérnios de
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Hamilton, que perde a estrutura de corpo, pois a comutativa da multiplicação deixa de ser
válida. Esta estrutura foi desenvolvida no século XIX pelo irlandês William Rowan Hamilton.
C pode ser imerso propriamente no anel dos quatérnios.
Os quatérnios, podem ainda ser imersos nos octônios (O), estes contruídos sobre R4 × R4,
no qual a multiplicação não é mais associativa. Esse processo de imersão em conjuntos maiores
pode prosseguir in�nitamente através da construção de Cayley-Dickson. Porém, o Teorema de
Frobenius, provado por Ferdinand Georg Frobenius (1848-1917), em 1877, caracteriza a álgebra
de divisão associativa de dimensão �nita sobre os números reais. De acordo com o teorema,
cada tal álgebra é isomorfa a um dos seguintes: R (números reais), C (números complexos), H(Quatérnios).
Estas álgebras têm dimensões 1, 2 e 4, respectivamente. Esse teorema está intimamente
relacionado com o teorema de Hurwitz (Adolf Hurwitz (1859-1919)) , que a�rma que as únicas
álgebras de divisão normalizadas ao longo os números reais são R, C, H, e O. Para mais
infomações, pode-se consultar [10].
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Bibliogra�a
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