Grupo de Pesquisa da Comunicação e Sociedade do Espetáculo 3º Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo Faculdade Cásper Líbero – 15, 16 e 17 de outubro de 2015
A cultura popular além do espetáculo
Jaime Carlos Patias 1
Resumo: A condição básica para a cultura é que seu agente seja um ser consciente no
mundo e com o mundo. O ser humano livre é sujeito fazedor de cultura, capaz de dar
sentido e unidade à vida, organizar e transformar a sociedade. O espetáculo se dá
quando o ser humano torna-se mero espectador. Nesse sentido, a crítica de Guy Debord
(1931-1994) à sociedade do espetáculo ganha importância. Hoje, a cultura popular
representa o discurso da periferia contrapondo o discurso das elites. A cultura popular e
os movimentos sociais aspiram outro modelo de sociedade. Diante dessa perspectiva,
observamos que são encorajadoras as palavras do Papa Francisco aos movimentos
populares em sua capacidade de organização e busca de alternativas.
Palavras-chave: cultura; movimento popular; sociedade do espetáculo; indústria
cultural.
1 Jaime Carlos Patias, IMC, é licenciado em Filosofia pela PUC-PR, bacharel em Teologia pela Universidade de Louvania, Bélgica, e mestre em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Secretário Nacional da Pontifícia União Missionária e assessor de comunicação das Pontifícias Obras Missionárias (POM), em Brasília (DF). Membro do Grupo de Pesquisa “Comunicação e Sociedade do Espetáculo”, autor de vários artigos: “O espetáculo no telejornal sensacionalista”. In: Comunicação e Sociedade do Espetáculo, (Paulus, 2006); “O pensamento de René Girard aplicado ao telejornal Brasil Urgente”. In: revista Thésis, n. 8, (São Paulo, FCL, 2004); “O espetáculo nos discursos políticos de Hugo Chávez”. In: Comunicação Cultura de Rede e Jornalismo (São Paulo, Almedina, 2012); “O lulismo: mito e política: a influência de Lula em campanhas eleitorais”. In: Mídia, Espetáculo e Poder Simbólico, (Editora In House, 2013); Lula carisma e poder: uma abordagem a partir de estudos sobre liderança carismática, de Max Weber. In: Política e Mídia, (Editora In House, 2015); “Os conceitos de Guy Debord sobre a cultura na sociedade do espetáculo”; “O sagrado e o profano: do rito religioso ao espetáculo midiático”, entre outros.
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A sociedade do espetáculo segue viva
A partir do momento em que se admite a existência da sociedade do espetáculo, a obra
de Guy Debord (1931-1994), necessariamente, passa a ser referência para compreender
suas características. Já na abertura de seu livro Sociedade do espetáculo, o autor
argumenta que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de
produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era
vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord, 1997, p.13). No último
parágrafo ele afirma que “nem o indivíduo isolado nem a multidão atomizada e sujeita à
manipulação podem realizar essa ‘missão histórica de instaurar a verdade no mundo”.
Debord vê nos conselhos operários “a forma desalienante da democracia realizada”
(1997, p. 141), capazes de criar as condições para o triunfo do diálogo, que colocará um
fim à sociedade do espetáculo.
Do início ao fim de sua obra, o pensador procura articular teoria crítica e força prática
visando a derrocada da sociedade do espetáculo, conforme ele próprio a define.
Ao apresentar as características do espetáculo, Debord explica que não se trata de “um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens”; é
também uma cosmovisão; resultado e projeto do capitalismo; o “modelo atual da vida
dominante na sociedade”; a “afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o
consumo que decorre desta escolha” (1997, p. 14-15).
Para o pensador, a modernidade é a sociedade do espetáculo concretizada na ditadura da
produção capitalista onde há uma ideologização da própria realidade do capitalismo.
Existe uma confusão entre a imagem da sociedade capitalista produzida pelo espetáculo
e a realidade dessa sociedade. Assim, em uma economia mercantil-espetacular, a
produção alienada vem juntar-se ao consumo alienado.
Em seu livro Teoria crítica e Sociedade do Espetáculo (In House, 2014), o professor
Dr. Cláudio Novaes, mostra como a obra de Debord (1967) atualiza a análise da
sociedade capitalista feita na década de 1930 pela teoria crítica de Horkheimer. Na
década de 1940, Horkheimer, juntamente com Adorno, autores da Escola de Frankfurt,
havia atualizado o mesmo juízo com o livro Dialética do Esclarecimento, onde
desenvolve o conceito de indústria cultural.
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Em 1988 o próprio Debord revisa sua análise sobre o capitalismo nos Comentários
sobre a sociedade do espetáculo (1997, pp. 167-237). Ele conclui que o espetáculo
permanece enquanto “o reino autocrático” da economia mercantil (Idem, p. 156). A
novidade é o seu fortalecimento e expansão com o surgimento do poder espetacular
integrado como a fusão das formas anteriores do “poder espetacular difuso” e
“concentrado”.
Cláudio Novaes observa que, “com o conceito de poder espetacular integrado, Debord
chama a atenção para a presença em sociedades formalmente democráticas de
elementos de regimes ditatoriais” (2014, p. 51).
Podemos afirmar que hoje, o sistema capitalista neoliberal de produção e consumo,
amplamente difundido em países democráticos, é fortemente marcado pelas
características da sociedade do espetáculo.
Sociedade do espetáculo e indústria cultural
Sociedade do espetáculo e indústria cultural são dois conceitos fundamentais da teoria
crítica que busca compreender como os elementos da realidade social levam
necessariamente à sua transformação. Esses conceitos não podem ser separados, pois
ambos procuram compreender a mesma realidade. Adorno e Horkheimer desenvolveram o conceito de indústria cultural para a compreensão do processo de mercantilização da sociedade capitalista, que alcançou a produção cultural com o desenvolvimento de técnicas de produção em larga escala sob o controle de grandes conglomerados comunicacionais. (Novaes, 2014, p. 58).
O conceito de sociedade do espetáculo cunhado por Debord procura a compreensão do
mesmo momento histórico, do processo de articulação entre o acúmulo de capital, por intermédio da produção e do consumo de mercadorias em larga escala, e o acúmulo de espetáculo, por intermédio da produção e do consumo de imagens em larga escala. (Idem, p. 58)
Max Horkheimer e seus companheiros da Escola de Frankfurt pretendiam resgatar a
dimensão crítica da filosofia e das ciências sociais por meio de estudos
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interdisciplinares que reuniam diversas formas de conhecimento, tal como a sociologia,
a psicanálise, a pesquisa empírica, teorias artísticas e a própria filosofia. Em vez de um
pensamento teórico desinteressado de seu objeto de estudo, como fazia a teoria
tradicional, esse grupo trouxe para a própria teoria a dimensão transformadora da
realidade conforme foi exigido por Marx.
Em Horkheimer, a teoria crítica se distingue da tradicional no que tange ao
“comportamento crítico”, que consiste em apreender a realidade separada como
contradição e perceber que o modelo de economia vigente é, sobretudo, produto da ação
humana, que por sua vez, pode também tomar outro rumo.
Tendo em vista que a alienação é total, abrangendo o espaço, o tempo, o lazer, a cultura,
a arte, a comunicação e a religião, Debord propõe, então, a contestação total do
capitalismo moderno por meio de uma série de ações espontâneas destinadas a atingir a
classe dominante.
A cultura como elemento de unificação
Em sua obra, no capítulo VIII (A negação e o consumo na cultura), Debord discorre
sobre o conceito de cultura (1997, pp. 119-135). Ele pensa o desenvolvimento artístico
moderno como componente do processo histórico de “dissolução da antiga linguagem
comum”, levada a cabo pelo próprio desenvolvimento do capitalismo que destruiu as
relações sociais pré-modernas.2
O pensador argumenta que, para adquirir força e poder de unificar a sociedade, a cultura
precisa se emancipar. Ela então se desliga da unidade da sociedade do Mito e ganha
autonomia (independência relativa). Segundo esse entendimento, toda a arte moderna
foi a manifestação positiva da destruição da “antiga linguagem comum”. Assim, ela se
fez arte independente, retirando-se do antigo universo religioso, destruindo-se
criticamente a si mesma como pertencente àquele universo, constituindo sua própria
independência formal em um processo inseparável da destruição social da antiga
2 Cf. PATIAS, J. C. Os conceitos de Guy Debord sobre a cultura na sociedade do espetáculo. II Seminário Comunicação, Cultura e Sociedade do Espetáculo. Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, outubro de 2013.
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linguagem comum. Ao se tornar independente, paradoxalmente, a cultura perde a sua
independência.
Em síntese, para Debord, a cultura é o lugar da busca da unidade perdida, mas nessa
busca, como esfera separada, ela é obrigada a negar a si própria (cf. Debord, 1997, pp.
119-120). Nesse sentido, a emancipação da cultura do universo mítico, a torna passível
de manipulação podendo virar produto. Então, a arte independente no sentido moderno
é o começo de sua dissolução.
O ponto de partida para uma análise sistemática, do papel da cultura, deve ser uma
compreensão crítica dos seres humanos como sujeitos. É como seres conscientes que
mulheres e homens não estão apenas no mundo, mas com o mundo como seres capazes
de transformar o mundo por suas ações, captar a realidade e expressá-la por meio de sua
linguagem criadora. O espetáculo acontece quando o ser humano, limitado em sua
capacidade criativa, torna-se mero espectador. Deixando de ser sujeito consciente, não
consegue conferir integridade e sentido à sociedade. É contra essa anomalia que o ser
humano consciente precisa lutar. Debord indica o caminho. Para destruir de fato a sociedade do espetáculo é preciso que os seres humanos ponham em ação uma força prática. A teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação na sociedade. E essa negação, a retomada da luta de classes revolucionária, se tornará consciente de si ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a teoria de suas condições reais das condições práticas da opressão atual, desvelando inversamente o segredo do que ele pode ser (...). (1997, pp. 131-132).
Debord argumenta que, para obter êxito é necessário, portanto, unir luta teórica com a
luta prática que ele chama de prática social unificada.
A cultura popular além do espetáculo
Embora exista pouco consenso com relação ao significado do conceito de cultura,
muitos analistas concordam que o estudo dos fenômenos culturais é fundamental para as
ciências sociais como um todo. Isso por que a vida em sociedade não é simplesmente,
uma questão de objetos e fatos que ocorrem como fenômenos naturais, mas é também
resultado de ações e expressões, manifestações e símbolos, e de sujeitos que se
expressam, procuram entender a si mesmos, aos outros e ao meio em que vivem.
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Nesse sentido, o conceito de cultura se refere a uma variedade de fenômenos e um
conjunto de interesses compartilhados por estudiosos de diversas disciplinas, desde a
sociologia e antropologia até a história e a crítica literária.
Contudo, o conceito de cultura não tem sido usado sempre dessa forma. É um conceito
que possui uma longa história e o sentido que ele tem hoje é, em certa medida, um
produto dessa história.
Derivada da palavra latina cultura, o conceito passou a fazer parte de muitos idiomas
europeus no início do período moderno. O seu sentido original deriva do cultivo da terra
ou do cuidado de alguma coisa como grãos ou animais. No século XVI esse sentido
passou do cultivo da terra para o cultivo da mente humana.
No início do século XIX, a palavra cultura era utilizada como um sinônimo de
civilização entendido como o processo de desenvolvimento humano da barbárie e
selvageria em direção à ordem e ao refinamento. Com o aparecimento da disciplina da
antropologia no fim do século XIX, a concepção clássica deu lugar a várias concepções
antropológicas de cultura.
Em seu livro Ideologia e Cultura Moderna (2009), John B. Thompson distingue, no
campo da antropologia, duas concepções: a descritiva e a simbólica. A concepção descritiva de cultura refere-se a um variado conjunto de valores, crenças, costumes, convenções, hábitos e práticas características de uma sociedade específica ou de um período histórico. A concepção simbólica muda o foco para um interesse com simbolismo. Os fenômenos culturais, de acordo com esta concepção, são fenômenos simbólicos e o estudo da cultura está interessado na interpretação dos símbolos e da ação simbólica. (2009, p. 166)
O caráter simbólico da vida humana tem sido um tema constante de estudo entre
filósofos e cientistas sociais. Na antropologia, essa abordagem foi colocada no centro
dos debates por Clifford Geertz, em sua obra A Interpretação das culturas (2003). O
autor descreve seu conceito de cultura como semiótico ao invés de simbólico. 3
Diante das rápidas e profundas transformações que a cultura vem passando, na
sociedade moderna, Lúcia Santaella, professora em comunicação e semiótica da PUC-
3 Sobre essa questão ver THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna. 2009, p. 181-183.
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SP, propõe seis divisores de culturas: Cultura Oral, Cultura Escrita, Cultura Impressa,
Cultura de Massa, Cultura das Mídias e Cultura Digital. A pesquisadora esclarece,
contudo, que estas não são lineares, mas são cumulativas e preservam formas anteriores.
Em seu artigo Cultura, comunicação e semiótica, o professor da Faculdade Cásper
Líbero, Dr. Antônio Roberto Chiachiri Filho detalha esses seis conceitos. 4
Não pretendemos aqui abordar todos esses conceitos, mas apenas traçar algumas
considerações, em especial sobre os últimos três.
O surgimento da escrita teve a ver com a necessidade de armazenar e memorizar a
cultura oral fora do corpo humano de forma mais duradoura. Além de permitir uma
maior fidelidade ao registro do pensamento, o texto pode ser lido, analisado, corrigido,
melhorado. Surge a reflexão crítica e analítica.
Com a escrita veio o pergaminho, o papel e a necessidade de maior distribuição do
saber, maior intercâmbio de culturas e agilidade na comunicação. A invenção da
tipografia pelo artesão alemão Johannes Gutenberg, por volta de 1430, dá início à
cultura impressa, primeiro passo para a cultura de massa.
Surgem os livros e os periódicos inicialmente mensais e em 1662, em Londres o Weekly
News (semanal). Em 1777 nasce o primeiro diário francês, Le Journal de París. No
século XIX, a imprensa se fixa como importante instrumento de poder em todo o mundo
lutando contra a censura pela democracia.
A cultura de massa, por sua vez, teve sua origem na invenção da imprensa. No século
XIX, a Revolução Industrial provoca a urbanização e a padronização. Com os avanços
tecnológicos da industrialização, a invenção dos meios de comunicação (fotografia,
cinema, imprensa, rádio, televisão) possibilitou um maior acesso às informações,
mesmo que muitas vezes manipuladas.
Roberto Chiachiri recorda que a cultura de massa torna-se um agente de diluição da linha divisória entre as culturas eruditas e popular, em que até a metade do século XIX, tínhamos de um lado uma cultura das elites, a erudita; do outro, nas camadas menos privilegiadas, a cultura popular (2012, p. 18).
4 Cf. CHIACHIRI, R. Cultura, comunicação e semiótica. In: BUITONI, D. S. & CHIACHIRI, R. (Orgs.). Comunicação, Cultura de Rede e Jornalismo. São Paulo, Almedina, 2012, pp. 14-27.
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A principal crítica da cultura de massa foi feita pela Escola de Frankfurt, que
denunciava a multiplicação e a proliferação de produtos culturais como mercadorias, em
detrimento da verdadeira cultura.
Em sua obra Dialética do Esclarecimento (1947), Adorno e Horkheimer, dois filósofos
alemães judeus exilados nos Estados Unidos, definiram como indústria cultural um tipo
de indústria que, organizada nos mesmos moldes de uma fábrica de produtos de bens de
consumo, não produzia uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria com um
grande valor simbólico agregado.
Para os filósofos frankfurtianos, a massa funciona como receptor passivo que consome
uma cultura produzida e distribuída pelos interesses de uma indústria nos moldes
capitalistas, onde os bens culturais se convertem em mercadoria.
Analisando a produção da cultura como mercadoria, Adorno e Horkheimer procuraram
mostrar que essa indústria realizava uma verdadeira manipulação das consciências. Eles
conheceram muito bem a propaganda nazista e o fascismo de Mussolini. Por isso, na
Europa a crítica atacava as políticas de comunicação do fascismo e do nazismo que se
utilizavam do rádio e do cinema para manipular as massas.
Por outro lado, nos Estados Unidos a Indústria Cultural estava mais vinculada aos
interesses econômicos e vinha do comércio e não do Estado.
Hoje no sistema capitalista neoliberal dominado pelo capital financeiro, esses interesses
econômicos estão mais fortes que nunca, manipulando as consciências para vender e
lucrar sempre mais. Por essa razão, a cultura de massa e a indústria cultural, na
sociedade do espetáculo, devem ser analisadas criticamente.
O sociólogo Armand Mattelart, descreveu bem essa sociedade: A civilização contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. (...) Por intermédio de um modo de produção, obtém-se uma cultura de massa feita de uma série de objetos que trazem de maneira bem manifesta a marca da indústria cultural: serialização-padronização-divisão do trabalho. Essa situação não é resultado de uma lei da evolução da tecnologia enquanto tal, mas de sua função na economia atual (2002, p. 77-78).
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Apesar de trazer desenvolvimento técnico e científico, as soluções apresentadas pela
indústria cultural aos problemas da humanidade são apenas aparentes.
Convém recordar, porém, que para Walter Benjamin, a arte produzida por meio da
técnica, a exemplo do cinema, pode atingir uma camada maior de público contribuindo
com isso para um poder de desmistificação e de transformação social.
Enfim, surge a cultura das mídias que veio, de certo modo, ameaçar a hegemonia da
cultura de massa, até então veiculado e imposto por uma minoria, os fabricantes e
detentores da informação. Com o crescente progresso dos meios eletrônicos de
comunicação, o acesso à informação, embora ainda dominada pelo interesse do capital,
é ampliado. 5
A convergência desses veículos gera o que chamamos de novas tecnologias da
comunicação. Esses, se não colocam fim à cultura de massa, pelo menos ampliam as
opções de escolhas e facilitam a divulgação das diversas mensagens em seus diferentes
conteúdos.
As novas tecnologias possibilitam que um número crescente de pessoas passe a
produzir, distribuir e acessar formas variadas de informações e manifestações culturais.
Essa condição gera um novo universo onde a cultura não é mais limitada à elite e à
classe média das capitais, mas está na periferia, nas praças, nas florestas, nas aldeias,
nos quilombos.
Existe ainda a mídia alternativa que circula pelos ambientes relatando e filmando
pequenas ações de transformação com demandas dos movimentos nas periferias e no
interior. Com tecnologia de ponta ao alcance, a mídia alternativa se apropria da cultura
de massa e produz opinião e pautas através da arte, do cinema, teatro, música, literatura.
Com isso, na opinião de Milton Santos (1926-2001), a cultura popular exerce sua
qualidade de discurso dos de baixo, colocando em relevo o cotidiano dos excluídos.
Muito além do espetáculo encontra-se o ser humano consciente e autônomo fazedor de
cultura e capaz de transformar a sociedade.
5 Cf. CHIACHIRI, R. Cultura, comunicação e semiótica. In: BUITONI, D. S. & CHIACHIRI, R. (Orgs.). Comunicação, Cultura de Rede e Jornalismo. São Paulo, Almedina, 2012, p. 21.
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“O que queremos, de fato, é que as ideias (manifestadas nas produções culturais) voltem
a ser perigosas”, dizia Debord na França de 1968. Ele via a urgência de uma revolução
cultural contra uma sociedade de robôs, padronizada e controlada. Não estaríamos ante
a mesma necessidade? “Quem está feliz é porque não está entendendo nada”, alertou
Augusto Pinto Boal (1931-2009), o fundador do Teatro do Oprimido, movimento que
alia o teatro à ação social.
Cultura popular
Cultura popular pode ser definida como qualquer manifestação cultural em que o povo
produz e participa de forma ativa. Ao contrário da cultura de elite, a cultura popular
surge das tradições e costumes e é transmitida de geração para geração, principalmente,
de forma oral. Entendemos que a condição básica para a cultura é que seu agente seja
um ser consciente interagindo livremente a partir de suas interpretações. É importante
destacar a participação do povo como sujeito da cultura popular.
Em certo grau, a nossa sociedade é refém de sistemas de produção cultural controlado
pela indústria cultural representada pela intermediação. Mas, apesar disso, sempre
existiram formas alternativas, também elas sujeitas à manipulação.
Muito embora toda e qualquer manifestação cultural seja passível do controle da
indústria cultural, há possibilidades de a cultura popular apontar para outros rumos. As
possibilidades aumentam quando ela se difunde por meio de instrumentos que na
origem são próprios da cultura de massa com o advento das novas tecnologias.
Cultura popular e movimentos populares pisam o mesmo chão, bebem na mesma fonte,
partilham aspirações e enfrentam desafios semelhantes. Os movimentos populares são
sujeitos coletivos oriundos das contradições econômicas do sistema capitalista e em
confronto com esse mesmo sistema. São movimentos não institucionalizados e
predominantemente formados pelas camadas menos favorecidas. Em linhas gerais, em
suas demandas e ações, fazem fortes críticas ao sistema vigente. Almejam a
emancipação e mudanças estruturais por meio da participação popular. Ultimamente os
movimentos populares ganharam um importante aliado: o Papa Francisco.
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O Papa Francisco e os Movimentos Populares
No cenário mundial, o Papa Francisco é hoje, sem dúvida, um dos poucos líderes a fazer
críticas contundentes ao projeto do sistema capitalista neoliberal apontando seus males
para o Planeta e seus povos. O líder da Igreja católica está empenhado em incentivar a
busca de soluções para a crise geral do sistema inclusive no âmbito da ecologia. Para
tal, ele conta com os movimentos populares.
Ao pensarmos na cultura popular como alternativa, é oportuno trazer as palavras do
Papa argentino aos movimentos populares em dois encontros históricos: em Roma, dia
28 de outubro de 2014 e em Santa Cruz de la Sierra na Bolívia, dia 9 de julho de 2015.
Após uma análise detalhada da situação global, Francisco pede para que os movimentos
populares sejam sujeitos de transformação o que fortalece suas bandeiras no
enfrentamento do sistema capitalista global.
1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares
O 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares aconteceu nos dias 27 a 29 de
outubro de 2014 e foi promovido pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano,
em colaboração com a Pontifícia Academia das Ciências Sociais. Participaram do
evento mais de 100 líderes, 30 bispos engajados com movimentos sociais em seus
países, e cerca de 50 agentes pastorais da Igreja católica, além de alguns membros da
Cúria Romana. O Brasil participou com uma delegação liderada por Dom Leonardo
Steiner, secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). João
Pedro Stédile, da coordenação nacional do Movimento dos Sem Terra (MST), também
participou como membro da comissão que preparou o evento. Outra presença de peso
foi a de Evo Morales, não na condição de presidente da Bolívia, mas de líder dos
movimentos.
O objetivo do encontro foi fortalecer a rede de organizações populares, favorecer o
conhecimento recíproco e promover a colaboração entre os movimentos sociais e as
Igrejas locais, representadas por bispos e agentes pastorais. A Igreja foi chamada para
conversar sobre sua atuação com relação aos movimentos sociais segundo a tradição de
seu Ensino Social.
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No dia 28 de outubro, na Aula Velha do Sínodo, sala no passado reservada
exclusivamente aos cardeais, o papa Francisco proferiu o seu discurso que em torno de
três palavras, por ele chamada de três “Ts”: terra, teto e trabalho: Terra (trabalhadores
do campo, problemática ambiental, soberania alimentar e agricultura); Teto
(assentamentos informais, habitações precárias e problemática das periferias urbanas);
Trabalho (trabalhadores da economia informal, desemprego entre jovens e novas
problemáticas do mundo do trabalho).
Desta vez, os protagonistas não foram os especialistas, mas lideranças populares, que
descreveram a realidade das desigualdades socioeconômicas, a partir de suas
experiências.
Ao sublinhar a importância histórica do encontro, o Papa Francisco, fez questão de
frisar que o amor pelos pobres é uma opção divina, um elemento central do Evangelho e
da missão das comunidades cristãs. A Igreja não pode se calar diante das injustiças e
ficar indiferente ao sofrimento dos excluídos, mas deve denunciar o sistema econômico
que prioriza o lucro em detrimento da vida. Este encontro nosso responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é comunista. Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja. 6
De certa forma, Francisco está determinado a recuperar o protagonismo da Igreja
Católica em assuntos sociais e políticos reafirmando a opção preferencial pelos pobres e
excluídos e a defesa da vida no Planeta.
Protagonismo dos pobres
Inspirado na teologia da libertação e na força das comunidades cristãs, Francisco aposta
no protagonismo dos pequenos e excluídos. “Este encontro de Movimentos Populares é
6 Papa Francisco. Discurso no 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Vaticano, 28 de outubro de 2014. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-francesco_20141028_incontro-mondiale-movimenti-popolari.html>. Acesso em: 10 set. 2015.
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um grande sinal: os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela!”
(Idem). Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam (...). Vocês sentem que os pobres já não esperam e querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao menos, tem muita vontade de esquecer (Idem).
Diante do egoísmo do sistema econômico pautado pelo lucro a todo o custo, o Papa
apontou a solidariedade como caminho imprescindível para superar as desigualdades
socioeconômicas e construir uma nova história. Solidariedade é uma palavra que nem sempre cai bem. Eu diria que, algumas vezes, a transformamos em um palavrão, não se pode dizer; mas é uma palavra muito mais do que alguns atos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos direitos sociais e trabalhistas. É enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem (Idem).
Francisco recordou que o alimento não é mercadoria, falou da fome e do desperdício, e
reforçou a necessidade da reforma agrária para garantir que as populações tenham
acesso à terra. Para isso citou o Compêndio da Doutrina Social da Igreja: “a reforma
agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral” (CDSI, 300).
(Idem).
Além disso, o Papa pede ações concretas como a luta pela moradia, água, esgoto, luz,
gás, asfalto, escolas, hospitais e acesso ao lazer, saúde, educação e segurança.
Numa visão integral falou da paz e da ecologia.
É lógico: não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta. São temas tão importantes que os Povos e suas organizações de base não podem deixar de debater. Não podem deixar só nas mãos dos dirigentes políticos. Todos os povos da terra, todos os
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homens e mulheres de boa vontade têm que levantar a voz em defesa desses dois dons preciosos: a paz e a natureza (Idem).
O papel dos movimentos populares
O fortalecimento das democracias e a superação do assistencialismo paternalista foram
outros pedidos de Francisco ao destacar o protagonismo das “maiorias”. Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum (Idem).
Ao final convidou para repetirem juntos: “nenhuma família sem moradia, nenhum
agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade
que o trabalho dá”.
2º Encontro dos Movimentos populares
Em sua visita à Bolívia, o Papa Francisco foi presença importante no 2º Encontro dos
Movimentos Populares realizado na cidade de Santa Cruz de la Sierra. O evento reuniu,
nos dias 7 a 9 de julho de 2015, cerca de 1.500 lideranças de 40 países. A delegação
brasileira contou com 200 representações de diversos movimentos populares.
Em seu discurso, no dia 9 de julho, Francisco saudou os presentes como “semeadores de
mudanças” e “poetas sociais”. Ao seu lado estava o primeiro presidente indígena do
Continente, Evo Morales, ícone dos movimentos sociais e líder dos povos originários.
A opressão, exclusão e degradação ambiental, causadas pelo capitalismo global foram
temas recorrentes em sua viagem ao Equador, Bolívia e Paraguai, realizada no mês de
julho. Os mesmos temas foram retomados em sua visita a Cuba e aos Estados Unidos no
mês de setembro de 2015.
Segundo o Papa, esses males “respondem a um sistema que se tornou global”, e “impôs
a lógica do lucro a todo custo”.
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E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia, um dos primeiros teólogos da Igreja, chamava «o esterco do diabo»: reina a ambição desenfreada de dinheiro. É este o esterco do diabo. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Por isso, se torna imprescindível “uma mudança”. 7
Depois da alerta de vários papas sobre os perigos da “ditadura do proletariado”
(comunismo) e da “ditadura do relativismo” (modernidade), agora um Papa tem a
coragem de alertar para a “ditadura sutil” do capitalismo que vai deixando suas marcas
na sociedade e na natureza: o “esterco do diabo”.
Este discurso de Francisco é dos mais políticos já feito por ele, que vislumbra os
movimentos populares como os protagonistas das mudanças. Nesse discurso o Papa fala
30 vezes a palavra transformação indicando a necessidade de mudança. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos três “T” – entendido? - (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem! (Idem).
Ciente da incapacidade dos governos e partidos políticos na busca de soluções para a
crise sistêmica e diante da ineficiência das propostas vindas de cima, o Pontífice
reafirma o protagonismo dos povos e aposta em sua capacidade criativa de gerar
mudanças estruturais. O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também em suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança. E cada um, repitamos a nós mesmos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice (Idem).
Como contribuição, Francisco propõe três tarefas práticas:
a) pôr a economia a serviço dos povos
7 Papa Francisco. Discurso no 2º Encontro dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, 9 de julho de 2015. Disponível em: < http://pt.radiovaticana.va>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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Retomando o Ensino Social da Igreja, o Papa recorda que, uma economia
verdadeiramente comunitária, “deve garantir aos povos dignidade, «prosperidade e
civilização em seus múltiplos aspectos». (João XXIII, Carta enc. Mater et Magistra, (15
de maio de 1961), 3. (Idem). Os seres humanos e a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra. A economia não deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa comum (...). Isto envolve os três “Ts”: terra, teto e trabalho, mas também acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e à recreação (Idem).
Com isso o papa retoma o conceito do “Bem Viver” (Sumak Kawsay) dos povos
indígenas que não é a mesma coisa que “aproveitar”. A filosofia do Sumak Kawsay foi
incorporada nas constituições de países como o Equador e a Bolívia e representa uma
importante contribuição dos povos indígenas para a crise atual. Em linhas gerais prevê:
vivência em comunidade, onde todos se preocupam com todos, incluindo viver em
harmonia com o meio ambiente. Essa visão supera a proposta da falsa cultura do
consumismo que só visa o lucro.
Na visão do Papa, o Bem Viver, “é uma economia onde o ser humano, em harmonia
com a natureza, estrutura todo o sistema de produção e distribuição de tal modo que as
capacidades e necessidades de cada um encontrem um apoio adequado no ser social
(Idem)”.
Ele cita experiências nas quais os trabalhadores, unidos em cooperativas, catadores de
papelão, economia solidária, empresas recuperadas, feiras francas e outras formas de
organização comunitária, adotam princípios solidários que os dignificam. Essas
iniciativas combatem inclusive situações análogas ao trabalho escravo, criadas pela
exploração do mercado formal.
Nessa empreitada, o Estado não pode ser excluído, pois, “quando Estado e organizações
sociais assumem, juntos, a missão dos “3 T”, ativam-se os princípios de solidariedade e
subsidiariedade que permitem construir o bem comum numa democracia plena e
participativa” (Idem).
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b) unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça
Um dos principais caminhos da paz e da justiça, segundo Francisco, é o respeito à
soberania dos povos e culturas. Os povos do mundo querem ser artífices do seu próprio destino. (...) Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e tradições religiosas sejam respeitados. (...), porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos, sobretudo o direito à independência». (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157) (Idem).
Defende a soberania e a unidade dos povos para que o Continente cresça em paz e
justiça. Fala da luta contra a corrupção, o narcotráfico, terrorismo, fundamentalismo,
comércio de armas, tráfico humano, pena de morte, refugiados, aborto, mudanças
climáticas e das medidas neoliberais impostas pelo sistema financeiro global que pouco
têm a ver com a resolução de tais problemáticas.
O “novo colonialismo” representado pelo monopólio dos meios de comunicação e a
padronização imposta pela indústria cultural também recebem críticas. Para Francisco
“a concentração dos meios de comunicação social que pretende impor padrões
alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas que adota o
novo colonialismo. É o colonialismo ideológico” (Idem).
Em atitude de respeito para com as culturas ancestrais, o papa, pede “humildemente
perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os
povos nativos durante a chamada conquista da América”. Ao mesmo tempo reconhece a
coragem dos que “defenderam a justiça dos povos originários”.
O líder religioso louva a convivência plural dos povos indígenas “que não atenta contra
a unidade, mas fortalece-a” na procura da interculturalidade que, “conjuga a
reafirmação dos direitos dos povos nativos com o respeito à integridade territorial dos
Estados” (Idem).
c) defender a Mãe Terra
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Para Francisco, o estilo de vida a que chegamos hoje, promovido como ideal pelo
sistema neoliberal, não ajuda a alcançar a felicidade nem a plenitude pessoal e
comunitária, além de representar uma ameaça à vida do Planeta. “A casa comum de
todos nós, está sendo saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em
defendê-la é um pecado grave” (Idem).
Lamenta o fato de as cimeiras internacionais não produzirem qualquer resultado devido
aos interesses particulares colocados acima dos valores universais. Diante dessa
ineficiência, convida os povos e os seus movimentos a exigir “a adoção urgente de
medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra”.
Este assunto é tratado com profundidade em sua Encíclica Laudato si’, (24 de maio de
2015) cujo texto foi distribuído no final do encontro em Santa Cruz de la Sierra.
A temática abordada nos dois encontros com os movimentos populares é retomada mais
tarde, nos discursos feitos pelo Papa no Congresso Americano e na Assembleia das
Nações Unidas, nos dias 24 e 25 de setembro 2015, respectivamente.
No final os participantes publicaram as resoluções do Encontro, batizadas de Carta de
Santa Cruz, na qual defendem, na mesma linha de Francisco, a superação do “modelo
social, político, econômico e cultural onde o mercado e o dinheiro se converteram nos
reguladores das relações humanas em todos os níveis”. A Carta aborda também a
preocupação com a degradação ambiental e propõe dez compromissos: impulsionar e
aprofundar o processo de mudança; bem viver, em harmonia com a Mãe Terra; defender
o trabalho digno; melhorar os bairros e construir moradias dignas; defender a Terra e a
soberania alimentar; construir a paz e a cultura do encontro; combater a discriminação;
promover a liberdade de expressão; colocar a ciência e a tecnologia a serviço dos povos;
defender a solidariedade como projeto de vida. 8
Os encontros foram históricos e significativos porque, pela primeira vez, um Papa se
reúne com representantes de movimentos populares dos cinco continentes, e de todas as
origens étnicas e religiosas. Esse fato marca uma nova postura da Igreja diante da 8 Cf. Documento final do 2º Encontro dos Movimentos Populares com o papa Francisco. Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Disponível em: < http://www.cnlb.org.br>. Acesso em 15 out. 2015.
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situação da humanidade e do Planeta e recupera o seu papel como instituição ativa na
sociedade, que precisa de mudanças. Não faltam, porém, opiniões divergentes, dentro e
fora da Igreja.
Considerações finais
Com a realização dos encontros mundiais dos movimentos populares, o Papa se
apresenta como porta-voz das lutas dos pobres e excluídos, retomando, com isso, a
tradição do Ensino Social da Igreja e seu compromisso com as causas sociais.
Já com o a escolha do nome, Francisco indica como horizonte da Igreja a opção pelos
pobres em fidelidade às resoluções do Concílio do Vaticano II que levou muitos bispos,
padres e religiosos a um compromisso com os movimentos sociais, em especial, o
movimento operário. Francisco sabe que não se trata de fazer coisas pelos pobres, mas
de se colocar ao lado deles na militância. Por isso, sai do Palácio Romano para colocar-
se em sintonia com os anseios dos movimentos populares da periferia do mundo. Seu
gesto é animador para os movimentos sociais e para os que assumem suas causas nas
pastorais sociais e que, frequentemente, não são bem vistos pela própria Igreja.
Francisco aposta nos movimentos populares e em sua capacidade de organizar e
transformar a realidade. Muito além do espetáculo, há a possibilidade de a cultura
popular, fruto do ser humano livre e consciente, contrapor a cultura de massa produzida
pelo sistema capitalista.
Debord propõe a contestação total do capitalismo moderno, por meio de ações que
visam abalar suas bases. Ao tecer críticas contundentes ao sistema capitalista neoliberal
que prioriza o lucro em detrimento da vida, e ao mesmo tempo, considerar a força dos
movimentos sociais na mudança de rumo, o Papa Francisco mostra plena sintonia com a
teoria crítica e contribui para a compreensão da realidade.
É necessário ressaltar, porém que, como a sociedade do espetáculo tudo subverte, até
mesmo o discurso de mudança, o Papa também está sujeito a ser espetacularizado. Pelo
poder simbólico que representa, Francisco pode se transformar em mais uma
celebridade onde o que vale é a imagem a ser consumida pelos seus admiradores,
ofuscando o rico conteúdo de suas análises. No espetáculo, mesmo os conteúdos críticos
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do sistema apresentam-se sob a forma de imagem espetacular. Isso fica evidente na
cobertura midiática das viagens e pronunciamentos do papa.
Assim como as manifestações culturais podem ser absorvidas pela indústria cultural, os
movimentos sociais também estão sujeitos à manipulação de governos, partidos e
grupos econômicos perdendo sua autonomia.
Na opinião do Papa, o modelo de sociedade vigente é, em grande parte, resultado da
ação humana e, por isso, pode perfeitamente tomar outra direção. Para além do juízo
crítico, Francisco pede aos movimentos ações práticas. Essa visão mostra concordância
entre o pensamento do papa e a teoria crítica de Horkheimer, assim como o juízo da
sociedade do espetáculo feito por Debord segundo o qual, para obter êxito, é necessário
unir a teoria com a luta prática. Muito além do espetáculo o mundo pode contar com a
resistência dos movimentos populares e força de suas manifestações culturais.
Bibliografia ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1885. CHIACHIRI, A. R. Cultura, comunicação e semiótica. in BUITONI D. S. e CHIACHIRI, A. R (Orgs). Comunicação, Cultura de Rede e Jornalismo, São Paulo, Almedina, 2012, p. 14-27. COELHO, C. N. P. Teoria crítica e Sociedade do Espetáculo. Jundiaí (SP), In House, 2014. DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo - Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. São Paulo, LTC, 2003. MATTELART, A & M. História das teorias da comunicação. São Paulo, Loyola, 2002. THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, Vozes, 2009. 8ª edição. Documentos Papa Francisco. Discurso no 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Vaticano, 28 de outubro de 2014. Disponível em: <www.news.va/pt> Acesso em: 10 set. 2015. ______________. Discurso no 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, 9 de julho de 2015. Disponível em: < http://pt.radiovaticana.va>. Acesso em: 15 jul. 2015. Carta de Santa Cruz. Documento final do 2º Encontro dos Movimentos Populares com o Papa Francisco. Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Disponível em: < http://www.cnlb.org.br>. Acesso em 15 out. 2015. Sites Site do Vaticano. <www.news.va/pt> Rádio Vaticano. <pt.radiovaticana.va> Conselho Nacional do Laicato do Brasil. <www.cnlb.org.br>