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DEMOCRACIA RACIONAL
A TEORIA JURDICA DO LIBERALISMO EM RUI BARBOSA
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SUMRIO
INTRODUO
CAPTULO I
O GOVERNO REPRESENTATIVO P 14
CAPTULO II
A TEORIA DO SUFRGIO P 47
CAPTULO III
O RADICALISMO LIBERAL E A DEMOCRACIA FEDERATIVA P 93
CAPTULO IV
DO "JURIDICISMO" DEMOCRACIA CONSERVADORA P 148
CONCLUSO
O LIBERALISMO DE RUI BARBOSA P 178
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INTRODUO
1. O objetivo deste livro a anlise do pensamento poltico-jurdico de Rui BARBOSA, uma das
fontes principais da moderna teoria jurdica liberal brasileira, e, portanto, configurando temtica
importante para o estudo de nossa disciplina, Teoria Jurdica Contempornea especificidade das
relaes entre o direito e a poltica.
Mais detidamente pretendemos analisar o pensamento de Rui BARBOSA (doravante RB) durante o
perodo de transio da Monarquia para a Repblica, procurando contribuir para o entendimento desta
obra no contexto poltico brasileiro. A questo das relaes do liberalismo de RB com a questo
democrtica, a legitimidade do Estado e a sua concepo inglesa de direito o nosso referente.
Nossa hiptese principal demonstrar, diferentemente do que afirmam a maioria dos crticos, a
existncia em RB de uma teoria poltica, um sistema de pensamento coerente, que se define
progressivamente face aos acontecimentos, constituindo, ao mesmo tempo, uma prtica poltica
concreta e uma reflexo sobre a poltica. Portanto, procuramos estudar a evoluo destas idias
polticas. Neste sentido, toda a nossa investigao histrica procura esclarecer este labirinto, e, no, ao
contrrio, a partir de RB, explicar a histria do Brasil. Embora entendamos que muitas questes
histricas possam ter uma nova interpretao desde uma releitura deste liberalismo.
Outro aspecto que consideramos relevante, que justifica tambm a nossa pesquisa, embora escape aos
nossos interesses sermos imediatistas, o fato de que a discusso sobre os limites da Monarquia e da
Repblica, do parlamentarismo e do presidencialismo, que so hoje temas atuais no nosso pas, ter sido
amplamente debatida, vivida e criticada por RB. Mais do que isto, ns entendemos que a sua concepo
poltica de forma de sociedade democrtica, lendo-o desde categorias de Claude LEFORT, j superou,
desde h muito, este debate, pois para ele, o importante a institucionalizao da democracia e no a
forma de Estado ou regime de governo. A sua concepo do direito como direito a ser julgado num
tribunal tambm extremamente presente.
2. Impe-se, portanto, uma releitura histrica das dificuldades da implementao da democracia no
Brasil. Para aprofundar esta questo ns privilegiamos, como nosso recorte, o perodo que rene as
condies histricas e polticas nas quais nasce a teoria liberal moderna no Brasil. Este momento nico
na histria do pas, a nosso ver, de materializou entre os dez ltimos anos da Monarquia, que precedem
a Proclamao da Repblica em 1889, e o perodo que vai at a Constituio de 24 de fevereiro de 1891
(embora examinemos rapidamente questes da 1a. Repblica, em data posterior, a fim de comprovar
certos argumentos na concluso).
Nesta fase, o Estado brasileiro, independente em 1822, fundado na herana do sistema administrativo e
poltico portugus, vai tentar se definir como instituio poltica moderna. Trata-se de uma importante
transio, onde os atores sociais so ultrapassados pelos acontecimentos, e os discursos comeam a ter
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uma difuso na sociedade jamais alcanada anteriormente, ultrapassando mesmo a inteno de seus
emissores. Pela primeira vez, notadamente, na discusso das eleies diretas e da abolio, o discurso
poltico atingiria, muito alm do restrito espao pblico, a camadas mais profundas da sociedade.
praticamente o nascimento da poltica moderna, e da ideologia, no Brasil.
Esta multiplicao social do discurso poltico colocou constantemente em questo, muito mais que as
questes enfrentadas isoladamente, a legitimidade do Estado como um todo, Esta crise de um sistema
incapaz de responder s exigncias de autonomia de uma sociedade procura de sua identidade,
provocou, inicialmente, a queda do imprio, para, a seguir, abalar tambm a estabilidade da Repblica.
O Liberalismo tentou resolver esta perda de legitimidade. A anlise destas respostas assim primordial
para a caracterizao e o entendimento da questo democrtica. O estudo deste perodo histrico
portanto decisivo.
3. Nosso perodo histrico delimitado, ns optamos por analisar esta problemtica a partir da obra de
RB. Esta escolha se fundamenta no fato de que o seu pensamento e a sua ao poltica sero exemplares
para a caracterizao do liberalismo brasileiro da poca, constituindo um dos modelos polticos liberais
mais sofisticados j elaborados no pas.
RB um pensador dotado de uma grande erudio, com uma slida formao humanista, baseada em
leituras de DANTE, TACITO, TUCDES, CCERO e outros autores clssicos, dos quais ele adotou a
dialtica argumentava (antitca) e o realismo poltico, sintetizados no ideal de uma sociedade
repousando no respeito da lei da liberdade e da razo. De qualquer maneira, o humanismo d RB se
desenvolveu notadamente em contato permanente com o pensamento liberal do sculo
(TOCQUEVILLE, STUART MILL, LITTRE, COMTE, SPENCER, RENAN...), assim como face aos
acontecimentos polticos concretos da Monarquia e da Repblica, que lhe fornecem a matria de sua
reflexo poltica.
RB participou diretamente em praticamente todos os acontecimentos polticos importantes da poca
que queremos estudar. Na monarquia, como deputado liberal, engajou-se nos principais debates
polticos, propondo inicialmente condies polticas para a obteno da legitimidade deste regime.
Mais tarde, em razo de sua defesa intransigente da abolio e da federao, ele criticaria violentamente
a Monarquia, contribuindo para com a Proclamao da Repblica. Na Repblica, ele faria parte do
governo provisrio que a instituiu, tornando-se o principal redator do projeto adotado como a
Constituio de 1891. Com a irrupo da ditadura de Floriano PEIXOTO, ele passaria para a oposio,
postulando como condio para a legitimidade da Repblica a "legalidade e a reforma das instituies".
RB desenvolveria tambm a clebre campanha do Habeas Corpus em defesa dos direitos individuais,
desrespeitados pela ditadura, sendo igualmente vrias vezes candidato Presidncia do pas. Ora, ao
lado desta intensa atividade poltica, ele elaborou constantemente textos que possuem um programa
poltico, que constitui uma teoria liberal consistente. Tudo isto nos fornece uma idia da importncia de
que se retrabalhe esta obra, pois ele nos contempla, em sua trajetria poltica, muito alm de um relato
pragmtico das principais discusses, com uma monumental e ainda no suficientemente estudada
reflexo terica.
Desta forma, RB simultaneamente, distintamente do que proporia um WEBER, um poltico um
terico. Frente ao acontecimento, ele procura sempre pens-lo, a partir do liberalismo, ao mesmo tempo
que tenta hoje dar uma resposta concreta. Esta teoria liberal se origina assim do confronto de suas
idias com o contexto poltico, sem no entanto reduzir-se a isto. Ns entendemos, em consequncia,
que a anlise deste pensamento e de sua ao poltica til para o esclarecimento das insuficincias e
virtudes do liberalismo face aos problemas polticos e sociais e, neste sentido, sua anlise pode
contribuir para uma melhor compreenso dos limites da prtica democrtica.
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A metodologia de trabalho de RB, se se pode assim denominar o seu instrumental analtico, seria
sempre influenciada pela dialtica do humanismo clssico, preocupada com a retrica (eloqncia) a
partir da qual ela realizava suas snteses discursivas. Esta caracterstica, aliada a uma profunda crena
no progresso da sociedade como um todo (COMTE-SPENCER), anlise histrico-comparativa, e a
um grande racionalismo, produziram uma metodologia que se aproxima daquela de STUART MILL.
Neste sentido, este pensamento apresenta alguns traos daquilo que POPPER (Misria do Historicismo)
chama "metodologia totalizante", que procura conciliar o historicismo e o naturalismo, possuindo
portanto uma crena um tanto exagerada na cincia unitria.
No entanto, RB no foi somente um socilogo racionalista, dominando pela perspectiva da
predominncia absoluta do social e de sua totalidade em suas concluses, mas notadamente um terico
voluntarista. Isto quer dizer que a partir de suas influncias liberais, ele no poderia aceitar o
determinismo e o evolucionismo sociolgicos, sem uma participao proporcional da liberdade
individual, e da autonomia, no desenvolvimento social.
Este entendimento provm do fato que RB possui, como linha diretiva de raciocnio, a poltica. Assim,
antes de ser um "cientista", ele um poltico, um democrata liberal, compromissado com a defesa do
ideal da liberdade. A contrapartida da liberdade seria dada pela lei. Da a constatao que a democracia
em RB uma dialtica entre a lei e a liberdade, garantida pelo poder judicirio e pela federao.
Do mesmo modo, as respostas encontradas por RB no liberalismo seriam sempre procuradas entre os
modelos polticos que de diziam, na poca, simultaneamente racionais e democrticos: num primeiro
momento, o "governo representativo"; e num segundo momento, o "federalismo americano". Quanto as
suas proposies elas seriam sempre "juridicistas", as reformas deveriam ser encaminhadas atravs de
uma lei (interpretada com autonomia pelos tribunais). De sorte que para RB, o direito encarna, como
para WEBER (e ainda hoje HABERMAS), uma das formas racionais de manifestao do poder. A
teoria jurdica brasileira contempornea encontra assim em RB um dos seus fundadores.
RB, como os humanistas, procurou um modelo poltico ideal para fundar a sua ao poltica. O governo
racional no deixa de ser uma espcie de "bom regime", em que se oporia ao regime corrompido: no
incio combatendo a Monarquia, depois a ditadura militar e enfim as oligarquias reacionrias. O modelo
ideal dos humanistas do Renascimento foi aquele da repblica romana (MAQUIAVL, DANTE...), j
para RB foram a Inglaterra e os Estados Unidos. Isto caracteriza uma diferena entre ele e os primeiros:
a utopia de RB no pertence ao passado, mas ao presente, implicando ao Brasil na sntese a ser
realizada no futuro. A histria do Brasil comearia com a institucionalizao de uma democracia liberal
moderna na Repblica.
Entretanto, a implantao liberal deveria ser gradual. A concesso da liberdade e de alguns direitos
sociais, deveria ser feita respeitando a ordem ( a lei). Esta concepo lhe fornece, em comparao com
o entendimento atual da democracia, como uma atitude e um valor poltico capaz de acolher o
indeterminado (LEFORT), traos bem conservadores. Embora, e esta a sua especificidade, ela seja
bem diferente do autoritarismo, sempre pronto a desrespeitar a lei e a liberdade.
Este liberalismo resultante de uma tenso, jamais um sntese, da reivindicao simultnea do respeito
lei, liberdade, ordem, razo, ao indivduo, da interveno do Estado e das concesses sociais.
No entanto, devido ao seu aspecto pragmtico, esta obra geralmente desprezada sob o pretexto de que
um autor preocupado com a ao, no teria interesse terico pela reflexo filosfica ou poltica.
Portanto, ele no possuria um pensamento terico sistemtico. preciso assinalar que este ponto de
vista quase unnime, quer seja entre os seus adversrios ou apologistas.
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Ora, a partir desta assertativa: o pragmatismo como conduta oposta reflexo, os crticos, por sua vez,
afirmam que RB foi somente um autor simplista, dividido confusamente, e contraditoriamente, entre
diferentes convices, reunidas numa "retrica vazia". Os apologistas, por sua parte, postulam as
maravilhas de sua pureza retrica, vista como uma arte de "esgrimir o verbo".
Estas duas posturas interpretam a retrica como um discurso distante da cincia, seja negativamente
como um discurso incoerente, no racional, seja positivamente como discurso eloqente. Desta
maneira, ns encontramos nas leituras desta obra, apesar das divergncias, uma identidade
metodolgica de base: o culto da cincia como teoria pura: um discurso fundado sobre a denotao
objetiva e autosuficiente, capaz de descrever a realidade de forma neutra. A racionalidade cientfica no
se confundiria nesta perspectiva com a retrica, menos ainda com uma atitude pragmtica. De sorte que
a retrica de RB, que atravessa todos os seus textos, teria transformado seu pensamento num discurso
idealista e incoerente.
Sem pretendermos discutir a concepo contempornea da racionalidade cientfica, que alis j perdeu
a iluso da denotao pura, ns percebemos assim uma das principais razes da incorporao desta
obra. Pois, esta posio epistemolgica cientificista impede praticamente que se faa uma anlise
terico-poltica da obra. Isto ocorre porque estes crticos so prisioneiros da oposio entre a teoria e a
prxis, engendrando a oposio entre retrica e objetividade. preciso portanto ultrapassar estas
oposies para se redescobrir o caminho da interpretao. necessrio estudar-se a retrica de RB a
partir dos objetivos prticos e polticos que ela visa, j que a sua ao poltica ininteligvel sem que se
considere seus discursos: existe uma ligao quase indissocivel entre a teoria e a prtica nesta obra.
Hoje em dia, por exemplo, com as contribuies de autores como Theodor VIEHWEG, Robert
ALEXY, na Alemanha, ou mesmo de FERRAZ JUNIOR e Lus WARAT, para se falar no Brasil,
mesmo desnecessrio insistir em nosso argumento que recupera a importncia poltica da retrica.
4. A nossa metodologia pretende inserir-se no ponto de vista de teoria poltica, desde uma perspectiva
histrico-sociolgica, que procura contextualizar a obra nas quais se insere, visando compreender o
sentido de seus principais conceitos e idias.
Ns pretendemos analisar os textos produzidos por RB durante a Monarquia, no parlamento, quando
ele era deputado pelo partido liberal ( 1879-84), e na imprensa entre 1884-89; e durante a Repblica,
como vice-chefe do governo provisrio, advogado, jornalista e poltico. Estes textos sero examinados
em funo de sua participao efetiva nos principais debates da poca: a liberdade religiosa, a
legitimidade do partido liberal (1879), a eleio direta, a instruo pblica, a abolio da escravido, a
federao, a questo militar, a Proclamao da Repblica e a redao da Constituio de 1891.
Ns pensamos entretanto que estas questes devem ser analisadas, como formando um todo, que se
ordena em torno da temtica principal desta transio histrica: "institucionalizao de um sistema
poltico legtimo no Brasil". Inicialmente, com a tentativa de se construir um parlamentarismo moderno
no Imprio e, em seguida, na Repblica, com a luta pela democracia constitucional.
Este pensamento possui, para ns, como condio de inteligibilidade, o pressuposto de ser abordado, ao
mesmo tempo, enquanto uma postura pragmtica, voltada para problemas concretos, e como postura
terica, mais profunda, voltada compreenso poltica dos limites do liberalismo e da prpria
democracia. Esta caracterstica desde pensamento comanda a lgica de sua enunciao; ela testemunha
sua criatividade, sua atualidade e sua capacidade de adaptao, sem que ele perca com isto sua
racionalidade, em razo de sua condio pragmtica. A condio de significao deste pensamento
poltico depende de uma conjugao de seu critrio de sentido pragmtico com o seu critrio de sentido
terico (sinttico). Assim, a compreenso desta obra deve partir da integralidade de seu projeto poltico,
jamais de problemticas isoladas, sob pena de nos perdemos em discusses acidentais.
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Desta maneira, nossa interpretao, se bem que colocando a obra em situao, tentar sempre pr de
manifesto o sistema de pensamento existente nestes textos, procurando mostrar a existncia, ao lado de
seu aspecto pragmtico, de um projeto poltico bem especficado. O signo sistema utilizado por ns
empregado simplesmente com o sentido de que o pensamento poltico, de RB se ordena coerentemente,
tm uma certa lgica interior, que se mantm mesmo face a distintos acontecimentos.
No entanto, antes de aprofundamentos nossos pressupostos interpretativos, desejamos precisar que
nosso objetivo no o de elaborar uma biografia de RB, nem discutir aspectos ntimos de sua
personalidade, incidindo em questes morais, Ns sublinhamos igualmente que nossas consideraes
sobre o pensamento europeu e americano que explorado por nosso autor, perante os acontecimentos
de sua poca, se fundamentam essencialmente na sua maior parte nas interpretaes que ela suscita no
perodo. Todavia, ns consultamos constantemente os principais autores citados, afim de
aprofundarmos o uso que deles feito: CONSTANT, COUSIN, COMTE, STUART MILL e
TOCQUEVILLE.
Do mesmo modo, ns, no vemos esta obra, como o fazem a maioria de seus intrpretes, seja como um
pensamento dividido entre vrias concepes tericas contraditrias, seja como uma sntese do
pensamento da poca. Ns acreditamos que a sua riqueza reside na sua capacidade de conciliar e
ultrapassar os materiais tericos sobre os quais ela se apoia, a partir dos problemas polticos que
pretende resolver.
O pensamento poltico brasileiros, neste momento de transio rico em divergncias e antagonismos ,
tericos e polticos. No entanto, surpreendente notar-se que certos crticos sejam indiferentes s
concepes polticas do perodo, em razo do privilgio dado exclusivamente aos aspectos econmicos,
sociais ou institucionais ( que so importantes para a colocao da problemtica, porm no
suficientes). Desta maneira, todos os debates que constituem a histria das idias desaparecem de cena
poltica, para tornarem-se reflexos destes aspectos. Assim, toda a diversidade se apaga, geralmente, sob
argumentos do tipo que pressupe que os homens vivendo num mesmo contexto histrico, e
pertencendo a uma mesma classe social (ou elites para alguns), no poderiam pensar diferentemente.
Uma outra dificuldade a concepo, sempre presente, de que o liberalismo de RB se reduz a um
idealismo: isto , que a democracia liberal puramente formal. Esta postura crtica, que tem a sua
origem no positivismo (COMTE), partilhada pelo autoritarismo nacionalista brasileiro e pelo
marxismo, que a partir de evidentes divergncias polticas, sustentam que as idias de RB so uma
imitao das idias europias, transportadas a um contexto inadequado. De sorte que, nesta tica,
segundo a qual a democracia liberal no tem aplicao no Brasil, o discurso de RB tornar-se ou uma
ideologia a servio das classes dominantes, ou um discurso no realista. Portanto, devemos elaborar
uma leitura desta obra que rompa com esses preconceitos.
A interpretao de uma obra como esta um trabalho extremamente difcil. RB produziu textos sobre
quase todos os temas importantes de sua poca, o que torna rdua a tarefa de se encontrar a sua
especificidade. Alm do mais, existe o fato de que a interpretao de toda obra ela mesma sem
garantia ltima, pois isto no possvel sem que se ceda a iluso de se chegar a pretender descobrir a
"verdadeira essncia" do sentido imprimido pelo autor nos seus textos. A riqueza da escritura provm
justamente de sua capacidade de ser reinterpretada pelo leitor, e pela histria, pois ela ultrapassa
constantemente aquilo que foi expressamente pensado pelo autor. O sentido de um texto se manifesta
sempre na juno da leitura e da escritura, da teoria e da prxis, variando segundo o poder e o desejo
que o atravessa. Da, a conscincia de nossa dificuldade em ler uma obra to profunda em ambigidade
e silncios.
procura da justificativa de nossa tentativa de interpretao, ns pensamos seguir um pouco a
trajetria de LEFORT, para quem a legitimidade da interpretao nasce somente quando se recupera a
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interrogao que uma de suas constituintes. Por isto, temos a preocupao de levantar algumas
questes em RB a respeito da democracia. Para isto, como o faz LEFORT, lendo MAQUIAVL (Le
Travail de L' Oeuvre Machiavel), preciso tentar-se saber aquilo do qual fala RB e a quem ele se
dirige, e contra quem fala? Quais as identificaes que ele procuraria? necessrio igualmente
pesquisar o sentido poltico das diferentes interpretaes que esta obra provocou, para se compreender
as razes das divergncias desde a oposio veemente at a adeso sem reservas.
Portanto, as diferentes interpretaes de um texto, no o so por azar, mas provm da indeterminao
engendrada por sua interrogao. De tal sorte que nosso objetivo no aquele de encontrar o sentido
"objetivo"da obra de RB, mas repens-la, procurando responder aos desafios que nos colocam suas
ambigidades e seu questionamento.
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CAPTULO I
O GOVERNO REPRESENTATIVO
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CAPTULO I
O GOVERNO REPRESENTATIVO
Neste captulo inicial, antes de analisarmos propriamente os textos de
RB, iremos efetuar um breve balano histrico e poltico do seu contexto.
1. LIBERALISMO E DEMOCRACIA
1.1. A democracia uma conquista que ainda no est plenamente assegurada no Brasil, apesar dos
grandes progressos polticos proporcionados pela redemocratizao (anistia, eleies diretas em todos
os nveis, liberdade de imprensa, impeachment...), porque permanece gravssimo o quadro econmico-
social do pas. A questo da democracia, tanto no plano terico como na prtica poltica, permanece
portanto como a mais crucial.
No plano terico, da anlise das idias, onde nos inserimos, entendemos que um dos obstculos que
impedem uma melhor compreenso das dificuldades para a institucionalizao da democracia
provocado justamente pela falta de uma maior nfase na investigao das origens histricas deste
conceito e de suas ligaes com o liberalismo. Isto constitui, de certa forma, uma lacuna, porque o
problema das relaes entre o liberalismo, o Estado e a democracia fundamental para o
esclarecimento dos sistemas polticos, liberais e autoritrios, que atravessam a nossa histria.
Neste sentido, percebe-se que o liberalismo, que sempre teve grandes dificuldades para conciliar seus
postulados de liberdade poltica e de defesa dos direitos individuais com o capitalismo e a questo
social, no Brasil, que sempre necessitou do Estado para se desenvolver, devido falta de uma sociedade
civil organizada e sem recursos para o pleno desenvolvimento da iniciativa provada, teria, para se
materializar, que adquirir uma feio bem complexa e singular. Assim, o Estado seria sempre decisivo
para o desenvolvimento da economia. Devido a este fato, muitos liberais foram obrigados bem cedo,
desde o sculo XIX, a se aliarem ao Estado, considerado essencial para a formao do mercado
capitalista.
Deste modo, o liberalismo brasileiro apresenta como uma de suas caractersticas a aceitao da
interveno do Estado na economia - embora, historicamente isto no tenha sido sempre aceito sem
restries. Nesta perspectiva, evidente que o liberalismo mais progressista, desde a Independncia e
notadamente na Proclamao da Repblica, voltado quase que inteiramente para a construo de um
mercado capitalista moderno, para o qual o Estado era chamado a auxiliar, no se dedicou elaborao
de uma teoria democrtica apta a contrabalanar a dominao poltica tradicionalmente existente.
Em outras palavras, esta situao provocou uma distoro da prtica liberal tradicional - contrria
interveno do Estado - e uma tenso no resolvida com a questo da democracia. Pois, mesmo que
este liberalismo concebesse o Estado como o nico rgo detentor da capacidade e da racionalidade
necessrios para a modernizao das relaes sociais e de produo do pas, ele possua tambm um
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princpio poltico de defesa dos direitos e garantias individuais e de autonomia da sociedade que no
pde conviver sem problemas com a interveno do Estado. Da, a grande questo histrica do
liberalismo brasileiro: a contradio entre de uma lado, o amor ordem e ao Estado e, de outro, a
reivindicao da liberdade individual.
Falar de uma maneira mais genrica do liberalismo brasileiro no portanto coisa fcil. Alm do fato
de que ele sofreu simultaneamente influncias do liberalismo dos Estados Unidos e do liberalismo
europeu, ingls e francs, que esto longe de formarem uma teoria homognea. O liberalismo uma
teoria poltica e uma prxis. Ele uma doutrina, mas tambm um pensamento que se define face as
questes concretas. A teoria liberal foi elaborada dentro de circunstncias e quadro sociais diversos.
Desta maneira, no se pode falar do liberalismo como uma doutrina nica e uniforme, porque mesmo
baseada universalmente na defesa da liberdade e dos direitos individuais, ela se modifica em funo do
contexto histrico: o liberalismo se forma a partir de diferentes fontes, seja do protestantismo religioso,
seja da materializao do mercado capitalista, seja do iluminismo, etc... determinando em cada pas
uma combinao especfica destas influncias, engendrado por exemplo, um liberalismo com
caractersticas preponderantemente econmicas na Inglaterra, ou polticas na Frana.
O liberalismo brasileiro sofreu no curso do sculo XIX uma forte influncia do liberalismo doutrinrio
francs (GUIZOT, COUSIN, CONSTANT, TOCQUEVILLE...) no plano poltico, e do liberalismo
ingls no plano econmico. A queda da Monarquia em 1889 foi provocada, em parte, pela
incapacidade do sistema em conciliar uma poltica exageradamente conservadora com os avanos
econmicos e polticos exigidos por um parlamentarismo efetivo, de tipo ingls. Frente a este fracasso,
o liberalismo mais democrtico inspirou-se, para escapar a estes impasses, quando da Proclamao da
Repblica, no pensamento poltico federalista americano. No entanto, a democracia " americana"
tambm no conseguiria se institucionalizar, no conseguindo preencher o "vazio" de legitimidade
deixado pela Monarquia, permitindo uma sucesso de golpes militares.
Para a maior parte crtica, dita "realista" (OLIVEIRA VIANNA) o insucesso da democracia republicana
foi provocado pelo profundo idealismo de seus "pais fundadores". Estes crticos, enfatizando a
importncia de se encontrar o "Brasil real", em detrimento do formal, ( a democracia liberal), iniciaram
o entendimento na histria das idias da poltica nacional, de que o pensamento democrtico deste
perodo estava "fora do lugar".
Percebe-se ento que o liberalismo brasileiro no uma teoria pura e sem antagonismo; ele constitui
uma forma de pensamento que se situa de uma maneira anloga em relao ao estatismo (autoritrio?) e
defesa dos direitos individuais. Trata-se de um pensamento que possui pontos comuns com o
conservadorismo, tradicionalismo, estatismo e a democracia, sem, no entanto, se reduzir a nenhuma
destas concepes polticas. Existe tambm um desnvel entre suas influncias polticas e econmicas,
o que lhe fornece uma certa ambigidade. por isto que entendemos que existe uma questo a
propsito deste liberalismo que no foi suficientemente explicitada. Nesta perspectiva, ns tentaremos
analisar em detalhe o liberalismo brasileiro de RB procurando compreender seus limites e suas
virtudes, a fim de delimitarmos o seu sentido poltico.
A discusso do pensamento liberal, bem como da democracia ( que no so de maneira alguma
sinnimas), esteve, com raras excees, colocada como algo secundrio pela crtica poltica dos ltimos
anos, predominantemente marxista. Contudo, na atualidade, com a constatao de que o pensamento
marxista, centrado na defesa da igualdade, tinha provocado no mundo inteiro regimes totalitrios, que
ignoram os direitos humanos, a questo da democracia e de suas relaes com o liberalismo reapareceu
com toda a sua fora. Entretanto, a teoria poltica brasileira ainda no tem procurado suficientemente
rever esta questo, como se a soluo efetiva dos problemas sociais e econmicos ( que crucial),
dispensasse o debate sobre os direitos individuais. A prpria lei, que tem tradicionalmente a funo de
proteger e de garantir os direitos, considerada nesta tica como apenas um apndice das elites.
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evidente que a liberdade, os direitos individuais e a lei que os assegura tm um sentido poltico e de
classe. Isto no pode ser negado, suficiente uma leitura das lcidas crticas de Marx no 18 Brumrio:
o direito tem uma funo ideolgico-repressiva negativa.
No entanto, o que interessa remarcar, na linha de pesquisa inaugurada por Claude LEFORT ( A
Inveno Democrtica), o fato de que se, bem que s vezes insuficientes para resolver os problemas
sociais, os direitos, e, principalmente, o direito enunciao dos direitos, tm tambm um carter
positivo. Isto significa, com o totalitarismo nos mostra, que uma sociedade sem o respeito ao princpio
da lei e ao princpio da liberdade, no pode ser democrtica. Pois, a sociedade democrtica justamente
aquela capaz de acolher os conflitos, notadamente, aqueles suscitados pelas necessidades das classes
mais pobres. Pois, sem democracia, liberdade e lei, a questo social no pode se manifestar com toda a
sua amplitude - veja-se a quantidade infinita de conflitos de toda a espcie que apareceram no leste
europeu com a liberdade de manifestao. O autoritarismo teve sempre um vasto campo de ao no
Brasil devido ao desprezo histrico em relao liberdade e o respeito lei, manifestado seja pela
direita, seja pela esquerda, seja entre os militares, seja entre os civis.
Estes problemas foram enfrentados, e muitos deles originados, no Brasil imperial, quando a temtica da
democracia marcou a nossa histria.
1.2 A grande questo poltica, a partir de meados de 1870, era a discusso a respeito da legitimidade do
Imprio. O futuro da Monarquia brasileira dependia desta resposta, A teoria poltica de RB, na sua fase
inicial, partia do pressuposto de que somente a adoo efetiva do governo representativo, nos moldes
do parlamentarismo ingls, poderia legitimar e manter o sistema poltico monrquico.
O liberalismo europeu do sculo XIX, em particular o liberalismo ingls, elaborou em resposta
discusso sobre as formas polticas, que a Revoluo francesa tinha colocado de maneira perene, a
teoria do governo representativo.
O liberalismo ingls, na verso utilitarista de James MILL e de Jeremias BENTHAM, afirmava que a
discusso tradicional das formas de governo, baseada nos mritos da democracia, da aristocracia, do
regime misto dos doutrinrios, da Repblica, deveria ser substituda por uma concepo mais realista
da poltica, capaz de elaborar um sistema no qual o governo fosse controlado pelos representantes dos
interesses da comunidade (os indivduos). O utilitarismo assim uma teoria voltada para a defesa do
indivduo (inexiste qualquer preocupao social), ameaado segundo BENTHAM, pelo poder
crescente do Estado. Trata-se de uma forma poltica, na qual os cidados devem eleger o parlamento,
cuja maioria deveria indicar com toda independncia o governo, estando os ministros responsveis por
seus atos perante a cmara. Este sistema obteria a sua legitimidade pela ampliao do direito de voto a
todas as camadas sociais, procura de uma efetiva soberania popular.
Por sua parte, na Frana, durante a Restaurao, os liberais "doutrinrios", bem que destitudos da
coerncia inglesa quanto a seu contexto institucional (a Revoluo de 1688), queriam construir uma
"nouvelle France", a partir de uma poltica racional, na qual o problema da governabilidade seria
solucionado atravs da conciliao dos mritos do "ancien rgime" com o governo representativo.
A historia da governabilidade da Europa deste perodo constituda assim, a partir de diferentes
tendncias tericas e polticas existentes, pela luta para conquista da independncia do parlamento e
pela extenso do sufrgio. Importantes conquistas foram obtidas nesse sentido, por exemplo na
Inglaterra, onde sucessivas reformas eleitorais ampliaram o sufrgio ( 1832, 1867 e 1884-85), e na
Frana, que permitiu o sufrgio universal masculino em 1848.
No entanto, a partir dos anos 1870, uma forte onde conservadora atravessou o velho continente,
provocada pela possibilidade de que as classes trabalhadoras, em certos pases, graas ao acesso ao
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sufrgio, poderiam influenciar, ou, mesmo no futuro, constituir o governo. Tal hiptese dos
trabalhadores no poder, para os crticos conservadores, poderia gerar governos "parciais", fato que
adicionado ao seu suposto "baixo nvel cultural, engendraria governos irracionais". Com efeito, os
movimentos operrios, originados pela industrializao, comeavam a se organizar, desenvolvendo o
pensamento socialista e marxista, cujas crticas dominao capitalista, configuraram uma importante
confrontao ideolgica com o liberalismo.
Este perodo de reformas poltico-sociais provocou nas elites um retrocesso em suas prprias
concepes a respeito do liberalismo, fazendo com que o prprio ideal supremo da liberdade,
comeasse a ter restries morais e polticas: a plena liberdade e o exerccio da cidadania poltica
dependeriam de qualidades morais. O conservadorismo europeu assim sempre se ops participao
popular, tornando-se um contrapeso para o avano da democracia. Neste sentido, o final do sculo XIX
muito rico para a teoria poltica, pois coloca os sistemas polticos europeus frente ao dilema de manter
uma dominao tradicional e elitista perante a constatao de que no se pode mais negar a extenso
dos direitos polticos a todos os indivduos. Tudo isto atravessado pelas profundas reformas sociais e
tecnolgicas que a revoluo industrial provocava nos padres tradicionalistas da "belle poque".
A problemtica do sufrgio foi o verdadeiro campo de batalha onde se definiu o sentido da democracia
moderna. O sufrgio foi analisado brilhantemente por TOCQUEVILLE. Este autor observa, na
"Dmocratie en Amrique", que o sufrgio universal era uma das condies para a existncia da
democracia nos Estados Unidos. Todavia, para ele, o sufrgio poderia tambm gerar ambiguamente um
novo tipo de despotismo: "a ditadura do nmero". Pois, ele afirma que maioria no toma
necessariamente sempre as melhores decises; assim como, existiriam sempre minorias no
representadas. Neste sentido, a igualdade de condies, indispensvel para a democracia, poderia ser
tambm um perigo para a liberdade. Assim, para TOCQUEVILLE, a democracia poderia engendrar
dois tipos de problemas distintos: a tirania da maioria e o individualismo. Esse seria provocado pela
disssoluo dos antigos laos de solidariedade que uniam os indivduos no "ancien rgime". No
entanto, observando o sistema poltico americano, um dos fundadores da sociologia, TOCQUEVILLE,
percebeu tambm que a democracia engendrava igualmente, num mesmo movimento, as respostas a
estes problemas: a descentralizao administrativa; o equilbrio dos poderes, com plena autonomia do
judicirio; a organizao federal; a liberdade de imprensa; a liberdade de associao, etc...
STUART MILL, que conhecia a obra de TOCQUEVILLE, enfrenta em seus textos esta temtica. Para
ele, a soluo da questo, j que no se poderia renunciar soberania popular, seria, alm dos
"remdios" apontados pelos francs, a promoo do desenvolvimento moral do indivduo (em particular
dos trabalhadores). A moralidade seria ento a condio para que a igualdade produzida ela
democratizao da sociedade no fosse incompatvel com a liberdade. Ao contrrio, embora isto nos
parea surpreendente, para MILL, o desenvolvimento moral permitiria, sem meados, a ampliao da
liberdade, ajudando o progresso econmico e poltico. Desta maneira, a resposta dependia da "educao
poltica" da sociedade. Contudo, pessimista a respeito da realizao desta "moralizao", MILL
chegaria no final de sua vida a uma concepo poltica menos democrtica ainda, sofrendo inmeras
crticas, na qual propunha um sufrgio diferenciado, de maior valor qualitativo e numrico, para
aqueles "intelectualmente bem dotados". Do mesmo modo, ele seria reticente sobre a concesso do
sufrgio aos analfabetos e queles que no pagassem impostos.
Assim, nesta poca, bem que no se possa mais negar a soberania popular, e alguns pases comeassem
a adotar um sufrgio mais elstico, chegando mesmo em alguns casos ao sufrgio universal masculino,
o medo da intelectualidade vitoriana e europia em relao ao sufrgio universal evidente.
Nesta perspectiva, naturalmente, o pensamento liberal brasileiro se posicionaria sobre a questo, a
partir de seu estado terico na Europa, readaptado s questes concretas de seu contexto histrico.
Portanto, desde este pano de fundo terico e histrico que pretendemos analisar a poltica em RB.
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Neste captulo, com o intuito de aprofundarmos este posicionamento poltico, iremos num primeiro
momento, determinar o contexto onde ele se origina e manifesta, procurando resumir brevemente as
principais matizes polticas da Monarquia e de seus partidos polticos. Para a seguir, relatar brevemente
seu ingresso na poltica. Tudo isto como preparao para o nosso objetivo principal nesta etapa da
pesquisa que a anlise do seu discurso sobre a "situao liberal".
2. A CRISE POLTICA DA MONARQUIA
O imprio brasileiro, institudo pela Constituio de 1824, depois das lutas civis, separatistas e/ou
federalistas, que ocorreram entre 1824 e 1848, teria at 1868-70, um perodo de grande hegemonia (1).
A partir deste perodo, caracterizado exemplarmente pelo "manifesto" do partido republicano, e pelos
acontecimentos posteriores guerra do Paraguai, comearia o longo declnio do poder monrquico, que
culminaria com a Proclamao da Repblica em 1889.
O manifesto republicano de 1870 foi muito mais importante no nvel discursivo, simblico, que
poltico, logo que ele apareceu na cena poltica brasileira, pois a maioria de seus signatrios no
pretendia obter a Repblica pela violncia . Entretanto, ele constitui o primeiro documento importante
que questiona, aps este perodo de "paz social", a legitimidade do Imprio.
Durante os anos que se seguiriam, conflitos de toda espcie se multiplicariam entre o Imprio e
diversos segmentos da sociedade, principalmente, com os novos grupos econmicos e intelectuais que
haviam surgido. Pode-se citar como dramticos, o problema das eleies diretas, a questo militar, e a
mais grave de todas, a exigncia da abolio da escravido. Tudo isto sem se falar dos problemas
financeiros e das crticas de cunho republicano.
O suporte ideolgico do sistema, que foi criticado pelo manifesto, fundava-se na conciliao dos
parmetros de uma Monarquia constitucional com o absolutismo. A monarquia conformemente a
"charte" outorgada pelo Imperador D. PEDRO I, em 1824, aps a dissoluo da Assemblia Nacional
Constituinte de 1823, se queria "democrtica". Face a este fato, o manifesto afirmava:
"Alm do vcio incurvel de origem a Charte de 1824, imposta pelo
Prncipe, constitudo sem constituinte, pode-se ver aquilo que vale a
Monarquia temperada, ou Monarquia representativa. Este sistema misto
de poder uma utopia, porque formado de dois elementos
heterogneos. um utopia ligar de maneira slida e durvel dois
poderes distintos em sua origem, antinmicos e irreconciliveis - a
Monarquia hereditria e a soberania nacional, o poder pela graa de
Deus e o poder pela vontade coletiva, livre e soberana de todas os
cidados"(2).
Esta caracterstica da "Charte" inspirava-se, principalmente, nas Constituies europias ps-revoluo
francesa, que foram obrigadas a contemplar simultneamente a soberania divina (monrquica),
resumidas pela teoria da soberania racional de GUIZOT. Contudo, na "Charte", brasileira a soberania
popular era um aspecto puramente formal, j que o Imperador D. PEDRO I tinha pretenses
absolutistas.
Deste modo, quem conseguiria de fato uma certa conciliao, pelo menos at esta poca, entre a
soberania nacional e a soberania divina, criticada pelos republicanos, fora o Imperador D. PEDRO II.
Este, admirador de LOUIS PHILIPPE e do pensamento doutrinrio francs da restaurao, graas a um
dispositivo constitucional , inspirado em Benjamin CONSTANT, o pode moderador, engendrara uma
arte de governo muito hbil. Este dispositivo, uma espcie de quarto poder, dava ao Monarca imensos
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poderes, estando acima o poder judicirio e do poder legislativo, alm do fato de que o poder executivo
tambm lhe pertencia. Contudo, o Imperador, apesar de muito conservador, a partir de leituras do
liberalismo francs, nesse caso de GUIZOT e sobretudo de CONSTANT, no estabeleceu um regime
desptico. Isto, porque mesmo se ele se encontrasse com plenos poderes, o Imperador soubera mesmo
se ele se encontrasse com plenos poderes, o Imperador soubera se manter distncia dos conflitos, no
intervindo seno nos momentos decisivos, deixando geralmente o governo nas mos do Presidente do
conselho de ministros - funo originalmente de simples consultoria. Este cargo criado em 1847,
tambm de inspirao francesa, redefinindo como uma espcie como uma espcie de Primeiro ministro,
estabeleceu um regime poltico que pode ser classificado, com restries, como semi-parlamentar.
Nesta tica, a Monarquia, permitindo uma interpretao "quase britnica" da Constituio, fornecia
uma certa autonomia ao gabinete, mesmo que esta possibilidade no fosse legalmente prevista. O
problema, no entanto, foi o fato de que detendo o poder moderador, o Imperador cada vez que achou
necessrio, tomou pessoalmente as decises, destituindo arbitrariamente os gabinetes. Esta tenso entre
a autonomia relativa do parlamento e o poder moderador, aliada excluso da sociedade das questes
polticas, foi uma das causas preponderantes da crise de legitimidade do regime.
Este sistema entretanto funcionou sem maiores problemas at este perodo, sem constituindo um
excelente artifcio ideolgico, pois o carter absolutista do poder moderador e o elitismo da Monarquia
se caracterizaria muito mais pela excluso das classes desfavorizadas das decises polticas, e pela
manuteno da escravido, que por ter tomado medidas impopulares. Tratava-se do absolutismo
esclarecido, ideologicamente bem delimitado, mas indiferente problemtica social.
Este sistema ideolgico se manifestava atravs de um sofisticado jogo de imagens, que se reinviavam
mutuamente, procurando criar nos destinatrios a sensao de participarem de um sistema poltico
liberal moderno, quando, em realidade, sem se falar do poder moderador, o parlamento imperial era
constitudo unicamente por representantes das elites dirigentes, pois o sistema eleitoral existente,
censitrio e indireto, impedia uma efetiva participao popular. Os parlamentares nunca representariam,
sem se contar os escravos, mais do que 10% da populao.
A Monarquia era ento aparentemente uma utopia, como anunciava o manifesto, mas no fundo, ela foi
uma pratica poltica autoritria, que governou o pais, comandando seus desejos e identificaes
durante sessenta anos. Evidentemente que, para tal, como bem salienta Murilo de CARVALHO, ela se
apoiou numa elite burocrtica construda para esta finalidade. Todavia, surgiriam novas foras polticas
e econmicas progressistas, que colocaram o Imprio num dilema: implantar efetivamente um modelo
de governo mais democrtico, instaurando neste caso, um governo autnomo e representativo, ou, em
caso contrrio, permitir o desenvolvimento de fortes crticas, inclusive de carter republicano, que
poderiam destru-lo.
3. O PENSAMENTO POLTICO DA MONARQUIA
O quadro poltico imperial apresenta desta maneira grandes afinidades com a Frana da restaurao,
preocupada em conciliar a liberdade, grande conquista da revoluo de 1789, com a Monarquia
hereditria. Por isto, o pensamento francs foi muito importante para a Monarquia brasileira, tendo
mesmo atingido a supremacia na anlise poltica e filosfica. O pensamento da Monarquia
caracterizado pelo:
"liberalismo doutrinrio, verso francesa do liberalismo de LOCKE, que
teve uma enorme repercusso no Imprio, onde se tornou a ideologia
dominante nas instituies e isto durante um longo perodo do segundo
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Reinado. Benjamin CONSTANT, Franois GUIZOT, Victor COUSIN,
esto na origem do pensamento destes moderados que se aglutinaram em
torno da instituio monrquica para salvar o pas da turbulncia da
Regncia, enquanto garantia da unidade e da ordem. O tema geral do
liberalismo doutrinrio no Brasil foi aquele da conciliao entre a ordem
e a liberdade" (3).
Neste perodo, predominava notadamente o ecletismo de Victor COUSIN. O ecletismo teve, graas
preocupao poltica da Monarquia, que procurava conciliar a racionalidade e a espiritualidade
(divindade), soberania racional (GUIZOT) e conservadorismo, amplas possibilidades de se desenvolver
no Brasil, devido a sua interpretao de cunho psicolgico. Esta "solucionava"o problema da liberdade
como causa e fim em si mesma (conforme o que insinuava MAINE DE BIRAN). Isto , a liberdade era
muito mais uma questo psicolgica do que poltica. Nesta perspectiva, no difcil de se compreender
a facilidade de sua conciliao com a ordem.
Este pensamento estava na base da reforma do cdigo de processo penal, elaborado pelo Visconde do
URUGUAI em 1941, que estabeleceu um vasto controle da administrao, promovendo uma rgida
centralizao poltica e administrativa no pais, dando ao poder central o poder de nomear as funes
burocrticas importantes, como os presidentes de provncias, os chefes de polcia e os magistrados, isto
, tudo o que era necessrio para a existncia da Monarquia real (4).
Com efeito, o ecletismo de Victor COUSIN consiste, como afirma Antnio PAIM, "na primeira
corrente filosfica rigorosamente estruturada no pas, chegando a ganhar a adeso da maioria da
intelectualidade e a manter uma situao de dominao absoluta durante os anos 40 80 do sculo
passado". Para este autor, o ecletismo teve no Brasil trs ciclos distintos, que acompanham exatamente
as fases de expanso, apogeu e declnio da Monarquia. O processo de formao, no que lhe concerne,
compreende aproximadamente 15 anos entre 1833 e 1848 (sic). Durante este ciclo, existia um vivo
debate filosfico entre naturalistas e espiritualistas, quando a soluo conciliadora do probelama da
liberdade, defendida pelos partidrios de BIRAN e COUSIN, conquistou a maioria da elite
intelectual"(5). O ciclo de apogeu se estenderia entre 1850 a 1880. O ciclo de declnio, por sua vez,
comearia no momento onde se desenvolveram, simultaneamente, o incio das crticas legitimidade
do Imprio e a difuso no pas de novas correntes de idias, at ento restritas a crculos mais fechados,
como principalmente, o evolucionismo de SPENCER, o liberalismo de STUART MILL e o positivismo
de COMTE. Este ltimo substituindo o problema da conciliao entre a ordem e a liberdade, pela
conciliao entre a ordem e o progresso. Por sua parte, os leitores de STUART MILL, como RB,
preferiam a questo: liberdade e progresso.
Este pensamento que se contrapunha ao conservadorismo dos doutrinrios. pode ser caracterizado
como uma espcie de positivismo (ou sociologismo) cientificista, em razo de sua nfase na construo
de explicaes racionais para os fenmenos sociais. este positivismo que constituiria o pensamento
mais importante deste ltimo perodo, no se identificava porm necessariamente com o positivismo
de COMTE. Pois o comtismo mais ortodoxo, que chegou a fundar a igreja positivista do Brasil, nunca
chegou a ter muitos adeptos, nem a influir consideravelmente na poltica, Na realidade, o comtismo se
difundiria no pas muito mais pela verso de LITTRE que recusava, ao contrrio de LAFITTE, a obra
religiosa de COMTE. Assim, o positivismo dominante era um saber de caractersticas metodolgicas,
que conciliava tanto quanto fosse possvel, LITTRE com o evolucionismo de SPENCER, e em alguns
casos com MILL, e outras posturas semelhantes, De qualquer maneira, todas estas novas formas de
pensar a poltica se adaptaram facilmente com as idias republicanas, contribuindo para a destruio
das bases tericas monrquicas (6).
4. OS PARTIDOS POLTICOS
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Os partidos polticos imperiais manifestavam a influncia destas idias. O Imprio teve, at o
surgimento do partido republicano em 1870, dois partidos: o partido conservador e o partido liberal,
Estes nunca foram evidentemente partidos polticos no sentido moderno da expresso, com uma ampla
participao social (sufrgio universal) e uma racionalidade burocrtica, mas meros representantes das
elites dominantes (7).
Na teoria, o partido liberal seria o defensor da liberdade e da descentralizao, e o partido conservador
da ordem e da centralizao. Mas, na prtica, estas diferenas nunca foram muito ntidas ao nvel do
econmico, do intelectual ou mesmo do ideolgico, Ao contrrio, no foi raro o momento, em que os
partidos desejados de obter o poder, para tal dispostos a tudo, assimilaram ideais do lado oposto,
realizando reformas anteriormente incompatveis com o seu programa. O partido conservador, por
exemplo, quase que inteiramente formado por escravocratas, foi aquele que finalmente elaborou a
maioria da legislao que aboliu a escravido. todas estas contradies terminaram por destruir a
harmonia dos partidos. No entanto , durante a fase de apogeu do Imprio, entre 1853 e 1870, quando o
parlamento aproveitou e conseguiu manter-se distncia dos reclamos sociais, estas prticas foram
freqentes.
A base scio-econmica dos dois partidos era constituda principalmente por grandes proprietrios de
terras (elite rural), sustentados por uma elite intelectual que tinha a mesma formao, obtida
principalmente nas faculdades de direito. Uma tal elite composta sobretudo por magistrados e
administradores, fornecia a burocracia do Imprio e a inteligncia do sistema poltico. Os fazendeiros a
favor da interveno do Estado (centralizao), j que se dedicavam agricultura de exportao,
pertenciam geralmente ao partido conservador. os fazendeiros produtores para o mercado interno,
portanto favorveis a uma maior autonomia das Provncias, eram membros do partido liberal. No
decurso dos ltimos anos do Imprio, iria surgir com mais frequncia um novo tipo de parlamentar,
oriundo das profisses liberais e vinculado aos interesses urbanos, que iria alterar profundamente a
rotina poltica interna dos partidos.
O partido liberal nasceu da coalizo poltica provocada desde a abdicao de D. PEDRO I, que
reformou a Constituio de 1824, atravs do Ato Adicional de 1834, provocando uma srie de
importantes medidas de descentralizao. O partido conservador originou-se por sua vez, da ala
dissidente do Partido liberal, dirigida por Bernardo PEREIRA DE VASCONCELOS, o qual, a partir de
1837, postulou a "regresso" poltica, chegando mesmo a 12 de maio de 1840, a (re)-interpretar o Ato
Adicional, com um sentido autoritrio e centralizador, completamente distinto daquele postulado por
seus autores. VASCONCELOS explicava assim essa transio:
"Eu fui liberal, a liberdade era ento nova no pas, ela estava nas
aspiraes de todos, mas no nas leis, nem nas idias prticas; o poder
era tudo: eu fui liberal. Hoje, entretanto, o aspecto da sociedade bem
diferente: os princpios democrticos tudo ganharam, e muito
comprometeram o pas; a sociedade, que ento correta o risco de
poder, corre agora aquele da desorganizao e da anarquia. Como eu
o fiz ento, eu quero agora servi-la, e por isso eu sou pela
regresso"(8).
A partir das palavras de VASCONCELOS, ficava bem claro que seu objetivo poltico era a formao
de um sistema poltico no qual o ideal da liberdade seria substitudo pelo ideal da ordem, isto , pelo
poder dos grandes proprietrios: o Estado patrimonialista de WEBER (FAORO). Assim, os
conservadores brasileiros que tinham postulado a liberdade, durante a luta pela independncia do pas,
uma vez que esta de consolidou, foram obrigados a "regressarem" politicamente, em nome da ordem,
sob pena de serem obrigados a permitir uma maior participao popular. A lei de interpretao do Ato
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Adicional e o cdigo de processo de 1841 concretizaram esta dominao. Os partidrios da "regresso"
tomariam mais tarde o nome de "partido da ordem", para finalmente adotarem a denominao de
conservadores: a influncia do pensamento francs centralizador da Restaurao era ento evidente.
Em todo caso, a manuteno do ministrio condicionada confiana da cmara - importante conquista
liberal de 1834 - foi mantida, nem tanto como prtica parlamentar, pois o poder moderador se
fortalecia, mas como princpio. Desta maneira, no se pode falar de partidos, no plural, no Imprio
antes do aparecimento do partido conservador em 1837.
Em 1840, com a maioridade de D. PEDRO II, os dois partidos se reuniram novamente, compondo
aquele que foi denominado ministrio da conciliao. Isto traduziam se quisermos nos expressar na
silagem dos signos da filosofia da poca, segundo o ecletismo de Victor COUSIN, a unio da liberdade
e da ordem. Entretanto, a maioria dos membros do partido liberal nunca aceitaria totalmente a
conciliao, provocando a formao de trs faces na Cmara: os conservadores, os liberais e os
moderados. Estas correntes iriam ora unir-se, ora dividir-se, conforme os contextos polticos que
sobrevieram.
Em 1860, os ideais liberais "autnticos" se reavivam, gerando a unio dos liberais, histricos e
moderados, naquele que foi chamado partido liberal progressista. No seio deste partido, os liberais
histricos, mais revolucionrios, procuraram logo atingir a hegemonia. Face a este fato, o Imperador,
receosos, destituiu, em 1868, a pedido do comandante do exrcito (CAXIAS), o gabinete liberal de
Zacarias de GOIS, nomeado chefe do ltimo gabinete progressista em 1866. Este acontecimento
anulava a suposta autonomia do parlamento e demonstrava que o poder moderador era na realidade o
centro do poder da Monarquia. A classe poltica progressista reagiu interveno do monarca. Uma das
medidas tomadas foi a criao do "centro liberal (histrica), da ala moderada, e mesmo alguns
conservadores, formando o novo partido liberal. Os setores ainda mais radicais fundaram o partido
republicano em 1870.
O novo partido liberal elaborou, frente a esta nova situao poltica, um programa que, defendendo a
democracia e os direitos individuais, postulava as seguintes reformas:
I - A responsabilidade do executivo frente aos atos do poder moderador;
II - A mxima: o rei reina mas no governa;
III - A organizao do conselho de ministros conforme a maioria do parlamento;
IV - A descentralizao no sentido de "self-gouvernment", executando o pensamento do Ato Adicional
em relao as provncias; fornecendo a autonomia necessria aos municpios; garantindo o direito e
promovendo o exerccio da iniciativa individual; estimulando o esprito de associao,; restringindo, o
mximo possvel , a interferncia da autoridade;
V - A mxima liberdade me matria de comrcio e de indstria e por consequncia a extino dos
privilgios e dos monoplios;
VI - Garantias efetivas da liberdade de conscincia;
VIII - Plena liberdade para os cidados fundarem escolas e atingirem o ensino, desenvolvendo, ao
mesmo tempo, aquele que o Estado oferece, at que a iniciativa individual e de associao possam
dispensar um tal cooperao;
VIII - Independncia do poder judicirio e dos magistrados;
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IX - Unificao da jurisdio do poder judicirio, criada pela Constituio do Imprio e por
consequncia, a derrogao de toda a jurisdio administrativa;
X - O conselho de Estado deve tornar-se um simples auxiliar da administrao e no mais um corpo
poltico;
XI - O senado temporrio, como finalidade primordial para o justo equilbrio e influncia dos dois
ramos do poder legislativo;
XII - Reduo dos efetivos militares em tempo de paz.
O programa previa tambm, entre outras medidas, a reforma eleitoral, atravs da adoo da eleio
direta; e a abolio da escravido, a qual deveria iniciar pela libertao dos futuros recm-nascidos
(ventre-livre), seguindo-se a emancipao gradual (9). Desta maneira, propunha-se uma reformulao
completa do sistema poltico Imperial, por meio da implementao de um efetivo sistema parlamentar
liberal, com autonomia para o parlamento e para o judicirio, assim, como, a descentralizao
administrativa, permitindo um maior poder de deciso e participao s Provncias e aos Municpios.
O partido republicano, por sua parte, em seu manifesto, o qual, como ns j comentamos anteriormente,
no via nenhuma sada para a Monarquia, pregava a Repblica como a soluo necessria. Pois, a nica
soberania que ele dizia reconhecer era a do povo. Mas, mesmo anti-monrquico, este partido pretendia
utilizar simplesmente "dos instrumentos pacficos da liberdade atravs de uma revoluo moral".
Exigia-se igualmente algumas reformas polticas, a maioria indo na mesma direo das propostas feitas
pelo partido liberal, Assim, o partido republicano defendia a adoo da federao: "no Brasil, bem antes
da idia democrtica, a natureza se encarregou de estabelecer o princpio federativo". A frmula
proposta era a "centralizao-desmembramento" X "descentralizao-unidade". Alm disto, o
programa , ressaltando a necessidade da democratizao e do respeito aos direitos individuais, exigia
como condio para a realizao das reformas, "a convocao de uma Assemblia Nacional
Constituinte com amplas faculdades para instaurar um novo regime". Nesta perspectiva, enquanto o
partido liberal, fiel Monarquia, pretendia efetuar ele mesmo, dentro do sistema, as reformas
necessrias, o partido republicano reclamava uma Constituinte para a construo de um novo regime
(10).
O partido conservador, que chegara ao poder de 1868, permaneceu com o controle poltico durante
cerca de dez anos, quando sofreu duras crticas por parte do partido liberal. A implementao do
programa liberal era a reivindicao constante , sendo que a principal reclamao se dirigia ao sistema
eleitoral, censitrio e indireto, permitindo sempre a vitria do partido no governo nas eleies. O
sufrgio indireto era portanto uma das explicaes da longa dominao dos conservadores.
O partido liberal apontava a ausncia de legitimidade de um gabinete que se apoiava muito mais no
poder moderador do que no povo. O comportamento parcial do Imperador, verdadeiro fiador da poltica
conservadora, era assim ilegtimo para os membros da ala radical liberal. Nesta perspectiva, o incidente
que tinha provocado de sua parte o maior nmero de acusaes era o fato que o gabinete liberal, cuja
cmara fora destituda pelo Imperador, era na poca amplamente majoritrio. O gabinete conservador
tinha sido nomeado perante uma cmara na qual a maioria dos deputados era membro do partido
liberal, Este acontecimento produziu uma importante ruptura simblica sobre a legitimidade do poder
imperial, at ento inconteste, pois o presidente do conselho de ministros vinha sendo escolhido,
conforme a boa prtica parlamentar democrtica, dentre os membros da maioria parlamentar.
Contudo, no podemos deixar de observar, bem que esta argumentao dos liberais seja pertinente , que
a cmara liberal linha igualmente sido dissolvida em razo de sua incapacidade de se impor aos
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problemas polticos enfrentados, como a questo eleitoral, e, principalmente, a questo da escravido,
que comeava a se manifestar mais concretamente. A grande fraqueza poltica do partido liberal foi
sempre o fato que, mesmo que ele fosse o partido mais progressista do Imprio, ele era constitudo
(assim como o conservador) em grande parte pelas elites beneficiadas pelo sistema. Isto impedia, logo
que ele chegava ao poder, de tomar medidas liberais mais efetivas. A forte base social de carter
conservador produziu um grave hiato entre a teoria e a prtica poltica liberal.
Desta maneira, o partido brasileiro teve durante a sua existncia uma prtica poltica nitidamente
conservadora. Assim, uma das causas para a dissoluo do gabinete liberal de 68 foi tambm o fato de
que ele nada conseguiu realizar, perante a presso social e internacional, notadamente da Inglaterra,
para ao menos se atenuar a escravido no pas. interessante ressaltar que uma vez no poder o partido
conservador realizou efetivamente, embora de maneira restritiva, as medidas libertarias ento
reclamadas, apropriando-se dos ideias liberais, como condio para o exerccio do poder.
Em 1 de janeiro de 1878, o Imperador servindo-se, uma vez mais, do poder moderador, convidou o
Visconde de SINIMBU para formar um novo gabinete liberal. Aps todos estes anos de ostracismo era
o retorno do partido liberal ao poder. A queda do gabinete conservador fora provocada pelo sucesso da
campanha pela eleio direta, promovida pelos liberais. Mesmo face s promessas feitas pelo partido
conservador para estabelec-las, o Imperador entendia que aquela deveria ser realizada pelo partido que
a tinha postulado.
O partido liberal no poder modificava toda a paisagem poltica do pas, pois a conquista do gabinete
significava tambm o controle da mquina eleitoral do governo e da vitria assegurada nas eleies. No
Imprio nunca o partido que se encontrasse na oposio chegaria a ganhar uma eleio. Isto tornava a
participao do Imperador primordial para provocar a alternncia dos partidos no poder, seja o liberal,
seja o conservador, conforme a conjuntura poltica. Este um bom exemplo da supremacia do poder
moderador e da impossibilidade de participao poltica por parte da sociedade, O partido liberal
pretendia alterar esta situao, postulando a eleio direta como a nica maneira de democratizar o pas.
todavia, por enquanto, ainda sob o sistema eleitoral indireto, o partido liberal elegeu facilmente a
maioria da nova cmara.
Em resumo, em 1878, aps todas as crticas elaboradas pelo partido liberal na oposio, o Imperador
repetindo o gesto de 1868, nomeava um gabinete liberal, desta vez perante uma cmara
majoritariamente conservadora. A misso do partido liberal era resolver a problemtica situao do
sistema eleitoral do imprio. Uma questo de princpio porm se impunha anteriormente: era legtima a
situao poltica de uma gabinete liberal nomeado pelo Imperador perante uma cmara no qual era
minoritrio? Esta questo dera duplamente importante porque ela era repetida com os mesmos
argumentos que os liberais tinham utilizados em 1868 contra os conservadores, O partido liberal
indicou RB para respond-la.
5. A SITUAO ATUAL
O objetivo do discurso era justificar a situao liberal. Inicialmente RB efetuou um balano do governo
conservador, criticando sua fala de respeito para com a moralidade administrativa e finanas pblicas,
e, notadamente, pelos cinco anos de guerra como o Paraguai (11).
Estas observaes feitas, RB respondendo as acusaes dos conservadores, que ironizavam o fato das
crticas dos liberais na oposio terem cessado, quando o Imperador os chamara ao poder, afirmava
que " a escola do regime parlamentar europeu, que os permitia resolver a questo". A Inglaterra era
ento indiscutivelmente considerada por ele como o modelo poltico ideal para a Monarquia brasileira.
Dito isto, foram citados, como exemplo, por ele, diversos casos do parlamentarismo ingls, onde o
Gabinete fora nomeado sem possuir a maioria na cmara:
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"Em 1834, governando o "Whigs", sob o ministrio de lord
MELBOURNE, a Coroa entendendo que o gabinete, j modificado pela
perda, alguns meses antes, de quatro de seus membros, no poderia mais,
com a entrada, na cmara dos pares, de lord ALTHORP, chefe do
ministrio na cmara dos comuns, oferecer garantias de estabilidades
parlamentares, considerou esta administrao incapaz de subsistir, e a
exonerou, chamando a lord WELLINGTON, o qual , em seu lugar,
indicou para organiz-lo a Sir Robert PEEL.
Entretanto, a poltica "Whigs foi, at o ltimo momento, firmemente
sustentada, na cmara dos comuns, por uma maioria conhecida, pois a
administrao "Tory"contava apenas com uma fraca minoria, As
cmaras no estavam unidas, e, a dissoluo estando inevitvel, com ou
sem seu consentimento, Robert PEEL teve de bem meditar comparando
as vantagens e os inconvenientes das duas consequncias possveis:
chamar imediatamente o eleitorado, ou aventurar-se na tentativa de
demandar os meios para governar a uma maioria adversa. Robert PEEL
se decidiria por isto: no convoca a cmara, e a dissolve"(12)
O discurso apontava tambm o fato de que em 1852, no final do gabinete do lord RUSSEL, apesar da
maioria "Whig"que parecia indicar o poder a lord PALMERSTON, a Coroa britnica optou pela
indicao de um gabinete "Tory", nomeado a lord DERBY. No entanto, a questo seria esclarecida
somente em 1858, quando DERBY aceitaria novamente organizar um ministrio, mesmo sendo
minoria. Os debates que se seguiram, entre a possibilidade de convocao de eleies para a formao
de uma nova cmara ou a aceitao do gabinete DERBY, demonstravam para RB, uma quase-harmonia
de opinies entre as duas alas:
"Para os conservadores existe a autoridade eminente de DERBY,
segundo a qual arbitrria a pretenso de contestar o direito de
dissoluo da Coroa, qualquer que seja a ocasio. Para os outros, eis o
voto respeitvel de PALMERSTON. Ns reconhecemos, diz-ele, coroa,
o direito de chamar, em qualquer ocasio que seja, da cmara dos
comuns o pas. Pode nos parecer estmais ou menos aconselhvel de nos
interpor a esta convocao; mas, uma vez a vontade enunciada, eu estou
convencido que esta cmara cooper sempre, quando ela possa, com o
governo, acelerando o momento de sua dissoluo. Ningum, diz-ele
ainda, que tenha uma noo mnima da Constituio inglesa, no
contradir uma tal prerrogativa, pertencendo Coroa a qualquer poca
do ano, e em no importa qual circunstncia da administrao, de
dissolver o parlamento, atravs da opinio dos ministros responsveis,
to logo eles considerem oportuno faz-lo.
(...) Eis (segundo RB) na livre Inglaterra, em vinte e quatro anos somente,
trs exemplos da mesma coisa que seu purismo constitucional (os
conservadores) no aprova no Brasil: trs situaes polticas alteradas
contra as maiorias parlamentares" (13).
Aps ter exposto estes exemplos tomados da Inglaterra, que confirmavam o poder da Coroa de
dissolver o Gabinete, o discurso apontaria tambm casos similares ocorridos na Blgica e em outros
pases da Europa.
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Contudo, no inteiramente satisfeito com esta argumentao, favorvel Coroa, RB salientava que a
legitimidade do gabinete liberal no se fundamentava no poder moderador, mas na vontade popular.
Alm do fato de que, segundo ele, como a maioria obtida pelos conservadores era fruto do sistema de
eleies indiretas, ela era ilegtima. Pois, no caso em que o parlamento tivesse sido eleito
democraticamente, atravs de eleies livres, ele no concordaria com a sua dissoluo, e que a mesma
seria "absurda, inconstitucional, criminal". Assim, ele reconhecia que na Inglaterra dos ltimos anos,
aps, os "Bills de reforma parlamentar que haviam transformado a cmara dos comuns num efetivo
representante do pas, a hiptese de um gabinete minoritrio na cmara seria mesmo impossvel".
Porm, no caso brasileiro, esta situao era legtima, pois tratava-se da nomeao de um gabinete
minoritrio perante uma cmara afastada da opinio pblica. Pois , no existindo eleies diretas, era o
povo, ouvido pelo Imperador, aps diversas manifestaes que decidiria o retorno do partido liberal. O
parlamento conservador era portanto ilegtimo, pois caracterizava uma maioria no representativa da
nao. E para conformar suas afirmaes, RB citava a opinio dos conservadores e liberais sobre a
questo:
"Aos primeiros (os conservadores) eu lembro a autoridade conservadora
de DECKER, estadista belga muito conhecido, Presidente do gabinete de
30 de maro de 1858, a respeito da situao de seu pas dois anos depois,
ele a enunciou em termos memorveis: na minha opinio, uma das
posies mais arriscadas nas quais pode se aventurar uma pas
constitucional a de governar com uma maioria, que se pode acusar de
no mais representar os sentimentos e os votos nacionais
Aos liberais, eu lembro a sentena de uma capacidade europia: 'Des
cueils du gouvernement parlementaire', escreve PREVOST-PARADOL,
no seu livro : "La France Nouvelle", p. 147, 'o principal a tirania de
uma maioria legislativa, que, durante uma legislatura, cessa de
comunicar com a opinio da maioria dos cidados. Pela palavra tirania
ns no referimos aqui aos atos de violncia ou de opresso, mas
simplesmente existncia de um ministrio e de uma assemblia, que
legalmente retenha o poder, tendo j perdido o apoio e a confiana
geral'" (14).
A maioria parlamentar deveria ser efetivamente representativa da sociedade, sob pena de tornar-se
ilegtima, caracterizando uma opresso que justificaria a sua destituio. A legitimidade parlamentar
fornecida pela capacidade que ela tem de representar a soberania popular. O parlamento legtimo
intocvel, enquanto o parlamento no-representativo deve ser dissolvido.
O ponto seguinte a ser analisado no discurso seria o poder moderador. Neste sentido, ele procurava
demarcar os limites da interveno da Coroa no Gabinete. Para ele, "no havia nenhuma dvida que na
teoria liberal de governo, a Coroa era apenas a imagem de um poder, do qual a realidade ativa era o
gabinete, porque era ao Gabinete que pertencia a autoridade, que as formas tradicionais da linguagem
parlamentar atribuem Coroa". Mesmo na Inglaterra, pas modelo do parlamentarismo, segundo
BAGEHOT, "o rei preside apenas as partes formais da Constituio, e o primeiro ministro as partes
eficientes". Assim, para RB, na teoria liberal inglesa de governo:
"Os ministros que, na fraseologia jurdica, so vistos como servidores da
Coroa, so de fato rgos da representao nacional. O poder executivo
provm rigorosamente da cmara popular, a qual, por funo exclusiva,
incumbe nome-lo, mant-lo, destitu-lo. O monarca se eclipsou atrs do
presidente do conselho, personificao dos comuns, o qual o rbitro na
poltica e na administrao. E, no pas, onde a oposio se chamava
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oposio de sua Majestade, o governo se diz, e realmente, o governo de
CANNING e de PEEL, de PALMERSTON e de RUSSELL, de
GLADSTONE e de BEACONFIED"( 15).
Neste sentido, RB comentando a Constituio de 1824, lamentava que este ideal democrtico, a
nomeao do poder executivo pela cmara popular, no fosse previsto na letra da lei. Pois, a nomeao
do presidente do conselho de ministros era uma prerrogativa da Coroa, a qual para tal no se baseava
sempres na maioria parlamentar. A constituio no previa portanto as condies necessrias para o
funcionamento de um verdadeiro governo parlamentar, como a nomeao do gabinete pela maioria,
cuja ausncia provocaria uma moo de censura que provocaria a sua demisso. A "Charte" de 1824
estipulava ao contrrio que o "Imperador nomearia, e exoneraria, livremente os ministros". Assim,
parecia que a escolha dos ministros era um privilgio da Coroa. Mas, segundo RB, esta interpretao da
Constituio, que fazia prova de um juridicismo excessivo, poderia ser refutada se se optasse por uma
anlise luz de seu sentido poltico, no qual o parlamento poderia reinterpretar, redefinir o sentido
deste texto. Isto se justificaria em virtude da existncia de uma razo filosfica e de uma razo
jurisprudencial:
"A razo filosfica tal, que uma vez a nao representada sinceramente
num parlamento livre, a soberania que esta instituio exprime, assumir
uma realidade absorvente, concentrar nela toda a ao poltica, e
fundir desde a origem o poder executivo na representao popular.
A razo jurisprudencial tem como fonte a doutrina inglesa. L tambm a
teoria legal, a escolha dos ministros incumbe Coroa livremente e a sua
descrio pessoal. Entretanto, nada menos livre nada mais forado,
nada mais fatal que esta escolha, que se deve firmar sobre a
designao dos comuns, na qual a maioria material, poltica, e
absolutamente impossvel de recudar" (16).
Filiando-se a melhor tradio do parlamentarismo ingls, RB inseria-se numa hermenutica que
pregava a importncia de se levar em considerao na interpretao da lei constitucional os aspectos
polticos, filosficos e jurisprudenciais, que a co-constituem historicamente, rompendo com o
legalismo primrio dominante na sua leitura. Na mesma direo, ele citava " O governo
Representativo" de STUART MILL:
"Segundo a Lei Constitucional, nos ensina STUART MILL, 'a Coroa
pode recusar seu assentimento a todo ato do parlamento e nomear, ou
manter, os ministros que ela queria, no obstante a rejeio do
parlamento. Mas a moralidade constitucional do pas anula esses
poderes, impedindo de os utilizar, exigindo que o chefe da administrao
seja virtualmente nomeado pela cmara dos comuns, fazendo assim desta
corporao a verdadeira soberana do Estado'" (17).
O direito constitucional, tanto no Brasil, quanto na Inglaterra, deveria assim ser intepretado a partir dos
princpios do parlamentarismo democrtico, no se reduzindo de nenhuma forma ao texto legal.
Portanto, para RB, os arts. 98 e 101 da Constituio de 1824, que autorizavam a nomeao dos
ministros pelo Imperador, eram uma simples "homenagem ao papel simblico da Coroa". A adoo de
todos esses princpios do sistema parlamentar ingls desmascararia a crena segundo a qual o
Imperador tinha o direito de intervir no governo, na verdade direito exclusivo da nao. O
parlamentarismo. com plena autonomia da cmara para interpretar a Constituio e poder indicar o
chefe do gabinete, era ento a condio "sine qua non" para a existncia da democracia.
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Na concluso de seu discurso, aps ter-se explicitado a adeso democracia liberal inglesa, indicava
as reformas que deveriam ser providenciadas pela nova legislatura. A principal delas era evidentemente
a reforma eleitoral, condio para que se permitesse sociedade escolher uma cmara que a
representasse efetivamente. As reformas deveriam ser realizadas atravs da legislao ordinria, por
meio do parlamento, sem que se recorrese ao complexo sistema de reforma constitucional previsto na
"Charte" (ns aprofundaremos esta questo no prximo captulo).
As demais reformas pregadas eram a reforma do ensino, o desenvolvimento de fundos agrcolas, a
implantao da autonomia municipal, e a mais importante de todas, depois da reforma eleitoral, a
descentralizao administrativa, para a obteno da autonomia provincial. O discurso acentuava
igualmente a necessidade da extino da guarda nacional; fazer-se do voluntariado a nica base do
exrcito; e ampliar-se a imigrao e o direito liberdade religiosa. Estas reformas que resumiam o
programa poltico de RB, no eram para ele:
"O perigo, a anarquia, a runa: elas so, ao contrrio, a preservao da
autoridade, a pacificao das almas, o cimento de nosso futuro
constitucional. Elas evitaro a revoluo, popularizando, e consolidando,
portanto, a Monarquia representativa, reduzindo a uma ideologia
impotente as aspiraes republicanas. Elas so os nervos, a estabilidade
e a honra das instituies livres " (18).
Nesta perspectiva, RB era ainda um monarquista, postulando, com seu projeto de reformas, que no
diferia fundamentalmente neste momento daquele do partido liberal, a Monarquia representativa, como
condio para a legitimidade e existncia do Imprio. Assim, mesmo efetuando uma espcie de
ultimatum ao governo imperial, no se tratava de um programa revolucionrio, contentando-se com
conquistas parciais da liberdade, as quais tornariam "mais prxima e inevitvel o surgimento da
liberdade total". Pois , para RB:
"Quando inaugurada uma liberdade parcial com o comum acordo da
escola radical e das outras escolas, no a escola radical que faz a
concesso; mas ao contrrio, ela que a recebe. A filosofa diferente da
poltica; a condio da poltica ser prtica, ou no ser nada. A poltica
radical aspira ao pleno e completo gozo da liberdade; mas ela caminha
nesse sentido conquistando sucessivamente as liberdades possveis. Ela
radical, porque ela pretende tudo, e no se fatigar antes de obt-lo
integralmente; mas ela no tem a esperana de tudo reformar de uma s
vez, nem a estupidez de rejeitar reformas incompletas, que podem
facilitar a reforma definitiva"(19).
Naturalmente, este tipo de radicalismo poltico, propondo reformas graduais, que caracterizam uma
certa maturidade poltica, apresenta fortes traos conservadores, como o receio de mudanas bruscas e
da anarquia, comuns no liberalismo da poca. isto, todavia, no nos parece suficiente para classific-lo
como um discurso idealista ou meramente ideolgico. Nesta tica, a nova hermenutica constitucional
proposta por RB, voltada para a realizao de seu projeto poltico, dando prioridade reforma eleitoral,
era coerente com esta postura.
Este projeto indicava Monarquia o caminho a seguir para a democratizao do pas e para a
justificao do sistema, e mesmo se ele no fizesse ainda da abolio da escravido uma medida
urgente, pois deveria ser encaminhada somente depois da soluo do problema das eleies, era, na
poca, uma teoria de governo vivel e legtima.
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Nesta linha de idias, esta proposta de reforma da Monarquia pode ser caracterizada como uma postura
liberal bem moderada e pragmtica: a diferena entre a filosofia radical, que defendia a necessidade
premente da implantao dos ideais liberais, e a poltica, arte da conciliao e das conquistas graduais,
delimitada. RB um poltico, no um filsofo.
Em breves palavras, neste discurso sobre a situao liberal as influncias terico-polticas mais
importantes foram o liberalismo ingls, os direitos e garantias individuais da Revoluo francesa
(transmitidos pelo pai), as instituies americanas de STORY, o federalismo de TOCQUEVILLE e a
metodologia positivista de COMTE (que aprofundaremos mais tarde).
Nesta perspectiva, o pensamento britnico, notadamente de BAGEHOT, MACAULAY, WILLIAM
GLADSTONE e STUART MILL, foi a maior fonte de inspirao de RB. A maior contribuio, ao
menos, a respeito do parlamentarismo e do sistema eleitoral, foi a de MILL. Este autor foi fundamental
para a a gerao liberal radical, desejosa de encontrar novas bases tericas para efetuar suas crticas ao
pensamento doutrinrio e conservador da Monarquia, em razo da atualidade de sua teoria de governo
frente aos problemas do liberalismo da poca, Pois MILL era uma espcie de sntese crtica do
utilitarismo, que dominava o pensamento ingls, ao mesmo tempo que dialogava independentemente
com SPENCER e COMTE, sempre procurando enfatizar a importncia da liberdade na teoria poltica e
social, que comeava a ser menosprezada pelo determinismo sociolgico do positivismo.
Assim, MILL contribuiu para a concepo poltica de RB que postulava a liberdade individual e a
modernizao do pas contra o binmio ordem-liberdade dos doutrinrios (conservadores), e a
autonomia do homem contra o binmio ordem-progresso dos positivistas. Para isto, ele defendia o
parlamentarismo ingls como condio de desenvolvimento econmico, social e individual do cidado.
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CAPTULO I - NOTAS
(1) Sobre as questes polticas no Imprio, pode-se consultar, entre outros:
- Jos Murilo de CARVALHO, "A Construo da Ordem. A Elite Poltica Imperial", editora Campus,
Rio de Janeiro, 1980;
- OLIVEIRA LIMA, "O Imprio Brasileiro", nova edio, UNB, Braslia, 1986;
- Srgio BUARQUE DE HOLANDA, "O Brasil Monrquico, tomo II, 5 volumes, DIFEL, So Paulo,
3a. ed., 1983.
- Raymundo FAORO, "Os Donos do Poder", 2 vol., 7a. d., GLOBO, Rio de Janeiro, 1987;
(2) Cf. "O manifesto do Partido Republicano "in "A Idia Republicana no Brasil. Textos e
Documentos:, editora Alfa-Omega. So Paulo, 1973, p. 40;
(3) Sobre o pensamento doutrinrio no Brasil, ver: Ubiratan de MACEDO. "Os modelos do
Liberalismo no Brasil", So Paulo, 1986;
(4) Sobe o Visconde do URUGUAI, ver: Ubiratam de MACEDO, "O Visconde do Uruguai e o
Liberalismo Doutrinrio no Imprio" in "As Idias Polticas no Brasil", editora Convvio, So Paulo,
1979. pp. 193-232;
(5) Cf. Antonio PAIM, "O Estudo do Pensamento Filosfico Brasileiro", editora Tempo Brasileiro, Rio
de Janeiro, 1979, pp.33-34;
(6) Sobre o positivismo no Brasil, ver: Ivan LINS, "Histria do Positivismo no Brasil", Cia Editora
Nacional, So Paulo, 1967;
(7) Sobre os partidos polticos ver:
- Afonso ARINOS DE MELO FRANCO, "Histria e Teoria dos Partidos Polticos no Brasil", editora
Alfa-Omega, So Paulo, 1980.
- Murilo de CARVALHO, op. cit.;
- OLIVEIRA LIMA, op. cit.;
(8) Cit. por Afonso ARINOS, op. cit.; a determinao da data de 1837 como fundamental para a
configurao do sistema de partidos tambm proposta por ARINOS;
(9) Sobre esta questo, ver OLIVEIRA LIMA, op. cit ., pp. 44 e seg.;
(10) Cf. O Manifesto do Partido Republicano, op. cit., pp. 39-63. Existiriam tambm outras
manifestaes republicanas importantes, que se sucedera, ao primeiro, como aquela de 1873, em Itu,
So Paulo;
(11) Cf. "A situao Liberal", discurso pronunciado por RB, a 17 de maro de 1878, na cmara dos
deputados do Imprio, publicado no VOL. VI, Tomo I, 1879, OCRB, FCRB, Rio de Janeiro, pp. 63-
166;
(12) Cf. RB, OCRB, VOL. VI, Tomo I, pp. 69-70;
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(13) idem, pp. 71-72;
(14) idem, p. 76;
(15) idem, p. 107;
(16) idem, pp. 108-109;
(17) idem, p. 108;
(18) idem, p.154;
(19) idem, p. 155;
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CAPTULO II
A TEORIA DO SUFRGIO
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CAPTULO II
A TEORIA DO SUFRGIO
1. O SISTEMA ELEITORAL DO IMPRIO
1.1. O Brasil era um pas formalmente liberal, dominado por uma Monarquia baseada na mo de obra
escrava, que, carente de legitimidade, necessitava reformar o seu sistema poltico.
Deste modo, percebe-se facilmente porque o sistema de eleio direta adotado, a 7 de janeiro de l881,
provocou enormes debates no parlamento liberal a partir de 1879, portanto tema exemplar para a
anlise dos limites e possibilidades da existncia da cidadania e da democracia no pas. A adoo do
sistema de governo representativo implicava na reforma do sistema eleitoral do Imprio.
Nesta tica, RB pronunciaria diversos discursos sobre o sufrgio, em diferentes momentos histricos,
em distintas condies polticas, e mesmo tericas. As condies enunciativas destas falas, as quais
constituem o seu sentido, variaram, desta maneira, intensamente. Porm, - esta a nossa idia, - sem
desprezarmos esta condio pragmtica de sentido, existiu sempre uma coerncia na evoluo de seu
pensamento sobre o sufrgio.
O primeiro destes discursos foi pronunciado na Bahia em 1874, quando o partido liberal estava na
oposio. Nesta ocasio, ento simples membro do partido, procurando candidatar-se a candidato
dentro de seus quadros, ele efetuou com grande desenvoltura, um eloqente exerccio retrico,
procurando igualmente, demonstrar uma certa erudio e produzir fortes crticas Monarquia. Como
veremos a seguir, entendemos que neste discurso, j havia alm destas caractersticas de adeso aos
ideais do partido liberal, uma certa postura terica maior.
O segundo discurso seria enunciado, j enquanto deputado liberal, desejoso de mostrar servios ao
partido e subir nos seus quadros, quando ele deveria justificar, a necessidade de aprovao do projeto
SINIMBU. Neste discurso, ele aproveitaria para estabelecer as bases tericas de seu pensamento sobre
o sufrgio, elaborando uma fala na qual o poder do saber, aparece como condio de legitimidade do
prprio exerccio do poder e da cidadania.
O terceiro discurso seria pronunciado, por sua vez, j em defesa do projeto por ele elaborado, a pedido
de SARAIVA, no qual se faz concesses em relao s exigncias feitas nos discursos anteriores, face
a necessidade de se lutar pela aprovao do projeto, atravs da conciliao com a dissidncia liberal.
1.2. O sistema eleitoral adotado pelo Imprio era o das eleies indiretas, estabelecido no captulo IV,
da Constituio de 1824, composto pelos arts. 90 e 97.
O art. 90, alm da eleio indireta, estabelecia dois tipos de eleitores: os eleitores paroquiais,
constitudos pela massa dos cidados ativos, que elegia os eleitores de provncia; e os eleitores
provinciais que elegiam os deputados de provncia e os gerais (da nao).
Existia assim um sistema eleitoral baseado em dois nveis diferentes de eleitores:
a) Um primeiro nvel, que era constitudo pelo eleitor paroquial, que participava somente da eleio
primria , e simplesmente escolhia o eleitor com maisculas que iria, por sua parte, votar efetivamente
no representante da provncia e da nao. para se participar d