Download - A Epopéia Ignorada
A EPOPÉIA IGNORADA
(A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje)
Autor: Otto Marques da Silva
Editada pelo CEDAS -1987
Copyright de Otto Marques da Silva
Direitos reservados do
CEDAS--Centro São Camilo de Desenvolvimento em Administração da Saúde
Rua Barão do Bananal, 1111 --05024--São Paulo--SP.
Capa de Júlio Braga
Estela egípcia da XIX Dinastia: o porteiro de nome Roma faz oferendas à
Deusa Astarte Síria (acervo da Glyptotek Ny Carlsberg--Copenhague,
Dinamarca).
Dados Catalográficos
SILVA, Otto Marques da
A EPOPÉIA IGNORADA--A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem
e de Hoje
São Paulo--CEDAS, 1987.
470 páginas - 2 partes - 5 anexos - 17 ilustrações
Relações bibliográficas
Conteúdo:
I Parte-- Deficiências e pessoas deficientes nos seguintes Períodos ou
Épocas: Pré-História, História Antiga (Egípcios, Hebreus, Gregos e Romanos),
Advento do Cristianismo, Império Bizantino, Idade Média, História Moderna e
História Contemporânea (Até 1981, Ano Internacional das Pessoas
Deficientes).
II Parte-- Causas da marginalização das pessoas portadoras de deficiências,
o significado da integração social, a questão da adequação da adequação
pessoal como objetivo último da reabilitação, o preparo para a vida de trabalho,
as equipes de reabilitação, a avaliação e o controle das atividades dos centros
e programas de reabilitação.
Para Nely
Ana Maria
Otto, Filho
José Gustavo
pela força que sempre me transmitem.
Para Jary Maria
Pela enorme lição de vida
("in memoriam")
ÍNDICE
A Oração da Pessoa Deficiente...
Apresentação...
Introdução...
PRIMEIRA PARTE
A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM
E DE HOJE
Capítulo Primeiro
A Pessoa Deficiente no Mundo Primitivo...
O homem neolítico no Brasil de hoje - As primeiras civilizações do mundo...
1. O Alvorecer da Humanidade...
Os males incapacitantes de sempre - O ambiente físico - Os desafios para a
vida do homem primitivo. O cuidado para com doentes e a incipiente medicina -
As fraturas na Pré-História - O que nos ensinam os ossos pré-históricos --
Freqüência do reumatismo -- A origem dos males que afetavam os homens - O
tratamento primitivo e as deficiências – O destino das pessoas deficientes na
Pré-História.
2. Culturas Mesolíticas e Neolíticas mais Recentes...
O porquê das atitudes face a grupos minoritários Atitudes de aceitação, apoio
e assimilação - Causas das atitudes de abandono, segregação ou destruição -
O extermínio de pessoas deficientes - A pessoa deficiente como objeto de
ridículo - O povo inca e as trepanações cranianas. As deficiências físicas há
mais de 20 séculos na Califórnia.
Capítulo Segundo
A Pessoa Deficiente dentro das Culturas Antigas...
1. Os Egípcios e seus Vizinhos...
A atenção médica no Egito Antigo - A medicina egípcia e os males
incapacitantes - Os famosos papiros e os problemas de deficiências – As
deficiências físicas no Antigo Egito - Os males que levavam a deficiências
físicas - Casos concretos de lesões incapacitantes - A incidência de fraturas e
outros problemas - Os anões na vida e na arte egípcias - Uma estela votiva
dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro - As especialidades médicas
e o problema das deficiências no Egito - Conceitos da medicina egípcia na
Odisséia de Homero - Anisis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C. - A
deficiência visual na mitologia egípcia - Um coral de homens cegos para
Amenhotep IV - As penas mutiladoras no Egito Antigo - Médico egípcio
especializado em males da visão na corte de reis persas - Gaumata, um
famoso mago de orelhas amputadas - Zópiro: tudo pela vitória de Dario I em
Babilônia - A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C. - Os
egípcios sob os olhos críticos de um Imperador romano.
2. O Hebreus...
Noé: a primeira pessoa com deficiência? -- As deficiências físicas entre os
hebreus -- A cegueira de Isaac por 80 anos - Moisés e suas sérias dificuldades
em falar com clareza -As leis criadas no deserto do Sinai – O Código de
Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus - Sedecias, rei de Judá: cego por
Nabucodonosor - O preço da paz: um olho de cada habitante - Mais normas e o
papel do médico - As causas das deficiências entre os hebreus - A medicina
dos hebreus - Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma? - Os
cegos na cultura hebréia antiga - Zacarias castigado por não ter acreditado em
Gabriel - As pessoas deficientes nos Evangelhos - Os milagres de Jesus e as
pessoas deficientes - A cegueira de São Paulo, Apóstolo.
3. Os Gregos...
As deficiências na mitologia grega - Lenda e realidade: Hefesto na vida dos
gregos - Outros seres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais - As
deficiências físicas na realidade da vida militar grega – As principais causas de
deficiências na Grécia Antiga - Tirteu, poeta lírico com deficiência física - As
leis que favoreciam as pessoas deficientes - A medicina grega e as deficiências
físicas - A medicina de Hipócrates e as deficiências - Hipócrates e suas idéias
quanto à epilepsia – Adaptações para prevenir deformações em crianças -
Cláudio Galeno e sua importância - Demócrito e Homero: homens cegos e
muito famosos - Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas - Pessoas
deficientes trabalhando citadas em obras gregas - Creso, o mais feliz dos
homens – A importância dos oráculos e adivinhos na vida grega - A história de
um adivinho famoso que era cego - As próteses de Hegesístrato, adivinho
grego - Peste Ateniense: o terror generalizado – A atenção a soldados feridos
ou doentes: Anábase, de Xenofonte - Homens com sérias luxações nas pernas:
sapateiros, ferreiros, seleiros - Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados
com deficiência - Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas
deficientes - As famosas instalações de Epidauros - O sistema de
funcionamento de Epidauros - Plutão, deus da riqueza, curado por Asclépios -
Os testemunhos das muitas curas - "Apothetai" do monte Taygetos, em
Esparta - Como era o ambiente de Esparta - Outras formas de eliminar
crianças defeituosas na Grécia Antiga - A história de Labda, mãe de um rei de
Corinto - Os costumes em Atenas face a deficiências físicas – O legado da
Grécia Antiga.
4. Os Romanos...
O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma - O
destino das crianças deficientes em Roma -- O deus da medicina: Esculápio--
Horácio Cocles, um herói com deficiências--Ápio Cláudio, Censor: século IV
a.C - Amputação como penalidade nas legiões romanas--Caio Júlio César:
atitudes face a seus males--Ferimentos graves e deficiências físicas em
batalhas -- Cláudio I, um imperador bastante controvertido -- Galba, imperador
romano com diversas deficiências - Othon, um imperador nascido com
malformações - Vitélio, imperador romano por oito meses--Os milagres de
Vespasiano - As deficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural" -As
automutilações para dispensa do serviço militar--Males incapacitantes e
soluções paliativas - O problema da surdez na opinião de Cícero--Deficiências
múltiplas e morte - A medicina grega e sua infiltração no Império Romano -
Médicos romanos famosos e os males incapacitantes - Os serviços médicos e
os hospitais militares romanos - As "valetudinaria" descobertas em estudos
arqueológicos - Os auxiliares de médicos nas legiões romanas O sistema
hospitalar romano - O ensino da medicina no Império Romano Categorias de
médicos em Roma - Implantação de serviços de assistência médica - A higiene
e os banhos públicos—As pessoas deficientes nas artes romanas - Valores
espirituais em pessoas deficientes.
Capítulo Terceiro
O Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média face as Pessoas
Deficientes ...
1. O Advento do Cristianismo ...
As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos - Sétimo Severo, o sábio
e firme imperador - "Praecepta Medica" e os males incapacitantes - Galério,
imperador que morre com deficiência séria—Mutilações em cristãos: a Língua
de São Romão - Alterações substanciais provocadas pelo Cristianismo -- Um
bispo com deficiência: Castigo de Deus? -
Dídimo, teólogo cego: Diretor da Escola de Alexandria -- Os primeiros hospitais
cristãos e as pessoas deficientes - Fabíola e Pammachius associados num
hospital de caridade - A hospitalidade cristã e o papel dos bispos - Notícias de
organizações para pessoas deficientes - A questão das deficiências físicas em
sacerdotes cristãos - Papel dos mosteiros na assistência aos miseráveis.
2. O Império Bizantino e as Deficiências...
Constantinopla, o "Reino de Deus na Terra" - A pompa e a circunstância na
corte bizantina - As grandes e poderosas famílias do Império - A miséria na
capital bizantina e as pessoas deficientes - As doenças e as deficiências físicas
e sensoriais - Os miseráveis no "Reino de Deus" - As organizações
assistenciais de Constantinopla - O imperador Justiniano e as pessoas
enfermas e deficientes - O desenvolvimento da medicina e dos hospitais - A
mutilação nas leis bizantinas - Períodos principais do Direito Penal Bizantino -
A moderação nas penalidades impostas no tempo de Justiniano - As "Novas
Constituições" de Leão III: "leis mais cristãs" - A defesa de um direito dos
cegos: fazer testamento - Penalidade prevista para o vazamento dos olhos de
outrem - Crime de rapto e sua condenação nos tempos de Leão III - General
Belisário: lenda e realidade de sua carreira - Notícia sobre uma prótese no
século IV -- Abrigos para cegos e outros refúgios para doentes e deficientes -
Assistência a soldados a partir do século VI - Os primeiros hospitais da Terra
Santa e de Bagdá - Castigos bárbaros levam a deficiências no Império
Bizantino - A Imperatriz Irene e sua luta para conquista do trono - Os primeiros
castigos contra conspiradores dentro da família - Punições severas continuam
na corte bizantina - A selvageria de uma imperatriz na defesa de seu trono -
Mutilação documentada em pintura do século IX -- Barbáries que levaram a
deficiências físicas - Constantino VIII: "a violência dos fracos e dos poltrões" -
Miguel V: imperador bizantino por apenas 132 dias -Constantino IX,
Monômaco: limitações físicas muito sérias -- Romano IV, Diógenes: presa de
um soldado com deficiências - Enrico Dandolo: "doge" veneziano cego - Isaac
II, Angelus: olhos vazados, volta a ser imperador - Outros eventos que levaram
a deficiências físicas e sensoriais - Ato friamente planejado instala a Dinastia
dos Paleólogus -- O dilema de João V, Paleólogus (1319 a 1389).
3. As Pessoas Deficientes na Idade Média...
A criação de hospitais e abrigos para pobres - Um santo cego na história da
Bretanha do século VI - Santo Egídio, padroeiro dos deficientes - Assistência
aos pobres pela Igreja - A mutilação como castigo no século VII - O milagre de
fazer um mudo falar – Amputações como penalidade por crimes cometidos - A
evidência de dupla amputação: século VII - Os hospitais criados pela Igreja na
Europa - A profissão de massagista no Japão do século IX - Bispo Hincmar,
vítima da crueldade de seus algozes - Deficiência física na mitologia germânica
- As deficiências em sacerdotes cristãos na Idade Média - Luiz III, o "Cego",
rei da Provença e da Itália - Deficientes físicos impedidos de participar da
Primeira Cruzada - Barbeiros-cirurgiões na Idade Média - A evolução dos
hospitais medievais e as eficiências - O estigma da hanseníase durante toda a
Idade Média - Ricardo Coração-de-Leão e sua vingança - Hospitais proliferam
no Oriente Próximo: século XIII - Os progressos da medicina até o século XIV -
Epidemias na Idade Média e suas conseqüências: "Castigo de Deus"? - A
medicina qualificada e a falta de assistência geral - As soluções populares e as
crendices - O destino das pessoas deficientes na Idade Média - O significado
das eficiências na Idade Média - Os privilégios para cegos durante a Idade
Média - Dois heróis históricos com deficiências nos séculos XIII e XIV – Os
hospitais face às pessoas deficientes nos séculos XIV e XV.
Capítulo Quarto
A Pessoa Deficiente do Renascimento até o Século XIX ...
O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença - Os problemas
dos deficientes auditivos no século XVI - A pintura renascentista e as pessoas
com deficiências - Ambroise Paré: os primeiros passos da futura "ortopedia" -
Antonio de Cabezón: compositor cego – Goetz von Berlichingen, o "Mão de
Ferro" - O problema da mendicância organizada nos séculos XVI e XVII - A
grande malha organizacional dos miseráveis na França - O problema da
mendicância organizada em outros países - Deficientes mentais no século XVI:
entidades não-humanas - A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na
Inglaterra – O atendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI – O
"Grand Bureau des Pauvres" da França Classificação de indigentes na França
no século XVI – Luiz de Camões, o poeta épico português por excelência -
Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha – Continua a epopéia dos
hospitais nos séculos XVI e XVII - Galileo Galilei, matemático, astrônomo e
físico - O contínuo problema dos soldados mutilados - Os trabalhos com os
deficientes auditivos no século XVII - Johannes Kepler, astrônomo alemão -
Padre Lejeune, maior pregador do século XVII - Novas formas de utilizar os
hospitais - As deficiências físicas em peças de Shakespeare - A superação de
deficiências no século XVII: um exemplo - John Milton: o significado de sua
cegueira - São Vicente de Paulo: suas obras face às tendências do século XVII
- A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra - O nascer da ortopedia como
especialidade -- Quatro cegos brilhantes: Sauderson, Metcalf, Euler e Blacklock
- Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas - A reformulação
hospitalar inglesa - A "Ortopedia" de Nicholas Andry - Maria Tereza von
Paradis: pianista e compositora cega - A assistência aos cegos: final do século
XVIII - Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos" -- Educação dos deficientes
auditivos no século XVIII - Os primeiros sinais de assistência nas Américas - O
desencontro de atitudes na Europa - Inovações nas "Leis dos Pobres" -
Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes - Hospitais públicos na
França: final do século XVIII -- Progressos no campo do atendimento à
cegueira: século XIX - Ludwig van Beethoven: a trágica surdez -Nelson, herói
da Marinha Britânica - Os progressos nos Estados Unidos da América do Norte
- Os sinais de melhor compreensão dos problemas dos deficientes - Uma
iniciativa de Napoleão Bonaparte - Madre Agostinha, fundadora das Irmãs
Irlandesas da Caridade - Lord Byron, poeta e satirista inglês - Antônio Feliciano
de Castilho, um dos maiores literatos portugueses - Outros cegos do século
XIX que ficaram famosos - A ortopedia do século XIX e as deficiências físicas -
Atendimento mais especializado aos cegos - A pessoa deficiente vista com
potencial para o trabalho - O problema dos surdos e dos surdos-mudos e suas
soluções – Proteção ao acidentado de trabalho por legislação recente – A
modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes - Reabilitação
desabrocha num Centro de Atendimento, em Cleveland - Helen Keller, cega,
surda e muda: um marco indelével.
Capítulo Quinto
A Pessoa Deficiente no Brasil Colonial e Imperial...
Os primeiros hospitais do Brasil Colonial - Anchieta e seu exemplo de
assistência aos doentes -- Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil --
Cegueira noturna no Brasil dos séculos XVI e XVII -- Os problemas médicos
nos séculos XVI e XVII no Brasil --Médico com deficiência física na História de
Pernambuco - O problema das paralisias no
Brasil do século XVII -- A medicina do século XVIII entre nós – Males
limitadores que afetavam muito os negros escravos - Deficiências físicas e
sensoriais entre nossos índios --Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho" --
Uma primeira tentativa em projeto de lei: ajuda a cegos e aos surdos -- O
problema das amputações do século XVI ao XIX – A influência européia no
Brasil -- Organizações para pessoas deficientes criadas por Dom Pedro II.
Capítulo Sexto
O Século XX e os Caminhos da Reabilitação no Mundo...
O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século--EUA:
um primeiro congresso mundial de deficientes auditivos--A gradativa
implantação da reabilitação--As tentativas iniciais para a solução do problema
de trabalho--Implantação de serviços de naturezas diversas--Os esforços de
pós-guerra--Surge a "Easter Seal Society" - O Código de Direito Canônico e os
bloqueios a homens deficientes--Reconhecimento das verdadeiras
necessidades das pessoas deficientes—A previdência social e os acidentes de
trabalho--A reabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército--A
retração dos anos trinta e as pessoas deficientes nos EUA--A influência da
Segunda Guerra Mundial na reabilitação -- A criação de sociedades
internacionais privadas - O envolvimento das organizações
intergovernamentais -- Centros de demonstração de técnicas de reabilitação--O
Instituto de Reabilitação: vida e morte--A evolução mais recente da reabilitação.
Capítulo Sétimo
1981--Ano Internacional das Pessoas Deficientes...
As declarações de direitos e sua importância --O significado de um "Ano
Internacional" -- O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais
-- O conteúdo básico das idéias consensuais para um plano de ação mundial -
As recomendações para atividades a nível nacional -- O Ano Internacional das
Pessoas Deficientes a nível de Brasil -- A Comissão do Estado de São Paulo e
seu relatório - As propostas para ação em São Paulo -- As realizações da
Secretaria Executiva da Comissão Estadual -- Dois Encontros Regionais
discutem as propostas da Comissão Estadual--Conscientização: a meta para
1981 --O apagar das luzes para o Ano Internacional -- Recomendações finais
de todas as Comissões: um desafio para o futuro.
Bibliografia da Primeira Parte...
SEGUNDA PARTE
A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE -- O
DESAFIO DE NOSSOS DIAS
Introdução ...
Capítulo Primeiro
As Causas da Marginalidade das Pessoas Deficientes ...
Normal ou anormal: Eis o problema -- As "diferenças" assimiláveis ou
inaceitáveis -- A questão em termos de Brasil -- A visibilidade da deficiência --
O problema do "comum" e do "normal" -- A grande variedade de condições
marginalizantes -- Como classificar as condições marginalizantes (desvios
intelectuais, desvios motores, desvios sensoriais, desvios funcionais, desvios
orgânicos, desvios de personalidade, desvios sociais e problemas de idade
avançada) - Outras condições que levam à marginalidade--Deficiência e
incapacidade: distinção importante.
Capítulo Segundo
O Significado da Integração Social das Pessoas Deficientes...
A complexidade do desafio--A integração social e seus "porquês" (O elevado
número de pessoas consideradas como "deficientes", o valor próprio do ser
humano, o valor econômico da mão-de-obra não utilizada)--Os princípios
básicos da reabilitação -- O despreparo nos programas reabilitacionais -- A
complexidade do trabalho de equipe em reabilitação--Os programas
necessários em nosso meio.
Capítulo Terceiro
Adequação Pessoal -- O Objetivo Último da Reabilitação ...
Impedimento, deficiência e incapacidade -- Programas de reabilitação global --
Condicionamento físico em reabilitação -- O ajustamento psico-social no
processo de reabilitação -- Ajustamento à vida de trabalho --Hábitos, atitudes e
comportamentos--A adequação pessoal e seu significado -- Adequação
pessoal-fator decisório na integração social -- Anexo I (Indicativo para
Identificação de Comportamentos) -- Anexo II (Lista de Comportamentos ou
Hábitos Inadequados).
Capítulo Quarto
Preparo para a Vida de Trabalho
Aconselhamento para a vida de trabalho (Características pessoais,
experiência educacional e profissional, aptidões e potencialidades, interesses,
capacidade física, capacidade mental) -- Avaliação e ajustamento ao trabalho
(potencial do indivíduo para o trabalho, significado para o indivíduo, o processo
de ajustamento à vida de trabalho, a importância dos instrumentais de
avaliação) -- O treinamento profissional em programas de reabilitação--
Colocação em emprego--Anexo I (Relatório de Aconselhamento em
Reabilitação-instrumental) -- Anexo II (Relatório de Avaliação Inicial-
instrumental)--Anexo III (Relatório Evolutivo do Caso-instrumental).
Capítulo Quinto
Equipes de Reabilitação nos Programas de Hoje ...
trabalho de equipe em reabilitação--As garantias para um verdadeiro trabalho
de equipe --A liderança de uma equipe de reabilitação--A ausência da
coordenação formal de uma equipe -- As dificuldades principais em coordenar
uma equipe--Problemas típicos encontrados num trabalho de equipe (falta de
confiança e respeito mútuos, excesso de importância à própria atuação,
desconhecimento das demais profissões, falta de atitudes de cooperação
sistemática, comportamentos inadequados numa equipe, falta de experiência
em trabalho de equipe, estilo inadequado de relatório, metodologia de
cooperação quase inexistente, jogos de prestígio e de poder e seus malefícios,
ausência de uma boa política de pessoal)--A necessidade de tratamento global
do cliente --Superposição de atividades em equipes de reabilitação -- O
trabalho de equipe: perspectivas.
Capítulo Sexto
A Avaliação e o Controle nos Programas de Reabilitação...
Os profissionais envolvidos em reabilitação--A falta de especialização e suas
conseqüências--Métodos de avaliação em centros de reabilitação- Modelos de
avaliação--Sistemas de avaliação (O “público” em geral, o "público" financiador,
o "público" clientela, o "público" das famílias da clientela, o "público" das
entidades) - Conseqüências de uma avaliação (decisão política, decisão
estratégica, decisão tática) –Controle num centro de reabilitação--Sistemas de
controle utilizáveis em centros de reabilitação--Características do sistema de
controle.
Bibliografia da Segunda Parte...
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Porteiro egípcio com deficiência física ...
Harpista cego no Antigo Egito ...
Soberano assírio cegando prisioneiros de guerra...
Paralítico de Cafarnaum apresentado a Jesus.................
Ulisses consultando o cego adivinho Tirésias........
Mosaico de Lescar (França)--Homem com deficiência física . . .
Coluna de Trajano--Atendimento a feridos em batalha ....
Exorcismo de um catecúmeno com deficiências físicas .....
Castigo na Idade Média: amputação de mão ..........
Negociações com cruzados--Ancião com muletas........
Hanseniano e deficiente físico impedidos de entrar em cidade . .
Meios de locomoção e transporte de pessoas com deficiências . .
O transporte de pessoas deficientes no século XVI ..........
A mão artificial do pequeno Lorenense ..........
Cegos, deficiente físico e um dos famosos "Sabouleux" . .
Mendigos com deficiências no período pós-Renascença.
Restos da batalha de Lens - soldados com deficiências. . .
Deficiente físico vindo da Guerra do Paraguai .....
A ORAÇÃO DA PESSOA DEFICIENTE
Pedi a Deus forças para poder realizar muitas coisas
E fui feito fraco para poder aprender humildemente a obedecer;
Pedi-lhe ajuda para que eu pudesse fazer coisas grandiosas
E foi-me dada a enfermidade para que eu pudesse fazer coisas melhores;
Pedi riquezas e bens para que eu pudesse ser feliz,
Foi-me dada a pobreza para eu poder ser sábio;
Pedi poderes a fim de receber a admiração dos homens,
Foi-me dada a fraqueza para eu poder sentir a necessidade de Deus;
Pedi-lhe tudo o que fosse necessário para eu gozar a vida
E foi-me dada a vida, para eu poder gozar de todas as coisas.
Eu não obtive nada do que havia pedido,
Mas recebi tudo o que eu havia almejado.
A despeito de mim mesmo quase,
Minhas silenciosas preces foram atendidas.
E dentre todos os homens
Sou o mais ricamente abençoado!...
(Autor desconhecido - Texto divulgado pelo Institute of Rehabilitation
Medicine da New York University e pela Abilities, Inc. de Albertson - Long
Island-NY EUA)
APRESENTAÇÃO
Para reforçar a credibilidade em torno do que dizem, certos catedráticos
costumam se apresentar dizendo que têm tantos anos de cátedra, de cadeira.
Se isto ajuda na apresentação de "A EPOPÉIA IGNORADA", direi que tenho
quase vinte anos de . . . cadeira de roda! Direi também que este é o livro que
gostaria de ter lido logo no início de minha pequena epopéia. Quantas
dificuldades teria superado com menos lágrimas e decepções não tantas! E
quantas palavras teriam poupado comigo alguns médicos, psicólogos e
fisioterapeutas, se também eles tivessem lido obras como esta! Mas obras
como esta, tão completa, humana, formativa e informativa sobre certas
deficiências que acompanham a Humanidade desde seu berço, não existiam . .
. até agora (É por isto, talvez, que existem tantos deficientes, físicos e
sensoriais, incapazes de conviver mais naturalmente com suas deficiências).
Mas agora chega Otto Marques da Silva com a História na mão. E a História é
mestra. (Aqui ela ensina que, se é duro constatar que perante a paraplegia, por
exemplo, a medicina tradicional ainda é aprendiz, ensina também - e com muito
jeito e humanismo - a evitar decepções e conviver dignamente com tais
deficiências). Otto nos leva pela mão através da História da Humanidade e nos
faz conhecer gente que, sem condições físicas, fizeram capítulos importantes
da História. Competência para isso o Otto tem: formado pela Universidade
Católica de São Paulo e pela Universidade de New York na área de Serviço
Social e de Reabilitação, contratado pela Organização das Nações Unidas
como especialista nesses assuntos, trabalhou em colaboração com programas
de 29 países na implantação de projetos para a reabilitação profissional de
pessoas deficientes.
Atualmente Otto é Diretor executivo da SORRI-SÃO PAULO (Sociedade
para a Reabilitação e Reintegração do Incapacitado: "uma experiência que deu
certo").
Já que me coube a honra de apresentar "A EPOPÉIA IGNORADA",
aproveito a oportunidade para convidar meus colegas deficientes físicos e,
sobretudo, os profissionais ligados à saúde, a tornarem menos ignorada esta
grande epopéia que é a reabilitação e reintegração da pessoa à sociedade. E
meus agradecimentos a você, Otto,
por este importante trabalho, e à União Social Camiliana por tê-lo editado.
INTRODUÇÃO
Uma boa porcentagem de nossa população ficou muito surpresa com dados
divulgados por todos os meios de comunicação ao final de 1980 quanto ao
universo das pessoas que viviam as conseqüências de males incapacitantes,
tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Esse esforço de divulgação
aconteceu devido aos preparativos para 1981, o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes. Até então muito pouca divulgação tinha ocorrido quanto à
verdadeira extensão de problemas dessa natureza e de repente atirava-se à
população uma assustadora porcentagem: 10% de nossa população têm
deficiências!
Enquanto muitos espantavam-se com o incrível volume de pessoas
envolvidas na questão de deficiências físicas, sensoriais, orgânicas e mentais,
os céticos, que estão sempre muito desconfiados de porcentagens mal
calculadas e por vezes improvisadas para assustar os incautos, não chegaram
a se impressionar. Comentavam eles, que se essas estimativas mal
fundamentadas fossem rigorosamente levadas a sério, nem 10% de nossa
população estaria livre de problemas graves ou de estigmas, tais como
alcoolismo, abuso de drogas, prostituição, deficiência mental, psicopatia,
neurose, tuberculose, tensão grave, cegueira, surdez, reumatismo, câncer,
tantas são as porcentagens alegadas.
Pode bem ser verdade que não temos 10% de nossa população com
deficiência certamente que poderemos ter mais ou ter menos! Não há dados
oficiais a respeito, não sendo possível contestar ou confirmar. A precisão da
cifra, que não passa de uma estimativa internacional para dar o toque inicial a
uma campanha de conscientização, não tem muita relevância, na verdade. O
que importa é que todos fiquemos muito cônscios das dificuldades sentidas
pelas pessoas que não têm a capacidade máxima de uso do seu corpo ou de
sua inteligência, ao tentar seu pequeno lugar ao sol. E mais ainda, é
fundamental que todos saibamos que um bom volume de providências para
eliminação das desvantagens que elas sentem depende do envolvimento de
cada um, individualmente, e não apenas de figuras abstratas e impessoais de
"entidades" ou do "governo".
Na verdade, essas estimativas mundiais,que foram divulgadas por
documentos formais da ONU e de suas Agências Especializadas, têm alertado
muita gente para a existência de um certo percentual de pessoas que são
marginalizadas injustamente devido a problemas físicos ou mentais, todas elas
detentoras de seus direitos fundamentais como seres humanos que são.
Todos aqueles que sentem na própria carne essa rejeição e que tem
parentes ou amigos nessa situação, abismam-se com a lentidão incrível de
reação da sociedade como um todo em aceitar sua parcela de
responsabilidade na solução desses problemas, sem atinar com as causas
dessa espécie de imobilismo. Alega-se sempre falta de informações oficiais,
falta de um posicionamento político, falta de condições para o estabelecimento
de prioridades por parte dos órgãos do governo. E justifica-se a falta de um
envolvimento maior chamando a atenção para o vasto programa de reabilitação
profissional mantido pelo INPS em muitas capitais e cidades maiores do Brasil
e seus suntuosos e caríssimos centros de reabilitação que dão atendimento
apenas a casos de acidentados do trabalho.
No entanto, não é só por inexistirem informações precisas que a nossa
sociedade quase que ignora o problema. Há, bem no fundo, um sentimento
velado de rejeição contra tudo o que é diferente, que é "defeituoso" e que
causa certo mal-estar. Rejeita-se, afasta-se do convívio de um lado, mas
procura-se também, de outro, manter algumas organizações que se dedicam
ao problema sob pretextos os mais variados. Alguns trabalham e lutam pela
causa das crianças carentes e portadoras de deficiências porque têm um
parente com deficiência; outros o fazem devido a uma formação profissional;
outros envolvem-se para recuperar investimentos financeiros em pequenos
centros de finalidade lucrativa. E, embora em número reduzido, encontraremos
também aqueles que se dedicam ao trabalho com pessoas deficientes devido a
um posicionamento pessoal sério e muito bem pensado.
Precisamos, todavia, ceder à evidência e reconhecer que faltam requisitos
básicos para o desenvolvimento seguro de programas mais significativos do
que aqueles que nossa sociedade tem mantido. Dentre esses requisitos
inexistentes destacamos o seguinte: não há entre nós uniformidade e solidez
de conhecimentos quanto à seriedade da situação, mesmo entre algumas
pessoas mais envolvidas. Há por vezes uma noção deturpada quanto à
realidade dos problemas e suas melhores e mais recomendáveis soluções por
parte daqueles que são detentores de condições para muito sérias tomadas de
posição e que certamente poderiam dar às pessoas deficientes tudo aquilo de
que elas precisam para uma participação social efetiva.
Aqueles que trabalham em programas reabilitacionais de caráter global ou
que têm uma formação técnica adequada detectam com muita precisão
atitudes descabidas, programas superados, posicionamentos desastrosos, que
levam à confusão, ao fracasso técnico, ao descrédito e, pior do que tudo, ao
atendimento falho e inadequado.
A análise do quadro completo da evolução, do progresso ou do retrocesso
no atendimento a pessoas deficientes no Brasil é uma tarefa impossível,
enquanto que um simples olhar para o futuro poderá nos parecer nebuloso e
sinistro, se algo de decisivo não for feito com urgência. Talvez o que realmente
poderá nos ajudar seja um olhar demorado para o passado, pois sempre houve
pessoas deficientes no mundo e as que sobreviveram fizeram-no de alguma
forma com a ajuda de alguém, além de um enorme esforço pessoal.
A sobrevivência das pessoas com deficiências aqui no Brasil e em boa parte
do mundo, na grande maioria dos casos, tem sido uma verdadeira epopéia.
Essa epopéia nunca deixou de ser uma luta quase que fatalmente ignorada
pela sociedade e pelos governos como um todo--uma verdadeira saga
melancólica--assim como o foi em todas as culturas pelos muitos séculos da
existência do homem. Ignorada, não por desconhecimento acidental ou por
falta de informações, mas por não se desejar dela tomar conhecimento.
Ao tentarmos voltar no tempo, todavia, algumas questões afloram de
imediato: O que pensavam nossos antepassados distantes de pessoas que
tinham defeitos físicos ou problemas mentais? O que faziam as sociedades
hoje inexistentes com pessoas portadoras de deficiências?
E talvez as suposições do que seriam as respostas a essas perguntas
indiquem uma certa posição nossa cultural, ou quem sabe pessoal, velada,
secreta, muito íntima - e preconceituosa!
Muitas outras perguntas podem ser levantadas, como, por exemplo: Qual
tem sido o destino de crianças nascidas com deformações entre culturas
primitivas que ainda hoje existem? Qual terá sido o destino de soldados com
seus braços ou mãos decepados nos violentos combates corpo a corpo das
campanhas romanas, gregas, egípcias, hebréias? Como foi possível a alguns
poucos homens passar para a História, apesar de suas deficiências? Mesmo
que poucos, o que tornou esses homens e mulheres diferentes para serem
aceitos, assimilados e respeitados?
Anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações
traumáticas, doenças graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de
natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria
humanidade. Através dos muitos séculos da vida do homem sobre a Terra, os
grupos humanos de uma forma ou de outra tiveram que parar e analisar o
desafio que significavam seus membros mais fracos e menos úteis, tais como
as crianças e os velhos de um lado, e aqueles que, vítimas de algum mal por
vezes misterioso ou de algum acidente, passavam a não enxergar mais as
coisas, a não andar mais, a não dispor da mesma agilidade anterior, a se
comportar de forma estranha, a depender dos demais para sua movimentação,
para alimentação,
para abrigo e agasalho.
Muitos dos que começam a estudar o assunto deduzem apressadamente
que o indivíduo doente, deficiente ou portador de um problema sério qualquer,
era exterminado pelo grupo primitivo. Outros acham que não. Apresentam
como prova eventual o aparecimento e a evolução da medicina, a existência de
esqueletos com sinais de fraturas solidificadas e o achado de crânios
trepanados.
O levantamento histórico apresentado na primeira parte desta obra, cobrindo
desde os tempos sem registro da Pré-História até o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes (1981) não teria muita utilidade nem justificativa sem
objetivos mais amplos e mais ambiciosos. Ele poderá, por exemplo, levar a um
entendimento de certas atitudes e de muitas das preocupações de nossos dias
quanto a deficiências que atingem o ser humano, pois de acordo com a incisiva
afirmação do historiador Will Durant, "o estudo da Antigüidade perde o valor,
exceto quando se torna um drama vivo, ou quando lança luz em nosso viver
contemporâneo".
Há, no entanto, outros motivos para o trabalho apresentado na primeira parte
deste livro, e dentre eles um poderá ser expresso com palavras escritas por
Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século da Era Cristã: "Aqueles que
se determinam a escrever história a isso nem sempre são levados pela mesma
razão". E, ao alinhar algumas dessas possíveis razões, indica como última a
seguinte: “... e outros, por fim, o fazem porque não podem tolerar que coisas
dignas de serem conhecidas fiquem sepultadas no silêncio".
No entanto, não é apenas a curiosa, tocante e por vezes trágica referência
histórica que tem relevância neste trabalho sobre as pessoas deficientes no
mundo de ontem e de hoje. Ressaltemos que, dentre os variados aspectos de
toda a questão que não podem de maneira alguma ficar "sepultados no
silêncio", esquecidos, deturpados ou minimizados, estão aqueles que retratam
a maneira como a humanidade de hoje vê as pessoas portadoras de
deficiências e também aqueles relacionados com os caminhos novos -
técnicos, bem cuidados e criteriosos da chamada "reabilitação" - para colaborar
com essas mesmas pessoas para poderem ser inseridas em determinado
contexto, assumindo seu papel com dignidade e competência.
PRIMEIRA PARTE
A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM
E DE HOJE
"Toda filosofia depende da História" (Nietzsche)
"O estudo da antigüidade perde o valor, exceto quando se torna um drama
vivo, ou quando lança luz em nosso viver contemporâneo" (Durant)
CAPÍTULO PRIMEIRO
A PESSOA DEFICIENTE NO MUNDO PRIMITIVO
Se tomarmos, como elemento de classificação das diversas etapas da vida
do homem sobre a Terra, o material principal e mais relevante com que
procurava ele fabricar todos os seus utensílios e instrumentos destinados à sua
sobrevivência e conforto, poderemos dividi-las em:
-- Idade da Pedra Lascada
-- Idade da Pedra Polida
-- Idade do Bronze
-- Idade do Ferro.
A Idade da Pedra Lascada corresponde a uma boa parte do também
chamado Período Paleolítico -- uma vastidão de tempo, com milhares de
séculos muito obscuros, iniciados provavelmente há mais de um milhão de
anos atrás. A Idade da Pedra Polida já corresponde aos Períodos conhecidos
como Mesolítico e Neolítico, isto é, a épocas correspondentes a 10.000 anos
antes da Era Cristã até 2.500 a.C.
Os tempos que costumamos chamar de históricos começaram a ser
vislumbrados com a Idade do Bronze e definidos com a Idade do Ferro.
Essas Idades ou Períodos indicam graus de desenvolvimento e não
necessariamente períodos cronológicos da história do homem sobre a Terra.
Esses graus de desenvolvimento, nos quais alguns poucos povos até hoje
existentes encontram-se mergulhados por milênios, foram por vezes atingidos
com rapidez por algumas raças.
Para ilustrar essa disparidade de momentos de desenvolvimento basta
lembrar que, enquanto os egípcios já viviam na Idade do Ferro, os gregos
estavam vivendo sua Idade do Bronze e as tribos bárbaras do norte europeu
viviam na Idade da Pedra Polida. Em regiões onde a natureza sempre foi mais
pródiga e o tempo mais acolhedor e ameno, a velocidade do desenvolvimento
foi muito menor. Ainda hoje vemos em zonas tropicais ou temperadas do globo
terrestre -- inclusive no Brasil - povos que vivem vidas altamente primitivas e
sem qualquer contato com a civilização, como homens das Eras Mesolítica e
Neolítica.
- *O homem neolítico no Brasil de hoje.*
"No dia 8 os kranhacãrores estão de volta ao mesmo local. Nova correria no
acampamento. Orlando, que havia rumado para lá logo que soube do primeiro
contato, apanha os presentes e corre para a canoa. Avança lépido pela picada,
apesar do corpo volumoso e apesar de quase não enxergar com um olho,
operado de catarata. A canoa sai carregada de gente. Os kranhacãrores estão
na outra margem, a 100 metros. Entre a canoa e os kranhacãrores, 100 metros
de água e 30.000 anos de cultura. É o homem que já ronda as estrelas, atrás
do seu irmão da Idade da Pedra Polida" ... "entre os presentes há um machado
que o kranhacãrore mais jovem apanha e examina com curiosidade. Solta um
grito, interpretado como de contentamento e vai para junto de uma árvore.
Ergue os braços rígidos e vibra um golpe vigoroso, soltando outro grito. O
machado escorrega de suas mãos, indo parar perigosamente perto de seu pé".
"E se o kranhacãrore se ferir e interpretar aquilo como uma artimanha dos
brancos? é o que a maioria pensa. Mas nada acontece. O kranhacãrore ergue
o machado novamente e encaixa um golpe profundo no tronco. A pancada
ecoa pela mata e o kranhacãrore dá o grande salto da Idade da Pedra para a
Idade do Bronze" (in "Realidade", de abril de 1978, reportagem e texto de Luigi
Mamprin).
- *As primeiras civilizações do mundo.*
As primeiras civilizações de alguma sofisticação começaram a desenvolver-
se nas proximidades dos rios e em especial junto aos grandes rios que
banhavam terras planas e de boa qualidade, tais como o Eufrates, Tigre, Nilo,
Ganges, Amarelo e Indo.
Foi exatamente ao longo desses grandes rios que, no ponto do Oriente
conhecido como "Crescente Fértil" - situado entre o norte da África e o Oriente
Médio -- logo distinguiram-se muitos grupos humanos que, devido às
características de então e ao seu isolamento quase que contínuo, além de um
incontido receio pelo desconhecido, formaram as primeiras civilizações:
egípcios, assírios, babilônios, hebreus, fenícios, mesopersas e outros.
Do Oriente, as facilidades de vida individual e de grupo conhecidas por nós
como civilização foram levadas muito vagarosamente para o Ocidente, tendo
chegado primeiramente à Grécia, antes de chegar a Roma, o que sucedeu
diversos séculos depois. De Roma elas foram levadas também às regiões mais
ocidentais da Europa, tendo afinal chegado ao Novo Mundo e à Oceania.
1. O Alvorecer da Humanidade.
Nada de concreto existe quanto à vida de pessoas com deficiências físicas
ou mentais, do velho e do doente nos primeiros nebulosos e muitas vezes
enigmáticos milênios da vida do homem sobre a Terra, a não ser supostas
situações que estão baseadas em indícios extremamente tênues. É evidente
que fatos concretos ou situações comprovadas de vida, em toda a fase pré-
histórica da História da Humanidade, são impossíveis de serem estabelecidos,
mesmo com o magnífico concurso dos sábios que dominam muito bem toda a
ciência arqueológica e áreas afins.
Poderemos, sim, tentar imaginar o ambiente de então e o que ele poderia
significar para a sobrevivência dos grupos humanos como um todo, elaborando
um pouco quanto às hipotéticas situações a serem enfrentadas por um
eventual portador de alguma deficiência limitadora de suas funções básicas
daquelas mesmas épocas.
- *Os males incapacitantes de sempre*
Lembremo-nos de início que muitos dos males incapacitantes de hoje
sempre existiram, desde os primeiros dias do homem sobre a Terra. Muitos
deles por muitos milênios foram fatais devido à falta de recursos no seio das
populações primitivas. Apesar de nos encontrarmos diante da impossibilidade
de citar com segurança os males que rapidamente deterioravam a vida do
homem pré-histórico, ainda achamos válido, apenas para ajudar nossa
imaginação e nosso raciocínio, anotar mentalmente que os seguintes males
sempre foram e sempre serão muito sérios para a sobrevivência do homem, ou
para sua integração ao seu grupo principal como elemento participante:
-- Amputações em vários níveis e membros
-- Artrites em suas várias caracterizações
-- Cegueira ou limitações de visão
-- Defeitos de nascimento ou malformações
-- Surdez ou reduções graves de audição
-- Afasia ou problemas de comunicação oral
-- Desordens sanguíneas graves
-- Problemas cerebrais
-- Câncer nas muitas de suas caracterizações
-- Queimaduras em vários graus e localizações
-- Desordens cardíacas de gravidades diversas
-- Paralisia cerebral de intensidades diversas
-- Fibrose cística
-- Problemas de abuso de medicamentos ou de álcool
-- Epilepsia
-- Diabete
-- Problemas renais
-- Doenças mentais das mais variadas intensidades
-- Deficiências mentais nos variados graus
-- Esclerose múltipla
-- Distrofia muscular
-- Gota em suas manifestações mais graves
-- Desordens neurológicas diversas
-- Fraturas e problemas ortopédicos os mais variados
-- Problemas respiratórios e/ou pulmonares
-- Paralisias (paraplegia, tetraplegia, hemiplegia)
-- Doenças venéreas
-- Fissuras lábio-palatais
-- Hemofilia
-- Síndromes incapacitantes diversas
-- Hanseníase
-- Paralisia infantil
-- Incapacidades múltiplas
-- Doenças crônicas
-- Doenças dermatológicas transmissíveis
-- Idade avançada
Para vários dos males indicados poderemos de alguma forma imaginar as
soluções dadas durante aquelas longínquas épocas, por paralelos ou
comparações que fazemos com populações de cultura primitiva ainda
existentes. Para alguns males é muito difícil elaborarmos qualquer quadro,
como em casos de ósteoartrite. Existe evidência de sua ação não só no
esqueleto de um homem de Neanderthal, de mais de 40.000 anos atrás, mas
também de sua devastadora existência em dinossauros do período Mesozóico.
- *O ambiente físico*
Há muitos milhares de anos o homem vivia desprotegido num mundo hostil,
habitando em abrigos naturais de pedra ou em cavernas. O número dessas
cavernas era exíguo para toda a humanidade francamente em expansão e às
vezes imobilizada por invernos rigorosos. É praticamente certo que as
melhores e mais protegidas cavernas foram sendo ocupadas e defendidas por
muitas gerações de um mesmo grupo.
Dentre os primeiros habitantes de cavernas que povoaram esparsamente a
Europa pré-histórica, devemos destacar o Homem de Neanderthal, que viveu
há uns 70.000 anos. Pelos achados ocorridos em cavernas da Europa
utilizadas naquelas épocas, podemos chegar a algumas conclusões. Uma
delas é que em geral tratava-se de grupos humanos que adotavam cuidados
básicos muito rudimentares com tudo. Em boa parte dos casos estudados,
eram seres humanos pouco dados à ordem ou à limpeza de seus ambientes.
Praticamente tudo o que utilizavam ou que deixavam de usar por ser
considerado como inútil, e mesmo restos de animais devorados eram jogados
fora em cantos das cavernas habitadas, o que levava à formação gradativa de
camadas de depósitos de detritos, incluindo neles pedaços de armas, ossos,
cinzas de fogueiras destinadas ao aquecimento ou ao preparo de alimentos.
Algumas das cavernas utilizadas pelo homem primitivo eram grandes,
escuras e um tanto tenebrosas, mesmo para os dias de hoje. Mas seus
ocupantes viviam apenas nas áreas próximas à entrada, como bem o
demonstram os estudos arqueológicos. Lá eles se sentiam não só protegidos
do vento, da chuva, do calor e do frio, como também das incertezas da noite,
das grandes tempestades, dos animais ferozes e dos inimigos que
continuamente procuravam desalojá-los.
Os homens hoje conhecidos como Cro-Magnon, surgidos ao final da Idade
do Gelo há mais ou menos 30.000 anos e muito parecidos com algumas raças
de homens da atualidade, começaram a povoar esparsamente diversas partes
da Europa, pois aos poucos tinham conseguido explorar e descobrir locais mais
longínquos de seus abrigos originais, permanentemente ameaçados por tribos
rivais. Tinham aprendido a construir abrigos provisórios de peles de animais
abatidos e tinham também descoberto sítios mais adequados para caçadas
mais promissoras. Esses foram os homens que começaram a documentar o
mundo que os cercava, os animais que caçavam ou que os ameaçavam nas
caçadas sem fim, para as quais plena agilidade, força e domínio do corpo eram
fundamentais, num esforço de grupo. Bisões, mamutes, ursos, velozes javalis e
ágeis cervos foram desenhados, entalhados e mesmo pintados com
pormenores de cores vivas em pedras, pedaços de osso, paredes e tetos das
cavernas. Esses desenhos e peças entalhadas são encontradiços
principalmente nas cavernas ao sul da França e ao norte da Espanha.
O interessante é que essas obras, em quase sua totalidade, não estão nem
foram encontradas na boca das cavernas, mas em pontos bem mais afastados
do ambiente habitado, e às vezes à beira de grandes buracos, em pontos de
difícil acesso até para os nossos recursos de hoje, inclusive nos tetos das
cavernas.
Para lá trabalhar nas muitas horas e dias de dedicação à obra, durante os
longos invernos, o supersticioso homem primitivo certamente precisou primeiro
vencer o medo que sentia pela escuridão sempre povoada por seres
tenebrosos e o próprio ambiente mais profundo e misterioso das cavernas que
refletiam sombras confusas à luz de tochas fumarentas.
Junto aos desenhos desses bisões e demais animais da época, existem
contornos de mãos -- muitas mãos --inclusive diversas com dedos visivelmente
em falta!
- *Os desafios para a vida do homem primitivo*
Dentre os principais problemas enfrentados pelo homem pré-histórico para
poder sobreviver, estavam não apenas o abrigo e o aquecimento durante os
meses de inverno ou durante as intempéries, mas também as dificuldades,
quase que diárias durante as épocas mais quentes do ano, para obter alimento
fresco. Ele não dispunha de meios para manter em bom estado de
conservação para consumo a carne dos animais caçados nos dias de muito
calor, enquanto que durante os meses de inverno a caça tornava-se rarefeita e
ele mesmo dispunha de poucas condições para sobreviver por longos períodos
de tempo fora de seus abrigos.
O homem das Épocas Paleolítica e Mesolítica praticamente não plantava e
não dispunha de animais domesticados, tais como os bovinos e eqüinos, que
poderiam ser sacrificados para resolver o problema da falta de caça para
alimentar o grupo. Além disso, ele dependia quase que exclusivamente da caça
de certos animais muito cobiçados, se quisesse garantir peles quentes e
adequadas para cobrir seu corpo e proteger seus pés durante o inverno, sem o
que não conseguiria expor-se por longo tempo ao frio para matar animais
atentos e muito velozes.
Assim, durante muitos milênios dominando apenas armas de curto alcance,
não há dúvida que os requisitos básicos para a atividade principal, que era a
caça, eram a sua inteligência muito superior à dos animais cobiçados, a
capacidade de atuar em grupos bem coordenados e criativos e . . . uma
capacidade física total. Dessa forma, é muito difícil imaginarmos como um
homem ou uma mulher poderiam sobreviver naquelas remotas eras com uma
deficiência física muito limitadora.
Mas o homem primitivo aprimorou suas condições de vida e já na época
Neolítica (há aproximadamente 10.000 anos), em parte graças ao gradativo
término da chamada Idade do Gelo e à progressiva e amena mudança de
temperaturas nas várias regiões do globo terrestre, notamos que ele começou
a ter melhores condições para explorar por muito mais tempo territórios jamais
trilhados, com suas campinas, florestas e rios. Foi exatamente o homem
neolítico que conseguiu tornar a caça muito mais racional, montando
armadilhas, redes, chegando mesmo a construir represamentos de riachos
para obtenção mais fácil de peixes para seu consumo. E, avanço muito
significativo, inventou armas de mais longo alcance. Foi ele também que
começou a solidificar o grupo familiar, que acabou por se tornar uma unidade
social básica. Foi igualmente esse primitivo homem neolítico que tornou mais
elaborada a idéia de um Deus ou das muitas divindades, e mesmo de seu culto
e das religiões. Em suas explorações longínquas encontrou, talvez com
surpresa, novos grupos de homens e com eles misturou-se. Segundo nos
relatam especialistas no assunto, foi o homem neolítico que se organizou em
grupos mais heterogêneos e que certamente começou a desenvolver uma
primitiva, mas marcante, consciência social.
- *O cuidado para com doentes e a incipiente medicina*
Como das demais Épocas, desta Época Neolítica também não temos dados
ou sinais de qualquer significado quanto ao problema causado pelas eventuais
incapacidades físicas ou mentais em membros dos vários grupos humanos, a
não ser presumirmos que, não só com um paciente e sempre muito curioso
olhar, comparar e também estudar o comportamento animal (por exemplo, a
absoluta solidariedade dos elefantes para com seus membros feridos), mas
com o despertar dos vínculos mais fortes de ordem familiar, e com o
surgimento da consciência social, o homem começou a atuar diferentemente.
Já havia a linguagem falada em plena evolução e mais, a idéia de um ser
superior - ou seres superiores - ainda de caráter punitivo e severo, o que talvez
tenha levado o homem primitivo a melhor considerar as pessoas adoentadas,
as acidentadas em atividades de caça e pesca, as vitimadas por ciladas ou
agressões de grupos rivais. Provavelmente dessas não registradas épocas da
vida do homem sobre a Terra foram surgindo os primeiros passos para uma
medicina não só de medicamentos provenientes de plantas, frutos e alguns
minerais, mas também as primeiras tentativas cirúrgicas mais sérias. Dedos
das mãos amputados, não se sabe por que causas, já haviam surgido por
milhares de anos em desenhos das cavernas habitadas.
Ao final da Época Mesolítica, passando aos poucos para a Neolítica,
amputações de pés, de mãos e também a incrível cirurgia craniana conhecida
como "trepanação", com a comprovada sobrevivência do "operado", foram
realizadas, conforme indicam achados da época.
Facas, serras, instrumentos pontiagudos haviam surgido para utilização nas
atividades principais relacionadas à alimentação e vestuário de todo o grupo.
Talvez que de sua contínua utilização para esquartejamento de caça, retirada e
preparo de suas peles, divisão das carnes em pedaços menores e mesmo
preparo de algumas armas, tenha surgido a idéia de, com cuidados bem
maiores, usá-los para intervenções cirúrgicas.
O homem primitivo que se dedicava à arte de aliviar dores, estancar sangue
e mesmo curar males, tinha seus conhecimentos de anatomia derivados
exclusivamente da observação constante e da contínua e necessária atuação e
experimentação. Essas experiências foram sendo acumuladas por alguns
homens considerados como especiais, depois chamados de feiticeiros, magos,
druidas, pajés, além de seus auxiliares e foram sendo passadas de geração
para geração, de grupo para grupo, de milênio para milênio, propagando-se e
enriquecendo-se continuamente.
Na Época conhecida como Neolítica, ou seja, aproximadamente 8.000 anos
atrás, o homem descobriu muitos dos segredos básicos da natureza, da vida e
da própria terra, tais como a domesticação de animais e a agricultura. Assim, a
vida de cada grupo foi-se tornando cada vez menos difícil e menos perigosa
uma vez que esse domínio maior do ambiente que o cercava acabava por não
exigir grandes riscos de vida para garantir a sobrevivência pela caça quase que
diária.
O homem tornou-se dono de sua vida, de seu relativo bem-estar e de seu
futuro, embora ainda vivendo em situações bastante precárias, como diversas
das raças primitivas de hoje que ainda vivem como homens neolíticos.
- *As fraturas na Pré-História*
Membros fraturados certamente que eram tratados à semelhança da forma
como animais superiores o fazem, muito mais por instinto do que por
conhecimento de causa ou raciocínio, descansando a parte afetada ou
deixando de utilizá-la. Provavelmente ainda na Era Paleolítica, durante a qual o
homem esteve mais do que nunca sujeito a grandes quedas e a pancadas
violentas, seja de inimigos portadores de armas contundentes, seja de animais
acuados durante uma caçada, a própria vitima ou seus companheiros aliviariam
o membro atingido com uma primitiva imobilização, por meio de pedaços de
ramos de árvores ou pequenos arbustos atados por tiras de couro de animal,
tufos ou cordas de capim, de cascas de árvores ou de outra natureza.
Segundo o Dr. Edgard M.Bick, citado por Agüero, o homem pré-histórico que
inventou a imobilização de um membro fraturado mereceria a mesma honra e
teria os mesmos méritos que aquele que idealizou a roda ou que descobriu a
forma de fazer e de controlar o fogo.
Logo antes de partir para uma caçada ou para uma operação guerreira, os
homens pré-históricos reuniam-se ao redor do fogo, em algum tipo de
cerimônia religiosa, que certamente demonstrava a importância e o significado
do empreendimento. Nessas atividades perigosas e muitas vezes
imprevisíveis, fraturas por golpes de clavas, patadas, quedas e mesmo pelos
azares do dia-a-dia eram freqüentes. E certamente devido a essa freqüência,
nas cavernas, abrigos e casas primitivas de então os acidentados já deveriam
contar com homens mais idosos que tinham experiência e que sabiam como
tratar com certo sucesso casos dessa natureza. Nas diversas cavernas
pesquisadas pelos arqueólogos, e nos locais onde foram encontrados muitos
esqueletos pré-históricos, vários ossos apresentam-se com fraturas
solidificadas e bem tratadas.
Esses ossos solidificados e com evidentes sinais de fraturas anteriores
foram estudados meticulosamente por cientistas diversos que notaram a
ocorrência maior e mais significativa de fraturas do ante-braço (radius). Nesses
esqueletos pré-históricos encontrados e analisados até hoje, podemos citar
sinais de fratura tratada em ossos de omoplata (em Vendreste), de tíbia
(encontrados em dólmens da África do Sul e em Meudon), do perônio (terço
superior), do fêmur (bastante comum), do húmerus, da clavícula e mesmo do
metatarso.
Em sua obra "La Médecine chez les Peuples Primitifs (Préhistoriques et
Contemporains)", Stéphen-Chauvet afirma que um grande estudioso dos
achados pré-históricos, o Dr. Raymond, pôde estudar um fêmur direito
encontrado numa gruta do vale Petit-Morin que havia sido fraturado em seu
terço inferior, e que apresentava um forte deslocamento. O fragmento inferior
tinha sua ponta, na linha áspera e quebrada, solidificada à extremidade baixa
do pedaço superior do fêmur, mas com grande desvio. Assim, o conjunto é
envolvido numa calosidade óssea de aproximadamente 20 cm de
circunferência, daí resultando um considerável encurtamento da coxa.
Todas essas fraturas mesmo a do metatarso chegavam a impedir o homem
primitivo da participação em atividades de caça ou de guerra praticamente
durante meses. Viviam com seus membros imobilizados - ou pelo menos não
usados - sobrevivendo na dependência dos demais. Eram, assim, transitórias,
mas seriamente deficientes.
No entanto, seja pelos dedos amputados, que podem ser notados nos
desenhos das cavernas habitadas, seja pelo exemplo da incrível calosidade
óssea com grande desvio da linha do fêmur e evidente encurtamento da perna,
tivemos na Pré-História pessoas deficientes que sobreviveram por muitos anos.
Como sobreviveu esse homem de perna com fratura solidificada com sério
desvio? Como conseguiu integrar-se ao seu grupo, e com que tipo de papel?
Sim, pois se não tivesse sido integrado, seus ossos não estariam na caverna
em que foram encontrados... Como participou, pelo resto de sua longa vida,
das atividades de sua família ou de seu grupo? Seu vulto, coxeando pelos
agrestes e perigosos caminhos, num ponto perdido da Pré-História,
permanecerá sem maiores explicações em nossa imaginação.
Além das providências de imobilização para os casos de fraturas, membros
ou partes do corpo atingidos por um golpe devem ter sido instintivamente
socorridos por massagens do próprio indivíduo, da mesma forma como certas
dores reumáticas podem ter sido aliviadas com o calor das fogueiras ou das
pedras aquecidas ao seu redor nas primeiras cavernas habitadas pelos grupos
humanos.
- *O que nos ensinam os ossos pré-históricos*
Os homens que se dedicam ao estudo de ossos pré-históricos têm
desenvolvido denodados esforços para a criação de uma nova especialidade: a
paleopatologia. Praticamente toda a especialidade aqui referida volta-se para
achados que indicam a existência de patologias incapacitantes. Seus estudos
não podem desconsiderar desenhos, estatuetas, relevos, além da análise
sistemática de ossos que apresentam anomalias.
A nova ciência da paleopatologia nos ensina que a doença e a deficiência
física são tão antigas quanto a própria vida sobre a Terra.
Pois bem, é a paleopatologia que nos diz que ossos de animais de todas as
épocas indicam a presença de distrofias - sejam elas congênitas ou adquiridas
- e lesões traumáticas ou infecciosas. Dentre os ossos encontrados na França,
na Espanha e na Argélia, existe mais de uma centena que apresenta
anomalias. Vejamos alguns exemplos mais marcantes:
a) Pythecanthropus Erectus - Existem poucos ossos do tipo conhecido por
esse nome científico: uma calota craniana, três dentes e um fêmur. O fêmur
apresenta uma espécie de tumor ósseo bem volumoso no terço superior,
próximo à sua cabeça, atribuído pelos estudiosos a uma fratura ou a um
aneurisma.
b) Homem de Neanderthal -- Há ossos do chamado Homem de Neanderthal
que apresentam traços de traumatismo. Há, por exemplo, no úmero esquerdo,
uma cicatriz que corresponde a uma lesão séria. No esqueleto desta espécie,
descoberto em Krapina, existe um sinal de fratura solidificada na clavícula. O
esqueleto de La Chapelle-aux-Saints mostra sinais de artrite deformante.
c) O esqueleto analisado por Raymond - O fêmur com grande desvio citado
mais atrás, foi descoberto por Raymond na gruta de Baye. É interessante notar
que ossos provenientes dessa mesma caverna apresentam, quase todos,
sinais de osteoartrite de natureza reumática. Segundo alguns especialistas,
essa afecção apresenta-se como um real obstáculo à boa solidificação de uma
fratura.
d) Homem Cro-Magnon -- A espondilose foi encontrada num esqueleto de
homem pré-histórico conhecido como Cro-Magnon. Trata-se de um mal de
efeitos muito limitadores, pois a espinha dorsal em geral fica com uma
curvatura bastante acentuada, a cabeça inclina-se para a frente e as coxas
flexionam-se.
e) Freqüência do reumatismo -- O reumatismo foi muito freqüente e
devastador na Pré-História. Havia casos que iam desde a chamada osteopatia
peri-articular, até a total imobilização do homem primitivo. Um exemplo
marcante é encontrado em ossos do Homem de Neanderthal, descobertos em
La Chapelle-aux-Saints, na França. Pela análise dos mesmos, especialistas
constataram sinais claros de articulações coxo-femurais com artrite seca e com
poli-artrite.
Na Era Neolítica a presença média do reumatismo é estimada em 20% dos
esqueletos ou ossos encontrados. A incidência do mal talvez esteja relacionada
à má qualidade da alimentação (que pode também ter causado muitos casos
de cegueira), devido a infecções e também devido à exposição à umidade e ao
frio. Convém que lembremos ter o homem primitivo vivido muito exposto às
alterações do clima, muitas vezes em cavernas cheias de umidade. Assim, os
casos de reumatismo não aconteciam apenas em faixas etárias mais elevadas;
ocorriam também muito antes dos 30 anos de idade (Ver Goldstein, Guthrie,
Gonzales, Stephen-Chauvet e Dastugue).
- *A origem dos males que afetavam os homens*
A rude e muito difícil vida do homem em seus primeiros milênios de
existência sobre a Terra não admitiam fraquezas. A doença e os acidentes
aconteciam, muitas vezes avassaladores e de muito rápido desfecho; mas por
vezes o homem vencia, e uma primitiva medicina -- se assim poderá ser
chamada -- ajudava com um socorro paliativo, cada vez mais eficaz, por meio
de homens observadores, muito voltados para os recursos da natureza e para
os misteriosos segredos do "desconhecido".
Afirmam Graña, Rocca e Graña Jr. em "Las Trepanaciones Craneanas em el
Perú en la Época Pré-Hispánica": "Se considera una doctrina plenamente
confirmada que el hombre primitivo, a través de todos los tiempos y en todas
las regiones del globo, observó las mismas creencias, iguales supersticiones y
atravesó por semejantes etapas de cultura".
"Y así, concurren a una interpretación común las leyendas y tradiciones más
remotas sobre el origen de las enfermidades. Ignoradas las causas reales, el
hombre invocaba lo ignoto y misterioso, lo invisible e palpable, o sea, el
concepto de los espíritos y la influencia de la divindad. Desde este punto de
vista el folk-lore médico es el mismo en todas las civilizaciones primitivas".
"Elocuente demonstración de estos hechos ofrecen ciertas prácticas
quirúrgicas registradas en la história de los pueblos más antiguos, y una de
verdadera significación y importância es, sin duda, el caso de las
trepanaciones craneales, realizadas desde muchos milenios anteriores a
nuestra era. Ya en el período neolítico se realizaba con extraordinaria
frecuencia esta grave y dificil intervención, juzgada" como la operación más
antigua de la cual existen huelas comprobadas". Como demonstración palmaria
de las ideas enunciadas antes, podemos aducir que dicha intervención en el
pasado lejano se llevó a cabo en las regiones más distantes de la tierra: Africa
y Asia, entre los "Chaouias" de la Algeria, las tribus Bere-Bere, que la practican
aún hoy. Se han
descubierto cránios horadados en Herzogovina, Montenegro Y Albania;
igualmente em las islas del Pacifico, la Malasia, Polinesia, Tahiti. En Nueva
Bretaria, en el Archipiélago de las Bismark; en diversos paises del
Mediterráneo, Itália, Francia. En Inglaterra y Austria; en las Islas Canarias y,
bien lo sabemos, en diversos paises de la América Del Sur, Perú, Bolivia y
Colombia".
É indiscutível que o homem pré-histórico procurava a origem das
enfermidades em crendices de natureza mística ou fantasiosa, mais de ordem
demoníaca ou resultante de atitudes punitivas das divindades ou seres
superiores. Apesar de podermos duvidar da profundidade ou da diversidade de
conhecimentos dos aplicadores da primitiva medicina, a eficácia de muitos
tratamentos é fato inquestionável.
Data, por exemplo, de tempos imemoriais a utilização de uma lama especial
para muitos casos de afecções cutâneas, bem como o uso de teias de aranha
em cortes e feridas, com resultados positivos, Embora ainda não fosse do
conhecimento do homem primitivo, hoje sabemos que os produtos naturais
indicados acima contêm uma espécie de elemento protetor quase tão eficaz
quanto a penicilina. Certamente que são surpreendentes para todos nós
conhecimentos primitivos quanto à eliminação da dor, ao estancamento de
sangue, à assepsia ou às técnicas operatórias, porque não há dúvida de que
de alguma forma eles existiram.
- *O tratamento primitivo e as deficiências*
Comprovadamente tanto a existência quanto o tratamento de males diversos
no seio das populações primitivas e pré-históricas sempre estiveram ligados à
magia.
A própria trepanação -- ou seja, a abertura de um orifício em alguma parte
do crânio -- indica uma crença primitiva quase que demonológica ou maligna
de origem desconhecida de certos males físicos ou mentais. No entanto, o
tratamento dos feiticeiros ou mágicos daquelas épocas incluía, além de
cerimoniais com evidente simbologia, providências de natureza objetiva, muitas
vezes hoje utilizadas em tratamentos de urgência ou tratamento médico
regular, como o calor, o frio, a sangria, os banhos, a sucção, dentre muitos
outros meios que apenas podemos imaginar.
Conforme referimos anteriormente, a massagem, certamente descoberta por
mero acaso num momento perdido de dor na história do homem, levava –
como sempre levou -- a uma sensação de alívio; assim também a proximidade
com o calor do fogo, ou o amortecimento em contato com o gelo ou neve. O
uso eventual de uma erva -- à semelhança do que fazem certos animais em
momentos de dor -- pode ter levado a alívios pouco esperados.
Cada povo ou cada tribo, por experiências acumuladas e por observações
próprias, foi desenvolvendo seus próprios meios de tratamento de males. Por
uma questão de sobrevivência da raça apenas, cuidados um pouco
diferenciados podem ter sido dados às mães e aos recém-nascidos -- desde
que perfeitos e, conforme as circunstâncias, desde que do sexo masculino. É
quase certo que uma criança nascida com aleijões ou aparentando fraqueza
extrema terá sido eliminada de alguma forma, tanto por não apresentar
condições de sobrevivência, quanto por crendices que a vinculavam a maus
espíritos, a castigos de divindades ou mesmo por motivos utilitários.
Os primeiros auxílios prestados pelos homens primitivos foram relacionados
a lesões do tipo traumático, como as feridas, os dilaceramentos causados por
pedras, espinhos, flechas, lanças, garras ou presas de animais caçados, todas
elas provocadoras de perda de sangue ou de fraturas. As circunstâncias da
ocorrência desses fatos ou acidentes certamente levaram os companheiros ou
a própria vítima a buscar na natureza que os cercava os remédios necessários.
A compressão normalmente feita pelas mãos e as proteções por ataduras
primitivas estavam incluídas nessas providências iniciais.
Ressaltemos que os homens pré-históricos, assim como os nativos de certas
tribos existentes hoje em dia, dispunham de armas de curto alcance, tanto para
caçar como para se defender, sendo a maioria delas de efeito contundente
(bastões, marretas, porretes, tacapes ou algo semelhantes). Essas armas e
seu uso contra outros homens também levavam à existência de contusões ou
de ferimentos sérios que nem sempre causavam a morte. Assim, seja durante
um ataque ou uma operação de defesa contra inimigos racionais, ou mesmo
durante uma caçada, o homem atingido por uma flechada, por uma pancada
mais forte ou por garras afiadas, era socorrido --como não poderia deixar de
ser -- pelos companheiros, que o abrigavam ou cuidavam dos ferimentos por
meios rudimentares e naturais, e o levavam de volta ao núcleo de habitação,
onde recursos maiores deveriam existir. Em alguns casos o indivíduo
gravemente ferido não falecia, mas podia ficar vitimado por uma seqüela
qualquer e se tornava limitado para a atividade principal da qual originalmente
participara: a caça ou a guerra.
- *O destino das pessoas deficientes na Pré-História*
O que sucedia a esse homem? Ele fora valente, respeitado e útil ao grupo,
mas a partir de então não tinha mais utilidade. Seria ele mantido pelo grupo na
esperança de voltar à atividade? Seria ele utilizado em funções menos
exigentes de perfeito domínio da força e do físico? Seria ele levado às planícies
ou às armadilhas para, num último gesto de colaboração com o grupo, servir de
isca para animais ferozes? Aceitaria ele funções menos briosas, ao lado de
mulheres e crianças?
Nada disso sabemos. Só conjecturas podem ser feitas e talvez com boas
oportunidades de estarem certas.
Lembremo-nos que, de acordo com o progresso lento da humanidade e o
gradativo domínio dos ambientes e da natureza, certas funções começaram a
existir: os fabricantes de cestos ou de armadilhas, os preparadores de peles
para vários fins, os fabricantes de esteiras e de vasos para armazenamento de
água, dentre muitas outras coisas. Por que um homem brioso, valente, lutador,
corajoso, não poderia ter sido usado para esses fins, seja provisoriamente, seja
permanentemente?
Dos períodos mais adiantados da Pré-História para os dias de hoje, na Era
Neolítica, vasos e urnas foram sendo decorados das mais variadas maneiras e
com os mais incríveis motivos. Foram encontrados em alguns desses vasos ou
urnas homens com evidentes sinais de deformidades de natureza permanente,
sendo algumas delas conseqüentes de mal-formações congênitas: corcundas,
coxos, anões e amputados. Isso nos indica que desde épocas as mais remotas
as deficiências e mesmo as deformidades de nascimento ou adquiridas por
traumatismos e doenças já eram um verdadeiro flagelo da humanidade.
Indicam-nos também esses objetos da primitiva arte neolítica que esses
homens sobreviviam até a idade adulta e poderiam ter algum valor, seja por
motivos de superstições, seja por real utilidade, para merecer sua
representação num utensílio permanente e de vital utilidade para os grupos
sociais de então.
2. Culturas Mesolíticas e Neolíticas mais Recentes
Muitos daqueles que se interessam por pessoas deficientes ou por grupos
minoritários em culturas pré-históricas e em culturas primitivas dos dias de
hoje, seja por falta de maiores informações, seja devido a uma projeção das
tendências subjetivas de cada um, consideram inevitável generalizar a
aplicação de procedimentos adotados por muitos séculos e defendidos até em
uma lei básica de Roma ou em costumes adotados em Esparta, que
determinavam a eliminação de crianças nascidas com deficiências físicas. No
entanto, esses procedimentos não foram e nunca poderiam ter sido
generalizados ou generalizáveis.
Muitos dos hábitos e costumes adotados em culturas muito mais antigas que
a nossa são até hoje aceitos por povos bastante primitivos que vivem uma vida
praticamente ao nível dos antigos homens das épocas conhecidas como
neolíticas. Alguns deles referem-se aos seus componentes mais fracos, mais
idosos ou defeituosos.
Exemplos concretos, coletados por antropólogos pacientes, podem de fato
ser citados às dezenas.
- *O porquê das atitudes face a grupos minoritários*
Na abalizada opinião de antropólogos e mesmo de historiadores da
medicina, pode-se observar basicamente dois tipos de atitudes para com
pessoas doentes, idosas ou portadoras de deficiências: uma atitude de
aceitação, tolerância, apoio e assimilação e uma outra, de eliminação,
menosprezo ou destruição.
Na primeira, as pessoas que estão à margem do grupo principal devido a
doenças, acidentes, velhice ou defeitos físicos são em geral aceitas das mais
variadas maneiras, incluindo-se a tolerância pura e simples, chegando até ao
tratamento carinhoso, ao recebimento de honrarias e à obtenção de um papel
relevante na comunidade.
Na segunda, todavia, essas mesmas pessoas são destruídas também de
formas variadas, incluindo-se desde o abandono à própria sorte em ambientes
agrestes e perigosos, até a morte violenta, a morte por inanição ou o próprio
banimento.
Esses mesmos antropólogos e historiadores observam que as encontradiças
atitudes positivas e de aceitação não correspondiam necessariamente a raças
mais cultas, experimentadas ou evoluídas.
Na verdade, o que sucedia com os grupos que precisavam coletar alimentos,
pescar e caçar era que, apesar de haver um bom tratamento para com doentes
e deficientes e mesmo para com os mais idosos de seus membros, de um
modo especial na garantia da alimentação, o grupo maior tinha necessidade de
livrar-se do peso que significavam as dificuldades na movimentação geral
quando do escasseamento da caça, da pesca e dos outros tipos de alimentos.
Problemas muito sérios surgiam com a mudança para regiões mais férteis e
mais promissoras.
Essa atitude é bem diferente daquela da destruição habitual e sistemática
adotada por grupos primitivos mais complexos dedicados à agricultura e
também ao pastoreio e uma incipiente pecuária. A causa principal da
destruição das pessoas era evidentemente, econômica, face à quase
inutilidade das mesmas. No entanto, observa-se também que a partilha de
alimentos nesses mesmos grupos parece ter declinado em importância com os
gradativos progressos verificados na agricultura e no pastoreio. Foi exatamente
nesses grupos que aos poucos começou a surgir a caridade organizada, em
seus primeiros sintomas.
- *Atitudes de aceitação, apoio e assimilação*
Vejamos, por exemplo, povos primitivos que adotam atitudes de apoio,
assimilação, aceitação ou tolerância para com pessoas portadoras de
deficiências, problemas mentais ou velhice:
-- Aona: Os Aona residem ainda hoje à beira do lago salgado de Rudolf, no
Quênia, numa ilha conhecida como Elmolo. De nômades que eram,
transformaram-se em pescadores. Segundo eles acreditam, os cegos mantêm
relação direta com o sobrenatural e os espíritos do sobrenatural moram no
fundo do lago salgado e previnem diretamente os cegos quanto aos locais
onde há peixe. Assim, os cegos sempre participam das pescarias primitivas,
levando em consideração a lança atirada por eles que são sempre bem
tratados e respeitados.
-- Azande: Trata-se de um povo muito primitivo que habita as florestas
situadas entre o sul do Sudão e o Congo, caracterizando-se pelo seu
nomadismo esporádico. Todos os componentes dessa raça acreditam muito
em feitiçaria. No entanto, não chegam a relacionar defeitos físicos e anomalias
com intervenções sobrenaturais. Crianças anormais nunca são abandonadas
ou mortas. Não lhes falta carinho dos pais ou de parentes mais próximos.
Segundo antropólogos estudiosos de seus costumes, dedos adicionais nas
mãos ou nos pés são bastante comuns e eles se orgulham de os possuir.
-- Ashanti: Habitam a parte sul de Gana, a oeste da África, totalizando mais de
um milhão de membros. Quando constituíam um reino próprio era costumeiro
enviar à corte crianças com defeitos físicos para serem treinadas como arautos
do rei. Esses mensageiros com deficiência física eram destacados para
missões delicadas, como, por exemplo, a iminência de guerras com tribos
vizinhas. Em geral a mensagem do rei Ashanti era incisiva e terminava com um
recado do arauto: "se esses termos não forem aceitos, poderei ser morto agora
mesmo".
No entanto, parece que isso não acontecia, pois limitavam-se os inimigos a
cortar um dos dedos do arauto, o que equivalia a uma declaração de guerra.
Além dessa perigosa missão, os arautos eram também utilizados como
inspetores sanitários ou coletores de impostos. Eram igualmente usados como
bufões e tinham o privilégio de dizer a seus mestres o que bem entendiam.
Foram também usados como espiões.
-- Dahomey: Entre os habitantes mais antigos do Dahomey atual, localizado
na África Ocidental, sempre foi considerado como fato costumeiro -- apesar de
singular na grande maioria dos povos primitivos – que as autoridades
conhecidas como "condestáveis do Estado" fossem selecionadas
principalmente entre pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais.
Em várias aldeias do país crianças nascidas com anomalias físicas sérias eram
tidas como protegidas por agentes sobrenaturais especiais. Segundo crença
popular, essas crianças existem para trazer sorte à aldeia. No entanto, em
tempos passados, o destino de muitas delas dependia de alguns sinais
supostamente sobrenaturais que podiam decretar seu abandono à beira de um
rio.
-- Macri: Pessoas deformadas ou portadoras de deficiências não são mortas
nem abandonadas nas aldeias dos Macri, nativos da Nova Zelândia. Elas
sobrevivem, embora com dificuldades, pois não encontram muito apoio e
chegam mesmo a receber tratamento ou apelidos de natureza desagradável.
-- Pés Negros: Tribo praticamente extinta da América do Norte, entre os Pés
Negros cuidava-se bem de familiares com deficiência. Essas pessoas eram
responsabilidade do próprio grupo familiar, mesmo que isso chegasse a
acarretar sacrifícios.
-- Ponapé: Nas ilhas Carolinas Orientais, entre seus primitivos habitantes
pertencentes à tribo dos Ponapé, crianças com defeitos físicos ou evidentes
sinais de retardo mental sempre foram bem tratadas como se fossem normais.
-- Semang: Entre os nativos da raça Semang, habitantes de parte da Malásia,
só pessoas que se movem com o auxilio de um bastão ou de uma muleta,
devido a um defeito físico ou à cegueira, é que são procuradas para conselhos
ou para decidir disputas. Trata-se de uma tribo Negrito, muito primitiva, que
ainda vive em cavernas ou em abrigos de folhas.
-- Truk: Para os nativos da ilha Truk -- uma das Carolinas -- as pessoas
portadoras de deficiências das mais diversas naturezas e também as pessoas
muito idosas que não podem prover seu próprio sustento ou que dependem
necessariamente dos outros -- são consideradas como supérfluas. No entanto,
esses aborígenes não tomam qualquer providência para sua segregação ou
eliminação.
-- Xagga (ou Chaggal): Nas fraldas do monte Kilimanjaro, ao norte da
Tanzânia (leste da África), vivem os nativos do grupo Xagga. No seio dessa
tribo primitiva ninguém se atreve a prejudicar ou a matar crianças ou adultos
com deficiências, pois segundo acreditam, os maus espíritos habitam nessas
pessoas e nelas se aquietam e se deliciam, o que torna a normalidade possível
a todos os demais.
-- Tupinambás -- Entre os nossos antigos índios da grande raça Tupinambá
do século XVI, o adulto doente ou deficiente por ferimentos graves de guerra,
de caça ou devido a acidentes da vida na floresta era deixado à vontade em
sua cabana, praticamente sem contato algum com o restante da tribo. Ficava
sem comer se assim o desejasse, pois podia pedir alimentos, que lhe seria
fornecido pelo tempo que achasse necessário, mesmo que pelo resto de sua
vida. O que em geral acontecia, porém, por posicionamento do guerreiro ferido,
era que acabava morrendo à míngua.
-- *Causas das atitudes de abandono, segregação ou destruição*
Alguns dos povos primitivos a respeito dos quais obtivemos informações não
se preocupam ou não se preocupavam (conforme o caso) com as pessoas
deficientes em termos de vida ou de morte, mas tomavam atitudes
discriminatórias contra elas, como nos casos ainda hoje verificados dos
habitantes da ilha de Bali -- Os nativos da ilha de Bali, na Indonésia, estão
tradicionalmente impedidos de manter contatos amorosos com pessoas muito
diferentes do normal, ou seja, albinas, retardadas, hansenianas, e em geral
com pessoas portadoras de defeitos físicos sérios ou problemas mentais.
Por vezes, no entanto, é a pressão pela sobrevivência que determina certas
tomadas de posição quanto a pessoas idosas, doentes ou deficientes. É o que
acontece com os índios Chiricoa -- eles habitam as matas colombianas e
mudam-se com facilidade ou de acordo com as exigências para sobrevivência
do grupo. Esses índios, tanto quanto certas tribos do Caribe antigo também o
faziam, abandonam pessoas muito idosas ou incapacitadas por doenças ou por
mutilações por ocasião de suas mudanças. Cada membro da comunidade
carrega tudo o que pode levar e transportar pela selva, e que é considerado
como estritamente necessário. Essas pessoas deficientes ou muito velhas e
doentes terminam seus dias abandonadas nos antigos sítios de morada da
tribo, por não poderem se movimentar ou por não serem consideradas como
fundamentais para a sobrevivência do grupo.
Em alguns casos pesquisados, o abandono e a morte por opção do próprio
indivíduo idoso, doente ou portador de deficiência séria, para benefício da tribo
ou mesmo da raça, também acontecem. É o caso observado entre os
Esquimós -- Entre os esquimós mais antigos que mantiveram contatos com
missionários franceses nos séculos XVII e XVIII nos territórios canadenses de
hoje, as pessoas idosas ou deficientes eram deixadas, por sua própria
orientação e muitas vezes por sua própria escolha e vontade, num local mais
propício e próximo dos pontos onde todos sabiam ser a área de convergência
contínua e de aparecimento de ursos brancos, para serem por eles devoradas.
Segundo acreditavam, os ursos brancos eram considerados como animais
sagrados e de grande utilidade para a tribo e que deviam manter-se sempre
bem alimentados. Assim, sua pele mantinha-se também em ótimo estado para,
quando mortos, bem agasalharem a população.
Existem relatos de abandono mais evidente e aberto, ou um tanto velado,
como no caso dos Tupinambás, acima indicado. O abandono intencional ocorre
com os Siriono - Esses índios são seminômades e de língua Guarani, e
habitam nas selvas da Bolívia, próximo ao Brasil. Para eles a doença e a
incapacidade física, bem como a velhice, podem levar ao abandono e mesmo à
morte com certa freqüência, devido a constante movimentação da tribo. O
mesmo sucede com os pertences ou com a cabana de alguém que morre, que
são destruídos pelo fogo.
-- *O extermínio de pessoas deficientes*
A maioria dos povos primitivos, no entanto, indicava o extermínio como
solução para o problema de crianças ou adultos com deficiências físicas ou
mentais. Vejamos alguns casos mais marcantes:
-- Ajores -- Os índios Ajores vivem ainda hoje como nômades, em região
pantanosa, entre os rios Otuquis e Paraguai, nos isolados confins da Bolívia e
do Paraguai. São índios orgulhosos do Gran Chaco. Devido ao nomadismo,
todos os recém-nascidos com deficiências, ou mesmo aqueles não desejados,
são enterrados juntamente com a placenta, ao nascer. Os velhos Ajores, ou
aqueles que devido às circunstâncias ficaram deficientes, são enterrados vivos,
por solicitação própria ou mesmo contra sua vontade. Consideram alguns esse
tipo de morte altamente desejável, pois a terra os protegerá contra tudo e
contra todos.
-- Creek -- Velhos doentes e vítimas de males crônicos eram mortos por
misericórdia. Acreditavam os Creek que esses velhos ou doentes poderiam
acabar por cair nas mãos do inimigo e sofrer muito mais. Os demais idosos
sempre foram respeitados e mesmo reverenciados por todos os componentes
da tribo.
-- Dene -- Entre os índios Dene, do Noroeste do Canadá, bem como junto aos
esquimós da região e algumas tribos da Sibéria antiga, era costume eliminar
pessoas incapacitadas seja por idade, seja devido à deformidade apresentada.
Eram abandonadas nas planícies geladas de seus imensos territórios.
-- Dieri -- O infanticídio acontece com freqüência na tribo dos Dieri que ocupa
algumas regiões do Centro da Austrália. Dele são vítimas não apenas crianças
que nascem com defeitos físicos, mas também, por motivos de ordem social,
os filhos de mães solteiras. No entanto, nessa e em várias outras tribos
australianas, o respeito pelos idosos é constantemente citado pelos
antropólogos que se dedicam ao seu estudo. Em quase todas as tribos da
Austrália os velhos são respeitados como líderes e como conselheiros.
-- Jukun -- Trata-se de uma tribo da Nigéria, na qual as crianças que nascem
com deformações não sobrevivem. Elas são abandonadas nas matas ou nos
lugares ermos onde logo encontram a morte. Acreditam os nativos Jukun que
as crianças com defeitos físicos são tomadas, ainda no ventre da mãe, por
espíritos malignos.
-- Masai -- Os nativos da raça Masai são os sempre elegantes, magros e
muito altos componentes de uma definida origem nilo-hamítica nômade. Eles
tiram a vida das crianças recém-nascidas que se apresentam muito fracas ou
que já apresentam deformações ao nascer.
-- Navajos -- Os índios Navajos, aparentados dos Apaches e formadores da
maior raça indígena norte-americana, no passado distante não permitiam que
uma criança com defeito físico sobrevivesse. Ela era asfixiada ou afogada,
abandonada no meio do mato ou ocasionalmente queimada viva. Mesmo hoje
em dia os Navajos não se sentem muito à vontade diante de pessoas com
deficiências, por considerar em seu íntimo que elas estão fora da harmonia das
forças da natureza e que o contato com elas acabará trazendo desarmonia na
vida de cada um.
-- Ojibwa -- Conhecido grupo étnico de índios norte-americanos, existem
famílias Ojibwa residentes ainda hoje nas ilhas Parry (Canadá) que
acreditavam (e que talvez ainda acreditem) que pessoas com defeitos físicos
eram feiticeiras e que sofriam com seus problemas físicos porque os seus
poderes de cura acabavam voltando-se contra elas mesmas. Essas pessoas
com deficiências podiam ser acusadas de feitiçaria e se fossem condenadas
eram mortas a pauladas.
-- Sálvia -- Nas matas fechadas da selva amazônica vivem os índios Sálvia,
em extinção. Eles costumam dar a morte aos fisicamente deficientes por serem
considerados como elementos claramente marcados por espíritos malignos.
-- Saulteaux -- Pertencentes à grande raça dos Ojibwa, os Saulteaux estão
espalhados tanto pelos Estados Unidos quanto pelo Canadá, na região dos
Grandes Lagos e também do lago Winnipeg. Pensavam esses índios que as
pessoas com deficiências físicas eram possuídas por espíritos malignos, o que
levava a tribo a matá-las. Eram também consideradas como verdadeiras
ameaças aos deuses que, com sua morte, mantinham-se pacificados e
contentes.
-- Uitoto -- Segundo costume observado pelos integrantes dessa tribo do alto
Amazonas, a sudeste da Colômbia e nas proximidades do Peru, o recém-
nascido era sempre submerso num riacho próximo à sua aldeia, por alguns
segundos, a pretexto de sua limpeza e também para verificar sua resistência
física. Segundo acreditavam, caso a criança não fosse suficientemente
saudável e bem constituída, melhor seria morrer naquela hora do que passar
uma vida toda de atribulações para si e para sua família, devido à fraqueza ou
à deficiência física. No caso específico de ser portadora de alguma
deformidade durante seu crescimento, o feiticeiro da tribo declarava
abertamente que ela havia sido vítima de algum mau espírito, podendo causar
malefícios para toda a aldeia. A esse pretexto ela acabava sendo eliminada.
-- Wageo -- Entre esses primitivos habitantes da Nova Guiné, as crianças com
deformidades físicas eram enterradas logo após o seu nascimento. No entanto,
se a deficiência ocorresse durante a vida, as vítimas eram tratadas com
cuidado e mesmo com carinho.
-- Xagga - Muito embora os Xagga jamais procurassem se livrar de uma
criança ou de um adulto com defeitos físicos ou problemas mentais, conforme
vimos anteriormente, tinham atitude diferente face ao nascimento de uma
criança defeituosa. A parteira, ou o próprio pai, tinham o direito de tomar uma
decisão quanto à vida ou a morte de um bebê nascido com deformidades, no
próprio ato do nascimento, se as circunstâncias assim o recomendassem.
Nota-se nessas várias culturas aqui citadas que muitas vezes a não-
sobrevivência ocorria mais devido à pressão causada pelas dificuldades na
obtenção de alimentos ou mesmo de auto-suficiência e agilidade para cuidar de
si mesmo em hora de perigo, quando não devido a questões de utilidade do
componente do grupo. Há vários casos de eliminação de velhos ou de
deficientes devido à ignorância das causas dos males considerados como
misteriosos, ou por medo das divindades vingativas que poderiam estar
envolvidas ou mesmo interessadas.
No entanto muito raramente a rejeição ou a morte ocorriam devido a atitudes
de ostracismo ou de discriminação intencional que, segundo nos parece, são
produtos de civilizações mais sofisticadas.
-- *A pessoa deficiente como objeto de ridículo*
Um exemplo da pessoa deficiente como objeto de ridículo nos é citado por
Wolfensberger: Entre os Aztecas da época de Montezuma (1466 a 1520) havia
uma espécie de jardim zoológico na capital do Império, Tenochtitlán (hoje
México, D.F.), que chegou a impressionar os homens do conquistador Cortés
pela sua organização e variedade de animais. O que mais chocou os homens
espanhóis, porém, foi o fato de Montezuma ter em instalações separadas
homens e mulheres defeituosos, deformados, corcundas, anões, albinos, onde
eram apupados, provocados e ridicularizados.
Infelizmente em quase todas as culturas que indicamos restavam às
pessoas marcadas pela incapacidade ou pela idade apenas duas alternativas:
resignação à situação ou a morte.
-- *O povo Inca e as trepanações cranianas*
Embora não possa absolutamente ser considerada como primitiva, nem de
caráter mesolítico ou neolítico, a cultura Inca será aqui inserida como uma nota
especial, devido ao inusitado e surpreendente conhecimento que conseguiu
acumular e que vale a pena aqui lembrar.
O povo Inca habitou regiões do atual Peru desde épocas que certamente
datam de 1.000 anos antes de Cristo, com os povos originais que formaram a
cultura Paracas. Estudos feitos por diversos especialistas da cultura Inca
concluem que, mesmo antes da descoberta da América, esse povo já
desenvolvia um incrível padrão de medicina e de cirurgia. Um dos indicativos
mais sérios a esse respeito está no enorme acervo de crânios encontrados nos
túmulos de várias cidades Incas daquelas épocas, com sinais evidentes de
terem sido objeto de trepanação ainda em vida, e muitos deles com sinais de
sobrevida, pelo crescimento centrípeto do osso perfurado.
Supõe-se que muitos dos povos que praticavam a trepanação -- e seus
indícios surgem em todos os quadrantes da Terra -- eram levados a ela por
dois tipos básicos de motivos: devido a um problema de perigo de vida
causado por um traumatismo craniano, ou uma solidamente arraigada crença
de origem misteriosa que indicava como certa a localização de maus espíritos
na cabeça do individuo.
A crença de que males ou enfermidades eram causados por deuses
vingativos ou enfurecidos, ou por maus espíritos, sempre existiu desde épocas
pré-históricas, principalmente devido ao fato de os antigos habitantes da Terra
desconhecerem as causas dos males. No entanto, quando se analisa os
procedimentos e os métodos curativos de alguns povos como é o caso dos
Incas verificamos que essa posição não pode ser generalizada. Não há muita
lógica nas suposições de que nesse conceito cheio de mistério da origem dos
males como castigo, maldição, magia negra, possam ser inseridos os
procedimentos de tratamento usados nas intervenções cirúrgicas, nas
amputações, nas trepanações, nas correções de defeitos congênitos, por
exemplo.
Na cultura Inca nota-se que incisões muito bem feitas denotam um
conhecimento quase perfeito do mapeamento do sistema nervoso, pois
cirurgias efetuadas do lado esquerdo do crânio destinavam-se a resolver
problemas de paralisias do lado oposto do organismo, segundo nos provam
especialistas no assunto.
Nota-se pelo raciocínio lógico que, apesar de não dominarem o
conhecimento das causas de certos males, os curandeiros ou os feiticeiros
dominavam para seu próprio uso os procedimentos e as técnicas incipientes de
tratamento físico. Usavam, sim, o fetiche, o amuleto, o palavreado misterioso, a
fumaça cheirosa, o que não passava, na maioria dos casos, de um certo
conforto psicológico para o doente.
As trepanações entre os Incas das épocas anteriores ao descobrimento
estão ligadas, em grande parte, a males incapacitantes. Dentre eles cumpre
destacar os traumatismos cranianos por armas contundentes, os tumores
internos e as infecções. Muito embora alguns dos estudiosos que analisam as
cirurgias cranianas antigas e genericamente reconhecidas como trepanações,
achem tratar-se de simples meios para facilitar a saída de espíritos malignos e
prejudiciais que tinham entrado na cabeça da vítima, há cientistas que, ao se
debruçar sobre crânios trepanados com muita cautela e muito espírito
científico, admitem como causas dessas cirurgias tão sérias quanto perigosas,
a dor, o vômito, a vertigem, as dificuldades de deambulação, a afasia, a
cegueira, as convulsões e outros males incapacitantes. Sem esses sintomas é
muito difícil imaginarmos a ocorrência de uma cirurgia dessas proporções e
que demandava -- como ainda hoje demanda -- tantos cuidados na
recuperação do doente.
-- *As deficiências físicas há mais de 20 séculos na Califórnia*
No Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia existem ossos
descobertos na região de Bodega Head, a 70 quilômetros aproximadamente ao
norte de Golden Gate, São Francisco. São esqueletos de 44 indivíduos que
fazem parte de um acervo de achados arqueológicos de aproximadamente
2.200 anos. Eles nos trazem dados de um passado surpreendente e muito
distante, quanto à forte incidência de certos males que, agravados pela falta de
tratamento, levavam a situações de incapacidade naquela região de natureza
litorânea. Essas informações preciosas foram levantadas graças aos
especialistas em paleopatologia que é, como verificamos anteriormente, o
estudo das doenças conforme ocorreram na vida das populações passadas.
Num interessante artigo a respeito, James G.Roney Jr. dá-nos informações
como estas:
-- Dos 44 esqueletos encontrados e analisados, 20 (ou seja, 45% do total)
apresentam sinais de condições patológicas parcial ou totalmente
incapacitantes para uma vida plena. Quais eram esses males? Artrite,
periosteíte, osteomielite, fraturas e anomalia congênita. Todas elas são
encontradas nos esqueletos dos indivíduos adultos de mais de 20 anos de
idade presumíveis.
-- A artrite, segundo Roney, e suas lesões nos esqueletos em pauta atingem
não só a área lombar, mas também eventualmente o tórax, a região sacro-
ilíaca, os ombros, os joelhos, os dedos das mãos e dos pés e mesmo a área
cervical.
Vejamos algumas observações a respeito de um dos esqueletos estudados:
"Número 7969: Adulto do sexo masculino, 35-39 anos de idade ao morrer,
tinha osteoartrite na espinha cervical, toráxica e lombar e nas juntas sacro-
ilíaca e nos joelhos"..."Além disso ele tinha periostelite em ambas as tíbias nas
superfícies medial e lateral" .."Apresentava duas anomalias congênitas: uma
costela bífida e espinha bífida no sacro. Tinha também fraturas solidificadas do
quarto e quinto metatarsos direitos".
Apesar de tantos problemas -- e com eles tantos e tão fortes sofrimentos --
foi um indivíduo que alcançou uma faixa etária elevada para o grupo em
questão.
O mesmo estudo indica que um dos esqueletos apresenta sinais evidentes
do mal de Pott, com três costelas em forma de cunha e com a característica
formação encurvada da espinha dorsal.
Segundo Roney, as fraturas ocorriam basicamente devido a atividades de
caça e de pesca, talvez devido a quedas nas rochas escorregadias muito
características daquela região de beira-mar da Califórnia.
Não nos resta dúvida de que diversos adultos do grupo analisado viveram
anos a fio com dores atrozes e limitações de severidade variada. Mas vale a
pena ressaltar que muitos dos esqueletos sem qualquer sinal de males
incapacitantes eram de indivíduos abaixo de 19 anos (são 11 ao todo) e abaixo
de 1 ano (6 ao todo). Talvez esse dado nos indique que os males aqui
mencionados fossem conseqüentes a atividades de caça e pesca, básica para
a sobrevivência do grupo.
CAPÍTULO SEGUNDO
A PESSOA DEFICIENTE DENTRO DAS CULTURAS ANTIGAS
Muito embora seja difícil encontrarmos traços de civilização ou de
sociedades melhor organizadas em épocas anteriores ao ano 4000 a.C., o
homem conseguira já nas várias fases de eras muito remotas e sem memória
da chamada Pré-História, trabalhar em criações e descobertas que foram de
extremo valor para o estabelecimento de facilidades na vida dos grupos
humanos. Dentre essas quase que "invenções" é necessário que destaquemos
a utilização e o controle do fogo, as armas de médio e longo alcances,
incluindo nelas até as lançadeiras de pedras, a utilização prática da roda, as
embarcações, as armadilhas para prender animais selvagens, as roupas para
melhor proteção de seu corpo, cestos para transportar e armazenar bens, as
cerâmicas utilitárias, e também as residências mais seguras e mais
confortáveis. O homem dominou igualmente os primeiros passos na utilização
de alguns poucos metais básicos.
No entanto, essas adaptações, descobertas e verdadeiras invenções muito
criativas ocorriam de um modo geral em pequenos grupos de famílias e nem
todas elas eram conhecidas e bem dominadas em todos os grupos espalhados
pelas muitas regiões ocupadas pelo homem.
Por volta do quarto milênio antes da nossa Era começaram a surgir grupos
bem maiores de homens nas regiões da Mesopotâmia, no Egito e também no
vale do famoso rio Indo. Esses grupos eram de alguma forma organizados e
capazes de rápidos progressos, tanto em sua organização básica quanto no
aprimoramento das habilidades manuais.
Muito embora a preocupação básica com a sobrevivência levasse todos os
grupos ao desenvolvimento de trabalhos relacionados à alimentação, ao abrigo
e à defesa dos seus componentes, está fora de dúvida que neles também as
artes, os ofícios e o que poderia ser chamado hoje de primeiros ensaios da
ciência surgiram aos poucos e se firmaram; muito lentamente tornou-se notória
a diferença entre os artífices e aqueles indivíduos mais qualificados por
funções consideradas como vitais para o grupo: os que cuidavam das
construções, os que entendiam das doenças ou dos ferimentos, os
observadores e entendedores dos corpos celestes e todo o seu significado
misterioso, os que se dedicavam aos elementos da natureza, à criação das
crianças, à troca de bens, aos mistérios do mundo, à ordem, à defesa e
também aos seres superiores.
Fator de mais rápido e seguro progresso do homem primitivo foi o
estabelecimento gradativo de alguns códigos de comunicação e de
armazenamento de informações. A invenção da escrita, por exemplo, foi de
notável utilidade e deve ter sido contemporânea com a instalação dos primeiros
grupos mais civilizados no Egito. E foi por meio da escrita, cada vez melhor
elaborada, que o homem conseguiu documentar sua evolução e transmitiu
melhor aos demais os segredos que ia desvendando no mundo que o cercava.
Tabuinhas assírias e papiros egípcios de aproximadamente 3.000 anos antes
da Era Cristã nos dão algumas informações sobre incipientes profissões e
sobre normas e regulamentos que o povo devia obedecer.
Mas nem tudo estava necessariamente ligado à natureza ou a suas
manifestações na vida diuturna do homem. Sua existência era muito sofrida e
repleta de problemas que não tinham soluções fáceis. E ainda por cima surgia
um elemento que o deixava sempre medroso: o desconhecido. Fenômenos da
natureza, males incontroláveis e outros eventos foram levando o homem na
direção daquilo que hoje conhecemos genericamente como "magia". Esta foi
aos poucos sendo transformada em "religião" e desta foram surgindo
pensamentos mais elaborados, ou seja, o raciocínio filosófico. Este tipo de
encadeamento de pensamentos acabou levando à ciência, ou seja, ao método
cientifico.
Segundo autores diversos, a magia nada mais é do que uma errônea
associação de idéias e suas leis não se baseiam em observações muito
precisas. Baseiam-se, sim, em observações eventuais e também no desejo
existente nas pessoas de concretizar atos ou fatos em geral, que estão fora de
seu alcance.
A idéia de divindade e de seu significado como origem de tudo foi deixando a
magia de lado, embora esta não tenha desaparecido até os dias de hoje. E os
deuses -- ou seja, essa mesma divindade transformada em seres de boa ou de
má índole -- eram animadores, verdadeiros donos e gestores do céu, das
nuvens, dos trovões e raios, da terra, dos ventos, da luz, da chuva, da água, do
sol, da lua, do fogo, sendo imaginados de acordo com esses mesmos
elementos.
Dentre os grupos de homens mais evoluídos e dominadores de maior
volume de conhecimentos das Eras Pré-Históricas, os que formaram as
incipientes civilizações do Egito e da Mesopotâmia são muito mais antigos do
que quaisquer outros de que tenhamos notícia, talvez 5.000 anos que
antecederam a Era Cristã. Os primeiros indícios da cultura grega surgiram
muito depois, talvez pelo ano 2000 a.C. A cultura romana por sua vez apenas
floreceu a partir do século VIII a.C.
Por que a humanidade evoluiu mais e com rapidez maior no Egito e na
Mesopotâmia? Por uma série de razões bastante concretas, sendo a mais
significativa a fertilidade das terras banhadas por rios generosos.
A fertilidade do solo na região da Mesopotâmia, por exemplo, era sempre
assegurada pela cheia de seus rios, provocada principalmente pelo degelo das
neves que cobrem as montanhas de grandes altitudes do interior do Oriente
Médio. Havia também o próprio esforço dos povos que ali habitavam,
construindo diques, melhor utilizando o fluxo das águas vindas pelos canais
naturais de irrigação. Peixes eram de uma fartura sem par, aves das mais
variadas espécies habitavam a região e animais ali viviam em grandes
manadas. Além disso, a terra era muito fértil, levando o homem a cultivar com
facilidade o trigo, a cevada, o arroz e outros cereais e frutas.
Lutas começaram a ocorrer pelo domínio de terras férteis e dessas lutas
surgiram domínios cada vez maiores e suas conseqüências: escravos, muitas
vezes marcados como tal. Os poderosos senhores defendiam-se com homens
armados que aos poucos foram se definindo em unidades organizadas e essas
em exércitos. A religião floreceu sob a proteção desses donos de imensas
glebas, muitas vezes para proteger seus interesses. Da mesma forma sucedeu
com o mundo dos comerciantes.
E as classes sociais foram aos poucos também sendo definidas: potentados
e seus protegidos diretos de um lado, e do outro os lavradores, os que
cuidavam de animais, os artífices, os escravos ou subjugados, todos sujeitos a
entregar ao senhor (rei, monarca, faraó, emir, imperador, chefe absoluto, não
importa o nome) parte de sua produção, ou seja, os tributos.
Nessas condições de certa segurança, o comércio -- ou seja, a troca de bens
-- começou a florescer, principalmente ao longo dos caminhos ou à beira dos
rios navegáveis. Surgiram então os aglomerados de casas ou de abrigos.
No caso da Mesopotâmia sabemos que ela se transformou quase que
imediatamente num ponto de forte atração para essas trocas vitais de bens e
de informações. Cereais eram trocados por prata ou cobre; tecidos eram
trocados por marfim; madeira por utensílios usados em casa. Os meios de
troca não eram suficientes para a variedade oferecida, o que levou à criação de
outros meios de pagamento. Uma das conseqüências desses contatos de
homens vindos de muitas paragens estranhas foi a troca de informações,
levando à acumulação de conhecimentos e ao domínio de invenções e de
idéias novas, o que beneficiou evidentemente os moradores fixados nos
aglomerados ou cidades.
Não é difícil deduzir que, ao estudarmos as culturas mais significativas da
antigüidade e que mais se relacionaram com a formação de nossa própria
cultura, não poderemos deixar de ressaltar as provenientes dos milênios de
experiência do Egito e da Mesopotâmia -- enfatizando principalmente o povo
hebreu -- em muitas de suas fases de desenvolvimento, anteriores ou
posteriores a Cristo. Além delas, jamais poderemos nos esquecer do muito que
herdamos dos gregos e dos romanos.
No ligeiro passar por esses tão distantes tempos vividos na história dos
povos que tiveram significado na definição de nossa própria cultura e
civilização, procuraremos voltar nossa atenção de um modo todo particular
para os problemas decorrentes de deficiências físicas ou mentais, além de
muitos males limitadores ou causadores de marginalidade, e o que eles podem
ter significado para as pessoas e para as sociedades de então. Algumas
referências são esporadicamente encontradas quanto ao problema que esses
males representavam e quanto ao tratamento a eles dispensado. Documentos
das mais variadas naturezas referem-se a eles sob ângulos variados e por
vezes incomuns.
Assim, nossas citações e informações deverão limitar-se aos mesmos sem
muitos comentários, procurando deixar ao leitor a liberdade de análise dos
usos, das leis, das obras de arte, do envolvimento da medicina e de outras
ciências, de fatos históricos, de personalidades famosas que conseguimos
coletar por esse rápido passar pela história dos egípcios, dos hebreus, dos
gregos e dos romanos.
1. Os Egípcios e seus vizinhos
A civilização egípcia, conforme comentamos, é das mais antigas da
humanidade. Quando falamos de Egito Antigo é bom que frizemos estarmos
nos referindo a quase 5.000 anos de evolução anteriores, contemporâneos e
posteriores a Cristo; e nele, durante muitos séculos, as classes sociais foram
representadas pelos nobres, sacerdotes, guerreiros, escribas, mercadores,
artesãos, lavradores e escravos. Estes últimos eram, em geral, povos mantidos
em cativeiro ou prisioneiros de guerra.
O desenvolvimento da civilização egípcia acha-se fortemente vinculado a
fatores geográficos e climáticos favoráveis e relacionados à região onde ela se
instalou. Trata-se de uma extensa área -- o vale do rio Nilo --localizada entre o
Mediterrâneo, o Mar Vermelho e o deserto de Saara que foi ocupada muito
vagarosamente por tribos que viviam da caça, na Era Neolítica. Seus
descendentes lá se fixaram, agrupados em famílias que dominaram aos
poucos as peculiaridades da região e a natureza por vezes hostil. Diminutos
principados, separados uns dos outros, foram as incipientes comunidades
espalhando-se devido ao domínio da agricultura, dos instrumentos que
facilitavam o trabalho com a terra, das armas para a caça, para o ataque
pessoal ou para defesa do grupo. Como na Mesopotâmia, pequenas
propriedades começaram também a se agregar em propriedades mais
extensas; diminutos reinos independentes, chamados "nomos", sob o domínio
absoluto de seu líder, começaram a existir. Com o passar dos séculos, dois
grandes reinos surgiram: o do Norte e o do Sul. Por volta do ano 3000 a.C. o
reino do Sul conquistou o do Norte, sendo estabelecida uma liderança única de
um rei absoluto, um faraó, considerado a própria encarnação do deus Hórus.
Essa civilização apresentava uma organização social e econômica muito
própria e com uma sociedade toda hierarquizada, sendo que o faraó - deus
entre os vários deuses ficava bem acima da pobre humanidade.
Das classes sociais a dos sacerdotes era a mais poderosa, como é fácil de
se deduzir, pois era ela que defendia a pretensa divindade do faraó e a sua
intocabilidade. Os grandes templos, como os de Amon, chegaram a ter
milhares de sacerdotes e terras úteis que chegaram a representar quase um
décimo de toda a terra fértil do Egito.
Essa situação toda era mantida pelos guerreiros que, evidentemente, tinham
uma das melhores posições na sociedade egípcia, com os privilégios
decorrentes. Os escribas, por sua vez, eram médios e pequenos servidores.
Tinham posição invejada pelas camadas mais baixas da sociedade, mas
mantinham-se firmes em sua posição devido à sua imprescindibilidade na
sociedade egípcia.
As atividades ligadas à produção de bens eram desenvolvidas por artífices e
por camponeses, ajudados pelos escravos. A estes cabiam os trabalhos mais
pesados para evitar o desgaste rápido dos bois. Coube aos escravos trazidos
pelos guerreiros em suas inúmeras campanhas de conquista, a construção de
diques, de templos, de palácios, de pirâmides, de monumentos. Além disso,
eram também usados para bombeamento de água para os canais de irrigação
durante a época das secas muito severas.
Os mercadores, por sua vez, negociavam a grande produção armazenada
nos anos de fartura, provocando trocas por mercadorias não produzidas no
Egito com nações vizinhas e amigas.
Muitas atividades artesanais sempre foram desenvolvidas no Egito, em
oficinas próprias ou no lar, incluindo nelas a fabricação de diversos tipos de
tecidos, especialmente do linho, sandálias de papiro, cerâmicas, jóias e muitos
outros produtos. A produção artesanal de maior significado, no entanto, sempre
foi a de rolos de papiros.
-- *A atenção médica no Egito Antigo*
Apesar de não existirem referências muito expressas sobre o assunto, por
muitas dinastias da História Egípcia a atenção a pessoas que apresentavam
indícios de males graves ou de deficiências físicas e mentais, fossem elas
conseqüentes a malformações congênitas, acidentes ou infortúnios das
guerras, circunscreveu-se aos membros da nobreza, aos sacerdotes, aos
guerreiros e seus familiares. Todos eles podiam ser objeto das atenções dos
sacerdotes especializados nos chamados "Livros Sagrados" sobre doenças e
suas curas.
Quanto ao atendimento médico às camadas menos favorecidas da
população, sabe-se, por alguns documentos, que em dias prefixados os
doentes eram transportados ao templo, onde sacerdotes mais jovens ou em
formação davam seu atendimento gratuito. Era através dessa clínica
ambulatorial incipiente que os jovens sacerdotes colocavam em prática os
conhecimentos contidos nos livros e aprendiam a prática da arte da medicina -
exclusividade sua. E era nessas clínicas para os pobres que também treinavam
a arte da cirurgia. Os numerosos e estranhos instrumentos descobertos nos
templos pelos egiptologistas deviam pertencer a esses locais de atendimento à
pobreza.
Para o novo sacerdote o ensino da arte médica podia durar muito tempo,
dependendo do interesse e da própria inteligência do aluno. E quando seus
mestres julgavam que estava pronto para a iniciação independente, o novo
médico-sacerdote jurava solenemente não ensinar a ninguém os segredos dos
livros sagrados. Os médicos-sacerdotes que conseguiam chegar ao final
desses estudos e da prática requerida neles e passar pelas provas finais
eliminatórias contra os quatro elementos (água, terra, fogo e ar),
transformavam-se numa importante personalidade: faziam parte do alto clero,
podiam usar a peruca de Osíris e o manto branco dos sábios. Seus serviços
eram muito caros.
Assim, não é de admirar que muito poucos conseguiam ter um médico para
cuidar de seus males. Membros das classes de rendimento médio precisavam
contentar-se com alguns charlatões ligados à seita da deusa Sekhmet e que
faziam parte de um clero inferior. Esses sacerdotes, em geral, haviam tentado
inteirar-se da ciência dos livros sagrados, sem o conseguir, mostrando-se
dessa forma indignos e incompetentes. Nesses sacerdotes inferiores,
entretanto, predominava uma notória experiência.
Como nos casos da China e da Índia, os templos egípcios sempre foram
cercados por verdadeiros jardins botânicos, sendo um dos piedosos exercícios
dos candidatos a médicos-sacerdotes, durante sua formação, cuidar das
platibandas dos templos, todas elas plantadas com flores ou arbustos de
poderes curativos, utilizados tanto pelos detentores da mais alta sabedoria
quanto pelos experimentados médicos-sacerdotes da deusa Sekhmet.
De um modo geral as camadas mais pobres da população do Egito, tais
como os lavradores, os artesãos e os escravos, dispunham de pouquíssimos
recursos e ficavam à mercê de improvisadores, de exorcistas ignorantes que
vendiam amuletos e feitiços aos trabalhadores e suas famílias. Dependiam
também de algumas pessoas que pela vida afora haviam acumulado certos
conhecimentos quanto aos efeitos de poções, ungüentos, sangrias e
medicamentos naturais.
A rica e muito diversificada experiência dos médicos-sacerdotes egípcios,
que era sempre acrescida de novidades provenientes de reinos e estados da
Mesopotâmia, nunca chegava às camadas mais pobres da população.
-- *A medicina egípcia e os males incapacitantes*
A medicina só surgiu no Egito no final do Velho Império e, em grande parte,
acabou sendo um produto importado da Mesopotâmia. Mas o povo egípcio foi
um dos primeiros a se preocupar em fazer, na História do Mundo, um registro
de sua medicina, inclusive da medicina cirúrgica. Em papiros recentemente
descobertos e decifrados, revela-se que os egípcios chegaram a tentar
operações cranianas, operações no rosto e até na coluna vertebral, apesar da
medicina daquelas eras ter sido quase que totalmente empírica.
Na verdade, o sistema de medicina pré-científica que mais vestígios deixou
foi o egípcio. Uma série de princípios mágicos e falsos o informava, além de
haver nele inserida uma série de normas de higiene impostas a todos os
habitantes. A medicina egípcia pairava entre o místico e o prático. Seus
médicos-sacerdotes usavam poções, linimentos, cataplasmas, mel, sal, óleo de
cedro, cascas de árvores, óleo de camomila, chifre de veado, excrementos,
entre outros produtos, aliados a orações, oferendas, sacrifícios, além de uma
indispensável fé nos deuses invocados. Heródoto (484 a 425 a.C.), o chamado
"Pai da História", comenta com frases de muito respeito sobre os médicos-
sacerdotes de Tebas e de Mênfis, tal a sua competência.
A medicina egípcia muito colaborou para garantir ambientes mais limpos e
mais sadios nas aglomerações urbanas, pois dela emanavam orientações para
quase tudo o que poderia afetar a saúde pública e privada, tais como os
enterros, a limpeza das casas, os banhos, a disposição e eliminação dos
dejetos humanos e outras mais.
Segundo os médicos do Antigo Egito as doenças graves e as deficiências
físicas ou os problemas mentais graves eram provocados por maus espíritos,
por demônios ou por pecados de vidas anteriores que deviam ser pagos.
Dessa maneira não podiam ser debelados a não ser pela intervenção dos
deuses, ou pelo poder divino que era passado aos médicos-sacerdotes que às
vezes tinham meios para chegar a esse desiderato. Em sua terapêutica
usavam as preces, os exorcismos, os encantamentos, somados a poções,
pomadas, elementos ou também a eventuais cirurgias.
Existem alguns papiros que são excelentes referências quanto à arte médica
egípcia e quanto à forma como ela cuidava de alguns problemas
incapacitantes. E dentre eles cumpre que destaquemos o Papiro de Ebers, o
de Edwin Smith e o de Brugsch.
-- *Os famosos papiros e os problemas de deficiências*
O papiro de Ebers, que hoje é patrimônio da Universidade de Leipzig, tem o
comprimento de pouco mais de 20 metros -- talvez o correspondente a 110
páginas -- e foi descoberto no Egito em 1873, na necrópole de Tebas, pelo
egiptólogo Ebers, que imediatamente o traduziu. É provavelmente o mais
considerável de todos os documentos escritos sobre a medicina egípcia.
Contém numerosos pequenos tratados que remontam a quinze séculos antes
de Cristo, com fórmulas para tratar doenças as mais variadas, incluindo
algumas que podem levar ao estabelecimento de uma deficiência física ou
sensorial, como males dos olhos, problemas de ouvido, dos membros, dos
vasos, da cabeça. Além disso, inclui tópicos importantes sobre ferimentos,
queimaduras, fraturas e outros. Há receitas contra a conjuntivite, hemorragias
do globo ocular e esquimoses perioculares. Há indicações de operação de
catarata. Nenhuma outra cirurgia, entretanto, é nele indicada.
Nesse famoso papiro de Ebers existe um tratado chamado de "Livro de
Uchedu" no qual há trechos que falam com clareza a respeito da surdez.
O papiro de Brugsch, propriedade do Museu do Estado (Berlim), foi
descoberto nas proximidades de Zaqqarah. Data do século XVI a.C. e nele
existem 204 prescrições de remédios. Ali, dentre as muitas receitas, o leitor
encontrará algumas contra dores nos olhos e também contra a surdez. Uma
delas é pomada para uso local, cuja fórmula é a seguinte:
Planta "ank" - 1
Bálsamo - 1
Planta "ma" - 1
"Plast" - 1
Gordura animal
Dos três papiros relacionados à arte médica no Egito o mais importante é o
de Edwin Smith, que fala sobre cirurgia no Antigo Egito, em especial da cirurgia
dos ossos, em casos de sérios problemas ortopédicos. Os casos e exemplos
são citados sistematicamente nesta ordem: queixa, exame, diagnóstico e
veredicto.
Esse papiro, incompleto como foi achado, pertence à Sociedade Histórica de
New York e tem apenas quatro metros e 68 centímetros de comprimento. Foi
adquirido em Luxor, no ano de 1862, pelo próprio Edwin Smith. Segundo seus
analistas, foi copiado há 3.600 anos atrás, embora contenha matéria já
conhecida no Egito há mais de 4.000 anos. Seu autor parece ter sido um hábil
cirurgião, além de um perfeito observador. Supõe-se que o tratado original
lidava com a cirurgia de todo o corpo, mas o fragmento encontrado analisa
apenas cirurgias da cabeça, do pescoço e do peito. O autor menciona fraturas
tratadas com talas, fala sobre redução de deslocamentos da bacia e sobre
sutura de ferimentos. Acham alguns autores que o papiro de Edwin Smith foi
escrito pelo médico Imhotep, que séculos após sua morte foi transformado no
padroeiro egípcio da arte de curar, e mesmo no deus da medicina.
-- *As deficiências físicas no Antigo Egito*
Se de um lado os ossos pré-históricos nos dão certeza da existência de
males incapacitantes nos muitos milênios de vida do homem primitivo,
conforme vimos antes, de outro, os remanescentes das múmias, os papiros e a
arte dos egípcios apresentam-nos indícios muito seguros não só da
antigüidade de alguns males, como também da maneira como alguns
ferimentos eram cuidados e das várias formas adotadas para o tratamento das
doenças.
A paleopatologia tem tido um campo muito fértil nas terras do Egito, onde
mais do que em qualquer outra parte do mundo, as técnicas de
embalsamamento conseguiram sucesso na conservação dos corpos. Tem sido
exatamente nesses corpos embalsamados que os cientistas têm podido
reconhecer ferimentos graves, processos degenerativos, fraturas e várias
outras lesões que fornecem abundante material sobre a medicina egípcia.
Segundo muitos autores, provavelmente o povo egípcio foi o mais saudável
da antigüidade, devido à sua dieta vegetariana e também à amplidão de seus
muitos dias ensolarados. No entanto, o exame patológico de algumas múmias
tem comprovado que várias doenças graves chegaram a atingir duramente o
povo egípcio e uma delas era uma infecção dos olhos que muitas vezes levava
à cegueira. O Egito chegou a ser conhecido por muito tempo como a "Terra dos
Cegos", tal foi a extensão e a gravidade desse problema .
-- *Os males que levavam a deficiências físicas*
Dentre as lesões descobertas através dos exames feitos em múmias ou em
esqueletos do Egito Antigo, cumpre que destaquemos aquelas que provocam
em suas vítimas lesões mais limitadoras, levando o homem a tornar-se
temporária ou permanentemente limitado em suas atividades:
--artrite crônica
--espondilite deformante
--Mal de Pott
--pé varo eqüino
--hidrocefalia
-- gota
--osteosarcoma
--fratura
--amputação
Convém ressaltar que em boa porcentagem do vasto material estudado
pelos paleopatologistas, as lesões em esqueletos revelam de um modo todo
especial a presença da artrite crônica, com forte incidência na coluna lombar.
Sir Armand Ruffer, uma reconhecida autoridade no assunto, analisou
múmias nos museus de Alexandria e do Cairo e notou diversas lesões sérias
em algumas delas. Ao escrever a respeito de suas conclusões afirmou: "As
lesões que descrevemos não poderiam ter sido produzidas em povo não-
civilizado, pois os doentes morreriam de inanição antes que as mesmas
chegassem ao ponto que chegaram e sua existência é a melhor prova do alto
grau de civilização atingida pelos antigos egípcios" (Apud Riad).
-- *Casos concretos de lesões incapacitantes*
Vejamos alguns exemplos de lesões provocadoras de deficiências físicas
que chegaram até nossos dias devido à existência das mesmas em múmias,
esqueletos ou obras de arte de naturezas várias:
- No ano de 1910 vários cientistas estudavam e descreviam a múmia de um
sacerdote do deus Amon, da XXI Dinastia (aproximadamente século X e XI
a.C.). O corpo apresenta indícios claros de ter sido vítima do Mal de Pott, com
um forte deslocamento da coluna vertebral. Registre-se que vários outros
casos do mesmo mal foram igualmente identificados, dentre os quais
salientamos alguns registrados na arte egípcia, como segue: Múmia de um
nobre (XII Dinastia - aproximadamente século XIX a.C.), localizada num
belíssimo túmulo de Beni-Hassan, com lesões que indicam o atingimento das
regiões cervical inferior e dorsal superior; em outro túmulo (XVIII Dinastia--
aproximadamente século XIV a.C.), existente em Tel-el-Amarna, podemos
observar uma pintura mural na qual há um nobre com lesões nas regiões
dorsal superior e lombar; num túmulo existente em Tebas (XIX Dinastia--
aproximadamente século XIII a.C.) podemos admirar uma pintura que
representa um jardineiro com evidentes sinais do Mal de Pott levando água a
um elevador do liquido.
- Em Beni-Hassan podemos também admirar a estátua de um anão com as
pernas defeituosas, com forte arqueamento.
- Casos de pés tortos ou caídos existem diversos. Dois deles são de anões
mumificados que se encontram em Beni-Hassan. Existem também figuras de
anões com os dois pés tortos (varos eqüinos) em outro túmulo de Tel-el-
Amarna. Há no Museu do Cairo a famosa múmia do faraó Siptah (XIX Dinastia,
ou seja, século XIII a.C.), com o pé esquerdo visivelmente deformado.
- Uma estátua da XI Dinastia (por volta do século XXI a.C.) deixa muito claro o
problema de elefantíase nas pernas do faraó Mentuhotep.
-- *A incidência de fraturas e outros problemas*
Quanto à incidência de fraturas, existe um estudo de aproximadamente
6.000 esqueletos de todas as idades e de todos os períodos da História do
Egito Antigo. Segundo os resultados apurados, um em cada 32 indicam a
existência de fratura solidificada corretamente.
A mais comum delas é a fratura do ante-braço (31% dos casos estudados),
certamente devido a atividades desportivas ou conseqüentes a acidentes das
mais variadas ordens. Fraturas da clavícula e mesmo do fêmur chegam a mais
de 10% dos casos (Apud Salib, Dastugue e Wells).
Muito embora a cirurgia egípcia não tenha podido se voltar para casos de
malformações congênitas, há autores que afirmam que a fissura lábio-palatal
chegou a ser atendida. Um indício desse atendimento é encontradiço numa das
muitas múmias examinadas, que tem uma prótese rudimentar ligada aos
molares por fios de ouro.
-- *Os anões na vida e na arte egípcias*
Na cultura egípcia antiga os anões jamais foram olhados como seres
marginalizados ou desgraçados, inferiores aos outros homens. Os de classes
mais elevadas podiam aspirar a qualquer cargo que fosse; os provenientes de
classes mais pobres eram por vezes adquiridos por grandes somas por faraós
ou ricos senhores.
Os anões da raça Dang, por exemplo, eram os mais procurados por serem
excelentes dançarinos. Há textos hieroglíficos que a eles fazem menção: ..."ele
dançará como um anão diante de Osíris" (Apud Riad).
Afrescos existentes nas paredes e outros recantos dos túmulos por vezes
magníficos e algumas estatuetas sugerem-nos que havia um elevado número
de anões no Egito. Eles são em geral representados com fidelidade: corpos
musculosos, um pouco gordos, membros curtos, cabeças grandes, pernas por
vezes arqueadas e muitas vezes corcundas.
Em algumas obras de arte os anões aparecem aos pés de seus mestrês ou
cuidam de animais favoritos. Aparecem levando um cão para passear,
caçando pássaros, ou segurando um macaco preso; outras vezes são
representados fazendo trabalhos de ourivesaria ou de joalheria.
Um dos deuses do imenso panteão egípcio é representado como um anão
disforme de pernas arqueadas e aparência feroz. Trata-se de Bés, deus dos
combates, dos jogos e das danças. Servia de amuleto contra todos os males
devido à sua feiúra. Segundo alguns autores, Bés personificava os sentimentos
que os homens deficientes suscitavam, mas basicamente como gênios bons.
Existe no Museu do Cairo um sarcófago da época Saita (1150 a 336 a.C.)
com a famosa múmia de Talchos, representado na tampa como um anão que
realmente era em vida. A inscrição cita sua piedade, pois dançava
magnificamente em festas religiosas.
-- *Uma estela votiva dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro*
Uma placa de calcáreo com ilustrações e palavras em símbolos hieroglíficos
e hoje em dia muito famosa entre os ortopedistas e profissionais de
reabilitação. Ela retrata um momento muito significativo na vida de um homem
portador de deficiência física que viveu no Egito aproximadamente 1.300 anos
antes da Era Cristã e que tinha uma profissão de alta responsabilidade no
mundo egípcio de então: era porteiro, e seu nome era Roma.
Devido à multiplicidade de versões quanto ao significado da cena ali
retratada, nada melhor do que o próprio museu onde a peça se encontra para
estabelecer com clareza o seu sentido. Segundo a Ny Carlsberg Glyptotek, de
Copenhague (Dinamarca), que é a proprietária da citada obra de arte, estes
são os dados principais a seu respeito:
-- Trata-se de uma estela votiva classificada como AAEIN 134, da XIX
Dinastia e originária de Mênfis. Tendo sua parte superior côncava, ela mede
0,27 cm de altura por 0,18 cm de largura e sua coloração natural está
parcialmente conservada.
-- Ao alto da estela está inscrita sua dedicatória com hieróglifos coloridos de
azul: "À Deusa Astarte". E no campo principal, logo abaixo, vemos o "porteiro
Roma", sua esposa "Amaô" e seu filho "Ptahemheb". O grupo leva oferendas à
famosa e muito conceituada deusa originária da Síria. Roma aproxima-se de
uma pequena mesa coberta de alimentos e de flores que ele molha com água
benta,apresentando um pão num vaso de pé alto. Com uma postura muito
digna, expressa seu pedido à deusa nestes termos: "Receba estes bens para a
tua alma".
-- A esposa leva um recipiente com alguma fruta (ao que parece são bananas)
e conduz um antílope seguro pelos chifres. O porteiro Roma, de cabeça
zelosamente raspada, como era costumeiro, veste uma túnica pregueada, curta
e parcialmente transparente. Sua perna esquerda apresenta anomalia de
musculatura e o pé está atrofiado ("pés eqüinus"), talvez devido a paralisia
infantil, segundo alguns médicos contemporâneos. Não pode andar com
firmeza sem seu bastão de apoio que durante a pequena cerimônia permanece
preso a seu corpo por meio de seu braço esquerdo. Abaixo da cena, num
campo separado, temos a prece básica e motivo da própria estela, em
caracteres negros semi-destruídos: "Que o rei esteja de acordo e conceda,
para que Astarte Síria, a soberana do céu, a senhora das duas terras, a
primeira entre os deuses, também esteja favorável e conceda.....boa...alegria e
felicidade e um bonito enterro no deserto ocidental de Mênfis à alma do porteiro
Roma" (Apud Koefoed-Petersen).
-- *As especialidades médicas e o problema das deficiências no Egito*
Segundo Heródoto, a medicina egípcia era muito sábia. Já naquelas remotas
eras havia especialidades, pois havia médicos para males da cabeça, para
problemas com dentes, para dores no ventre e regiões vizinhas e para males
internos. Havia também médicos para problemas de ossos. Praticamente todos
eles aprendiam e exercitavam a arte da cirurgia.
Apesar de suas falhas e de seu empirismo todo, a medicina egípcia era
famosa e a mais conhecida por séculos em todo o mundo civilizado de então.
Homero fez referências a seus médicos e tanto Ciro quanto Dario tinham
médicos egípcios. Ciro, por exemplo, mandou buscar o melhor especialista em
problemas da visão com o Faraó de nome Ahmasis (560 a.C.), como veremos
mais adiante. No entanto, pouco nos é relatado quanto a problemas
relacionados a males deformantes, amputações e paralisias.
Todo estudioso da História Egípcia já ouviu falar em "Livros Herméticos".
São obras muito importantes relacionadas à arte médica e atribuídas ao deus
Toth, ou seja, a Hermes Trismegisto, usualmente representado por um homem
com a cabeça de Ibis, e considerado o patrono da medicina. Dentre os famosos
"Livros Herméticos" há um conhecido como "Livro dos Cyranidos", que contém
24 capítulos e apresenta um manancial muito importante de conhecimentos.
Procura voltar às tradições de Zoroastro, citando para cada um dos capítulos
uma planta, uma pedra, um pássaro e um peixe que reúnem suas virtudes para
combater os males neles discutidos. Quanto a problemas que levam a
deficiências são citadas as seguintes pedras com propriedades terapêuticas: o
berilo alivia ataques de epilepsia e também a nefrite; o âmbar e a esmeralda
são poderosos e muito eficientes nos males da visão.
Apesar de diminuir em importância com o surgimento da medicina grega no
cenário mundial, durante séculos a medicina greco-romana socorreu-se da
medicina egípcia; médicos como Galeno e Dioscórides, por exemplo,
mencionavam medicamentos e métodos de tratamento egípcios e faziam
prescrição de remédios usados no Egito, graças a conhecimentos adquiridos
nos templos de Ptah ou de Imhotep, em Mênfis.
-- *Conceito da medicina egípcia na Odisséia, de Homero*
Os egípcios não gozaram apenas de merecida fama de sábios e eruditos,
conforme bem o demonstraram viagens de alguns dos maiores sábios da
antigüidade, dentre os quais estão Heródoto, Thales de Mileto, Pitágoras,
Demócrito, Platão e Eudóxio. Por vários séculos desfrutaram também da fama
de constituírem um povo que possuía os melhores médicos do mundo. Homero
faz menção expressa a isso na Odisséia, escrita cinco séculos antes do
nascimento de Cristo. Diz o seguinte em seu Canto IV: "Neste momento,
Helena, filha de Zeus, concebeu novo plano. No vinho da cratera donde
bebiam, lançou de súbito uma droga, um calmante da dor e do ressentimento,
que fazia esquecer todos os males. Bastaria que alguém a tragasse para que
em todo o dia as lágrimas lhe não corressem pelas faces, nem mesmo que
morressem sua mãe e seu pai em sua presença, nem diante dos olhos seu
irmão e filhos fossem mortos pelo bronze, tais as drogas engenhosas e
salutares que a filha de Zeus recebera em dádiva de Polihamna, mulher de
Ton, nascida no Egito, país onde a terra, fértil em trigo, produz também
símplices em abundância, com os quais se preparam misturas, umas
benéficas, outras nocivas. Todos ali são médicos, os mais hábeis do mundo,
porque todos descendem do sangue de Péon" ("Odisséia", de Homero).
Segundo a mitologia egípcia Péon era considerado como o próprio médico
dos deuses.
-- *Anísis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C.*
Heródoto fala-nos de um faraó cego, sem citá-lo como lendário. Trata-se de
Anísis, que viveu muitas atribulações como rei dos egípcios em época
localizada aproximadamente 2.500 anos antes da Era Cristã. Em breves
palavras o Pai da História informa que durante seu reinado o Egito foi invadido
pelos etíopes--vizinhos do sul - não restando ao faraó outra alternativa a não
ser a fuga.
O então jovem rei fugiu através dos pântanos e ali viveu refugiado durante a
longa ocupação inimiga por nada menos do que 50 anos. Heródoto acrescenta
que "assim que Sábados" - o rei dos invasores - "deixou o Egito, Anísis (o
cego) saiu da região pantanosa onde se refugiara e retomou as rédeas do
governo. Tinha permanecido 50 anos numa ilha por ele próprio formada com
cinza e terra, pois quando os egípcios lhe iam levar víveres, cada um de acordo
com as suas posses, ele lhes pedia um pouco de cinza, que ia acumulando em
mistura com a terra" ("História", de Heródoto).
-- *A deficiência visual na mitologia egípcia*
O mesmo historiador refere-se a mais dois faraós que ficaram cegos, mas
seus nomes são um tanto lendários. O primeiro deles é Sesóstris, que dividiu o
Egito em 36 "nomos" e conquistou pelas armas todo o mundo conhecido. De
volta ao Egito com uma multidão de cativos, foi bastante exaltado, fez construir
muitos monumentos e mandou executar muitas obras de utilidade pública.
Ficou cego em sua velhice e acabou suicidando-se.
Seu sucessor foi Phéron, que ficou cego logo após assumir o poder. A
narrativa de Heródoto leva nos a analisar fatos bastante fantasiosos: "Conta-se
que tendo o Nilo transbordado dezoito côvados nessa ocasião" - correspondem
a mais de onze metros acima de seu leito original - "submergindo todos os
campos vizinhos, começou a soprar um vento impetuoso, agitando as vagas
com violência. Phéron, numa louca temeridade, tomou de um dardo e lançou-o
no meio do turbilhão das águas. Pouco depois seus olhos eram acometidos de
um mal súbito e ele ficava cego. Permaneceu dez anos nesse estado"
("História", de Heródoto).
No décimo primeiro ano, já muito arrependido, obteve do deus Nilo a
promessa de recuperar a visão, desde que lavasse os olhos com a urina de
uma mulher que nunca tivesse tido contato com outro homem senão com o seu
próprio marido.
A experiência com a urina de sua própria esposa não deu resultados. O
infeliz faraó continuou a fazer tentativas, até que um dia recuperou a visão.
Agradeceu ao deus Nilo com oferendas e tomou uma providência adicional:
reuniu todas as mulheres infiéis aos seus maridos - inclusive a sua - numa
cidade abandonada e mandou incendiá-la, matando a todas elas. Logo em
seguida casou-se com a mulher que lhe devolvera a visão.
-- *Um coral de homens cegos para Amenhotep IV*
Na XVIII Dinastia de faraós egípcios, ou seja, no século XIV a.C.,
Amenhotep IV destacou-se pelas suas fortes e persistentes tentativas de
introduzir no Egito o culto a um deus único. Durante os 18 anos de seu reinado
combateu duramente toda a plêiade de deuses e deusas, incluindo o mais forte
de todos eles: Amon.
O novo deus era representado pelo sol e seu nome era Aton. Em sua
homenagem Amenhotep IV alterou seu próprio nome para Akhenaton (ou
Ikhnaton), nome que significa "aquele que torna Aton feliz" ou algo semelhante.
Fez mais, mudando a sede imperial de Tebas para uma nova cidade planejada
para homenagear Aton: Akhetaton (hojeTel-el-Amarna). Foi casado com
Nefertiti, tendo o casal gerado seis filhas, ou seja, nenhum herdeiro do sexo
masculino, o que, segundo Neubert, talvez explique o rosto triste da rainha em
contraste com sua beleza pura, retratado numa famosa estatueta de 34 cm de
altura, que todos conhecem.
Foi considerado um idealista, um pacifista, um revolucionário. O clero
voltado ao deus Amon considerava-o evidentemente um herético.
Akhenaton era um homem doentio e sofria muito com ataques epiléticos,
então considerados como evidentes sinais de contatos com o seu deus. Vários
historiadores dedicaram-se a esse estranho faraó monoteísta. Contam alguns
deles que em sua nova capital ele cultuava esse seu deus único não só em
público, mas também particularmente e em especial quando sentia a iminência
da "aproximação de Aton", nos ataques de epilepsia. E, para não haver
testemunhas oculares de suas crises quando em palácio, só admitia cantores
cegos no coral masculino do templo do palácio.
Esse coral de homens cegos cantava em tons severos a exaltação a Aton,
em um hino que passou para a posteridade e do qual destacamos o seguinte
belo trecho:
"Quão vastos são os vossos trabalhos!
Eles estão escondidos em nossa frente,
O deus único, cujos poderes nenhum outro possui!
Criastes a terra de acordo com o vosso coração" (Apud Encyclopaedia
Britannica).
Akhenaton, o primeiro rei monoteísta e o que mais se destacou no Egito em
termos de idéias religiosas, viveu duzentos anos depois de Moisés ter deixado
o Egito com seu povo também monoteísta... Haveria alguma ligação entre uma
idéia e outra? O tema da vida de Akhenaton foi bem explorado por Mika
Waltari, escritor finlandês, no romance "Sinuhe, o Egípcio", depois
transformado em magnífico filme, com o título de "O Egípcio".
-- *As penas mutiladoras no Egito Antigo*
Durante os muitos séculos de sua interessante história os egípcios
conheceram as seguintes penalidades por crimes:
- a morte
- os trabalhos forçados
- a mutilação (das duas mãos, das partes genitais, do nariz, da língua ou das
orelhas)
- a servidão
- o flagelo
- o jejum forçado
- a infâmia
- o confisco de bens
- a multa
Eram penas freqüentemente aplicadas e não há indícios confiáveis de que
os faraós se voltassem de um modo especial para sua amenização.
Em geral a mutilação atingia os membros ou a parte do corpo com os quais
o condenado havia cometido seu crime.
Diodoro de Sicília, historiador grego radicado em Roma, contemporâneo
tanto de Augusto quanto de Caio Júlio César, afirma que cada um "pela
punição da parte do corpo com a qual o crime havia sido cometido, portava até
a morte uma indelével marca que, pela divulgação desse castigo, devia impedir
outros de agir contra a lei" (Apud Thonissen).
Era costumeiro no Egito Antigo mandar-se cortar o nariz da mulher adúltera,
enquanto que seu cúmplice recebia mil golpes de vara. Cortava-se também a
língua do espião delator, especialmente quando revelava segredos de Estado.
O conquistador etíope Actisanos, por exemplo, era um rei considerado
"bondoso", segundo Diodoro de Sicília. Essa bondade transparecia
principalmente durante anos de fartura e prosperidade. No entanto, mostrava-
se muito severo para com os assaltantes, os criminosos em geral e os
bandidos que punham a população sob contínuo terror. O famoso historiador
grego afirma que "ele não condenava os culpados à morte, mas não os deixava
sem punição. Reunindo todos os condenados do reino, tomou conhecimento
preciso de seus crimes; fez então cortar o nariz dos culpados, mandando-os
para os confins do deserto e fixando-os numa cidade que, para lembrar essa
mutilação, tomou o nome de Rhinocolura (de "rhinos" = nariz e "koluros" =
cortado)" (Apud Thonissen).
A cidade de Rhinocolura ficava próximo ao ponto em que hoje se localiza El-
Arish, no Sinai, nas costas do Mediterrâneo.
-- *Médico egípcio especializado em males da visão na corte de reis persas*
Conforme referimos anteriormente o rei Ciro, o Grande (reinou de 558 a 529
a.C), garantiu a presença contínua de médicos egípcios em sua corte. E devido
a graves problemas com doenças dos olhos que levavam muitos de seus
súditos à cegueira - sem muita diferença do Egito - Ciro solicitou também ao
faraó Ahmasis que lhe enviasse o seu melhor especialista. O faraó atendeu
imediatamente e o médico especializado em problemas da visão atuou na
Pérsia durante vários anos, combatendo a alta incidência de casos que corriam
riscos sérios de ficar cegos.
À morte do grande fundador do Império Persa, esse médico egípcio, que
jamais conseguira perdoar seu faraó por tê-lo mandado à Pérsia, onde ficara
longe de sua esposa e filhos e de seu próprio ambiente, começou a trabalhar o
jovem rei Cambises (reinou de 529 a 522), filho e sucessor de Ciro, para poder
vingar-se de Ahmasis e eventualmente voltar ao Egito. Chamou sua atenção
para a beleza da mulher egípcia e convenceu-o a pedir a filha do faraó para
casar-se com ela. O faraó, sabedor das intenções de Cambises e achando
inaceitável mandar sua filha para viver, como concubina do novo monarca,
enviou em seu lugar a filha de Apries, faraó por ele destronado.
A linda jovem Nitétis chegou a Cambises com vestidos caríssimos e cheia de
jóias. Mas logo Cambises ficou sabendo do engano, pois, conforme relata o
historiador Heródoto, "algum tempo depois, como Cambises a saudasse pelo
nome do pai, ela replicou: Ahmasis, senhor, vos enganou. Enviou-me ele a vós
com estas ricas indumentárias em lugar de sua filha. Meu pai chamava-se
Apries, por ele destronado e morto pelos egípcios que se sublevaram sob seu
comando" ("História", de Heródoto).
Cambises ficou enfurecido e pouco depois invadiu o Egito (em 525 a.C.)
como desforra pela deslealdade de que se sentira vítima. Deixou governando a
Pérsia seu irmão mais novo, Smérdis. Ao vencer Ahmasis e tomar posse de
todo o Egito, no qual permaneceria até sua morte, encerrou a XXVI Dinastia e
introduziu os faraós da XXVII Dinastia.
-- *Gaumata, um famoso mago de orelhas amputadas*
O mesmo Cambises, logo ao início de seu reinado de sete anos, mandara
um dia amputar as orelhas de um mago de sua corte devido a faltas muito
graves. O castigo era inusitado para os magos, pois eles eram membros
importantes da casta sacerdotal persa.
Apesar da forte marca pelo resto de seus dias, o mago castigado, cujo nome
era Gaumata, disfarçou muito bem sua deficiência infamante, pois a
circunstância de ser bastante parecido com Smérdis, irmão de Cambises,
acabou levando-o a usurpar o trono persa.
Como sucedeu o logro? Heródoto conta-nos que durante a ausência da
Pérsia em campanha no Egito, Cambises aos poucos começou a desconfiar
seriamente de Smérdis, seu irmão, que havia deixado como ocupante
provisório do mais alto mandato para governar a região em sua ausência
prolongada. Sob um forte esquema sigiloso mandou seus oficiais de confiança
matar seu irmão, o que foi feito sem qualquer comoção junto às tropas persas
ou junto à nobreza, pois na verdade ninguém ficou sabendo do hediondo crime.
No entanto, o esperto Gaumata soube do evento e apareceu em cerimônia
da corte como o próprio Smérdis, sem qualquer surpresa, tal sua parecença
com o rei assassinado.
Houve tentativas frustradas para desmascarar a fraude levada a efeito por
um homem que poderia estar marginalizado devido às suas orelhas cortadas.
Sete líderes das melhores e mais fortes famílias persas decidiram
cautelosamente esclarecer o assunto e na tentativa final participou uma jovem
de nome Fédima, uma das concubinas do falso rei da Pérsia. Ela pertencia a
uma das sete famílias interessadas e, instigada pelo pai, verificou no meio da
noite, enquanto o falso rei dormia, que se tratava de Gaumata (ela viu que suas
orelhas eram realmente amputadas) que continuamente disfarçava o problema
com os cabelos longos usados então.
E foi exatamente nesse ponto importante da História Persa que surgiu a
vivaz figura de Dario, jovem e audacioso nobre persa que até então fizera parte
da guarda pessoal de Cambises, que assumiu rapidamente a liderança do
grupo dos sete líderes que sempre havia desejado livrar o Império daquele
impostor.
Smérdis (na verdade, Gaumata, o mago de orelhas amputadas) foi morto
pelo próprio Dario, tendo conseguido permanecer por sete meses no trono
como soberano persa.
O evento foi imortalizado num famoso e estranho monumento nas
montanhas de Behistun, a oeste do Iran, gravado em pedra a mais de 100
metros de altura, com dizeres em três línguas diferentes e em caracteres
cuneiformes. Nesse alto-relevo, concluído em 516 a.C., aparece Dario pisando
o prostrado Gaumata, tendo à sua frente mais oito reis por ele vencidos. Dentre
eles cumpre que chamemos a atenção para o último da fila, de chapéu
ponteagudo à cabeça, ou seja, o rei Phaortes II que foi duramente castigado
por sua resistência às forças de Dario: teve seu nariz, suas orelhas e sua
língua amputados e seus olhos vazados.
Em conseqüência do desmascaramento do falso monarca Smérdis, ocorreu
uma verdadeira chacina geral dos magos na cidade de Persópolis. Foi então
instituída a grande festividade persa que foi comemorada por muitos séculos,
conhecida pelo nome de "magofonia" (de "magos" = mago e "phonia" =
matança).
Subiu ao trono o jovem Dario I (reinou de 521 a 485 a.C.) graças a um
truque denotador de sua criatividade e vivacidade, e que devido a um acidente
logo ao início de seu reinado quase foi vítima de uma bastante séria limitação
física, da qual se livrou graças a um médico grego, conforme veremos mais
adiante ao nos referirmos à expansão da medicina grega e seus famosos
médicos.
-- *Zópiro; tudo pela vitória de Dario I em Babilônia*
Dentre os sete magnatas persas que colaboraram para a eliminação de
Gaumata, o mago de orelhas cortadas de que falamos acima, Zópiro foi o que
mais se sobressaiu, tendo marcado sua existência por uma extremada amizade
por Dario I.
Embora fosse sátrapa (governador) de uma das províncias persas,
colaborou forte e decisivamente na feroz batalha pela tomada da sempre
cobiçada Babilônia, capital do Império Assírio, cujo imperador era
Nabucodonosor III. Na verdade, Zópiro viabilizou diretamente a queda de
Babilônia por meio de um truque único na História do mundo: Fez com que
seus servos o chicoteassem até o sangramento e logo em seguida
amputassem seu nariz e suas orelhas. Nesse lamentável estado apresentou-se
às forças assírias e culpou Dario I por aquele "castigo". Eles acreditaram e o
aceitaram em seu meio. Mais do que isso, face ao ódio que Zópiro
demonstrava contra Dario, e considerando sua experiência militar, agregaram-
no logo ao próprio sistema de defesa das muralhas, encarregando-o da guarda
de dois portões que davam acesso à maravilhosa cidade.
Nessa privilegiada condição de comandante, ele próprio abriu o acesso às
forças de Dario que conquistaram Babilônia em 519 a.C. E em reconhecimento
pelo seu feito heróico e de lealdade fora do comum, Dario I deu-lhe o governo
de Babilônia, concessão essa garantida a seus descendentes.
Luís de Camões faz menção ao feito heróico de Zópiro com os seguintes
versos:
... "Que mais o Persa fez naquela empresa
Onde rostos e narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa
Que, mil vezes dizendo, suspirava
Que mais o seu Zópiro são prezara
Que vinte Babilônias que tomara" ("Os Lusiadas", de Camões).
-- *A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C.*
Ainda durante a vida de Aristóteles, o grande sábio ateniense, Alexandre, o
Grande, praticamente conquistou o mundo ocidental conhecido em sua época
e fundou cidades cujos habitantes falavam grego e adotavam costumes gregos.
No ano de 332 a.C. fundou no delta do rio Nilo a cidade de Alexandria, que foi
por muitos anos o maior centro de cultura do mundo.
Alexandria era uma cidade moderna, com suas ruas em forma de xadrez de
linhas paralelas, canais subterrâneos para dejetos humanos e para água
servida em cada uma delas; duas avenidas principais com mais de 60 metros
de largura e o Grande Farol -- uma das sete maravilhas do mundo -- eram
algumas das características marcantes da famosa cidade.
O sucessor de Alexandre, Ptolomeu Soter, reinou no Egito de 323 até 285
a.C. e foi um grande protetor e promotor da sabedoria e da cultura. Sob seu
reinado foi criada a mundialmente famosa Escola de Alexandria. E dentre suas
diversas unidades destacou-se desde logo a Escola de Anatomia, inserida na
Academia de Ciências.
A medicina egípcia -- que procurava dar cobertura a males que afetavam
duramente o povo e as classes privilegiadas, inclusive a problemas de ossos e
dos olhos, que levavam a muitas deficiências físicas e sensoriais -- fez rápidos
progressos científicos após a instalação da Escola de Anatomia. E nela, dois
nomes destacaram-se face à importância de seus estudos para melhor
compreensão dos males incapacitantes; Herophilus de Chaludônia e
Erasistratus de Kéos.
- Herophilus foi um anatomista que viveu no século IV a.C. e um dos
fundadores da Escola de Anatomia. Um dos primeiros médicos a
desenvolverem exames post-mortem, pôde estudar em muitos pormenores o
globo ocular e os males que levavam à cegueira, como a catarata. Dentre seus
diversos estudos ressalta-se aquele que demonstra o valor curativo da
ginástica e dos exercícios físicos. Ele é considerado como o "Pai da Anatomia".
- Erasistratus de Kéos, igualmente do século IV a.C. foi também um renomado
anatomista e fisiologista, co-fundador da Escola de Anatomia, ao lado de
Herophilus. Seus estudos levaram-no a sugerir que o excesso de sangue no
corpo (chamava de "pletora") era a causa de muitos males, inclusive de um mal
considerado como sagrado, que era a epilepsia. Sua terapêutica preferida era
também o exercício físico. É considerado como o "Pai da Fisiologia".
-- *Os egípcios sob os olhos críticos de um imperador romano*
Adriano (Publius Aelius Hadrianus -- 76 a 138 d.C.) foi imperador de 117 até
o ano de sua morte. Durante sua gestão o Império Romano viveu anos de
grande desenvolvimento.
O imperador viajou durante vários anos por quase todos os quadrantes do
vasto Império e no ano 130/131 esteve no Egito não só como imperador mas
também como estudioso dos usos e costumes do Egito. E, em uma carta
escrita a seu cunhado Serviano, Adriano afirma: "Tenho estudado bem os
egípcios de que me falaste"... "A sua cidade é de tudo abundante, e pessoa
alguma está ali ociosa, nem mesmo os cegos. Um sopra o vidro; outro faz
papel, aqueles tecem; todos se ocupam em algum mister" ("História Universal",
de Cantu).
2. Os Hebreus
Analisar os usos e costumes de um povo multimilenar sem conhecer um
pouco de sua história é tarefa inviável. No caso dos hebreus, por exemplo,
esse conhecimento torna-se muito importante para nós, face às estreitas
ligações que com eles temos mantido através dos séculos.
Dentre elas, a mais significativa é o monoteísmo. O povo hebreu adotou-o
em meio a uma tendência generalizada ao politeísmo, muito típico das culturas
mais antigas. Existem autores que chegam a fazer uma relação entre sua
adoção pelos hebreus e as tentativas do já citado faraó egípcio Ikhnaton, que
pregava a existência de um deus único a seus adeptos de Akhetaton,
aspirantes ao sacerdócio. No entanto, o monoteísmo hebreu vem de épocas
bem anteriores à própria migração das várias tribos ao Egito, ou seja, desde o
patriarca Abraão. O culto ao Deus Único e Verdadeiro dos hebreus foi
estruturado por Moisés e a própria elaboração do decálogo leva à sua
sustentação. Foi esse mesmo Deus Único (Javé) que se transformou no mais
forte elo de ligação das doze tribos do povo hebreu através dos séculos.
Como surgiu esse sofrido povo hebreu? Originalmente alguns grupos de
famílias nômades de origem hebraica, provenientes da Mesopotâmia,
habitaram a Palestina por muitos séculos. De lá foram tangidas pela escassez
de alimentos e de bons pastos para seus rebanhos. Gradativamente dirigiram-
se para as férteis terras do delta do rio Nilo, sobejamente conhecidas pelos
mercadores e caravaneiros. E lá entraram quase ao mesmo tempo que os
povos hicsos, também afastados de suas terras pela falta de alimentos. Ali
viveram por 430 anos, mudando seus hábitos e passando do nomadismo para
atividades de um povo mais fixado à terra, mas sob escravidão.
Após a expulsão dos hicsos pelos exércitos do faraó, pelo ano de 1570 a.C.,
os hebreus perderam seu ponto principal de sustentação e começaram a ser
considerados como indesejáveis. E foi provavelmente no reinado de Tutmés I,
morto em 1512 a.C., que os hebreus, sob o forte comando de um líder que
conhecia muito bem as altas esferas governamentais egípcias e seu sistema
de funcionamento, Moisés, iniciaram seu êxodo na direção da Terra Prometida,
tão sonhada durante todos os anos de permanência no Egito. Aquele povo
buscava um retorno à sua terra original, terra de seus ancestrais.
Na verdade, tratava-se de um povo que havia abandonado
circunstancialmente o nomadismo dos pastores há poucas gerações,
dedicando-se à vida agrícola, e que se via de certa forma forçado a voltar a um
quase que indesejável nomadismo, na busca da sua terra, onde poderia se
instalar em definitivo. A maioria certamente nem imaginava que ficaria
perambulando pelo deserto durante mais de 40 anos...
Após toda a migração pelo deserto os hebreus tiveram que enfrentar a
resistência natural daqueles que tinham passado a ocupar seus antigos
territórios. As doze tribos uniram-se para fazer frente às dificuldades e
combateram os moabitas, os amoritas, os filisteus, entre outros.
Após a morte do rei Salomão, dez tribos instalaram-se ao norte da Palestina,
com sua capital na Samaria, passando a identificar-se como Reino de Israel.
Duas tribos ficaram mais ao sul, com sua capital em Jerusalém, constituindo o
reino de Judá.
Com o passar de muitos séculos os hebreus foram combatidos e dominados
pelos assírios, babilônios, persas e pelos macedônios de Alexandre, o Grande.
Caíram finalmente sob a possessão romana em 63 a.C.
Todas essas lutas, opções, fugas, migrações forçadas, dominações,
desterros e conseqüentes sofrimentos fizeram os hebreus viverem por milênios
em ambientes rudes e situações por vezes muito cruéis. Essas imensas
dificuldades vividas por um povo tão sofrido e sonhador num futuro libertador, o
Messias, transparecem em seus códigos de leis e costumes antigos. Nota-se
neles também a absorção de práticas adotadas por outros povos com os quais
foi forçado a se relacionar. E dentre esses usos e costumes, normas e leis que
formaram o importante acervo cultural e religioso do povo hebreu, vejamos
alguns que se relacionam com pessoas portadoras de deficiências e
identifiquemos alguns de seus líderes que viveram sob o impacto de limitações
variadas, especialmente da visão e da palavra.
-- *Noé: a primeira pessoa com deficiência?*
Noé, o décimo descendente de Adão segundo as palavras do Gênesis,
homem honesto (e sua arca tão universalmente comemorada), é uma das
primeiras figuras muito humanas a nós repassadas pela Bíblia, em
contraposição a outras figuras a ele anteriores, com as de um Adão meio
ingênuo, de um Abel sonhador, de um Caim vilão e fratricida e de um
Matusalém muito elevado em anos.
O nascimento de Noé nos é descrito pela Bíblia (Gênesis) em palavras muito
breves. Existe, no entanto, um documento escrito em linguagem "apocalíptica"
(repleta de sinais) conhecido como "Livro de Enoc, o Profeta", que parece ter
sido escrito um ou dois séculos antes do nascimento de Jesus. É um
documento proscrito pela Igreja Católica. Pois bem, nesse livro o nascimento
de Noé é relatado em termos mais ou menos místicos e nos dá conta de alguns
problemas bem humanos e concretos.
"Depois de algum tempo meu filho Matusalém escolheu uma esposa para
seu filho Lamec. Ela engravidou e deu à luz uma criança cuja pele era branca
como a neve e vermelha como uma rosa; cujo cabelo era comprido e alvo
como a lã e cujos olhos eram lindos. Quando os abriu iluminou toda a casa,
como o sol; a casa toda ficou cheia de luz".
Lamec, pai do rebento, ficou intrigado com a aparência do recém-nascido e
no fundo da alma deve ter duvidado da fidelidade de sua esposa. Foi procurar
seu pai, Matusalém, a quem descreveu o menino, informando dentre outras
coisas: ... "parece o fruto dos anjos do céu; é de natureza diferente da nossa,
sendo no todo diferente de nós"..."ele parece não ser meu, mas dos anjos".
Com as características básicas de um albino, o bebê devia realmente ser
muito diferente dos primos, tios, avós e demais parentes, todos morenos e de
olhos escuros. E essa diferença deve ter sido considerada problemática o
suficiente para levar o avô Matusalém, já com 369 anos de idade, a
empreender uma viagem longa e cansativa para procurar seu pai, o patriarca
Enoc, bisavô do recém-nascido, retirado do mundo "nas extremidades da
terra".
Enoc, o velho patriarca, analisou a questão com a sabedoria de seus muitos
anos de vida, com o seu misticismo nato e informado por seus alegados
contatos diretos com Deus. Matusalém voltou sabendo que o bebê era, de fato,
filho de Lamec, que ele deveria ser chamado de Noé (Consolo da Terra) e com
isso ser preparado para os eventos que culminariam com o dilúvio, 600 anos
após.
Ao discutir a eventual origem do albinismo de Noé, Sorsby, a quem devemos
os textos acima do "Livro de Enoc, o Profeta", comenta que Lamec e sua
esposa eram primos em primeiro grau, sendo "o tipo comum de
consangüinidade em albinismo".
O autor citado conclui com certa dose de ironia britânica: "A possibilidade de
Noé ter herdado o albinismo de um anjo caído não necessita ser considerada
com seriedade. Essa hipótese levanta consideráveis dificuldades genéticas.
Uma delas teria que postular que BT'NWS" - a esposa de Lamec - "e o anjo
seriam portadores não-relacionados do gens numa época em que não deveria
estar amplamente espalhado, ou também, alternativamente e ainda menos
plausivelmente, que o albinismo é mais dominante nos anjos do que nos
homens" ("Noah--an Albino", de Sorsby).
-- *As deficiências físicas entre os hebreus*
Para os antigos hebreus tanto a doença crônica quanto a deficiência física
ou mental, e mesmo qualquer deformação por menor que fosse, indicava um
certo grau de impureza ou de pecado. Tanto isso é verdade que chegou a ser
determinado por Moisés no seu livro "Levítico" (conjunto de normas e
orientações para os sacerdotes): "O homem de qualquer das famílias de tua
linhagem que tiver deformidade corporal, não oferecerá pães ao seu Deus,
nem se aproximará de seu Ministério; se for cego, se coxo, se tiver nariz
pequeno ou grande, ou torcido; se tiver um pé quebrado ou a mão; se for
corcunda "...
No tratado de Bekhorot são citados oito tipos de defeitos, inclusive a falta de
orelhas, seu tamanho ou formato defeituoso, como impedimento para os
serviços do templo. A discriminação contra pessoas portadoras de qualquer
deficiência era, portanto, aberta e manifesta nas próprias leis. E certos livros da
Bíblia dão-nos algumas indicações de costumes ou de ambientes, além de
apresentar relatos às vezes elaborados na própria época, sobre os
preconceitos contra pessoas e mesmo contra animais defeituosos.
Será interessante saber que no verbete "defeito" da Enciclopédia Judaica
lemos o seguinte texto: "Defeito (Heb. mum) -- Termo bíblico referente a um
defeito físico ou ritual, que excluía uma pessoa do serviço do templo e tornava
um animal impróprio para ser sacrificado. Segundo a Bíblia, existem doze
defeitos físicos aparentes, qualquer um dos quais desqualifica um sacerdote
para o desempenho de suas funções (Lev. 21:16-23), mas a "Halachah"
aumenta essa lista para cento e quarenta e dois. Os defeitos físicos que
desqualificam um animal para o sacrifício também são enumerados (Lev.
22:20-25) e aumentados para setenta e três na Lei Rabínica. Um defeito
temporário desqualifica um sacerdote para sua função e um animal, para o
sacrifício, apenas pelo tempo que durar. Segundo a Lei Rabínica, por exemplo,
um defeito físico do marido ou da mulher pode, em certas circunstâncias, até
invalidar um contrato de casamento".
O Levítico é contundente quanto aos homens portadores de deficiências
físicas, afirmando taxativamente: "Todo homem da estirpe do sacerdote Arão
que tiver qualquer deformidade (corporal), não se aproximará a oferecer
hóstias ao Senhor, nem pães ao seu Deus; comerá todavia dos pães que se
oferecem no santuário, contanto, porém, que não entre do véu para dentro,
nem chegue ao altar, porque tem defeito e não deve contaminar o meu
santuário" (Lev. 21:21-23).
-- *A cegueira de Isaac por 80 anos*
Segundo nos é colocado pelo Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, o grande
patriarca hebreu Isaac ficou cego por muitos anos. Talvez seja ele o homem
que mais tempo viveu numa situação de deficiência.
A bonita e por vezes empolgante história de Isaac indica-nos que se casou
com uma linda jovem da Mesopotâmia, Rebeca, que lhe gerou dois filhos do
sexo masculino somente 20 anos após o casamento: Esaú e Jacó. Eram
gêmeos, tendo Esaú nascido em primeiro lugar.
Esaú era considerado como primogênito, mas era um homem rude, cheio de
pêlos no corpo e nas mãos, que se tornou caçador, dedicado às atividades do
campo e da guerra, enquanto que Jacó era um homem simples e, como diz o
Gênesis, "habitante de tendas". O pai preferia seu primogênito pelo que era e
pelo que trazia das caçadas; Rebeca dedicava sua atenção e carinho a Jacó,
protegendo-o sempre e mal imaginando que ele se transformaria no maior
patriarca hebreu e que um dia receberia de Deus o nome de Israel ("O que luta
com Deus").
Embora primogênito, Esaú não titubeou em vender seus direitos a Jacó sem
muitos questionamentos.
Mais ou menos à época em que estava com 100 anos de idade Isaac ficou
cego. É desta forma que o Gênesis o relata: "Ora, Isaac envelheceu e a vista
escureceu--se-lhe e não podia ver" (Gen. 27:1).
O mesmo livro conta-nos em pormenores marcantes o verdadeiro golpe
tramado por Rebeca para obter as bênçãos formais de Isaac ao seu filho Jacó.
Para tanto foi fundamentalmente importante o fato do velho Isaac estar cego,
muito embora se mantivesse desconfiado e estivesse muito atento àquele
importante momento da vida de seu clã. Mesmo desconfiado, Isaac acabou
dando sua bênção solene a Jacó que se disfarçara com peles de carneiro pelo
corpo e nas mãos e vestira as roupas de Esaú.
Mais tarde Isaac explicaria a Esaú o engano e daria o veredito final: "Eu o
constituí teu senhor e sujeitei à sua servidão todos os seus irmãos; estabeleci-o
na posse do trigo e do vinho. Depois disto que te posso eu fazer, meu filho?"
Nem o fato de ser cego e de ter-se enganado devido à deficiência visual levou
Isaac a mudar sua posição anteriormente assumida.
Isaac viveu até os 180 anos de idade e dessa vida toda passou 80 anos na
dependência de Rebeca e de seus criados. Não fôra a vivacidade de Rebeca e
de Jacó, o abençoado e herdeiro na grande família teria sido Esaú, o homem
rude, o caçador, o guerreiro. A história do povo hebreu teria sido diferente e
não teria evoluído da forma como evoluiu sob a inspirada liderança de Jacó.
-- *Moisés e suas sérias dificuldades em falar com clareza*
De acordo com afirmações inseridas no livro de sua autoria, o "Êxodo",
Moisés foi vítima de um sério e perturbador distúrbio da comunicação. Esse
problema, já antigo em sua vida, deve ter-se agravado num momento de forte
tensão em que ele, morador no deserto por muitos anos, decidiu levar seu
rebanho ao monte Horeb para pastar. No meio da noite calma viu uma grande
touceira de sarça pegando fogo, mas sem queimar. Aproximando-se com
cautela, ouviu uma voz que, segundo suas informações, era do próprio Deus,
chamando-o para a grande missão de sua vida: tirar os hebreus do Egito e
conduzi-los à Terra Prometida.
A reação de Moisés, naquele momento, foi no mínimo cuidadosa. Eis o que
está registrado no Êxodo: "Perdoa, Senhor, eu não falo bem desde ontem e
antes de ontem" - quer dizer, há muitos anos - "e desde que falaste ao teu
servo sinto-me com mais dificuldade e mais atrasado em minha língua".
Mas Deus contra-argumentou, segundo Moisés, com o seguinte e forte
questionamento: "Quem faz a boca do homem? Ou quem faz o mudo e o
surdo, o vidente e o cego? Sou eu?"...
Deus procurou encorajá-lo também por outros meios para enfrentar os
desafios que se punham à sua frente, ou seja, os líderes hebreus e a corte do
faraó, chegando a demonstrar que Ele estaria efetivamente ao seu lado.
Mesmo assim Moisés continuou cônscio de suas limitações quanto à
desenvoltura em falar, o que levou Deus a indicar uma solução: o irmão de
Moisés, Aarão, seria seu companheiro de todas as horas, tanto para
convencer os líderes hebreus quanto para falar ao faraó nas horas aprazadas.
Aliás a figura de Aarão foi vital para o sucesso de todo o ambicioso projeto,
uma vez que os planos, os comentários, as novas ações e providências, e
mesmo os novos argumentos eram diretamente transmitidos por Deus a
Moisés e este os repassava a Aarão. Por sua vez este não dispensava nunca a
carismática presença de Moisés e tudo transmitia ao faraó e sua corte, aos
líderes hebreus e ao povo, tendo desempenhado essa missão por muitos anos.
Após diversas tentativas frustradas de tirar o povo de uma escravidão cada
vez mais opressora, Moisés queixou-se com seu Deus: "Eis que sou
incircunciso dos lábios, como me ouvirá o faraó?" Deus continuou com a
mesma orientação operacional até então adotada, indicando Aarão mais uma
vez como seu porta-voz: "Tu lhe dirás tudo o que te mando e ele falará ao
faraó". . .
Apesar dessa deficiência funcional de ordem bastante grave face ao papel
indicado e assumido por Moisés, ele conseguiu sair-se bem da missão, com a
ajuda permanente de seu irmão Aarão e foi, sem dúvida, uma das mais fortes
figuras de toda a História dos Hebreus. Foi um grande legislador, profeta,
mediador dos hebreus e grande líder daquele povo que conseguiu tirar da
mais negra escravidão. Conseguiu ele, com a superação de sua deficiência e
com um indispensável carisma pessoal, além de um profundo conhecimento do
deserto, realizar a grande proeza de levar mais de meio milhão de hebreus
com seus pertences e criações das terras do Egito até as fronteiras da Terra
Prometida a Jacó, onde nunca entrou.
-- *As leis criadas no deserto do Sinai*
De acordo com o "Êxodo", durante a épica migração de todo o povo hebreu
do Egito para a Terra Prometida, quando estacionado por anos a fio no sopé do
monte Sinai, Moisés elaborou não apenas o Decálogo, mas muitas outras
determinações, regulamentos e leis adicionais que se destinavam a pôr um fim
às mazelas de um povo volúvel e a tentar ordenar sua vida. Assim é que havia
leis e normas a respeito de escravos, de conflitos e suas soluções, de
homicídios e seus castigos, de roubos, de seduções, de magia e também a
respeito de diversos assuntos de medicina.
Moisés elaborou com muito cuidado os preceitos relacionados à higiene e à
saúde de seu povo, no cenário grandioso do deserto, lembrando muitas
daquelas normas que ele conhecia muito bem do Egito, onde havia sido
educado bem próximo à nobreza e aos sacerdotes. Não é, portanto, de
espantar que apenas sobre a hanseníase haja capítulos inteiros do "Levítico".
E exatamente como no Egito e outros países da Mesopotâmia ele colocava a
responsabilidade da medicina sob os cuidados dos sacerdotes, que eram os
Levitas.
Na legislação dos hebreus daquelas eras violentas e muito problemáticas
nas quais era fundamental manter o povo unido, mas também disciplinado,
apenas argumentos relacionados à vontade expressa de Deus ("temerás o
Senhor teu Deus, porque eu sou o Senhor") não surtiram os efeitos esperados.
A lei de talião, reinante em alguns países de então, foi também introduzida pelo
líder maior, Moisés, que certamente já conhecia o Código de Hamurabi.
Algumas dessas severas normas lavradas em pedra muitos anos antes de
Moisés existir passaram para o código dos hebreus quase que com as mesmas
palavras.
-- *O Código de Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus*
No Museu do Louvre, em Paris, existe o original do Código de Hamurabi.
Trata-se de uma pequena coluna de 2,25 m de altura, de cor negra, em forma
de cone, e toda escrita em caracteres cuneiformes. Essa obra está dividida em
46 pequenas colunas em toda a sua volta, com 3.600 linhas escritas. Bem ao
alto, num baixo-relevo bastante claro, o grande monarca da Babilônia
apresenta-se em atitude de adoração diante de Shamash, o deus do sol e das
leis. O texto, segundo seus estudiosos, não apresenta nenhuma divisão a não
ser esta: sua primeira parte relaciona-se a propriedades e sua segunda parte a
pessoas. É a coleção mais antiga de leis que se conhece -- bem mais antiga
que o Decálogo de Moisés e que as normas por ele traçadas no "Levítico", com
o qual existem pontos de similaridade eventual. Há semelhanças também no
"Deuteronômio". Vejamos alguns pontos que indicam, como punição,
amputações.
"Eu, Hamurabi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis, que conquistei
as cidades do Eufrates, introduzi a verdade e a eqüidade por todo o país e dei
prosperidade ao povo. De hoje em diante"..."Se alguém apagar a marca de
ferro em brasa de um escravo, terá seus dedos cortados"..."Se um médico
operar um patrício com faca de bronze e causou-lhe a morte, ou abriu-lhe a
órbita do olho e causou-lhe a destruição, terá sua mão cortada"... ..."Se um
escravo disser ao seu dono: "Tu não és meu Senhor", seu senhor provará que
o é e cortará sua orelha"..."Se um homem bater em seu pai, terá as mãos
cortadas"... ..."Um olho por um olho, um dente por um dente. Trata-se de
justiça sem piedade. Se um homem tira um olho de um patrício, também seu
olho será tirado; se ele quebrou o osso de um patrício, seu braço será
quebrado. As classes inferiores da sociedade também merecem
compensações. Se ele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele
deverá pagar uma miná de prata; se foi de um escravo, pagará metade de seu
preço"...
No "Levítico" há textos e palavras tão semelhantes que parecem pura cópia.
Eis um deles: "Se alguém ferir o olho de seu escravo ou de sua escrava e os
deixar cegos de um olho, deixa-los-á ir livres pelo olho que lhes tirou"..."O que
ferir qualquer de seus compatriotas, assim como fez, assim se lhe fará a ele;
quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; qual for o mal que
tiver feito, tal será o que há de sofrer". A mesma linha de pensamentos
encontramos no "Êxodo": "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por
pé"...
Para nós torna-se óbvio que tanto entre os babilônios como entre os antigos
hebreus sempre houve muitas pessoas marcadas por crimes cometidos. No
entanto, nem sempre a deficiência ou deformação física ou sensorial
correspondiam a uma demonstração de castigo por feitos delituosos ou à
"troca" por males cometidos a outrem. Reis, generais, líderes, soldados eram
por vezes castigados por combaterem os grandes poderosos e levavam
consigo pelo resto de seus dias as marcas impostas pelos vencedores, como
aconteceu com Sedecias.
-- *Sedecias, rei de Judá: cego por Nabucodonosor*
Sedecias foi o último rei de Judá. Além de mencionado na Biblia (Segundo
Livro dos Reis e Jeremias), Sedecias é também citado em diversos
documentos e crônicas da Babilônia que relatam os principais acontecimentos
políticos, religiosos e guerreiros dos séculos VI e VII a.C. sob o ponto de vista
babilônico. Segundo todos esses documentos e relatos, Nabucodonosor,
famoso rei da Babilônia, colocou Sedecias no trono do reino de Judá, como
substituto ao destronado Joaquim, refém mantido na capital do reino
babilônico.
Apesar de ter sido indicado e empossado por Nabucodonosor, Sedecias logo
começou a conspirar contra o poderoso rei, fazendo contatos pessoais com
diversos monarcas dos minúsculos países e também com o faraó egípcio.
Sedecias tinha apenas 21 anos de idade ao iniciar seu reinado e sua intenção
era empreender uma guerra geral contra o monarca conquistador.
No entanto, no nono ano do reinado de Sedecias, Nabucodonosor, bem
informado das pequenas conspirações e traições, tomou providências
enérgicas. Mandou todo o seu exército cercar Jerusalém e lá se plantou
durante dois anos. Em 586 a.C. o exército sitiante conseguiu abrir uma brecha
na muralha externa da cidade e o povo, já sem pão por muito tempo, sofreu
todo o impacto da fúria dos soldados invasores que buscavam tesouros, que
incendiavam, que matavam e que espalhavam o pânico para todos os lados.
Sedecias, ciente do perigo, fugiu pelos jardins dos fundos do palácio, mas foi
preso, e levado à presença do temido rei da Babilônia, em Riblah, ao lado de
Jerusalém. Seus filhos ainda novos foram mortos em sua presença. E segundo
todos os documentos,
Sedecias teve seus olhos vazados ali mesmo. E quando o enorme exército
movimentou-se de volta a Babilônia, levando as últimas levas de prisioneiros
de Judá, Sedecias, carregado de ferros, cego e amargurado, empreendeu a
mesma caminhada. Terminou seus dias numa prisão da Babilônia.
O Livro de Jeremias assim relata o infortúnio de Sedecias: "E degolou o rei
da Babilônia os filhos de Sedecias ante seus olhos; e matou também a todos
os príncipes de Judá em Riblah. E tirou os olhos a Sedecias, e o carregou de
ferros e o rei da Babilônia o conduziu a Babilônia e o pôs na casa do cárcere
até ao dia de sua morte" ("Jeremias", 52:10/11).
-- *O preço da paz: um olho de cada habitante*
Os Amonitas, povo habitante a leste do rio Jordão, foram contínuos inimigos
dos hebreus (na verdade aqueles que compunham as tribos de Israel e não as
de Judá) em épocas bem anteriores aos anos de problemas com o cativeiro da
Babilônia, ou seja, em épocas que beiram a um milênio antes da Era Cristã. O
Primeiro Livro dos Reis conta-nos que Najash Amonita, ao sitiar a vila de
Yabesh-Guilead, recebeu uma preocupada proposta da população sitiada, para
não ser dizimada. Os anciãos da vila foram os portadores da seguinte
mensagem: "Toma-nos como aliados e nós te serviremos"...
Najash Amonita, inimigo cruel ao extremo, respondeu: "A aliança que eu
farei convosco será tirar-vos a todos o olho direito e tornar-vos o opróbio de
todo o Israel".
Os anciãos da vila sitiada conseguiram, no entanto, o apoio de um famoso
herói da Bíblia, que foi Saul. Ele conseguiu juntar, na base de violentas
ameaças àqueles que não aderissem, um exército de trezentos mil homens das
tribos próximas de Israel e mais trinta mil das tribos de Judá. Com esse
impressionante contingente bateu decisivamente o exército inimigo que
apavorava o pacato povo de Yabesh-Guilead. Já anteriormente ungido por
Samuel como primeiro rei de Israel, foi nessa oportunidade que Saul foi
confirmado como tal.
-- *Mais normas e o papel do médico*
Ao analisar as muitas normas que orientaram a vida do povo hebreu pelos
seus muitos séculos de existência, notaremos que gradativamente elas foram
entrando em pormenores bastante indicativos das muitas ocorrências que
levavam a necessidade de sua criação. No Tratado de Kidushin (sétimo e
último tratado da Ordem de Mishnah Nashin, do Talmud) encontramos o
seguinte trecho que nos é transmitido por Heiman: "Se alguém pegar um
homem e lhe soprar a orelha, daí resultando a surdez, o agressor será punido
de acordo com a lei. Da mesma forma, quem golpear seu pai na orelha e assim
provocar a surdez, será condenado à morte, pois em conseqüência do
ferimento, uma gota de sangue penetrou no interior da orelha" (Apud Heiman).
Poucos são os documentos da antiga cultura dos hebreus que nos falam
sobre o progresso da medicina. Dentre eles, cumpre que façamos menção a
alguns livros da Bíblia, ao Talmud e aos escritos de Flávio Josefo, em especial
na sua "História dos Hebreus”.
Além de material escrito, alguns líderes e homens especiais que sempre
tiveram influência sobre o povo hebreu também influenciaram quanto ao
desenvolvimento de sua medicina. Esses foram os casos de alguns reis e de
diversos profetas. Ao que parece pelos relatos contidos na Bíblia, os profetas
de Israel não eram meros homens que previam acontecimentos (em certas
épocas conhecidos como "videntes", conforme nos é contado no "Primeiro
Livro dos Reis" ao relatar a história de Saul), mas personalidades que se
preparavam muito bem para sua missão, estudando muito e tornando-se
verdadeiros sábios, e que, exatamente por esse motivo e pela sua bondade,
desfrutavam da total confiança do povo hebreu. E com a fé que despertavam,
chegavam mesmo a realizar milagres.
Muitos dos conselhos e dos preceitos deixados por homens dessa natureza
levaram o povo a moderar seu modo de agir, a alterar seus costumes e a
respeitar tudo aquilo que julgava vir de Deus, como, por exemplo, a importância
da medicina e do papel do médico para o povo hebreu. Segundo o "Livro da
Sabedoria" de Sirac, muito mais conhecido como "Eclesiástico", era bem alto o
conceito dos médicos na cultura hebréia. Lá encontramos afirmações como
esta: "Honra o médico, porque ele é necessário; porque o Altíssimo foi quem o
criou. Porque toda a medicina vem de Deus e receberá donativo dos reis. A
ciência do médico exaltará sua cabeça e será louvado na presença dos
grandes".
Esse mesmo conceito, encontradiço em diversas culturas, prevalecia entre
os hebreus pelo ano 200 a.C., uma vez que essa é a idade presumível do livro
"Eclesiástico”.
-- *As causas da deficiências entre os hebreus*
Além das deficiências ou das deformações consideradas como
conseqüências diretas de pecados ou de crimes, tais como a cegueira, a
surdez, a paralisia, por exemplo, entre os hebreus havia também aquelas
provenientes de acidentes, de agressões, de participação em lutas armadas
contra inimigos do povo, e também de punições previstas em lei. Havia
também as deficiências que eram marcas da própria escravidão: orelha ou
nariz cortado, dedos ou a mão decepados, olhos vazados. Vejamos alguns
exemplos:
O livro da Bíblia conhecido como "Deuteronômio" corresponde a uma
espécie de repetição ou reformulação de leis e normas para o povo. Na
verdade significa "segunda lei". Moisés foi seu autor, nele repetindo e
elaborando melhor depois de muitos anos do Decálogo e do Levítico, os
preceitos contidos tanto no "Êxodo" quanto no próprio livro de normas para os
sacerdotes, ou seja, o "Levítico", também de sua autoria. O "Deuteronômio" é
uma espécie de testamento do velho Moisés às bordas da Terra Prometida.
Pois bem, nesse livro encontramos um castigo severo (amputação da mão)
para um procedimento considerado altamente pecaminoso por parte da mulher:
"Se se levantar alguma pendência entre dois homens e um começar renhir com
o outro, e a mulher de um querendo livrar seu marido da mão do mais forte,
estender a mão e lhe pegar pelas partes vergonhosas, cortar-lhe-ás a mão, e
não te moverás de compaixão alguma por ela" (Deut. 25:11/12).
Os castigos ou penas por faltas contra as leis de Deus e mesmo de Israel
eram por vezes muito cruéis e de caráter extremo. Eles correspondiam a
alguma necessidade da própria época em que foram estabelecidos. Segundo o
próprio Moisés que elaborou muitos deles, "a fim de que todo Israel, ouvindo
isto, tema e não torne mais a fazer coisa semelhante a esta" (Deut. 13:11)... ou
então, "o povo da cidade a apedrejará e ela morrerá, para que tires o mal do
meio de vós e todo Israel, ouvindo isto, tema" (Deut. 21 :21).
Maldições sem fim são indicadas para os que não seguiam os preceitos e
uma delas era esta: "O Senhor te fira de loucura e de cegueira e de frenesi, de
sorte que andes às apalpadelas nas trevas e não acertes nos teus caminhos"
(Deut. 28:28/29).
O Livro dos Juízes, da Bíblia, é uma obra que procurava levar o povo hebreu
a melhor conhecer seus grandes heróis, tais como Otoniel, Aod, Barac,
Débora, Gedeão, Jefté e Sansão. Eles procuraram libertar o povo da opressão
constante dos inimigos e tentaram fazer com que esse mesmo povo
observasse as leis estabelecidas. É o Livro dos Juízes que nos relata fatos que
demonstram claramente que, na luta pela segurança do povo hebreu, às vezes
era indispensável "passar a fio de espada" todos os homens aprisionados. No
entanto, existe o relato de um caso de evidente "desencorajamento"
permanente aos ataques aos hebreus, num severo castigo aplicado a um líder
cananeu por uma das tribos de Judá que atacara Bezec e lá matara 10.000
homens. Nesse relato menciona-se, no entanto, a fuga do líder Adonibezec.
Mas, "indo eles ao seu alcance, apanharam-no e cortaram-lhe as extremidades
das mãos e dos pés. E Adonibezec disse: Setenta reis a quem tinham sido
cortadas as extremidades das mãos e dos pés, apanhavam debaixo de minha
mesa os sobejos da comida; como eu fiz, assim Deus me fez" (Juízes, 16:21).
Conforme vimos anteriormente, o vazamento dos olhos era um castigo
severo, um tanto em moda naquelas regiões. Existe um baixo-relevo da cultura
assíria, muito conhecido, que nos mostra um soberano vazando os olhos de
três prisioneiros, um deles ajoelhado e os outros dois, de pé, puxados pelo
próprio rei para perto de si por meio de um fio preso aos lábios dos infelizes por
argolas. Esse castigo desencorajava as fugas, sem causar maiores limitações
ou dificuldades para trabalhos pesados. Foi o que sucedeu com um dos
fascinantes heróis da Bíblia: Sansão.
Conforme é ali relatado, "os Filisteus, tendo-o tomado, tiraram-lhe logo os
olhos e levaram-no a Gaza, atado com cadeias e, encerrando-o no cárcere, o
fizeram girar a mó" (Juízes, 16:21).
Não seria exagerado depreender que da mesma forma eram tratados os
mais perigosos ou mais fortes inimigos e prisioneiros de guerra em muitos dos
pequenos ou dos grandes reinos da antigüidade. Depois de marcados pela
mutilação estigmatizadora e cerceadora de movimentos, eram colocados a
trabalhar em serviços pesados, dos quais não conseguiam jamais se afastar.
-- *A medicina dos hebreus*
Conforme nossos comentários anteriores, pouco nos é relatado pelos
diversos livros da Bíblia a respeito da medicina. Sabemos, sim, que a cirurgia
ocorria basicamente para a circunstância da circuncisão, com uma lâmina de
sílex. Outras informações são quase inexistentes.
Quanto ao tratamento de problemas ortopédicos, sempre houve cuidados
caseiros com bons resultados. Há uma citação de Ezequiel que mostra ter
havido na cultura hebréia antiga plenos conhecimentos dos tratamentos
indispensáveis para pernas ou braços quebrados. Diz ele em seu quarto
oráculo contra o Egito: "Quebrei o braço do Faraó, rei do Egito, e eis que não
foi tratado para se lhe restituir a saúde, nem atado com panos, nem
embrulhado com toalhas, para que, tendo recobrado as forças, pudesse
manejar a espada" (Ezequiel, 30 :21).
-- *Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma?*
Um dos juízes da tribo de Nephtali, Tobias viveu no século VII a.C. e sua
história nos é narrada por um dos livros da Bíblia. Trata-se de uma verdadeira
jóia de delicadeza e de arte que chegou até os nossos dias graças aos
trabalhos de São Jerônimo .
Tobias era um dos muitos hebreus desterrados em Nínive. Ele procurava
dedicar todos os seus dias à misericórdia, a fim de minorar os sofrimentos dos
seus compatriotas.
Em certa ocasião, cansado de cavar para enterrar secretamente os mortos,
"deitou-se junto duma parede e adormeceu e, enquanto dormia, caiu-lhe dum
ninho de andorinhas um pouco de esterco quente sobre os olhos e ficou cego"
(Tobias, 2:1 0/1 1 ),
Temendo estar próxima sua morte, mandou seu filho que também se
chamava Tobias resgatar o pagamento de uma dívida na cidade de Ragés, no
reino dos Medos. Em sua viagem, ao lado de Azarias, que na verdade era o
anjo Rafael disfarçado, Tobias aprendeu dele que o fel de peixe poderia ser
usado com sucesso como ingrediente para remédios. Segundo a narrativa, "e o
fel é bom para untar os olhos que tem algumas névoas, e sararão" (Tobias,
6:9).
Em sua volta, tendo guardado o fel de um enorme peixe que o havia atacado
quando da travessia de um rio, Tobias tomou-o e fez a tentativa que lhe havia
sido indicada: untou os olhos do pai. Segundo a Bíblia, esperou meia hora. E
"começou a sair de seus olhos uma belida" - que é uma espécie de membrana
opaca sobre a pupila - "como a película de um ovo. E Tobias, pegando nela,
tirou-a de seus olhos, e imediatamente recobrou a vista" (Tobias, 11:13 a 15).
O velho Tobias viveu até a idade de 102 anos sem maiores problemas com a
vista.
-- *Os cegos na cultura hebréia antiga*
O "Levítico", nas suas normas e leis relativas à santidade, à caridade e à
justiça, recomendava a todo o povo hebreu não apenas respeitar os pais,
guardar o sábado, evitar a idolatria, a vingança, o ódio, o furto, mas também
que fossem respeitados os surdos e os cegos. Vejamos o que nos diz Moisés
em suas orientações: "Não amaldiçoarás o surdo, nem porás tropeços diante
do cego, mas temerás o Senhor teu Deus, porque eu sou o Senhor" (Lev.
19:14).
Por sua vez, o "Deuteronômio" recomendava aos hebreus que garantissem a
proteção e o bom tratamento aos cegos, colocando essas atitudes positivas
diretamente ao lado e em pé de igualdade com o amor aos pais, a certeza da
justiça, a condenação da idolatria, a garantia da propriedade e algumas outras
práticas relacionadas a sexo e também a traições. Diz o chamado Livro da
Segunda Lei de Moisés, que é o “Deuteronômio”: “Maldito o que faz o cego
errar num caminho: e todo o povo dirá: Assim seja” (Deut. 27:18).
Todavia será interessante saber que, apesar dessa forte ênfase nas várias
normas de conduta do povo hebreu, o cego viveu praticamente por muitos
séculos em absoluta degradação social, que só começou a ser combatida sob
o reinado do príncipe Judah-ha-Nasin (135a 217 d.C.).
Cumpre notar que a literatura sobre o Talmud ((O ensinamento de toda a
cultura hebréia tem alcançado todas as gerações por dois canais: a lei escrita
(a Bíblia) e a oral (a Tradição). Esta foi aos poucos compilada pelos sábios e
desse esforço surgiu o Talmud, com seus dois livros principais: O Mishnah
(aprendizado) e o Guemara (esclarecimento).)) fala de quando em quando
sobre a sabedoria de alguns mestrês e mesmo de alguns juízes cegos. Dentre
as limitações de atuação a eles impostas, não lhes era permitido ler o Torá
(Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) nem oficiar serviços
religiosos públicos. Não tinham também nenhuma obrigação de ir até
Jerusalém para suas orações, nem de cumprir obrigações religiosas que
demandassem o uso da visão. O Talmud referia-se a esses sábios mestrês e
juízes cegos por meio de um apelido afetuoso, ou seja, de "saguí Nehor" (ricos
em luz, ou videntes).
-- *Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel*
Um parente de Jesus foi vítima de uma deficiência passageira. Segundo o
Evangelista Lucas, na verdade foi por castigo, corroborando a idéia de que as
doenças e as deficiências estavam fortemente relacionadas a castigos ou
penitências para pagamento de faltas ou pecados.
Zacarias era sacerdote e casado com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus.
Eram os dois considerados como justos e harmoniosos em seu modo de viver
e não tinham filhos, pois Isabel era estéril. Lucas conta-nos: Sucedeu que,
exercendo Zacarias diante de Deus o cargo de sacerdote na ordem de sua
turma, tocou-lhe por sorte, segundo o costume que havia entre os sacerdotes,
entrar no templo do Senhor e oferecer o incenso; e toda a multidão do povo
estava fazendo oração na parte de fora, à hora do incenso. E apareceu-lhe o
anjo do Senhor, posto em pé ao lado direito do altar do incenso".
Zacarias ficou assustado e não sabia o que fazer. O anjo tranqüilizou o velho
sacerdote e anunciou que sua esposa engravidaria. Ele reagiu como qualquer
outro homem reagiria: duvidou. E perguntou o óbvio: "Como conhecerei que
isto acontecerá? Porque eu sou velho e minha mulher está avançada em
anos". O anjo identificou-se como Gabriel, "que assisto diante de Deus; fui
enviado para te falar e te dar esta boa nova. E eis que ficarás mudo e não
poderás falar até o dia em que estas coisas sucedam, visto que não acreditaste
nas minhas palavras, que se hão - de cumprir a seu tempo".
Nove meses depois, nascido João Batista - primo de Jesus - Zacarias
indicou numa tabuinha o nome que o menino deveria ter e imediatamente
voltou a falar.
-- *As pessoas deficientes nos Evangelhos*
Se continuarmos a folhear esse documento sagrado que é a Bíblia,
encontraremos também as narrativas relacionadas ao Novo Testamento que
retratam uma Judéia muito viva, muito real. Detectamos costumes, atitudes e
encontramos diversas considerações sobre pessoas deficientes ou com
doenças muito sérias. Percebemos também repetidamente a crença arraigada
no povo de que a maioria dos males de então era tida como conseqüência da
interferência de maus espíritos ou como um castigo para pagamento de
pecados antigos.
Passando os olhos por alguns episódios anotamos frases que eram
destinadas a leitores daquelas épocas e que certamente aceitavam os
posicionamentos expostos. Uma dessas frases que nos chama a atenção é
esta: "E eis que veio uma mulher que estava possessa de um espírito que a
tinha doente há 18 anos; e andava encurvada e não podia absolutamente olhar
para cima". Essas palavras são de Lucas, o Evangelista médico, mas que
naturalmente media as palavras face ao público, ao povo que precisava ler
suas páginas ou interpretar os fatos que pretendia repassar. No entanto, na
mesma passagem, ele coloca na boca de Jesus palavras que demonstram um
enfoque diferente: "Mulher, estás livre de tua enfermidade" ... Nem demônio,
nem castigo ... apenas enfermidade.
No Evangelho escrito por Mateus encontramos estas frases: "E tendo-se
estes retirado, apresentaram-lhe um homem mudo, possesso do demônio, E,
expulso o demônio, falou o mudo" . . .
Esse mesmo Evangelista escreveu: "Quando o espírito imundo saiu de um
homem, anda por lugares secos, buscando repouso, e não encontra. Então diz:
Voltarei para minha casa de onde saí" ... "Então vai e toma consigo outros sete
espíritos piores do que ele e, entrando, habitam ali; e o último estado daquele
homem torna-se pior do que o primeiro".
Na Judéia Antiga, inclusive no tempo de Jesus Cristo, o destino dos
deficientes era esmolar para conseguir sobreviver. Os cegos, os amputados, os
paralíticos pelas mais variadas causas, ficavam expostos nos caminhos, ruas e
praças. E pelo que se lê, deviam ser apenas tolerados. Depreendemos isso
das parábolas de Jesus, ou mesmo das atitudes do próprio Jesus para com
eles, demonstrando que estava errada a forma como eram tratados, mesmo
sem expressar esse modo de pensar.
Segundo o Evangelista Lucas, o ambiente de exposição da pessoa para
esmolar era um fato concreto e percebemos isso em sua afirmativa: "Vai já
pelas praças e pelas ruas da cidade e traze cá os pobres e os aleijados, e
cegos e coxos". Mateus corrobora a impressão ao dizer: "E eis que dois cegos
que estavam sentados junto à estrada"...
Como não poderia deixar de ser, a movimentação externa ou a simples
mudança de lugar de um caso mais sério de paralisia ou de enfermidade grave
sempre era dramaticamente mais difícil. Podemos imaginar a aflição de
parentes e amigos desses doentes ou deficientes que, ao saber da existência
ou da presença de um rabino miraculoso nos arredores, procuravam alcançá-lo
por todos os meios. O Evangelista Marcos, por exemplo, conta-nos: "E foram
ter com ele conduzindo um paralítico que era transportado por quatro. E como
não pudessem apresentar-lhe por causa da multidão, descobriram o teto pela
parte de baixo da qual Jesus estava e, tendo feito uma abertura, arriaram o
leito em que jazia o paralítico"...
Elgood, estudioso dos usos e costumes dos povos do Oriente Médio, afirma
que a medicina contida nos Evangelhos e mesmo nos Atos dos Apóstolos
aceitava basicamente três tipos de causas para as doenças e para as muitas
limitações e deficiências que afligiam os homens: o castigo pelos pecados, a
interferência dos maus espíritos e finalmente as forças más da natureza, contra
os quais o poder divino era o único remédio - ou pelo menos era assim
considerado.
Eis alguns pontos citados nos Evangelhos que ilustram essa assertiva:
João 5:14 -- "Depois, achou-o Jesus no templo e disse-lhe: Eis-te curado!
Não torna a pecar para que não te suceda algo pior".
João 9:2 -- "Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que
nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele nem seus pais pecaram mas foi
para se manifestarem nele as obras de Deus".
Lucas 9:38-39 -- "Mestre, rogo-te para que olhe para meu filho, porque é o
único que eu tenho e um espírito imundo se apodera dele e subitamente dá
gritos e o lança por terra e o agita com violência, fazendo-o espumar".
-- *Os milagres de Jesus e as pessoas deficientes*
Dentre os muitos documentos antigos que nos falam sobre deficiências ou
sobre pessoas deficientes, os mais explícitos são os Evangelhos. Eles
mostram, por exemplo, que o povo hebreu -- e com ele quase todos os povos
ao seu redor – estava acostumado não apenas à existência das doenças e das
deficiências que levavam o homem a uma vida de quase certa indigência ou
total dependência, mas também à busca de soluções naturais e sobrenaturais,
quando possível, para sua eliminação.
Em Jerusalém dos tempos de Jesus Cristo, por exemplo, havia bem ao lado
do templo uma piscina ou tanque destinado à purificação de animais que eram
sacrificados e que era por esse mesmo motivo conhecida como "piscina
probática" (do grego "probatikón", ou seja, carneiro ou relativo a ovinos em
geral), ou como Betsaida na língua hebraica.
As suas bordas, a despeito dos objetivos principais, mantinha-se verdadeira
multidão de enfermos, coxos, cegos e paralíticos porque, segundo todos
acreditavam, várias vezes ao dia um anjo de Deus ali descia para "movimentar
as águas". Era, como se pode bem imaginar, um momento muito esperado,
muito tenso, pois apenas o primeiro que ali se banhasse teria seus males
curados.
Foi exatamente nesse ambiente que Jesus realizou um dos seus famosos
milagres, beneficiando um homem paralítico há 38 anos e que nunca havia
conseguido ser o primeiro a chegar às águas de Betsaida por não ter pessoa
alguma que o ajudasse.
Esse foi um dos muitos milagres a nós transmitidos pelos evangelistas.
Segundo seus relatos, Jesus fez mais de 40 milagres notórios. Deles todos,
pelo menos 21 são relacionados a pessoas portadoras de deficiências físicas
ou sensoriais, a saber:
- Cego de nascimento - João 9:1-7
- Cego em Betsaida - Marcos 8:22-26
- Cego Bartimeu de Jericó - Marcos 10:46 e Lucas 8:35-43
- Dois cegos de Jericó - Mateus 20:29-34
- Dois cegos de Cafarnaum - Mateus 9:27-31
- Cegos na Galiléia - Mateus 15:29-31
- Cego e mudo (endemoniado?) - Mateus 12:22
- Mudo de Cafarnaum - Mateus 9:32-34
- Mudos na Galiléia - Mateus 15:29-31
- Surdo-mudo na Decápole - Marcos 7:31-37
- Surdo-mudo de Cesaréia - Marcos 9:16-26 e Lucas 9:37-43
- Coxos na Galiléia - Mateus 15:29-31
- Leprosos de Cafarnaum - Mateus 8:1-4, Marcos 1 :40-45e Lucas 5:12-14
- 10 leprosos - Lucas 1 7 :1 3-1 9
- Hidrópico - Lucas 14:1-6
- Mulher com espinha curvada - Lucas 13:11-13
- Homem de "mão seca" - Mateus 12:9-13, Marcos 3:1-6 e Lucas 6:6-11
- Paralítico servo do centurião - Mateus 8:5-13
- Paralítico em Betsaida - João 5 :5-9
- Paralítico de Cafarnaum - Mateus 9:1-8, Marcos 2:1-12 e Lucas 5:17-26
- Outros deficientes na Galiléia - Mateus 15:29-31
-- *A cegueira de São Paulo, Apóstolo*
A conversão de São Paulo tem sido considerada por todos os cristãos como
um fato decisivo na história do Cristianismo. Ela teve seu início com um evento
universalmente conhecido que o deixou cego por três dias, deles emergindo
como um novo homem.
Saulo havia sido por diversos anos um fervoroso fariseu, além de um
convicto perseguidor dos adeptos da nova seita do Nazareno que se afirmara
Filho de Deus, considerada então uma verdadeira heresia na Sinagoga
Judaica. Na verdade, tão envolvido estava Saulo que, quando o primeiro mártir
da incipiente religião -- Santo Estêvão -- foi apedrejado, esteve não só presente
como também indiretamente ajudou na execução da pena, segurando os
mantos dos apedrejadores para melhor executarem sua tarefa.
Diversos médicos e estudiosos escreveram a respeito do fato que modificou
drasticamente a vida de Saulo de Tarso. Alguns acham que ele foi vitima de um
ataque epilético, podendo a intensa luz por ele relatada ter sido a aura que
antecede esses eventos médicos. Há outros que especulam em torno de
problemas relacionados a uma artrite ou mesmo malária.
O que parece certo é que, intervenção miraculosa à parte, Saulo foi
severamente atingido, física e psicologicamente. Para uma análise objetiva do
que sucedeu, é preciso conhecer um pouco as circunstâncias por ele vividas.
Em primeiro lugar é básico considerar que a distancia percorrida por Saulo,
entre Jerusalém e Damasco, é de pouco mais ou menos 200 quilômetros,
quase toda ela coberta por um deserto de areia branca e de natureza inóspita.
Essa viagem, numa caravana de camelos, demandava de seis a sete dias de
marcha, muito embora estejamos acostumados a visualizar um Saulo de Tarso
caindo de fogoso cavalo, o que não corresponde à realidade daqueles tempos.
A caravana cruzou o deserto pelas colinas da Samaria, sob sol ardente e muito
brilhante, num calor fortíssimo. Ao final dessa cansativa viagem, é natural que
Saulo estivesse preocupado com sua missão, a ele confiada pelo sumo
sacerdote através de cartas às sinagogas de Damasco. Cansado e tenso, ele
aguardava os primeiros sinais da paisagem de seu destino quando, segundo
seus relatos, viu uma luz muito forte e caiu ao chão, ouvindo uma voz que se
identificava como de Jesus Nazareno.
Cego ao levantar-se, Saulo teve que ser "levado pela mão" à cidade à busca
de ajuda, pois estava doente e não podia nem beber nem comer por três dias.
Virtualmente fechado em ambiente escuro por todo esse tempo, devido às
dores nos olhos, com certeza muito abalado com sua cegueira que
provavelmente associava a um castigo divino, como era costumeiro no seio do
povo hebreu, Saulo foi inicialmente atendido por solícitos adeptos da "seita do
Nazareno". Pode ter parecido a ele um verdadeiro milagre quando Ananias
entrou, conversou com ele, tocou-o e ele recuperou sua visão.
O que deve ter acontecido com os olhos de Saulo de Tarso? Autores
categorizados acham que sua cegueira temporária foi causada pelos efeitos
nocivos de muita irradiação solar sobre os olhos, causando alguma queimadura
da córnea por raios ultravioletas. Esse tipo de cegueira acontece devido aos
reflexos do sol na areia branca do deserto ou aos reflexos na neve.
"O efeito no olho é cumulativo e Paulo deve ter recebido mais do que
suficiente radiação, especialmente quando olhou para o céu. Este é um efeito
biótico e a recuperação do estágio agudo requer vários dias de convalescença.
A vitima fica temporariamente cega, não pode abrir seus olhos e sofre com
muitas dores e ansiedade. Fica inutilizada e é compelida a manter-se no leito.
Todavia, como o epitélio se regenera com rapidez, a sensível córnea nua volta
a ser coberta e então o paciente vive uma brusca e dramática recuperação
como viveu Paulo" ("The Blindness of Saint Paul", de Manchester e
Manchester).
São Paulo viveu todo o resto de sua vida com algumas seqüelas do mal e
isso é perceptível ao analista cuidadoso por alguns sinais, um dos quais seria
sua própria informação quanto à sua letra provavelmente maior ou diferente do
que a costumeira: "Vejam com que letras eu lhes escrevi com minhas mãos" (in
Epistola aos Gálatas) e "Minha saudação da mão de Paulo: que é minha marca
em toda carta. Assim escrevo" (in Eprstola aos Tessalonicenses (2a ), ao final).
A tradução corresponde às palavras na Vulgata, em latim.
São Paulo tinha algumas dificuldades para ler, escrever e mesmo
reconhecer pessoas a certa distância, o que talvez indique grave redução de
sua acuidade visual. Vejamos, por exemplo, o fato narrado nos Atos dos
Apóstolos (23:1 a 6): Levado diante do Sinédrio para esclarecer graves
acusações feitas contra ele, Paulo olhou o aglomerado de sacerdotes e não
distinguiu a presença muito importante do sumo sacerdote Ananias. E foi
considerado irreverente pela mais alta autoridade da Sinagoga Judaica, tanto
assim que recebeu uma bofetada na boca tão logo começou a falar, por ordem
de Ananias. Paulo reagiu e qualificou-o de "parede caída". Na confusão
estabelecida, ele foi questionado se estava maldizendo o sumo sacerdote.
Neste ponto ele afirmou:
"Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote"...
Parece também evidente que São Paulo foi vítima de um mal crônico e
desagradável que, em suas cartas, chama de "espinho da carne".
Relembremos uma pequena frase sua inserida na carta aos cristãos de Gálata,
com os quais convivera bastante: "Sabeis que ao princípio vos preguei o
Evangelho com enfermidade na carne: e sendo eu a vossa provação na minha
carne, vós não me desprezastes nem rejeitastes" (Gal. 4:13/14). A tradução
aqui também leva em conta a Vulgata latina.
Para os cristãos o fato concreto é que, logo após o evento que levou Saulo
de Tarso a três dias de cegueira, ele mudou drasticamente e foi um dos
maiores esteios da Cristandade. Conviveu o resto de seus dias com alguma
deficiência parcial da visão e certamente com algum outro mal (epilepsia,
malária, artrite, não se sabe) indefinido e marcante que não diminuiu em nada
o seu entusiasmo na transmissão da doutrina de Cristo, mas que acabou
influenciando seus pensamentos e suas pregações.
3. Os Gregos
Em grande parte devido à inexistência de bases científicas para melhor
compreender a vida e a natureza, o homem grego antigo sentia-se envolvido
por muita fantasia e por uma infinidade de pequenas crenças e,
conseqüentemente por centenas de deidades. A variedade de deuses e deusas
que habitavam o portentoso e, nas palavras de Homero, "nevoso Olimpo", ou
que o haviam abandonado em busca de mais tranqüilidade e da proximidade
dos ambientes a eles dedicados, é bem indicativo desse estado de espírito. Na
fantástica mitologia de tantos deuses de vários escalões e de tantos seres
fantasiosos, o homem grego, além de dedicar altares a um Deus Desconhecido
-- conforme comenta o Apóstolo Paulo -- acabou não se esquecendo de um ser
portentoso prejudicado por uma deficiência física séria, bastante competente
em seus misteres, mas que sempre foi de certa maneira ridicularizado, além de
envolvido pela estrondosa risada da maioria de seus fisicamente magníficos
colegas do Olimpo. Tratava-se de Hefesto (Hephaestos, em grego), o deus do
fogo, das artes manuais, da metalurgia e das indústrias, que era filho de Zeus e
de Hera.
-- *As deficiências na mitologia grega*
Homero, o mais famoso dos grandes poetas gregos, que foi cego, segundo
relatos baseados na tradição e em diversos escritores antigos, e que
certamente viveu em épocas anteriores ao século VII a.C., é autor dos poemas
épicos Ilíada e Odisséia. Na Ilíada ele nos revela algumas particularidades
interessantes a respeito de Hefesto, de sua deficiência física nas pernas e de
suas altíssimas habilidades em metalurgia e artes manuais.
No Canto XVIII desse famoso poema ele narra uma das mais conhecidas
intervenções desse deus portador de deficiência: o quase invulnerável Aquiles,
durante o cerco de Tróia encontrava-se muito abatido com a morte de seu
amigo Pátroclo e ao mesmo tempo enfurecido com o líder troiano Heitor não só
por tê-lo morto como também por tê-lo despojado de armadura, elmo, escudo e
espada, além de todos os demais acessórios invejáveis pela sua beleza e
perfeição e que eram propriedade de Aquiles. Ele pede o auxílio de sua mãe, a
deusa Tétis, dizendo:
"... não me incita a viver meu coração, nem a ficar entre os homens, a menos
que Heitor, ferido primeiro por minha lança, perca a vida e pague por Pátroclo,
filho de Menetes, sua presa".
"Debulhada em lágrimas Tétis respondeu: - Rápido será teu destino, meu
filho, com tais palavras, pois, logo após Heitor, o momento fatal soará para ti".
"Acabrunhado retrucou Aquiles, de alígeros pés: - Morra eu neste instante,
visto que não fui capaz de proteger da morte meu companheiro"...
No entanto, de fato Aquiles não tinha mais armas, pois o corpo de Pátroclo
havia sido despojado de todos os magníficos apetrechos de guerra que tornara
o filho de Tétis um incrível herói. É Tétis que observa:
"Mas tuas belas armas estão nas mãos dos Troianos, tuas armas de
coruscante bronze; o próprio Heitor de fúlgido capacete tem-nas sobre os
ombros e com elas se paramenta"...
Tétis, muito chocada com a tragédia de seu filho-herói, considerou a
determinação de Aquiles e foi à procura do único "imortal" capaz de fazer
armas próprias e dignas para ele: Hefesto. Quando chegou ao Olimpo, notou
nas oficinas um deus trabalhador, suado, um verdadeiro operário da metalurgia
com deficiência física.
"Encontrou-o suando; apressando-se à volta dos foles, empenhado no
fabrico de nada menos de vinte trípodes, para encostar à parede, em torno de
uma sala bem construída"...
Homero apresenta neste poema Hefesto casado com a belíssima Cáris
("Cáris de brilhante toucado, a formosa Cáris, esposa do insigne coxo"), a
deusa da primavera. Após acomodar a veneranda deusa Tétis em um trono
cravejado de prata, Cáris chama o marido:
-- "Hefesto, vem como estás; Tétis precisa de ti".
"respondeu o ilustre coxo:--Sim, é uma deusa temida e veneranda que está
em minha casa; que me acudiu quando o sofrimento me acometeu, depois da
longa queda provocada por minha mãe de olhos caninos, que queria esconder-
me porque eu era coxo. Eu teria, então, sofrido muito, se Eurínome e Tétis não
me tivessem recebido em seu seio; Eurínome, filha do Oceano, que volta sobre
si mesmo. Ao pé dela, durante nove anos, forjei muitas jóias bem feitas em
profunda gruta, além de presilhas, espirais de formosas curvas, cálices de
flores e colares".
Hefesto, agradecido por ter sido amparado e amado, e por ter com elas
aprendido um verdadeiro ofício, mostra-se mais do que disposto a pagar pelo
imenso favor recebido durante anos a fio.
"... da bigorna ergueu-se manquejando o ser monstruoso, enorme; debaixo
dele agitavam-se-lhe as pernas finas" ... "Vestiu uma túnica, empunhou um
grande cetro e encaminhou-se para a porta, coxeando".
A pedido da desesperada mãe de Aquiles, Hefesto fabricou então um
escudo que Homero chega a descrever com muitos pormenores. E
continuando com a descrição das fabulosas peças de armamento, afirma:
"E depois de ter forjado o escudo grande e robusto, fabricou para Aquiles
uma couraça, mais brilhante do que o esplendor do fogo; fabricou-lhe espesso
capacete adaptado as têmporas, belo, feito com arte, encimando-o um
penacho de ouro; e fabricou-lhe "cnêmides", com o estanho que se modela
bem ("Ilíada", de Homero, trechos do Canto XVIII). ( * “Cnêmides” eram
perneiras usadas pelos gregos. Protegiam a parte dianteira da perna até o
joelho. Eram forradas interiormente de couro e amarradas à perna por correias.
A parte externa era de bronze ou de estanho, segundo Homero.)
Na Odisséia, Homero apresenta Hefesto casado com Afrodite, a deusa do
amor (a Vênus dos romanos), furiosamente ciumento, magoado e ardiloso,
mostrando todo o seu ressentimento devido à deficiência nas pernas de uma
forma bem franca e muito aberta.
O que havia sucedido para tanto? De fato o assunto era sério, pois Ares,
deus da guerra (Marte para os romanos), havia-se enamorado de Afrodite e
começara a encontrar-se com ela em sua própria casa, logo após Hefesto sair
para trabalhar em suas oficinas. Sabedor do adultério de sua mulher, Hefesto
planejou com muito cuidado a armadilha para o estabelecimento de um
flagrante incontestável: fabricou uma rede quase invisível, mas de "laços
inquebráveis, inextricáveis, para que neles ficassem retidos os dois amantes".
E, de fato, a rede foi colocada cuidadosamente sobre o leito e prendeu os dois
na hora exata; deixou-os debatendo-se no ar, sem qualquer possibilidade de
escapar, pois o engenhoso Hefesto preparara tudo para a invisível rede ser
puxada para o alto, sem qualquer apelação.
Hefesto, que havia acionado a armadilha por suas próprias mãos, sentia-se
vilmente traído devido à sua deficiência física e explodiu para todo o Olimpo
ouvir: -- "Zeus, pai, e todos os deuses restantes, bem-venturados e
sempiternos, vinde aqui presenciar uma cena ridícula e monstruosa; por eu ser
coxo, Afrodite, filha de Zeus, de contínuo me cobre de desonra; ela ama Ares,
o destruidor, porque é belo e tem as pernas direitas, ao passo que eu sou
defeituoso de nascença. Mas a culpa não é minha, apenas de meus genitores,
que melhor teriam procedido se não me houvessem gerado"... "a minha rede
os reterá cativos até que o pai dela me restitua todos os presentes que lhe dei
por sua descarada filha. Pode ser bela, mas não tem vergonha".
Homero entra em alguns pormenores quanto ao vexame imposto a Ares e
Afrodite, presos na rede invisível que os puxara para o alto, sendo observados
por outros deuses -- todos eles do sexo masculino, uma vez que as deusas,
por pudor, haviam preferido ficar fora. Todos eles riram muito dos dois amantes
e no meio dos comentários bastante humanos para os portentosos imortais,
surgiu uma observação de alta valorização das habilidades de Hefesto, o
artífice deficiente: -- "De que aproveitam as más ações? Um coxo alcança o
que é ágil, como agora aconteceu: este cambeta Hefesto, lento como é,
apanhou com seus artifícios a Ares, o mais veloz dos deuses, habitantes do
Olimpo" (trechos do Canto VIII da "Odisséia", de Homero).
Naturalmente que estamos apenas analisando cenas de pura ficção, mas
que foram escritas diversos séculos antes da Era Cristã. Acresce a isso dizer
também que Homero, segundo a tradição, foi um escritor cego. Não deixam de
ser palavras de certa forma indicativas da crença na utilidade de um homem
competente, mesmo que porta dor de uma séria deficiência e na justa explosão
desse mesmo homem face à traição e à desonra de que foi vítima.
Demonstram elas também uma posição já arraigada no seio do povo grego de
que crianças com defeitos de nascimento não deveriam sobreviver, sendo
obrigação dos pais não as deixar viver, tomando para tanto medidas práticas,
conforme verificaremos mais adiante.
-- *Lenda e realidade; Hefesto na vida dos gregos*
Quanto a seus traços principais, Hefesto parece sempre justo, sério,
fortemente competente em sua arte e muito cônscio de seu papel. E, como
vimos, é conhecedor de seus direitos e sabe lutar por eles. Conquistara o
respeito dos deuses pelo seu trabalho e suas obras, e nada mais. Desfrutava
de um amor tranqüilo de uma linda deusa da primavera, Cáris, segundo o
poema Ilíada, e de um atribulado afeto por Afrodite, na Odisséia, tendo-se
considerado no direito de lhe dar uma lição completa, como outros homens
jamais poderiam arquitetar.
Analistas dos poemas de Homero têm sugerido que, devido à apresentação
de Hefesto como o deus da metalurgia e das artes manuais, a profissão de
ferreiro e atividades afins talvez fossem especialmente preferidas por homens
com deficiências físicas nas pernas. Vale ressaltar que na cidade industrial de
Atenas, Hefesto sempre foi considerado um deus importante, mantendo-se a
classe dos artesãos sob sua proteção.
Seu casamento com Afrodite foi conseqüência de um ardil muito bem
preparado. Durante os nove anos que passara sob a proteção de Tétis e
Eurínome, Hefesto guardou consigo um profundo ressentimento contra sua
mãe devido ao fato de o ter feito cair do alto do Olimpo. Arquitetou uma terrível
vingança contra ela: fabricou-lhe um lindo trono de ouro, todo trabalhado, e
mandou que lhe fosse entregue durante uma festa. Hera ficou contentíssima
por ouvir a respeito do filho que já considerava morto há anos, e muito
orgulhosa sentou-se no trono. Ao tentar levantar-se, porém, sentiu-se presa,
agarrada por mãos invisíveis. Hefesto, que não estava presente, recusou-se a
sair de sua gruta e deixou os demais deuses tentar livrar Hera inutilmente.
Afinal, face à insistência de todos, Hefesto concordou, impondo uma única
condição: casar-se com a mais bela de todas as deusas, ou seja, com Afrodite.
Hefesto dava-se importância e sabia o que lhe convinha. Segundo as lendas,
cuidava de sua aparência com esmero e procurava reduzir as dificuldades
provocadas por sua deficiência nas pernas de um modo bastante sofisticado.
Primeiramente, quando recebia visitas de importância, o fabuloso ferreiro e
artesão parava para lavar o rosto, os braços, o pescoço e o peito. Logo após,
vestia uma túnica limpa e, apoiado num trabalhado bastão que ele mesmo
fabricara, ia sentar-se em seu trono. Refinado como era, inventara duas
estátuas feitas de ouro e que muito se assemelhavam a duas lindas jovens,
que se movimentavam e falavam, e que ficavam ao seu lado para tornar mais
cômodos todos os seus movimentos! ...
Segundo as lendas Hefesto teve vários filhos e um deles, Perifetes, tinha o
mesmo problema físico do pai -- o que talvez indique certa crença popular de
que alguns defeitos físicos podiam ser hereditários. Diferentemente do pai,
Perifetes foi um bandido, assaltante de estradas. Teseu, o destruidor de
monstros, arrancou-lhe o terrível bastão com que matava suas vítimas,
terminando com o pavor que rondava Epidauros e os devotos de Asclépios, o
deus da cura.
Hefesto está representado no símbolo da Associação de Avaliação
Profissional e de Ajustamento ao Trabalho dos Estados Unidos da América do
Norte.
-- *Outros seres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais*
Existem diversas deidades e seres um tanto quanto irreais que estão
inseridos na mitologia grega e que apresentam algumas anomalias ou
deficiências que por vezes são sua característica principal. Vejamos os mais
notórios:
a) Deuses da Fortuna, do Amor e da Justiça: Segundo afirmam os
especialistas em mitologia grega, as figuras dos deuses do Amor e da Fortuna
são eventualmente apresentadas como pessoas cegas. Um dos mais
marcantes exemplos dessas apresentações ocorre com a peça "Plutão, o Deus
da Riqueza", de autoria de Aristófanes. Nela o temido senhor das profundezas
do inferno é um mendigo cego e sobre ele falaremos mais adiante ao
analisarmos Epidauros e sua importância na vida grega.
Todos nós conhecemos também a apresentação simbólica da Justiça como
uma jovem cega, figura que chegou aos nossos dias e é muito utilizada em
nossos meios jurídicos.
b) Édipo e sua tragédia: Uma figura trágica das muitas e coloridas histórias e
lendas gregas é aquela de Édipo. Matou o próprio pai para poder casar-se com
a mãe, sem estar consciente do relacionamento que havia entre eles. Ao
descobrir toda a verdade, com a ajuda do adivinho cego, Tirésias, o rei Édipo
arrancou os próprios olhos e viveu o resto de seus dias em total isolamento,
numa atitude de autopunição e desespero.
c) Filomela e Procné: a andorinha e o rouxinol: Segundo lendas que cercam
essas duas figuras da mitologia grega, Pandion era rei de Atenas e tinha duas
filhas muito belas que eram Filomela e Procné. Esta casou-se com Tereu, rei
da Trácia, e teve um filho, cujo nome era Itys. Com o passar dos anos,
entretanto, Tereu começou a prestar mais atenção à sua linda cunhada e ficou
apaixonado por ela. Tendo-a em determinada circunstância forçado a ter com
ela relações amorosas e notando sua revolta, cortou-lhe a língua para
impossibilitar a formulação de alguma acusação de sua parte. Todavia Filomela
encontrou um meio convincente de apontar o culpado. Bordou uma toalha com
figuras, contando todo o drama. As duas irmãs passaram a perseguir
ferozmente a Tereu que, com o auxílio de outros seres mitológicos, conseguiu
transformá-las em pássaros para
sempre: Procné tomou a forma de um rouxinol e Filomela de uma andorinha.
d) Licurgo, rei mitológico da Trácia: Foi castigado com a cegueira por ter
proibido em seu reino o culto a Dionísio, deus do vinho e correspondente ao
Baco dos romanos. Essa proibição ocorreu depois do corajoso rei ter tomado
atitudes bastante agressivas contra o mencionado culto. Mandara, por
exemplo, arrancar de seu reino todas as vinhas e maltratara pessoalmente o
famoso e muito popular deus do vinho.
e) Fineu, outro rei da Trácia: Igualmente mitológico, abusava dos seus
poderes de adivinhação, revelando aos homens as confidências e as intenções
dos deuses moradores no Olimpo. Foi castigado pelos poderosos imortais a
fazer uma opção: viver uma longa vida sem visão ou morrer. Preferiu a primeira
opção. Casado com a filha do rei Bóreas, Cleópatra, teve com ela dois filhos,
Depois de algum tempo de casado repudiou a esposa, como era facultado aos
homens fazer, e casou-se com Idéia, filha de Dárdano, o famoso construtor das
muralhas de Tróia. Esta não gostou dos filhos adolescentes de Cleópatra e
logo encontrou meios para acusá-los de terem tentado violentá-la. Fineu, muito
furioso e intempestivo, mandou vazar os olhos dos dois, sem fazer qualquer
averiguação. No entanto, o castigo prometido pelos deuses chegou quase que
imediatamente, pois os irmãos da repudiada Cleópatra que faziam parte da
expedição dos Argonautas, vazaram seus olhos.
-- *As deficiências físicas na realidade da vida militar grega*
Na Grécia Antiga, em épocas anteriores ao surgimento do Cristianismo,
encontramos muitos indícios de medicina bastante evoluída e da organização
de diversos serviços de saúde, tanto para o povo quanto para os soldados que
procuravam garantir a sobrevivência e a pujança de sua pátria. Serviços
médicos na área militar não atendiam apenas a soldados gregos e seus aliados
mas também a prisioneiros com problemas de mutilações ou com doenças
graves. As amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam com
freqüência nos campos de batalha devido aos combates corpo-a-corpo e ao
uso de armas cortantes. Para as pernas havia algumas proteções por meio das
já citadas "cnêmides", que certamente impediam muitos ferimentos mais sérios
em guerreiros importantes. Lâminas ameaçadoras que eram colocadas nos
eixos dos carros de combate eram um dos perigos de amputações ou
ferimentos sérios. Ocorriam também ferimentos com pancadas violentas e
armas penetrantes. Médicos destacados para servirem nos exércitos de então
acumulavam rapidamente larga experiência, apesar de disporem de parcos
recursos para aliviar dores, estancar o sangue ou outras providências que
poderiam salvar vidas em perigo. Hemorragias eram estancadas por vezes
com ferro em brasa ou com o cobre superaquecido. Às vezes ferimentos
graves eram tratados na retaguarda com óleo fervendo e alguns escapavam
com vida a tais tipos de tratamentos.
-- *As principais causas de deficiências na Grécia Antiga*
Na antigüidade clássica praticamente todos os povos chegaram a
desenvolver atividades de assistência pública devido à insuficiência daquelas
prestadas pela população, de maneira direta. Segundo alguns autores,
Aristóteles já indicava que "é mais fácil ensinar a um aleijado a desempenhar
uma tarefa útil do que sustentá-lo como indigente". Não só para Aristóteles,
mas para muitos pensadores e políticos gregos, competia ao Estado proteger
os pobres, os miseráveis e, quase sempre no meio deles, os portadores de
deficiências devido a qualquer causa.
Na abalizada opinião do Professor Pournaropoulos, na Grécia Antiga havia
três tipos de pessoas com deficiências:
- os mutilados ou deficientes devido a ferimentos ou a acidentes próprios da
guerra e de atividades afins;
- os prisioneiros de guerra com deficiências físicas, ou os detentos criminosos
civis, cuja mutilação ou deficiência era causada por uma pena ou castigo;
- os deficientes civis por doenças congênitas ou adquiridas, ou também por
acidentes os mais variados.
Dentre os acidentes da vida civil (na vida industrial e também na forte
construção civil gregas) os acidentes de trabalho ocorriam com bastante
freqüência devido à falta de medidas de segurança ou de proteções especiais.
Um caso que passou para a História Grega ocorreu com o famoso arquiteto
Mnésicles, que no ano 435 a.C., ao inspecionar as obras de construção da
monumental propiléia da Acrópole de Atenas, caiu de um dos andaimes.
Segundo nos relatam os historiadores e analistas da História Grega, Mnésicles
não ficou paralisado pelo resto de seus dias por mera sorte. Entretanto o
misticismo grego conta-nos uma história interpretativa diferente, afirmando que
quem o salvou foi a deusa Athena (Minerva para os romanos), pois ela
apareceu num sonho a Péricles, que àquela oportunidade comandava os
destinos da cidade-estado de Atenas. A ele a deusa sugeriu um misterioso
tratamento que deveria ser aplicado no famoso arquiteto acidentado. Com a
sua recuperação miraculosa, tão vital para a glória da poderosa Atenas,
Péricles mandou erigir uma linda estátua de bronze da deusa salvadora no
próprio lugar da queda, e em seu pedestal mandou gravar estas palavras
reconhecidas que só foram descobertas muitos séculos após, devido às
escavações: THEY ATHENAI HIGIEIAI (A Athena Salvadora)
-- *Tirteu, poeta Lírico com deficiência física*
Nascido na Ática em meados do século VII a.C., Tirteu é identificado pelos
historiadores como um dos poetas líricos elegíacos iâmbicos mais expressivos
da Grécia Antiga. Trabalhou no inicio de sua vida como professor de uma
escola ateniense, embora sofresse bastante com as limitações físicas
marcantes que o obrigavam a claudicar significativamente.
No entanto, o poeta Tirteu viveu numa época em que a poesia era muito
valorizada, o que o tornou muito aceito nos meios atenienses mais cultos.
Conta-nos sua quase lendária história que durante a Segunda Guerra
Messênica os espartanos foram obrigados a fazer aos atenienses um pedido
incomum: precisavam de um general para comandar suas forças, não porque
inexistissem homens capazes na aguerrida Esparta, mas devido a uma clara
indicação do sagrado oráculo de Delfos.
Os atenienses ironicamente mandaram aos espartanos o poeta Tirteu,
manco como era, sem nenhum conhecimento de vida militar e um mero poeta.
Mas os espartanos respeitaram a indicação, pois viram naquele homem, cuja
figura física seria inaceitável nas elites de Esparta, um verdadeiro sinal de
Apolo, o deus dos oráculos e também do canto.
Na prática Tirteu provou ser muito competente em sua missão inusitada.
Explorou a interpretação indicada e as diversas conotações da mesma. Adotou
uma linha de valorização da coragem dos soldados espartanos em todos os
seus cantos de guerra, conduzindo-os dessa forma à vitória final contra seus
inimigos. Eis um de seus cantos que chegaram até nós: "Que honra para o
jovem valente ser morto pelo seu país com a espada em sua destra" (Apud
Pournaropoulos).
- *As leis que favoreciam as pessoas deficientes*
Na História Grega existem citações relativas à assistência destinada a
pessoas deficientes que são muito mais claras e específicas do que aquelas
encontradiças em culturas anteriores, contemporâneas ou posteriores.
Havia, por exemplo, em Atenas e em Esparta - rivais famosas -
determinações oficiais que davam aos soldados feridos e seus familiares
vantagens de diversas naturezas. Existiam provisões especiais relacionadas à
alimentação, como as que eram conseqüentes a uma lei de Sólon (640 a 558
a.C.) que determinava: "Soldados feridos gravemente e os mutilados em
combate serão alimentados pelo Estado".
Plutarco (45/50 a 125 d.C.), historiador e moralista grego, afirma que esse
tipo de lei favorecia pessoas consideradas incapacitadas para obtenção ou a
garantia de seu próprio sustento, mas que tais provisões não tinham sua
origem tanto na sensibilidade de Sólon a respeito do problema geral dos
soldados mutilados durante as muitas batalhas nas quais Atenas estava
continuamente envolvida. Na verdade, a compreensão mais aguda do
problema que o grande estadista demonstrara originara-se do conhecimento
que tivera das dificuldades vividas por alguém que Plutarco chega a identificar
em sua obra apenas pelo nome, não lhe dando, porém, maiores qualificativos.
O historiador grego afirma que essa famosa determinação legal "foi
promulgada devido ao fato de Térsipo ter ficado inválido, e essa mesma lei foi
usada mais tarde para uma outra semelhante, de
Pisistrato" ("Sólon", de Plutarco).
Houve, por muitos séculos, nas cidades de Atenas e de Esparta,
determinações que davam aos soldados e seus familiares vantagens que todo
o povo considerava como justas. No entanto, mesmo naquelas épocas surgiam
elementos viciosos que procuravam tirar proveito das situações e tentavam
indevidamente se enquadrar nessas vantagens, como podemos deduzir de um
interessante discurso de Lysias (459 a 380 a.C.), orador extremamente
eloqüente, citado pelos historiadores como inimigo ferrenho dos chamados
Trinta Tiranos. Nesse discurso, Lysias faz comentários a respeito de diversos
problemas das pessoas que tinham mutilações ou que apresentavam algum
tipo de deficiência. E faz referências irônicas aos pseudo-deficientes perante o
Senado Ateniense. Esse discurso chegou até nossos dias e é intitulado, na
língua grega, "Uper tou Adunatou" (Em favor do deficiente).
A questão deve ter deixado as autoridades e mesmo o povo ateniense
bastante preocupados não só com o franco desmascaramento dos falsos
deficientes, mas também com a necessidade de garantir a sobrevivência dos
heróis atenienses do presente e do passado e daqueles outros que certamente
iriam se prejudicar fisicamente em defesa de Atenas.
Em seu trabalho relativo à constituição de Atenas, intitulado no grego
"Athenáion Politéia", Aristóteles (384 a 322 a.C.), um dos maiores sábios de
todos os tempos, afirmou taxativamente aos membros do Conselho Ateniense:
"O Conselho passará agora a examinar o problema dos deficientes. Existe, de
fato, uma lei que estabelece que todo ateniense cujos bens não ultrapassem
três "minás" e cujo corpo esteja mutilado ao ponto de não lhe permitir qualquer
trabalho, seja examinado pelo Conselho e que seja concedido a cada um
deles, às expensas do Estado, dois óbulos por dia para sua alimentação. E
existe um tesoureiro dos deficientes, designado para tal" ("Constitution
d'Athène", de Aristóteles).
Percebe-se, portanto, que não se tratava de mero paternalismo nem de
esmola oficializada pelo Estado. O indivíduo tinha seu caso estudado antes de
receber os óbulos estabelecidos e ao início da aplicação desses planos não
ocorreram muitas fraudes. A cidade-estado de Atenas tivera meio século após
o discurso de Lysias para achar uma fórmula mais objetiva de atendimento aos
deficientes. Defendia-se, na verdade, um direito adquirido pela prestação de
serviços à Pátria.
Nota-se pelo estudo da História Grega que esse beneficio foi aos poucos
sendo estendido a outras pessoas portadoras de deficiências ou de
incapacidade para o trabalho, independentemente da causa do problema,
abrangendo eventualmente os pobres em geral. Na época em que Aristóteles
chamou a atenção do Estado para o problema, já havia mais de 20.000
pessoas alimentadas às expensas do governo ateniense, devido a muitos tipos
de deficiências e doenças, correspondendo a 20% da população total de
Atenas.
- *A medicina grega e as deficiências físicas*
A Grécia Clássica foi a pioneira dos movimentos de assistência médica à
sua população civil. Nomes famosos como os de Asclépios (Esculápio para os
romanos), médico renomado que muitos anos após sua morte foi transformado
no próprio deus da medicina, Demócedes de Crotona, Eródicos, Hipócrates e
Cláudio Galeno, enriqueceram o cabedal de estudos sobre medicina e também
sobre questões ligadas direta ou indiretamente a deficiências físicas e
sensoriais, durante muitos séculos.
Dentro dos objetivos deste trabalho, procuraremos restringir a pesquisa às
atividades ou personalidades de alguma forma relacionadas a deficiências
físicas ou mentais sérias e também ao eventual tratamento dispensado aos
portadores de algum tipo de deficiência na Grécia Antiga.
É do conhecimento geral que a medicina grega não conheceu fronteiras,
pois seus mais famosos e competentes homens eram avidamente procurados
por reis e pela nobreza de vários paises vizinhos, tais como do Egito, Roma,
Pérsia e outros mais.
Um pequeno exemplo poderá muito bem ilustrar essa procura e ao mesmo
tempo a velada disputa existente entre médicos egípcios, também muito
famosos por séculos, e os médicos gregos. Um acidente na área da ortopedia,
que quase levou um rei famoso a uma séria deficiência física, fez com que a
medicina grega penetrasse no Império Persa, no qual médicos egípcios
pontificavam, devido ao fato de por muito tempo terem sido considerados como
os mais competentes e mantenedores de renome soberbo.
Heródoto que nos relata que Dario I (521 a 486 a.C.), orgulhoso soberano
persa, ao descer num salto arrojado de seu cavalo durante uma caçada, torceu
violentamente o pé. Os médicos de sua corte - todos eles egípcios por
preferência e exigência do próprio monarca - eram adeptos de técnicas um
tanto violentas para casos de deslocamento, fraturas, luxações e males afins e
acabaram piorando o problema de Dario. Por sete dias e sete noites ele ficou
sem dormir devido às fortes dores no pé, todo inchado e dolorido ao extremo.
No oitavo dia ele não suportava mais as dores e o desconforto de não poder
nem dormir e, quando todos aos seu redor já sentiam que a irritação do
soberano persa poderia fazer rolar algumas cabeças, inclusive de assustados
médicos egípcios, Demócedes, médico grego nascido em Crotona, que vivera
em Atenas e na ilha de Samos onde havia aprendido e praticado medicina, foi
levado à sua presença, às pressas e também à força. Mal vestido, sujo e
cheirando mal devido às circunstâncias de sua verdadeira caçada para ser
levado ao rei, e além disso, arrastando ruidosa e acintosamente seus grilhões
de prisioneiro, não causou boa impressão.
Dario, irritado sobremaneira pelo seu próprio problema e pela decepção face
à sua esperança naquele médico grego sobre o qual seus auxiliares vinham
falando há dias e que poderia tirá-lo daquela desconfortável situação de
incapacidade física, perguntou aos gritos se ele pelo menos entendia um pouco
de medicina. Demócedes, de seu lado muito preocupado em poder voltar à
Grécia, respondeu que não. O que ele não esperava é que Dario, que antes
ouvira falar de sua vasta competência em medicina, mandasse seus servos
buscar açoites e instrumentos de tortura. Diante da negra perspectiva,
confessou que entendia um pouco de medicina e que vivera um pouco com um
outro médico grego, mas que seus conhecimentos eram muito limitados e
jamais poderiam chegar aos pés daqueles dos médicos-sacerdotes egípcios ali
mesmo presentes.
Mesmo assim o desesperado Dario fez questão de ficar sob seus cuidados.
Demócedes, já limpo e sem grilhões, começou por usar métodos mais suaves
para recuperar o dolorido pé do monarca persa. Usou ungüentos e remédios
que conhecia graças à sua experiência na Grécia, tendo tomado antes a sábia
decisão de fazer o irritado Dario dormir, para depois, por um tratamento mais
prolongado e menos traumatizante, recuperá-lo - impedindo uma eventual
amputação - e fazê-lo voltar a andar. O médico grego transformou-se no
médico favorito de Dario, lá estabelecendo-se com o mais absoluto sucesso e
abrindo caminho para muitos outros médicos gregos no Império Persa.
Demócedes tornou-se muito rico e famoso desde então, tendo sido um dos
fatores decisivos na finalização dos planos de Dario I para a invasão da Grécia
à qual sempre pretendeu voltar e nela se radicar.
- *A medicina de Hipócrates e as deficiências*
Eródicos, médico grego de vastíssima experiência, foi um dos principais
mestrês de Hipócrates (460 a 377 a.C.). Segundo a opinião de alguns
estudiosos da história da medicina, foi Eródicos o primeiro médico mais famoso
que começou a utilizar técnicas de tratamento que ele mesmo chamava de
"ginástica médica", uma incipiente fisioterapia .
Hipócrates, por seu lado, apresenta em muitos de seus trabalhos várias
descrições e análises sobre males incapacitantes ou limitadores. Dentre eles
destacamos a espondilite, a escoliose, o deslocamento congênito da bacia.
Além disso o grande mestre da medicina indicava como fazer o tratamento por
meio de massagens, de calor e de sua "ginástica terapêutica" - também uma
antecessora da fisioterapia.
Segundo estudiosos dos trabalhos de Hipócrates, foi ele que deu início à
árdua tarefa de separar a superstição e o misticismo da realidade dos fatos em
medicina, especialmente no tratamento de alguns males misteriosos para
aqueles afastados séculos. Sua famosa máxima "divinum opus est sedare
dolorem" (aliviar a dor é uma obra divina) durante muitos séculos levou muitos
homens dedicados à ciência de curar a continuamente procurar métodos mais
humanos e menos dolorosos durante procedimentos cirúrgicos, de um modo
especial nas amputações causadas por lesões de origem traumática.
Hipócrates dedicava-se à medicina como um todo, não sendo nada
estranho, portanto, que conhecesse bem uma infinidade de problemas médicos
e seus remédios. Dentre eles destaquemos cerca de 30 doenças relacionadas
à visão. Lidou, portanto, com males que levavam também a deficiências físicas
ou sensoriais.
- *Hipócrates e suas idéias quanto à epilepsia*
Com relação a um dos principais e mais misteriosos problemas causadores
de muito séria marginalização, ou seja, a epilepsia, Hipócrates insistia que o
famoso "mal divino", tão comum nos oráculos, nos sacerdotes e mesmo nos
imperadores da antigüidade nas mais variadas culturas e povos, não passava
de um mal que não era nem sagrado nem divino, pois tinha causas naturais.
Eram a ignorância, o medo, a superstição e a crendice que levavam o homem
a crer em sua sobrenaturalidade, muitas vezes até sugerida ou confirmada por
homens dedicados à medicina, principalmente por não saberem como tratá-la.
Sobre esse assunto Hipócrates diz textualmente: "Na minha opinião pessoal,
aqueles que primitivamente deram a essa doença um caráter sagrado eram
feitos mágicos, exorcisadores, curandeiros e charlatões dos nossos tempos,
homens que se gabam de possuir grande devoção e não menor sabedoria.
Não sabendo e não possuindo medicamento algum que os possa auxiliar,
escondiam-se e abrigavam-se por detrás da superstição, chamando a essa
doença de sagrada, a fim de que sua profunda ignorância não chegasse a
manifestar-se"... "Mas essa doença, na minha opinião, não é mais divina do
que qualquer outra; possui a mesma natureza das demais, com a mesma
causa que dá origem a cada uma das doenças"... "Sua origem, como a de
outras, reside na hereditariedade" ..."O fato é que a causa dessa afecção,
como em geral a de todas as doenças mais graves, reside no cérebro" (Apud
Tavlor).
- *Adaptações para prevenir deformações em crianças*
Já era do tempo de Hipócrates, que certamente deu relevante contribuição
ao assunto graças à sua vasta experiência, a adoção de medidas preventivas
de defeitos físicos em crianças de pouca idade. Os gregos e muitos outros
povos que viviam no século IV a.C. usavam certos tipos não identificados de
recursos artificiais que são citados por Aristóteles meio século após a morte de
Hipócrates. A afirmação taxativa do grande filósofo grego é esta: "Todos os
movimentos aos quais as crianças podem se sujeitar em idade tenra são muito
úteis. Mas, a fim de preservar seus frágeis membros de defeitos, tem usado
aparelhos mecânicos que fortificam seus membros" ("Politics", de Aristóteles).
A tradução do grego para o inglês utiliza as palavras "mechanical
appliances", enquanto que a versão francesa adota a palavra "machines" para
o mesmo vocábulo grego.
É de se ressaltar, entretanto, a importância já dada a medidas preventivas
generalizadas, segundo afirmação de Aristóteles. Foi exatamente sua
relevância que o levou a fazer dela menção expressa em uma de suas obras
mais importantes.
- *Cláudio Galeno e sua importância*
Nascido mais de cinco séculos após a morte de Hipócrates, um outro médico
grego que teve grande influência no desenvolvimento da medicina como um
todo e que também trabalhou com situações de deficiências físicas foi Cláudio
Galeno (131 a 201 d.C.), na cidade de Pérgamo, na Grécia.
Trabalhou muito em fisiologia experimental, passando a maior parte de sua
vida em Roma e outras paragens do Império Romano - o que não era de
estranhar nos séculos do apogeu romano. Foi primeiramente médico de arena
dos famosos circos romanos; após, foi destacado para ser médico de várias
legiões romanas por muitos anos, durante os quais acumulou enorme
experiência. Posteriormente, devido à sua competência, foi promovido para
médico imperial e também para professor de medicina. Seus trabalhos e sua
relatada experiência sobreviveram a ele e foram quase dominantes em
medicina durante muitos séculos da Idade Média, chegando a ser usados em
diversas escolas de medicina até o século XVII.
Escreveu sobre várias paralisias, tendo estudado a fisiologia patológica de
maneira mais cientifica do que a anteriormente conhecida. Sempre muito
envolvido no atendimento a casos de ortopedia, como é fácil de imaginar pela
sua vida juntos aos circos romanos e a legiões diversas; foi o primeiro a utilizar
certos termos médicos identificadores de males e que são até hoje
empregados, tais como: "kyphosis", "lordosis",
"skoliosis", dentre vários outros.
- *Demócrito e Homero: homens cegos e muito famosos*
Dos homens gregos portadores de deficiências ou de limitações, que se
notabilizaram e passaram mesmo para a História, o leitor certamente apreciará
a lembrança de Demócrito e de Homero.
Demócrito (470 a 360 a.C.) foi um físico e filósofo grego. Em seu modo de
ver, devemos procurar tudo de bom que o mundo pode ter, dentro de um
otimismo moderado e sem esquecer dos problemas inerentes a ele, Embora
suas obras mais famosas não tenham chegado até nós, escreveu-as com
títulos interessantes, como, por exemplo, "sobre a tranqüilidade da alma",
"sobre a natureza do homem", "sobre as causas da harmonia celestial" e
outros.
Dele, quase quatro séculos após sua morte, escreveu Cícero: "Demócrito,
após perder a visão, não podia mais distinguir o branco do preto; mas
distinguia o bem do mal, o justo do injusto, o honesto do desonesto, o útil do
inútil, o grande do pequeno. Pode-se ser feliz sem distinguir a verdade das
cores, mas não se poderá sê-lo sem dominar idéias verdadeiras. Esse homem
acreditava até que a visão era um obstáculo às operações da alma"
("Tusculanae Disputationes", de Cícero).
Diz a lenda que, para melhor meditar, Demócrito havia inutilizado seus
próprios olhos, pois expusera à luz do sol por muito tempo uma placa de cobre
brilhante, fazendo incidir seus raios sobre seus olhos (Apud Cabanès).
Quanto a Homero, já notamos a grandiosidade de suas obras Ilíada e
Odisséia - ao falar de Hefesto, o deus da metalurgia. A respeito desse grande
poeta grego, afirmou Cícero quando analisava os males que aparentemente
podem tornar uma vida miserável, mas que podem ser superados graças à
força de cada um: "Homero era cego, segundo a tradição. Seus poemas são
verdadeiros quadros: que lugares, que praias, que paragens da Grécia, que
tipos de combates, que estratégias de batalhas, que manobras navais, que
movimentos de homens e de animais são tão fielmente retratados pelo autor,
que parece nos colocar sob os olhos, o que ele mesmo não havia nunca visto!
O que é, então, que faltou a esse grande gênio não mais do que a outros
homens verdadeiramente sábios, para aproveitar todos os prazeres de que a
alma é capaz?" ("Tusculanae Disputationes", de Cícero).
- *Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas*
Homem famoso e importante do século IV a.C. foi o orador e político
ateniense, Demóstenes. Embora tenha nascido de família bastante abastada, o
garoto perdeu seus pais muito cedo e sua fortuna foi malbaratada pelos seus
tutores. O jovem Demóstenes tinha sérias dificuldades para falar
correntemente. Gaguejava muito, segundo os historiadores. Ao que parece ele
colocava pedrinhas na boca e gritava ao arrebentar das ondas, a fim de vencer
a dificuldade. De fato, obteve uma grande vitória sobre os problemas de
comunicação que o afligiam, pois chegou a tornar-se um dos mais enfáticos
oradores atenienses, chamando sempre a atenção de seus concidadãos para o
perigo contínuo dos espartanos.
Existem, no entanto, algumas dúvidas quanto à extensão dos males que de
fato afetaram Demóstenes durante toda a sua vida e a mais séria delas nos é
sugerida por duas obras de arte existentes no Museu Britânico, de Londres.
Trata-se de duas cabeças do grande orador que nos dão a nítida impressão de
que ele tinha lábio leporino do lado esquerdo.
Saul M. Bien, do Instituto Gugenheim de Pesquisa Dentária da Universidade
de New York, publicou na revista médica The Lancet uma interessante carta ao
editor, anexando uma cópia de foto da peça em questão e afirmava àquela
ocasião, entre outras coisas: "Lembrando que Demóstenes costumava descer
à beira-mar, lá enchendo sua boca com pedrinhas para discursar acima do
barulho das ondas, ocorreu-me que com toda a certeza o objetivo era
conseguir uma pedra lisa e plana que serviria como um obturador para uma
possível fissura palatal associada com presumível defeito no desenvolvimento
labial".
Se a hipótese de Bien estiver correta, ressaltemos que o esforço para a
superação dos problemas que afetavam Demóstenes duramente foi bem maior
do que o imaginado por muitos séculos já passados após sua morte.
- *Pessoas deficientes trabalhando citadas em obras gregas*
Homero faz diversas citações de pessoas portadoras de deficiências
desempenhando funções com grande sucesso. Uma dessas citações fala de
Hefesto, conforme tivemos oportunidade de ver anteriormente: um ser superior
com deficiência nas pernas e indicado como exímio artífice e magnífico ferreiro.
Lenda provavelmente indicativa dos costumes e usos da sociedade de então,
cinco séculos antes da época de Hipócrates.
Outra figura citada pelo mesmo autor relaciona-se a um contador de histórias
e de rapsódias, além de cantor de voz agradável: Demódoco, "ao qual, mais do
que a ninguém, a divindade outorgou o dom de deleitar com seus cantos, seja
qual for o assunto que seu coração lhe inspire" . . . Homero afirma também que
Demódoco era "entre todos querido da Musa, a qual lhe dera, a um tempo, o
bem e o mal, pois, o privara da visão e lhe concedera o melodioso canto"
("Odisséia", de Homero).
Há uma terceira figura citada por Homero na Odisséia: Tirésias. Era um
adivinho cego, muito famoso, proveniente da vila de Tebas. Inserido em
diversas outras obras, a história de Tirésias confirma a crença de que a
cegueira não era só um mal, mas um castigo também. Ele ficara cego por ter
revelado à humanidade os segredos do Olimpo. Segundo as lendas, foi
Tirésias que colaborou com o rei Édipo na descoberta das origens e
circunstâncias de seu nascimento, o que levou o infeliz monarca a arrancar os
próprios olhos, conforme vimos em páginas anteriores. As lendas acrescentam
que mesmo após a morte, do próprio Hades (mansão dos mortos) para onde
foi, Tirésias continuou a fazer adivinhações. Retratando ou não a viabilidade da
função de adivinho ou oráculo ter sido bastante desempenhada por pessoas
deficientes, um pouco mais adiante citaremos casos reais que comprovam
essa possibilidade.
As aplicações da vida prática nas obras literárias são muito comuns e
certamente influenciaram também os escritores gregos. Os exemplos citados
acima, que são apenas uma ilustração retirada das obras de Homero, deixam-
nos a impressão de que pessoas deficientes tinham seu lugar na sociedade
produtiva grega, desde que exercendo funções à sua altura. O próprio Homero
é um incrível exemplo de competência.
- *Creso, o mais feliz dos homens*
Creso é uma figura conhecida na História dos povos que gravitavam ao
redor da Grécia, da Pérsia, do Egito e de outros países mais fortes e pujantes
do século VI a.C. Foi rei da Lídia entre 563 e 548 a.C. e, tido como riquíssimo,
considerava-se para todos os efeitos o homem mais feliz de todo o mundo.
Foi em certa ocasião visitado por Sólon (640 a 558 a.C.), um dos sete sábios
de Atenas, já com mais de 75 anos de idade que, embora impressionado com a
sua riqueza, considerou outros homens já mortos como mais felizes do que
Creso. Segundo o velho legislador ateniense, ninguém poderia afirmar com
segurança que este ou aquele homem era o mais feliz durante sua vida. A
infelicidade sempre poderia surgir repentinamente.
E Creso teve de fato, logo a seguir, dois problemas seríssimos que provaram
a teoria de Sólon, empanando de vez a sua felicidade: teve dois filhos, "um dos
quais vitimado por uma desgraça de nascença: era surdo-mudo" ("História", de
Herodoto).
O outro filho, apesar dos extremos cuidados do pai por muitos anos, morreu
acidentalmente durante uma caçada em companhia de amigos e nobres da
corte de seu pai. Creso teve também a infelicidade de ver seu reino invadido e
dominado por Ciro, rei dos persas, sendo por ele condenado à morte. Deveria
ser decapitado na presença do filho surdo-mudo e de sua corte.
No momento em que o carrasco, de espada levantada, ia desferir o golpe
mortal, o filho de Creso, num emocionante gesto de amor filial, superando a
deficiência que o mantivera mudo até então, gritou: "Soldado, não mate Creso!"
Ciro ficou tão impressionado com a reação do garoto e com a coragem
demonstrada por Creso que mandou soltá-lo e recebeu-o como um de seus
conselheiros. Apreciou tanto seu modo de ser que o recomendou a Cambises,
seu sucessor, do qual já falamos.
- *A importância dos oráculos e adivinhos na vida grega*
Todos os historiadores gregos transmitem-nos uma nítida impressão da
crença que todo o povo e mesmo todas as autoridades depositavam nos
oráculos e nas mensagens transmitidos por sacerdotes, pitonisas e adivinhos,
quase todos eles verdadeiros recados cifrados dos deuses consultados que
admitiam algumas interpretações. Raramente decisões de importância eram
tomadas sem que esses canais de comunicação com os deuses fossem
consultados. O costume era tão arraigado e tão levado a sério que cada
comandante mantinha ao seu lado um adivinho incorporado e pago pelo
governo, consultando-o antes de movimentar suas tropas para um combate.
Alguns desses adivinhos eram portadores de deficiências as mais variadas,
conforme comentamos anteriormente, sendo vítimas da epilepsia (o famoso
"mal sagrado") ou de cegueira, na maior parte dos casos. Muitos deles
tornaram-se famosos no exercício de sua função, quer analisando o vôo dos
pássaros, quer examinando as entranhas de animais sacrificados, ou mesmo
dando interpretações instantâneas a alguns sinais da natureza, como os
ventos, raios, trovões, tremores de terra, eclipses do sol ou da lua, por
exemplo.
Heródoto fala-nos a respeito de diversos adivinhos, durante a fortíssima
campanha do rei Xerxes, soberano dos persas, contra a Grécia, nos anos 480
a 479 a.C., sendo Megístias um deles. Seguia esse adivinho o heróico grupo
dos 300 espartanos de Leônidas que, no estreito das Termópilas, chegou a
bloquear por vários dias o imenso exército do poderoso Xerxes, com mais de
três milhões de soldados. Conta-nos Heródoto: "O adivinho Megístias, tendo
consultado as entranhas das vítimas, comunicou aos gregos que guardavam o
desfiladeiro das Termópilas, que eles deviam perecer no dia seguinte, ao
romper da aurora" ("História", de Heródoto).
A credibilidade do adivinho era tal que Leônidas ordenou às suas tropas de
apoio (4.000 homens de cidades aliadas à causa) para se retirar naquela noite
mesmo, permanecendo no local apenas ele, seus trezentos espartanos e o
próprio Megístias que não quis abandonar seu rei. E lá deixaram uma
mensagem famosa e tocante que hoje está inscrita no belo monumento ali
existente: "Caminhante, vá dizer aos espartanos que aqui morremos em
obediência às suas ordens" ...
- *A história de um adivinho famoso que era cego*
Outro adivinho mencionado por Heródoto na mesma obra, de nome Deifono,
originário de Apolônia, na Ilíria (hoje Albânia), era filho de Eveno, adivinho
muito mais famoso e que era cego.
A história de Eveno, nas palavras do próprio Heródoto, é esta: "Durante todo
aquele dia os combatentes gregos mantiveram-se em repouso, e na manhã do
dia seguinte realizaram sacrifícios aos deuses, sendo-lhes favoráveis os
augúrios deduzidos do exame das entranhas das vítimas. Tinham eles por
adivinho Deifono, de Apolônia, cidade situada no golfo lônio, filho de Eveno, a
quem aconteceu estranho fato, que passo a relatar. Existem na cidade de
Apolônia rebanhos consagrados ao sol. Durante o dia esses rebanhos pastam
às margens de um rio que desce do monte Lácmon, atravessa aquela cidade e
desemboca no mar perto do porto de Órico; mas à noite são guardados por um
habitante da cidade, escolhido todos os anos entre os cidadãos da mais alta
categoria, quer pelo nascimento, quer pelas suas posses; pois os Apolonitas,
em vista da advertência de um oráculo cercavam esses rebanhos do maior
cuidado. Passavam eles a noite numa gruta afastada da cidade. Eveno, tendo
sido escolhido para essa missão, dormiu quando devia velar. Os lobos,
entrando na gruta, devoraram cerca de sessenta animais. Despertando e
vendo o que acontecera, Eveno resolveu ocultar o fato, com a intenção de
adquirir outros animais para substituir os que haviam sido devorados pelas
feras. Contudo, os Apolonitas vieram a ter conhecimento da verdade e,
indignados, submeteram Eveno a julgamento, condenando-o a perder a vista,
por ter dormido quando devia estar vigilante. Mas depois que lhe vazaram os
olhos, os rebanhos deixaram de procriar e a terra cessou de produzir frutos.
Essa calamidade lhes havia sido predita pelo oráculo de Dodona e de Delfos.
Os profetas, consultados sobre a causa de tamanha desgraça, responderam
constituir aquilo uma punição pela injustiça que haviam cometido, cegando
Eveno, guarda dos rebanhos sagrados. Disseram que eles próprios tinham
enviado os lobos e que continuariam a vingá-lo até que os Apolonitas
reparassem a sua injustiça para com ele. Quando isso se desse, eles próprios
concederiam a Eveno um dom que o faria parecer a muitos um homem
verdadeiramente feliz".
Heródoto continua a narrativa, informando: "Ante essa resposta, que lhes foi
dada sob sigilo, os Apolonitas incumbiram alguns de seus concidadãos de irem
à procura de Eveno, a fim de sondá-lo quanto à sua maneira de sentir com
relação à pena que lhe fora imposta. Os emissários foram encontrar Eveno
sentado numa cadeira. Tomando assento ao seu lado, puseram-se a falar-lhe
sobre coisas banais, fazendo, aos poucos, recair a conversa sobre a desgraça
que o atingira, terminando por perguntar-lhe como receberia uma reparação
dos Apolonitas, se eles se mostrassem dispostos a assim proceder, e qual a
que ele considerava mais justa no caso.
Eveno, que ignorava a resposta do oráculo, respondeu que, se os Apolonitas,
em reparação ao mal que lhe causaram, lhe concedessem terras, escolheria as
de dois de seus concidadãos, cujos nomes citou, consideradas as melhores de
todo o país. Gostaria também que lhe dessem a mais bela casa da cidade.
Com tais compensações ficaria satisfeito, cessando as suas queixas contra os
seus concidadãos".
"Eveno - disseram os emissários - os Apolonitas lhe concedem, obedecendo
às ordens do oráculo, a reparação que exiges pela perda da visão". Posto,
então, ao corrente dos fatos que se seguiram à sua punição, Eveno mostrou-se
bastante contrariado por haver sido enganado; mas os seus desejos foram
satisfeitos, pois os Apolonitas adquiriram as propriedades que ele havia
escolhido e fizeram-lhe presente delas. Logo depois, os deuses lhe
concederam o dom da adivinhação, com o que ele adquiriu grande
celebridade" ("História", de Heródoto).
- *As próteses de Hegesístrato, adivinho grego*
Hegesístrato de Eléia é considerado como o adivinho "mais célebre das
Telíadas", na opinião de Heródoto, aparecendo como agregado às tropas de
Xerxes, por volta de 479 a.C., ao final da grande luta contra os gregos.
Vários anos antes disso, todavia, os espartanos haviam capturado
Hegesístrato que era apenas um rebelde que combatia continuamente a
Lacedemônia. Posto a ferros, devia ser executado após inimagináveis torturas,
Heródoto nos conta que "encontrando-se em tão triste situação e tendo antes
de ser executado de sofrer ainda os mais cruéis tormentos, praticou um ato de
incrível temeridade. Achava-se com os pés presos em entraves de madeira
guarnecidos de ferro. Servindo-se de um instrumento cortante, que alguém,
sem dúvida, lhe havia trazido, seccionou a parte do pé acima dos dedos,
depois de ter examinado se poderia libertar dos entraves o resto do pé. Depois
de ter praticado a mutilação e retirado o pé, como a prisão estava guardada,
fez um buraco na parede e fugiu, caminhando durante a noite e escondendo-se
durante o dia nos bosques. Na terceira noite de caminhada chegou a Tegéa,
apesar das buscas dos lacedemônios, que se mostraram bastante espantados
com a audácia do fugitivo ao verem nos entraves a parte dos pés mutilados".
"Assim Hegesístrato, tendo conseguido escapar à perseguição dos
lacedemônios, refugiou-se em Tegéa, que não se mantinha, naquela ocasião,
em muito boas relações com Esparta. Curando-se dos ferimentos praticados
em si próprio, passou a usar pés de madeira e tornou-se inimigo declarado dos
lacedemônios" ("História", de
Heródoto).
Diversos anos após, ocorrida a invasão de Xerxes, Hegesístrato trabalhou
como adivinho de seus exércitos sendo muito apreciado e admirado por
Mardônio, general comandante dos persas na Grécia. Vaticinara maus
resultados para a batalha de Platéia, mantendo com isso o exército persa
parado por 10 dias. Mardônio, entretanto, não lhe deu ouvidos, entrou na
batalha e foi morto, deixando aos gregos a sensação de que finalmente
Leônidas havia sido vingado. Os persas retiraram-se para a Tessália de onde
prosseguiram, em retirada, até a Pérsia.
- *Peste Ateniense: o terror generalizado*
Dentre as epidemias graves, ou "pestes" como foram muitas delas
conhecidas, podemos destacar três na antigüidade: a "Peste Ateniense", a
"Peste Antonina" e uma outra, sem nome, que ocorreu no século III d.C.
A "Peste Ateniense" teve uma testemunha ocular muito precisa no
historiador Tucídides (471 a 395 a.C. ), tido como o mais brilhante dos
historiadores gregos, que a relatou em sua obra "A Guerra do Peloponeso". Ela
ocorreu no ano 428 a.C. e matou mais de 20 mil dos 100 mil habitantes de
Atenas. Deixou um elevado número de vítimas com deficiências físicas.
Tucídides nos conta com muita clareza: "Se se escapava dos problemas
mais graves, o mal atingia as extremidades que, nesse caso, mantinham as
marcas da sua passagem; atacava os órgãos sexuais, os dedos das mãos e
dos pés. Muitos livraram-se dela com a perda desses membros, outros pela
perda dos olhos: outros, enfim, ficaram totalmente privados da memória"
("Histoire de la Guerre du Péloponèse", de Tucídides).
- *A atenção a soldados feridos ou doentes. Anábase, de Xenofonte*
Raros são os autores gregos que analisam ou mesmo fazem qualquer
menção ao problema dos feridos ou doentes nos exércitos da Grécia Antiga,
muito embora as batalhas fossem sempre sanguinolentas e os tipos de armas
então utilizadas levassem a incontáveis riscos não só de perfurações graves ou
fatais, como também de cortes profundos e de amputações.
Encontramos em "Anábase", a famosa obra de Xenofonte (430 a 355
a.C.),um relato pormenorizado sobre a retirada de 10.000 mercenários gregos
contratados por Ciro, que disputava com seu irmão Artaxerxes II a coroa do
Império Persa. Essa famosa "marcha para o norte", que começou em Cunaxa,
onde Ciro foi morto em acirrada batalha, durou cinco meses entre 401 e 400
a.C. e nela tomou parte o próprio Xenofonte, como um de seus comandantes.
É nessa obra que podemos encontrar algumas referências à questão dos
feridos e dos doentes, e que poderão ser ilustrativas quanto ao tratamento e à
atenção dispensados aos soldados fisicamente prejudicados em batalha.
No enorme esforço coletivo para viabilizar o retorno de todo aquele infeliz
exército, podemos imaginar a dramática situação vivida pela totalidade de seus
homens e acompanhantes, sempre perseguidos por destacamentos das forças
de Artaxerxes II ou pelas tribos habitantes das montanhas do Turquistão e da
Armênia por onde passaram. O drama ficou muito mais forte quando tiveram
que enfrentar os perigos das montanhas próximas ao nascedouro do Eufrates,
cobertas de neve, uma vez que as circunstâncias da marcha contínua não
permitiam deixar ninguém para trás.
Em sua narrativa cristalina Xenofonte fala de relance no sério problema dos
soldados doentes ou feridos. Faz menção àqueles que haviam ficado cegos ou
que tinham tido membros amputados devido ao congelamento. Descrevendo a
pressa em subir as montanhas e em escapar dos desfiladeiros perigosos, cita
os suprimentos e bens abandonados e imediatamente capturados e repartidos
com um grande alarido pelos bárbaros que os perseguiam muito de perto.
"Deixamos também para trás os soldados que a neve havia cegado ou que o
frio havia congelado os dedos dos pés. Podia-se proteger os olhos do brilho da
neve colocando diante deles um objeto negro enquanto se marchava. Podia-se
também impedir os pés de congelar movimentando-os, não os deixando em
repouso e tirando o calçado antes de dormir" ("Anábase", de Xenofonte).
Esses homens eram sempre colocados e protegidos na retaguarda e
ocasionalmente participavam das escaramuças com as tribos de montanheses,
pelo menos com seus gritos furiosos e com o barulho infernal que podiam fazer
batendo espadas e lanças contra seus próprios escudos.
Nota-se em certos pontos do livro IV a preocupação e o carinho para com
esses homens feridos ou doentes. Tanto isso é verdadeiro, que, após cinco
meses de marcha para o Mar Negro, tendo chegado às costas e se instalado
com certa tranqüilidade por um mês, decidiu-se buscar a ajuda dos navios
gregos.
Enquanto ela não chegava para transportar os 8.600 homens e seus
acompanhantes que haviam sobrevivido à travessia, os primeiros a embarcar
para a pátria nos navios ali mesmo disponíveis foram os doentes e alguns
outros componentes das forças gregas. Segundo palavras de Xenofonte,
"embarcamos os doentes" - e dentre eles estavam os que podiam ser
considerados como deficientes - "os soldados com mais de 40 anos, as
crianças, as mulheres e a carga supérflua".
- *Homens com sérias luxações nas pernas: sapateiros, ferreiros, seleiros*
Informações interessantes sobre a utilização de homens com deficiências
físicas nas profissões de selaria, sapataria e ferraria nos são transmitidas por
Hipócrates ao comentar sobre a sociedade das Amazonas.
Eram mulheres guerreiras que, segundo algumas lendas, habitavam a região
da Capadócia. A etimologia da palavra não é muito segura, mas há os que
afirmam tratar-se de antiga composição grega para o correspondente a "sem
seio". As histórias relatam que as mães superaqueciam metais e outros objetos
para deixá-los durante longo tempo bem próximos ao seio direito das meninas,
dificultando com isso o seu crescimento e dando a cada uma delas, quando
adultas, melhores condições para manuseio do arco e da flecha.
Na verdade, nessa estranha e semi-fantasiosa cultura comentada por vários
autores, tais como Homero, Heródoto e mesmo Hipócrates, cabia às mulheres
lutar e aos homens, desenvolver trabalhos manuais sedentários em situações
especiais, uma vez que toda criança do sexo masculino praticamente era
levada ao próprio pai, em outras nações e terras distantes, para ser criada.
Hipócrates, em sua obra sobre as articulações tece comentários bem
específicos e muito claros quanto a deformações provocadas pelas Amazonas
em seus filhos do sexo masculino que excepcionalmente ficavam com as
respectivas comunidades. Diz o grande sábio: "Contam que as Amazonas
provocam, desde a infância, em seus filhos do sexo masculino, uma séria
luxação, seja nos joelhos seja nos quadris, com objetivo de, sem dúvida,
transformá-los em coxos, e de impedir que os homens conspirem contra as
mulheres; servem-se elas depois desses deficientes como trabalhadores, para
as tarefas de sapateiro, ferreiro e outros ofícios sedentários. Ignoro se a
referência é verídica, mas o que é certo é que as coisas aconteceriam mesmo
assim, se as crianças fossem mutiladas durante a infância" (Apud Moreno).
- *Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados com deficiência*
Um dos maiores gênios militares que a Humanidade já conheceu, Alexandre
III, o Grande (356 a 323 a.C.), rei da Macedônia de 336 a 323, criou o chamado
Império Grego que ia desde os limites da Índia, a Leste, até a Cítia, ao Norte.
Ao Sul atingia o Egito e o Golfo Pérsico.
Foi educado por Aristóteles, especialmente contratado por Felipe da
Macedônia, seu pai. Além de monarca e comandante militar, Alexandre foi
filósofo, homem que respeitava os usos e costumes dos povos subjugados e
repleto de dignidade. Morreu com apenas 33 anos de idade e ao final de sua
curta vida, havia não apenas conquistado terras e reinos, mas também feito
muitos amigos e aliados. Eventualmente encontramos informações de que
Alexandre sofria de epilepsia, mas nem todos os autores o confirmam.
Alexandre sempre foi muito participante da vida e das agruras sentidas por
seus comandados, tendo em certa ocasião ficado quase cego devido ao seu
envolvimento. É Plutarco que nos conta com pormenores coloridos o
acontecimento.
Foi durante violento ataque a uma fortaleza de tribos conhecidas como
"malianas", atualmente em território da Índia. O destemido rei dos macedônios
estava tentando galgar um dos lados da muralha que defendia as instalações,
por meio de uma escada, juntamente com os demais companheiros, no auge
da batalha, quando ela cedeu fragorosamente. Alexandre, agarrado que já
estava ao alto da muralha, ali permaneceu e não teve outra alternativa a não
ser saltar no meio dos inimigos que contra ele atiravam setas e pedras. Com o
barulho do guerreiro e de suas armas batendo fortemente no chão, todos
fugiram para os lados, mas logo voltaram-se para verificar se ele ainda vivia. E
o ataque sobre ele foi feroz. Alexandre e apenas dois companheiros
encostaram-se contra a muralha, próximos que estavam de uma grande árvore,
e daquele ponto mesmo enfrentaram a multidão de inimigos e seus golpes
violentos. Chegaram a ferir seriamente Alexandre com um golpe que furou sua
armadura na altura do peito.
"O golpe foi tão forte que ele, perdendo as forças, caiu de joelhos: aquele
que havia desferido o golpe correu depressa com a cimitarra desembainhada
na mão, mas Peceutas e Limneu lançaram-se à sua frente e foram ambos
feridos; Limneu morreu na hora e Peceutas enfrentou-o, enquanto o próprio
Alexandre matava o bárbaro
com suas próprias mãos, depois de ter recebido várias feridas pelo corpo todo.
Finalmente desferiram-lhe um golpe de cacete na nuca, deixando-o atordoado"
("Alexandre, o Grande", de Plutarco).
Forrest, porém, discorda dessa tradução, uma vez que, segundo ele,
"Alexandre recebeu um violento golpe na nuca com uma pedra, que apagou
sua visão por um bom tempo" (Apud Forrest)
Alexandre foi salvo pela imediata afluência de soldados macedônios, mas
permaneceu muitos dias entre a vida e a morte.
Pois bem, esse inimitável herói da história greco-macedônica que foi
Alexandre, o Grande, sempre foi muito apreciador dos esforços e dos
sacrifícios feitos por seus soldados. Tanto isso é verdade que, um ano antes de
morrer procurou mandar de volta à Macedônia, com todo um aparato de
segurança, "os doentes e os inválidos, que haviam perdido algum membro na
guerra" ... Alexandre passou alguns dissabores com seus principais
comandantes devido a esse plano, mas acabou por fazê-los retornar todos à
pátria, "após lhes haver dado magníficos presentes; escreveu ao seu lugar-
tenente Antípater, que em todas as assembléias de jogos e de divertimentos
públicos, eles fossem preferidos e se sentassem nos melhores lugares,
coroados de flores e quis ainda que as crianças órfãs dos que haviam falecido,
ao seu serviço, recebessem o soldo de seus pais" ("Alexandre, o Grande", de
Plutarco).
- *Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas deficientes*
Conforme analisamos anteriormente, a influência dos deuses foi marcante
em praticamente toda a vida da Grécia Antiga, e mesmo depois de instalado o
Cristianismo. Mais do que ninguém conhecedores disso, os sacerdotes e
sacerdotizas procuravam, por todos os recursos à sua disposição, tornar o seu
deus específico o mais eficaz e o mais poderoso possível.
Asclépios, que os romanos, devido a uma corruptela de pronúncia, muito
mais tarde passariam a chamar de Esculápio, reconhecido como o deus da
cura e da medicina, foi um caso todo especial e que merece toda a nossa
atenção, dentro do tema que estamos procurando analisar, contando com
templos em cidades, ilhas e mesmo nações as mais diversas que recebiam a
influência grega.
Seu templo mais famoso foi aquele localizado em Epidauros, vila situada a
nordeste do Peloponeso, ao sul da Grécia de nossos dias. Havia, no entanto,
muitos outros templos e alguns deles considerados como muito importantes,
tais como o de Pérgamo, de Tricca e de Cós. Em sua grande maioria os
templos de Asclépios localizavam-se em pontos de alta salubridade devido ao
ar muito puro, às águas termais e algumas outras condições que hoje
caracterizam em geral as "estações hidrominerais".
Quanto ao templo e às diversas instalações adjacentes de Epidauros,
podemos admirar apenas suas ruínas, a mais de doze quilômetros do porto de
Palaia Epidhavros. E o visitante não pode deixar de ficar admirado com a
extinta pujança daquilo que por séculos diversos foi reconhecido como a
"Asclepéia de Epidauros". Foram escavadas, parcialmente restauradas e
tombadas as ruínas de seu teatro – famoso e muito bem conservado, sendo
considerado como um dos melhores de toda a Grécia de hoje - do estádio
esportivo, do ginásio que contava até com piscina, de uma espécie de
hotelaria, de um muito sofisticado e complexo templo circular conhecido como
"tholos", do próprio templo de Asclépios, de uma construção adjacente ao
templo e conhecida como "abaton" e também de um hospital.
Lemos no estudo biográfico romanceado sobre a vida de Marco Túlio Cícero,
intitulado "A Pilar of Iron", da escritora norte-americana Taylor Caldwell, uma
descrição minuciosa de Epidauros do século I a.C. e muitas de suas
instalações. Vários pontos dessa descrição dos ambientes são muito
importantes para melhor entendermos o real significado do conjunto de
construções chamado de Santuário de Asclépios, ou "hiéron", no próprio grego,
para pessoas vítimas de doenças crônicas, de males misteriosos e tidos como
incuráveis e de deficiências das mais variadas naturezas. A escritora valeu-se
de uma vasta documentação, visitas aos locais e conhecimentos acumulados
por estudiosos especializados nas ruínas e no antigo funcionamento de
Epidauros. Baseou-se também em muitas discussões com sociedades
históricas e arqueológicas gregas. Diz ela em seu famoso livro que o "santuário
de Asclépios, conhecido em todo o mundo civilizado, não era apenas um
templo religioso e miraculoso, mas toda uma comunidade". Segundo a autora,
em consonância com documentos históricos sobre o assunto, o santuário
recebia continuamente pessoas portadoras de males os mais variados e muitos
de natureza grave, e era o último recurso para aqueles que haviam sido
abandonados ou desenganados pelos médicos como casos incuráveis ou sem
qualquer possibilidade de solução.
Ali surgiam continuamente pessoas com artrite, cegos, surdos, mudos,
deficientes mentais, vitimas de paralisias, reumáticos, casos de doenças
degenerativas, vítimas de picadas de aranha ou de cobra, casos de gestação
difícil, vítimas de acidentes com seqüelas graves e muitos outros.
Por essa razão, e levando-se em conta o cerimonial adotado pelos
sacerdotes para permitir a aproximação ao famoso deus da cura e da medicina,
não é de admirar que eles fossem sempre médicos muito experimentados que
guardavam em segredo fechado um verdadeiro e surpreendente monopólio de
conhecimentos passados muitas vezes de pai para filho. Tratavam os casos
não apenas com atenção e carinho de um sacerdote ou autoridade religiosa,
mas com avançados conhecimentos de medicina.
Epidauros, devido ao seu movimento contínuo e permanente afluência de
casos médicos que durou mais de quatro séculos, chegou a representar um
campo de observação e de prática da medicina antiga dos mais sérios de toda
a Grécia Clássica, mas quase que totalmente inserido num ambiente fechado e
muito místico no qual a fé nos poderes de Asclépios desempenhou um papel
de fundamental importância.
- *As famosas instalações de Epidauros*
Analisemos um pouco suas instalações. O recinto sagrado propriamente dito
("hiéron") contava com algumas áreas especiais, conforme poderá ainda hoje
ser observado nas próprias ruínas ali expostas. Dentre esses ambientes físicos
especiais é necessário destacar o chamado "abaton" e o próprio templo do
deus Asclépios. O primeiro é um amplo pórtico, todo construído em colunadas
praticamente ao lado do templo, sendo internamente dividido em dois níveis.
No nível inferior ficavam os casos de pessoas impossibilitadas de andar ou que
provocavam sérios empecilhos para seu transporte e no superior havia
acomodações para os casos menos graves. Há alguns estudiosos de
Epidauros que afirmam ser a separação em níveis correspondentes à
distribuição por sexo.
Para todos os fiéis que desejavam uma aproximação a Asclépios havia
condições previamente estabelecidas pelos sacerdotes tanto para entrada no
templo como para utilização do "abaton". Os médicos-sacerdotes ficavam
conhecendo todos os casos com antecipação e, a pretexto de regras do culto,
iniciavam um tratamento prévio através de ritos purificadores incluindo neles os
banhos medicinais, jejuns, dietas especiais, sacrifícios ao deus, donativos ao
complexo sagrado e outros tipos de intervenção que procuravam ligar
intimamente aos ritos de aproximação ao "abaton", caso o devoto tivesse
condições de cura, possibilidades eventuais de volta ou necessidade de
orientações para cura mais demorada. Após esses trabalhos iniciais e caso o
devoto cumprisse todos os requisitos iniciais, ele era aceito para passar uma
noite no "abaton", dormindo sobre uma pele de animal sacrificado ao deus ou
sobre um catre, em ambiente intencionalmente misterioso.
O templo de Asclépios, em Epidauros, era de um estilo dórico puro, todo
cercado de colunas, medindo 25,50 metros de comprimento e 13 metros de
largura. Suas paredes eram construídas de pedra rebocada de branco. Seu
teto era todo forrado com táboas de cipreste. No frontão do templo havia uma
vistosa estátua de Niké, a deusa da vitória. A entrada principal do templo era
bem ampla, com cinco colunas dóricas e contava com uma rampa de acesso.
Rampas de acesso eram também usadas nas instalações do edifício conhecido
como "tholos", do "abaton" e da "propiléia" do famoso templo, conforme podem
ainda ser notadas nas ruínas existentes em Epidauros. O piso da nave do
templo era acabado em mármore branco e preto. O altar interno do templo
(havia o altar externo, para sacrifícios de animais), a meio caminho da nave,
era de mármore branco, levemente iluminado por lamparinas. E ao fundo, em
ambiente suavemente rebaixado e cercado por leves degraus, ficava um trono
no qual estava a bela imagem de Asclépios, em marfim e ouro, rosto sereno,
com uma das mãos segurando um bastão e a outra pousada sobre a cabeça
de uma serpente sagrada. A seus pés, um cão sagrado.
- *O sistema de funcionamento de Epidauros*
Desde a entrada do templo até o trono de Asclépios, sacerdotes e auxiliares
espalhavam-se por todo o ambiente, ajudando os enfermos ou as pessoas
devotas, orando ou entoando cânticos sacros. Cuidavam para que tudo
corresse bem para os fiéis, evitando zelosamente para que ali dentro não
sucedessem nem mortes nem nascimentos. Eventualmente alguns cães
cruzavam o local, pois além de serem considerados animais sagrados, eram ali
mantidos para a vigilância e salvaguarda do templo. Serpentes sagradas e não-
venenosas eram olhadas com extremo respeito em seus raros e ocasionais
passeios pelos cantos do templo ou pelo arvoredo que o cercava - eram elas
consideradas como o próprio símbolo do deus Asclépios.
O devoto portador de um mal ou de uma deficiência, e em geral
desenganado por médicos - ou deles desiludido - após um período de
preparação já citado e que poderia durar alguns dias, dormia uma noite no local
conhecido como "abaton", sendo preparado por alguns métodos hipnóticos ou
pelo consumo de alimentos ou poções soníferas receitadas pelos médicos-
sacerdotes. Essa espécie de "retiro espiritual" para o qual havia uma série de
orientações, era conhecida como "noite de incubação", e considerada como
elemento essencial para o culto do deus e a eventual efetivação da cura. Era
durante essa noite que aconteciam visões ou sonhos, e pela manhã os
sacerdotes anotavam e interpretavam todos eles, como se fossem mensagens
diretas do próprio
Asclépios, sem, todavia, descuidar das medicações ou das providências que
vinham adotando desde a chegada do devoto ao santuário.
- *Plutão, deus da riqueza, curado por Asclépios*
Aristófanes (450 a 388 a.C.), em sua peça "Plutão, o Deus da Riqueza", fala-
nos pormenorizadamente do ritual utilizado em templos de Asclépios. Trata-se
de uma trama bem desenvolvida na peça na qual vemos Cremilos, pobre e
honesto, procurando um oráculo para encontrar a riqueza. Logo após, ao
perseguir e dominar um mendigo cego, percebe tratar-se de Plutão, o próprio
deus da riqueza.
Vejamos um trecho em verso, no qual Aristófanes indica a já consagrada
fama de Asclépios:
"Cremilos - Restaurar a visão...
Blepsidemos - . . . Restaurar a visão de quem?
Cremilos - Restaurar a visão de "Riqueza", do modo que pudermos!
Blepsidemos - O que? ! Ele é realmente cego? . . .
Cremilos - Ele é, realmente!
Blepsidemos - Ah! Porisso é que ele jamais veio a mim. . .
Cremilos - Mas agora ele virá, se for o desejo dos céus.
Blepsidemos - Não seria melhor chamarmos um médico?
Cremilos - Existe neste instante algum médico em toda a cidade? Não há
pagamentos e, portanto, não há especialistas!
Blepsidemos - Pensemos um pouco. . .
Cremilos - Não há nenhum!
Blepsidemos - Não há mais nenhum. . .
Cremilos - Então, será melhor fazermos aquilo que eu já pretendia: Fazê-lo
dormir no templo de Asclépios a noite toda.
Blepsidemos - Estou certo de que é melhor mesmo. Portanto, deixe de vadiar:
Rápido, faça alguma coisa..." (Apud Edelsteinl
Carion, outro personagem da comédia, encarregado de levar Plutão até
então disfarçado em mendigo cego ao templo de Asclépios, volta muito feliz de
sua viagem e conta à esposa como havia ocorrido a cura. Usa uma linguagem
pitoresca e por vezes muito irreverente. Vejamos, numa tradução em prosa, os
pontos que mais nos interessam em sua narrativa e lembremo-nos de que ela
foi escrita quatro séculos antes do nascimento de Jesus Cristo. Ela nos fala de
perto a respeito dos problemas das pessoas com deficiência à busca de cura
para seus males, para os quais os médicos de então não encontravam
soluções.
"Carion (dirigindo-se à esposa) - Ouça, eu vou lhe contar todo esse negócio
incrível, dos pés até a cabeça"... ... "Logo atingimos o templo do deus, levando
o homem muito infeliz então, mas tão feliz e tão rico agora. Imediatamente
levamo-lo até o mar e lá o banhamos"... ..."Depois, levamo-lo ao recinto
sagrado. Lá, sobre o altar, bolos de mel e guloseimas eram oferecidos,
alimento para a chama de Hefesto"...
"Esposa - Não havia outros para serem curados?"
"Carion - Neocleides era um deles; o pobre cego que durante seus furtos
havia furado seu próprio olho. E muitos outros, doentes com todas as formas
de doenças. Logo o servidor do templo apagou as luzes e mandou-nos dormir,
sem nos movermos ou falarmos a qualquer barulho que ouvíssemos. Assim
sendo, deitamo-nos num repouso tranqüilo".
Carion, muito observador, muito irreverente e muito curioso do que ali
poderia suceder, vê na penumbra do "abaton" a figura de um sacerdote
coletando e levando as oferendas que estavam sobre o altar, colocando-as
todas num saco. E após algumas peripécias no ambiente de recolhimento
pretendido pelos sacerdotes, conta o aparecimento de Asclépios,
acompanhado das deusas Panacéia e laso. O deus vai de paciente a paciente,
muito calmo, estudando cada um deles.
Perto do cego Neocleides um servente coloca ao lado do deus um pequeno
pilão e uma caixa de medicamentos; o deus faz a mistura com vários
ingredientes e coloca-a nos olhos de Neocleides, sem curá-lo, mais para
castigá-lo por seus furtos do que para livrá-lo da cegueira parcial.
A seguir, dá atenção ao cego Plutão:
"Carion - Depois, sentou-se ao lado de Plutão e primeiro apalpou a cabeça
do paciente e depois, tomando um lenço de linho, limpo e branco, limpou seus
lábios e os secou. Então, Panacéia, com um manto vermelho, cobriu seu rosto
e sua cabeça; o deus assobiou e duas grandes serpentes saíram do santo
altar. E escondidas sob o manto vermelho, elas lamberam seus olhos, segundo
me parece. E, querida, antes mesmo que você pudesse tomar dez cálices de
vinho, Plutão levantou-se e enxergou" (Apud Edelstein).
- *Os testemunhos das muitas curas*
Segundo arqueólogos e historiadores especializados no assunto, ocorreram,
só em Epidauros e sem considerar outros templos, curas verdadeiras devido a
medicações corretas e bem dosadas, devido a intervenções cirúrgicas das
mais variadas naturezas, devido a banhos especiais, devido a massagens e
certos tratamentos ligados àquilo que hoje podemos chamar de fisioterapia, e
também devido à sugestão. No entanto, destaque-se que em todos os casos
que recorreram a Asclépios existiu por parte dos beneficiários uma fé muito
forte em seu poder de cura. Sua fama ultrapassava em muito o Mar Egeu e o
Adriático.
Uma pequena parte dessas curas mais misteriosas foi para sempre
registrada em pedras votivas, em ex-votos especiais, em placas de
agradecimento, em pergaminhos, em colunas votivas, hoje localizados em
diversos museus e no próprio acervo histórico de Epidauros.
Existem, por exemplo, algumas colunas votivas que citam muitos casos,
incluindo mais de cem curas consideradas hoje como inexplicáveis e tidas
como miraculosas.
Eis um testemunho eloqüente relativo à cura de um mal indefinível, mas de
natureza grave: "O lugar está deserto e não há ninguém ao meu redor para
ouvir minhas palavras. Acreditem-me, ó homens, estive morto durante todos os
anos que eu já havia vivido. O belo, o sagrado, o mau eram todos semelhantes
para mim; tal era, segundo me parece, a escuridão que me envolvia em minha
compreensão e que de mim escondia todas essas coisas. Mas agora que aqui
vim, recomecei a viver pelo resto da minha vida, como se eu tivesse dormido
no templo de Asclépios e tivesse sido salvo. Este sol tão grande, tão belo,
agora por mim descoberto pela primeira vez, homens! Agora, hoje, eu vejo
vocês, o ar, a acrópole, o teatro, sob o céu claro!"... (Apud Edelstein)
Outro caso citado por vários autores está retratado numa invocação muito
fervorosa que mostra a imensa fé e o forte conceito de Asclépios no seio do
povo. Diz ela: "Ó Asclépios, ó desejado, o invocado deus! Como poderei ir ao
teu templo se tu mesmo não me conduzires a ele, ó invocado deus que
superas o esplendor da terra primaveril! E esta é a oração de Diofanto. Salva-
me, ó misericordioso deus; somente tu, na terra e no céu. Ó piedoso deus, o
deus de todos os milagres, graças a ti Diofanto não andará mais como um
caranguejo, mas terá bons pés como tu o quiseste" (Apud Montanelli).
Na maioria dos casos considerados como inexplicáveis e milagrosos, não
tem sido viável à ciência médica fazer julgamentos objetivos das curas por não
ser mais possível contar com qualquer base cientifica para análise quanto aos
males alegados que afetavam as pessoas beneficiadas e muito agradecidas ao
deus da cura e da medicina. Vejamos, a título de ilustração, alguns casos de
pessoas que haviam levado ao templo de Asclépios em Epidauros problemas
de deficiências sérias, tais como a cegueira, dificuldades de locomoção e
outros, e as circunstâncias de sua cura.
a) Nicanor - deficiência nas pernas: Segundo uma das colunas votivas acima
indicadas e que mais parecem compilações de dados a respeito de curas
miraculosas, Nicanor era um homem que sofria séria limitação nas pernas. É
indicado como manco. Estava recolhido e sentado no interior do templo de
Asclépios, orando em preparação para a sua "noite de incubação" no "abaton".
Ao seu lado, a bengala que era forçado a usar. De súbito um misterioso e
travesso menino passou correndo ao seu lado e tirou-lhe a bengala, dirigindo-
se na direção da saída. Nicanor, surpreso e aborrecido, levantou-se para
perseguir o garoto. Só quando chegou ao lado externo do templo, à procura do
menino, é que notou que estava curado de sua limitação física.
b) Alkétas, de Haliéis - homem cego: Este homem cego, durante a noite que
passou no "abaton" teve um sonho: viu o próprio deus Asclépios chegar até ele
e abrir-lhe os olhos com seus dedos. As primeiras coisas que enxergou,
enquanto o deus manipulava seus olhos, foram as sombras das árvores do
lado de fora do santuário, no meio da noite. Ao chegar o dia saiu curado.
c) Lyson, de Harmione - menino cego: Como milhares de outros casos, este
menino cego estava no templo de Asclépios para pedir sua cura e nada mais.
Ali sentado, esperava pacientemente. Em certo momento sentiu, um tanto
surpreso, que um dos cães sagrados do santuário havia chegado perto dele e
começara a lamber seus olhos. Um pouco depois levantou-se muito feliz, pois
começara a enxergar as coisas. Ficou também curado.
d) Eschino - homem cego por ferimento recente: Com este homem
aconteceu algo desagradável, muito embora o incidente seja bastante
interessante. Curioso por saber o que poderia estar acontecendo no "abaton",
no meio da noite, com tantos doentes ali dormindo e as histórias de que
Asclépios aparecia em pessoa, subiu numa das grandes árvores que davam
sombra ao recinto, sem que os vigias ou os sacerdotes percebessem. Procurou
um galho que lhe desse acesso ao muro perto das colunadas do "abaton", para
poder ver melhor. O galho, entretanto, não suportou seu peso e ele caiu
fragorosamente sobre umas estacas existentes no jardim, ferindo gravemente
os olhos. Em lamentável estado, foi socorrido. Suplicou perdão pela sua
curiosidade. Depois dos primeiros cuidados foi recolhido ao "abaton" para uma
noite de preces, tendo de lá saído curado.
e) Menina muda: Não identificada, existe a história de uma menina muda
que, ao entrar no recinto sagrado, corria de cá para lá, curiosa e muito
irriquieta. De repente, pega de surpresa e aterrorizada com uma serpente
sagrada que descia de uma árvore, gritou pelo pai, pedindo socorro. A partir
desse momento voltou a falar.
f) Menino mudo não identificado: Também sem identificação, este menino
mudo chegou ao templo de Epidauros acompanhado pelo pai, com o objetivo
evidente de recuperar a voz. Após ter feito os sacrifícios e passado pelos ritos
iniciais, como era costumeiro para todos os casos, estava sentado no templo,
aguardando, em oração, ao lado do pai. O servente do templo, que acendia as
lamparinas para sua iluminação interna, olhando para o pai do menino sugeriu
que ele deveria prometer trazer, dentro de um ano, a oferta de agradecimento
pela cura do filho, caso o garoto obtivesse aquilo que viera buscar naquele
templo de Asclépios. Mas foi o próprio menino mudo que de repente
respondeu: "Eu prometo". O pai, espantado, pediu que ele repetisse. O garoto
respondeu sem hesitação - e depois disso ficou curado.
O leitor talvez tenha curiosidade de saber a natureza de mais algumas
dessas fantásticas curas, consideradas como milagrosas, ocorridas em
Epidauros, da mesma forma como aconteceram em muitos outros dos templos
de Asclépios. Apenas nas colunas votivas citadas acima pudemos constatar:
12 curas de oftalmias sérias, incluindo a cegueira total
9 curas de defeitos nas pernas, incluindo paralisias
3 curas de afasia
2 curas de casos de surdez
1 cura de tuberculose
1 cura de convulsões (talvez epilepsia)
2 curas de casos de gota
2 curas de enxaquecas
1 cura de picada de tarântula
1 cura de infecção por piolhos.
Além disso, há citações de diversos casos de gravidez problemática, que era
uma verdadeira especialidade de Epidauros, de partos difíceis e também de
diversos casos curados por intervenções cirúrgicas que chegam a totalizar
mais de uma dúzia.
Naturalmente que os casos mais graves ou que não poderiam encontrar
solução nem pela fé nem pela intervenção dos médicos-sacerdotes,
abrigavam-se pelas imediações em alojamentos ou, muito mais próximo do
aparecimento do Cristianismo como nova força, num "hospital"construído por
Antonino Pio (86 a 161 d.C. e lá, depois de muito sofrimento ou de um definhar
continuo, muitos deles acabavam morrendo. O problema da grande afluência
de mulheres em adiantado estado de gravidez e também de doentes
desenganados por médicos e à beira da morte levaram também à construção
de uma espécie de hotel ou abrigo. Essas instalações ficaram conhecidas
como "Katagógion", tendo mais ou menos 160 quartos.
Existem ainda hoje alguns trechos da estrada entre as ruínas de Epidauros e
o porto da Palaia Epidhavros que fazem parte do chamado "caminho sagrado",
todo ele ladeado por túmulos daqueles distantes séculos.
De acordo com alguns autores, Epidauros e alguns outros templos de
Asclépios tiveram durante séculos a influência talvez correspondente àquela
que hoje em dia tem Lourdes, na França e vários outros lugares considerados
como milagrosos. Os tratamentos nesses templos de Asclépios funcionaram da
mesma forma como ainda hoje funcionam os tratamentos ministrados em
templos na ilha grega de Tenos, que são prescritos através das interpretações
de sonhos ou de visões ocorridas durante a noite num recinto considerado
sagrado do templo.
A forte influência de Asclépios, seja em Epidauros, seja em muitos outros
templos espalhados pelo mundo greco-romano, só foi cedendo muito
vagarosamente aos ataques do Cristianismo que procurava sistematicamente
anular o significado da miríade de deuses e deusas do mundo pagão.
- *"Apothetai" do monte Taygetos, em Esparta*
Todos aqueles que trabalham em reabilitação já ouviram de alguma forma
falar a respeito de um certo costume espartano de lançar crianças defeituosas
em um precipício, em épocas anteriores ao advento do Cristianismo.
Pessoalmente sempre tivemos curiosidade a esse respeito e chegamos mesmo
a fazer contatos diretos e visitas, procurando das autoridades de reabilitação
da Grécia algum esclarecimento a respeito do assunto.
Talvez que ajude no entendimento dessa questão - que, segundo os
espartanos de hoje em absoluto relaciona-se exclusivamente a Esparta antiga -
a menção a ele feita claramente por Plutarco, em sua obra "Licurgo". Segundo
nos conta o escritor o que sucedia era isto: O pai de qualquer recém-nascido
das famílias conhecidas como "homoioi" (ou seja, "os iguais") e que eram a
nata de Esparta, não tinha o direito de criá-lo, pois o Estado subordinava a
todos. Pelas leis vigentes, ele era obrigado a levar o bebê, ainda bem novo, a
uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida
autoridade, que se reunia para examinar e tomar conhecimento oficial do novo
cidadão. Segundo Plutarco, eles se reuniam num local conhecido como "leschi"
(correspondendo certamente a "edifício", "órgão oficial", "repartição") para esse
fim. Se nesses locais os autorizados anciãos anotavam ou não os dados
pessoais de identificação, de paternidade, de maternidade, de local e de data
do nascimento, de sexo e outros, o historiador não nos indica. Pelo seu relato
sabemos que, se fosse um bebê normal e forte ("se o achavam belo, bem
formado de membros e robusto") ele era devolvido ao pai que passava a ter a
incumbência de criá-lo. Depois de certa idade - entre os 6 e 7 anos - o Estado
tomava a si a responsabilidade e continuava sua educação, que era dirigida
para a arte de guerrear, como podemos comprovar pelos estudos da História
Grega Antiga. No entanto, "se lhes parecia feia, disforme e franzina", como
refere Plutarco, esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de
famílias que representavam, ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir
e a levavam a um local chamado "Apothetai", que significa "depósitos".
Tratava-se de um abismo situado na cadeia de montanhas Taygetos, perto de
Esparta, para lá a criança ser lançada e encontrar sua morte, "pois, tinham a
opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela
vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para
ser forte, sã e rija durante toda a vida" ("Licurgo", de Plutarco).
- *Como era o ambiente de Esparta*
Não nos é fácil nem tranqüilo entender esse costume - ou outros adotados
em Atenas, Roma e outras cidades - a respeito do qual o leitor poderá
encontrar menções também em alguns escritores e filósofos antigos, tais como
Platão e Aristóteles, citados um pouco mais adiante neste mesmo capítulo.
Talvez ajude nossa compreensão o conhecimento dos usos e costumes, das
circunstâncias e do ambiente que imperavam em Esparta ao redor do século V
ou IV a.C.. O próprio Plutarco, ao comentar a vida de Licurgo, poderá nos dar
uma idéia aproximada dessas características, especialmente quando considera
as tentativas que fazia para tornar os espartanos um povo inexpugnável.
Separemos alguns trechos dessa famosa obra:
"XXV - Quanto à educação das crianças, que ele estimava ser a mais bela e
a maior coisa que poderia estabelecer, ou introduzir um reformador de leis,
começando de longe, considerou primeiro os casamentos e a geração das
crianças. Pois, quanto ao que diz Aristóteles, que ele ensaiou reformar as
mulheres e disso desistiu incontinenti, ao ver que não podia consegui-lo, por
causa da enorme licença que elas haviam usurpado na ausência dos maridos,
porque estes eram constrangidos a partir constantemente para as guerras,
durante as quais os homens se viam obrigados a deixá-las senhoras de suas
casas, honrando-as e acariciando-as além da medida, chamando-lhes damas e
senhoras - isso me parece falso: a verdade é que tratou de regulamentar-lhes
e ordenar-lhes a maneira de viver, assim como a dos homens, de acordo com a
razão. Primeiramente, pois, ele quis que as moças enrijecessem o corpo,
exercitando-se em correr, lutar, jogar a barra e lançar o dardo, a fim de que o
fruto que concebessem, vindo a tomar forte raiz num corpo disposto e robusto,
germinasse melhor; e também para que, reforçadas por tais exercícios,
suportassem com mais vigor e facilidade as dores do parto. E para tirar-lhes
toda a delicadeza e ternura feminina, acostumava as mocinhas, assim como os
rapazes, a freqüentar as procissões, dançarem nuas em algumas festas e
sacrifícios solenes e cantarem na presença e à chegada dos rapazes, aos
quais, muitas vezes, ao passarem, dirigiam algum brocardo apropriado,
tocando ao vivo aqueles que em alguma coisa tivessem esquecido seu dever; e
não raro também recitavam em suas canções os louvores dos que destes eram
dignos" ...
"XXVI - Mas, quanto ao fato de se mostrarem inteiramente nuas em público,
não havia nisso vilania alguma, pois, a exibição era acompanhada de toda a
honestidade, nem lubricidade nem dissolução; antes pelo contrário, trazia
consigo o costume da simplicidade e, entre elas, a vontade de possuir o corpo
mais robusto e melhor disposto" ...
“XXX - Pois, em primeiro lugar, Licurgo não queria que as crianças
pertencessem a particulares, mas fossem comuns à república, desejando,
assim, também que aqueles que tivessem de ser cidadãos fossem gerados não
por todos os homens, mas somente por gente de bem" .."Não obstante
guardavam as mulheres encerradas debaixo de chaves com medo de que elas
concebessem de outros que não eles, mesmo quando desmiolados, doentios e
velhuscos, como se não fosse primeira e principalmente por culpa dos pais e
mães, e dos que as educam, que as crianças nascem viciosas e defeituosas,
quando filhas de pessoas taradas"...
No item XXXII Plutarco fala das crianças defeituosas e da solução que a
sociedade espartana havia encontrado para elas no "Apothetai" da cadeia de
montanhas Taygetos, conforme comentamos um pouco acima. O livro
continua, porém, a nos dar indicativos muito ricos do ambiente que imperava
em Esparta, onde uma pessoa deficiente de fato não conseguiria sobreviver.
“XXXIII - ... e assim, não era permitido aos pais educar os filhos à sua moda,
como bem lhes parecesse. Pois, logo que estes chegassem à idade de sete
anos, ele os tomava e as distribuía por grupos para serem educados e se
habituarem a brincar, aprender e estudar uns com os outros; depois, escolhia
em cada grupo aquele com aparência de ser o mais avisado e o mais corajoso
no combate, ao qual dava a superintendência do grupo todo. Os outros sempre
tinham a vista voltada para ele e obedeciam às suas ordens, suportando
pacientemente as punições que ele lhes ordenava; de maneira que quase todo
o estudo era aprender a obedecer" ("Licurgo", de Plutarco).
- *Outras formas de eliminar crianças defeituosas na Grécia Antiga*
No antigo Peloponeso, sob a liderança guerreira de Esparta, havia também
outras formas de dispor de crianças malformadas ou doentias. Não ocorria
necessariamente a morte, mas a "exposição" (* tal exposição dava-se em local
onde a criança podia ser encontrada. No entanto, o chamado “abandono”
correspondia a deixar à própria sorte para morrer. Princípio genericamente
aceito na Grécia, não era todavia aceito na sociedade de Tebas, igualmente
“civilizada”). Recorriam os seus habitantes a lugares considerados como
sagrados, tais como as florestas, os vestíbulos dos templos, as beiras dos rios,
as cavernas, onde as crianças eram deixadas bem embrulhadas numa grande
panela de barro ou num cesto, com roupas que continham seus símbolos
maternos ("Xymbola metrós"). Elas podiam sobreviver ou não. Os símbolos
bordados nas roupas e nas cobertas poderiam inclusive levar à identificação da
família original. Caso uma criança assim exposta morresse, a manta e vestidos
acabavam servindo para adorno em seu funeral.
No entanto, alguns filósofos dos mais renomados chegaram a alimentar a
idéia do extermínio das crianças defeituosas, sendo um deles um dos maiores
e mais conceituados pensadores gregos: Platão (428 a 348 a.C.). Ao filosofar
sobre uma utópica república completamente nova para a Grécia, Platão
afirma:. . . "e no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixa-
os morrer".
Afirma ainda o insigne filósofo: "Quanto às crianças doentes e às que
sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro
desconhecido e secreto". ("República", de Platão).
Assim, na famosa república idealizada por Platão, só os bem formados de
corpo e de espírito é que teriam qualquer papel. A criança ou adulto deficientes
estariam, nessa hipotética realidade, fadados a morrer. Em seu conceito, e em
suas próprias palavras, "estabelecerás em nossa república uma medicina e
uma jurisprudência, como acabamos de dizer, que se limitem ao cuidado dos
que receberam da natureza corpo são e alma formosa". E é certamente deste
pensamento e desta frase de Platão que se originou o ainda hoje usado moto
característico de programas esportivos ou de bom condicionamento físico:
"Mens sana in corpore sano" - Mente sã num corpo sadio.
De sua parte Aristóteles escreveu o seguinte: "Quanto a saber quais as
crianças que se deve abandonar ou educar, deve haver uma lei que proíba
alimentar toda criança disforme" ("Politics", de Aristóteles).
Existem relatos de afogamentos de recém-nascidos defeituosos, ou de
abandono dos mesmos às margens do rio Eurotas, que corta o sudeste do
Peloponeso, na Lacônia, indo desaguar no Mediterrâneo, após banhar a
cidade-estado de Esparta dos séculos anteriores a Cristo.
Algumas das circunstâncias que teriam levado governantes a adotar
medidas tão difíceis de aceitar hoje foram mais ou menos as seguintes: os
cidadãos espartanos não eram nem a totalidade nem mesmo a maioria dos
habitantes de Esparta, mas uma elite da população local que habitava aquela
região. Eles eram conhecidos como os "homoioi" (os "iguais"), conforme
referimos anteriormente. Dedicavam-se às guerras e suas obrigações giravam
em torno de estar preparados para enfrentar não só as eventuais convulsões
internas provocadas pelas demais facções da sociedade espartana, como
também os inimigos externos da grande e poderosa Esparta. Assim, a cidade-
estado não contava, como também não queria contar, com cidadãos fracos,
doentios e imperfeitos.
No entanto, a sobrevivência eventual de uma criança defeituosa podia
perfeitamente ocorrer, como ocorria, uma vez que as leis de extermínio diziam
apenas respeito aos filhos dos "homoioi", que eram os descendentes diretos
dos dórios.
Nas outras classes sociais não ocorria esse tipo de restrição. Tais eram os
casos dos "periecos", dedicados aos trabalhos da lavoura ou cuidado com o
gado, ou dos "ilotas", escravos que eram obrigados a manter-se vinculados à
terra, sem qualquer tipo de privilégio.
- *A história de Labda, mãe de um rei de Corinto*
Os costumes que imperavam em Esparta não foram necessariamente
universalizados por todas as cidades-estado da Grécia dos seis últimos séculos
antes da Era Cristã, pois cada uma delas, bem como cada uma das pequenas
ou grandes nações ao seu redor, desenvolvia seu próprio sistema de leis e de
governo, e seus próprios usos e costumes.
No tocante às atitudes face a crianças nascidas com deficiências físicas e ao
trato a elas dispensado, encontraremos na história de Corinto, uma das mais
fortes e melhor conceituadas cidades-estado da Grécia dos séculos VII e VI
a.C., indícios interessantes inseridos no livro "Terpsícore", parte integrante da
obra intitulada "História", de Heródoto.
Lá encontraremos referências à filha de um dos importantes membros da
oligarquia dos Báquidas, dominante em Corinto há muitos anos, e que formava
uma enorme família devido ao fato de todos os seus membros casarem entre
si.
Acontece, porém, que em época não bem determinada, Anfíon, um dos seus
membros, teve uma filha que nasceu com malformação congênita, ao que
parece, pois tinha uma das pernas mais curta que a outra, o que a levava a
claudicar sensivelmente. Seu nome era Labda.
O costume de casamentos consangüíneos, entretanto, não funcionou no
caso dessa jovem, pois nenhum Báquida queria casar-se com ela devido a sua
deficiência física. Assim, casaram-na com um jovem do burgo de Petra,
aparentemente de poucas qualificações, embora de sangue nobre, cujo nome
era Eécion, filho de Echacrates.
Depois de algumas dúvidas quanto à fertilidade de Labda, o que levou o
jovem marido a consultar uma pitonisa, ela engravidou e deu à luz um menino.
Segundo o oráculo ele governaria Corinto e esmagaria os déspotas Báquidas.
Sabedores do oráculo, os Báquidas aguardaram o nascimento e dez deles
receberam a missão de ir a Petra e matar o garoto. A gentil Labda, ao receber
a visita dos dez homens de Corinto - de certa forma seus parentes -
singelamente achou que se tratava de visita de cordialidade, após tantos anos
de desprezo e marginalidade. Passou o filho aos braços do primeiro visitante,
ignorando completamente o propósito criminoso do grupo: esmagá-lo contra o
chão.
Mas naquele mesmo instante a criança de poucos meses sorriu para o
estranho, "deixando-o tão comovido que não teve coragem de matá-la,
passando-a para as mãos do outro companheiro. Este, também tocado de
piedade, transferiu-a para as mãos de um terceiro e assim passou ela de mão
em mão, sem que nenhum se animasse a sacrificá-la. Devolvendo o recém-
nascido ao carinho de sua mãe, deixaram a casa" ("História", de Heródoto).
Diz-nos mais o historiador que Labda teve que tomar providências que
denotaram extrema vivacidade e sangue frio para salvar o menino, uma vez
que os dez revistaram a casa toda após terem voltado para consumar o crime
para o qual tinham sido destacados. Apesar de tudo, conseguiu sozinha
ludibriá-los.
O filho dessa jovem mãe portadora de deficiência recebeu o nome de
Cípselo; ele, chegando à idade adulta, angariou bens e reuniu homens, atacou
Corinto e dela se apoderou. Tornou-se logo após seu rei e, após ter vingado
sua mãe e muitos dos injustiçados pelos Báquidas, reinou por 30 anos.
Terminou bem seus dias.
- *Os costumes em Atenas face a deficiências físicas*
No que diz respeito a Atenas - a grande rival de Esparta - quando nascia
uma criança, o pai celebrava uma festa conhecida como "amphidromia" (de
"amphi" que significa "ao redor" e "dromos", para "volta"). Os costumes exigiam
que ele tomasse a criança em seus braços, dias após o nascimento, e a
levasse solenemente à sala para mostrá-la aos parentes e amigos e para
iniciá-la no culto dos deuses. A festa terminava com banquete familiar. Caso
não fosse realizada a festa, era sinal de que a criança não sobreviveria. Cabia,
então, ao pai o extermínio do próprio filho.
Durante sua vida, entretanto, os cidadãos atenienses tinham ampla proteção
das leis para manterem-se livres de agressões provocadoras de lesões que os
pudessem incapacitar para a vida normal. Segundo Plutarco, Sólon
estabeleceu normas bem claras para proteger também cidadãos atenienses
enfraquecidos por doenças ou vitimados por deficiências. Em Atenas essas
normas, além de garantir a alimentação, davam ampla liberdade para que
qualquer agressor fosse processado por atos de injúria ou de ataques físicos,
caso algum desses cidadãos deficientes fosse assaltado, espancado ou
sofresse qualquer tipo de violência. "Qualquer homem que fosse poderia
processar o malfeitor" ("Sólon", de Plutarco).
Acresce considerar também que as leis atenienses ordenavam que os filhos
tinham obrigação de amparar e sustentar seus pais, seja devido à velhice, seja
devido a deficiências físicas (Apud Durant).
- *O legado da Grécia Antiga*
Para quem vive em pleno século XX na cidade de Esparta, ou visita o
produtivo e poético vale do rio Eurotas, torna-se muito difícil imaginar que as
palavras de Plutarco ou os fatos relatados por historiadores sejam verdadeiros.
No entanto, a eliminação de crianças disformes foi uma constante na História
dos povos guerreiros de toda a antigüidade.
Foi o Cristianismo que levou a Grécia, em suas múltiplas sub-divisões em
cidades-estados, a muito vagarosamente alterar esse e outros costumes, que
já vinham sendo modificados pelos séculos afora por diversos governantes e
por diversos dos filósofos que enriqueceram sua cultura e sua tradição. A
implantação do Império Romano do Leste, posteriormente transformado no
Império Bizantino, encontrou a Grécia organizando instituições mais e mais
voltadas para problemas específicos: lares para deficientes ("paramonaria");
lares para pessoas cegas ("tuflokoméia"); instituições para pessoas com
doenças incuráveis (arginoréia "); e também organizações para pessoas muito
pobres e para mendigos ("ptochéia").
Apesar das histórias sobre Taygetos e sobre o rio Eurotas, a Grécia deixou
para o mundo um saldo muito positivo de leis e costumes que valorizam a
bravura e a dedicação à pátria, ao preço da própria integridade física ou da
vida. Deixou também muitos conhecimentos relacionados à medicina, além de
vários exemplos de organizações que, muito embora de caráter segregativo e
assistencialista, chegaram a tornar-se um claro demonstrativo do
reconhecimento do indivíduo como um ser repleto de valores.
4. Os Romanos
O legado de Roma ao mundo tem sido de extremo valor através dos séculos
em praticamente todos os campos. Dentre eles cumpre que destaquemos a
arquitetura, a saúde pública, as artes, as leis, a literatura e a medicina.
Dos assuntos que mais nos interessam neste estudo e rápido passar pela
História, o das leis é dos mais relevantes. Ninguém jamais poderá negar que
uma significativa porcentagem de todo o acervo de leis que chegou até nós e
foi por nós de certa forma absorvido, derivou do cuidadoso e muito esmerado
trato que os romanos sempre deram ao assunto. Nem tudo, porém, foi bom ou
aceitável para nós na legislação romana; nem tudo foi adaptado ou seria
adaptável à nossa realidade ou ao nosso sistema de leis. O mundo de então
era bem diverso daquele em que hoje vivemos.
No que diz respeito a pessoas com deficiências, não é fácil encontrarmos
referências precisas, mas se nos dispusermos a exercícios cuidadosos de
estudo da História Romana, encontraremos não apenas leis, mas também
fatos, costumes, obras de arte que nos surpreenderão. Veremos, por exemplo,
que tanto a história da evolução da medicina romana, tão intimamente ligada à
medicina grega, quanto a dos gradativos progressos em termos de saúde
pública (por exemplo, abundância de água potável, latrinas públicas, rede de
esgotos) garantiram a prevenção de muitos males incapacitantes. E ficaremos
espantados ao reconhecer dentre os Césares, dois com sérias deficiências
físicas; reconheceremos também um famoso censor romano que foi cego; e
leremos páginas que nos falam da competência de pessoas deficientes...
- *O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma*
No Direito Romano havia leis que se referiam ao reconhecimento dos
direitos de um recém-nascido e em que circunstâncias esses direitos deveriam
ser garantidos ou poderiam ser negados. Dentre as condições para negação de
direito, a chamada "vitalidade" e a forma humana eram as principais.
Como exemplo poderemos mencionar que, tanto os bebês nascidos
prematuramente (antes do 7º. mês de gestação) quanto os que apresentavam
sinais da chamada "monstruosidade", não tinham condições básicas de
capacidade de direito.
Além de não encontrarmos uniformidade nos pontos de vista de autores
quanto aos requisitos básicos para o reconhecimento dos direitos de um ser
humano recém-nascido, dentro do Direito Romano, os sinais indicativos da
"monstruosidade" eram um fator decisório para sua negação. Alguns
abalizados estudiosos deixam a nítida idéia de que ela não se limitava à
eventual similaridade com algum animal - principalmente no rosto ou devido a
malformações de membros - mas também a mutilações ou falta de membros.
Moreira Alves afirma que a solução dada pelas leis romanas, que àquelas
épocas não contavam com a medicina ao seu lado ou com mais sólidos
princípios de defesa da incipiente vida humana, advinha especificamente de
uma lei régia atribuída a
Rômulo nos primórdios da vida formal de Roma. De acordo com ela, estava
proibida a morte intencional de qualquer criança abaixo de três anos de idade,
exceto no caso de a criança ter nascido mutilada, ou se fosse considerada
como monstruosa. Para casos dessa natureza a lei previa a morte ao nascer.
Segundo o autor citado, havia para o "pater famílias", dentre as faculdades a
ele outorgadas pelo poder paterno (pátria potestas), uma alternativa: poderia
expor a criança às margens do rio Tibre ou em lugares sagrados, desde que
antes de o fazer tivesse mostrado o recém-nascido a cinco vizinhos, para que
fosse de certa forma certificada a existência da anomalia ou da mutilação.
A obra "De Legibus", de Cícero (Marcus Tullius Cicero - 106 a 43 a.C.),
comenta que nas Leis das Doze Tábuas havia uma determinação para o
extermínio de crianças nascidas com deformidades físicas ou sinais de
monstruosidade. Em sua linguagem original, a famosa lei dizia o seguinte:
"Tabula IV - De Jure Patrio et Jure Connubii
Lex III - Pater filium monstrosum et contra formam generis humani, recens
sibi natum, cito necato".
Em nossa língua:
"Táboa IV - Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento
Lei III - O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma
do gênero humano, que lhe tenha nascido há pouco".
Sêneca (Lucius Annaeus Seneca - 4 a.C. a 65 d.C.) indica que os recém--
nascidos com deformidades físicas eram mortos por afogamento. O grande
pensador e filósofo romano não analisa, em seus comentários, a validade da lei
em si mesma. Analisa apenas a necessidade de, em nossas vidas, fazermos
tudo, mesmo as coisas desagradáveis e chocantes, sem ira, sem ódio.
Segundo Sêneca, devemos fazer tudo o que precisamos fazer com
naturalidade, eliminando da obrigação o aspecto ódio. Ele cita alguns exemplos
que, segundo deduzimos, eram bastante óbvios para os romanos daquela
época, quando o Cristianismo começava a desabrochar e seus principais
apóstolos atingiam Roma pela primeira vez. Vejamos o que afirma Sêneca:
"... Riscai, então, do número dos vivos a todo culpado que ultrapasse o limite
dos demais, terminai com seus crimes do único modo viável, mas fazei-o sem
ódio"
... "Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar;
não o cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se
cães quando estão com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as
cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas;
matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos; se nascerem defeituosos
e monstruosos, afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, para
distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis" ("De Ira", de Sêneca).
O trecho latino pertinente é o seguinte:
"... portentosos fetus extinguimus, liberos quoque; si debiles monstrosique
editi sunt, mergimus; nec ira sed ratio est, a sanis inutilia secernere" ("De Ira",
de Sêneca).
O termo "portentosus" significa extraordinário, muito diferente, monstruoso; a
palavra "debilis", segundo o autor Plínio, pode significar tolhido de algum
membro ou de alguma parte; Sêneca usa o termo "inutilia", no neutro plural,
referindo-se a "fetus" e aos demais itens mencionados no mesmo texto (cães,
touros, ovelhas,
membro gangrenado). No entanto, talvez o uso do neutro neste caso relembre-
nos que mesmo ao nascer, sem ainda ter o cordão umbilical cortado (ato dos
mais importantes no estabelecimento do direito da pessoa nas leis romanas) o
recém-nascido era apenas um ente sem direitos - e podia ser eliminado.
Presume-se que eram considerados como "monstros" todos os recém-
nascidos que tivessem características bem diferentes dos normais, com
membros a mais ou a menos, e também aqueles que apresentassem alguma
deformidade muito séria.
Houve em épocas bem precisas da História Romana muitos nascimentos de
crianças ou abortos de fetos com deformações congênitas, devido a causas
não identificadas. Segundo Plutarco "no ano 280 de Roma, um temor
supersticioso tinha invadido toda a cidade, porque as mulheres grávidas davam
à luz crianças quase todas elas defeituosas e imperfeitas em alguma parte do
corpo, e não havia nenhuma que viesse a termo" ("Publius Valerius Publicola",
de Plutarco). Face à legislação vigente desde os tempos dos primeiros reis de
Roma, não se deve nutrir qualquer dúvida quanto ao destino desses recém-
nascidos: a lei de extermínio da vida incipiente, seja por afogamento, seja por
outros meios, mesmo antes de completado o nascimento com o corte do
cordão umbilical, foi aplicada. Publícola, que era cônsul de Roma, mandou
consultar os livros Sibilinos, como era costumeiro fazer ao acontecer fatos
misteriosos e causadores de grandes desgraças. Fez a população romana
oferecer sacrifícios especiais a Plutão, o deus das profundezas do Inferno, para
tentar eliminar o problema que afligia a todos. De providências práticas e
próprias para resolver a situação, entretanto, não se tem notícia e nem Plutarco
entra em maiores considerações.
- *O destino das crianças deficientes em Roma*
Mesmo com a anuência da lei, o infanticídio legal não foi praticado com
regularidade. Crianças malformadas, doentias ou consideradas como anormais
e monstruosas eram, no máximo, abandonadas em cestinhas enfeitadas com
flores às margens do Tibre. E os escravos ou as pessoas empobrecidas que
viviam de esmolas ficavam na espreita e atentos para eventualmente se
apossarem dessas crianças, criando-as para mais tarde servirem como meio
de exploração do compadecido e por vezes muito culpado coração romano,
obtendo esmolas volumosas.
A esmola chegou a ser um negócio muito rendoso em Roma Antiga. Na
verdade foi tão rendoso que houve épocas em que foram realizados raptos de
crianças patrícias muito novas, para serem mutiladas ou deformadas a fim de
se tornarem pedintes nos templos, nas praças e nas ruas de Roma e das
outras importantes cidades do vasto Império Romano. Certamente foi por
motivos dessa natureza que durante a decadência do Império, os patrícios que
ocasionalmente tinham filhos defeituosos, sabedores dessas histórias,
passaram a usar das prerrogativas dadas pelo instituto do "patria potestas"
para eliminar a vida desses recém-nascidos, não correndo eles mais o risco de
se tornarem mendigos e de terem seus corpos deformados.
Na Roma dos tempos dos Césares, ou seja, em séculos mais sofisticados e
menos bárbaros, deficientes mentais, em geral tratados como "bobos", eram
mantidos nas vilas ou nas propriedades das abastadas famílias patrícias, como
protegidos do "pater familias". Cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes
físicos e outros tipos de pessoas nascidas com malformações eram também de
quando em quando ligados a casas comerciais, a tavernas, a bordéis, bem
como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes
humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da
Humanidade.
É o historiador Durant que nos informa ainda sobre este assunto "... existia
em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas
ou braços, de três olhos, gigantes, anões, hermafroditas" ("História da
Civilização", de Durant).
Foi extremamente notória em Roma também a utilização de meninas e
moças cegas como prostitutas, além de rapazes cegos como remadores,
quando não eram usados simplesmente para esmolar.
- *O deus da medicina: Esculápio*
A exemplo do que ocorrera na Grécia desde o século V a.C. com o deus da
cura e da medicina, Asclépios, os romanos também dedicaram templos a um
deus semelhante (e importado da Grécia...), numa espécie de Epidauros
romana; o mais famoso desses templos era localizado numa pequena ilha do
rio Tibre, a "Insula Tiberina". O interesse dos romanos pelo deus da cura e da
medicina, em seu próprio modo de ver muito mais específico para o tratamento
de males instalados do que a deusa Salus (significa "saúde"), surgiu em
conseqüência de violenta epidemia ocorrida no ano 293 a.C. Os romanos
consultaram os Livros Sibilinos e resolveram mandar uma delegação oficial a
Epidauros, sob a chefia de Caio Ogúlnio, que de lá voltou com um símbolo vivo
do deus, isto é, uma serpente sagrada, além das instruções para a organização
do templo, para a construção de instalações para doentes e para o culto.
Acontece, porém, que quando a delegação estava chegando à cidade de
Roma, remando rio acima, a serpente escapou e foi nadando até a "Insula
Tiberina". Tomando o acontecimento como um verdadeiro sinal do deus, lá os
romanos erigiram um templo a Esculápio, novo nome de Asclépios graças a
uma diferença de pronúncia. Depois de muitos anos, em consideração pelos
bons resultados obtidos com esse novo deus, os romanos resolveram "casá-lo"
com a deusa Valetudo, uma deidade correspondente à Higiéia dos gregos
(deusa da Saúde).
Nas instalações sagradas da ilha Tiberina havia acomodações para os que
procuravam a ajuda do deus da medicina e também para os sacerdotes. De
acordo com gravuras da época havia instalações magníficas das quais nada
restou. O acabamento externo dava à ilha a forma de um portentoso barco. A
ilha Tiberina hoje comunica-se com ambas as margens do rio Tibre,
ressaltando-se que sua ligação com a margem esquerda é feita por meio de
uma antiga ponte construída no ano 62 a.C., a ponte Fabrício, que é a mais
antiga de toda Roma. De todas as originais proteções laterais hoje podemos
ver alguns blocos de pedra travertina no lado leste da famosa ilha.
O Cristianismo, que combateu duramente as crenças ligadas ao paganismo,
fez desaparecer o templo de Esculápio e todas as demais instalações ligadas
ao seu culto. Mais tarde foi ali construída a igreja de São Bartolomeu,
consagrada no ano 1000 com a presença do imperador Otto III. Segundo tudo
indica, não só parte do revestimento da igreja, mas também sua escadaria
foram executados com pedras retiradas das ruínas dos templos e do
acabamento lateral da ilha. Ali foi também construído um hospital, o Ospedale
di San Giovanni di Dio, dirigido pelos Fatebene Fratelli.
- *Horácio Cocles, um herói com deficiências*
Horácio foi um famoso guerreiro romano da "gens Horatia" que viveu nos
primórdios da vida de Roma. Recebeu o cognome de Cocles que significa
"cego de um olho".
Conta a história desse valente homem de armas que, com apenas dois
companheiros, conseguiu defender a ponte Sublício por ocasião da pretendida
invasão dos exércitos etruscos comandados por Porsena, ficando esses
inimigos impedidos de penetrar em Roma. A refrega no meio da ponte foi muito
violenta e Horácio ficou gravemente ferido numa das coxas, tendo logo após
sido atingido num olho.
Na grande confusão da luta os dois companheiros de Horácio tiveram tempo
suficiente para cortar a golpes de espada os tirantes da ponte, lançando-a às
águas do rio Tibre.
Sangrando muito devido aos ferimentos recebidos, Horácio lançou-se ao
Tibre com suas armas e a muito custo foi nadando até a margem onde foi
socorrido pelos companheiros de armas.
Elevaram-lhe depois de sua morte uma estátua na antiquíssima praça
Vulcanal da velha Roma, que ficava localizada ao pé do Capitólio,
representando-o como coxo e cego de um olho. Consideravam-no os romanos
como de certa maneira associado a Vulcano, o correspondente a Hefesto na
cultura romana.
- *Ápio Cláudio, Censor: século IV a.C.*
Conhecido na História de Roma como Appius Claudius "Caecus" (ou seja,
Ápio Cláudio "Cego") este grande homem público foi um dos mais célebres
censores de Roma. Foi ele responsável direto por obras famosas das quais
existem ruínas notórias. E uma delas é o aqueduto conhecido como Aqua
Appia, originalmente com 15 quilômetros de comprimento e que conduzia a
água potável por meio de canais subterrâneos até Roma .
Outra obra é a famosíssima Via Appia, estrada que a época de sua
construção tinha quase 200 quilômetros, indo de Roma até Campania (Cápua).
Mais tarde, devido à sua importância para a manutenção do comércio e da
segurança interna, ela foi ampliada até o "salto" da bota italiana (Brindisi).
Ápio Cláudio havia sido cônsul duas vezes antes de ser censor. É importante
lembrar que os censores, sempre em número de dois, eram eleitos por cinco
anos e detinham a magistratura mais elevada. Encarregavam-se eles do
recenseamento e do inventário dos bens; faziam a relação dos senadores,
estabeleciam os parâmetros do orçamento público e eram os responsáveis
pelas obras públicas.
Contam os historiadores que Ápio Cláudio, já avançado em idade, dissuadiu
o Senado Romano por meio de um inflamado discurso, de dar consideração e
guarida a um eloqüente apelo feito por Pirro, através de seu enviado especial,
Cineas, para fazer a paz.
Sempre esteve fortemente interessado em questões de gramática da língua
latina; é considerado como o responsável pela distinção entre o "R" e o "S", em
termos de fonética, na escrita latina, e também pela eliminação de uma letra
que considerava dispensável: o "Z".
Dele Cícero escreveu: "Ápio Cláudio, já velho e cego" (et caecus et senex),
"responsabilizava-se por quatro filhos robustos e cinco filhas, além de uma
grande mansão e toda a sua clientela. Mantinha um espírito tão tenso quanto
um arco e não se deixava subjugar pela velhice para se transformar num
homem sem energia. Mantinha também autoridade e poder sobre os seus: os
escravos temiam-no, seus filhos o veneravam e todos o queriam bem; em seu
lar reinavam os costumes dos ancestrais e a disciplina" ("Cato Major, seu De
Senectute Dialogus", de Cícero).
- *Amputação como penalidade nas legiões romanas*
Segundo Mítton, a mutilação do nariz e das orelhas foi muito utilizada como
castigo ou como vingança contra inimigos capturados pelas legiões romanas,
nos tempos de guerra. Caio Júlio César (Caíus Julius Caesar - 102 a 44 a.C.)
confessa em sua obra "De Bello Gallico" que aplicava essa pena em seus
próprios soldados nos casos de faltas muito graves contra a disciplina militar ou
de deserções. Diversos séculos após o imperador Justiniano I (Flavius Anicius
lustinianus - 483 a 565) chegou a ordenar a amputação do nariz de soldados
incriminados em faltas graves contra a disciplina. A mesma penalidade foi
aplicada em soldados envolvidos com mulheres dos países cruzados ou
dominados por legiões romanas (Apud Mitton).
As punições não se limitavam, todavia, a essas amputações
estigmatizadoras. Na abalisada opinião de Bubois, grande estudioso do direito
criminal dos povos antigos, "abandonar o estandarte era um sacrilégio; esse
crime era punido, conforme a gravidade do caso, com a mutilação do punho,
com a decapitação, com a exposição a animais ferozes, com a crucificação e
até com o afogamento. A desobediência às ordens dos
superiores era punida com a mesma pena"... ... "O roubo era também punido
com a mutilação do punho direito" ("Histoire du Droit Criminel des Peuples
Anciens",de Dubois).
- *Caio Júlio César: atitudes face a seus males*
Certamente um dos romanos mais importantes que a História registrou, Caio
Julio César não era o tipo atlético, alto e sem problemas que muitos imaginam
ao analisar seus feitos. Além de magro e de estatura bastante medíocre,
sempre esteve sujeito a fortes dores de cabeça e, segundo muitos
historiadores, sofria do famoso "mal divino", ou seja, de epilepsia.
Plutarco faz algumas afirmações a respeito de suas atitudes face ao mal,
dizendo que "às vezes, atacado de epilepsia, que contraíra pela primeira vez,
como se diz, em Córdova, cidade da Espanha" .."ele não se serviu da fraqueza
de seu corpo, como de um pretexto para delicadeza e comodismo em sua vida,
mas ao contrário, tornou as agruras da guerra como um remédio para fortificar
sua pessoa, combatendo contra a doença, caminhando sempre, vivendo
sobriamente, dormindo ordinariamente ao relento, pois, a maior parte das
noites, dormia num carro ou dentro de uma liteira, empregando sempre o
descanso em fazer alguma coisa" ("Caio Júlio César", de Plutarco).
Autores atuais, entretanto, ao considerar que César teve suas primeiras
convulsões aos 52 anos de vida e a segunda apenas três anos após,
ponderam diferentemente da quase totalidade dos historiadores que
consideram o grande imperador romano como o mais famoso epilético da
História. Socorrem-se para isso da própria informação de Suetônio de que nos
últimos tempos de sua vida César teve dores de cabeça e vários desmaios.
Levam em conta o fato dele não ter tido nenhum parente próximo com
indicações de males convulsivos. Concluem que Caio Júlio César foi vitima de
um tumor cerebral benigno e não de epilepsia.
- *Ferimentos graves e deficiências físicas em batalhas*
As atividades guerreiras sempre tiveram como conseqüência natural muitas
mortes e muitos casos de ferimentos de todas as naturezas e gravidades.
Essas desgraças marcaram muitos homens pelo resto de seus dias, como não
podia deixar de ser. Os feitos heróicos, no ardor das batalhas, são por vezes
relatados em cores muito vivas por uns poucos autores latinos e gregos, mas
apenas alguns deles fazem menção aos problemas supervenientes, como o fez
Plutarco.
Chega o historiador a aludir a problemas dessa natureza quando estuda a
vida de Caio Júlio César, já citado. Deixa no leitor de hoje, 20 séculos após, a
sensação de que a vida com deformidades ou com amputações conseqüentes
à guerra era algo a ser muito temido pelos jovens romanos. Plutarco narra
cenas pormenorizadas de batalhas e numa delas mostra-nos com clareza esse
temor dos soldados mais jovens e inexperientes.
. . . "as seis coortes que César tinha colocado atrás de sua ala direita
avançaram contra a cavalaria e, em lugar de lançar longe seus dardos,
segundo seu costume, e ferir a golpes de espada as pernas e as coxas dos
inimigos, golpeavam os olhos e procuravam ferir-lhes os rostos; era a ordem
que haviam recebido de César que duvidava que esses cavalarianos, tão
noviços nos combates e pouco acostumados às feridas, ainda na flor da idade,
se deixassem desfigurar, sacrificando sua juventude e beleza e evitariam com
todo o cuidado essa espécie de ferida, não sustentando esse gênero de
combate, tendo a temer tanto o perigo atual, como a deformidade no futuro"
("Caio Júlio César", de Plutarco).
Muitos feriam-se gravemente e sobreviviam com deficiências sérias. Nas
legiões romanas havia homens que lutavam por absoluta dedicação ao seu
líder ou general. Plutarco também nos relata como César conseguia levar seus
homens a atos de bravura insuperáveis, pois sabia inspirar afeição e muito
ardor. Segundo ele, "nada resistia à impetuosidade de seus ataques, quando
se encontravam nos mais graves perigos". E conta-nos a história de Acílio que,
num ataque a um navio inimigo, teve sua mão direita decepada. Segurando a
espada com a esquerda, continuou a luta, matando os inimigos.
- *Cláudio I, um imperador bastante controvertido*
Com a morte de Calígula em 41 d.C., Cláudio (Tiberius Claudius Caesar
Augustus Germanicus - 10 a.C. a 54 d.C.), reconhecido na História Romana
apenas como Cláudio I, foi elevado ao trono por imposição da forte Guarda
Pretoriana, talvez por ter sido considerado muito mais manobrável do que
qualquer outro "pretendente" ou "herdeiro" ligado a grupos que vinham de há
muito se locupletando devido aos enormes desmandos existentes na corte
imperial.
Cláudio era aparentemente tolo, inofensivo e inconseqüente. No entanto,
assim que assumiu o poder, surpreendeu a todos com as muitas
demonstrações que deu de inteligência, sagacidade administrativa e cultura.
Todavia, fisicamente ele não correspondia à imagem que o povo romano
poderia fazer de seu imperador, uma vez que era, de fato, um tipo muito
estranho: apesar de alto e bem forte, tinha cabelos quase brancos aos 51 anos
de idade; feições agradáveis, tinha problemas físicos de bastante seriedade
para aqueles tempos. Uma paralisia ("paralisia infantil", segundo o historiador
Durant) e algumas doenças, dentre as quais todos os historiadores destacam a
epilepsia, haviam-no quase que deformado. Apresentava-se com andar
claudicante sobre pernas compridas e finas; mantinha a cabeça oscilante sobre
o pescoço longo e fino; além disso, gaguejava e sofria muito com as dores
provocadas pela gota. Seus pais haviam-no considerado, quando pequeno,
uma espécie de retardado mental e sua mãe chegara a ele se referir como um
"monstro inacabado", segundo informação de Durant.
Esse tipo inacreditável como imperador chegou a declarar ao senado
romano que se fizera passar por tolo e inconseqüente durante todo o governo
calamitoso de Calígula apenas para salvar a própria pele.
Cláudio desenvolveu um governo controvertido durante o qual reformulou
leis, construiu grandes obras públicas, instalou novos serviços, garantiu maior
proteção aos escravos, emancipou a Gália, conquistou a Bretanha e efetivou
sua romanização.
Terminou seus dias num emaranhado de disputas e de intrigas palacianas,
envenenado por Agripina, sua própria esposa, por ter favorecido como seu
herdeiro a Nero em detrimento de seu filho Germânico.
Sêneca foi seu contemporâneo e preceptor de Nero, o futuro imperador. Em
sua obra "Apokolokyntosis" ironiza com o imperador após sua morte,
apresentando um perfil bastante indicativo dos problemas físicos de Cláudio e,
por via de dedução, do que se pensava também das pessoas deficientes em
Roma. E, ao fazer uma alegoria sobre seu destino após a morte, afirma:
"Anunciam a Júpiter a chegada de alguém, estatura normal, cabelos quase
brancos: Não deve ter boas intenções, pois abana continuamente a cabeça; e
coxeia do pé direito" ("Apokolokyntosis", de Sêneca).
- *Galba, imperador romano com diversas deficiências*
Plutarco, Suetônio e Tácito são os historiadores que mais pormenorizadas
informações nos dão quanto à vida dos grandes homens de Roma. Falam, de
um modo todo especial, a respeito de seus imperadores.
Segundo eles, nos anos 821 e 822 de Roma (68 e 69 d.C.), que se seguiram
à morte trágica de Nero, a História Romana mostra-nos um quadro assaz
confuso, no qual aparecem três homens que sobem ao poder e dele são
afastados com bastante rapidez, graças à força dos militares que não
desejavam ver os senadores proclamando a república. São eles: Galba, Othon
e Vitélio.
Galba (Servius Sulpicius Galba - 3 a.C. a 69 d.C.) era originário de família
nobre, tendo tido em sua família um sério problema de deformidade física
indicado por Lissner. Segundo o historiador, "o pai de Galba, doentio e
disforme, ativo, trabalhador e inteligente mesmo, era advogado. Quando a rica
e bela Lívia Ocelina quis casar com ele para compartilhar a antiga nobreza
dele, Galba, o pai, sem intenções maldosas, mostrou-lhe sem pejo suas
deformidades. Ocelina, entretanto, não se atemorizou"
("Les Césars", de Lissner).
É sobre Galba que vamos encontrar nos renomados historiadores romanos
indicados, traços bastante marcantes. Todos são unânimes em afirmar que
Galba foi muito severo na aplicação da justiça. Achava ser sua obrigação. Na
verdade foi tão severo na administração das despesas públicas que acabou
desgostando não apenas o povo mas também os diversos escalões do sistema
militar romano.
Esse velho general foi imperador romano por apenas sete meses, com mais
de setenta anos, portanto. Foi portador de sérias limitações físicas tanto nas
mãos quanto nos pés. Sofria muito com as dores artríticas.
"A estatura de Galba era mediana, sua cabeça, completamente calva, seus
olhos, de um azul escuro, seu nariz aquilino, suas mãos e seus pés,
inteiramente deformados pela gota, a tal ponto que não podia nem agüentar um
calçado, nem desenrolar ou mesmo segurar uma missiva. Ele tinha também, no
flanco direito, uma excrescência de carne tão volumosa que apenas conseguia
contê-la com uma faixa" ("Vie des Douze").
Plutarco apresenta-o como "doce e humano por natureza: a velhice
aumentou ainda a opinião que se tinha dele, de que era tímido" ("Galba", de
Plutarco).
Segundo Tácito, todavia, esse grande personagem da História Romana
poderia ter sido considerado ótimo para o Império, se não tivesse sido
imperador...
- *Othon, um imperador nascido com malformações*
Othon (Marcus Silvius Othon - 32 a 69 d.C.) era filho de Lúcio Othon e de
Álbia Terência, sendo a família de origem aristocrática. Muito embora diversos
autores não façam nenhuma menção, revela-nos o historiador Lissner algo
surpreendente sobre Othon, imperador por três meses, depois de ter mandado
assassinar o imperador Galba: "No dia 28 de abril do ano 32 d.C. a esposa de
Lucius Othon, Álbia Terência, de origem aristocrática, colocou no mundo uma
criança do sexo masculino cujas pernas tortas constituíam uma malformação
incurável" ("Les Césars", de Lissner).
O defeito físico não impediu Marco Silvio de procurar os ambientes e as
amizades - inclusive a de Nero - que lhe dariam mais tarde condições para a
busca de cargos importantes e muito rendosos. Exemplo dos mais marcantes
foi o seu casamento com Popéia por solicitação de Nero que dela se
enamorara e dela queria se aproximar sem chamar muito a atenção de toda a
corte imperial. Foi em conseqüência dessa situação e de seus desmedidos
desejos que Nero mandou Othon em missão especial para bem longe de
Roma, como governador dos lusitanos que ocupavam território que mais tarde
seria transformado em Portugal.
Segundo os historiadores Othon não conseguiu demonstrar o quanto podia,
apesar da verdadeira adoração que suas legiões tinham por ele, devido à
cobiça e à inconseqüência de outro homem que, por coincidência, também
apresentava limitação física muito evidente: Vitélio. Othon suicidou-se ao
perceber que fora a causa primeira de uma guerra civil.
- *Vitélio, imperador romano por oito meses*
Vitélio (Aulus Vitelius - 15 a 69 a.C.), nasceu em Lucéria e morreu em Roma;
ele foi o sucessor de Othon, por escolha das legiões romanas sediadas no
Reno. Durante sua vida dissoluta foi protegido por quatro imperadores também
dissolutos: Tibério, Calígula, Nero e Cláudio.
Ainda bastante jovem foi empregado, como hábil condutor de carros que era,
para ensinar o jovem Calígula a mesma arte, incluindo bigas aquadrigas. Foi no
exercício dessa função que teve um acidente e sofreu violenta queda,
recebendo, em conseqüência, um sério ferimento na perna. Acabou ficando
com uma lesão permanente que o faria mancar bastante pelo resto da vida.
Esse defeito físico não prejudicou tanto seu conceito quanto o de ser o maior
e mais famoso glutão que Roma já teve. Muito obeso e vermelho, a
excentricidade de Vitélio aumentava conforme era obrigado a andar. Foi um
dos imperadores mais lamentáveis de Roma e morreu tragicamente, quase que
linchado pela plebe furiosa devido a seus desmandos, ajudada pelos soldados
de Vespasiano, que acabava de tomar o poder.
- *Os milagres de Vespasiano*
Tanto Suetônio quanto Tácito informam que Vespasiano (Titus Flavius
Vespasianus - 7 a 79 d.C.) participou de um evento estranho e que nos é
transmitido como um "milagre". O fato envolve duas pessoas com deficiências
físicas diferentes. Vejamos, nas próprias palavras de Tácito, o que sucedeu na
cidade de Alexandria: "Durante os meses em que Vespasiano esteve em
Alexandria, época na qual os ventos de verão vinham regularmente garantir a
boa navegação, ocorreram muitos milagres ("multa miracula evenere", no
original latino) que manifestaram o favor celeste e a simpatia dos deuses para
com Vespasiano. Um habitante de Alexandria, pertencente à classe modesta,
conhecidamente vítima de uma degeneração da vista, lançou-se aos seus pés
e pediu-lhe gemendo que o curasse da cegueira. Obedecia, segundo
informava, às ordens de Serápis, deus ao qual aquele povo, entregue a
superstições, honrava mais do que a qualquer outro; e ele suplicava ao
príncipe que se dignasse umedecer-lhe o rosto e ao redor de seus olhos com a
secreção de sua boca. Um outro tinha sua mão defeituosa, e, por sugestão do
mesmo deus, pedia a César para pisá-la com a planta de seu pé. Vespasiano
zombou deles naquele momento e os afastou, mas, devido à sua insistência,
começou a hesitar, de um lado por acreditar estar sendo vaidoso e presunçoso
e do outro por confiança, pois, as veementes preces daqueles dois doentes e
os elogios de seus cortesãos inclinavam-no à esperança. Ordenou, finalmente,
aos médicos para verificar se a cegueira e a paralisia poderiam ser vencidas
por meios humanos. Os médicos, após alguma discussão, responderam que
dos dois doentes, um não tinha a força visual, já eliminada, e que ela voltaria
se o obstáculo fosse removido; o outro tinha as articulações desviadas e, se
fosse exercida sobre elas uma pressão saudável, poderiam retomar a posição
normal; que os deuses tinham talvez desejado essa cura e que haviam
escolhido o príncipe para essa divina missão; enfim, que se o remédio desse
certo, a glória seria dele"...
Vespasiano deixou-se levar e mostrou-se feliz, pois ficou absolutamente
persuadido de que tudo seria possível à sua boa fortuna. Cercado pela
multidão que já se aglomerara, acedeu ao pedido dos dois doentes.
E Tácito finaliza: "Imediatamente a mão retomou suas funções e o cego de
novo viu o brilho do dia. Esses dois milagres, testemunhas oculares lembram-
nos ainda hoje"... ("Histoires", de Tácito)
Suetônio, em sua obra sobre os doze Césares, conta o mesmo fato, ao
dissertar sobre a vida de Vespasiano. Além de pequenas circunstâncias
ligeiramente diferentes, ele altera a deficiência de um dos suplicantes diante de
César: um era cego, mas o outro tinha um problema de paralisia na perna e
não em sua mão.
- *As deficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural"*
Plínio (Caius Plinius Secundus - 23 a 79 d.C.), em sua monumental obra
"História Natural", escreve a respeito de alguns males bastante notórios que
podem levar as pessoas a situações limitadoras e mesmo a deficiências físicas
sérias. Dentre eles cumpre notar citações sobre a elefantíase, gota, paralisia,
epilepsia e outros.
Em sua extensa obra de trinta e sete volumes aborda assuntos de grande
valia, mas de quando em quando transmite informações fantasiosas e sem
qualquer base na realidade.
Quanto à elefantíase, por exemplo, Plínio afirma que quando reis e príncipes
eram as vítimas do mal, os médicos recomendavam banhos em sangue
humano. O problema passava a ser não apenas deles, mas principalmente dos
homens escravizados que precisavam submeter-se a sangrias ou à própria
morte.
A gota, por ele citada com o nome de "podagra", é bastante analisada. No
seu livro XVI (item LXIV) afirma que "a alfavaca-de-cobra diminui e cura varizes
sem dor, se colocada sobre a parte doente. A gota é muito rara, não apenas na
época de nossos pais e avós, mas ainda em nossos dias. Esse mal é
estrangeiro, pois se ele tivesse sido freqüente na Itália teria um nome latino.
Não se deve acreditar que é incurável, pois tem desaparecido em muitas
pessoas e em muitas tem havido sua cura. Prescreve-se contra a gota raízes
de panacéia com uva-passa, suco ou sementes de meimendro com farinha,
escórdio com vinagre, mastruço-bravo aplicado conforme explicado
anteriormente, verbena moída com gordura, raiz de pão-de-porco, cujo
cozimento também é bom para frieiras. Para eliminar o calor da gota prescreve-
se raiz de espadana, semente de zaragota, cicuta com picumã ou gordura e
sempre-noiva, ao primeiro acesso do mal" ("Histoire Naturelle", de Plínio).
Para as paralisias Plínio recomendava igualmente o uso de plantas
medicinais, afirmando acreditar-se que a betônica e o mastruço-bravo curavam
a paralisia ou os membros entorpecidos. Segundo ele, a argêmona tinha a
mesma virtude, além de ser uma espécie de elemento estimulador da
circulação, chegando até a evitar a amputação de membros.
Por absoluta falta de conhecimento mais profundo Plínio acreditava nas
chamadas "panacéias": remédios preparados com o concurso de várias plantas
medicinais. Afirmava categoricamente que elas curavam até a epilepsia. Sua
frase é incisiva: "Comitiales sanant panacis".
É Plínio que cita algo interessante e curioso para a época (primeiro século
de nossa Era) sobre membros artificiais. Afirma-nos que Estérgio, bisavô de
Catalina, usara mão feita de metal para disfarçar amputação ocorrida em
campo de batalha.
Também conhecido como Plínio, o Velho, faleceu no ano 79 d.C. durante a
erupção famosa do Vesúvio que sepultou Pompéia e Herculanum sob
espessas camadas de cinzas e lava. Plínio, almirante da frota de Miseno, tendo
aproximado seus navios para salvar habitantes em fuga, aproveitou a
oportunidade para estudar os fenômenos mais de perto e morreu asfixiado.
- *As automutilações para dispensa do serviço militar*
Na douta opinião de Ammiano Marcellino, citado por Lucchini, os jovens
romanos que viviam nos anos de decadência do Império Romano odiavam o
serviço militar obrigatório e de duração por vezes indefinida. Alguns moços
chegavam até a amputar o próprio polegar da mão direita, pois com essa
deficiência estariam dispensados de ingressar nas legiões romanas, por não
poderem usar a espada, além de não estarem de acordo com a qualificação
física mínima de um recruta.
Na obra "De Re Militarii", escrita em 390 d.C., Vegetius (citado por Cotrell em
"The Great Invasion") afirma que existia a seguinte recomendação no
recrutamento de soldados em todo o Império: ... "quem estiver alistando
recrutas deve primeiro olhar para o rosto, os olhos, a forma toda do homem
para ver se ele poderá ser um bom lutador. Assim, um jovem eventualmente
adequado para a guerra deverá ter olhos brilhantes, postura ereta, peito amplo,
ombros musculosos, braços fortes, dedos longos, ventre modesto, pés e
barrigas da perna com tendões fortes" (Apud Penn).
Um dos exemplos registrados quanto à reação dos governantes contra as
automutilações que dispensavam o jovem do serviço militar, durante os anos
do Império, é o caso de um certo Caio Vatieno que durante a chamada "Guerra
Social" amputou sua própria mão esquerda, pois era com ela que os soldados
seguravam seu escudo. Como castigo o Senado mandou vender todos os seus
bens e rebaixou o jovem cidadão à categoria de servo.
O imperador Trajano (Marcus Ulpius Trajanus Crinitus - 52 a 117 d.C.)
mandava punir com a deportação o pai que, ao saber da convocação de seu
filho para a vida militar, amputasse seus dedos ou o deformasse de alguma
forma grave (Apud Lucchini) .
Amputações para evitar o engajamento no serviço das legiões romanas
tornaram-se freqüentes do século II ao século IV, tendo Constantino I (Caius
Flavius Valerius Aurelius Constantinus - 270 a 337 d C.) assinado um decreto
determinando que qualquer pessoa que tivesse provocado sua automutilação
para fugir ao serviço militar deveria ser encaminhada, dentro da realidade das
forças armadas romanas, para qualquer outro serviço para o qual fosse capaz.
O imperador Valentiniano (Flavius Valentinianus - 321 a 375 d.C.) também
assinou um decreto em 367 d.C. corroborando as ordens de Constantino. Com
o passar dos anos, porém, aprovou determinações muito mais severas, face
aos abusos freqüentes. Uma delas era a mais contundente: aquele que
amputasse os próprios dedos para não servir nas legiões imperiais seria
"queimado vivo" e seu "senhor" (pai ou responsável) que não o impedira de tal
ato, sofreria uma grave condenação.
Vejamos o texto original latino dessa forte determinação: "Si quis ad fugienda
sacramenta militiae fuerit inventus truncatione digitorum damnum corporis
expedisse, et ipse flammis utricibus concremetur et dominus eius, qui non
prohibet, gravi condemnatione feriatur" (Apud Costa).
- *Males incapacitantes e soluções paliativas*
Romanos abastados sempre encontravam soluções, mesmo que apenas de
caráter paliativo, para certos males que, por serem mal controlados, levavam
muitos a situações de contínuo desconforto, enquanto que alguns chegavam a
ficar parcial ou totalmente incapacitados para uma vida ativa e independente.
Um dos casos mais notórios que são citados por Cícero foi o de Lúcio-Júlio
César, cônsul romano e contemporâneo de Caio Júlio César.
Lúcio-Júlio César sofria de reumatismo muito sério que o mantinha
praticamente paralisado, conforme relata Cícero em uma carta dirigida a seu
genro, Público Cornélio Dolabella. "Lúcio César, de fato, foi até Nápoles
(Pompéia), porque estava muito oprimido por dores em todo o corpo" ...
Pompéia contava com recursos naturais significativos, àquela época, pois
Cícero afirma que "muitos cidadãos abastados procuram esses lugares por
motivos de saúde" (Apud Menière).
Cícero menciona também alguns grandes oradores romanos, conhecidos
seus, que tinham problemas muito sérios e que procuravam tais recursos para
aliviar seus males. Ele cita Caio Sexto Calvísio, que sofria de gota e mal podia
andar; cita Cneo Otávio, que sofria de dores nas articulações e vivia envolto em
faixas, coberto de medicamentos.
De fato, os romanos conheciam muito bem as virtudes de certos recursos
naturais, como as águas termais e sulfurosas, por exemplo. Sabiam que elas
podiam ser muito úteis e benéficas para o tratamento dos males das
articulações. Usavam-nas como um recurso básico para qualquer problema de
dores musculares ou articulares e chegavam a beber grandes quantidades.
Plínio afirma que algumas pessoas, desejosas de apressar a cura das dores
que levavam às dificuldades de movimentação, bebiam as águas sulfurosas em
excesso, ao ponto de comprometer a própria vida.
Águas termais e sulfurosas que brotavam do próprio chão tornaram-se a
causa do surgimento de muitos centros populacionais. Foi o que sucedeu com
Epidauros, na Grécia, e tantos outros lugares considerados como miraculosos.
Foi o que aconteceu com Pouzzoles, por exemplo, na Província de Nápoles,
que surgira com o nome de "Dicaearcha", pelo ano 522 a.C., sendo depois
reconhecida como Puteoli (Poços) pelos romanos, devido aos seus poços de
águas termais e medicinais. Para lá romanos abastados acorriam em
verdadeiras multidões - e lá Cícero mantinha também uma vila.
- *O problema da surdez na opinião de Cícero*
"In surditate vero quidnam est mali?" pergunta Cícero em seus Debates
Tusculanos. Afinal qual é o mal que há na surdez? Segundo seu depoimento e
suas considerações quanto às misérias humanas, Crasso, conhecido como
"Agelastos", era meio surdo, mas ouvia o suficiente para saber tudo o que dele
se falava de mal.
"Os surdos não ouvem a música, é verdade, mas não sentem seus ouvidos
dilacerados pelo ruído da serra quando é afiada, ou pelo grunhido do porco
quando está sendo degolado". Finaliza dizendo: "Assim como consolamos os
cegos a todo o instante com os prazeres da audição, devemos também
consolar os surdos com os prazeres da visão" ("Tusculanae Disputationes", de
Cícero).
- *Deficiências múltiplas e morte*
Cícero continua com suas considerações e suas análises sobre os mais
sérios problemas que podem atingir um ser humano, fazendo um comentário
que só é compreensível para aquela época: "Reunamos agora todos esses
males num só indivíduo. Que ele seja surdo e cego e que prove atrozes dores -
ele será logo consumido por esses sofrimentos, e se, por falta de sorte, eles
chegarem a se prolongar, por que suportá-los? A morte é um refúgio seguro
onde esse indivíduo estará ao abrigo dessas horrendas misérias" ("Tusculanae
Disputationes", de Cícero).
- *A medicina grega e sua infiltração no Império Romano*
Todos aqueles que estudam a História de Roma sabem que ela foi uma
continua emprestadora, tanto nas ciências quanto na arte. E a Grécia foi uma
das maiores colaboradoras do Império Romano, tanto numa quanto noutra
área.
A medicina grega, por exemplo, foi levada a Roma aos poucos, por alguns
médicos gregos que deixaram de lado seus princípios éticos e passaram de
imediato a explorar os abastados romanos.
Catão, o Censor (Marcus Porcius Cato - 234 a 149 a.C.), detestava os
gregos. Em sua obra "Praecepta ad Filium" diz: "Falarei dos gregos no tempo e
no lugar, meu filho" ... "É uma raça perversa e indócil; creia que um oráculo te
fala quando digo: Todas as vezes que essa nação trouxer seus conhecimentos,
ela a tudo corromperá. E será bem pior se ela nos mandar seus médicos; eles
juraram entre si matar a todos os bárbaros à custa da medicina". "De uma vez
por todas, eu te proíbo os médicos" (Apud Laignel-Lavastine).
Plínio comenta em sua História Natural: "É uma pena que não haja uma lei
para punir médicos ignorantes e que a pena capital nunca é ditada para eles.
No entanto, eles aprendem com o nosso sofrimento e fazem experiências,
colocando-nos diante da morte" ("Histoire Naturelle", de Plínio).
Marcial (Marcus Valerius Martialis - 40 a 102 d.C.) foi um mordaz autor latino
que num dos seus muitos e irreverentes epigramas ironizou da seguinte forma
com um médico de problemas visuais. "Agora você é gladiador, quando antes
você era médico dos olhos. Como médico você fazia o que faz hoje como
gladiador" ("Epigramas", de Marcial).
- *Médicos romanos famosos e os males incapacitantes*
Não há dúvida de que havia muitos médicos dedicados e competentes, tanto
gregos quanto romanos. Falaremos sobre apenas três daqueles que lidaram
com problemas de deficiências e que são citados por historiadores.
Alem de Dioscórides, autor de um compendio sobre assuntos de medicina,
incluindo neles doenças e alguns problemas que levavam a deficiências, "De
Matéria Médica" (Sobre Matéria Médica), destaquemos dois famosos médicos
que pela sua inquestionável competência passaram para a História da
Medicina.
O primeiro deles é Asclepíades de Bitínia, nascido em 124 a.C. e que,
apesar de grego de nascimento, sempre viveu e trabalhou em Roma,
semelhantemente ao que sucederia séculos depois com Cláudio Galeno,
conforme verificamos quando discutíamos alguns aspectos de procedimentos
precursores da reabilitação na Grécia.
Asclepíades estabeleceu a prática médica com base na chamada "teoria da
modificação corpuscular", segundo a qual qualquer doença resultava de uma
certa movimentação de corpúsculos no corpo humano de uma forma não-
harmoniosa. Em seus trabalhos procurava restabelecer a indispensável
harmonia através de dieta acompanhada de alguns procedimentos terapêuticos
reconhecidos hoje em fisioterapia, tais como a massagem, a hidroterapia e os
exercícios físicos. Foi Asclepíades de Bitínia o primeiro médico a usar a música
no tratamento e na recuperação de pessoas afetadas por doenças mentais.
O segundo nome é o de Celso (Aulus Cornelius Celsus - 42 a.C. a 37 d.C.),
famoso, competente e reconhecido por muitos séculos como o "Cícero dos
Médicos" devido à sua interessante obra "De Re Medica" (Sobre a Medicina).
Nessa obra Celso descreve um número bastante elevado de doenças e seus
sintomas principais, incluindo as paralisias e males de extremidades, indicando
textualmente tratamentos de massagens, de calor e de exercícios físicos.
Em seu livro V Celso indica remédios para dores articulares, afirmando o
seguinte: "Os ungüentos são bons principalmente nas afecções dos tendões e
das articulações; também o ungüento de Euthycléa deve ser empregado"
..."quando é preciso combater a imobilização das articulações provocada por
uma cicatrização recente, estado que os gregos chamam de "ankylose" ("De
Re Medica", de Celso).
No mesmo livro Celso dá uma descrição sucinta que demonstra amplo
conhecimento da paraplegia e de suas características quando da sobrevivência
de paraplégicos, afirmando textualmente: "Nas lesões da medula da espinha há
paralisia ou movimentos convulsivos e privação de sensibilidade; ao final de
algum tempo, o esperma, a urina e as matérias fecais são eliminados
involuntariamente".
Celso discute também a epilepsia num capítulo bastante longo de sua obra,
recomendando lavagem intestinal com heléboro negro, planta medicinal até
hoje utilizada para problemas neurológicos. Segundo ele a alimentação do
epilético devia ser leve. A carne de porco devia ser a ele proibida. Além disso o
doente devia evitar tensões e cansaço, sendo necessário raspar a cabeça e
tomar duchas de água salgada. Para alguns casos Celso recomendava
exercícios e massagens.
- *Os serviços médicos e os hospitais militares romanos*
Nos primeiros tempos da História de Roma o tratamento dos doentes e dos
feridos em batalhas era deixado aos próprios companheiros de armas. Tanto
assim que por muitos séculos os soldados levavam consigo, como parte de
seus pertences, pomadas, hervas e bandagens para a eventualidade não
descartável de serem feridos.
Os soldados mais experimentados dominavam por vezes conhecimentos
estranhos para um dos principais problemas enfrentados pelos soldados: o do
estancamento do sangue em ferimentos profundos. A preocupação estendia-se
à eventualidade da perda de um membro e à morte devido à hemorragia. Uma
receita popular e muito divulgada entre os soldados que nos é transmitida por
Samônico é esta: cozer estrume de cavalo com cascas de ovo trituradas,
colocando a pasta sobre o ferimento.
Sabe-se que os comandantes e oficiais mais graduados tinham o privilégio
de serem atendidos por seus médicos, especialmente contratados para segui-
los e estar ao seu lado nas batalhas. E houve também médicos das casernas
que acumularam tanta experiência que se tornaram famosos. São os casos de
Scribonius Largus, médico de Cláudio I durante a invasão da Bretanha; de
Dioscórides, médico militar nos tempos de Nero; de Cláudio Galeno, a respeito
do qual já falamos; de Jápide, médico que atendeu a Enéas ferido, em pleno
campo de batalha, e vários outros que passaram para a História da Medicina.
Embora haja poucas referências, sabe-se que sempre houve preocupação
com a assistência aos casos de doenças e de ferimentos mais sérios nas
legiões romanas, preocupação essa que muito vagarosamente foi requerendo
algumas providências, principalmente com a chegada dos médicos gregos a
Roma. Tácito, por exemplo, fala-nos sobre a existência de tendas para doentes
e feridos nos acampamentos romanos. Sabe-se também que por séculos os
soldados gravemente feridos e amputados eram deixados para maiores
cuidados em cidades romanas, sob a custódia de cidadãos responsáveis e
suas famílias, após terem recebido algum tipo de atenção em sua própria
legião.
Com a gradativa penetração e divulgação da medicina grega chegaram as
legiões romanas a contar com 40 médicos em cada uma delas (ou seja, para
dar cobertura a 6.000 homens armados). Existem em alguns autores menções
quanto à distribuição das áreas nos acampamentos de guerra, incluindo a
localização das chamadas "valetudinaria", uma espécie de enfermaria para os
"grandes feridos", claramente delimitadas e que muito mais tarde se
transformariam em hospitais de campanha, nos casos de acampamentos
permanentes.
Ao que parece aos historiadores as "valetudinaria" foram inicialmente
instaladas durante o governo de Augusto, sendo certo que sob Trajano, ao final
do século I d.C., elas já existiam em todas as legiões.
- *As "valetudinaria" descobertas em estudos arqueológicos*
Estudos arqueológicos têm revelado ao mundo muito das características dos
exércitos romanos através dos séculos, inclusive seus hospitais militares de
retaguarda e mais permanentes, isto é, "valetudinaria" construídas dentro de
planos mais cuidadosos e materiais muito mais duráveis.
Um dos pontos escavados situa-se a 30 quilômetros de Viena, às margens
do rio Danúbio. O local era conhecido como Carnuntum, pujante cidade de
aproximadamente 100.000 habitantes, que mantinha em suas imediações duas
legiões permanentemente estacionadas. O hospital militar romano de
Carnuntum tinha um saguão principal que levava a uma sala de recepção,
atrás do qual havia uma sala especial para cirurgias ou curativos para
ferimentos graves. Ao seu redor havia uns 60 quartos pequenos.
Existem outros locais escavados e que correspondem a hospitais militares
romanos, tais como Novaesium, perto de Dusseldorf na Alemanha,
provavelmente construído pelo ano 100 d.C. no sistema de corredores;
Borcovicus, perto de Housestead e vários outros na Inglaterra, incluindo um
hospital conhecido como Pinnata Castra, em Perthshire, uma enorme
construção de 7.000 m2 (Apud Penn).
Graças aos médicos e seus auxiliares das legiões e dos navios de guerra
romanos muitos homens feridos foram salvos da morte certa. E, sem sombras
de dúvida, muitos também sobreviveram após amputações ou com algum outro
tipo de problema incapacitante e voltaram para a vida civil.
- *Os auxiliares de médicos nas legiões romanas*
Soldados gravemente feridos, muitos dos quais com membros decepados a
golpes de espada ou com seus olhos vazados, sobreviveram graças a um
socorro médico de urgência que era viabilizado por certos tipos de auxiliares
lotados nas legiões romanas em épocas difíceis de determinar. Dentre eles
cumpre chamar a atenção primeiramente para os "Optiones valetudinarii", ou
seja, ajudantes ou auxiliares de enfermaria. Eram meros funcionários
administrativos aos quais cabia cuidar da limpeza local, da alimentação dos
acamados, dos curativos e dos remédios dos soldados gravemente feridos e
alojados nas "valetudinaria".
Havia, no entanto, um tipo especial de auxiliares diretos dos médicos das
legiões que eram conhecidos como "deputati" (mais tarde, no Império Bizantino
foram conhecidos como "deputatoi"), ou seja, elementos delegados que não
faziam parte dos contingentes guerreiros e que eram obrigados a seguir numa
pequena distância a coorte à qual estavam destacados, durante uma batalha.
Seu objetivo básico era prestar socorros a feridos que tombavam ao chão,
levando-os imediatamente a cavalo para a retaguarda, onde por vezes havia
carroças e meios mais seguros para seu transporte às "valetudinaria".
Como acontecia esse incipiente serviço de socorro volante?
Cada general colocava oito ou dez "deputati" atrás das linhas de combate
direto com o inimigo, tendo antes feito uma cuidadosa seleção entre civis muito
vivos e cheios de iniciativa. Ficavam a mais ou menos 50 metros de distância,
agindo com rapidez a fim de que os feridos que tombavam ao chão não fossem
pisoteados nos casos de retirada ou de avanço de uma segunda ala de
combatentes de sua própria legião.
Para cada soldado ferido transportado o "deputatus" recebia uma certa
quantia de dinheiro. Para bem desenvolver sua tarefa eles levavam cavalos
com selas especiais que tinham dois estribos suplementares, com os quais
conseguiam remover até dois feridos por vez. Suspenso à sela levavam
também um recipiente com água para poder reanimar um ferido desmaiado.
Julius Pollux em sua obra "Onomásticon" recomenda inclusive que esses
"deputati" exercitem seus cavalos a dobrar as pernas dianteiras para facilitar a
um soldado ferido montar ou ter acesso aos estribos (Apud Cabanès).
Esse sistema foi gradativamente sendo melhorado nas legiões romanas
tendo sido continuamente adotado sob o imperador bizantino Mauricio que o
menciona em sua obra "Stratégicon", conforme veremos mais adiante.
- *O sistema hospitalar romano*
Na medicina pura os romanos não realizaram muito. No entanto, uma das
maiores contribuições de Roma à História da Medicina foi iniciar uma espécie
de sistema de atendimento hospitalar para a população civil, incluindo o
atendimento a pessoas com sérios problemas incapacitantes. Sua organização
estava muito relacionada com a experiência vivida e acumulada por centenas
de anos de lutas e de dificuldades das legiões romanas em várias partes do
mundo. Os médicos que serviam nessas legiões não lidavam apenas com
ferimentos, mas também com febres, doenças graves e corriqueiras,
acumulando com isso uma vasta experiência. Muitos desses médicos
passavam a dar atendimento à população em geral, tão logo deixavam os
serviços nas legiões ou nos navios de guerra, o que tornou viável a
organização desse incipiente sistema hospitalar.
Foi em Roma que surgiram também as primeiras organizações separadas
que cuidavam e davam abrigo a doentes crônicos e incapacitados. Lúcio Júnio
Moderato Columella cita em seus trabalhos as "valetudinaria" para escravos
doentes e incapacitados, em pleno século I d.C.
Os patrícios e todos os demais cidadãos romanos que tinham posses
suficientes para pagar médicos eram tratados em suas próprias vilas ou
residências. Mas com o resultado satisfatório do tratamento que era
dispensado nas "valetudinaria", romanos livres aos poucos começaram a usar
esse novo tipo de recurso de tratamento médico, especialmente quando
vítimas de males crônicos ou de problemas físicos limitadores.
Nas escavações de Pompéia existem locais que parecem indicar que
médicos mantinham instituições como se fossem casas de repouso ou de
convalescença. E, segundo Cláudio Galeno de Pérgamo, nas províncias do
Império Romano estabelecimentos de cuidados médicos acabaram tornando-
se hospitais para atendimento a doentes graves e pessoas mutiladas, com o
subsídio financeiro do poder central e pessoal pago pelo Império.
- *O ensino da medicina no Império Romano*
O atendimento melhor qualificado às pessoas doentes e àquelas limitadas
por alguma deficiência física, sensorial ou algum mal crônico dependia da
existência de médicos bem preparados, e estes existiriam na medida em que
houvesse boas oportunidades de adquirir conhecimentos e experiência. Estes,
por sua vez, dependiam da existência de recursos para treinamento.
O ensino destinado à preparação de médicos não foi organizado em Roma a
não ser na fase áurea do Império. Inicialmente o ensino das várias áreas
conhecidas da medicina era feito em bases puramente individuais.
Na severa opinião de Cláudio Galeno, era necessário que o aprendiz de
médico trabalhasse por 11 anos até poder ser considerado um verdadeiro
médico. Tessalo achava que 6 meses eram suficientes para praticar os
rudimentos da medicina.
No ano 46 a.C., quando os direitos de todos os cidadãos foram reconhecidos
e aprovados, organizou-se com certa regularidade e critério o ensino médico.
Assim é que, terminados os estudos de botânica, anatomia e cirurgia, os
aprendizes da ciência médica recebiam o título de "Medicus a Republica"
(médico pela República).
O imperador romano Sétimo Severo (Lucius Septimius Severus - 146 a 211
d.C.) conseguiu locais para as incipientes escolas de medicina e para suas
indispensáveis bibliotecas.
- *Categorias de médicos em Roma*
No final do Império Romano do Ocidente - ou seja, aquele liderado por Roma
- havia cinco categorias de médicos: "Archiatri suori palatini", ou seja, os
médicos do imperador e do palácio imperial; "Archiatri municipales populares"
que eram os indicados para servir, às custas do Império, nas grandes cidades
das províncias romanas e nos arredores importantes de Roma; "Archiatri
scholares" que dirigiam as escolas de medicina ou nelas participavam no
preparo de novos médicos.
As outras duas categorias englobam os médicos dos ginásios esportivos,
aqueles que serviam nas termas e banhos públicos, os que atuavam nos circos
e que deviam ser também bons cirurgiões, e os médicos das vestais.
- *Implantação de serviços de assistência médica*
Dentre os fatos que aos poucos foram afetando a vida das pessoas
deficientes ou portadoras de males que normalmente podem levar à instalação
de uma situação incapacitante, no Império Romano todo, ressaltemos a
gradativa implantação de serviços médicos mantidos pelos seus governantes
desde os primeiros tempos do Império. Médicos (archiatri) eram indicados para
diversas cidades ou para instituições existentes na ocasião, tanto em Roma
como nas vizinhanças e também nas suas mais longínquas províncias, onde
permaneciam estacionados servidores públicos provenientes da Capital do
Império e suas legiões. O sistema de assistência aos doentes, incluindo os
portadores de deficiências de ordem física, sempre esteve em bem melhores
condições junto às legiões romanas do que nas cidades, como vimos
anteriormente.
- *A higiene e os banhos públicos*
Desde o século VI a.C. Roma contava com uma obra que até hoje é
testemunha do zelo de alguns de seus governantes pela saúde publica: a
Cloaca Máxima construída pelos Tarquínios, famosos reis de Roma. A ela
ligavam-se encanamentos de esgoto e de água servida. Gradativamente
latrinas públicas foram instaladas, e na época de Constantino havia 150 delas.
Água potável e de boa qualidade certamente ajudou também os romanos na
luta contra epidemias e contra muitos males. As adutoras de água foram objeto
de um grande esforço dos romanos mais civilizados, pois até o ano 300 a.C.
Roma ainda não era alimentada por fonte alguma de água, a não ser o próprio
Tibre, acima da Cloaca. Na época imperial Roma chegou a contar com 14
aquedutos. Os romanos, que se contentavam anteriormente em lavar os braços
e as pernas todas as manhãs e o resto do corpo uma vez por semana,
puderam, sob o Império, dispor de 500 litros de água por dia cada um! A cidade
recebia mais de um bilhão de litros diários de água potável, volume que
nenhuma cidade moderna, de porte médio, recebe.
Os banhos públicos tornaram-se, nas últimas décadas da República
Romana, verdadeiros lugares de prazer, onde era mostrado um luxo refinado.
Na época de Constantino existiam aproximadamente 850 banhos públicos em
Roma.
Inicialmente separados por sexo, os banhos tornaram-se comuns, tendo sido
essa uma das causas da depravação dos costumes de Roma, rigorosa e
continuamente combatidos pelos cristãos, impedidos de os freqüentar.
- *As pessoas deficientes nas artes romanas*
No museu do Louvre, em Paris, existe um vaso de origem romana -
provavelmente do Século IV a.C. - no qual está representada uma pessoa com
deficiência motora. Ela se apóia num bastão e utiliza um pilão na parte inferior
da perna direita, devido a uma deformidade de origem poliomielítica talvez.
Nota-se também o seu pé esquerdo numa posição deformada, como se fosse
um pé eqüino.
A coluna de Trajano, em Roma, é uma obra de arte "sui generis" e muito
interessante. Ela apresenta numa seqüência ininterrupta, em forma de espiral
ascendente, toda a vida de lutas, vitórias e dificuldades do imperador Trajano e
suas legiões. Um dos trechos dessa famosa ilustração seqüencial mostra-nos
com bastante clareza o atendimento a feridos nos campos de batalha. Nota-se,
por exemplo, um soldado fazendo curativo num colega de armas, enquanto
dois outros ajudam um terceiro, bastante ferido e que mal consegue manter-se
em pé.
Nas poéticas paragens do vale do rio Gave, a nordeste dos Pirineus, a 5
quilômetros da vila de Pau, fica o vilarejo de Lescar. Num passado bem remoto
ali estava localizada Beneharnum, muito aprazível cidade galo-romana que foi
mais tarde destruída pelos sarracenos. A mais importante de suas antigas
construções é sua catedral, pois Lescar já foi sede de bispado. Num de seus
mosaicos parcialmente destruídos percebe-se a figura de um homem dando
uma larga passada à frente de um animal. A perna direita da figura, todavia,
não tem o pé e o homem usa uma espécie de pilão para apoiar o joelho,
formando uma primitiva e eficiente perna de madeira.
- *Valores espirituais em pessoas deficientes*
Em Roma, alguns anos antes de Cristo e mesmo à época da vida de Jesus,
mas sem com Ele ter tido qualquer contato, dois sábios romanos chegaram a
expressar com muita clareza o que pensavam de pessoas portadoras de
deficiências de seu conhecimento. São eles Cícero e Seneca.
Cícero é bem explícito quanto a um problema incapacitante na vida de uma
pessoa, ou seja, quanto à cegueira. Fala sobre a adequacidade de alguns
homens cegos famosos, ou de seu conhecimento face à vida.
"O velho Ápio, apesar de cego depois de longo tempo, exercia a mais
elevada magistratura, sem faltar em nada a qualquer de seus deveres, públicos
ou privados. A casa de C. Druso, o jurisconsulto, estava sempre cheia de
clientes que, por terem sido pouco clarividentes em seus negócios, ali tomavam
um cego como guia. Em minha infância, Cneo Aufídio, que havia sido pretor,
não apenas dava seus pareceres no senado e ajudava seus amigos com
conselhos, apesar de ter perdido a visão, mas também escrevia sobre história
grega e era versado em literatura. Tive em minha casa por muito tempo o
estóico Diodote. Depois que perdeu a visão, ele se aplicou mais do que nunca
à filosofia, sem distrações outras a não ser tocar o alaúde à moda dos
pitagoreanos. Liam para ele dia e noite; e, o que poderia parecer impossível
sem a visão, continuou a ensinar geometria, demonstrando com clareza a seus
alunos como traçar linhas. Diz-se que Asclepíades, filósofo, bastante conhecido
entre os homens de Eritrícia, respondeu a alguém que lhe havia perguntado o
que lhe incomodava mais com a perda da visão: ... "é que me falta um criado
para me acompanhar" ("Tusculanae Disputationes de Cícero).
Sêneca, o grande pensador e filósofo romano que nasceu no ano 4 a.C. e
morreu em 65 d.D., sendo, portanto, contemporâneo de Jesus Cristo, escreveu
muitas obras de grande interesse até nossos dias e dentre elas cumpre
destacar, neste contexto, mais de 100 cartas ao seu amigo Lucílio. Numa delas
ele analisa o problema das deficiências físicas de ordem mais grave e os
valores espirituais existentes nas pessoas deficientes. Diz ele:
"Finalmente, se eu considerar nosso amigo Clarano, ele me parece belo e tão
reto de corpo quanto de espírito. Um grande homem pode sair de um lar
pequeno e uma grande alma pode ser encontrada num corpo pequeno e
disforme; o que me faz crer que a natureza produz essas pessoas a fim de que
se perceba que a virtude pode nascer em qualquer lugar" ... ... "Parece que
Clarano existe expressamente para nos ensinar que a alma não é manchada
por deformidades do corpo, mas que o corpo recebe certos brilhos pela beleza
da alma" ("Lettrês à Lucilius", de Sêneca).
Em outra de suas obras, Sêneca também comenta a respeito da importância
de compreender os problemas que nos afetam, mesmo que sejam deficiências
físicas sérias: "Existe alguma vantagem, diz você, em ser mandado para o
exílio, em ver seus filhos cair na miséria, em enterrar sua mulher, em ser
marcado pela calúnia, em ser mutilado?" ... ... "Se você imagina que, como
remédio, deve-se às vezes amputar membros que não poderiam ficar unidos
ao corpo sem causar sua destruição, você se deixará convencer que certos
males são vantajosos para aqueles que os sofrem" ("De Providentia", de
Sêneca).
Eis alguns outros pensamentos desse sábio pensador romano:
"Ninguém, em absoluto, me parece mais infeliz do que o homem ao qual
nada de infeliz aconteceu jamais".
"Ninguém conhece o que pode, sem ter-se provado antes".
"O importante não é o que você sofre, mas como você sofre".
CAPÍTULO TERCEIRO
O CRISTIANISMO, O IMPÉRIO BIZANTINO E A IDADE MÉDIA FACE
AS PESSOAS DEFICIENTES
1. O Advento do Cristianismo
Se analisarmos as circunstâncias que cercaram o aparecimento do
Cristianismo no mundo, ficaremos muito admirados, pois foi precisamente
quando o Império Romano apresentava-se a todas as nações como uma
realidade imbatível e de sólidas raízes, com seus mais de sete séculos de lutas
e muitas vitórias, e seus muito pomposos governantes desfrutando de muita
autoridade, sempre garantida pela força de legiões bem treinadas e bem
armadas, que um grupo de homens muito simples, sem cultura e de origem
judaica, surgiu e colocou-se face à humanidade para iniciar uma substancial
transformação que alteraria todo o curso da História do Mundo.
Embora a própria origem da nova doutrina tivesse sido um dos principais
fatores diretos de seu sucesso, ela não pode ser considerada como o único.
Houve também fatores indiretos que deverão ser levados em conta, e um dos
mais significativos foi a consagrada "Pax Romana": a paz garantida a
vastíssimas e muito diversificadas regiões do mundo conhecido, coordenadas
num imenso Império cujo poder central localizava-se em Roma. Essa paz que
passou para a História não foi garantida apenas pelas armas muito superiores
dos romanos e de seus "aliados", mas também por um aceitável sistema
administrativo nas províncias e nações conquistadas e por boas estradas. E
havia um outro fator ponderável: pelo fato de haver duas línguas básicas em
quase todo o Império, ou seja, o latim e o grego. E não podemos nos esquecer
do fator que talvez tenha sido dos mais relevantes àquela época, fator que de
certa forma viabilizou inicialmente a divulgação do novo modo de ser e pensar
"cristão", ou seja, a uniformidade de direitos garantidos a todos os seus
habitantes, direitos esses que eram conseqüentes do esmero com que eram
tratadas as leis em Roma.
Esses fatores todos - por mais estranho e irônico que possa parecer
apresentaram-se no início da vida cristã como agentes facilitadores. Mas, muito
mais do que eles, convém ressaltar aqui o lamentável estado moral da
sociedade romana como um todo - especialmente a mais favorecida - que,
além dos desmandos quanto a usos e costumes, não chegava a atinar com o
verdadeiro significado dos problemas que atormentavam continuamente certas
camadas da população, tais como os escravos, os oprimidos, os servos e
outros mais - enfim, todos aqueles que compunham a massa dos pobres do
glorioso Império Romano.
O conteúdo da doutrina cristã que era toda voltada para a caridade, ou seja,
para o amor ao próximo, para o perdão das ofensas, para a valorização e
compreensão do significado da pobreza, da simplicidade de vida e da
humildade, conteúdo esse pregado por Jesus Cristo e divulgado com nuances
cada vez mais convincentes, conquistou a grande horda dos desfavorecidos
em primeiro lugar. No meio deles, aqueles que eram vítimas de doenças
crônicas, de defeitos físicos ou de problemas mentais. Tudo isso deixou
perplexos todos os que deles viviam despreocupados. Aos poucos, alguns
começaram a posicionar-se favoravelmente a esse novo modo de ver o seu
semelhante; outros mantiveram-se alienados como sempre; muitos reagiram
ferozmente contra tudo o que se relacionava com cristãos ou sua doutrina. Nos
primeiros tempos da Igreja Cristã houve um significativo impulso ao sentimento
fraternal entre os cristãos, não importando em nada sua situação social ou
mesmo sua nacionalidade, fosse ela romana, grega, egípcia, franca, hebréia ou
de qualquer outra natureza. A minoria cristã foi aos poucos adquirindo mais e
mais adeptos para se transformar em pouco mais de três séculos maioria
absoluta, principalmente na Europa e no Oriente Médio.
E houve, com a implantação e solidificação do Cristianismo, um novo e mais
justo posicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a
importância devida a cada criatura como um ser individual e criado por Deus,
com um destino imortal - o que, sem dúvida, muito beneficiou os escravos e
todos os grupos de pessoas sempre colocadas de lado e menosprezadas na
sociedade romana, tais como os portadores de deficiências físicas e mentais,
antes considerados como meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos
em vidas passadas, inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente
como seres que, em muitos casos, deveriam continuar sendo eliminados ao
nascer, segundo as leis e costumes de Roma recomendavam há séculos.
No entanto, a História nos conta que as conquistas do Cristianismo não
aconteceram nem com facilidade nem com tranqüilidade. Problemas graves e
muito sérios surgiram desde os primeiros anos e mantiveram-se por três
séculos.
- *As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos*
A nascente Igreja Cristã foi primeiramente desalojada da Sinagoga e depois
perseguida pelos judeus devido às profundas divergências existentes, o que
levou seus primeiros líderes e adeptos (muitos dos quais haviam conhecido
Jesus em vida) a procurar montar sua própria organização, em vez de tentar
inutilmente manter-se como parte da religião dos judeus, como talvez fosse a
intenção inicial. O próprio Concílio de Jerusalém, citado nos Atos dos
Apóstolos, estabeleceu as bases para transformar o Cristianismo incipiente em
uma religião de caráter absolutamente internacional, universal.
Essa característica chamou imediatamente a atenção dos governantes
romanos, pois o Império e seus mandatários, que respeitavam (ou ignoravam)
as religiões e crenças locais ou nacionais dos povos conquistados, não
aceitavam em hipótese alguma essa espécie de organização judaica que se
instituía e que afirmava manter uma religião "não licenciada" pelas autoridades
de Roma à busca de adeptos em qualquer das nações integrantes do Império.
Foi dessa maneira que o Cristianismo começou a ser olhado pelas autoridades
como movimento ilegal, tendo sido extremamente fácil descobrir aspectos
"negativos" na audaciosa religião de um só Deus, que não apenas desprezava
deuses sem conteúdo e "surdos-mudos", como afirmavam seus líderes, como
também recusava-se a reconhecer a pretensa característica de divindade no
imperador romano.
Iniciaram as autoridades romanas a repressão violenta, para desencorajar
sua expansão: as famosas perseguições aos cristãos. Foram elas decretadas
por diversos imperadores romanos: Nero, Domiciano, Trajano, Marco Aurélio,
Sétimo Severo, Maximino, Décio, Valeriano, Aureliano e Diocleciano (e sob seu
nome, a feroz perseguição de Galério). Tiveram como conseqüência muitas
mortes provocadas por sentenças injustas e por vezes muito cruéis, cuja
intenção principal era desencorajar as afrontas dos cristãos aos usos,
costumes e autoridades estabelecidos.
A grande tragédia das violentas perseguições, seguidas de aprisionamento,
condenação sumária ao suplício ou apenas perpétuas e mesmo à morte durou
129 anos. E durou tanto tempo com certos imperadores que seus juízes
chegaram a ficar literalmente cansados de não obter resultados satisfatórios.
Alguns desses imperadores, preocupados em manter uma certa imagem de
clemência e de humanidade, resolveram mudar de tática: os juízes passaram a
receber ordens para não mais condenar os cristãos à tortura e à morte, "por um
ato de clemência do imperador"...
Eusébio, bispo de Cesaréa, que viveu entre 267 e 340 e foi um religioso que
gozava da mais absoluta confiança de Constantino I, o Grande, testemunha o
seguinte ao falar dos cristãos perseguidos e condenados:
"Ordenou-se que a partir de então vazassem nossos olhos e aleijassem uma
de nossas pernas. Esta foi a humanidade e esse lhes pareceu um gênero
brando de suplício contra nós. Dessa forma, por causa dessa brandura dos
homens ímpios, de maneira alguma seria possível contarmos o número
daqueles aos quais foi primeiramente extraído o olho direito e depois
cauterizado com um ferro, ou daqueles aos quais foi estropiada (a musculatura)
a barriga da perna esquerda com um ferro em brasa, sendo imediatamente
após condenados às minas existentes na província, não tanto para trabalharem
mas para serem atormentados" ("História Eclesiástica", de Eusébio de
Cesaréa).
Ao comentar a questão das mutilações impostas aos cristãos, sob o ponto
de vista do Código Penal Romano, Mommsen afirma que "na perseguição aos
cristãos que teve lugar sob Diocleciano, deixava-se inicialmente a cada
tribunal, se estivermos bem informados, a liberdade de agravar as penas como
bem lhes parecesse, pela da mutilação corporal e finalmente o governo
mandou adicionar à pena das minas, o vazamento do olho direito e a
amputação do pé esquerdo" (" Le Droit Pénal Romain", de Mommsen ).
De sua parte Allard nos diz, em seu pormenorizado estudo sobre a
implantação do Cristianismo no Império Romano, o seguinte: "De 308 a 310, as
pedreiras da Tebaida, as minas da Cilícia, da Palestina e do Chipre, viam
chegar longas cadeias de cristãos, quase todos coxos e cegos" ("Le
Christianisme et l'Empire Romain",de Allard).
Por vezes os algozes desses muitos cristãos que estavam condenados às
minas pelo resto de seus dias permitiam que se reunissem para orar e mesmo
para formar pequenos grupos que foram sendo chamados de "igrejas". Depois,
todavia, dependendo sempre dos tipos de homens encarregados de sua
vigilância, bem como da produção das diversas minas, começou a ocorrer a
dispersão violenta, sua transferência de mina para mina e finalmente a
decapitação dos condenados enfermos e menos produtivos, incluindo sempre
os portadores de deficiências sérias e limitadoras da capacidade de trabalho.
- *Sétimo Severo, o sábio e firme imperador*
Nascido em Leptis Magna, na África, e morto na Bretanha (hoje Inglaterra),
Sétimo Severo foi imperador dos romanos de 193 a 211 d.C. Segundo os
historiadores, desenvolveu um governo bastante firme. Uma séria mancha em
seus dezoito anos de imperador foi uma acirrada e forte perseguição contra os
cristãos.
Já no final de sua vida, com 62 anos de idade, organizou uma campanha
contra os caledônjos revoltados, levando consigo seus dois filhos e herdeiros,
Marco Aurélio Antonino,que depois tornou-se imperador com o cognome de
Caracala, e Lúcio Sétimo Geta, assassinado pelo próprio irmão em 212, após a
morte do pai.
Devido a atrozes dores provocadas pela gota em seus pés e pernas, Sétimo
Severo não conseguia mais andar. No entanto, manteve-se sempre muito ativo,
superando a dificuldade de movimentação de varias maneiras, levado de um
lado para o outro pelos seus soldados ou escravos.
É o historiador Lissner que nos conta sobre o grave problema físico desse
grande imperador romano, informando: "Sofrendo atrozmente de gota, Sétimo
Severo, durante a campanha da Inglaterra, fez-se transportar em liteira" ... "os
soldados, compadecidos com os sofrimentos de Severo, quiseram proclamar
Antonino imperador. Severo fez-se transportar ao tribunal, puniu
implacavelmente os responsáveis por essa iniciativa inoportuna, exceto seu
filho, e declarou: Sabeis agora que se governa com a cabeça e não com as
pernas" ("Les Césars", de Lissner).
- *"Praecepta Medica" e os males incapacitantes*
Quando da morte de Sétimo Severo no ano 211 d.C., assumiu o poder seu
filho cognominado Caracala (Marcus Aurelius Antoninus Bassianus - 188 a 217
d.C.). Para garantir-se no poder, eliminou primeiramente seu irmão Lúcio
Sétimo Geta e, numa seqüência macabra, mandou matar mais de 20.000
homens importantes que considerava seus críticos e opositores.
Dentre eles iremos encontrar o grande sábio Samônico (Quintus Severus
Samonicus) que foi assassinado durante uma festa por ordem direta do
imperador, no ano 212.
Para compreendermos o significado de seu nivel de cultura, basta que
saibamos o seguinte: Samônico tinha uma biblioteca com mais de 60.000 obras
que continuamente consultava. Escreveu uma interessante farmacopéia em
versos que chegou até nossos dias e intitulada "Praecepta Medica". Através
dela passou para a posteridade receitas de muitos remédios e orientações
quanto ao combate de certos males bem específicos. Neles vemos inseridos
algumas doenças ou problemas que podem levar a deficiências físicas ou
sensoriais, tais como a gota, a elefantíase, os males das articulações, a
epilepsia, as doenças da visão e da audição e outros.
Embora tenha sido escrita no início do século III d.C., a menos de dez anos
após a morte de Cláudio Galeno, nota-se na obra de Samônico progressos
muito pouco significativos na medicina. Há conceitos baseados apenas em
crendices e há indicações de alguns preparados inócuos. Verifica-se, todavia,
certa objetividade face a problemas graves, tais como a gota, para a qual
poucos remédios surtiam efeitos reais. Diz, então, o sábio Samônico: "Vários,
portanto, são os remédios próprios para a cruel podagra, da qual o deus de
Epidauros enumerou 30 espécies. Ele próprio afirmou que impor o repouso ao
paciente será correto para pelo menos mitigar sua triste dor".
É sobre a epilepsia que ele faz uma alegação pouco aceitável, mesmo para
aquela época:... "o próprio Esculápio lembrava que as pessoas concebidas
durante o tempo da lua (cheia) estarão sujeitas a ataques epiléticos".
A respeito de sangramentos ou hemorragias por cortes profundos ocorridos
em acidentes ou em campos de batalha, Samônico indica um preparado
popular que devia ser muito utilizado - e com sucesso - por soldados e por civis
sem qualquer distinção, e que já mencionamos anteriormente: "O esterco de
cavalo, cozido com casca de ovo, é ainda um remédio de maravilhosa eficácia
para estancar a saída de sangue" ("Praecepta Medica", de Sammonicus).
- *Galério, imperador que morre com deficiência séria*
No ano 311 falecia Galério (Caius Galerius Valerius Maximianus) imperador
entre 293 e 311 d.C., um dos integrantes da tetrarquia romana e dos mais
cruéis perseguidores dos cristãos por um longo periodo de doze anos. Embora
pareça irônico, foi ele o primeiro imperador que, ao final de sua vida,
formalmente permitiu à religião cristã sair da clandestinidade em que vivia, por
meio de um édito especial. No entanto, essa liberação só aconteceu devido a
uma gravíssima moléstia que o atingira e que o havia incapacitado de andar no
último ano de sua vida. O mal caracterizava-se por ulcerações muito sérias e
que, apesar de serem tratadas com ferro em brasa - como era rotina - reabriam
sempre, levando Galério a perder muito sangue. Enfraquecido ao extremo, e
sem mais poder mover suas pernas devido à deformação de seus pés, o cruel
imperador mandou vir médicos de todos os recantos de seu Império, sem
qualquer tipo de resultado. Chegou até a recorrer a Apolo e a Esculápio, mas
seu problema não só continuou como piorou. As feridas chegaram a atingir
seus intestinos.
Galério, muito irritado com a falta de bons resultados, mandou executar
diversos médicos que não haviam conseguido minorar seus males ou que não
haviam suportado o mau cheiro de suas úlceras. No entanto, um deles, que era
cristão, vendo-se em verdadeiro perigo de vida ao tratar o imperador, usou de
absoluta sinceridade. Disse-lhe que ele se enganava em esperar que os
homens pudessem livrá-lo de um mal que lhe fora mandado por Deus. E
lembrou Galério sobre os muitos anos de perseguição feroz dos cristãos,
indicando com isso onde poderia estar a solução. Acreditando em tudo o que
lhe sugeriam, resolveu o imperador desesperado publicar um édito imperial de
caráter geral, pelo qual liberava a religião cristã. Mas colocou algumas
restrições aos cristãos: "... considerando nossa mui doce clemência e o
costume que temos sempre observado de perdoar a todos os homens, cremos
dever dessa forma estender nossa ampla indulgência sobre eles (os cristãos)
de tal maneira que possam ser cristãos como antes, e restabelecer seus
lugares de reunião, na condição de que não façam nada contra as leis; de
resto, faremos cientes os juízes, por outra carta, tudo o que deverão observar.
Portanto, de acordo com esta graça que nós lhes fazemos, eles serão
obrigados a rezar ao seu Deus por
nossa saúde, pela segurança da república e deles mesmos, a fim de que a
república prospere de todos os lados, e que eles possam viver seguramente
em suas casas" (Citação de Santo Eusébio, apud Rohrbacher).
Galério morreu pouco depois da divulgação de seu decreto em todo o
Império Romano, no qual já haviam sido iniciadas as providências concretas
para não mais perseguir os cristãos e para libertar os que estavam presos e
condenados à morte ou ao suplício.
Sua grave enfermidade e sua morte trágica foram consideradas por todos os
cristãos como um verdadeiro castigo de Deus.
- *Mutilações em cristãos: a língua de São Romão*
Conforme nos relata o historiador Rohrbacher, a crueldade dos juízes e das
mais altas autoridades nas diversas Províncias do Império Romano era por
vezes incompreensível e assustadora. E as decisões quanto à imposição de
torturas eram sumárias. Para uma infinidade a morte foi o destino imediato.
Para outros o severo castigo deixaria as marcas impostas pelo imperador ou
em seu nome. Mutilações ocorriam em muitos casos, conforme indicamos
antes.
Durante a perseguição conhecida como de Diocleciano, pelo ano 303
aproximadamente, um corajoso diácono da igreja de Cesária, na Palestina,
chegou a Antióquia e interpelou um juiz chamado Asclepíades, que estava
condenando os cristãos a diversos tipos de tortura, simplesmente por não
quererem se curvar ou reverenciar o imperador Diocleciano como divino.
Diante do desafio público, o juiz mandou aprisioná-lo e torturá-lo. No entanto,
durante as torturas o bravo diácono não deixava de reprovar o que estava
acontecendo, condenando em altos brados a vaidade da idolatria e ressaltando
a excelência do Cristianismo.
Devido à óbvia inconveniência da palavra desabrida daquele cristão,
conhecido como Romão, Asclepíades mandou amputar sua língua. Para tanto,
foi chamado um médico ali presente, que também era cristão, mas que não
havia suportado o martírio. Esse médico, Ariston, usou instrumentos próprios
para essa operação e guardou consigo a língua decepada, como uma espécie
de relíquia.
O mártir, mandado de volta à prisão, foi barrado por um soldado que
perguntou seu nome. E ele respondeu com clareza, apesar da língua
amputada.
O juíz e o próprio Diocleciano, presente em Antióquia, suspeitaram do
médico e mandaram-no chamar. Ariston mostrou a língua decepada e disse-
lhes que Romão era um homem protegido por Deus.
Diocleciano passou a temer tanto a influência desse loquaz cristão aprisionado
que mandou colocá-lo com os pés presos ao chão por argolas de ferro, em sua
própria cela. E assim mesmo, pés presos ao chão, foi enforcado no mesmo dia
em que Diocleciano celebrava a festa do vigésimo aniversário de seu Império,
ocasião em que mandou soltar muitos prisioneiros, inclusive os detestados
cristãos.
O castigo infligido a Romão é um pequeno exemplo das muitas mutilações
de que foram vítimas, no Império Romano, os criminosos - dentre os quais os
cristãos estiveram inseridos por longo tempo.
- *Alterações substanciais provocadas pelo Cristianismo*
O Cristianismo foi muito relevante na mudança da mentalidade imperante no
século IV, pois condenava abertamente muito do que o sistema vigente
aprovava, como a libertinagem das pessoas solteiras, a perversão do
casamento, a morte de crianças não desejadas pelos pais devido a
deformações, dentre muitos.
Foi o imperador Constantino que, em 315, editou uma lei que bem
demonstra a influência dos princípios defendidos pelos cristãos de respeito à
vida. Essa lei considerava os costumes arraigados - embora não generalizados
- de mais de cinco séculos, prevalecentes em Roma e em Esparta
principalmente, que não só permitiam como também exigiam que o pai de
família, senhor absoluto de tudo e de todos no lar, fizesse morrer o recém-
nascido que ele não queria que sobrevivesse, devido a defeitos ou a mal-
formações congênitas. Constantino taxou esses costumes de "parricídio" e
tomou providências para que o Estado colaborasse para a alimentação e
vestuário dos filhos recém-nascidos de casais mais pobres. Exigiu que essa
nova lei fosse publicada em todas as cidades da Itália e da Grécia, e que fosse
em todas as partes gravada em bronze para, dessa forma, tornar-se eterna.
- *Um bispo com deficiência: Castigo de Deus?*
Há fatos narrados por historiadores da Igreja que falam sobre deficiências
físicas, relacionando-as com manifestações superiores, indicando por vezes
castigo de Deus por faltas cometidas. Um desses fatos está inserido na vida de
São Miles, bispo de Susa.
Segundo a história, havia um bispo chamado Papas, cujo temperamento,
arrogância e orgulho haviam causado sérios problemas ao clero a ele
subordinado, levando a verdadeiro cisma na Igreja da Selêucia e de Ctésiphon.
Diante da seriedade do problema, os bispos reuniram-se num sínodo no ano
314. Ocorreram discussões apaixonadas, principalmente entre São Miles e
Papas.
Procurando descobrir a causa do ódio com que Papas agia para com seus
sacerdotes, Miles perguntou se ele afinal considerava-se um Deus. No calor
das discussões Papas respondeu muito irritado: "Insensato! Tu queres me
ensinar coisas como se eu não as conhecesse?" Tomando o livro dos
Evangelhos que trazia consigo, Miles colocou-o sobre a mesa dos debates e
lhe disse: "Se menosprezas aprender coisas de minha parte, por eu ser um
mortal, não desdenhe aprendê-las do Evangelho do Senhor que aqui está" ...
Papas não conseguiu conter-se mais, pois tomou o livro entre as maos e
olhando-o ferozmente gritou: "Fala, Evangelho, fala!" ...
Miles, assustado e ao mesmo tempo chocado com aquela atitude
questionadora, tirou-lhe o Evangelho das mãos, beijou-o com respeito e
aproximou-o dos olhos. Em seguida, num tom profético e inspirado disse ao
bispo irreverente: "Já que em teu orgulho ousaste falar dessa maneira contra
as palavras de vida do Senhor, eis que seu anjo está pronto para secar metade
de teu corpo para inspirar o terror a todos; portanto, não expirarás: a vida ser-
te-a conservada como um milagre de punição".
No mesmo instante Papas sentiu a metade de seu corpo sem movimento e
sem vida. Tombou sobre um lado e assim permaneceu. Viveu assim por mais
doze anos, até sua morte no ano 326.
- *Dídimo, teólogo cego: diretor da Escola de Alexandria*
Dídimo perdeu sua visão aos 4 ou 5 anos de idade, quando começava a
aprender a ler. No entanto, esse problema não diminuiu sua vontade de saber.
Pelo contrário, parece que até a inflamou. Gravou o alfabeto em madeira e
depois aprendeu pelo tato as letras, as sílabas, as palavras e depois as frases
inteiras. Seu ardor pelo estudo não o fez parar nesse ponto de conquista.
Tomava providências para ouvir professores célebres, quando já era moço, e
conseguiu ajuda de pessoas que se prontificavam a ler para ele, a fim de tomar
conhecimento dos melhores livros. Quando seus ledores, cansados,
adormeciam, ele meditava muito sobre o que acabara de ouvir e assim gravava
o assunto em sua memória.
Aprendeu as regras de línguagem e da gramática, os mais belos trechos dos
poetas e dos oradores, e também noções de retórica. Tornou-se um ótimo
conhecedor das letras sagradas e de assuntos humanos, das Sagradas
Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, que conseguia explicar, trecho por
trecho, das mais variadas maneiras. Dominava a dogmática da Igreja Católica,
e sobre os dogmas discutia com precisão e muita propriedade. Conhecia a
filosofia de Platão e de Aristóteles, a geometria, a música, a astronomia e as
diferentes opiniões dos filósofos.
Quando chegou a Alexandria, atraiu muito a atenção e recebia muitas visitas
de pessoas que queriam ouvi-lo. Tinha amigos importantes, dentre os quais
cumpre citar Santo Atanásio, que acabou indicando seu nome para Diretor da
Escola de Alexandria. Era estimado e respeitado pelos mais santos monges e
eremitas do Egito.
Recebeu um dia a visita de Santo Antão - talvez o mais famoso dos eremitas
- que lhe perguntou se a cegueira o incomodava. Dídimo teve vergonha de
responder e de confessar sua fraqueza. Mas Santo Antão repetiu a pergunta
uma segunda vez, e à falta da resposta perguntou uma terceira. Dídimo
confessou que sim, a cegueira o afligia, o bloqueava. Segundo seus biógrafos,
Santo Antão lhe disse nessa oportunidade: "Admiro-me muito que um homem
sábio como voce se aflija de haver perdido aquilo que as formigas e as moscas
possuem, em vez de se alegrar de ter o que os santos e os apóstolos tinham. É
mais importante preocupar-se com a alma do que com esses olhos dos quais
um só olhar poderá perder o homem eternamente".
Dídimo foi Diretor da Escola de Alexandria do ano 345 até 395, ano anterior
à sua morte. Dentre seus alunos mais renomados podem ser citados São
Jerônimo, Rufino e Paládio. Dídimo escreveu diversos estudos e deles os mais
famosos são "Sobre o Espírito Santo" e "Sobre a Trindade".
- *Os primeiros hospitais cristãos e as pessoas deficientes*
Sob a influência da religião cristã e graças aos seus preceitos de mansidão,
de caridade e de respeito a todos os semelhantes (motivos bastante sérios
para dedicação a uma beneficência ativa e voltada à população mais pobre)
começou logo a ocorrer o surgimento de hospitais em algumas localidades,
marcados pela finalidade expressa de abrigar viajantes enfermos de um lado, e
doentes agudos ou crônicos (e dentre estes muitos casos de pessoas
deficientes) de outro lado.
Sozomen (* Sozomen foi um historiador da Igreja Católica que viveu no
século V. Uma das suas obras mais conhecidas é a “História Eclesiástica)
relata-nos a fundação do chamado "Hospital de Edessa", na Síria, cidade hoje
conhecida como Urfa. Naquele ano (370), assolada por uma terrível onda de
carestia de víveres e de males decorrentes, Edessa recebeu a intempestiva
visita do eremita Efraim, que havia saído de sua reclusão no deserto para
censurar todos os cidadãos ricos da cidade devido à sua falta de caridade face
à situação. Os pobres morriam sem receber ajuda, e as riquezas e
comodidades dos mais poderosos continuavam intactas. Muito aborrecido com
essa falta de envolvimento cristão, Efraim lhes disse: "Essa riqueza que
acumulais com tanto cuidado, servirá apenas para condenar-vos, pois estais
perdendo vossas almas, que valem mais do que todos os tesouros da terra"...
Assustados e persuadidos por essas contundentes palavras do anacoreta,
os ricos cristãos de Edessa argumentaram que não tinham podido até aquele
momento decidir qual deveria ser a pessoa honesta à qual poderiam confiar
dinheiro para uma justa distribuição ou uso, pois as que conheciam eram pouco
honestas e confiáveis e seriam capazes de desviar o montante coletado dos
seus fins originais.
Efraim não duvidou e lançou a pergunta: "E qual é a vossa opinião a meu
respeito?" Os apaniguados cidadãos responderam que ele certamente era um
homem honesto e a ele entregariam de bom grado as contribuições para uma
aplicação justa. Efetivada a coleta, recebeu Efraim um significativo volume de
dinheiro, com o qual encomendou imediatamente trezentas camas que foram
instaladas no vestíbulo de um edifício público cedido pelos poderes locais. Ali
começou a ser dada atenção a todos os que sofriam de doenças graves
conseqüentes à falta de gêneros ou à alimentação deficiente (Apud
"Encyclopaedia of Religion and Ethics").
Há historiadores da Igreja Católica, entretanto, que afirmam ter sido o papa
Anacleto, que reinou entre 76 e 88 como Bispo de Roma, o primeiro a
organizar um abrigo para as vítimas de uma violenta peste que assolava toda a
região, vítimas da carestia de víveres e também de vários outros males, numa
ala de sua propriedade. Isso aconteceu em 76 e deve ter sido o primeiro
exemplo de um hospital cristão.
Segundo alguns outros autores, todavia, o primeiro hospital cristão de que se
tem notícia foi aquele criado por São Basílio, o Grande (329 a 379), célebre
autoridade da Igreja Cristã, na cidade de Cesaréa, na Capadócia, hoje Turquia.
Esse hospital teria sido construído às portas de Cesaréa, no ano 375,
consistindo de vários edifícios separados. Era conhecido pela genérica e
famosa designação de "xenodóchium", termo muito utilizado, tanto naquelas
épocas quanto durante toda a Idade Média, e que acabou sendo aceito para
designar "abrigo para doentes", quando na verdade pela sua derivação do
grego significa "abrigo para estrangeiros" ("xenós" para estrangeiro e
"dócheion" para abrigo e proteção).
Num trabalho escrito no século passado Broglie apresenta a seguinte
descrição desse verdadeiro conjunto hospitalar: "Às portas de Cesaréa, sobre
um terreno antes deserto, elevava-se como por encantamento toda uma
comunidade edificada pela esmola e habitada pela caridade. Era a
hospitalidade sob todas as formas, dando-se a essa palavra toda a acepção
que lhe fez tomar a língua cristã, ou seja, considerando todo aflito em geral
como hóspede de Deus e da Igreja. Ali havia um lugar de repouso para o
viajante, um abrigo para o velho, um hospital para o doente, com instalações
reservadas para males humilhantes que arrastam consigo o contágio e a
vergonha. E eram essas instalações que São Basílio visitava mais vezes,
lançando-se espontaneamente, ele mesmo, aos braços dos leprosos. Ao centro
desses edifícios elevava-se uma vasta igreja, ornamentada com todos os
esplendores do culto triunfante e servida por uma comunidade de monges, dos
quais o próprio São Basílio era o superior. Nas imediações todas movia-se uma
multidão de auxiliares, de enfermeiros, de fornecedores, de carroceiros,
cuidando das coisas necessárias à vida. Era o próprio movimento de uma
cidade populosa. E, no meio dessa população animada, São Basílio passava a
toda hora, inspecionando tudo, falando com todos, edificando a todos pelo seu
zelo. Um século depois, todo esse lugar de Cesaréa ficou conhecido como
"Basilíada" ("L'Eglise et l'Empire Romain au IVe Siècle", de Broglie).
Naqueles três primeiros séculos da Igreja Cristã os doentes de famílias mais
abastadas continuavam a ser tratados em suas próprias residências, da
mesma forma como sucederia por séculos mais.
- *Fabíola e Pammachius associados num hospital de caridade*
Na Roma do século IV d.C., no seio da famosa, multissecular e muito
abastada família patrícia dos Fábios, uma notável mulher de nome Fabíola
dedicou toda a sua fortuna e todo o seu tempo e energias para organizar o que
é reconhecido como o primeiro hospital de caridade do Império Romano.
Lá ela recebia pessoas com os mais severos males, conforme poderá ser
constatado em um documento daquela época, ou seja, uma carta de São
Jerônimo (347 a 420) a um cristão de Roma, Oceanus. A famosa e muito
inspiradora carta, que procurava incentivar a comunidade cristã local a dedicar-
se cada vez mais ao próximo dentro dos princípios básicos da caridade cristã,
é uma análise sintética da vida dessa mulher muito dedicada, que nascera fora
do Cristianismo e a ele se convertera quando já era casada pela segunda vez.
Num certo ponto da missiva São Jeronimo afirma: "Todo o seu patrimônio,
que era considerável e proporcional à sua linhagem, ela distribuiu e alienou,
destinando o dinheiro aos mais necessitados dos pobres; e logo em seguida
ela fundou um hospital para nele abrigar os doentes abandonados nas ruas e
mitigar os sofrimentos dos infelizes acometidos por doenças ou consumidos
pela fome".
Ao analisarmos os termos utilizados pelo famoso santo da Igreja Católica, ao
escrever essa carta, não podemos nos esquecer de que aproximadamente à
mesma época surgira a primeira tentativa bem sucedida de cristãos na
aplicação prática dos preceitos da caridade, criando em Cesaréa, como vimos,
o que era conhecido pelo nome de "xenodóchium", ou seja, um grande e bem
organizado abrigo para peregrinos e estrangeiros doentes ou com problemas,
que recebia também doentes e miseráveis da própria localidade e seus
arredores. Verificamos que no texto original latino São Jerônimo utilizou estas
palavras: ... "et prima omnium "nosokómeion" instituit" ( e antes de mais nada
criou um "nosokomeion"). O uso do termo grego, com caracteres gregos em
sua carta original, indica-nos a inexistência de um termo próprio em latim para
o novo tipo de organização de caridade na qual Fabíola e seus colaboradores
cuidavam apenas de doentes, recebendo também pessoas deficientes, como
veremos a seguir.
São Jerônimo fala expressamente delas em algumas considerações
adicionais que faz a Oceanus: "Mencionarei agora algumas calamidades
humanas, tais como, nariz decepado, olhos vazados, pés mutilados, mãos
enfraquecidas, ventrês tumefeitos, pernas enfraquecidas, pés inchados?" Na
verdade, esses eram os tipos de doentes e de pessoas deficientes que Fabíola
por vezes chegava até a carregar em seus braços para levar ao hospital.
Ressaltemos que o esforço de Fabíola não foi isolado, pois ao que tudo
indica, o empreendimento foi concretizado e fortificado com o concurso de
outras fontes de dedicação pessoal e financeira, como a de Pammachius, por
exemplo.
A ele São Jerônimo escrevera uma carta, mas quatro anos antes daquela
outra a respeito de Fabíola, com o expresso intuito de consolar esse importante
cristão pela morte de sua esposa Paulina.
E é nessa carta que o leitor poderá encontrar esta pergunta: "Ouvi dizer que
voce construiu um hospital no porto romano?" E se for analisar de perto os
originais do documento famoso, perceberá que São Jerônimo, ainda pouco
informado sobre todo o empreendimento, no texto latino usou a palavra grega
geralmente adotada para tal fim: "xenodochium".
Fabíola e Pammachius, segundo a grande autoridade da Igreja, "uniram
seus bens, associaram suas vontades, a fim de aumentar pela sábia
inteligência o que a rivalidade poderia ter dissipado. E conforme foi dito foi feito.
Foi construído um hospital e a ele a multidão acorreu e não há mais aflições
em Jacó nem dor em Israel" ... "O mundo todo ouviu quase ao mesmo tempo
que um hospital havia sido construído no porto romano. A Bretanha ficou
sabendo no verão; o Egito e Parthus souberam na primavera".
As palavras de São Jerônimo deixam-nos a impressão clara de que
verdadeiramente algumas riquezas existentes nos primeiros séculos do
Cristianismo haviam-se voltado à causa dos mais miseráveis dos pobres, ou
seja, aos doentes crônicos e também aos portadores de deficiências físicas
graves.
Repare o leitor neste outro trecho que se relaciona à faustosa vila da família
de Pammachius, bem como ao novo hospital, em que as deficiências são
expressamente citadas: "Aquele cego que estendia a mão e que muitas vezes
pedia esmola a quem não o podia socorrer, é hoje herdeiro de Paulina e co-
herdeiro de Pammachius. Aquele homem deformado e forçado a arrastar seu
corpo, a mão de uma jovem ampara. Aquelas portas que vomitavam uma
multidão de cortesãos, são hoje assediadas pelos pobres. Um é hidrópico que
traz a morte dentro de si; outro não tem língua e é mudo, sem a faculdade de
pedir esmolas, mas que as solicita de maneira mais tocante por não ter língua
para a pedir. Aqui, um defeituoso de nascimento pede esmola, mas não para
si".
Essas precisas informações e os comentários que a elas estão relacionados
poderão ser encontrados na íntegra no volume intitulado "Lettrês Choisies de
Saint Jérome", destacando-se as cartas a Oceanus, sobre Fabíola, e a
Pammachius, sobre Paulina.
- *A hospitalidade cristã e o papel dos bispos*
Para melhor compreendermos a prioridade que a Igreja Cristã deu às
atividades que garantiram a assistência a pessoas pobres e marginalizadas
nos seus primeiros séculos de existência, é necessário lembrar que ela
colocava a hospitalidade como a virtude mais importante dos bispos. Ao tentar
convencê-los da necessidade de uma atuação prática, o concílio da Calcedônia
(em 451) adotou a diretriz com ênfase e em seu cânone oitavo deu aos bispos
a responsabilidade de organizar e prestar assistência aos pobres e aos
enfermos.
Os primeiros indícios de regulamentação dessa assistência surgiram em
alguns concílios da Igreja Gaulesa. O primeiro desses concílios (Orléans, 511)
contou com a autoridade interessada de Childebert, filho de Clóvis e Clotilde. O
cânone décimo sexto dizia: "O bispo proverá alimentos e roupas, dentro da
possibilidade de suas posses, para o pobre e para o enfermo que devido a
seus males estejam impossibilitados de trabalhar por sua conta".
O papel dos bispos no atendimento aos mais carentes da população foi aos
poucos sendo delineado, visando uma atuação prática. Tanto isso é verdadeiro
que já no 5º concílio da Igreja Gaulesa (ano 549), o cânone vigésimo primeiro
determinava: "Os bispos devem cuidar especialmente dos leprosos, dando-lhes
comida e roupas" (Apud "Encyclopaedia of Religion and Ethics").
- *Notícias de organizações para pessoas deficientes*
Como resultado prático de muitas recomendações conciliares a História da
Humanidade nos mostra que várias organizações de caridade ou de
assistência a pobres, a deficientes abandonados e a doentes graves ou
crônicos, conhecidas popularmente e impropriamente como "xenodochium",
foram estabelecidas já a partir do século V por influência direta da Igreja. No
ano 542, convencido das prementes necessidades dos pobres impossibilitados
de se cuidar, o rei franco Childebert construiu um hospital de caridade na
cidade de Lyon, com recursos e instalações que de alguma forma se
assemelhavam àquela primeira e bem sucedida experiência de Cesaréa,
iniciada quase dois séculos antes. Foi levado a isso pela pressão da Igreja
Gaulesa e de um modo especial do bispo de Lyon. Todos os envolvidos - rei e
bispos - viam-se quase que forçados pelas decisões conciliares (na verdade a
Igreja havia já organizado os concílios de Nicéa (325), Constantinopla (381),
Éfeso (431) e Calcedônia (451), considerados como dos mais importantes) a
dar abrigo e ajuda aos pobres e àqueles doentes que eram abandonados pelos
seus parentes. Esta construção foi reconhecida e confirmada no concílio de
Orléans (549), através de seu cânone décimo quinto.
- *A questão das deficiências físicas em sacerdotes cristãos*
Segundo alguns historiadores da Igreja Católica, já nos chamados "Canones
Apostolorum", cuja antigüidade todos desconhecem e que, no entanto, foram
elaborados no correr dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem
restrições claras ao sacerdócio para aqueles candidatos que tinham certas
mutilações. Para a Igreja surgiam problemas sérios, durante esses três ou
quatro primeiros séculos, com mutilações de ordem sexual principalmente. Na
verdade, mutilações sexuais eram muito comuns, seja como pretexto para
"fuga do pecado", seja em conseqüência de castigos impostos pelos tiranos
daqueles distantes séculos. Tentando disciplinar a questão e esclarecer os
bispos quanto à seriedade do problema, os "Cânones Apostolorum", do cânone
vigésimo primeiro ao vigésimo quarto, indicam o seguinte: "Que não se coloque
dificuldade em sagrar como bispo, se o candidato for considerado capaz,
aquele que for eunuco por natureza, ou que se tornou eunuco por malícia dos
homens ou por crueldade dos tiranos" ... Logo a seguir o cânone vigésimo
segundo declara como "irregulares" os casos de sacerdotes que se
automutilavam, porque "eles são homicidas de si mesmos". Para casos de
sacerdotes que tomavam essas medidas, o cânone vigésimo terceiro castiga
com sua deposição, seu afastamento das funções sacerdotais. Finalmente o
cânone vigésimo quarto "priva da comunhão pelo período de três anos o leigo
que fez a automutilação sexual" ("Les Conciles Généraux et Particuliers", de
Guérin).
O Padre Louis Thomassin (1619 a 1695), em sua obra "Ancienne et Nouvelle
Discipline de l'Église" analisa em muitos pormenores diversas situações
relacionadas aos bloqueios que as deficiências físicas ou sensoriais
significavam para um homem ser aceito como sacerdote da Igreja Católica
desde o início de sua criação até o final do século V. Segundo esse famoso
autor, um dos primeiros papas a se manifestar abertamente a esse respeito foi
Hilário, que reinou entre 461 e 468. De acordo com as próprias palavras do
papa, na conhecida Epistola II, "propisciendum ne duo simul sint in Ecclesia
sacerdotes: nec literarum ignarus, aut carens aliqua parte membrorum". Ou
seja, na Igreja Católica não deveria haver dois tipos de sacerdotes: nem o
analfabeto, nem o que não tivesse alguma parte de seus membros (Apud
Thomassin).
A obra de Louis Thomassin sobre a disciplina na Igreja, que foi escrita e
publicada entre os anos de 1678 e 1679, foi revista e ampliada por M.André,
um também famoso doutor em direito canônico, que a publicou em sete
volumes em 1865. Encontraremos, portanto, mais adiante neste trabalho,
dados mais atualizados sobre o assunto.
Mas ainda no século V houve posicionamentos de dois concílios,
confirmando inclusive a posição do papa Hilário, mais tarde canonizado pela
Igreja. Assim, é de se ressaltar que a posição dos concílios nunca foi
dissonante. Vejamos os dois acima citados: Primeiramente o concílio realizado
em Angers, em 453, estabeleceu em seu cânone terceiro uma forte medida
contra sacerdotes que adotavam procedimentos cruéis, muito generalizados no
seio da população, acostumada com barbáries sem conta: "São proibidas as
violências e as mutilações de membros". Já o concílio realizado em Roma no
ano 465, reunido sob a autoridade do papa Hilário, aprovou por aclamação
cinco cânones. Um deles, o de número três, diz com clareza: "Deve-se também
excluir das ordens aqueles que não sabem ler, ou que deceparam algum
membro" (Apud Guérin).
Gelásio I, papa que reinou de 492 a 496, reafirmou a mesma orientação de
Hilário e do Concílio de Roma contra a aceitação de sacerdotes com
deficiências, ao afirmar em sua carta ao bispo de Lucânia que candidatos ao
sacerdócio não poderiam ser nem analfabetos nem "ter alguma parte do corpo
incompleta". Esse mesmo papa afirmava ainda, muito convicto dessas
justificativas para essa atitude de bloqueio a pessoas com defeitos ou
problemas físicos, que "se trata de uma antiga tradição e um costume
observado desde muito tempo em Roma; mais do que isso, que se trata de um
desses louváveis costumes que a Igreja emprestou da Sinagoga" (Apud
Thomassin).
Encontramos ocasionalmente pequenos relatos relacionados ao problema
aqui analisado. Existem histórias até de automutilação, destinada a caracterizar
uma irregularidade, como no caso de Amônio, um santo eremita que ao se
perceber praticamente "ameaçado" pelo povo de ser elevado à dignidade do
bispado, tomou uma providência extrema: cortou uma de suas orelhas.
Todavia, as pessoas que o haviam procurado na tentativa de fazê-lo bispo,
ficaram sabendo posteriormente que aquela mutilação seria apenas válida
dentro da religião judáica e não para os cristãos. Assim sendo, voltaram a
insistir com o mesmo propósito. Tiveram, todavia, uma surpreendente
decepção, pois o eremita, muito resoluto em sua posição de humildade, de faca
em punho ameaçou cortar a própria língua na frente deles, conseguindo dessa
forma dissuadi-los. Caso tivesse efetivado sua ameaça, Amônio estaria
incapacitado inclusive para ser sacerdote.
A Igreja Católica dos primeiros cinco séculos sempre procurou demonstrar
pelos mais diversos meios que essas restrições ao sacerdócio davam-se para
benefício maior da Igreja e não por considerar as pessoas deficientes como
indignas ou manchadas pelo pecado. Ressalte-se também que quando as
deficiências ou males incapacitantes ocorriam "após a ordenação sacerdotal", a
Igreja usava do máximo de benevolência e em geral não impedia o sacerdote
de suas funções básicas.
- *Papel dos mosteiros na assistência aos miseráveis*
Conforme verificamos anteriormente, com o advento e o fortalecimento do
Cristianismo, um grande impulso foi dado às diversas formas de assistência
aos necessitados, por ser a caridade a própria essência da nova religião.
Praticamente durante a Idade Média inteira, somando aos esforços dos bispos,
já engajados por determinações conciliares, os mosteiros constituiram-se numa
nova força impulsionadora da assistência social como pura expressão da
caridade.
De outra parte, responsáveis pela vida e bem-estar de seus súditos, alguns
senhores feudais sentiram-se também obrigados a cuidar dos menos
afortunados, doentes ou deficientes físicos e mentais, de bom ou mau grado,
desde que dentro de seu feudo. No entanto, espalhados por toda a Europa e
Oriente Médio, os mosteiros eram de fato os únicos lugares que possuiam
alojamentos destinados a recolher enfermos, utilizando as instalações dos
chamados "xenodóchium" ou "nosocomium", abrigando também eventualmente
mendigos aos quais distribuiam a alimentação disponível, roupa e algum
dinheiro.
2. O Império Bizantino e as deficiências
A História da Humanidade, conforme nos é transmitida nos países do mundo
ocidental, minimiza e chega mesmo a deturpar a importância eventual do
Império Bizantino, isto é, do Império Romano do Leste, que durou nada menos
do que onze séculos. Instalado no ano de 330 d.C. por Constantino I, o Grande
(274 a 337), ocasião em que inaugurou a nova capital imperial com o nome de
Nova Roma e para lá transferiu o governo, caiu apenas em 1453, ano em que
Constantinopla tornou-se uma possessão dos turcos otomanos liderados por
Maomé II.
Foram onze séculos pujantes, intensamente vividos na mesma época em
que a Europa mergulhava numa etapa obscura e problemática da História que
foi a Idade Média. Durante vários desses onze séculos foi uma notável unidade
política que manteve muito viva a cultura clássica de gregos e de romanos - e
durante toda a sua duração estabeleceu com clareza sua característica
fundamentalmente cristã.
Neste trabalho sobre deficiências e pessoas deficientes o Império Bizantino
tem um lugar especial, uma vez que diversos de seus imperadores
destacaram-se em sua história não apenas por suas lutas, conquistas e
intransigente defesa do Cristianismo, como também pela severidade dos
castigos e penalidades que infligiam, apoiados ou não nas leis. Marca
registrada da realidade bizantina foi, de fato, a existência legal de punições de
mutilação de membros ou do vazamento dos olhos das muitas vítimas -
culpadas ou não - que caíram nas mãos da justiça.
Essas punições foram generalizadas e atingiram tanto a nobres senhores
quanto a membros das camadas mais pobres da população, incluindo
integrantes das forças armadas.
Não nos é difícil imaginar a extensão dos problemas das pessoas portadoras
de deficiências pelas causas usuais, quando a elas eram acrescentadas todas
aquelas outras cegas e amputadas devido a penalidades impostas pela lei ou
pelo poder absoluto dos imperadores.
- *Constantinopla, o "Reino de Deus na Terra"*
Capital do Império Bizantino, a maravilhosa cidade das muitas mansões
senhoriais, dos inumeráveis palácios e das incontáveis cúpulas douradas,
localizada em ponto privilegiado e banhada pelas águas azuis do Chifre
Dourado, do Bósforo e do mar de Mármara, toda cercada por
aproximadamente 20 quilômetros de muralhas inexpugnáveis, Constantinopla
foi por muitos séculos considerada pelos seus habitantes como o verdadeiro
"Reino de Deus na Terra". Os bizantinos aceitavam e defendiam o seu império
como "sui generis", pois havia sido estabelecido por ordem direta de Deus e
questionar sua existência ou seu sistema de governo estava totalmente fora de
cogitação.
Brilhou como estrela solitária no mundo durante toda a Idade Média e
significou para muitos potentados um sonho impossível. Além de tudo,
Constantinopla era um verdadeiro bastião fortificado da Cristandade que
desafiou durante todo um milênio o mundo bárbaro após a queda de Roma.
Séculos após séculos, mongóis, tártaros, búlgaros, árabes, mas principalmente
os turcos, atacaram-na, maravilhados pelo que conseguiam ver por cima das
muralhas: suas cúpulas douradas e os seus palácios. E dentro desses palácios
e igrejas as inimagináveis riquezas.
No entanto, a vida de Constantinopla era enclausurada nos tempos de
guerra, que foram muitos. Sua população, constituída de gregos, latinos e
asiáticos (todos reconhecendo-se como "romanos") não conseguia imaginar o
mundo além do horizonte das muralhas. Nesse universo limitado seu imperador
sempre foi considerado como o representante de Jesus Cristo e sua figura
autocrática era o próprio coração e a força propulsora de toda sua
administração, localizada e concentrada no palácio imperial.
- *A pompa e a circunstância na corte bizantina*
Não é de admirar que as autoridades existentes no palácio do imperador e
que com ele mantinham contatos próximos tinham permanente e
inquestionável importância. Mas elas todas respeitavam ao preço da própria
vida uma linha hierárquica muito rígida e garantida por leis de muita
severidade.
Numa clara demonstração da importância dessas autoridades, havia na
corte bizantina muitos títulos, sendo que alguns deles eram honoríficos e não
estavam ligados a funções específicas; correspondiam a verdadeiras
sinecuras. Eram outorgados através de cerimônias faustosas durante as quais
o imperador entregava títulos, diplomas e ensígnias; títulos correspondentes a
funções oficiais (de trabalho propriamente ditas) eram confirmados por éditos
do imperador.
Exclusivamente para a família do imperador havia títulos honoríficos
especiais, tais como "césar", "nobilíssimo" e "curopalato". Com o correr dos
séculos e mesmo com a criatividade de algumas dinastias outros títulos foram
a eles adicionados: "sebastocrator" e "déspota", por exemplo, que
correspondiam ao de "césar" em termos de sua importância. Todos os titulares
tinham o direito de serem tratados como "majestade imperial", sendo
respeitados como tal.
Muitos outros títulos havia para os nobres ou as personalidades importantes
do Império, sendo o mais elevado dentre eles o de "magister".
- *As grandes e poderosas famílias do Império*
Em boa parte dos fatos que passamos a relatar e que se relacionam a
deficiências físicas ou sensoriais graves, desejamos destacar algumas famílias
que muito significaram na vida bizantina e a respeito das quais faremos
menção mais adiante. São os Phocas, Commenus, Angelus, Tzimisces, Dukas,
Paleólogus, Briennes, Lascáris, Diógenes e Argiros principalmente. A imensa
influência desses fortissimos clãs nos assuntos de Estado está evidenciada nas
muitas páginas da vida de todo o Império Bizantino. E o historiador ou o
interessado nessa realidade conhece também o evidente perigo que eles
podiam constituir para determinado imperador, conforme circunstâncias que
mais adiante pretendemos expor.
Os palácios dessas enormes e fortes famílias nobres na capital e
principalmente nas províncias (por séculos conhecidas pela designação de
"temas") eram verdadeiras cidadelas e cortes em miniatura.
- *A miséria na capital bizantina e as pessoas deficientes*
O vasto triângulo de terras cercado por imponentes muralhas que compunha
o cenário de Constantinopla nunca foi uniformemente povoado. No século VII,
por exemplo, nele viviam com certeza cerca de 500 a 800 mil pessoas,
compondo uma sociedade diversificada não só em termos de raças e origens,
como também em termos de poderio econômico: havia a nobreza dominante, a
nobreza oprimida, as famílias ricas, as remediadas, as pobres e as miseráveis.
"O número de pessoas miseráveis em Constantinopla durante o citado
século era de pelo menos 30.000 e o número de ladrões e outros criminosos
não pode ter sido muito menor. É dificil imaginar que, numa cidade na qual a
polícia era extremamente ativa e uma organização municipal das mais
apuradas, que supervisionava a imigração e cuidava dos empregos, esses
elementos possam ter excedido a cinco por cento da população total, mesmo
considerando terem sido os pobres reconhecidos como uma parte integrante e
socialmente importante de sua composição" ("Cambridge Medieval History", de
Hussey).
A vida de Constantinopla, é fácil imaginar, mostrava muitas situações
contrastantes, nas quais cumpre que enfatizemos as suas misérias e tragédias.
Além de toda a população pobre e pedinte e dos portadores de deficiências por
causas naturais ou por acidentes que àqueles séculos pupulavam pela cidade,
havia a presença incômoda de ex-criminosos ou de traidores mutilados (olhos,
nariz ou orelhas atingidos por carrascos frios cumprindo as sentenças previstas
por lei) mostrando a quem quisesse olhar os cotos de mãos amputadas ou
seus olhos vazados, deixando uma desagradável impressão de tudo.
Ressaltemos neste ponto que o segmento comercial da sociedade bizantina
não era composto apenas de prósperos negociantes. Havia também um grande
número de pequenos comerciantes, lojistas, artesãos e seus assemelhados. E,
procurando sobreviver a duras penas, abaixo deles surgiam os braçais que
trabalhavam por dia e aqueles que, devido a circunstâncias, estavam em
condições piores, ou seja, braçais não-qualificados, mendigos, ladrões e
prostitutas.
No meio dos mendigos havia sempre pessoas com deficiências ou vítimas
de males crônicos, todos vivendo de esmolas que lhes garantiam condições
mínimas de sobrevivência. Mas mendigar era por vezes uma atividade muito
rendosa. Numa pequena comparação existente na obra de Hussey, já citada,
as prostitutas recebiam à época do reinado de Romano I, o Lecapeno (919 a
944), uma certa quantia de dinheiro por mês para deixarem a prostituição,
enquanto que muitos dos mendigos mais prósperos ganhavam bem mais do
que elas, pois a renda de um ponto estratégico de coleta de esmolas poderia
levantar importâncias muito significativas.
Esta não se caracterizava, no entanto, como uma situação comum e muito
menos generalizada. O mais encontradiço mesmo era, no inverno, ver-se
mendigos em condições de extrema miserabilidade, esquálidos, tremendo de
frio em casebres mal cobertos com palha em muitos pontos da cidade. A
realidade de Constantinopla e das grandes cidades do Império Bizantino
mostrava que longe dos palácios e das grandes mansões, havia as áreas mais
miseráveis da cidade, com seus becos sujos e escuros. Mas mesmo essas
enormes áreas de Constantinopla eram insuficientes para abrigar toda a
população mais pobre e suas multidões de mendigos, de soldados estropiados
pela guerra ou pelas penalidades impostas pelo regulamento militar, aos quais
adicionavam-se camponeses fugitivos e aqueles que procuravam na grande
capital uma oportunidade para se refazer das suas desgraças. Dormiam ao
relento ou sob as arcadas existentes nos muitos pontos das grandes avenidas,
em instalações do famoso e soberbo Hipódromo e nos átrios das muitas
igrejas. Às vezes juntavam-se grupos durante o inverno para se aquecer ao
redor de uma estufa ou de uma esterqueira, à falta de outros locais mais
saudáveis (Apud Hussey).
- *As doenças e as deficiências físicas e sensoriais*
A quase totalidade desses infelizes sem condições de trabalhar para sua
subsistência e para garantia de uma habitação menos infecta, ficava exposta a
males endêmicos e epidêmicos que em geral eram provocados pela total
ausência de condições mínimas de higiene e de saneamento. Algumas
doenças graves e muitos males considerados como misteriosos levavam à
instalação de limitações físicas e de males sensoriais severos, sendo a grande
maioria deles considerada como sacrifícios para aperfeiçoamento da vida
espiritual e também para pagamento de males feitos anteriormente.
Mesmo na mais alta nobreza, todavia, a alta morbidade, a mortalidade
infantil e a existência de deficiências físicas não eram incomuns. Um marcante
exemplo poderá ser dado com a família do Imperador Basílio I, o Macedônio
(867 a 886). De seus cinco filhos homens, apenas um sobreviveu e depois foi
coroado como Leão VI. Este, por sua vez ficou viúvo três vezes e morreu com
apenas 45 anos de idade. Dos seus filhos, um morreu logo após o batismo e o
outro teve uma séria deficiência por toda a vida.
Se esse podia ser o destino de uma família da mais alta nobreza, que vivia
protegida na limpeza, na boa alimentação e no luxo, imagine-se a dificuldade
para o restante da população em termos de morbidade, mortalidade,
longevidade e deficiências, vivendo em ambientes menos saudáveis,
alimentando-se mal e abrigando-se mal.
- *Os miseráveis no "Reino de Deus"*
Mas com certeza uma das mais surpreendentes características da vida de
Constantinopla foi a aplicação prática que sua população deu à caridade cristã,
insistente e aguerridamente defendida pela Igreja.
"Os benefícios espirituais da prestação da caridade naturalmente dependiam
da existência de uma classe à qual essa caridade poderia ser dedicada. Os
"pobres", portanto, eram uma parte integrante da sociedade" . "Ao pedir
esmolas os mendigos gritavam: "O paraíso bate à sua porta" ... e esmolas
eram dadas com liberalidade.
Mendigar era uma profissão reconhecida, da qual, como de outras profissões,
os intrusos eram expulsos. Os pontos mais valiosos eram preservados
ciumentamente. Cada átrio de igreja era cercado por mendigos, cuja
inoportunidade garantiria um suprimento liberal para seu pão de cada dia. Mas
a caridade organizada transcendia de longe os limites da ajuda meramente
casual. A cidade era com justiça famosa pelos seus hospitais, seus orfanatos e
seus abrigos para idosos e para carentes" ("Cambridge Medieval History", de
Hussey).
Nos trabalhos de organização e de manutenção dessas instituições a família
imperial e a nobreza mais refinada tomavam parte ativa. Os seus membros do
sexo feminino dedicavam-se ativamente à ajuda aos doentes. Algumas
mulheres chegaram mesmo a adquirir o hábito de visitar as prisões, que eram
os ambientes mais degradantes da miséria humana na esplendorosa capital.
E a Igreja era a principal responsável por essas organizações várias,
desempenhando um papel de auxiliadora. Ressalte-se que somas fabulosas,
levantadas em banquetes ou por meio de doações e legados, eram
continuamente destinadas aos cofres da Igreja para distribuição aos pobres e,
segundo os historiadores, essa distribuição era sempre feita com justiça,
conhecimento de causa e pontualidade dignos de nota.
- *As organizações assistenciais de Constantinopla*
A Igreja e o Estado deram-se as mãos desde a época de Constantino I para
prover os serviços assistenciais básicos, muito antes de existir qualquer serviço
ou esforço organizado na Europa ocidental e cristã. Assim é que foram
gradativamente estabelecidas entidades diversas que acabaram sendo
classificadas em nove categorias, a saber:
"brephotróphium" - lar para recém-nascidos;
"gerontotróphium" - lar ou abrigo para pessoas idosas abandonadas ou sem
condições familiares de sustento contínuo e seguro;
"lobotróphium" - abrigo e internato para pessoas vítimas de limitações físicas
crônicas e muito severas;
"nosokómeion" - criado para tratamento e abrigo de doentes agudos e
crônicos sem posses nem condições para tratamento domiciliar;
"orphanotróphium" - abrigo e alimentação para crianças órfãs ou
abandonadas pela família ;
"pandóchium" - abrigo polivalente destinado indiscriminadamente a todos os
tipos de desamparados não enquadrados nas demais organizações;
"ptochotróphium" - abrigo e alimentação para mendigos e pessoas pobres e
abandonadas sem condições de sustentação própria;
"typhlokómeion" - abrigo e alimentação para pessoas cegas pobres e
desprovidas de condições famíliares para garantir seu sustento;
"xenodóchium" - organização destinada - pelo menos no início - a viajantes e
peregrinos estrangeiros adoentados ou em sérias dificuldades de abrigo.
A eventual "latinização" das palavras não disfarça de maneira alguma sua
origem grega. Os radicais "kómeion" e "dócheion" correspondiam a abrigo,
proteção, cuidado, recipiente, enquanto que o radical "trópheion" relacionava-
se à idéia de alimentação e de educação.
Observe-se que o "Orphanotróphium" de Constantinopla foi tão importante e
tão magnificamente construído e montado que levou o Império a manter o título
honorífico de "orphanotróphus" para seu diretor, geralmente outorgado a um
sacerdote ou bispo da Igreja.
- *O imperador Justiniano e as pessoas enfermas e deficientes*
Em uma de suas muitas leis (Nova Constituição n°. LXXX) o imperador
Justiniano (482 a 565) tratou dos problemas dos mendigos que não tinham
doenças graves ou deficiências. E nessa norma fica muito patente a
preocupação da sociedade bizantina em ocupar essas pessoas em algum tipo
de trabalho ou atividade. O imperador deu à mais alta autoridade judicial do
Império, o questor, a responsabilidade de não deixar essas pessoas à mercê
da sorte e da esmola.
"Convém que ele as faça comparecer imediatamente aos diretores de
trabalhos públicos, aos chefes das padarias, aos encarregados do correio, aos
diretores dos jardins ou das demais oficinas existentes, nas quais elas possam
ao mesmo tempo trabalhar, ser alimentadas e também passar de uma vida
ociosa para uma vida mais útil. Mas se algumas delas não quiserem trabalhar
nas oficinas para as quais tiverem sido encaminhadas, o questor as expulsará
desta cidade real”.
A orientação do imperador Justiniano era para que o questor usasse sempre
de indulgência para com as pessoas pobres encaminhadas de acordo com a
lei; a preocupação expressa era que a preguiça não levasse as pessoas em
dificuldades para atos ilícitos e com isso fossem condenadas pela justiça civil.
Ainda sobre mendigos ou sobre pessoas pobres em dificuldades existia uma
distinção importante que levou a sociedade bizantina a manter e mesmo
ampliar sua organização de socorro aos necessitados. Afirmou o imperador
Justiniano, ao final de sua Nova Constituição n°. LXXX: "Não obstante, é nossa
vontade que as pessoas de um ou de outro sexo que não sejam sãs de seus
corpos" (ou seja, pessoas portadoras de condições incapacitantes) "ou que
sejam gravemente enfermas, não sejam molestadas em nossa cidade;
queremos, pelo contrário, que elas sejam atendidas por pessoas piedosas”.
- *O desenvolvimento da medicina e dos hospitais*
No ambiente criado em conseqüência de um governo autocrático com fortes
pinceladas de teocracia e ampla aceitação, havia muitos contrastes entre ricos
e pobres, entre palácios e casebres paupérrimos em ruas cobertas de
imundícies, conforme vimos anteriormente. E, segundo especialistas, tudo,
absolutamente tudo, inclusive a miséria, a doença, a mutilação, a cegueira,
tudo era considerado como motivo para se pensar no pagamento de pecados
cometidos, no cerceamento dos impulsos carnais, na purificação da alma e no
seu aperfeiçoamento. E esse modo de ver o mundo sempre foi considerado
como uma positiva influência do Cristianismo.
Não é de estranhar que tenha havido uma forte proliferação de entidades
assistenciais e caritativas de um lado, e certa estagnação na ciência médica,
de outro. Houve, entretanto, o cuidado de se estabelecer uma pormenorizada
compilação dos conhecimentos já acumulados de medicina na realidade grega
anterior à construção e à consagração de Constantinopla como capital do
Império Bizantino.
Essa mesma realidade, influenciada pelo Cristianismo tão marcante,
considerava o enfermo, o acidentado, a vítima da justiça, o portador de uma
deficiência congênita ou adquirida, como "santos" em potencial. Para todos os
que sofriam, o melhor e mais certo remédio era a oração orientada e dosada
por sacerdotes; o melhor hospital que poderia haver deveria estar funcionando
em ambiente da Igreja; o melhor e mais seguro "curativo" era o próprio Jesus
Cristo.
Do milênio de existência do Império Bizantino não podemos dar relevância
especial a quase nada, em termos de medicina, a não ser aos nomes
universalmente conhecidos de Cosme e Damião, santificados pela Igreja.
- *A mutilação nas leis bizantinas*
A uma análise superficial a lei criminal bizantina mostra-nos alguns traços de
uma positiva influência cristã, embora haja categóricas afirmações em
contrário.
Vindos de um sistema de penalização muito severo em que a pena de morte
prevalecia para muitos crimes, os sistemas introduzidos por Justiniano e por
Leão III, o Isauriano (680 a 741), foram amenizando as penas, graças à
influência do Cristianismo. A "Écloga" (Código de Leis) de Leão III restringe a
pena de morte a alguns crimes apenas: assassinatos, alta traição, deserção
das forças armadas e práticas sexuais não-naturais. Além disso, prevê diversas
penas por mutilação ou por vazamento dos olhos que não existiam no Código
de Justiniano, em vigência desde o século V. Muito embora a "Écloga" e as
legislações posteriores tenham significado, para aquela época, uma
amenização de parte do sistema penal, o fato concreto é que, com as penas de
mutilação e de vazamento dos olhos provocava uma verdadeira e
desagradável regressão a épocas anteriores a Constantino I, que proibia
mutilar o rosto humano que era "feito à imagem da beleza divina".
A suposta amenização não ocorreu em todas as linhas, porém, de
cominações estabelecidas no Código de Justiniano em simples multas,
verificou-se na "Écloga" um forte endurecimento para a pena máxima.
No entanto, a Cristandade do Império Bizantino não questionava nada do
que vinha do imperador e para ela, a substituição da pena de morte por
mutilações podia até ser justificada no próprio Evangelho. Era questão de se
tomar a palavra de Mateus ao pé da letra: ... "se tua mão ou teu pé te
escandalizam, corta-os e atira-os fo-
ra" ..."e se teu olho te escandaliza, arranca-o e atira-o fora". Havia também
outro fator de extrema importância: ao criminoso, ao pecador, seria dada a
oportunidade de arrepender-se de seus pecados e se regenerar na penitência,
na dor, na fome, na miséria, muitas vezes confinado num mosteiro.
Ressalte-se, todavia, que o imperador bizantino, representante de Cristo na
Terra, em seu juramento de coroação, obrigava-se a ser misericordioso e
humano para com seus súditos, evitando a pena capital e a mutilação tanto
quanto possível – isso nos interesses da justiça e da propriedade, e em
fidelidade à verdade e à retidão.
No rolar dos séculos, porém, o que sucedeu nas muitas histórias de
mutilações e vazamentos de olhos foi que essas punições aconteceram, numa
grande variedade de casos, devido a meras vinganças políticas e para afastar
sérios pretendentes ao trono.
A Igreja colaborava dentro dessa realidade muito concreta com o banimento
a um de seus muitos mosteiros retirados da civilização, demonstrando com isso
a sua influência no sistema penal em vigor. Ela tomava em suas mãos tanto a
execução de partes das penas, como também a reabilitação de muitos desses
criminosos.
A profanação de sepulturas, a rapinagem de igrejas, a pederastia, as fraudes
de funcionários eram reprimidos pela mutilação.
"Pergunta-se como esse costume atroz, cuja crueldade refinada supõe uma
perversão do senso moral, pôde ser introduzido na sociedade bizantina",
comenta Bréhier ao analisar as mutilações. Segundo o famoso historiador, o
gosto pela mutilação pode ter sido o resultado do ambiente que cercava a
sociedade local, ao redor do século VII, e a influência da imigração de
consideráveis contingentes de turcos, árabes, sírios e outros, dentre os quais o
suplício era prática corrente desde muitos séculos (Apud Bréhier).
- *Períodos principais do Direito Penal Bizantino*
Para que bem entendamos a questão das penalidades impostas pelas leis
imperiais que redundavam na instalação de limitações físicas e sensoriais, é
fundamental que distingamos pelo menos dois períodos na história desses
castigos.
O primeiro vai do século V até o século VII, notando-se um esforço para o
estabelecimento de alguma humanização do corpo geral da legislação romana
pertinente, esforço esse feito principalmente sob Justiniano e expresso em seu
Código, aprovado em 534. Esse Código, somado à legislação aprovada e
codificada anteriormente pelo mesmo imperador, teve o enriquecimento de
mais de 150 "Novas Constituições" que foram assinadas entre os anos 534 e
565, formando o famoso "Corpus Juris Civilis" de Justiniano.
O segundo período vai do século VII em diante. Nota-se nele, especialmente
pela aprovação da "Écloga" de Leão III, o Isauriano, uma tendência a certa
humanização (ou pelo menos amenização) da drasticidade da pena de morte,
surgindo em seu lugar maior incidência de penas de mutilação ou de castigos
corporais.
Note-se que no estudo das leis todas, tanto de Justiniano e de imperadores
que ocuparam o trono depois dele, quanto de Leão III, deve-se ressaltar a
relevância da existência de uma verdadeira universidade, criada no ano 425
em Constantinopla, na qual estudava-se mais profundamente assuntos leigos
(não-religiosos), dentre os quais a Filosofia e as Leis.
- *A moderação nas penalidades impostas no tempo de Justiniano*
Inserida numa de suas "Novas Constituições" (a de nº CXXXIV, ou seja,
assinada quando Justiniano estava no final de sua vida) encontramos uma
orientação geral do velho imperador a todos os governadores e autoridades
judiciais do Império, na qual fica evidente uma séria tendência à humanização,
com determinações explicitas de moderação na aplicação de penas corporais.
Diz o imperador: "Como precisamos proteger a fraqueza humana, diminuimos
uma parte das penas corporais e abolimos a amputação de duas mãos, de dois
pés e o suplício da separação das juntas, que é ainda mais grave do que a
amputação das mãos". "Mas se a espécie de crime comportar a amputação de
um membro, limitar-se-á à amputação de uma só mão. Proibimos que seja
indicada a amputação de um membro por um simples furto, ou que o culpado
sofra a pena de morte, mas desejamos que ele seja punido de outra maneira".
Ao final dessas considerações e determinações relacionadas à moderação
que as autoridades deveriam observar na aplicação de penas corporais ou
pena de morte, Justiniano procura garantir a severidade da pena para aqueles
que ameaçavam a estabilidade da coroa imperial, afirmando: "Mas ordenamos
que a força das antigas leis seja conservada para os indivíduos condenados
por crime de lesa-majestade".
- *As "Novas Constituições" de Leão III: "leis mais cristãs"*
As chamadas "Novas Constituições" editadas pelo imperador Leão III, o
Isauriano (717 a 741), após a publicação da "Écloga", são verdadeiras ordens
imperiais. São leis escritas num linguajar quase coloquial, expressas em todos
os seus termos na linguagem própria da época. Trata-se de um total de 113
"Novas Constituições", das quais desejamos aqui fazer menção a algumas que
estabelecem a precisa condenação por certos crimes, incluindo o açoitamento,
a amputação do nariz, da língua ou das mãos, o vazamento dos olhos e
também a pena do "raspamento" de cabelos e barba, considerada como
difamante.
Essas Constituições procuravam impedir a criminalidade por meio de
cominações severas; buscavam também desencorajar que o povo imitasse os
imperadores ou as autoridades maiores do Império que, no uso (e no abuso) de
seu direito supremo derivado de Deus, mandavam vazar os olhos ou amputar
as mãos dos traidores do Divino Império. Procuravam também garantir direitos,
estabelecer penas corporais ou pecuniárias e regulamentar alguns assuntos
relacionados ao clero.
Poderá nos parecer irrelevante nessa legislação, por exemplo, a
preocupação com os cegos poderem ou não fazer testamento de seus bens,
uma vez que não havia provisão alguma que garantisse direitos básicos a
esses mesmos cegos, mas a preocupação da nobreza (das fortes e grandes
famílias que já mencionamos) era compreensível face à realidade do que
continuamente sucedia: o problema de muitos dignatários, militares ou nobres,
que tiveram seus olhos vazados, seja por crimes de traição (sob a ótica do
imperador reinante), seja por falsas acusações, seja mesmo por pertencerem à
família de um indiciado traidor, não poderem legar seus bens.
Será interessante ressaltarmos que das 113 Novas Constituições de Leão III
três nos interessam diretamente neste trabalho. A respeito delas comentamos
a seguir.
- *A defesa de um direito dos cegos: fazer testamento*
O próprio texto da Nova Constituição n°. LXIX é suficiente para
compreendermos a totalidade do problema e a solução encontrada. Vejamos
como o imperador considerou a questão:
"Levantam-se muitas vezes dúvidas quanto à questão de se saber como os
cegos podem fazer testamento, e essas dúvidas são originárias das leis que
decidiram em contrário, e também dos costumes existentes sobre esse
assunto: não é nem inconveniente nem difícil para mim, esclarecer e decidir
sobre o assunto. Há uma lei que proíbe aos cegos de fazer um testamento
secreto e estabelece que tal testamento não terá força a menos que
testemunhas confirmem ter ouvido o testador proferir de viva voz as
disposições por ele guardadas; o testemunho por si só não pode fazer fé de
sua vontade. Outra lei, ao contrário, permite às mulheres e às pessoas
iletradas fazer testamento na forma mística, e não as sujeita a outras
formalidades, a não ser assiná-los, se souberem escrever, ou se não
souberem, a fazê-los assinar por um terceiro. Essas duas leis estão
evidentemente em contradição sobre o mesmo objeto; pois se as mulheres e
pessoas desprovidas de toda instrução, que sabem apenas o que desejam,
podem fazer seu testamento na forma mística, por que um cego não o poderia?
Mas se essas leis estão em oposição entre si, estão ainda mais com os
costumes. De fato, os costumes estabelecem que os testamentos das
mulheres, de pessoas iletradas ou de cegos, feitos na forma mística, não
podem ter força alguma. Nesse estado de coisas, ordenamos que os
testemunhos secretos dos cegos ou de quaisquer outras pessoas tenham um
pleno e inteiro efeito e adicionamos a essa disposição que, antes de as
testemunhas serem ouvidas, os que lavraram o testamento e que a ele aporão
as suas assinaturas, declararão ter escrito o que o testador lhes ditou; e se
logo em seguida for reconhecido que cometeram alguma falha, serão
despojados de seus bens se forem ricos, ou então serão açoitados e exilados
se forem pobres. Adicionamos mais que, se para confirmação do testamento
for necessário recorrer a juramento, como acontece freqüentemente, os que o
lavraram deverão estar concordes com as testemunhas, que jurarão atestar e
confirmar a coisa" (Apud Bérenger).
- *Penalidade prevista para o vazamento dos olhos de outrem*
A segunda Nova Constituição de Leão III que nos interessa neste trabalho
procura coibir frontalmente os crimes de vazamento dos olhos de alguém. Para
tanto o legislador imperial estabeleceu penas severas e bastante
desencorajadoras. Essa norma específica está intitulada no documento original
como "Qual deve ser a pena para quem cega alguém voluntariamente".
Ela analisa a aplicação direta da lei do talião, fazendo menção expressa
desse procedimento. Estuda também o problema que poderia ser criado com o
fato de o malfeitor ter os dois olhos vazados por crime semelhante. Leão III
pondera e decide da seguinte forma:
... "se ele tiver tirado" - extirpado, arrancado ou mesmo vazado são termos
correspondentes - "os dois olhos, como nesse caso a igualdade da pena não
traria nenhum proveito para o que perdeu a visão (pois qual a vantagem que
pode achar um cego em um outro também ser cego?) e que a pena do talião,
mesmo que merecida, seria muito cruel para o culpado (pois nada é mais triste
do que a cegueira), decidimos que ele não a sofrerá e que será punido de outra
maneira, capaz de garantir alguma compensação à vítima. É assim que
concebemos a lei: qualquer pessoa que tiver vazado os dois olhos de um
indivíduo, terá um vazado e, como mereceria perder a mão que cometeu o
crime, pagará em seu lugar uma indenização igual à metade de seus bens, que
será entregue àquele que teve seus olhos vazados, como um abrandamento de
sua miséria. Dessa maneira este será consolado e o culpado será punido,
tendo um olho vazado e em seguida perdendo seus bens no lugar de sua mão"
(Apud Bérenger).
Mas o que sucedia se o malfeitor fosse uma pessoa pobre ou sem recursos
suficientes? Neste caso, não podendo o criminoso cumprir o estabelecido em
termos de compensação, era condenado a experimentar idêntico mal infligido à
sua vítima: tinha os olhos vazados.
- *Crime de rapto e sua condenação nos tempos de Leão III*
Dentre os diversos crimes citados nessa legislação coberta pelas Novas
Constituições de Leão III, o rapto de uma jovem solteira merece nossa atenção
especial. Essa Nova Constituição - de n°. XXXV - estava intitulada: "Da pena
pronunciada contra o raptor de uma jovem e seus cúmplices". Ela é clara,
incisiva e não desperta qualquer dúvida.
... "Se o rapto for cometido sem o uso de armas, então o raptor não será
punido com a morte, porque ele não manifesta a intenção de a provocar. Mas
terá a mão cortada e aqueles que o ajudaram, ou que tenham tomado qualquer
parte em seu crime, serão açoitados, raspados e exilados". A mesma
Constituição estabelece que todos os que ajudavam nesse tipo de rapto, mas a
mão armada, seriam punidos da seguinte maneira: ... "terão o nariz decepado e
serão açoitados e raspados". E conforme indicamos acima ser raspado
correspondia a ter os cabelos e a barba cortados à força, o que era
considerado como um castigo estigmatizador e difamante.
Quanto ao autor desse crime de rapto de uma mulher solteira a mão armada,
a Nova Constituição n°. XXXV confirmava a pena de morte, já estabelecida
séculos antes no Código de Justiniano.
- *General Belisário: lenda e realidade de sua carreira*
Belisário foi um general bizantino nascido na Trácia aproximadamente em
505, tendo falecido em 565, após ter vivido seus últimos anos cego, pobre e
mendigo.
Após alguns anos de glórias e vitórias à frente dos exércitos que combatiam
os muitos inimigos de Constantinopla, o imperador Justiniano transformou
Belisário no primeiro general de todo o Império. Seus contínuos sucessos,
todavia, acabaram por despertar em Justiniano os sentimentos de ciúme e de
desconfiança, apesar dos incontáveis atos de fidelidade de seu general maior.
No ano 562 Belisário foi envolvido numa conspiração e injustamente deposto
de seu cargo. Acusado do crime de lesa-majestade, sofreu a pena usual
amenizada: perda da visão, somada à perda de seus proventos de todos os
seus bens.
A lenda mostra-nos Belisário cego por ordem direta de Justiniano,
mendigando com o auxílio de um garoto para poder sobreviver. Sua figura
magnífica de general adorado pelos seus subalternos e pelo povo em geral,
transformado em mendigo, levou alguns pintores a criar obras de arte que
ficaram famosas, destacando-se dentre eles Van Dick, Salvatore Rosa, David e
Gérard.
Levou também o escritor Nepomuceno Lemercier a escrever um romance
em versos que foi musicado por Dominique Pierre Jean Garat, famoso
compositor e cantor francês, no final do século XVIII. Um dos versos musicados
da obra intitulada "Belisário" relata-nos o seguinte:
"Seguro o capacete do guerreiro,
Terror dos Vândalos e dos Godos.
Caminhou, dizem, sem escudo
Contra a fatal impostura.
Um tirano fez queimar seus olhos
Que velavam sobre toda a terra.
A noite cobre para sempre os olhos
Do triste e pobre Belisário" (Apud "Larousse du XXe.Siècle").
Em algumas culturas européias de hoje o nome Belisário é muito utilizado
para fazer referência simbólica a uma pessoa cega de boa educação e de
refinadas maneiras.
- *Notícia sobre uma prótese no século IV*
Nos muitos documentos encontrados na pujante nova capital do Império
Bizantino, e que escaparam à fúria destruidora dos seus muitos invasores,
principalmente dos turcos, foram encontradas algumas referências a próteses.
Mencionam essas citações eventuais casos de braços de metal, pernas de
madeira e até mesmo casos de nariz ou de orelhas artificiais.
George Kredinos, escritor grego do século XI, narra-nos o seguinte caso que
nos informa da fabricação de uma importante prótese:
"Uma pessoa da Macedônia, de nome Basílio, afirmava falsamente que era
Constantino, filho de Dukas. Tendo maliciosamente persuadido muita gente a
segui-lo, reuniu-a ao seu redor e, viajando a pé, causou distúrbios nas cidades
e instou com a população para se levantar contra o imperador de
Constantinopla. E, tendo sido aprisionado por um general chamado Elefantino,
e levado ao imperador bizantino, foi condenado a ter um dos seus braços
cortado. Depois de sua libertação da prisão, colocou no lugar do braço cortado
um outro artificial feito de cobre e, fazendo uma enorme espada, perambulou
pelo país ludibriando outra vez os cidadãos mais ingênuos" (Apud
Pournaropoulos).
- *Abrigos para cegos e outros refúgios para doentes e deficientes*
Segundo alguns biógrafos de São Basílio, o Grande, ele patrocinou a criação
e inaugurou um abrigo especialmente destinado a cegos em Constantinopla,
conhecido pela genérica designação de "tuphlokómeion". Outro famoso santo
da Igreja no Império Bizantino foi São Lineu que chegou a organizar e manter
outros abrigos para cegos na cidade de Syr, na Síria atual. Esses abrigos eram
compostos de pequenas cabanas onde os internados viviam por sua conta e
graças à caridade das pessoas que garantiam seu sustento, todas elas ligadas
a ricas famílias da região. Essa experiência foi levada a efeito no século V.
No mesmo século, entre os anos 400 e 403, São João Crisóstomo fez
construir alguns abrigos para doentes crônicos e pessoas que apresentavam
condições incapacitantes de seriedade, impeditivas de atividades rentáveis.
Usou para tanto as esmolas que coletava e os excedentes que juntava de seus
proventos como arcebispo de Constantinopla.
No final do século IV, bem nos primórdios da vida monástica que foi muito
pujante no Império Bizantino, o cuidado dos pobres em geral e das pessoas
deficientes no meio delas, segundo nos relata São João Crisóstomo, passou a
ser uma preocupação básica e continua dos mosteiros. Afirma esse famoso
santo da Igreja que "atendem os mendigos e os aleijados que vêm a eles às
refeições e para abrigo"... "um dos irmãos cuida das feridas de um mutilado,
outro cuida de um homem cego, enquanto que um terceiro apóia alguém que
perdeu uma perna" (Apud French).
- *Assistência a soldados a partir do século VI*
O Império Bizantino, sempre bastante criativo, mantinha atendimento
separado para soldados feridos ou deficientes, quando eram mutilados em
atividades guerreiras, antes do início da Idade Média no mundo europeu
ocidental. Em um trabalho escrito pelo imperador Mauricio Flávio Tibério (539 a
602) e intitulado "Strategikón", encontraremos esta frase: "Cuidados especiais
devem ser prestados para proteger os feridos após a guerra" (Apud
Pournaropoulos). No mesmo trabalho consta uma referência quanto à idade de
incorporação às forças armadas, indicando que todos os súditos abaixo de 40
anos de idade eram obrigados ao serviço militar, dando-nos assim uma idéia
da eventual incidência de lesões graves por ferimentos inclusive em homens
com família formada e quase no final da vida. Existem outras referências
também quanto ao assunto, nesse mesmo trabalho, e uma delas conta-nos em
poucas palavras e sem maiores comentários - como se estivesse falando de
assunto sobejamente conhecido - o que sucedia com os feridos em campos de
batalha. Garantiam os exércitos bizantinos um sistema de recolhimento desses
feridos e de seu atendimento na retaguarda, salvando-os de morrer devido a
hemorragias, pancadas, pisaduras, queimaduras e outros traumatismos. Afirma
o imperador Mauricio o seguinte:
"Durante as batalhas um corpo de auxiliares volantes" - citados como
"ambulanciers" na versão original francesa - "a cavalo, os "deputatoi", estava
encarregado de recolher os feridos e de os transportar à retaguarda para
serem tratados. De suas selas pendiam estribos duplos que lhes permitiam
erguer os feridos e os fazer montar. Recebiam eles um "nomisma" por
guerreiro salvo" ("Les Institutions de l'Empire Byzantin", de
Brehier) .
Uma referência a benefícios estabelecidos para soldados que voltavam com
sérias deficiências físicas ou doenças graves dos campos de batalha também é
mencionada pelo autor na mesma obra: ... "sob Constantino VII, o
Porfirogeneta, os detentores de bens militares que ficavam inválidos
continuavam a gozar de suas rendas a título de pensão".
- *Os primeiros hospitais da Terra Santa e de Bagdá*
Carlos Magno (742 a 814), rei dos Francos e chamado de "Imperador do
Ocidente", em contraposição aos imperadores bizantinos que eram por vezes
conhecidos como imperadores do oriente, é uma das mais impressionantes
figuras da História da Idade Média. Sua vida toda esteve repleta de lances
importantes. Uma de suas características principais era sua habilidade de
administrador; dizem que em vez de criar organizações novas, reformava e
melhorava as já existentes, levando-as a funcionar bem. Aliado ao famoso
califa Haroun-al Raschid com o fito de intimidar o Império Bizantino, foi o co-
patrocinador da construção do primeiro hospital ("nosokómeion") separado dos
abrigos para peregrinos e estrangeiros ("xenodóchium") construído na Terra
Santa. Segundo seus biógrafos, Carlos Magno protegia também os cegos,
tendo estabelecido severas penas para aqueles que os maltratassem.
Foi no século X que surgiu na cidade de Bagdá um segundo hospital do
mundo islâmico, sob o governo do califa Al-Muktadir. Um terceiro foi construído
no mesmo século (ano 970), também em Bagdá, contando com 25 médicos.
Caracterizava-se este último hospital como entidade de tratamento, de
observação, de ensino e de treinamento dos médicos.
Esses hospitais e todos os demais 34 que foram organizados até o final do
século X recebiam não apenas doentes mas também portadores de
deficiências sérias e limitadoras.
- *Castigos bárbaros levam a deficiências no Império Bizantino*
Conforme tivemos oportunidade de verificar anteriormente, muito cruéis para
os nossos dias eram as penalidades aplicadas por alguns imperadores ou
potentados bizantinos. No entanto, ressalte-se que elas estavam perfeitamente
bem estabelecidas em lei e o mundo oriental vivia séculos que demandavam
fortes providências para cercear o crime, o roubo, o estupro, a traição e a
deserção das forças armadas. Alguns exemplos serão apresentados deste
ponto em diante quanto à aplicação de diversas dessas penas, embora
estejamos todos muito certos de que inúmeros outros casos poderão ser
coletados pelos estudiosos do assunto.
Na obra intitulada "Vie et Mort de Byzance", de Bréhier, há uma introdução
escrita por uma das maiores autoridades no assunto, que foi Henri Berr. Esse
famoso historiador chama-nos a atenção para um fato que caracterizou o
Império Bizantino, ou seja, as mutilações:
"Temos encontrado sem cessar nestas páginas, a menção não apenas de
assassinatos, mas de torturas as mais diversas, de "suplícios refinados":
arranca-se os olhos, a língua,queima-se com ferro em brasa; mas sobretudo
vaza-se os olhos. Vazar os olhos é prática corrente".
De fato, tao corrente é essa prática que, só de acontecimentos importantes e
muito notórios - e tão notórios e importantes que passaram para a História -
poderíamos citar mais de trinta. Todos eles - vazamento dos olhos de um modo
todo especial, mas incluindo mutilações como penas por crimes e traições, ou
mesmo para incapacitar certos pretendentes ao trono ou a postos importantes -
foram praticados contra membros da nobreza mais alta do Império, contra
príncipes herdeiros, contra imperadores aprisionados ou destronados, durante
toda a duração do Império Bizantino.
Só no século VIII, por exemplo, encontramos diversos fatos que ocorreram
após 741, ano em que Constantino V (718 a 775) procurava combater com
muita força os povos árabes nas terras da Ásia, tendo para tanto se ausentado
longamente de Constantinopla. Durante seu afastamento da corte, porém, seu
cunhado Artavasde conspirou contra ele e chegou mesmo a ser proclamado
imperador por suas tropas. Entrou vitorioso e sem maiores resistências na
capital do Império e foi coroado e abençoado pelo patriarca Anastácio. Logo
em seguida, para garantir sua sucessão, associou seu filho mais velho ao
trono.
No entanto, um ano e pouco após esses eventos Constantino V retornou e
conseguiu retomar o trono com as forças armadas ainda à sua disposição.
Logo em seguida castigou severamente a traição do cunhado, mandando vazar
seus olhos e de seus pretensos herdeiros, ou seja, seus filhos. Fez mais o
imperador: mandou açoitar publicamente a maior autoridade da Igreja que não
lhe tinha sido fiel, o patriarca Anastácio.
Já reafirmado no poder, encetou vários anos após uma violenta e pertinaz
campanha contra o culto das imagens na Igreja - parte do chamado movimento
iconoclasta, ou seja, movimento contrário à adoração de imagens no culto
cristão - e, demonstrando um quase que incontrolável ódio contra os monges,
mandou exilar, aprisionar e mesmo mutilar um imenso número deles. Nas
províncias os governadores e autoridades da justiça procuravam seguir o
exemplo do imperador. O governador da Trácia, por exemplo, fez reunir à força
todos os monges e religiosas daquelas terras numa praça de Éfeso, obrigando-
os a fazer ali mesmo uma opção: deviam escolher o casamento ou perder a
visão (Apud Bréhier).
- *A imperatriz Irene e sua luta para conquista do trono*
Ainda no século VIII, durante um curto espaço de vinte anos, a História
Bizantina relata-nos algumas amputações de língua e vazamento de olhos na
mais alta nobreza de Constantinopla durante a vida da famosa imperatriz Irene,
ou seja, entre os anos 780 e 800.
Para nós, em pleno século XX, trata-se de uma história no minimo bizarra. E
poderá ser iniciada com o jovem príncipe herdeiro do trono, Leão, filho de
Constantino V, com 25 anos de idade, casando-se numa faustosa cerimônia
realizada na igreja de Santa Sofia, com uma belíssima jovem ateniense de 18
anos de idade, de nome Irene, que era plebéia e órfã de pai e mãe.
Explica-se: a escolha de algumas imperatrizes ou de esposas de
governadores e de alguns nobres dava-se em verdadeiros concursos de beleza
e de talento, segundo alguns historiadores. Irene fora escolhida exatamente
assim, pelo imperador Constantino V, cinco anos antes do velho imperador
falecer. Irene conquistou com extrema facilidade não só o amor e a confiança
do marido, como também do sogro, que já colocava toda a sua esperança de
sucessão adequada no filho herdeiro do trono e em sua jovem, prendada,
inteligente e belíssima esposa.
- *Os primeiros castigos contra conspiradores dentro da família*
A morte de Constantino V levou Leão IV ao trono. Ja estava casado com
Irene e seu filho Constantino já havia nascido, mas o imperador estava doente
e era muito inexpressivo em contraposição a uma imperatriz saudável e muito
vivaz. Leão IV faleceu logo, deixando Irene como guardiã de seu herdeiro ao
trono, então com 10 anos de idade. Esse acerto prévio esperado que tinha o
intuito de garantir a coroa para o filho, não agradou aos cinco irmãos de Leão
IV. Em circunstâncias normais poderiam ter reconhecido o direito do sobrinho,
mas jamais poderiam permitir que a plebéia Irene assumisse o posto de
imperatriz. Os títulos de "césar" e de "nobilíssimos" que haviam recebido do
falecido pai não lhes interessavam mais. Queriam o poder, a glória e as
riquezas sem fim.
Foi face a essa situação que os cinco começaram uma trágica seqüência de
conspirações, antes e depois da morte de Leão IV. A primeira tentativa de
golpe, abortada, foi perdoada pelo imperador enfermo, sem maiores castigos. A
segunda, entretanto, que aconteceu alguns anos após, tinha encontrado Irene
com as rédeas do poder nas mãos na qualidade de regente. A penalidade
imposta por ela foi suave, mas contundente: os cinco irmãos foram forçados a
assumir o estado sacerdotal. E para que toda a nobreza e todo o povo
soubessem da realidade do castigo, "convidou-os" a oficiar os solenes ritos do
Natal na igreja de Santa Sofia, distribuindo inclusive a comunhão aos fiéis. O
estado sacerdotal forçava as pessoas a manterem uma atuação a tempo
integral e proibia o envolvimento em assuntos alheios àqueles próprios da
função, o que presumivelmente deixaria Irene e o filho Constantino
sossegados.
Poucos anos depois, entretanto, ocorreu nova e séria conspiração dos cinco
irmãos. Irene perdeu a paciência e mesmo na qualidade de regente
considerou-se atingida por crime de lesa-majestade. Mas aplicou penas
"suavizadas", face à perspectiva da pena de morte: mandou amputar a língua
dos quatro "nobilíssimos" e vazar os olhos do "césar" Nicéforo.
- *Punições severas continuam na corte bizantina*
Com o evidente intuito de continuar com a totalidade do poder em suas
mãos, mesmo após a subida do filho ao trono como Constantino VI, Irene
procurou sistematicamente abafar qualquer iniciativa dele, provocando com
sutileza e malícia o fracasso de seus projetos. Seu plano, na verdade,
começara muito antes quando negligenciara com sagacidade e muita
perspicácia sua preparação para o trono.
No entanto, a situação vivida pelo Império levou o general Mouselen a
destronar a imperatriz, aprisionando-a e garantindo a plena autoridade de
Constantino VI.
Muito embora as forças armadas tivessem a intenção de afastar a má
influência da mãe sobre Constantino VI, a fim de que ele governasse em toda a
sua plenitude, não contaram com o afeto natural, além de uma certa
dependência do jovem imperador para com sua mãe, o que se tornava cada
vez mais evidente conforme a visitava na prisão. A conseqüência não demorou
quase nada: Irene foi libertada por Constantino VI que, arrependido, restaurou-
a ao poder com o título de imperatriz e com poderes para governar ao seu lado.
Ano após ano Constantino provou ser um imperador fraco e Irene foi
crescendo em sua influência, seu poder e mesmo em sua aceitabilidade antes
muito questionada na corte. E foi por sua influência (e talvez exigência) direta
que o general Mouselen, comandante da revolta que a levara à prisão
vexatória, foi preso e teve seus olhos vazados, sem maiores considerações.
Para a nobreza e para o povo esse ato demonstrou uma impressionante
ingratidão do imperador; demonstrou também a evidente força de Irene que,
com esse ato, vingava-se da vergonha que lhe fora imposta.
- *A selvageria de uma imperatriz na defesa de seu trono*
Com o ambiente propício criado pela dualidade do poder de comando, as
intrigas foram crescendo no palácio imperial, agora infestado por eunucos e por
religiosos venais. No ano 797 Constantino percebeu que sua sustentação era
precária e que sua vida corria sério perigo dentro da corte, tal o nível das
intrigas e das conseqüentes e esperadas suspeitas. Sorrateiramente fugiu do
palácio, mas foi preso em curto espaço de tempo e levado de volta; foi
trancado, por ordem da mãe, no mesmo quarto onde nascera 26 anos antes. E
lá mesmo, no meio da noite, teve seus olhos selvagemente vazados por ordem
de Irene. Sobreviveu à violência do ataque que o inutilizou para o trono,
vivendo ainda muitos anos verdadeiramente oprimido pela corte e esquecido
pelo seu povo (Apud Gibbon).
Anos após, a quarta conspiração dos infelizes irmãos de Leão IV aconteceu
e Irene, plenipotenciária e despótica, não teve dúvidas em aplicar a pena que
considerou como definitiva para eliminar de vez suas pretensões ao trono:
mandou vazar os olhos dos "nobilíssimos" já de língua anteriormente amputada
e mandou amputar a língua do "césar" Nicéforo, já cego; logo após exilou os
cinco para longe.
Irene foi destronada e exilada para a ilha de Lesbos alguns anos após; ali
morreu trabalhando com suas próprias mãos e muito pobre. Segundo a
Encyclopaedia Britannica, devido à sua intransigente luta pela restauração do
culto das imagens nas igrejas do Império Bizantino, a Igreja Ortodoxa Grega
elevou-a à categoria dos santos.
- *Mutilação documentada em pintura do século IX*
Se o leitor tiver oportunidade de visitar o Museu Nacional de Espanha, em
Madri, poderá admirar muitas miniaturas que foram pintadas com esmero por
monges da Sicília, diversas das quais registram fatos ligados à história de
Basílio I, imperador bizantino que reinou entre os anos 867 e 886. Nessa
verdadeira história em quadrinhos nota-se momentos muito importantes da vida
desse surpreendente imperador, sendo que dois deles nos interessam
sobremaneira neste estudo sobre deficiências e pessoas deficientes.
O primeiro retrata uma encarniçada batalha, aparecendo ao centro o general
bizantino Procópio mortalmente ferido por um magote de soldados inimigos,
enquanto seus comandados, de costas para ele, batem em retirada. O episódio
retrata uma derrota bizantina causada por um desentendimento entre o citado
general e um outro, também de confiança de Basílio, de nome Leão. E o
desentendimento havia ocorrido pouco antes da batalha, levando Leão a não
colaborar com Procópio na hora necessária.
Tendo tomado conhecimento do fato o imperador mandou prender o general
Leão e levá-lo à sua presença. E é exatamente isso que o segundo quadro nos
mostra em seu lado direito, aparecendo Basílio I de dedo em riste e o ar
preocupado de Leão. Mas há algo mais que impressiona neste quadro de
reduzidas proporções: são as duas cenas pintadas em seu lado esquerdo.
Trata-se da execução das penas impostas pelo imperador, após Leão ter sido
destituído de seu alto posto de general. Vemos o infeliz condenado com os
braços amarrados às costas e deitado no chão, com o carrasco imobilizando-o
com suas pernas e cegando-o com um ferro em brasa seguro firmemente com
ambas as mãos. E mais à esquerda vemos ainda o mesmo prisioneiro com o
braço estendido sobre um pedaço de madeira enquanto o carrasco está com
um machado a meio caminho para decepar-lhe a mão.
Contam os historiadores que esse comandante deposto não morreu devido a
esses castigos e viveu até idade avançada, mas exilado e na mais negra
miséria.
- *Barbáries que levaram a deficiências físicas*
Notícias de barbáries sem precedentes - ou pelo menos conhecidas em
países cristãos - são relatadas no século XI. E a mais chocante de todas
relaciona-se a um imperador cristão considerado como um dinâmico líder
bizantino, no final do primeiro milênio da Era Cristã. Trata-se de Basílio II, que
recebeu apelido histórico e muito sugestivo: "Bulgaroctonus", ou seja, matador
de búlgaros.
Nascera ele em 958, tendo falecido em 1025. Reinou entre os anos 976 e o
ano de sua morte. Dentre suas campanhas militares mais significativas para a
História Bizantina, destaca-se a que empreendeu em 1014 contra a Bulgária.
Basílio II subjugou-a completamente.
No entanto, o golpe de misericórdia que aniquilou a resistência dos patriotas
e dos soldados búlgaros e que terminou a guerra, levando os inimigos de
Constantinopla à rendição total daquele país (qual bomba atômica daqueles
tempos) foi uma ação de crueldade fora do usual. E ao citar o fato o historiador
Gibbon nos diz:
"Sua crueldade infligiu uma vingança fria e estranha a 15.000 cativos que
haviam sido culpados apenas de defender seu país. Foram privados de sua
visão, mas para um em cada cem, um só olho foi deixado, para que pudesse
conduzir a sua centúria cega à presença de seu rei. Dizem que seu rei faleceu
de pesar e de horror; a nação toda ficou traumatizada com esse terrível
exemplo" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de l'Empire
Romain", de Gibbon).
Ao escrever sobre esse mesmo episódio vergonhoso da vida de Basílio II, o
historiador inglês George Finlay apresenta alguns pormenores mais. Conta-nos
ele que "no dia 29 de julho de 1014 o imperador bizantino e seus generais
estavam analisando a situação da campanha contra a Bulgária e considerando
tudo na mais perfeita ordem para a completa rendição da Esclavônia" (parte da
Bulgária). "Seu inimigo principal e mais persistente, que era o rei Samuel, opôs-
se ao seu poderoso exército num desfiladeiro, à frente de considerável força
militar".
Muito irritado, Basílio II fez seus homens parar e deu ordens para que o
governador de Philipópolis, Nicéforo Xiphias, com um bem aparelhado
contingente de soldados, desse a volta numa das montanhas para assim
atingir o exército búlgaro por um dos flancos. E numa ação conjugada, os
bizantinos venceram as forças búlgaras; mas não tiveram a oportunidade de
prender Samuel que escapou ileso. Finlay afirma neste ponto o seguinte:
"O ato de vingança de Basílio II foi terrível. Sua desumanidade
amedrontadora forçou a História a despresar sua conduta e a quase enterrar
no esquecimento os relatos de suas conquistas militares. Nesta ocasião,
ordenou que os olhos de todos os seus prisioneiros" - 15.000 segundo o
próprio Finlay - "fossem arrancados" ("taken out", na versão inglesa) "deixando
um só olho para o lider de cada cem, e nesta condição enviou os desgraçados
cativos para procurar seu rei ou para perecer no meio da jornada. Quando
chegaram a Achrida, um boato de que os prisioneiros haviam sido libertados
levou Samuel a sair ao seu encontro. Quando tomou conhecimento da
extensão da tragédia toda, caiu desmaiado ao chão, tomado de excessiva ira e
dor, e faleceu dois dias depois" ("History of the Byzantine Empire from DCCXVI
to MLVII", de Finlay).
- *Constantino VIII: "A violência dos fracos e dos poltrões"*
A morte de Basílio II, que não tinha filhos, levou ao trono o seu irmão que era
"co-imperador" desde seu nascimento, Constantino VIII (960 a 1028). Era um
homem frívolo ao extremo, muito forte e de crueldade renomada. Segundo
Bréhier, tinha "a violência dos fracos e dos poltrões".
Acolhia com facilidade qualquer tipo de calúnia, sem o mínimo discernimento
e "punia faltas veniais com a ablação dos olhos" ("Vie et Mort de Byzance", de
Bréhier) .
Entre as mais lamentáveis vítimas desse imperador os historiadores
destacam o nobre Constantino Boutzès, cujo pai havia sido detentor do mais
elevado dos títulos existentes fora da família imperial: o de "magister". O
imperador, que o odiava de longa data porque ele havia por diversas vezes
denunciado seus desmandos e atos indignos a Basílio II, apressou-se em
mandar vasar seus olhos.
Embora não fosse considerado à época um tirano cruel, ele fazia vazar os
olhos de pessoas importantes das quais suspeitava, deixando-as logo após em
liberdade.
Sobre Constantino VIII e as penas de vazamento de olhos por ele aplicadas,
Zonaras, cronista bizantino do século XII, afirma:
"Ele tinha verdadeira predileção por esse tipo de suplício que imobiliza a
vítima e a torna incapacitada, sem a fazer perecer. Ele utilizou continuamente
durante seu reinado esse terrível suplício para reduzir a nada uma multidão de
homens eminentes. Dava-se a isso, em Constantinopla, um nome repleto de
dolorosa ironia: a divina clemência do imperador" (Apud Schlumberger).
Diversos são os historiadores que relatam fatos indicativos do uso e do
abuso do poder por parte de Constantino VIII. O caso mais flagrante e que
provocou uma mudança de rumo na História do Império Romano do Leste,
relacionou-se à sua sucessão.
Vejamos o que aconteceu: Constantino VIII tinha três filhas e nenhum
herdeiro do sexo masculino; a mais velha das princesas ingressara num
convento e as duas outras - Teodora e Zoé já com seus cinqüenta anos de
idade, não haviam casado. Em 1028, nos primeiros dias de novembro, já em
seu leito de morte após três anos de lamentável reinado, resolveu casar
urgentemente pelo menos uma das filhas, podendo dessa forma passar
seguramente o trono a ela e a seu príncipe consorte.
Para assegurar um casamento condigno, convocou ao palácio o candidato
mais indicado pelos eunucos e por alguns nobres de seu círculo mais próximo:
Romano Argiro. Colocado aos pés do leito do imperador moribundo, tendo ao
lado sua esposa, foi "intimado a se divorciar dela e a casar-se com uma das
princesas, ou teria os olhos vazados. Tendo Teodora se recusado ao
casamento, Romano Argiro casou-se com Zoe no dia 8 de novembro, três dias
apenas antes da morte de Constantino VIII. Muito embora os dois cônjuges
fossem parentes, o patriarca de Constantinopla, Alexius, relevou a dificuldade
no interesse do Estado" ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier).
Romano III, Argiro, foi o primeiro dos três maridos de Zoé.
- *Miguel V: imperador bizantino por apenas 132 dias*
A imperatriz Zoé é lembrada na história bizantina tanto por sua vaidade
quanto por suas aventuras amorosas. Mas ela é também lembrada pelas
diversas tragédias acontecidas durante seus 20 anos de imperatriz, tragédias
que aconteceram devido aos seus casamentos.
Romano Argiro, seu primeiro marido, por exemplo, que passou para a
História como um imperador muito voltado aos interesses do Império,
esquecendo as atenções que poderia dar à sua imperatriz que ainda era uma
mulher bonita, bem conservada e saudável, teve sua morte por ela
encomendada no ano de 1034, depois de ocupar o trono por seis anos. O
motivo de Zoé: estava profundamente apaixonada por um novo amante seu e
queria transformá-lo em imperador. Morto Romano, a imperatriz casou-se
imediatamente, subindo ao trono Miguel IV. No entanto, o que logo a imperatriz
descobriu foi que seu amado era doente e sofria de ataques epiléticos cada vez
mais constantes. Tanto isso é real que logo se desinteressou da imperatriz e
retirou-se a um mosteiro longínquo. Antes disso, porém, havia convencido Zoé
a adotar um sobrinho seu como herdeiro do trono, o que a imperatriz fez com
poucas hesitações face à paixão que a consumia.
Em fins de 1041 o imperador foi substituído pelo herdeiro que assumiu o
cargo com o nome de Miguel V. Para este jovem imperador leviano, hipócrita,
bajulador e sem caráter, que reinou por pouco mais de 4 meses, a glória
terminou numa negra tragédia pessoal.
Miguel V irradiava uma antipatia tão forte ao seu redor que logo se tornou
intolerável para a imperatriz e para a corte toda. Percebendo o perigo que
corria, Miguel procurou bajular e agradar em público a imperatriz. Em tudo
Miguel V procedia de acordo com orientações recebidas de um tio seu,
Constantino, que recebera o título de "nobilíssimo".
No dia 18 de abril de 1042, entretanto, as intenções de Miguel V e de seu tio
confidente vieram à tona: Zoé foi presa e internada num convento. Antes,
porém, foi vítima de supremo ultraje, pois teve seus vistosos e bem cuidados
cabelos loiros cortados por ordem do imperador.
No dia seguinte a esses acontecimentos a revolta popular e das forças
armadas estava montada e o palácio completamente cercado. Teodora, irmã
da imperatriz destronada, foi trazida às pressas de volta a Constantinopla e
coroada como "basilissa" na igreja de Santa Sofia. No dia 21 de abril Miguel V
estava deposto.
Mas sua história não termina aí, pois ele e Constantino conseguiram fugir e
procurar a segurança de um mosteiro. Lá foram localizados. "Miguel e
Constantino fugiram por mar para o mosteiro de Stoudios onde, por ordem de
Teodora, vazaram seus olhos e internaram-nos cada um num mosteiro
diferente ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier) .
Em julho de 1042 Zoé casava-se com Constantino Monômaco.
- *Constantino IX, Monômaco: limitações físicas muito sérias*
Levado ao trono bizantino graças à sua boa estrela, Constantino Monômaco
(980 a 1054) iniciou a parte mais conhecida de sua vida após o casamento com
Zoé, ele com 62 e ela com 64 anos de idade. Transformou-se dessa forma em
seu terceiro marido e príncipe consorte, com o titulo de Constantino IX.
Constantino era um homem especial, segundo os historiadores. Ele é assim
descrito logo ao início de seu governo: "Seu rosto era encantador: tinha a tez
clara, traços finos, um sorriso delicado, uma irradiação de graça espalhava-se
sobre toda a sua figura. Admiravelmente bem proporcionado, tinha um talhe
elegante e bem dosado, mãos finas e bonitas" ("Choses et Gens de Byzance",
de Diehl).
Estamos, no entanto, falando de um imperador que viveu muito
intensamente uma seriíssima deficiência física, sofrendo muito com os
problemas decorrentes de um mal que os historiadores identificaram como
gota, mas que poderá ter sido artrite reumatóide ou artrite deformante.
Para que tenhamos uma idéia viva das limitações físicas que atingiram o
imperador bizantino é importante que analisemos os escritos de um
contemporâneo seu: Miguel Psellos, autor de 125 trabalhos escritos, professor
de filosofia, escritor renomado e Secretário de Estado de Constantino IX.
Em sua notável obra "Chronographie" ele nos refere, na línguagem própria
da época e com os limitados conhecimentos de medicina de então, o seguinte:
"Os elementos essenciais desagregaram-se e embaralharam-se e, tanto nos
pés e no âmago das juntas, quanto nas mãos, afluíam para dali inundar os
músculos e os ossos da própria região lombar"...
O mal não atingiu de imediato o corpo todo. Seus pés foram os atingidos em
primeiro lugar, impedindo-o imediatamente de andar. Movimentava-se apenas
com a ajuda dos outros, sempre carregado de um lado para o outro, no palácio,
como um fardo. Psellos entra em pormenores preciosos quanto à vida diária do
imperador e sua deficiência física tão séria, pois privava muito com ele.
"...o fluxo de imediato atingiu suas mãos e depois seus ombros, e acabou
atingindo o corpo todo. A partir daí, todo membro inundado por esse fluxo
terrível perdia sua energia e, com as fibras e ligamentos embaralhados, os
elementos da harmonia deslocaram-se, resultando em desequilíbrio e
enfraquecimento. E eu vi seus dedos, tão bem feitos, negar sua própria forma
e, retorcidos e desalinhados, tornar-se incapazes de segurar não importa o
que; seus pés ficaram totalmente inchados e dobrados sobre si mesmos; seus
joelhos, também inchados, formavam uma saliência como um cotovelo, a tal
ponto que não eram capazes de assegurar sua marcha; e, impossibilitado de
manter-se em pé por longo tempo, passava a maior parte do tempo no leito e
quando desejava dar audiências, fazia-se preparar e arrumar para tal fim"
("Chronographie", de Psellos).
No entanto, o povo tinha o direito e ansiava mesmo pelas cerimônias e
procissões imperiais, tão repletas de cores e de fausto. Constantino reconhecia
isso e participava, como era seu dever; mas seu sofrimento aumentava muito
nessas ocasiões.Algumas providências eram tomadas para reduzir a um
mínimo as dores do imperador.
"Uma certa arte, a dos cavaleiros, o auxiliava e mantinha sobre a sela;
depois, uma vez a cavalo, respirava com dificuldade e as rédeas eram
supérfluas; levado por sua montaria, escudeiros vigorosos e de boa estatura
sustentavam-no de ambos os lados e assim, apoiando-o daqui e dali,
seguravam-no como um fardo e transportavam-no para onde deveria ser
levado. Mas ele, mesmo no meio de tantos males, não deixava de
lado suas características básicas; muito pelo contrário, ele compunha com
elegância sua aparência; depois movia-se e mudava de lugar sozinho, ao ponto
de aqueles que o viam não ficarem muito seguros de que vivia entravado pelas
dores e minado pela doença" (Chronographie", de Psellos) .
Que outras providências eram tomadas nessas procissões solenes para
reduzir a um mínimo suas dores e dificuldades? Cobriam todo o trajeto com
tapetes a fim de evitar que seu cavalo escorregasse nas lajotas das avenidas
entre o palácio imperial e a basílica de Santa Sofia. Em sua vida de todo o dia
e dentro do palácio, para se movimentar de ambiente para ambiente ele era
carregado por camareiros bastante fortes sem maiores dificuldades, a menos
que houvesse a incidência de um forte ciclo de dores. Para repousar à noite
com um mínimo de desconforto, a dificuldade crescia, pois qualquer posição
lhe era incomoda e diante disso seus camareiros ajudavam-no a procurar
posições, viravam-no com cuidado no leito e com isso conseguiam acertar
almofadas e adaptações não especificadas mas citadas na obra de Psellos,
para tornar o sono possível.
O grande cronista bizantino não faz qualquer comentário quanto à
intervenção de médicos ou ao uso de medicamentos, muito embora seja certo
que tudo era feito para diminuir as dificuldades do imperador. Com o passar
dos anos Constantino IX sentia dores até na língua ao falar, sendo-lhe um
suplício mudar de lugar. Assim, ele acabou paralisado num lugar só
praticamente.
Psellos informa também que Constantino, apesar da verdadeira batalha com
dores e problemas delas decorrentes, jamais deixou escapar uma palavra
contra Deus. E se alguém vinha se queixar dos próprios sofrimentos, ele ficava
aborrecido e mandava a pessoa se retirar, às vezes até usando de palavras
rudes.
No mais recôndito de seu ser Constantino IX aceitava suas dores e a
limitação física como uma punição pelos seus pecados passados e como freio
de sua natureza. "Como meus instintos não cedem à razão, capitulam diante
dos sofrimentos do corpo; meu corpo sofre, mas os impulsos desordenados de
minha alma são assim controlados", afirmava ele (Apud Psellos).
- *Romano IV, Diógenes: presa de um soldado com deficiências*
Este imperador bizantino permaneceu na liderança do Império de 1067 até
1071. Logo que se casou com a imperatriz viúva, Eudóxia, no ano de 1067 e
mal investido da autoridade e da dignidade de imperador, Romano, que era um
general muito competente, partiu no comando de um grande exército para
combater sarracenos e
turcos Seljuk, em três diferentes campanhas. Na última delas, levou suas
tropas contra o sultão turco Alp Arslan, com ele defrontando-se na grande
batalha de Mantzikert.
Muito embora tenha lutado com extrema valentia e competência, Romano IV
foi feito prisioneiro e levado à presença de Alp Arslan, com o qual acabou
assinando um tratado de paz que os bizantinos consideraram vergonhoso.
Nesse evento, todavia, queremos chamar a atenção para uma pequena
informação do historiador Gibbon sobre as circunstâncias de seu
aprisionamento. Afirma ele o seguinte:
"Enquanto a esperança sobrevivia, Romano tentava reagrupar e salvar o
restante de seu exército. Quando o centro, a estação imperial, ficou sem
proteção de todos os lados e cercado pelos turcos vitoriosos, ele, ainda com
desesperada coragem, manteve a luta até o final do dia, à testa dos bravos
homens que haviam aderido ao seu estandarte. Eles caíram ao seu redor; seu
cavalo foi morto; o imperador foi ferido. Apesar disso ele se manteve só e
intrépido até que foi dominado e imobilizado pela força das multidões. A glória
por essa ilustre presa foi disputada por um escravo e por um soldado: um
escravo que o havia visto no trono de Constantinopla e um soldado cuja
extrema deformidade havia sido relevada face à necessidade de serviços de
sinalização" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de L'Empire Romain", de
Gibbon).
Como podemos muito bem notar por essa informação, às vezes pessoas
deficientes eram consideradas aproveitáveis nos exércitos em funções que
pouco ou nada demandavam quanto ao uso de armas. E no caso do
aprisionamento de Romano IV, esse soldado com sérias deformidades físicas
teve um destacado papel a fim de possibilitar que seu importante prisioneiro
chegasse ao dia seguinte com vida. Assinale-se que havia prêmios altamente
compensadores por prisioneiros resgatáveis - e um imperador era um caso
altamente excepcional que levava não só a resgates a peso de ouro, como a
tratados diversos. O próprio historiador Gibbon afirma que, já despojado de
suas armas, das suas jóias e do seu manto de púrpura, Romano IV passou
uma noite muito perigosa para sua vida no devastado campo de batalha,
cercado por uma multidão quase sem controle que saqueava tudo o que podia.
Voltando a Constantinopla, Romano IV foi destronado, preso e teve seus
olhos vazados, por ordem do césar João Dukas; foi internado num mosteiro,
em Proti, no mar de Mármara, ao sul de Constantinopla.
- *Enrico Dandolo: "doge" veneziano cego*
Enrico nasceu perto de Veneza no ano de 1105 e faleceu com exatamente
100 anos de idade na grande capital do mundo oriental daquele século:
Constantinopla. Sempre muito hábil e corajoso em suas atividades comerciais
e guerreiras, Dandolo foi um ótimo político e um hábil negociador, excelente
orador e dono de um soberbo nome de família romana das mais antigas
tradições que o tornaram muito influente na República de Veneza.
Foram essas condições básicas e as circunstâncias relacionadas a negócios
de Estado que o levaram a Constantinopla, em missão oficial e na qualidade de
enviado das autoridades da poderosa República de Veneza. O objetivo era
resolver uma pendência muito séria no ano de 1171 quando Dandolo já estava
com 66 anos de idade: Manuel Comnenus (1143 a 1180), imperador bizantino,
havia aprisionado navios e tripulações de Veneza e recusava-se a devolvê-los,
desafiando acintosamente os direitos reclamados e mesmo o cumprimento dos
tratados assinados entre o Império Bizantino e a República Veneziana, que era
muito importante àquela época.
Dandolo foi incisivo na corte bizantina e expressou com extrema clareza e
em termos convincentes a indignação sentida pelos venezianos face às
atitudes do imperador quanto aos navios e suas tripulações.
O que o velho embaixador certamente não havia imaginado era o tipo de
reação do imperador bizantino que, enfurecido ao extremo e ofendido com as
argumentações fortes de Dandolo, apelou para a tortura refinada e cruel, típica
de sua corte: mandou colocar próximo aos seus olhos vasos de metal
incandecente que acabaram comprometendo seriamente sua visão. Dizem os
historiadores que Dandolo ficou completamente cego.
De volta a Veneza foi reconhecido como fiel intérprete da opinião do governo
e do povo veneziano e, apesar de cego, foi eleito "doge" - cargo supremo
daquela república - alguns anos após o incidente na corte de Manuel
Comnenus.
Dandolo foi extremamente importante nos eventos que transformaram por
completo a História Bizantina e a História de Veneza. Esses eventos
envolveram a Dinastia Angelus e levaram à introdução de algo totalmente novo
na história tumultuada de Constantinopla: os imperadores latinos. Levaram
também à partilha do grande
Império entre os nobres cruzados e a República de Veneza, como veremos a
seguir.
- *Isaac II, Angelus: olhos vazados, volta a ser imperador*
Durante a primeira parte do reinado do questionado imperador Isaac II,
Angelus, que vai de 1185 a 1195, um parente seu, Constantino Angelus,
proclamou-se imperador bizantino com o apoio de suas tropas. Foi vencido e
destronado pelas forças de Isaac II, tendo sido julgado de acordo com as leis.
A sentença: vazamento de seus olhos. No entanto, um outro parente - e desta
vez seu próprio irmão Alexius – liderou outra revolta no ano de 1195,
procurando afastar o incompetente e alienado imperador. Desta vez Isaac II foi
preso e teve seus olhos vazados por ordem do irmão a fim de eliminar suas
pretensões de volta ao trono do Império Bizantino.
Alexius assumiu o Império com o nome de Alexius III e imperou de 1195 até
1203, mantendo seu irmão na prisão ao lado do filho e pretenso herdeiro do
imperador destronado. Com o passar dos anos, porém, o novo imperador
soltou o sobrinho, que tinha também o nome de Alexius, fazendo-o participar
de campanhas militares ao seu lado. O jovem príncipe mantinha-se
inconformado e fazia planos para voltar a Constantinopla e conquistar o trono
que por herança teria sido seu. E na primeira oportunidade fugiu e foi buscar a
colaboração de nobres europeus que em Veneza procuravam organizar uma
cruzada à Terra Santa e ao Egito, sob a forte liderança do "doge" cego,
Dandolo.
Com o aval do papa Inocêncio III conseguiu convencer o grupo de nobres a
viajar para Constantinopla a fim de derrubar Alexius III e de garantir sua
instalação no trono. Havia condições muito pesadas para tanto: pagar o aluguel
dos barcos usados para todo o transporte dos cruzados e seus exércitos,
ajudar financeiramente na organização de uma cruzada ao Egito e submeter a
Igreja Ortodoxa a Roma. E a empreitada foi aceita na presunção líquida e certa
de que Isaac II, cego como estava, não poderia mais ocupar o trono bizantino e
de que Alexius seria, como de fato era, seu herdeiro.
No entanto, quando Alexius III foi afastado do trono, enquanto os garbosos
cruzados avançavam deslumbrados pelas avenidas de Constantinopla, os
habitantes de origem grega libertaram Isaac II e colocaram-no no trono como
imperador de fato.
Quando o jovem Alexius e os cruzados chegaram ao palácio imperial tiveram
a surpresa do fato consumado: o trono estava ocupado pelo velho imperador
cego.
"O choque foi muito grande para Alexius e para os cruzados, pois de acordo
com a tradição bizantina, a cegueira incapacitava um homem para ser
imperador" ("Cambridge Medieval History", de Hussey).
Mas foi um impasse curto, pois pai e filho, após o reencontro, conversaram
muito e Isaac II acabou aceitando as condições negociadas pelo filho, embora
deixando claro que duvidava de sua viabilidade. E o velho imperador cego
estava certo. Ficou logo claro que não seria possível pagar os cruzados e
cumprir o prometido. Foram ambos afastados do trono, inaugurando-se então a
fase de investidura dos imperadores latinos, sob a custódia dos cruzados Os
imperadores do ocidente europeu.
- *Outros eventos que levaram a deficiências físicas e sensoriais*
Muitos outros eventos aconteceram no milênio de existência do Império
Bizantino que levaram nobres e imperadores a terem seus olhos vazados ou
corpos mutilados. Dentre eles cumpre destacar:
- Filípico - cognominado de Bardane - foi imperador entre 711 e 713, sendo
originário da Armênia. Foi infeliz em seu governo por ter que lutar contra
búlgaros e árabes - inimigos externos além de enfrentar internamente os
problemas com os ortodoxos e com os que pressionavam em favor da Igreja
vinculada a Roma. Deposto finalmente, teve seus olhos vazados.
- Heracleonas - imperador de fevereiro a setembro de 641. Ao final do
governo de seu pai, imperador Heraclius, obteve o título de "augusto", por
influência direta de sua mãe. Dessa forma, foi proclamado imperador ao lado
de seu irmão, Constantino III. A morte prematura deste levou a corte a
suspeitar de Heracleonas e de sua mãe. Foi logo após destronado e preso;
segundo os historiadores foram mutilados e banidos para a ilha de Rhodes.
- Bryenne, general bizantino - Nicéforo Bryenne, general bizantino do século
XI, era originário de importante família. Foi nomeado duque da Bulgária em
1075, 60 anos após a derrocada provocada por Basílio II. No ano de 1077
proclamou-se imperador da Bulgária mas foi derrotado por Nicéforo Botoniate
em 1078, preso e, por ordem do imperador Miguel VI, teve seus olhos vazados.
- Andrônico I - Andrônico Comnenus liderou revolta contra o imperador
Alexius II, Comnenus, destronando-o. Enquanto se manteve precariamente no
poder mandou cegar o "protosebaste", cujo titular tinha importância
correspondente à de um primeiro ministro. Entretanto, suas lutas acabaram por
garanti-lo no trono de 1183 até 1185. Foi um imperador cruel. "Multidões
reuniam-se para ver o desfile ou a imolação de alguns traidores ou
criminosos horrivelmente mutilados; e as ferozes execuções ordenadas por
Andrônico I foram o prelúdio natural para seu terrível fim, que, todavia, ele
suportou com uma valentia muito própria" ("Cambridge Medieval History", de
Hussey). Andrônico I morreu mutilado.
- Teodoro Dukas - Foi imperador da província de Tessalônica e era irmão de
Miguel Angelus Comnenus. Fez algumas tentativas para conquistar
Constantinopla e para tanto procurou atacar a cidade pelo norte. No entanto,
não quis "dar as costas" à Bulgária, considerada um perigo para seus
exércitos. Com isso, provocou um sério atrito com antigo amigo seu, o czar
búlgaro João Asen. Foi por ele derrotado na batalha de Klokotnika, em 1230,
tendo lá sido preso. E, por ordem do "amigo" czar, teve seus olhos vazados.
Teodoro Dukas, no entanto, era muito dinâmico e sagaz. Acabou
reconquistando a amizade de João Asen e foi posto em liberdade. Voltou
incontinenti à Tessalônica e viveu uma vida de contatos políticos muito
intensos, conseguindo inclusive lançar o chamado Império Grego da
Tessalônica em violentas lutas, influindo decisivamente nas tomadas de
decisão de seu irmão Manuel e de seus dois filhos, João e Demétrio.
Para finalizar os relatos de eventos históricos ou de fatos relacionados a
personalidades que marcaram o Império Bizantino, resta-nos falar de algumas
figuras históricas que viveram nos séculos XIII e XIV: destaquemos, para tanto,
os nomes famosos de Miguel Paleólogus e de João V, Paleólogus.
- *Ato friamente planejado instala a Dinastia dos Paleólogus*
Um ato muito frio e cruel nos é relatado por diversos historiadores e em
especial por Gibbon, em sua obra anteriormente citada. Esse proceder
desumano ocorreu no início do século XIII.
O jovem príncipe João Lascáris (1250 a 1300 aproximadamente) que passou
para a História Bizantina como João IV, era filho de Teodoro II, falecido em
1259. Com apenas 8 anos de idade o herdeiro do trono bizantino teve como
tutor o próprio patriarca de Constantinopla, Arsenius Autorianus. No entanto,
graças a tramas muito bem urdidas e contando com o total apoio da grande
família dos Paleólogus, Miguel foi apontado como tutor do jovem príncipe,
tendo então recebido o titulo honorífico de "déspota" e algum tempo após o de
"imperador-adjunto". Para efeitos desse segundo titulo, ele foi coroado na
cidade de Nicéa em 1260.
No ano seguinte, estando João IV, Lascáris, com apenas 11 anos de idade,
Miguel Paleólogus resolveu destronar o príncipe e com isso afastar a dinastia
dos Lascáris. Para tanto mandou cegá-lo.
"A perda da visão incapacitou o jovem príncipe para as atividades do mundo:
em vez da violência brutal de arrancar os olhos, o nervo ótico foi destruído com
o intenso brilho de um vaso incandescente, e João Lascáris foi levado para um
castelo distante, onde passou muitos anos na privacidade e na obscuridade"
("Histoire de la Décadence et de la Chute de l'Empire Romain", de Gibbon).
Arsenius Autorianus, ex-tutor de João Lascáris, patriarca da Igreja Ortodoxa,
excomungou Miguel Paleólogus por esse ato - o que de fato provocava uma
situação especial, pois o imperador era considerado o representante de Cristo.
No entanto, após muita insistência do imperador e da corte, não ocorrendo a
revogação do ato punitivo, o patriarca foi trocado e a excomunhão revogada.
Além de cegar João IV, Miguel VIII, Paleólogus, mandou cegar vários nobres
recalcitrantes e inconformados com a situação.
"Em 1261 Miguel Paleólogus, querendo punir seu secretário Manuel
Holóbolus por ter-se apiedado da sorte do infeliz João Lascáris, fez amputar
seu nariz e seus lábios, após ter ele os olhos vazados" ("Les Institutions de
l'Empire Byzantin", de Bréhier).
- *O dilema de João V, Paleólogus (1319 a 1389)*
Durante o governo de João V, Paleólogus, sob a quase total custódia do
sultão otomano Mourad I, o imperador bizantino procurou manter com os turcos
um relacionamento cordial. Praticamente todo o território do Império Bizantino
já havia sido tomado pelos turcos, à exceção de Constantinopla fortificada, que
se mantinha intocada devido a um certo receio que os tão aguerridos otomanos
tinham dos cruzados e das reações da Europa Cristã, caso a cidadela fosse
tomada e saqueada.
Enquanto João V mantinha sua capital na inexpugnável Constantinopla, o
sultão turco colocava a sua na cidade de Adrianopla, próximo às fronteiras da
Bulgária e da Grécia e a pouca distância da capital bizantina.
Havia visitas cordiais à corte do sultão e as famílias ficaram se conhecendo
bem. Tanto isso é verdade que Andrônico, o filho mais velho de João V, fez
uma boa amizade com Saoudj, filho mais velho e eventual sucessor de Mourad
I. Os dois jovens pretendentes aos respectivos tronos começaram a conspirar
contra seus pais logo após Andrônico ter sabido que João V o havia afastado
da sucessão em beneficio de seu irmão Manuel.
Mourad I descobriu a conspiração dos dois príncipes e tomou uma decisão
drástica contra a traição de seu filho primogênito: mandou vazar seus olhos, o
que ocorreu em 1376. Mas o rigoroso sultão não deixou o assunto morrer aí,
pois forçou o imperador bizantino a se manifestar, confrontando-o com o
aspecto "traição".
"O otomano ameaçou seu vassalo com o tratamento de um cúmplice e de
um inimigo, a menos que ele infligisse a mesma punição a seu filho. Paleólogus
tremeu e obedeceu, e uma precaução cruel envolveu na mesma sentença a
infância e a inocência de João, filho do criminoso. Mas a operação foi feita tão
brandamente ou tão imperitamente que um manteve a visão de um olho e o
outro foi vítima apenas do mal do estrabismo" ("Histoire de la Décadence et de
la Chute de l'Empire Romain", de Gibbon).
Os dois príncipes conspiradores foram presos na famosa torre de Anema e a
sucessão aos dois poderes ficou garantida para Manuel, do lado bizantino, e
para Bayazet, do lado otomano. Dois anos após a aplicação da pena, os dois
mandatários foram depostos e encerrados na mesma torre da qual os dois
príncipes foram retirados para ocupar os seus respectivos tronos (Apud
Gibbon).
3. As Pessoas Deficientes na Idade Média
Dos anos 500 até o final do século X, mergulhada num generalizado estado
de ignorância, uma leve e quase imperceptível chama de cultura clássica era
conservada na Europa e em muitos pontos do Oriente Médio. Os povos
invasores e desmanteladores do antes inexpugnável Império Romano
mantinham-se em franca e obscura atitude contrária aos ensinamentos
deixados pelos grandes pensadores gregos e romanos, enquanto que no
Oriente Médio, numa situação bem diversa daquela encontradiça na Europa, os
povos árabes, igualmente invasores e expansionistas, procuravam desvendar
todo o mistério de conteúdo da propalada sabedoria grega e dos seus mais
renomados filósofos e cientistas.
E no meio do caos do destroçado Império Romano, a Igreja Cristã
demonstrava sua pujança e sua rigidez: ela passou a ser quase que o único
baluarte capaz de manter a cultura clássica que ela preservava com segurança
nas bibliotecas dos mosteiros e dentro de seus fortes muros organizacionais.
- *A criação de hospitais e abrigos para pobres*
Apesar de todas as concepções místicas, mágicas e muito misteriosas, de
muito baixo padrão, que foram a tônica da cultura das populações menos
privilegiadas e mais empobrecidas durante muitos séculos da Idade Média, em
muitas partes da Europa e do Oriente Médio, os casos de doenças e de
deformações das mais diversas naturezas ou causas passaram aos poucos a
receber mais atenção. Isto é verdadeiro não só quanto à
Europa Cristã mas também a todo o leste islâmico. Um dos sintomas dessa
atenção mais humanizada foi a continua criação de hospitais.
No leste da Europa, por exemplo, hospitais e abrigos para doentes e
pessoas portadoras de deficiências mais pobres eram criados por vezes por
senhores feudais ou por governantes de aglomerados urbanos mais fortes ou
de burgos mais significativos, sempre ajudados pela cooperação de esforços
provenientes da Igreja. Além disso tivemos no século VII a criação de uma
instituição para cegos perto de Pontlieu, na França, por iniciativa do bispo de
Le Mans, São Bertrão. Foi um projeto diferente daqueles usualmente
encontrados na mesma época.
- *Um santo cego na história da Bretanha do século VI*
A história de Santo Herveu, o monge cego, é típica do início da Idade Média,
pois está repleta de poesia e de crendices. Segundo ela, Herveu nasceu no
ano 520 na Bretanha continental. Seu pai foi o bardo (cantor e poeta) Hoarvian
e sua mãe, uma piedosa jovem que cantava os salmos com excelente voz,
Rivanone.
Dizem os poucos biógrafos desse pouco conhecido santo bretão que sua
jovem e inexperiente mãe, muito inquieta com os perigos do mundo, pediu a
Deus que seu filho nascesse cego. O pai, menos sonhador e muito mais
prático, ficou atemorizado com essa prece e repreendeu-a, dizendo:
"Ó mulher, não é cruel por parte de uma mãe pedir que seu filho seja privado
da luz da vida? Se ele deve nascer assim, todavia, peço de minha parte a Deus
todo poderoso, que essa criança já daqui desse mundo tenha visão dos
esplendores do céu. E para que minha prece seja atendida, renuncio desde
agora a todas as vaidades deste mundo para servir apenas a Deus pelo resto
de meus dias".
E o pai acabou partindo de fato, sem ter chegado a ver o filho que, de acordo
com orações de sua mãe, nasceu cego. O nome Herveu, recebido no batismo,
significa "amargo". Bem mais tarde a mãe também deixou o filho com um
monge conhecido pelo nome de Arzian, passando o menino a viver confinado
no mosteiro.
Herveu aprendeu muito com a escola existente no mosteiro de Arzian,
incluindo em suas preferências também as ciências profanas, além de todos os
salmos que sua mãe - ele recordava muito bem - cantava com límpida voz. No
seu dia-a-dia o jovem Herveu movimentava-se com a ajuda de um guia
chamado Guiac'han.
Foi durante sua adolescência que deixou o mosteiro de Arzian e foi em
busca do retiro do eremita Urfold, num local próximo ao convento onde sua
mãe vivia confinada. Com a ajuda do eremita, Herveu acabou encontrando sua
mãe, muito debilitada pelos jejuns e pelas penitências.
Transformou-se logo em professor, apesar da cegueira. No entanto, por
humildade afastou-se e começou a peregrinar de mosteiro a mosteiro, seguido
por grupos de alunos seus. Nessa espécie de peregrinação constante, o grupo
visitou o bispo de Houardon que quis ordenar Herveu sacerdote. Mas, devido à
sua cegueira e à sua humildade, não aceitou a ordenação. Recebeu finalmente
as chamadas "ordens menores" e o poder do exorcismo. Fundou um mosteiro
próprio pelo ano de 540, num local posteriormente conhecido como
Lanhouarneau.
Apesar de não ser sacerdote, recebeu o título de abade de sua congregação
e nessa qualidade foi convocado para o concílio que ia ser realizado em
Menez-Bré, em 545. Conta-se que os participantes ficaram o dia todo
esperando por ele para iniciar o conclave, o que irritou sobremaneira um dos
bispos presentes.
- "O que? ! ... Foi para esperar esse ceguinho que perdemos um dia todo?",
explodiu o prelado. Sentiu-se uma indignação geral contra o bispo que,
castigado no próprio ato, caiu cego ao chão. Herveu aproximou-se e tomando
de um pouco de água que começara a brotar de seu bordão, umedeceu os
olhos da vítima que logo a seguir voltou a enxergar (Apud Le Berre).
Suas relíquias ainda hoje existentes no mosteiro de Lanhouarneau (distrito
de Finistère, na Bretanha, a oeste da França, entre a Baía de Biscaia e o Canal
da Mancha) são sempre usadas para a benção das águas da Fonte de Santo
Herveu, em procissão solene realizada no dia de sua festa. Dizem que essas
águas têm virtudes um tanto misteriosas para a cura de males dos olhos nelas
lavados. Seus restos mortais foram transferidos para a catedral de Nantes em
1002.
Santo Herveu é considerado o patrono dos cantores populares e é festejado
em 17 de junho.
- *Santo Egídio, padroeiro dos deficientes*
Santo Egídio (Gilles, em francês e Aegidius, em latim) é patrono da
pequenina cidade de Saint Gilles, ao sul da França. Fica situada no
Departamento de Gard, as margens do canal do rio Rhone-à-Sète. Existe na
vila uma antiga abadia que chegou a ser expressamente protegida por Carlos
Magno e que hoje guarda as relíquias de seu santo padroeiro, que lá viveu no
século VI.
É ele considerado na França como um dos dez santos que mais ajudam à
população desamparada e sempre foi venerado na Europa como o padroeiro
dos mendigos, dos ferreiros e das pessoas com defeitos físicos.
Sua fama foi tão importante no passado que os peregrinos agradecidos
chegaram a contribuir para a melhoria da vila e da abadia. O famoso santo é
representado tendo ao seu lado uma flecha e uma corça. Segundo lendas do
século X Egidio era um jovem aristocrata de origem ateniense que, após ter
visitado o mosteiro de São Cesário de Arles, pelo ano 543, passou a viver
como eremita no meio do bosque. Foi ferido acidentalmente pelo rei Flavius
dos Godos quando este perseguia uma corça e ela procurara segurança aos
pés de Egídio. Arrependido com o engano, Flavius mandou imediatamente
construir uma abadia naquele bosque e nomeou Egídio seu abade.
Sua festa é celebrada no dia primeiro de setembro. Os restos mortais de
Santo Egídio, levados a Toulouse no século XVI, foram transladados para Saint
Gilles apenas em 1862.
- *Assistência aos pobres pela Igreja*
Os pobres, os doentes e os deficientes físicos e mentais foram objeto de
uma norma da Igreja Católica em pleno século VI, norma essa que pretendia
assisti-los e ao mesmo tempo circunscrever seus movimentos a um
determinado território.
E foi o concílio de Tours, realizado nos anos 566 e 567 que decretou pelo
seu cânone quinto o seguinte:
“Cada cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os
habitantes também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os mendigos
vagabundos de correr as cidades e as províncias” (Apud Guérin).
É também relevante saber que o concílio de Lyon (583) aprovou, em seu
último cânone, a seguinte medida relacionada aos hansenianos:
“Os leprosos de cada cidade e de seu território serão alimentados e
abrigados às expensas da Igreja, aos cuidados do bispo, a fim de lhes impedir
a liberdade para serem vagabundos em outras cidades” (Apud Guérin).
- *A mutilação como castigo no século VII*
Desde épocas imemoriais, em quase todas as culturas espalhadas pela
Europa e por todo o resto do mundo conhecido até o século VII d.C.,
praticamente todos tinham o direito - ou viam-se investidos desse direito - de
punir severamente seus criados, seus escravos ou empregados, mesmo que
fosse, conforme as circunstâncias, pela mutilação de parte de seus corpos:
orelhas, nariz, dedos, membro sexual, etc.
Durante os primeiros séculos da Idade Média essa punição tanto podia ser
aplicada diretamente pelo senhor como, de um modo indireto, por meio de
juízes. A gravidade da situação poderá ser bem retratada por uma decisão
tomada num dos concílios particulares da Igreja. Foi o concílio de Mérida, em
Portugal, no ano 666 que procurou cercear esse bárbaro costume, pelo menos
com relação aos bispos e sacerdotes, já um tanto distanciados dos preceitos
da caridade. O cânone décimo quinto, aprovado nesse concílio, “proíbe aos
bispos e aos sacerdotes maltratar os empregados da igreja pela mutilação e
manda que, se forem eles considerados culpados de qualquer crime, que
sejam entregues aos juízes seculares, pelo menos para os bispos moderarem
a pena à qual serão condenados, e não deixarem que sejam marcados com
ignomínia” (Apud Guérin).
- *O milagre de fazer um mudo falar*
São Vedo, cognominado “o Venerável”, tem sido considerado nos meios
católicos ingleses não só como um homem santo, mas também como um sábio
e grande historiador. Nasceu em 675, vindo a falecer em 735. Escreveu muitas
obras dentre as quais não podemos deixar de chamar a atenção para a História
Eclesiástica da Nação Inglesa a qual cobre período que vai desde os
primórdios da Igreja Cristã na Inglaterra até 731.
Consta nessa obra que em 685 um bispo católico chamado João, tido como
santo e miraculoso, ensinou um jovem que nunca havia pronunciado palavra
alguma a falar. Apesar do Santo historiador inglês citar o fato como um milagre,
não causaria impacto maior hoje em dia ou mesmo há dois ou três séculos
atrás.
Segundo São Bedo, o bispo João pediu ao jovem para mostrar sua língua e
soltar o som já, o que foi feito aparentemente sem maiores dificuldades. A partir
desse ponto, pronunciando uma a uma as várias letras do alfabeto, o bispo
orientou o jovem a repeti-las. Daí por diante o prelado começou a inserir
sílabas, palavras curtas mesmo frases simples. O moço obteve pleno êxito e
não parou mais de falar.
No campo da comunicação dos deficientes da palavra falada esse é um fato
totalmente isolado ocorrido no início da Idade Média, uma vez que só
ouviremos falar sobre o ensino de surdos e de surdos-mudos pelo final do
século XV (Apud Muller).
- *Amputações como penalidade por crimes cometidos*
Embora não disponhamos de dados muito precisos, existem evidências de
penas severas para crimes considerados graves durante toda a Idade Média,
em diversos países europeus. Na maioria dos casos o objetivo dessas penas -
principalmente as mutilatórias - não era matar o criminoso, mas deformá-lo,
sendo a mutilação um meio visual destinado a amedrontar outros criminosos.
Cuidavam os aplicadores das penas mutilatórias que os condenados não
morressem devido à hemorragia ou a eventuais complicações.
Como as vítimas dessas penalidades quase sempre se viam impedidas de
trabalhar, restava-lhes o recurso de esmolar, que de certa forma, como no
Império Bizantino, levava o povo cristão a ter oportunidade de fazer caridade...
Dentre os diversos crimes que podiam ter como pena a amputação das
mãos, por exemplo, um deles (bastante específico para determinado fato
ocorrido na História) sucedeu em Milão em 630, durante uma violenta peste.
De acordo com muitas acusações baseadas em observações e também em
crenças de natureza pseudo-científicas, a peste era espalhada por um certo
ungüento que era esfregado nas paredes das casas por indivíduos criminosos.
As autoridades e o povo deram caça aos mesmos, tendo todos eles sido
submetidos a torturas, amputações e mesmo à morte. Um dos castigos a eles
aplicados foi a amputação de uma das mãos, conforme nos é mostrado em
estampa existente no Welcome Medical Historical Museum, de Londres (Apud
Brothwell e Muller-Christenseln).
- *A evidência de dupla amputação: século VII*
Foi em 1956 que uma área desabitada na ilha de Tean (uma das Scilly, a
sudoeste da Inglaterra) mereceu toda a atenção dos cientistas do
Departamento de Arqueologia Pré-Histórica da Universidade de Edinbourgh. É
que lá haviam sido descobertos diversos túmulos - talvez do século VII d.C. - e
um dos esqueletos apresentava peculiaridades bem marcantes.
Eram os restos mortais de um homem de 40 a 50 anos presumíveis ao
morrer que, além de ter sido vítima de um processo artrítico sério, apresentava
algo bastante inusitado. Eis os dados que nos são repassados por dois
cientistas:
- O braço esquerdo apresenta sinais da amputação da mão a 10 mm acima
do punho. Com a sobrevida de mais de um ano, a extremidade áspera
correspondente ao ponto da mutilação ficou arredondada e quase lisa e uma
espécie de calosidade óssea uniu as duas pontas do rádio e do cúbito num
único osso. Há leves sinais de infecção, mas ao que parece não houve
dificuldades na fase de cicatrização sem inflamações.
- A perna direita apresenta mutilação do pé, tendo a amputação cortado 50
mm da tíbia e do perônio. Como no caso do braço esquerdo, o coto está
arredondado, com a união de ambos os ossos num só.
Segundo Broththwell e Moller-Christensen, acrescente-se a esses problemas
o fato de que vários anos antes o mesmo indivíduo havia fraturado a clavícula e
uma vértebra toráxica que, embora bem solidificadas, provocaram alguma
deformidade.
As mutilações indicadas pelos dois autores provavelmente não foram feitas
sem conhecimento de causa. Vejamos a sua opinião:
“Com certeza somente um ou dois anos antes de sua morte foi realizada a
amputação de sua mão esquerda a 10 mm acima do punho e do seu pé direito
aproximadamente a 50-60 mm acima da junta do tornozelo. Essas mutilações
não foram provavelmente feitas com uma serra ... mas foram o resultado de
uma remoção intencional por machado ou faca pesada e martelada com um
malho - métodos sabidamente empregados como punições na Inglaterra
durante a Idade Negra. (Médico-Historical Aspects of a Very Early Case of
Mutilation de Brothwell e Muer-Christensen).
- *Os hospitais criados pela Igreja na Europa*
No ocidente europeu hospitais continuaram sendo organizados graças à
iniciativa e à contínua ação de segmentos da Igreja Católica, tendo as ordens
monásticas dado uma relevante contribuição, pois a experiência dos religiosos
enclausurados em tratar seus irmãos feridos ou doentes, bem como os pobres
e desvalidos portadores de sérias limitações físicas, passou a ser um
verdadeiro modelo. Era já o resultado de uma experiência multissecular
desenvolvida por mosteiros espalhados pela Europa e pelo Oriente Médio,
além daqueles localizados na África.
No entanto, já no ano 845, o concílio de Meaux referiu-se ao que chamou de
“Hospitia Peregrinorum” (Abrigos dos Peregrinos) e de “Hospitia Scotorum”
(Abrigos dos Escoceses), queixando-se que eles haviam sido desviados de
seus propósitos originais de hospitalidade e pedindo sua reinstalação em
moldes diferentes, não só como casas destinadas à assistência aos peregrinos
ou a viajantes doentes, como também abrigos aos inválidos.
Duzentos anos antes desse concílio, considerando que era uma obrigação
quase que funcional dos bispos dar abrigo e proteção a peregrinos e a doentes
pobres, o bispo Landry, de Paris, organizou um lar para inválidos e para
peregrinos doentes num local bem perto de sua igreja. Foi dessa experiência
do século VII que surgiu o nome de “Hôtel Dieu” para hospital de caridade na
França.
Do século VII ao século XII os hospitais mantidos nas propriedades dos
mosteiros e das abadias ou mesmo das poucas instituições especialmente
preparados para tanto foram praticamente as únicas organizações européias
que mantiveram como seus objetivos básicos cuidar do doente agudo e em
muitos casos também do crônico. Serviram também de abrigo para pessoas
impossibilitadas de prover seu próprio sustento devido a sérias limitações
físicas e sensoriais.
Convém aqui voltar a ressaltar que não havia propriamente nenhum mosteiro
ou abadia de porte, durante a Idade Média, que não mantivesse seu
“xenodóchium” devido ao espírito de caridade e de hospitalidade cristãs,
enquanto que muitos foram se aparelhando e alterando seus serviços para um
atendimento próprio de um “nosocómium”.
- *A profissão de massagista no Japão do século IX*
Segundo documentos históricos existentes no Japão do século IX os cegos
passaram a dominar completamente a profissão de massagista, considerada
desde então como de sua exclusividade absoluta. Além disso, eram os cegos
os quase que exclusivos aplicadores de certas técnicas especiais de
acupuntura.
Esse verdadeiro privilégio foi-lhes garantido devido à circunstância de o filho
do imperador japonês, o príncipe Hitoyasu, ter perdido a visão e ter fortemente
influenciado seu pai em favor dos cegos que não tinham trabalho digno e que
podiam perfeitamente bem desenvolver aquelas atividades.
Esses privilégios para cegos prevaleceram praticamente por dez séculos,
mas ainda hoje percebemos resquícios deles, uma vez que é notória a
presença muito numerosa de cegos como massagistas não só no Japão como
em muitos outros países que recebem ou receberam sua influência.
- *Bispo Hincmar, vítima da crueldade de seus algozes*
Hincmar (830 a 882) foi um dos bispos mais jovens de que se tem notícia na
História da Igreja Católica. Foi sagrado bispo de Laon, na França, com apenas
20 anos de idade, por indicação e por influência direta do rei Carlos, o Calvo,
que logo lhe confiou duas missões diplomáticas na Germânia.
No entanto, depois de 21 anos de bispado, durante o concílio de Douzy,
presidido por um arcebispo que tinha o mesmo nome e que era seu tio,
Hincmar foi deposto e aprisionado. As condições da cela e do próprio ambiente
para onde o bispo deposto foi mandado eram terríveis, tendo ele sido deixado
sob violentos maus tratos de seus algozes que vazaram seus olhos. Essas
violências desumanas aconteceram, segundo os historiadores, por ordem
direta do arcebispo Hincmar de Reims, que levara o sobrinho prelado à prisão.
Passados cinco anos, todavia, Hincmar foi liberto por influência direta do
papa João VIII, que reinou entre 872 e 882. E, um fato singular na história da
disciplina da Igreja Católica, esse mesmo papa autorizou Hincmar a celebrar
missa, por ter considerado que sua cegueira não era impeditiva, pois havia
ocorrido após sua ordenação, não significando, portanto, nenhuma
irregularidade.
- *Deficiência física na mitologia germânica*
Wayland, o ferreiro, é um herói mitológico famoso na cultura germânica. Não
necessariamente uma réplica nem cópia de Hefesto, já citado e inserido em
muitas histórias da mitologia grega, Wayland também era um excelente artesão
e ferreiro. Chegou a fabricar peças famosas que passaram para diversas
histórias da avantajada mitologia do norte da Europa dos meados da Idade
Média. Dentre essas peças imortais é importante destacarmos que, segundo as
lendas, Wayland fabricou a espada de Siegfried (Nothung) e a do rei Artur
(Excalibur).
Wayland, o único herói teutônico assimilado pela cultura e pelo folclore de
diversos países europeus, inclusive pela mitologia inglesa, aparece em
histórias lendárias tanto na Alemanha quanto na Escandinávia.
A lenda principal relacionada a esse fantasioso ser fala a respeito de sua
vingança contra o rei que o havia aprisionado. Esse rei havia mandado quebrar
seus joelhos para torná-lo incapacitado de se mover com destreza e rapidez. O
objetivo era retê-lo no reino e com isso garantir seus serviços de alta
qualificação.
No entanto, o muito sagaz Wayland, depois de anos de paciente
planejamento e da espera de um momento mais adequado, matou os dois
filhos do rei Nipopr. Fez mais para dar mais peso à sua vingança: deflorou a
princesa, sua filha. Logo após, tendo completado todos os atos que havia
premeditado, empreendeu uma fuga espetacular, utilizando-se de um par de
asas por ele mesmo fabricadas.
- *As deficiências em sacerdotes cristãos na Idade Média*
Questão permanentemente discutida por autoridades eclesiásticas, tendo já
merecido o posicionamento de papas e concílios e um lugar permanente no
Código de Direito Canônico, o problema das deficiências físicas e sensoriais
nos sacerdotes ou nos bispos é citado por Thomassin. No que diz respeito a
alguns dos primeiros séculos da Idade Média essa autoridade da Igreja
informa:
“O Concílio de Tribur (Cânone XXXIII) alega as decisões do Concílio de
Nicéia sobre os eunucos, aquelas do papa Inocêncio I sobre quem amputou
seu próprio dedo, ou a quem se cortou o próprio dedo acidentalmente, dos
quais o primeiro é irregular e o outro não o é: enfim, aquelas de Gelásio que
excluem do clero todos os que são mutilados de qualquer parte do corpo. Esse
concílio confirma em seguida todas essas ordens e a elas acrescenta que
aqueles que se tornaram coxos por qualquer enfermidade corporal não devem
ser impedidos das santas ordens” (“Ancienne & Nouvelle Discipline de l’Église”,
de Thomassin).
Nesses primeiros séculos da Idade Média a Igreja Ortodoxa Grega seguia
basicamente as mesmas regras, sendo mais condescendente para com
candidatos ao sacerdócio que apresentassem deficiências. Essa facção da
Igreja decidira mesmo, por meio de cânones apostólicos, que os coxos e
mesmo os que haviam perdido um olho, podiam ser ordenados e até mesmo
elevados ao bispado. O motivo alegado era contundente para a época, mas
muito real: “São as manchas da alma e não os defeitos do corpo que nos
afastam dos divinos mistérios”... Segundo seus lideres e autoridades maiores,
cegos e surdos eram considerados como impedidos ao sacerdócio porque
essas deficiências os incapacitavam para exercer as funções múltiplas da vida
sacerdotal.
No entanto, os que já haviam sido ordenados podiam continuar exercendo o
sacerdócio sem maiores dificuldades e não perdiam de maneira alguma a
dignidade ou os benefícios e proventos que recebiam.
Teodoro Balsamon, canonista grego do século XII, afirma ter conhecido
diáconos, padres e mesmo bispos que, tendo-se tornado surdos ou cegos, não
foram por causa disso privados de sua dignidade, e que a lei civil possibilitava
àqueles que haviam perdido a visão gozar de sua antiga posição de juíz ou de
senador, apesar de não permitir o acesso a outro tipo de magistratura (Apud
Thomassin).
Vários papas foram aos poucos tornando o assunto mais e mais esclarecido
através de decisões, permissões, epístolas e regras. Encontramos no século
XII, durante um reinado de 22 anos, entre os anos de 1159 e 1181, o papa
Alexandre III esclarecendo que, quanto a mutilações e deformações do corpo,
elas tornavam uma pessoa “irregular” para o sacerdócio quando essas
dificuldades fossem de tal monta que seria impossível exercer as funções
sacerdotais sem provocar escândalo ou problemas.
Ocorreram casos de sacerdotes parcialmente impedidos de ordens devido a
deficiências físicas e sensoriais. Esses impedimentos incluíam: sacerdotes
proibidos de celebrar a missa, sem ser impedidos das demais funções de seu
ministério, por ter perdido metade de uma das mãos. O motivo: o alegado
escândalo que já àquela época correspondia a algo chocante e que chamava
muito a atenção. Os textos latinos, porém, utilizam o termo indicado: “nec sine
scandalo propter deformitatem membri”.
Inocêncio III, reinando ao final do século XII e entrando no século XIII até o
ano de 1216, analisou o assunto em maiores detalhes, indicando que os
mesmos defeitos e mutilações que tornavam impedido um homem para as
chamadas ordens maiores não precisavam necessariamente excluir das ordens
menores, pois estas expunham muito menos os candidatos já clérigos à vida
pública.
Esse mesmo papa, ao julgar o problema de um sacerdote que fora atingido
por um assaltante e com isso perdera um dedo da mão esquerda, decidiu que
não incidira em qualquer impedimento às suas funções, uma vez que o
acidente ocorrera após sua ordenação.
Foi Inocêncio III também que chegou a determinar a deposição de um
abade, pois o mesmo não tinha uma das mãos (a esquerda), o que, se
descoberto a tempo, e se tivesse sido constatado antes de sua ordenação,
teria sido impeditivo dos mais sérios. Um outro motivo alegado pelo papa foi a
dissimulação do referido abade: ele havia muito habilmente escondido o defeito
durante sua eleição para o cargo de superior (talvez tivesse usado uma
prótese).
- *Luís III, o "Cego", rei da Provença e da Itália*
Luís III, conhecido pelo cognome de o “Cego”, nasceu em 880 e era filho de
Boso, rei da Provença - hoje parte Sudeste da França. À morte de seu pai em
887 foi protegido pelo imperador Carlos, o Gordo. Luís foi reconhecido como rei
da Provença com 10 anos de idade, sob o forte apoio do papa Estêvão V.
No correr do ano 900, quando estava com 20 anos de idade, por insistência
e muita pressão dos inimigos de Berengar, rei da Itália, cruzou os Alpes com
suas forças, depôs o monarca após muita luta e reclamou sua coroa. Foi
coroado rei dos lombardos na cidade de Pávia e rei da Itália em Roma, em
fevereiro de 901, ocasião em que recebeu a coroa real das mãos de Benedito
IV, papa que ocupava então o trono da Igreja Católica.
Mas o jovem rei tinha deixado em seu rastro um feroz e muito cruel inimigo:
Berengar. Após poucos meses de reorganização de suas forças e de insistente
luta, conseguiu surpreender Luis III em Verona e lá mesmo, com muito ódio,
mandou vazar seus olhos.
Levado de volta à sua Provença, Luís III, o “Cego”, lá permaneceu em Arles,
vivendo por mais de 26 anos uma vida atrapalhada devido à cegueira. Deixou
os negócios de sua coroa aos cuidados de um primo seu, Hugo, duque de
Provença, que bem mais tarde tornou-se rei da Itália.
Na vida deste personagem da História da Provença e da Itália há um registro
lamentável e raro nos países da Europa, embora não tão surpreendente na
corte bizantina: mandou vazar os olhos de seu irmão Lamberto, marquês de
Toscana, por motivos de alegada traição.
Berengar, que havia derrotado e vazado os olhos de Luis III, acabou
derrotando também as forças deste odioso Hugo, rei da Itália, em 945.
- *Deficientes físicos impedidos de participar da Primeira Cruzada*
Apesar de ter sido Urbano II o papa que verdadeiramente inventou as
Cruzadas e que estimulou fortemente a realização da primeira delas, que
aconteceu entre 1096 e 1099, é muito importante que ressaltemos e prestemos
a devida atenção ao papel de um típico pregador daqueles dias que ficou muito
famoso no centro da Europa: Pedro, o Eremita.
Vestido com uma longa túnica de lã parcialmente coberta por um manto
escuro com capuz, Pedro, o Eremita, andava descalço e apoiado em longo
bastão; comia muito pouco, alimentando-se de peixe e vinho unicamente.
Ele teve muita influência no surgimento da chamada “Cruzada Popular”, que
se caracterizava por bandos de pessoas do povo interessadas em peregrinar
até Jerusalém e ali lutar pela libertação da cidade santa, mesmo à custa da
própria vida.
Esse movimento quase espontâneo acabou levando à organização precária
de uma Cruzada do próprio povo contra os infiéis, bem dentro do espírito
pregado pelo papa Urbano II. E esse foi o seu mérito maior.
No entanto, procurando ordenar um pouco a incontrolável horda que já se
movimentava antes mesmo de os nobres terem se organizado, o papa tomou
uma posição de energia: proibiu que participassem dessa peregrinação
guerreira desordenada os velhos, as mulheres solteiras e os deficientes físicos.
Essa posição do papa foi sacramentada pelo concílio de Clermont, convocado
para discutir a questão das Cruzadas no ano de 1095.
Com essa ordem do chefe máximo da Igreja Católica os portadores de
deficiências físicas foram bloqueados de lutar também pelos próprios
postulados da Cruzada, ou seja, a imediata reconciliação do pecador com a
Igreja por meio da confissão, mas sem os deveres da penitência (que seria a
peregrinação guerreira...).
A Cruzada Popular, como alguns historiadores a intitulam, acabou em total
tragédia nas proximidades de Nicéa e de Constantinopla, graças à
incompetência de seus chefes, e de não ter coincidido com o esforço guerreiro
dos nobres latinos de diversas partes da Europa, sob a liderança de um
delegado papal.
- *Barbeiros-cirurgiões na Idade Média*
Os clérigos e monges que viviam em mosteiros e abadias eram os
detentores dos melhores conhecimentos a respeito de doenças e doentes, e
das limitações físicas que sempre levavam as pessoas a situações de
miserabilidade e dependência. Logo após 1163, todavia, surgiria um outro
grupo de pessoas que muito se envolveu por séculos: os barbeiros. E por que
motivo?
Foi precisamente em 1163 que o concílio de Tours proibiu todo o clero
derramar sangue, seja em lutas, seja em hospitais (“Ecclesia abhorret a
sanguine”).
Com o documento papal a função passou aos poucos a outras pessoas,
sendo a mais indicada a do barbeiro porque desde 1031 havia
obrigatoriamente barbeiros nos mosteiros e abadias; a partir desse ano todos
os monges e sacerdotes deviam respeitar um cânone do concílio de Bourges:
... “todos os que forem empregados em funções eclesiásticas portarão tonsura
e terão a barba feita”. O uso de navalhas e tesouras recomendava o barbeiro
para funções de sangria, lancetamentos e curativos.
- *A evolução dos hospitais medievais e as deficiências*
As Ordens dos Cavaleiros que se preocupavam de um modo especial com
doentes e com peregrinos, serviam também para socorrer as vítimas de
ciladas, os acidentados, os portadores de males mais graves e as vítimas das
intempéries à época dos rigorosos invernos. A primeira das Congregações
Religiosas que surgiu para dar atendimento direto só de enfermagem,
entretanto, foi a Congregação das Irmãs de Santo Agostinho, no ano de 1155.
Após a total desintegração do Império Romano Ocidental, sob a forte
pressão dos invasores bárbaros, os hospitais de diversos feudos e reinos da
Europa foram sendo instalados em cidades melhor organizadas ou mais ricas e
aos poucos, com a ajuda de comerciantes abastados, bem como de médicos
formados em algumas das novas unidades de ensino chamadas de
universidades, foram melhorando de padrão. E as cidades mais pujantes e
dinâmicas passaram de certa forma a competir para montar hospitais cada vez
mais sofisticados, dando assistência a um mais amplo número de pacientes,
sempre, entretanto, sob a custódia ou a manutenção de serviços de
enfermagem por parte de diversas ordens religiosas.
Durante os últimos séculos da Idade Média encontra-se noticias de
associações especialmente criadas que tentavam levantar e manter fundos
para a assistência a doentes e aos permanentemente deficientes que eram
mais pobres e que se mantinham alojados nas instalações dos hospitais, sem
qualquer esperança de cura.
A iniciativa tinha a intenção de evitar ou pelo menos de minorar as
dificuldades causadas pela superlotação perniciosa que estava ocorrendo nos
hospitais, onde esses pobres acabavam abrigando-se até a morte. Não há
notícia de tentativas bem sucedidas na construção ou mesmo na simples
instalação de entidades com finalidades muito específicas no atendimento aos
portadores de deficiências, a não ser nos casos de cegos e também dos
hansenianos, àquela época e por vários séculos futuros reconhecidos por
“leprosos”, “lázaros” e outros apelidos, sempre temidos e marginalizados em
todo o mundo.
Do século XII em diante os hospitais, que conforme vimos eram organizados
e mantidos por religiosos recolhidos em mosteiros ou abadias, salvo raras e
muito honrosas exceções, ainda misturavam pessoas doentes com as que não
tinham meios de subsistência e dentre estas ficavam sempre os portadores de
deficiências físicas e sensoriais mais graves. Esses hospitais foram a pouco e
pouco sendo secularizados e, devido às conseqüências cada vez mais sérias
da concentração urbana, da falta de cuidados básicos com a saúde e da
inexistência de medidas de saneamento básico e outras, um volume muito
mais expressivo de doentes levou ao aumento substancial de seu número.
Do século XII ao século XV, por exemplo, só a Inglaterra chegou a organizar
750 hospitais, dos quais 217 eram destinados às vítimas da temível “lepra”.
- *O estigma da hanseníase durante toda a Idade Média*
A lepra, hoje mundialmente conhecida como hanseníase, sempre causou
muitas mutilações e outros tipos de deficiências. Já existia no Egito e na Índia
muitos séculos antes da Era Cristã e foi conhecida dos gregos e dos árabes.
Levada para toda a Europa pelos soldados romanos, espalhou-se mais ainda
durante a época das Cruzadas. Para combatê-la durante toda a Idade Média,
foram tomadas muitas providências concretas por todos os povos, face à
periculosidade que apresentava e ao pavor de suas conseqüências.
Embora até hoje permanece como um verdadeiro mistério o surgimento da
hanseníase no mundo, apavorando por milênios a humanidade, é mistério
maior ainda o seu quase desaparecimento ao redor do século XVII na Europa.
Nos tempos bíblicos e nos primeiros dez séculos da Era Cristã já havia uma
certa variedade de males dermatológicos considerados como contagiosos.
Dentre eles destacava-se evidentemente a hanseníase, mas com ela
confundiam-se a psoríase, a escabiose e o ergotismo.
Na Idade Média, quando um homem era declarado “leproso” tinha apenas
um destino: banimento da sociedade e do convívio de seus familiares pelo
resto da vida. Para tal fim a sociedade armava-se de certas cautelas, sendo
uma delas o estabelecimento de uma comissão responsável pelo
reconhecimento do mal. Nessa comissão estavam obrigatoriamente incluídos
um médico e um hanseniano.
Muitos casos foram vítimas de diagnósticos mal formulados. Os casos de
ergotismo, por exemplo, apresentavam mutilações seriíssimas nos dedos
devido à gangrena. Era um mal causado pelo uso continuado de farinha de
centeio com fungos venenosos e que em sua forma gangrenosa levava a
amputações muito sérias dos dedos.
Se o resultado do exame do doente suspeito de “lepra” fosse positivo,
rezava-se uma missa de Réquiem sobre o doente, o que correspondia a um
sepultamento simbólico. Era então conduzido para fora da cidade e no caminho
o sacerdote, acompanhado de um acólito que tocava uma matraca, dava
orientações básicas ao doente, repassando as proibições que iriam marcar sua
vida futura. Era-lhe proibido:
- entrar em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar público;
- lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte (devia saciar sua
sede usando uma caneca de sua propriedade exclusiva);
- sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e sem calçados;
- tocar em objetos que desejava comprar (devia apontar com um bastão);
- tocar os beirais das pontes ou batentes de portas (devia ter as mãos
cobertas);
- tocar ou ter relações sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria
esposa;
- comer ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa.
Com alguma sorte e com o apoio de sua família poderia conseguir um lugar
num “lazareto” ou “leprosário”. Caso contrário passaria a vida toda espalhando
o terror da doença, mendigando por comida e por bebida. Muitas vezes
identificando-se por roucos gritos de “impuro, impuro” o temido “leproso” era
também reconhecido por sinetas, matracas ou pequenas cornetas. A esmola a
eles destinada era colocada às carreiras no meio das vielas ou dos campos.
Foram por séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas
roupas que eram obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar
chapéus ou capuzes e às vezes faixas vermelhas. Épocas houve na Europa
durante as quais eles eram obrigados a levar ao peito um tecido vermelho com
desenhos característicos.
Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de 2.000 “lazaretos” que
se destinavam apenas à segregação e nunca ao tratamento dos doentes. Na
Europa inteira, devido à extensão do problema, havia aproximadamente 19.000
desses abrigos, todos separando duramente seus doentes da sociedade e
deixando que morressem sem qualquer assistência.
- *Ricardo Coração-de-Leão e sua vingança*
Ricardo Coração-de-Leão (1157 a 1199), rei da Inglaterra, muito envolvido
com as Cruzadas e com diversos feitos heróicos que se tornaram lendários,
tem sido citado como personagem quase que de ficção, tal a quantidade de
lendas e de histórias a seu respeito.
Um dos traços característicos desse rei famoso dos ingleses era sua
crueldade. Ricardo era valente, destemido, aventureiro, mas muito cruel e
vingativo.
Quando em guerra com a França, que procurava a todo custo desalojar os
ingleses da Normandia, Ricardo Coração-de-Leão chegou a praticar um dia
uma barbaridade inacreditável.
Devido ao extermínio de um grupo de seus melhores homens pelos
franceses, Ricardo mandou que trezentos cavaleiros franceses fossem atirados
ao rio Sena com suas armaduras, para ali morrerem afogados. Ainda não
satisfeito, mandou vazar os olhos de 15 outros cavaleiros que foram mandados
de volta, ao encontro do rei Felipe Augusto (1165 a 1223), guiados por um cujo
olho direito havia sido poupado, imitando de certa maneira a brutal atitude de
Basílio II, imperador bizantino.
Segundo historiadores como Finlay, Felipe Augusto não se deixou ficar
atrás: tratou quinze cavaleiros ingleses aprisionados da mesma forma.
Finlay comenta em sua obra que vazar os olhos de soldados ou de pessoas
culpadas, em geral, foi um costume comum em toda a Europa, por diversos
séculos. Era visto, portanto, sem exagerado horror, como o fazemos hoje. Na
Inglaterra foi apenas em 1403, durante o reinado de Henrique IV, que o
Parlamento inglês aprovou um ato que considerava como crime as penas de
cortar a língua ou de vazar os olhos das pessoas
(Apud Finlay).
- *Hospitais proliferam no Oriente Próximo: século XIII*
Prosseguindo seus esforços para dar assistência aos doentes mais
necessitados, e para melhor desenvolver os conhecimentos médicos de então,
o governante turco Seljuk e seus sucessores (turcos otomanos) criaram
diversos hospitais e escolas de medicina.
Segundo o Professor Dr. A.Süheyl Unver, diretor do Instituto de História da
Medicina da Universidade de Istambul, os mais antigos desses
estabelecimentos de ensino teórico e prático foram os de Kayseri (1206) e de
Amasya (1205).
Ainda dentro do século XIII surgiram os hospitais-escola de Sivas, no ano de
1214, Konya, em 1219, Çankiri, em 1235 e outros mais. É interessante notar
que os hospitais estabelecidos em Kayseri e Çankiri colocaram, à sua entrada,
a figura de uma serpente. Este símbolo, apesar de grego em sua origem,
graças aos templos de Asclépios, chegou aos turcos por influência dos
egípcios (Apud Unver).
- *Os progressos da medicina até o século XIV*
Por volta de 1250, a Europa Ocidental e suas novas organizações ou
associações de ensino programado (universidades) começaram a absorver os
conhecimentos e as experiências médicas acumulados pelos árabes, quase
todos extraídos da cultura grega clássica. Na Itália e na França a cirurgia
começou a dar passos interessantes, especialmente com o concurso de Guy
de Chauliac (1300 a 1368) que chegou a fazer operações de catarata com
sucesso. A anatomia teve também seus progressos marcantes com o médico
italiano Mondino De Luzzi (1270 a 1326). A dissecação de cadáveres, deixada
de lado por aproximadamente dez séculos, foi retomada, uma vez que os
médicos tinham apenas noções de anatomia retiradas das obras de Galeno.
Mondino De Luzzi escreveu uma obra intitulada “Anathomia” no ano de 1316, e
essa obra tornou-se padrão para ensino por mais de duzentos anos na Europa.
Evidentemente esses progressos todos beneficiaram toda a humanidade, e
dentro dela, de um modo especial pessoas que sofriam as conseqüências das
doenças crônicas ou que provocavam limitações na plena utilização do corpo.
Um dos resultados práticos da formação de médicos em universidades foi
uma pequena ampliação do número de hospitais mais dedicados a tratamento
do que a abrigo, como era de se esperar. De acordo com o cronista italiano
Giovani Villani, só na cidade de Florença havia, pelo ano de 1300, trinta
hospitais gerais e uma verdadeira rede de assistência a doentes e deficientes
pobres, com capacidade para 1.000 vagas.
- *Epidemias na Idade Média e suas conseqüências: "Castigo de Deus"?*
É preciso aqui relembrar que dos anos 500 até o século XVI - portanto,
durante toda a Idade Média praticamente - o mundo europeu viu decrescer
muito os cuidados básicos com a saúde e com a higiene na imensa maioria das
cidades, um pouco em decorrência do seu contínuo crescimento. Os
aglomerados urbanos menores também não tinham qualquer infra-estrutura ou
recurso voltado para a saúde de sua população. E por muitos séculos, os
habitantes das cidades medievais viveram sob o permanente receio das
epidemias ou das doenças mais sérias.
Devido à ignorância imperante, as epidemias, as doenças mais graves, as
incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as malformações
congênitas eram considerados como verdadeiros sinais da ira celeste e
taxados como “castigos de Deus”. E, como não podia deixar de acontecer, e
como nos relatam todos os historiadores, ocorreram diversas epidemias de
gravíssimas conseqüências, grandes incidências de males não controlados
pelos médicos que nem chegavam a atinar com suas causas ou não
dispunham de meios para debelá-los com sucesso. Hanseníase, peste
bubônica, difteria, influenza e outros males devastaram diversas vezes a
Europa durante os vários séculos da Idade Média e deixaram um significativo
saldo de pessoas que sobreviveram. Muitas delas conseguiram salvar-se, mas
com sérias seqüelas, para ver o resto de seus dias passar em situações de
extrema privação e quase que absoluta marginalidade.
- *A medicina qualificada e a falta de assistência geral*
Durante todo o período medieval, com exceções não levantadas mas que
certamente devem ter ocorrido, o trabalho do médico mais qualificado, isto é,
daquele formado pela prática ao lado de outros médicos ou daquele que depois
do século XI começou a ser formado pelas universidades, na grande maioria
dos casos continuava não sendo desenvolvido dentro dos hospitais. A
proliferação dessas casas especialmente destinadas a recolher os doentes
provenientes de famílias sem recursos, muitos deles portadores de males
incuráveis ou defeitos físicos bastante limitadores, foi um fato comprovado e
verificado em todos os países europeus. Construções especiais eram raras e
dentre elas cumpre destacar o Hospital de São Bartolomeu, em Londres, que
começou a funcionar no ano de 1123.
E para nós, mesmo tão distanciados da Idade Média, não é nada difícil
imaginar que esses doentes não tinham a mínima condição de pagar, quer
pelos serviços do médico, quer pelas mezinhas ou pelos curativos feitos em
outros ambientes. Assim, hospitais continuariam por séculos sendo verdadeiros
depósitos de pessoas pobres, à beira da morte, ou vitimadas por males
crônicos e defeitos físicos graves que lá ficavam até morrer, sem família e sem
amigos.
Os médicos continuariam também por séculos como profissionais muito
caros e muito raros em muitas partes da Europa para a população mais pobre
e desprovida de recursos mínimos para encontrar soluções aos problemas
decorrentes de enfermidades ou de acidentes a não ser aquelas advindas da
medicina caseira ou dos charlatães.
- *As soluções populares e as crendices*
Como em épocas mais antigas da História da Humanidade, as camadas
mais pobres da população tinham suas soluções para doenças. Muitas delas
eram multi-seculares, enriquecidas com a experiência de certos núcleos
populacionais mais adiantados, mas empobrecidas pela falta de registro de
seus segredos. Benzeduras de um lado, exorcismo e ritos misteriosos de outro,
entremeados pelo uso de medicamentos extraídos de produtos naturais, tudo
isso fazia parte da medicina popular. A crença generalizada nas maldições e
nos feitiços, na existência das doenças e das deformidades físicas ou mentais
como indícios da ira de Deus, ou como resultado da atuação de maus espíritos
e do próprio demônio, sob o comando direto de bruxas, era às vezes levada a
extremos. Acreditava-se, por exemplo, que a epilepsia era conseqüência de
uma possessão instantânea por um espírito maligno e o remédio era o
exorcismo por ritual ou pela tortura.
- *O destino das pessoas deficientes na Idade Média*
Durante toda a Idade Média e principalmente durante seus séculos mais
obscuros crianças que nasciam com seus membros disformes tinham pouca
chance de sobreviver, devido às crenças e às histórias fantásticas transmitidas
pelas mulheres que praticavam a função de curiosas ou aparadeiras. Essas
crianças cresciam separadas das demais e eram ridicularizadas ou
desprezadas. Os exemplos de anões e de corcundas inseridos na sociedade
medieval com certo destaque são significativos.
As superstições da época medieval levavam a atribuir a essas pessoas
poderes especiais para uma espécie de contra-ataque aos efeitos deletérios de
feitiços ou de maldições, do mau-olhado e mesmo das pragas e das epidemias.
Com o tempo, essas pessoas disformes foram sendo objeto da diversão das
grandes moradas e dos castelos dos nobres senhores feudais e seus vassalos,
e mesmo das cortes de muitos reis, devido à sua aparência grotesca, aos seus
trejeitos e também a uma propalada sabedoria de que não dispunham. Esses
tipos de pessoas deficientes - corcundas e anões – começaram aos poucos a
ter livre acesso a todos os ambientes - traziam sorte e afastavam os demônios
- podendo alguns inclusive participar de todas as conversas e falar o que bem
entendessem, pois eram supostamente tolos, divertidos e inconseqüentes.
Os famosos indivíduos deformados e por vezes repelentes, segundo os
historiadores, extravagantemente vestidos, temidos por serem manipuladores
de situações embaraçosas e conhecedores de segredos delicados de alcova,
chantagistas e confidentes de seus senhores, na maioria dos casos acabaram
não passando de pessoas simplórias.
E a História do mundo conta-nos casos em que esses "bobos da corte"
cumpriam ordens criminosas de seus senhores, aos quais deviam servil
obediência. O bufão corcunda hindu conhecido por "Vidusala" (significa
atrevido) é certamente um dos primeiros a aparecer com destaque na literatura,
pois logo nos primeiros séculos da Era Cristã ele aparece em trechos de
dramas e mesmo em eventos da antiga sociedade da Índia.
- *O significado das deficiências da Idade Média*
Conforme verificamos anteriormente, por falta de conhecimentos mais
profundos quanto às doenças e suas causas, falta de educação generalizada e
o receio do desconhecido e do sobrenatural,ocorria na Idade Média uma
verdadeira necessidade no seio do povo e mesmo das classes mais abastadas,
de dar aos males deformantes uma conotação diferente e misteriosa, muito
mais diabólica e vexatória do que em qualquer outro sentido mais positivo.
O significado religioso ou sobrenatural das deformidades mais marcantes,
durante essa época, pode ser perfeitamente notado em alguns quadros
pintados durante o seu transcorrer. Neles, tanto os espíritos malignos da
hierarquia imaginária de Satã quanto os seres lendários e de comportamento
malévolo e desumano são invariavelmente representados por seres com os
rostos monstruosos, os pés deformados, as cabeças enormes ou muito
pequenas, as orelhas desproporcionais, o nariz aquilino muito comprido,
corcundas, membros retorcidos... E apesar dos esforços eventuais dos grupos
religiosos - e mesmo da própria doutrina cristã - o povo em geral acreditava
que um corpo deformado somente poderia abrigar uma mente também
deformada. Caso contrário certamente não teria havido necessidade das
autoridades da Igreja Católica, por meio dos preceitos canônicos, justificar a
não aceitação de pessoas com deficiências ao sacerdócio com estas palavras
que bem mostram a atitude imperante, ou seja, o reverso da medalha: ...
"essas restrições ao sacerdócio davam-se para benefício da Igreja e não por
considerar as pessoas como manchadas ou indignas" (Apud Thomassin). (* Na
verdade algumas dessas situações não são de todo diferentes hoje. Se nós
observarmos, por exemplo, as ilustrações em histórias de quadrinhos e sem
dúvida alguma muitos dos desenhos animados apresentados em nossa
televisão para entretenimento de nossos filhos além de peças teatrais e filmes,
notaremos que algo de medieval e, no fundo, de muito cruel existe em nossa
sociedade pretensamente cristã e humanista. Bandidos, bruxas, gente perversa
ou mesmo pervertida, por vezes são apresentados com seus corpos ou alguns
de seus membros deformados. Qual o motivo? Está ainda subjacente a crença
de que um corpo defeituoso apenas pode abrigar um espírito malévolo? Ou
será para ir condicionando nossas crianças e nossa sociedade ao repúdio do
mal, ligando o às idéias de deformidade? ...)
Dentro desse ambiente e devido ao fato de não poder contar com meios
para garantir sua sobrevivência de maneira digna, restou ao portador de
defeitos físicos ou sensoriais a posição de elemento marginalizado e o recurso
à esmola diária, sistemática, para com isso ganhar seu sustento. Pelas
estradas e caminhos mais importantes da Europa Medieval, por onde
passavam de quando em quando nobres cortejos e os bem ajaezados
cavaleiros e cruzados, sujos e por vezes asquerosos seres humanos, com seus
membros deformados ou suas feridas à mostra, defendiam-se como podiam
para garantir seu infeliz sustento. Chegaram a organizar-se em verdadeiras
redes para angariação de esmolas e de donativos.
De seu lado, a população ligada aos vassalos e seus senhores, aos reis e à
nobreza toda, bem como os comerciantes e homens enriquecidos pela sorte ou
pela aventura - e mesmo o povo mais simples - todos temerosos dos invisíveis
e fantasiosos poderes malignos que esses seres deformados poderiam ter,
faziam de tudo para os afastar, mantendo-os longe de si em todas as ocasiões
e por vezes até pagando por isso com comida ou com esmolas.
- *Os privilégios para cegos durante a Idade Média*
Sob diversos aspectos a situação era bem diferente para os cegos,
principalmente para aqueles que viviam na França durante o século XIII, por
exemplo. Já ao final do século XI e início do século XII, em Rouen, em Chálons
e perto da cidade de Orléans, havia abrigos que aceitavam os cegos mais
pobres. Também na cidade de Chartres havia um recurso para atendimento
aos cegos. Era uma verdadeira comunidade criada por Renaud Barroult e
conhecida como "Les Six-Vingts".
Sob o reinado de Luís IX (1214 a 1270), conhecido como São Luís de
França, foi criado um novo abrigo chamado "Hospice des Quinze-Vingts", por
iniciativa direta do rei no ano de 1260. Sua criação chegou a beneficiar
fortemente uma confraria pobre de cegos cujos membros, à falta de outro local,
reuniam-se no Bosque de Garenne, em Paris. Quando o local foi descoberto
pela coroa e pelo povo em geral, ficou conhecido pelo apelido de "Champovri",
de uma corruptela para as palavras "Champ des Pauvres" (Campo dos
pobres).
Qual teria sido o interesse direto de Luís IX para dedicar tempo e dinheiro na
criação de uma organização dispendiosa só para cegos? Segundo consta,
quando Luís IX foi aprisionado pelos sarracenos durante sua primeira Cruzada,
trezentos de seus soldados tiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por
ordem direta do sultão, à base de vinte por dia durante quinze dias, enquanto
aguardava os resultados da demorada negociação para pagamento do pesado
resgate exigido para libertação do rei da França. Quando de sua volta São Luís
dedicou-se com seriedade e muito empenho ao problema do abrigo dos cegos
e mandou construir a famosa entidade para dar assistência de morada e
alimentação pelos menos a 300 cegos.
Entretanto, o incidente alegado para justificar o interesse de Luís IX nos
cegos não é confirmado por vários de seus biógrafos.
O rei foi muito atacado ainda durante sua vida por ter dedicado tanto esforço
oficial aos cegos. Rutebeuf, trovador e satirista francês do século XIII, cantava
ironicamente pelas ruas de Paris: "Eu não sei porque o rei juntou trezentos
cegos em uma casa, só para eles saírem às ruas de Paris, o dia inteiro,
pedindo esmolas incessantemente. Eles dão encontrões uns com os outros,
machucando-se, pois, não há nenhum deles que os lidere" (Apud French).
Entre os reinados de Luiz IX e Luiz XVI os cegos emanciparam-se e
receberam privilégios tanto de reis quanto de bispos da Igreja Católica,
chegando mesmo a acumular riquezas enormes e a vestir-se de veludo, um
dos tecidos mais dispendiosos da época.
A Igreja ajudou significativamente dando-lhes permissão expressa e
exclusiva para esmolar nas escadarias e nas portas das igrejas. Tinham
também autorização eventual para vender grinaldas e flores dentro de suas
naves.
Não é difícil imaginar que idéias de emancipação dos cegos nesses 500
anos da História Francesa fossem tidas como uma espécie de questionamento
da autoridade da poderosa Igreja Cristã, ou talvez um sacrilégio. Os primeiros
bispos que deram as famosas autorizações exclusivas tanto para mendigar nas
portas das igrejas quanto para comercializar flores foram o de Paris e o de
Chartres. Não foram autorizações individuais, mas dirigidas às corporações dos
cegos.
A organização dos cegos em corporações, confrarias ou associações não
ocorria apenas na França. No ano de 1337 surgia em Pádua, na Itália, a
Congregação de Santa Maria dos Cegos. Uniam-se esses cegos sob a
liderança de um mestre, observando regras próprias e muito severas, por eles
estabelecidas, como, por exemplo, a proibição de dizer palavrões e
blasfêmias...
- *Dois heróis históricos com deficiência nos séculos XIII e XIV*
Podemos destacar duas personagens históricas, uma na Europa e a outra
África, e ambas com deficiências físicas sérias. São elas:
Sundiata, um líder negro Mandingo que, após ter conquistado Gana, no
Oeste Africano, estabeleceu as bases de um novo e mais poderoso império
Mandingo, ou seja, o chamado "Império Mali", em pleno século XIII. Sundiata
era um homem com ambas as pernas paralisadas, segundo depoimento de
N'Kanza, alta funcionária da Organização das Nações Unidas e ex-diretora do
Centro das Nações Unidas para Assuntos Humanitários e Sociais de Viena.
João de Luxemburgo, também conhecido como João, o Cego, nascido em
1296, era rei da Boêmia, filho de Henrique VII. João de Luxemburgo ficou cego
em 1340, com 44 anos de idade, devido a um mal não identificado pelos
médicos de sua corte. Mesmo cego, sempre imbuído de um vivo espírito
aventuresco que o caracterizou fortemente até sua morte, continuou a
participar de diversas campanhas militares, em muitas partes da Europa. Foi
morto em plena batalha, em Crécy, no ano de 1346, lutando em prol de Felipe,
rei da França.
- *Os hospitais face às pessoas deficientes nos séculos XIV e XV*
Apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade das situações
encontradiças nos diversos países europeus que se formavam com o gradativo
esfacelamento do sistema feudal, o atendimento médico de um modo geral
progredia - o que seguramente muito significou para pessoas que sofriam as
conseqüências de males limitantes.
Dentre providências marcantes no sentido de ampliar o atendimento nos
hospitais existentes podemos citar aquela tomada por Carlos VI, da França
(1368 a 1422). Assinou uma ordem real estabelecendo uma coleta obrigatória
em beneficio dos hospitais, por ocasião dos casamentos. Essa coleta ajudou
efetivamente na redução dos custos tanto dos hospitais quanto dos remédios, e
na construção de alguns novos hospitais para dar atendimento e abrigo a um
maior número de doentes, de pobres sem família e sem condições de
sobrevivência e também de pessoas com deficiências permanentes.
Uma outra iniciativa interessante ocorreu na Espanha. A rainha Isabella, a
Católica (1451 a 1504), mandou montar verdadeiros hospitais em localidades
próximas às frentes de combate. Eram hospitais transitórios e foram quase que
institucionalizados desde então, pois foram considerados como muito úteis
para o atendimento imediato e a conseqüente salvação de vidas em grave
perigo. Durante o cerco de Málaga - talvez a primeira experiência desses
hospitais de campanha - receberam o nome de "ambulâncias".
Uma observação final quanto aos hospitais existentes na Idade Média:
Segundo diversos autores, eles existiam mais para o cuidado do que para a
cura das pessoas; menos para alívio do corpo e de suas dores do que para
assistência da alma e sua preparação, considerada indispensável pelas
religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura.
Na verdade, não havia na quase totalidade dos hospitais medievais qualquer
conhecimento científico ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como
o amor ao próximo e a fé na outra vida, na vida após a morte.
Parece, todavia, que médicos treinados em universidades, principalmente as
inglesas, eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da época do
que se poderia supor. Dessa forma podemos também imaginar que, apesar
dos relatos transmitidos pelos historiadores menos avisados, todos os
pacientes internados em hospitais europeus de certa qualidade, seja por
doença, seja por pobreza atroz, seja por deficiências muito graves, recebiam
mais cuidado profissional do que o imaginado.
De outra parte pode-se também afirmar que ao final da Idade Média as
sociedades existentes na Europa deram seus primeiros passos no sentido do
reconhecimento de sua responsabilidade face aos pobres em geral. Inseridos
no contexto estavam todos aqueles que eram, além de pobres, deficientes e
impossibilitados de se sustentar.
No final do século XV os problemas específicos das pessoas deficientes
ainda não eram nem entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que
faziam essas pessoas parte de um grupo bem maior e de uma problemática
mais séria ainda, ou seja, aquela representada pelos pobres, pelos enfermos,
pelos mendigos. Ela marcou e chegou mesmo a caracterizar os ambientes das
cidades e dos campos europeus do final da Idade Média.
Na penosa história do homem portador de deficiência começava a findar
uma longa e muito obscura etapa. Iniciava a humanidade mais esclarecida os
tempos conhecidos como "Renascimento" - época dos primeiros direitos dos
homens postos à margem da sociedade, dos passos decisivos da medicina na
área de cirurgia ortopédica e outras, do estabelecimento de uma filosofia
humanista e mais voltada para o homem, e também da sedimentação de
atendimento mais científico ao ser humano em geral.
CAPÍTULO QUARTO
A PESSOA DEFICIENTE DO RENASCIMENTO ATÉ O SÉCULO XIX
Todas as pessoas que estudaram um pouco de História Universal sabem
que entre os séculos XV e XVII ocorreu no mundo europeu cristão uma
paulatina e inquestionável mudança, com o surgimento do chamado "espírito
científico", e com o parcial desmoronamento das concepções muito tradicionais
de "natureza", muito afastadas que eram da realidade.
O que sucedia era que o homem estava vivendo num mundo difícil e repleto
de problemas no qual os homens ligados ao poder espiritual taxavam muito do
que era "natural" e relacionado ao dia-a-dia - ou seja, bens e/ou
comportamentos - como desprezível, miserável, pecaminoso face ao destino
imortal do homem, sua vida eterna e as idéias de paraíso, purgatório e inferno.
No entanto o homem, no fundo de seu coração, não podia negar que achava
bons, bonitos e agradáveis essas coisas e esses comportamentos
considerados como proibidos e pecaminosos.
Evidentemente que essa ambivalência é multissecular, e dela alguns
homens da Idade Média procuraram escapar sem ferir seus princípios e seu
modo de viver cristãos das mais variadas maneiras.
Segundo sabemos, alguns utilizaram-se da pintura, outros da poesia ou do
canto, enquanto uns poucos procuraram derivativos na arquitetura. o fato é que
o aceno do paraíso como recompensa por uma vida mortificada, sacrificada e
miserável, e a contrapartida das ameaças do inferno e do castigo eterno,
continuavam a deixar na alma do homem medieval grandes e doloridas
dúvidas.
O mundo europeu foi sentindo de várias maneiras que era necessário alterar
essa situação e dar um corajoso mergulho na direção da luz, da cultura, das
coisas novas e desconhecidas e - por que não? - também das coisas tidas
como proibidas.
Há um versinho popular do século XII que expressa muito bem esse forte
conflito vivido pela humanidade e que diz:
"Vita mundi, res morbosa,
Magis fragilis quam rosa;
Cum sis tota lacrimosa,
Cur est mihi gratiosa? . . . " (Apud Taylor)
Ou seja: Vida terrena, coisa doentia, mais frágil que a rosa; por que me
parece tão graciosa, se és toda lacrimosa?
Conforme a incômoda situação do homem medieval ia sendo definida,
mesmo que por meio de modinhas ou versinhos populares de um latim também
popular um tanto universalizado, surgiam contos em verso ou em linguagem
corrente, divulgados cada vez mais, não graças aos arautos que sempre se
limitaram a ler aos berros as ordens régias ou as imposições dos senhores e
dos governantes, mas graças à invenção da imprensa, por Gutenberg.
Pensadores começaram a ser mais popularizados e a se impor. A cultura,
tão confinada que era e tão restrita a certas áreas especiais do mundo feudal,
foi sendo espalhada por toda a Europa. E com ela chegou também a sede pela
sabedoria dos clássicos gregos e latinos, muito famosos e praticamente
esquecidos pelo povo, e que acabaram se transformando numa espécie de
paixão dos estudiosos.
Além disso tudo, outras alterações caminhavam celeremente pela Europa
com a descoberta de novas terras no final do século XV e início do século XVI;
com a contínua chegada de sábios de Constantinopla, que não suportavam a
pressão dos turcos invasores; com a proteção que reis e nobres davam aos
artistas da época. Esses fatos de inegável valor foram - somados a muitos
outros de menor e menos significativo vulto - os verdadeiros incentivadores da
nova onda intelectual e cultural que, iniciada na Itália, passou logo para a
França, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Holanda e alguns outros países.
Nomes famosos que antecederam imediatamente esse período foram os de
Dante, Bocaccio, Giotto e Petrarca. Durante essa importante onda de
mudanças e de progressos, depois universalmente aceita e batizada como
"Renascença", nomes destacados e muito representativos foram os de
Donatello, Ariosto, Machiavel, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Raffaelo,
Calvino, Montaigne, Erasmo, Cervantes, Camões e muitos outros escultores,
escritores, pintores, arquitetos, filósofos humanistas e homens voltados para a
religião.
Nesse movimento novo e muito renovador, o reconhecimento do valor do
homem era a nota dominante - era o Humanismo que surgia e se fortificava.
Por meio dele, pelo menos no campo das idéias, o homem se sentiria mais
livre, menos oprimido, mais valorizado, não mais um mero escravo dos poderes
da Terra, nem mesmo preso à crença de que tinha que fazer o bem para
merecer o céu ou simplesmente para escapar às torturas do inferno.
Revolucionário sob muitos aspectos, esse novo modo de ser alteraria a vida
do homem menos privilegiado também, ou seja, a imensa legião dos pobres,
dos enfermos, enfim, dos marginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra
de dúvidas, os portadores de problemas físicos, sensoriais ou mentais.
A Renascença surgia no mundo para tirar o homem de uma era de trevas,
ignorância e superstição, que foram os séculos da Idade Média.
- *O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença*
Dentro desse contexto, ao analisarmos o desenvolvimento dos hospitais e de
muitos abrigos destinados a enfermos pobres ao se encerrar a Idade Média,
verificamos que os cuidados prestados em muitos casos mostravam também
sinais de um indisfarçável e novo modo de ver e de considerar o ser humano
atingido por algum mal e não apenas os resultados de novas técnicas médicas
em experimentação ou em vias de aperfeiçoamento. O cuidado para com as
pessoas deficientes como um grupo especial e sempre marginalizado, diferente
da significativa massa atingida e marcada pela pobreza, começava a se definir
em pontos isolados do mundo, surgindo por meio de providências bastante
práticas.
Fato que não pode ser desmentido é que, apesar da baixa qualidade dos
serviços, nos últimos decênios da Idade Média a Europa estava praticamente
coberta por uma verdadeira rede - desarticulada, é verdade - de hospitais,
casas de abrigo a doentes, enfermarias em conventos e mosteiros e também
de casas montadas para abrigar pessoas necessitadas de tudo para poder
sobreviver. Corresponde a uma verdade histórica e não há exagero algum em
assinalar o desenvolvimento dos hospitais e a gradativa humanização das
atenções para com os doentes ou pessoas deficientes, como um dos
marcantes feitos do final da Idade Média.
Tanto a provisão de serviços individualizados quanto a indispensável
garantia e manutenção permanente de serviços de saúde para as cidades, na
Europa, durante os séculos XVI e XVII, firmaram-se e permaneceram como
uma responsabilidade de cada comunidade e não do Estado como um todo. Os
poderes comunais, as paróquias, os mosteiros e abadias que já acumulavam
experiências das mais variadas naturezas, procuravam cuidar dos doentes
agudos e crônicos, prestando-lhes serviços de ordem cada vez mais eficiente.
O cuidado médico começara a ser prestado através desses hospitais, em geral
por meio de médicos contratados ou pagos pelo poder público local. No
entanto, quanto aos homens de maior posse e suas respectivas famílias,
continuou a prevalecer o costume de serem tratados em suas próprias casas, e
nunca nos hospitais.
No século XVI foram dados alguns passos decisivos no atendimento de
pessoas portadoras de deficiências auditivas que até então eram consideradas
como ineducáveis, quando não possuídas por maus espíritos.
- *Os problemas dos deficientes auditivos no século XVI*
Com o aparecimento e fortalecimento de novas formas de ver o homem, que
vinham no próprio bojo do movimento renascentista, muitos esforços
começaram a ser desenvolvidos para compreender os problemas vividos por
seres humanos deixados à margem da sociedade por milênios. Dentre esses
esforços e movimentos destaquemos os relacionados aos deficientes da
audição e da palavra, ou seja, os surdos-mudos.
Na verdade a luta chamara a atenção já no final do século XV, com a
publicação da obra "De Inventione Dialectica", de Rudolph Bauer (1433 a
1485). Nessa obra o autor faz menção a um surdo-mudo que se comunicava
por escrito. No entanto, foi apenas um século após que Jerônimo Cardan (1501
a 1576), médico, matemático, astrólogo e, segundo alguns contemporâneos,
jogador e ardiloso egomaníaco de origem italiana surgiu no panorama,
questionando um princípio defendido por Aristóteles (o pensamento é
impossível sem a palavra).
Cardan inventou um código para ensinar os surdos a ler e escrever, à
semelhança do futuro código de escrita e leitura Braille para os cegos que
surgiria apenas no século XIX. Foi Cardan quem influenciou as idéias do
monge beneditino espanhol Pedro Ponce de Léon (1520 a 1584), muito
dedicado à educação dos deficientes auditivos e que nunca escreveu sobre
seu método de trabalho.
Ainda no século XVI o médico francês Laurent Joubert (1529 a 1582) inseriu
todo um capítulo sobre o ensino de surdos-mudos em sua obra "Erros
Populares relativos à Medicina e ao Regime de Saúde". Defendia um outro
princípio de Aristóteles (o homem é um animal social com habilidade para se
comunicar com os outros homens). Desse ponto ele partiu para desenvolver
todos os postulados que defendia: a habilidade existia em toda e qualquer
criança, mesmo nas nascidas surdas ou que mais tarde viriam se tornar
surdas. O mestre dessas crianças deveria agir com paciência e cuidado, pois
da mesma forma como uma criança aprende uma língua estrangeira poderá
aprender a se comunicar em seu próprio ambiente se ela for surda. Devia o
mestre começar por palavras simples e pequenas, reforçando sempre as
expressões faciais. E acrescentava sua enfática opinião: a criança com
deficiência auditiva aprenderia a falar mesmo sem se ouvir, desde que
ensinada com paciência (Apud Mullett).
- *A pintura renascentista e as pessoas com deficiências*
Muitos pintores do conhecido Período Renascentista retrataram em suas
obras cenas em que aparecem pessoas portadoras dos mais variados males
incapacitantes. Alguns dos quadros mostram-nos com clareza a situação de
miserabilidade em que viviam; outros ressaltam cenas que deixam patente a
inadequacidade de atitudes; e vários outros são retratos encomendados.
Alguns exemplos serão aqui citados para propiciar ao leitor mais curioso
algumas indicações caso deseje aprofundar-se no assunto.
a) Anões retratados individualmente ou inseridos em grupos: "Retrato da
família da Marqueza de Mãtua", de Mantegna (1431 a 1506); "O Anão de
Felipe IV", "Retrato de Dom Antônio, o Inglês" e "Menino de Vallecas", de
Velazques (1599 a 1660); "Conde Tomás Alveo e sua mulher", de Rubens
(1577 a 1640); "O Anão de Carlos V" e "Retrato do Bufão Péjéron", de Moro
(1512 a 1578).
b) Anões inseridos em cenas variadas: "Os Anões",de Johann Van Kessel
(1626 a 1679); "Cilene como a Bacante", de Rubens (1577 a 1640); "A Ceia na
Casa dos Fariseus", de Moretto da Brescia (1490 a 1555); "Núpcias de Caná",
de Paulo Veronese (1528 a 1588); "Estudo sobre Anões", de Tiepolo ( 1693 a
1770).
c) Pessoas com deficiências físicas ou sensoriais: No tocante a deficiências
físicas, um dos pintores mais célebres da Renascença, Rafaello (1483 a 1520),
desenhou uma interessante gravura que se encontra no Museu de South
Kensington. Ela nos mostra um homem paralítico na porta de um templo, perto
de São Pedro e de São João em seu trabalho de assistência a enfermos.
Fra Angelico (1387 a 1455), do Período Pré-Renascentista, sempre
devotado à arte sacra, é autor de um quadro muito famoso que se encontra na
Capela de Nicolau V, no Vaticano, intitulado "São Lourenço distribui bens aos
pobres". Nele aparecem diversas pessoas com deficiências: um amputado
bilateral das pernas usando apoios para as mãos e um cego usando um longo
bastão. Ambos levam grandes sacolas destinadas às esmolas angariadas,
como era costumeiro.
Outros quadros relevantes que conhecemos e que podem ser melhor
estudados são os seguintes:
"Parábola dos Cegos", que retrata uma cena em que vários cegos Vão
caindo numa valeta. É de autoria de Pieter Bruegel (1530 a 1569).
"Combate entre o Carnaval e a Quaresma" do mesmo pintor. Nele são
retratados diversas figuras com deficiências físicas, inclusive um amputado da
perna direita com guizos na perna esquerda.
"O Tocador de Alaúde", de Georges La Tour (1593 a 1652), no qual o pintor
retrata um tocador de alaúde cego.
"A Briga dos Mendigos", do mesmo pintor e no qual podemos ver o mesmo
tocador de alaúde do quadro anterior numa violenta briga com outros
mendigos.
"São Pedro cura os enfermos com sua sombra", de autoria de Masaccio
(1401 a 1428), também do período que antecedeu a Renascença nas artes. O
pintor retrata em sua obra duas pessoas deficientes e seus aparelhos para
locomoção ao lado esquerdo do quadro.
"O Pé Aleijado", quadro de Ribera, pintado em 1642 e exposto no Museu do
Louvre, em Paris. Mostra um sorridente jovem com seu pé direito e sua mão
direita com evidentes deformações.
"Os Cegos de Jericó", de autoria de Nicolas Poussin e pintado no ano de
1651, no qual aparecem dois cegos sendo curados por Jesus.
"A Fonte da Juventude", pintado por Lucas Cranach, o Velho, em 1546,
mostra-nos com clareza alguns meios de transporte de pessoas deficientes.
- *Ambroise Paré: os primeiros passos da futura "ortopedia"*
Foi nos meados do século XVI que a luta pelo estabelecimento de uma
especialidade médica que tratava de ossos se iniciou. Nessa luta Ambroise
Paré (1510 a 1590), dono de notável experiência, teve um papel relevante.
Paré começou a preparar-se para a medicina com um barbeiro de Angers e
continuou em Paris com um barbeiro-cirurgião, homem evidentemente mais
experimentado. Logo que sentiu ter adquirido experiência suficiente procurou
emprego no hospital de atendimento geral da população parisiense, ou seja, o
Hôtel Dieu e lá permaneceu trabalhando como auxiliar durante três anos.
Engajado como cirurgião no exército do
Marechal Montejan, introduziu muitas inovações, das quais duas são mais
relevantes no tratamento de ferimentos por projéteis que no século XVI
provocavam muitas mortes. Quando não ocorria o óbito ocorria em geral um
acervo de seqüelas que podiam levar a deficiências físicas. Esses tipos de
ferimentos eram tidos como "queimaduras envenenadas".
O tratamento original consistia na aplicação de azeite fervendo para sua
desinfecção e cicatrização. Caso ocorresse a necessidade de amputação do
membro atingido, o estancamento do sangue demandava o uso de ferro em
brasa.
Por ver-se em certa ocasião em dificuldades por não haver "azeite fervendo"
à sua disposição, Paré teve oportunidade de observar seus pacientes
passando muito melhor. Experimentou a ligação das artérias e vasos, prática
que havia sido abandonada e quase que esquecida pelos poucos médicos que
faziam cirurgia naquele século. Nas muitas amputações de membros que fez,
Paré teve oportunidade de tentar também o uso de retalhos da pele do doente,
junto ao coto, para recobrir a superfície da amputação.
Sempre lutando pela melhoria das condições de seus pacientes com
seqüelas de problemas ortopédicos, de amputações ou mesmo de males
neurológicos, Ambroise Paré chegou a propor o uso de coletes reforçados com
tiras de aço para problemas ocasionados pelos desvios da coluna vertebral,
botas especiais para pés tortos, dentre vários outros aparelhos. Acresce
também lembrar que Paré foi o cirurgião que lançou a expressão "Bec de
Lièvre" (entre nós "lábio leporino") e chegou a preparar obturações palatais
para perfurações traumáticas, de ordem sifilítica ou congênita. Usava
igualmente obturadores para defeitos causados pelas armas de fogo.
- *Antonio de Cabezón: compositor cego*
Um dos maiores e mais conceituados compositores de música para órgão da
Espanha, Cabezón nasceu em Castrillo de Matajudios no dia 30 de março de
1500 e morreu em Madri no ano de 1566. Cego desde a primeira infância,
conseguiu a custo superar todas as dificuldades que se lhe interpunham e em
1521 conseguiu iniciar seus estudos em Palencia. Alguns anos após, já com 26
anos de idade, foi designado organista e clavicordista da Rainha Isabel da
Espanha, tal a sua competência na execução da música sacra nesses dois
instrumentos.
Em 1548 passou a prestar serviços semelhantes ao próprio rei da Espanha
Felipe II. Viajou com a Capela Real da Espanha para a Itália, Alemanha,
Holanda e Inglaterra, tendo obtido um sucesso enorme e feito muitos amigos e
admiradores.
Foi um verdadeiro mestre da polifonia e influenciou decisivamente vários
organistas de seu tempo, inclusive o famoso Thomas Preston, da Capela de
Windsor, na Inglaterra, seu contemporâneo.
- *Goetz von Berlichingen, o "Mão de Ferro"*
São poucas as referências históricas a membros artificiais durante a Idade
Média e primeiros tempos da Renascença. Uma delas diz respeito a uma
prótese parcialmente funcional que foi utilizada durante muitos anos por uma
figura um tanto fora de moda em sua própria época - início e meados do século
XVI - durante a qual boa parte do mundo não estava mais preocupada com
valores predominantes na Idade Média, mas estava francamente à busca de
um modo de viver mais humano.
Trata-se de um famoso cavaleiro alemão apelidado de "Mão de Ferro", ou
seja, Goetz von Berlichingen, nascido em 1480 e morto em 1562. Viveu ele
numa região da Europa que procurava manter um sistema feudal
absolutamente decadente e uma cavalaria em extinção, muito embora como
cavaleiro lutador tenha sido muito valoroso e útil para seus senhores.
O apelido de "Mão de Ferro" deve-se ao fato de Goetz ter recebido uma
profunda ferida na mão direita durante o cerco de Landshut. Complicações que
se seguiram ao acidente ocorrido durante a sangrenta luta levaram à
necessidade de amputação de sua mão. Estava então com menos de 30 anos
de idade.
Logo após sua recuperação tomou todas as providências com pessoas
entendidas no assunto e principalmente com armeiros para a fabricação de
uma mão de metal que mais tarde o imortalizaria. Ela foi tão bem planejada
que podia ligar-se com absoluta segurança e firmeza ao seu antebraço e tinha
a característica principal de poder manter sua espada firmemente presa em
posição de ataque ou defesa.
Por muitos anos mais Goetz envolveu-se em campanhas militares e
escaramuças, tornando-se quase lendário. Casou-se duas vezes e teve
diversos filhos. Foi sem dúvida um dos últimos cavaleiros medievais e da
incipiente Renascença de soberbo renome. Não terminou seus dias sem antes
escrever sua biografia, intitulada: "Vie de Gotz von Berlichingen, dit Main de
Fer".
- *O problema da mendicância organizada nos séculos XVI e XVll*
Muito embora a teoria do humanismo renascentista procurasse valorizar o
homem, na prática as situações de vida continuavam muito abaixo do mínimo
aceitável. A necessidade de sobrevivência continuava levando muitos a
recorrer não apenas à esmola como a expedientes menos honestos, como o
furto e o dolo. Os mais ágeis e menos escrupulosos chegavam a tirar
vantagens muito acentuadas, ao passo que os doentes e os deficientes
socorriam-se apenas das esmolas e muito sofriam com a desleal concorrência
dos falsos mendigos e falsos doentes.
Havia para todos a obrigatoriedade estabelecida pelo imenso grupo dos
mendigos de se vincular a organizações ou a confrarias de miseráveis,
pagando taxas pré-estabelecidas.
Houve épocas, na História da Europa, em que a esmola pública foi explorada
dentro de uma forte organização na qual a figura do doente crônico e do
deficiente físico teve um relevante papel. Podemos verificar a veracidade dessa
afirmação pelo relato objetivo de historiadores.
- *A grande malha organizacional dos miseráveis na França*
Liderados por um personagem conhecido pelo título misterioso de "Grand
Coesre", muitos grupos de mendigos (falsos e autênticos, reuniam-se em
grandes confrarias em diversos países europeus, no correr dos séculos XVI e
XVII. Reuniam nelas malfeitores, ladrões, bandidos, assaltantes de estrada,
alguns tipos de artistas e integrantes do mundo boêmio, além dos pobres
autênticos.
Paul Lacroix (1806 a 1884), literato e erudito francês, autor de importante
série de obras sobre usos e costumes da Idade Média e da Renascença,
apresenta-nos pormenores muito interessantes sobre os mendigos e
miseráveis. É ele que nos informa que na França existia a Ordem de Argot que
congregava diversos tipos de indigentes. Eles usavam um linguajar muito seu,
repleto de gírias exclusivas e matreiras, conhecido pelo nome de "le jargon".
Dentre esses grupos que mantinham identificação própria, nos quais
estavam invariavelmente inseridos pobres com deficiências evidentes, é
importante destacar alguns, tais como:
- os "Orphelins" - mendigavam chorando pelas ruas das cidades;
- os "Marcandiers" - errantes, andavam vestidos com um gibão velho mas de
qualidade, fazendo-se passar por comerciantes arruinados;
- los "Malingreux" - cobertos de andrajos, mostravam suas feridas e chagas
(falsas muitas vezes) e pediam dinheiro para uma pretendida viagem de
peregrinação a um templo milagroso para sua cura;
- los "Piètres" - mendigos com deficiências físicas, locomoviam-se com
muletas ou pequenos aparatos para as mãos e joelhos;
-os "Sabouleux" - pedintes em feiras, mercados e igrejas, simulavam
ataques e convulsões, espumando pela boca graças a um pequeno pedaço de
sabão, rolando pelo chão e conseguindo polpudas esmolas.
Havia também outros grupos de mendigos filiados e especializados em seu
modo de se apresentar ou de atuar em determinados ambientes para
angariação de esmolas em dinheiro ou em espécie: "Callots", "Coquillards",
"Hubins", "Polissons", "Francs Mitoux", "Ruffés", "Millards", "Convertis",
"Narquois" e muitos outros.
Em Paris todos eles pagavam uma taxa fixa por ano ao rei dos mendigos, o
"Grand Coesre", enquanto que nas maiores cidades da França havia seus
lugares-tenentes, conhecidos pelo título generalizado de "Cagoux", que
coletavam as taxas, além de serem os responsáveis diretos pelo treinamento
dos novos mendigos quanto à apresentação, aos apelos ao público e à
linguagem da Confraria.
Esses grupos reuniam-se diariamente, comiam, bebiam, inteiravam-se das
novidades e divertiam-se um tanto grotescamente naqueles famosos e
comentados "Pátios dos Milagres" ("Cours des Miracles"), que eram
logradouros mal iluminados e infectos da mais triste memória. À noitinha aos
poucos iam aparecendo os mais variados tipos de verdadeiros e de falsos
mendigos: amputados, paralíticos, cegos, epiléticos - cada qual trazendo em
seus alforges ou debaixo dos braços algum alimento ou bebida. Lá muitos
abandonavam suas muletas ou bengalas, transformando-se em pessoas bem
dispostas que dançavam todo tipo de música e que bebiam à vontade,
fartando-se sem a mínima preocupação com eventuais dificuldades no dia
seguinte. Sua diretriz maior era alimentar-se e divertir-se no Pátio dos Milagres
"ni foi ni loi" (sem fé nem lei).
Embora a França não fosse a única nação européia a viver esse problema,
ela tomou uma providência que iniciou os primeiros passos no sentido do
equacionamento do "modus vivendi" dos miseráveis daqueles séculos: foi
organizado o "Grand Bureau des Pauvres".
- *O problema da mendicância organizada em outros países*
A Espanha, a Itália, a Inglaterra, a Alemanha e todo o resto da Europa viviam
situações quase que inteiramente semelhantes durante diversos séculos e que,
devido ao alheiamento da nobreza, da burguesia e dos governantes, muito
demoraram para ser sanadas.
A Itália, por exemplo, tinha os seus mendigos e indigentes (conhecidos pelo
apelido de "Bianti" e também de "Ceretani") subdivididos em mais de quarenta
grupos reunidos numa só organização.
Dentre eles cumpre destacar os "Affrati" (vestidos com hábitos sacerdotais,
roubavam as esmolas das igrejas e santuários), os "Accatosi" (pareciam
cativos recém-libertos, com restos de algemas nos punhos e nos tornozelos),
os "Allacrimanti" (apresentavam-se chorando muito suas desgraças), e mais,
os "Morghigeri", os "Felsi", os "Vergognosi" e muitos mais (Apud Lacroix).
Dentre os que obtinham mais e melhores esmolas sempre estavam os
mendigos com deficiências físicas mais sérias ou que mais tocavam a
população.
- *Deficientes mentais no século XVI: entidades não-humanas*
Até o século XVI as crianças com retardo mental profundo eram
consideradas em certos meios como entidades que se assemelhavam a seres
humanos, mas que não o eram. Havia a crença generalizada principalmente
entre alguns religiosos que essas crianças ocupavam o lugar e chegavam a
substituir mesmo crianças normais, através da atuação e interferência diretas
de maus espíritos, de bruxas ou de fadas maldosas e de duendes demoníacos.
E é surpreendente verificar que mesmo intelectuais do mais alto nível
acreditavam sem qualquer sombra de dúvida nesses postulados. Exemplo dos
mais marcantes foi o de Martinho Lutero que negou a própria natureza humana
de uma criança com retardo mental de alguma seriedade. Eis o que Martinho
Lutero relatou a respeito desse caso: "Há oito anos atrás havia em Dassau uma
dessas crianças que eu, Martinho Lutero, vi e examinei. Tinha doze anos de
idade, usava seus olhos e todos os seus sentidos de tal maneira que a gente
poderia pensar que era uma criança normal. Mas ela só sabia fartar-se tanto
quanto quatro lavradores. Ela comia, defecava e babava e se alguém tentasse
segurá-la, ela gritava. Se alguma coisa ruim acontecia, ela chorava. Assim, eu
disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o príncipe, eu levaria essa criança ao
rio Malda, que passa perto de Dassau e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e
o príncipe da Saxônia, que estavam presentes, recusaram-se a seguir meus
conselhos. Eu disse, então: Bem, então os cristãos rezarão o Pai Nosso nas
igrejas e pedirão que Deus leve o demônio embora. E assim foi feito
diariamente em Dassau, e o retardado morreu um ano depois".
Lutero chegou a afirmar que estava convencido de que aquele retardado de
doze anos de idade era apenas massa de carne ("massa carnis") sem alma. "O
demônio possui esses retardados e fica onde suas almas deveriam estar"
(Apud Wolfensberger).
- *A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na Inglaterra*
Passos muito importantes foram dados durante os séculos XVI e XVII na
Inglaterra quanto ao atendimento a alguns grupos especiais de pessoas
incluídas num grupo muito maior: o dos miseráveis. Com o esfacelamento do
regime feudal e a posterior dissolução dos conventos, mosteiros e abadias, por
expressa determinação do rei Henrique VIII (1491 a 1547), logo após seus
desentendimentos com o Vaticano, todos os religiosos foram expulsos da
Inglaterra. Houve uma parcial paralisação e mesmo destruição do sistema de
abrigo e de tratamento de doentes, bem como de assistência vigente e
organizado pelo catolicismo sob a forma de caridade. A maioria desses
edifícios religiosos foi sendo ocupada e utilizada para outros fins.
Entre essa época (1536 a 1539 aproximadamente) e o século XVII poucos
estabelecimentos hospitalares foram criados no Reino Britânico. Durante esses
séculos da Renascença muitos hospitais não sofreram alterações substanciais
na Inglaterra, uma vez que continuaram com suas características básicas de
abrigo ou de mero asilo para doentes até a sua morte, ou também para
deficientes físicos sem condições de sobrevivência e mesmo para velhos
abandonados. O pauperismo na Inglaterra agravou-se com o fechamento dos
mosteiros e abadias.
A deterioração das condições de vida das populações mais pobres, dos
enfermos e dos doentes ou deficientes em geral levou o próprio Henrique VIII a
promulgar a primeira "Lei dos Pobres", pela qual todos os súditos eram
obrigados a recolher o que foi chamado de "taxa da caridade".
As famosas "Leis dos Pobres" da Inglaterra começaram a ser aplicadas na
prática apenas no ano de 1531, pois foi exatamente nesse ano que surgiu um
primeiro ato oficial, autorizando juízes a dar licenças para velhos abandonados
e para pessoas portadoras de defeitos físicos sérios pedir esmolas, mas
apenas em suas próprias comunidades ou, no máximo, em áreas
circunvizinhas.
O problema dos pobres passou a ficar tão sério na Inglaterra que em 1535
iniciaram-se discussões gerais para encontrar soluções aos seus múltiplos
aspectos, sendo uma delas a inserção dos pobres "sem deficiência física" em
trabalhos que eram pagos pela Coroa Inglesa.
No ano seguinte a pressão continuava a mesma, senão maior do que antes,
de tal forma que fundos privados foram organizados para de certa maneira
forçar a participação do povo na solução do problema. A contribuição para a
necessária ajuda aos pobres passou a ser, então, uma obrigação social em
toda a Inglaterra. Essa contribuição, estabelecida no ano de 1576, levou ao
desaparecimento do caráter voluntário daquela anteriormente existente.
Mesmo antes dessa contribuição decorrente de uma determinação legal,
porém, a Inglaterra já vinha estudando as miríades de ângulos da questão da
pobreza e montava instituições em diversos centros urbanos dos mais
pujantes, para o atendimento separado dos pobres devido a incapacidades
físicas ou mentais e pobres devido a circunstâncias de vida, tais como
acidentes e doenças. Estavam incluídos nessas considerações os pobres por
mero desleixo ou por falta de condições para a necessária auto-suficiência.
- *O atendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI*
As crianças inglesas abandonadas, doentes ou portadoras de males
incapacitantes começaram então a ser assistidas por organismos vinculados à
Coroa Britânica e também por iniciativa das comunidades que procuravam
manter seus esquemas com alguns objetivos mais ou menos bem definidos e
que por vezes chegam a surpreender-nos em pleno século XX, pois já no
século XVI incluíam, pelo menos na teoria ou nos seus postulados, o seguinte:
- a obtenção de trabalho para essas crianças ao chegarem à idade requerida
para uma atuação rentável;
- a definição de alguma proteção para elas fora dos orfanatos e dos abrigos
provisórios, ficando aos cuidados de famílias que delas se dispusessem a
cuidar por baixo custo para o governo ou para instituições privadas bem
organizadas;
- internação definitiva em orfanatos, caso nenhuma dessas duas alternativas
chegasse a se concretizar ou a se mostrar viáveis.
- *O "Grand Bureau des Pauvres" da França*
No ano de 1544 foi fundado o "Grand Bureau des Pauvres" na França, sob o
reinado de Francisco I (1494 a 1547), um monarca seguidor de uma filosofia
aparentemente humanista, além de muito voltado para as inovações da
Renascença na Europa. O "Grand Bureau" era composto de burgueses
ocupantes das mais importantes posições em Paris e ficou conhecido pelo
apelido de "Aumône Générale" (Esmola Geral). Com as contribuições que
recolhia conseguia manter os hospitais da Trindade e das "Petites Maisons",
atendendo a doentes pobres, incluindo aqueles com paralisias, amputações,
deformações e cegueira. Organizações semelhantes existiam em diversas
importantes cidades francesas, dando alguma cobertura aos desamparados em
geral quando em situação de doença ou de impedimento contínuo para ganhar
a própria vida.
- *Classificação de indigentes na França no século XVI*
Henrique II (1519 a 1559), rei da França, casado com Catarina de Médicis,
tomou a sério e resolveu prosseguir os esforços de Francisco I. Assinou um
decreto em 1547 através do qual impôs aos parisienses uma coleta em favor
dos indigentes.
Eles eram, àquela época, classificados em três categorias principais:
"Robustes" - os que não eram doentes ou deficientes e podiam trabalhar ;
"Invalides" - com problema sério de invalidez, mas com domicílio;
"Invalides sans feu ni lieu" - deficientes sem abrigo nem domicilio.
A primeira categoria tinha direito a empregos sem dificuldades; a segunda
recebia ajuda em seu próprio domicilio; a terceira - a dos inválidos sem lar - era
recolhida a um abrigo.
- *Luís de Camões, o poeta épico português por excelência*
O "cavaleiro-fidalgo" Luís de Camões (1524 a 1580) engajou-se na vida
militar, servindo em Marrocos entre os anos de 1545 a 1548. Ali perdeu um de
seus olhos em escaramuças com os marroquinos. Pouco depois voltou a
Lisboa e aos ambientes da corte. Tendo lá chegado, a notória deficiência
passou logo a ser motivo de algumas brincadeiras e zombarias por parte de
uma jovem por quem Camões sentia forte atração. Segundo amigos mais
próximos do poeta, ela se referira a ele como "cara sem olhos".
Luís de Camões, em seus 25 anos, sentiu a agulhada do comentário. Mas
acabou por transformá-lo em um galanteio com o seguinte verso dirigido à
mimosa dama:
"Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu:
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam
Vendo-os, olhos sobejam,
Não vos vendo, olhos não são" ...
A deficiência, que poderia ter arruinado a vida de um jovem galante, não
prejudicou nem a vida guerreira e aventuresca, nem a vida literária de Luís de
Camões que muitos anos mais tarde, após infindáveis viagens para Goa,
Calabar, Meca, Índia, China, Málaca, ilhas de Malásia, Moçambique e outros
lugares, escreveu a epopéia portuguesa que intitulou de "Os Lusíadas".
- *Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha*
Navarrette, conhecido pelo cognome de "El Mudo" foi pintor da Escola
Espanhola. Nasceu em 1526 em Logroño e faleceu em Toledo em 1579.
Recebeu lições de Ticiano e com 42 anos de idade foi convidado pelo rei Felipe
II (o mesmo rei que tinha um organista cego) a decorar El Escorial. A
incapacidade de falar não o inibiu em seus múltiplos relacionamentos durante o
empreendimento. Cita-se entre suas obras mais famosas o quadro intitulado
"São João Escrevendo o Apocalipse". Outra obra sua muito conhecida é o
quadro "Martírio de São Tiago, o Maior".
- *Continua a epopéia dos hospitais nos séculos XVI e XVII*
Ainda dentro do século XVI a situação dos hospitais continuava
extremamente ruim nos países do continente europeu, apesar dos muitos
esforços feitos pelas ordens religiosas. Havia enorme falta de higiene,
negligência e às vezes até crueldade por parte de atendentes mal preparados.
E foi nessa situação que surgiu no cenário dos hospitais a figura de Camilo De
Lélis (1550 a 1614) que com 25 anos de idade resolveu devotar-se a doentes
hospitalizados. Trabalhou inicialmente com doentes crônicos internados no
Hospital de São Tiago para Incuráveis, em Roma.
Fundou uma congregação de religiosos para o serviço hospitalar que
preparava ministros para os enfermos, a fim de dar a requerida atenção ao
corpo e à alma do doente.
Ele mesmo foi mais tarde vítima de ulcerações malignas numa das pernas,
que o tornaram parcialmente deficiente até o final de sua vida. Os "Camilianos",
como passaram depois de muitos anos a ser reconhecidos, contribuíram muito,
através dos vários séculos de sua existência, para a melhoria dos padrões de
atendimento nos hospitais e nas casas de saúde onde tiveram oportunidade de
atuar.
Com raras e honrosas exceções muitos hospitais da Alemanha e da França
começaram, já no século XVII, a passar gradativamente para o controle dos
governos locais. Sob a firme orientação do cardeal francês Jules Mazarin (1602
a 1661), alguns esforços especiais foram coordenados pelo governo francês
para colaborar na solução ou pelo menos na diminuição dos sofrimentos e das
dificuldades vividas pelos mendigos e pelos doentes pobres e incuráveis, e no
meio deles sempre inseridos por não terem outro destino os deficientes físicos
e mentais.
Foram também criados na França, em 1656, os chamados Hospitais Gerais
(Hôpitaux Généraux) que eram uma combinação de asilo e de hospital, mas
bem melhor organizados e onde os serviços médicos estavam sempre
presentes e a medicação era melhor controlada e administrada. Foi nesses
hospitais gerais da França que pessoas deficientes foram também atendidas e
passaram a ser objeto não só de abrigo e alimentação, como de assistência
médica.
- *Galileo Galilei, matemático, astrônomo e físico*
Nascido em Pisa no ano de 1564, Galileo foi o primeiro homem a usar um
telescópio. Após anos de contínuos e dedicados estudos, provou que a terra
não era o muitas vezes pretendido "centro do universo", e que ela girava em
torno do sol. Era uma teoria muito ousada para a época da incipiente
Renascença e principalmente para as autoridades da Igreja Católica. Face à
gravidade das suas afirmações que, no conceito de muitos iria atingir
duramente a posição até então assumida e defendida pela Igreja e seus
doutores, Galileo foi preso e formalmente acusado na Inquisição. Devidamente
julgado, foi condenado a se desdizer e a passar seus últimos oito anos de vida
em casa, sob custódia. No entanto, continuava a crer em sua teoria e morreu
em 1642 balbuciando suas famosas últimas palavras: "Eppur, si muove" (no
entanto, ela se move ...).
Galileo sofria de um problema reumático sério e em conseqüência dele
acabou ficando cego nos últimos quatro anos de sua vida. Continuou, todavia,
estudando e mantendo correspondência científica, ditando seus trabalhos e
suas cartas a dois de seus alunos: Viviani e Torricelli.
No dia 4 de julho de 1637 o grande cientista escreveu uma carta a Donati,
seu antigo companheiro, na qual se queixava: " ... Encontro-me acamado há
cinco semanas ... Acrescente-se, oh dor!, a perda total de meu olho direito que
é aquele que fez tantos tantos e tantos, seja-me lícito dizer, trabalhos gloriosos!
Ele está agora, meu senhor, cego: o outro, que era e é imperfeito, mantém-se
ainda sem o pouco uso que dele poderia fazer se o operasse, uma vez que um
lacrimejar contínuo me tira a possibilidade de fazer qualquer qualquer qualquer
das funções que se espera da visão" (Apud Germani).
- *O continuo problema dos soldados mutilados*
No atendimento ao soldado doente ou mutilado devido a atividades
relacionadas às lutas armadas ou em atividades afins, sabe-se que, por ordens
diretas de Henrique IV, da França, que reinou entre 1589 e 1610, foi
organizado na Maison de la Charité, em Paris, um abrigo para os soldados
franceses de todos os níveis. Era uma das primeiras e notórias tentativas
européias destinadas a dar cobertura de assistência aos problemas daqueles
homens que arriscavam sua integridade física e sua saúde em benefício de sua
terra, de sua gente e de seu rei.
- *Os trabalhos com os deficientes auditivos no século XVII*
As idéias defendidas no correr do século XVI sobre os surdos e surdos-
mudos não eram na maioria dos casos passadas para a prática e foi Juan
Pablo Bonet que deu os primeiros passos nesse sentido. Escreveu sua obra
intitulada "Reducción de las Letras y Arte para Enseñar a Ablar los Mudos",
levantando questões a respeito das causas das deficiências auditivas e dos
problemas da comunicação oral. Chegou a indicar qual a idade mais
recomendável para crianças mudas poderem se beneficiar do aprendizado
para falar.
Concluiu que havia basicamente duas causas para o mutismo: a primeira e
mais importante era a surdez; a segunda era algum eventual defeito na língua.
Quanto à melhor idade para a criança surda aprender, achava que seria entre 6
e 8 anos, apesar de reconhecer as dificuldades de fazer as crianças exercitar-
se para tornar a língua mais ágil para articular palavras: elevá-la até o palato,
entortá-la, baixá-la, curvá-la para a direita e para a esquerda, colocá-la para
fora da boca em posições diversas, atritá-la ou raspá-la contra os dentes,
enfim, todas as posições indispensáveis para alguém falar.
Além disso Bonet condenava métodos brutais de gritarias e de
enclausuramento em caixas que provocavam ressonância, defendendo sempre
a necessidade de se garantir a compreensão dos alunos quanto ao que deles
se esperava. Achava que o mestre e o aluno deviam ficar a sós e num
ambiente bem iluminado porque a instrução exigia toda a concentração
possível e o aluno precisava também observar bem a boca de seu mestre tanto
do lado de fora quanto do lado de dentro.
Outro autor que marcou época no século XVII no campo da surdez foi o
inglês John Bulwer (1600 a 1650), com sua obra intitulada "Philocophus" e que
tinha como sub-título elucidativo a pouco modesta intenção do autor: "O amigo
dos homens surdos e mudos mostrando a verdade filosófica da sutil arte que
pode capacitar alguém com olhar observador a ouvir o que qualquer homem
fala pelo movimento de seus lábios. Provando aparentemente que um homem
nascido surdo e mudo pode ser ensinado a ouvir o som das palavras com seu
olhar e de aprender a falar sua língua" (Apud Mullett).
Bulwer foi um dos primeiros educadores que defendeu um método de ensino
da leitura labial, apesar de ter escrito também sobre a linguagem dos sinais.
Há outros autores e educadores que atuaram com determinação e
competência nesse campo no correr do século XVII e dentre eles cumpre
chamar a atenção para Kenelm Digby, John Wallis, William Holder, John
Wilkins e Francis Mercury van Helmont.
- *Johannes Kepler, astrônomo alemão*
Nascido em 1571 e falecido em 1630, Kepler desenvolveu importantes
estudos sobre o movimento dos planetas, que muito ajudaram na elaboração
das bases modernas da astronomia.
O que poucos sabem, todavia, é que Kepler tinha uma séria deficiência
visual, causada pelo sarampo contraído aos quatro anos de idade. As
dificuldades causadas pela severa redução da acuidade visual, entretanto, não
afetaram sua forte vontade de aprender e de estudar. Apesar de pobre,
superou os problemas e mil dificuldades que se interpunham aos seus
propósitos e trabalhou muito.
Kepler legou ao mundo três leis básicas da astronomia, conhecidas pelo seu
nome, das quais a mais popular é esta: "As órbitas dos planetas são elipses,
tendo o sol como um dos seus focos" ...
- *Padre Lejeune, maior pregador do século XVII*
Nascido em Poligny (França, o padre Jean Lejeune foi o mais célebre
pregador de seu século, segundo seus biógrafos. Perdeu a visão aos 43 anos
de idade quando pregava durante a quaresma na cidade de Rouen.
Mas a cegueira não diminuiu sua competência de grande orador nem sua
alegria sempre muito natural.
Lejeune morreu aos 80 anos de idade, muito ativo e muito vivaz, apesar das
doenças. A solidez de suas idéias e o seu estilo levaram o prelado e ao mesmo
tempo grande pregador das cortes de Luís XIV e Luís XV, Massillon, a
recomendar a muitos seminaristas e jovens sacerdotes o estudo de seus
maravilhosos sermões publicados em dez volumes sob o título de "Le
Missionaire de l'Oratoire", entre 1662 e 1676.
- *Novas formas de utilizar os hospitais*
A permanente luta para a criação de entidades hospitalares, ou pelo menos
de organizações destinadas ao atendimento de pessoas com problemas
crônicos ou gravemente incapacitadas para a vida independente, na época da
Renascença, refletia o crescente papel que o Estado assumia para encontrar
soluções para problemas sociais e econômicos de sua população, ou também
de algumas entidades privadas em muitos países europeus.
Na Alemanha, por exemplo, a responsabilidade pela manutenção de
hospitais, após a reforma protestante, passou durante muitos anos para as
mãos das corporações municipais.
Devido à precariedade de recursos para o aprendizado da medicina, além
das dificuldades dos médicos em adquirir experiência de ordem mais
significativa na proximidade e mesmo convívio com colegas de profissão e de
trabalho, uma importante e muito auspiciosa tendência começou a surgir no
século XVII: a de considerar os hospitais não mais como meros depósitos de
doentes pobres e nos quais os médicos quase nem compareciam ou davam
atendimento, mas como uma organização destinada ao tratamento e à cura
das pessoas doentes, com uma inegável possibilidade de se tornarem centros
de estudos de casos e de treinamento prático de estudantes de medicina.
A Holanda, liderando o ainda mal definido movimento, e reconhecendo a
necessidade de poder contar com médicos melhor preparados, instalou no ano
de 1626, na cidade de Leyden, o primeiro sistema de treinamento prático e
bem orientado de médicos nos hospitais, o que sem dúvida acabou levando a
medicina a prestar muito maior atenção não apenas aos doentes vitimados por
males curáveis e comuns, mas também por males ainda pouco conhecidos que
levavam à permanente vinculação ao leito, ou ainda a problemas
incapacitantes do físico e do mental.
- *As deficiências físicas em peças de Shakespeare*
Nascido no ano de 1564 e morto em 1616, William Shakespeare foi o maior
poeta e dramaturgo inglês de todos os tempos. Tal é sua versatilidade que para
muitos ele dá a impressão de ter formação médica, devido à demonstração que
faz de seus conhecimentos de anatomia, neurologia, fisiologia e outras áreas
afins, colocados em diversas de suas peças. O volume de citações que faz de
males incapacitantes é bastante expressivo.
Em diversas de suas obras o leitor poderá encontrar casos de fraturas
graves, de mutilações, de deformidades congênitas ou adquiridas.
Como todos sabem, Shakespeare escreveu peças imorredouras, tais como
Romeu e Julieta, Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão, Rei Lear, Mácbeth e
outras. Há diversas que são pouco conhecidas entre nós e que têm muita
importância em sua imensa obra literária, e nas quais o genial escritor insere
personagens com deficiências, como em Ricardo III, Henrique IV, Henrique VI,
Henrique VIII, Tróilus e Créssida, a Tempestade, Titus Andronicus, Péricles e
Otelo.
Vejamos alguns exemplos ilustrativos, iniciando pela peça Titus Andronicus.
Trata-se de uma tragédia de proporções vastas. Um dos personagens, Lavínia,
filha de Titus, teve seus braços cortados e sua língua decepada em dramáticas
circunstâncias. O autor explora muito bem o fato narrado e suas circunstâncias,
dando cores muito vivas a todas as cenas em que Lavínia aparece. Esse realce
é mais evidente na cena em que, de certa forma imitando a lenda de Filomela,
Lavínia consegue indicar os culpados pela sua situação, mesmo sem ter mãos
para escrever ou língua para falar.
Na tragédia Otelo, o personagem Cássio é ferido traiçoeiramente na perna
pelo pérfido lago e grita desesperado na escuridão de uma rua cipriota: -
"Estou aleijado para sempre! Socorro! Assassino!", ...
Ao leitor não fica muito clara a extensão da lesão, embora algumas frases
dos diálogos que seguem sejam bem indicativas. Da boca de Cássio temos,
por exemplo, estas duas frases:
- "lago? Oh! ... Fui inutilizado, aniquilado por vilões" ...
- "Minha perna foi cortada em duas" ...
Já na tragédia Ricardo III, Shakespeare associa o defeito congênito com
maldade, perfídia, malícia, o que sucede também na peça Tróilus e Créssida,
com a indefinível figura de Térsites. Ricardo III (rei que existiu de fato, mas
certamente sem muitas das aberrações alegadas por Shakespeare) é
identificado na peça como "montão de ódio", "massa ignóbil e disforme", "tão
disforme de maneiras quanto de corpo", "rochedo fatal e disforme" e "sapo".
Essa peça é iniciada com um monólogo muito revelador desse rei
controvertido a respeito de cuja figura histórica surgem muitas dúvidas: - "Mas
eu, que não fui talhado para habilidades esportivas nem para cortejar um
espelho amoroso; que, grosseiramente feito e sem a majestade do amor para
pavonear-se diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu, privado dessa bela
preparação, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza; disforme,
inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos vivos;
terminado pela metade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que os cães
ladram para mim quando paro perto deles; pois bem, eu, neste tempo de
serena e amolecedora paz, não acho delícia em passar o tempo, exceto espiar
minha sombra no sol e dissertar sobre a minha deformidade" (Apud Miller e
Davis).
- *A superação de deficiências no século XVII: um exemplo*
Por toda a história do homem na Terra certamente que esforços individuais
de naturezas as mais variadas foram desenvolvidos para a eliminação dos
bloqueios e das muitas dificuldades causados por limitações físicas e
sensoriais. Bengalas ou bastões de apoio, calçados especiais, muletas,
coletes, próteses, macas e camas móveis, cadeiras especiais, carros
adaptados, liteiras e muitas outras idéias devem ter surgido em muitas
ocasiões. No entanto, por milênios, essas adaptações e criações não causaram
maior impacto sobre os homens detentores do poder ou do dinheiro, uma vez
que o problema sempre foi considerado como puramente individual e não dos
governantes.
Conforme percebemos até este ponto da existência do homem, diversos
casos de pessoas portadoras de deficiências foram até passados para a
imortalidade da História. Relembremos aqui os nomes de Homero, de Dídimo
de Alexandria, dentre tantos. O primeiro, apesar de cego escreveu fabulosos
poemas épicos que integram até hoje o acervo dos melhores trabalhos já
produzidos pelo homem. E quanto a Dídimo, também foi um exemplo digno de
nota, chegando o ilustre diretor da Escola de Alexandria - também cego - a
utilizar-se de um recurso até hoje muito usado pelos cegos que pretendem
estudar ou manter-se atualizados: os ledores.
Pela metade do século XVII, na Europa, alguns homens notáveis
procuravam também solucionar problemas de ordem prática para pessoas
portadoras de deficiências físicas sérias, especialmente nos casos daquelas
que tinham posses e podiam pagar pela criatividade dos artesãos. E um dos
homens inventivos e de grande iniciativa foi o alemão Stephen Farfler, que
havia sido vítima de algum tipo de paralisia nas pernas. Segundo nos conta
Pecci, foi ele "o primeiro a se locomover numa cadeira de rodas. Paraplégico
desde os três anos, ele mesmo a idealizou e construiu quando tinha 22 anos,
em 1655. Era uma cadeira baixa, pequena, toda de madeira, com duas rodas
atrás e uma na frente. A da frente era acionada por duas manivelas giratórias.
O próprio Stephen a movimentava. Ele utilizava essa cadeira não apenas em
casa, mas saia com ela, trabalhava e passeava. Usou-a até a sua morte, aos
56 anos, ocasião em que o veículo foi levado à Biblioteca Municipal de
Nuremberg, onde ficou exposta até 1945, quando um bombardeio a destruiu"
("Minha Profissão é Andar", de Pecci).
Outros homens do século XVII superaram sua deficiência e deixaram
legados brilhantes. Milton (1608 a 1674), um dos maiores poetas ingleses, ficou
cego com aproximadamente 45 anos de idade. Conseguiu ajuda e continuou
suas obras, tendo escrito o monumental "Paraíso Perdido" e outras obras mais,
após a instalação da cegueira.
- *John Milton: o significado de sua cegueira*
Alguns autores têm escrito sobre a cegueira desse grande escritor inglês e
têm arriscado um diagnóstico da causa desse grave problema que mudou a
vida de John Milton. Dentre esses diagnósticos cumpre destacar os seguintes:
castigo de Deus devido à sua participação na revolta de Cromwell, catarata,
glaucoma crônico, complicações de miopia, descolamento de retina, glaucoma
agudo devido a crises emocionais, albinismo,
neuroretinite de origem sifilítica congênita, e também "fraqueza natural".
A fonte mais preciosa de informação quanto às reações de Milton à perda da
visão é uma carta que ele mesmo escreveu a seu amigo Leonard Philaras.
Dentre os muitos ângulos abordados pelo escritor cego, convém ressaltarmos
as belas frases em que mostra a forma como aceita sua cegueira.
Diz ele: " ... minha escuridão, por singular misericórdia de Deus, com a ajuda
de estudos, lazer e a bondosa conversação de meus amigos, é muito menos
opressiva do que a mortal escuridão à qual se alude. Porque se, conforme está
escrito, o homem não vive só de pão, mas de cada palavra que vem da boca
de Deus, por que um homem não pode realmente aceitar isso, pensando que
só pode obter a luz de seus próprios olhos, julgando-se, todavia,
suficientemente iluminado pela orientação e providência de Deus? Portanto, já
que Ele prevê as coisas e me dá cobertura, como faz, e me leva para diante e
para trás pela Sua mão, como se o fizesse pela vida toda, não poderei eu dar
uma folga a meus olhos, já que esse parece ser o Seu prazer?"
Na verdade, durante os 22 anos de sua cegueira, Milton tornou-se bem mais
ativo e sua atividade de trabalho cresceu como nunca antes ocorrera. Os
primeiros oito anos de sua vida como cego ele os dedicou a Cromwell, como
Secretário para Línguas Estrangeiras. Traduzia cartas do latim para o inglês e
vice-versa. Milton trabalhava com a ajuda de secretários e amanuenses.
Organizou um dicionário de latim, preparou uma história da Inglaterra para
publicação e chegou a publicar um estudo muito sério sobre a doutrina cristã.
Além disso, sempre manteve extensa correspondência, como era costumeiro.
Conforme nos diz Snyder, o fato de Milton ser lembrado pelos seus escritos
quase desconhecidos nos dias de hoje não é tão significativo. O fundamental é
nos lembrarmos que suas lindas declarações de fé foram compostas por um
homem que era cego. Milton, que sempre se sentiu nas mãos de Deus,
conseguiu no seu mundo de escuridão o que muito poucos homens que vivem
na luz conseguiram sequer igualar.
John Milton casou-se três vezes. Sua terceira esposa era uma mulher muito
bela, mas dona de um temperamento difícil e muito violento. Dizem que quando
o Lord Buckingham comentou com ele que considerava que ele havia casado
com uma verdadeira rosa, Milton respondeu: "Não posso julgar pelas cores,
Lord, mas sinto-o pelos espinhos".
- *São Vicente de Paulo: suas obras face às tendências do século XVII*
Nas muitas tentativas de atendimento à vasta população mais pobre em
diversos países da Europa, começaram a surgir novidades e alterações
significativas, quando em 1634 apareceu um abnegado e obscuro sacerdote:
Padre Vicente de Paulo (1581 a 1660), nascido em Pouy, na França. Fundou
instituições para crianças pobres e abandonadas, doentes e defeituosas e que
em muitos casos estavam sendo exploradas para mendigar. Sua atuação levou
à criação de congregações religiosas que se destinaram ao cuidado do doente
pobre, como os Padres Lazaristas e as Irmãs de Caridade.
Assim como em outras áreas do desenvolvimento humano e científico
incrementado durante a Renascença, no século XVI I começara a brilhar muito
tenuemente um pouco de justiça para pessoas fisicamente limitadas, bem
como para toda a parcela da humanidade que se encontrara até então
subjugada pela miséria e pela doença, pois durante quase toda a sua duração
o mundo caminhou com firmeza para melhores condições de vida.
- *A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra*
Conforme verificamos anteriormente, toda a legislação relacionada aos
pobres que "infestavam" a Inglaterra, desde o seu aparecimento, foi revista e
re-editada em 1601, sob a rainha Elizabeth I (1533 a 1603). Esse acervo de leis
e de normas, que levou muito em consideração os incapacitados devido a
qualquer tipo de mal, foi de certa forma codificado no ano de 1623, tendo a
partir daí sido reconhecido como "A Velha lei dos Pobres".
Nessa codificação nova, as paróquias foram reconhecidas definitivamente
como unidades básicas para sua administração e coordenação. Essa função
adicional aos trabalhos da Igreja coube a supervisores designados por juízes
locais que tinham a função de avaliar o montante de contribuição destinada a
cada pobre e o volume de ajuda que cabia a cada cidadão. Quando
estabelecida e ratificada pelo juíz local, essa ajuda tornava-se obrigatória para
a comunidade.
Pois bem, foi com esses fundos que os velhos e os deficientes foram
atendidos e receberam abrigos em áreas pouco povoadas; crianças pobres
receberam treinamentos; os pobres sem deficiência foram encaminhados para
empregos.
O período de vigência da "Lei dos Pobres" (Poor Law) que vai até o ano de
1644 foi muito importante. Foi iniciado um sistema centralizado de cobrança de
providências a nível local, pois era notório o fato de que, mesmo onde não
havia pressão de trabalho, onde esquemas assistenciais funcionavam bem,
nas paróquias muito distantes e onde a supervisão tornava-se impraticável,
muitas vezes os pobres eram assistidos sem qualquer relação aos preceitos da
lei que forçava a isso.
Houve também uma chamada "lei de localização e de remoção", de 1662,
definindo melhor o papel de cada paróquia. As leis iniciais indicavam que o
direito à assistência era local e da comunidade. Assim, as paróquias tinham
que se prevenir contra a presença de estranhos ou de pessoas que poderiam
se beneficiar de mais de um programa assistencial ou dispensarial. O
preâmbulo dessa "lei de localização e de remoção" dizia que pessoas pobres
não eram impedidas de se mudar de uma paróquia para outra e podiam assim
estabelecer-se naquelas em que havia melhor estoque de matéria prima (para
os trabalhos destinados aos pobres), os maiores terrenos para construir
barracos e o maior volume de madeira para queimar durante o inverno e
também para outros usos.
Essa nova legislação dava às paróquias até poder para remover pessoas
idosas, defeituosas e incapacitadas, com menos de três anos de residência.
Dessa maneira, nenhuma ajuda poderia ser dada aos pobres, aos aleijados
e aos mendigos quando fora de suas paróquias, a menos que houvesse
autorização especial de um juíz. Os nomes desses pobres, seguidos de dados
de identificação, eram lançados num livro especial que era revisto
cuidadosamente uma vez por ano.
Ao final do século XVII, formalizou-se na Inglaterra a estigmatização dos
pobres velhos, órfãos, deficientes - pois aqueles que eram "autorizados" a
receber ajuda mensal das paróquias, eram obrigados - a partir de 1697 - a usar
em sua roupa externa (casaco, capa, manta, abrigo) um grande "P" vermelho
ou azul.
- *O nascer da ortopedia como especialidade*
Dentre os muitos progressos e melhoramentos ocorridos no século XVII, é
de se ressaltar o que sucedeu na área da medicina, praticamente em
conseqüência do que vinha sendo feito desde vários séculos antes. Na França,
por exemplo, no ano de 1662, foi determinado pela coroa real que cada cidade
deveria criar o seu próprio hospital. As especialidades médicas começaram
também a se definir, tendo a ortopedia sido, sem qualquer dúvida, a primeira a
ser estabelecida como tal, apesar de não ter sido, de início, reconhecida pela
nomenclatura de "ortopedia". Dessa forma, foi durante a Renascença que ficou
registrado um dos primeiros avanços muito sérios na medicina, desde as
remotas épocas clássicas greco-romanas.
Dentre os muitos motivos que podem ter levado à definição de uma
especialidade médica que cuidava dos problemas de ossos e de mutilações,
não se deve menosprezar o fato de a ortopedia ter se desenvolvido mais
rapidamente devido à obrigação de o Estado manter serviços médicos para
seus soldados feridos ou amputados em batalha, desde tempos os mais
remotos, conforme pudemos observar. A proteção a soldados mutilados ou
inválidos pelos azares das batalhas mereceu a atenção de toda a Europa
Renascentista, e de um modo especial da França que, por determinação do rei
Luís XIV (o Rei Sol), em ato assinado no dia 15 de abril de 1670, mandou
construir um verdadeiro palácio (Hôtel, em francês) para alojamento e
tratamento de seus oficiais e soldados feridos e inválidos para o serviço militar.
Temos hoje, no centro de Paris, o famoso "Hotel des Invalides", um
monumento do passado que é ainda hoje um orgulho dos franceses.
Certamente dentro dessa linha de pensamentos e de preocupações, e por
certo para não ficar numa posição de desequilíbrio de prestígio com a França,
o rei Carlos II, da Inglaterra (1630 a 1685), fundou em Chelsea um lar para o
que chamava, em sua linguagem pitoresca, de "worthy old soldiers, broken in
the wars" (velhos valorosos soldados, batidos pelas guerras). Tratava-se do
Hospital Real de Chelsea que teve suas instalações concluídas em 1692. O
imprevisível Carlos II mandou abrir uma lista de subscrições para a construção,
para a qual cedeu o terreno. Muitos contribuiram, inclusive Sir Stephen Fox,
Diretor Geral das Finanças do Reino, que foi nomeado pelo rei como
administrador geral dos edifícios.
O arquiteto que planejou e construiu o Hospital Real de Chelsea não
conseguiu disfarçar a forte influência das idéias contidas no Hôtel des Invalides
e no Hospital de Kilmainham, de Dublin, na Irlanda. Compõe-se ele de dois
edifícios principais, podendo abrigar até seis companhias, num total de 558
pensionistas. Cada homem tinha e tem até os dias de hoje um alojamento
(quarto) próprio, pequeno mas totalmente individualizado. Os pensionistas
enfermos eram alimentados e medicados na enfermaria que foi completamente
destruída durante um bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial. Desde
a sua criação até os dias de hoje os pensionistas devem ter mais de 55 anos
de idade, ter uma deficiência física e ser auto-suficientes em seus cuidados
pessoais.
O visitante desse antigo abrigo e hospital para soldados portadores de
deficiências físicas poderá ainda hoje apreciar uma interessante coleção de
quadros, de fotos, de medalhas e de condecorações, expostos no espaçoso
salão de entrada da organização. Troféus e bandeiras capturados durante as
muitas batalhas em que pensionistas participaram não podem, entretanto, ser
mais apreciados ali, uma vez que foram todos devolvidos às unidades de
origem dos homens ali internados.
- *Quatro cegos brilhantes: Saunderson, Metcalf, Euler e Blacklock*
Nicolas Saunderson (1682 a 1739), apesar da cegueira, chegou a inventar
uma prancheta de calcular e publicou várias obras, dentre as quais destacamos
"Elementos de Álgebra". O primeiro volume desta obra expõe um método que
ficou conhecido como "aritmética palpável" e que permite ao usuário fazer
todas as operações de aritmética com o uso do tato. Saunderson tornou-se
professor brilhante na Universidade de Cambridge e foi um dos grandes
expositores das teorias de Newton, dedicando-se de um modo todo especial às
teorias da luz e das cores.
John Metcalf (nascido em 1717) perdeu a visão aos 7 anos. Sempre foi
muito hábil e de quando em quando as pessoas desconfiavam que não era
cego devido à sua extrema facilidade em se movimentar, cavalgar e em nadar.
Sua genialidade levou-o a dedicar muito de seu tempo à construção de pontes
e de estradas. Foi conhecido nos meios oficiais ingleses como "Blind Jack".
Sua competência comprovada na remodelação de estradas em péssimas
condições e na construção de pontes tornou-o uma figura imortal na história
das estradas em todo o mundo.
Leonhard Euler (1707 a 1783) foi um geómetra suíço que perdeu a visão aos
58 anos de idade. Adaptou-se bem à nova situação e prosseguiu com extremo
afinco em suas atividades científicas. Escreveu "Elementos de Álgebra" e três
volumes sobre dióptrica, que é a parte da física que estuda a luz de acordo
com os elementos que atravessa. A Academia de Ciências de Paris chegou a
premiar várias de suas obras.
Thomas Blacklock (1721 a 1791) perdeu a visão aos 6 meses de idade
devido ao sarampo. Desenvolveu muito bem seus estudos e chegou a se
formar na Universidade de Edinbourgh. Tornou-se ministro evangélico em 1759
e destacou-se nas letras como um dos melhores poetas escoceses. É
conhecido como "O Poeta Cego". Redigiu diversos tratados de teologia e foi
colaborador da Enciclopédia Britânica, escrevendo um artigo sobre a cegueira.
Escreveu também: "Consolações Tiradas da Religião Natural e Revelada", o
poema épico "Graham" e "Observações sobre a Liberdade". Thomas Blacklock
deu também apoio a poetas mais jovens, sendo Robert Burns o exemplo mais
marcante.
- *Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas*
Alexandre nasceu em Londres no ano de 1688, de pais católicos e bastante
idosos, tendo sido considerado por todos que o conheceram um poeta nato.
Além de suas obras originais (as "Pastorais", a "Floresta de Windsor", o
"Tratado sobre a Crítica", o "Tratado sobre o Homem" e várias outras). Pope
traduziu o poema épico Ilíada, de Homero, pelo que recebeu um total de
£5.000. Segundo diversos críticos, foi a mais nobre versão de poesia épica que
o mundo jamais apreciou. O sucesso foi tão grande que Pope traduziu também
a Odisséia, com o que ganhou mais £3.000. Com isso, tornou-se
financeiramente independente.
Ele foi o mais famoso poeta de seu tempo na Inglaterra, tendo mostrado
forte predileção pela crítica mordaz, com a qual agredia seus desafetos, dando
vazão à sua agressividade.
No entanto, cabe notar que Alexandre era portador de sérias limitações
físicas desde o nascimento. Existe a seguinte descrição de Pope, feita por um
brilhante pintor inglês, Sir Joshua Reynolds: "Ele tinha aproximadamente 4 pés
e 6 polegadas de altura" (1,37 m), "muito corcunda e deformado. Usava um
casaco preto e, de acordo com a moda de então, usava uma pequena espada.
Tinha olhos grandes e bonitos, e um nariz longo simpático; sua boca tinha
aquelas marcas peculiares que sempre são encontradas nas bocas de pessoas
falsas; e os músculos que lhe corriam pela face eram tão fortemente marcados
que pareciam pequenos cordéis" (Apud MacNalty).
Sempre doentio, dizia que sua musa ajudava-o na sua longa doença, ou
seja, sua vida. Na infância sofreu severamente com raquitismo e por causa
desse mal ficou corcunda, com acentuada curvatura da espinha dorsal. A parte
da frente da caixa toráxica também era deformada e um dos lados do corpo era
afetado por uma forte contração.
Dizem seus biógrafos que a amargura de suas poesias e a agressividade de
muitos momentos seus são devidos a essas deformações.
Adicionando aos seus problemas já tão graves, Pope teve um dia os tendões
de dois dedos da mão direita gravemente prejudicados durante um acidente.
Pope morreu em 1744, após uma continua e heróica luta contra doenças e
dificuldades causadas por suas deficiências físicas. Sua vitória maior está
retratada em sua poesia. E foi exatamente esse produto de sua inteligência,
criatividade e sentimentos que lhe garantiram um imorredouro lugar na
literatura inglesa, sendo o representante principal de seu classicismo.
- *A reformulação hospitalar inglesa*
Ainda no início do século XVIII, em conseqüência dos atos que levaram ao
confisco e à destruição dos mosteiros e conventos e à expulsão dos religiosos
que estavam vinculados à Santa Sé, em Roma, atos esses iniciados
aproximadamente nos anos de 1536 a 1539, sob o reinado de Henrique VIII,
poucos hospitais existiam. A maioria deles encontrava-se localizada em
Londres e quase todos dispunham de instalações muito precárias. Nessa
situação continuavam eles a receber doentes crônicos e pessoas seriamente
incapacitadas por deficiências físicas e por problemas mentais, uma vez que
fora de suas instalações não conseguiriam sobreviver.
Pela metade do século XVIII, quando Londres contava apenas com 7
hospitais gerais, alguns hospitais especializados foram construídos ou
montados em instalações adaptadas. Um deles passou a servir pessoas que
até hoje são marginalizadas da sociedade maior, ou seja, as vítimas de
problemas mentais graves. Tratava-se do Hospital Saint Luke. Foi mais ou
menos por essa época que outras áreas da medicina começaram a melhor
definir-se como especialidades médicas também na Inglaterra, em adição
àquela que cuidava dos problemas dos ossos, das amputações e dos males
deformantes.
No atendimento à população civil, surgiram algumas instituições em diversos
países europeus, seguindo exemplo na Inglaterra, financiadas pelo poder
governamental, somando esforços com muitas contribuições obrigatórias, ou
mesmo por doações avulsas e eventuais de ricas famílias ou nobres
abastados, como sucedeu no caso do Conde Baden, que no ano de 1722 criou
um lar para inválidos em Pforzheim.
- *A "Ortopedia" de Nicholas Andry*
No ano de 1741 Nicholas Andry, um professor da Universidade de Paris,
adotou um neologismo para identificar a mais antiga das especialidades
médicas: "Ortopedia". Segundo seus esclarecimentos, essa nova e jamais
anteriormente utilizada palavra derivava de "orthos", que significa "direito" ou
"reto", e "pais, paidós", que corresponde a "criança", na língua grega. Segundo
o próprio Andry, tratava-se de uma nova "arte de prevenir e de melhorar nas
crianças as deformidades do corpo". Outros autores e médicos que viveram
muito mais tarde, verificando o alcance da especialidade e notando que ela não
se limitava a atender apenas crianças mas a adultos também, de todas as
idades, mantiveram a mesma designação para a especialidade mas
questionaram a derivação proposta para composição daquele neologismo pelo
seu criador. Achavam que a raiz adequada não estava relacionada a "criança",
mas a "educação" (da palavra "paidéia", em grego).
O que nos resta como certo é que muitos séculos antes de surgir a palavra
"ortopedia", dentro da especialidade que recebia esse nome existiam já muitos
de seus diversos componentes, porque doenças e acidentes que deformam o
homem e o desviam de sua aparência original sempre existiram e já tinham
recebido muita atenção por parte daqueles que se dedicavam à arte médica
desde os primeiros tempos da vida do homem na Terra. Tanto isso é verdade
que, segundo vimos em épocas anteriores ao século XVIII, as noções
fundamentais já eram encontradiças em trabalhos egípcios, em tratados de
Hipócrates, e nos muitos outros autores.
De sua parte, Nicholas Andry procurava sempre atender bem os seus
doentes, mas adicionava a essa atitude prevista no código de ética médica
uma perfeita e fortemente humana compreensão dos males que levavam a
uma deformidade do corpo humano, dedicando-se exclusivamente ao cuidado
de crianças. Procurava pautar bem suas atividades e restringi-las a problemas
passíveis de uma correção por meio de aparelhagem simples e de natureza
prática.
Quando, em 1781, Jean André Venel, um médico de Genebra, fundou na vila
de Orbe-de-Vaux, na Suíça, o primeiro centro especializado de atendimento
ortopédico, lançou o marco mais importante não só para o desenvolvimento
mais criterioso e pormenorizado de técnicas de aparelhagem e de correção,
como também para o desenvolvimento mais aprimorado da cirurgia ortopédica,
que tanto tem contribuído desde aquela época para a eliminação ou para a
redução de deficiências físicas. A esse instituto de tratamento ortopédico
acorriam não apenas crianças mas adultos também, acometidos por males das
mais variadas origens. A partir de então a fabricação de próteses e de
aparelhos de suporte e outros mais alcançou o esplendor de seu
desenvolvimento.
No entanto, cumpre ressaltar que todos esses progressos e indicativos de
aprimoramento técnico e científico atingiam apenas a pessoas ricas ou àquelas
que dispunham de meios para cobrir as despesas enormes incidentes sobre os
mesmos. A grande massa dos pobres continuava à parte e sem qualquer
acesso a esses melhoramentos ou benefícios.
Ainda no que diz respeito a deficiências físicas vale a pena ressaltar que, ao
encerrar-se o século XVIII, dois irmãos - os Hunter - muito contribuíram para o
desenvolvimento e para o aprimoramento da cirurgia ortopédica, com estudos
especiais a respeito da estrutura das juntas e do crescimento dos ossos.
- *Maria Tereza von Paradis: pianista e compositora cega*
Maria Tereza von Paradis (1759 a 1824) foi uma música austríaca que
nasceu e morreu em Viena. Ficou cega aos 5 anos de idade. Tendo aprendido
piano e se transformado numa excelente concertista, percorreu toda a Europa
e foi ouvida em diversas oportunidades pelo público de Paris.
Ao voltar a Viena dedicou-se à composição. Três óperas dessa compositora
cega devem ser ressaltadas: "Ariane em Naxos", "Ariane e Baco" e "O
Candidato Instrutor".
Maria Tereza conheceu Valentin Haüy em Paris e manteve com ele sólida
correspondência a respeito dos problemas dos cegos.
- *A assistência aos cegos: final do século XVIII*
Um opúsculo interessante intitulado em sua versão original de "Lettre sur les
Aveugles à l'Usage de Ceux qui Voient" (Carta sobre os Cegos para Uso
daqueles que Enxergam) surgiu na França em 1749. Seu autor foi Diderot
(1713 a 1784). Chegou a ficar confinado na prisão de Vincennes por três
meses devido a esse corajoso trabalho, no qual enfatizava a dependência do
homem das impressões sensoriais e dava um audacioso passo na direção do
ateísmo. Diderot, filósofo e homem de letras, foi um dos mais brilhantes
pensadores de sua época e foi o editor da "Enciclopédie", o mais importante
testamento da era do iluminismo. Sua famosa e discutida "Carta sobre os
Cegos" foi muito importante também devido à sua proposição para o ensino do
cego a ler pelo uso do tato.
No ano de 1751 publicou também uma carta a respeito dos surdos e dos
mudos, sem maiores repercussões. Diderot procurou mostrar em sua "Carta
sobre os Cegos" que as idéias dos cegos quanto a assuntos ou mesmo quanto
a coisas de natureza abstrata são diferentes daquelas dos videntes. Afirma, por
exemplo, que essas idéias a respeito de religião e de Deus não são idênticas
às das pessoas videntes, sugerindo daí que as idéias religiosas daqueles que
enxergam e não sentem a limitação causada pela perda da visão são
conseqüentes às convenções estabelecidas pela sociedade.
Entretanto, o preocupado trabalho de Diderot não levou a nenhuma
conseqüência prática detectável, a não ser talvez influenciar os pensamentos e
as preocupações de Valentin Haüy, que viveu um pouco mais tarde e a
respeito do qual falaremos no tópico seguinte.
Em termos de trabalho prático de assistência mesmo que segregativa, ou de
ajuda mais concreta a cegos, devemos ressaltar que no ano de 1780 o famoso
e antigo "Hospice des Quinze-vingts" foi transferido de sua localização original
no Faubourg de Saint-Honoré para instalações mais amplas e melhores no
Faubourg de Saint-Antoine, em Paris, no prédio do Hospital dos Mosqueteiros
Negros. Inicialmente dependente do
Ministério do Interior, sobreviveu esta organização até os dias de hoje,
mantendo-se com seus próprios recursos. Abriga aproximadamente 300 cegos
- de acordo com seus objetivos originais - dos dois sexos, com mais de 40 anos
de idade, que lá vivem. Solteiros ou casados ocupam instalações separadas
mas mobiliadas por eles mesmos. Além desse abrigo, o Hospice provê uma
pensão mensal a mais de 2.000 cegos franceses com pelo menos 21 anos de
idade. Foi em suas instalações que em 1880 foi montada uma clíniCa nacional
de oftalmologia (Apud "Larousse du XXe. Siècle").
No ano de 1784, setenta anos após a rainha Ana, da Inglaterra, ter
concedido uma patente a Henry Mill, engenheiro inglês, "por uma máquina ou
método artificial para a impressão ou transcrição de letras separadamente ou
progressivamente, uma após a outra, como na escrita”, foi inventada na França
uma outra máquina para imprimir letras especialmente para cegos.
Ressaltemos que muitas outras máquinas eram também destinadas a produzir
cópias para que os cegos pudessem ter acesso à leitura pelo tato (Apud
"Encyclopaedia Britannica").
- *Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos"*
Surgiram na mesma época dos eventos citados acima os primeiros esforços
sistemáticos para a melhor educação dos cegos. Valentin Haüy (1745 a 1822),
o homem que mais tarde seria reconhecido como "Pai e Apóstolo dos Cegos"
teve sua atenção atraída para as questões ligadas à educação dos deficientes
visuais, não só graças ao estudo das idéias de Diderot. Um momento decisório
surgiu em sua vida quando, levado pelas circunstâncias, fez uma comparação
entre apresentações musicais da pianista e grande concertista e compositora
Maria Tereza von Paradis de um lado, e de outro, os entristecedores e
grotescos espetáculos dados por alguns cegos, muito inadequados em seu
modo de trajar ou se comportar, tentando executar música na rua para chamar
a atenção dos transeuntes e com isso angariar esmolas.
Haüy, depois de estudar muito bem o problema, fundou em Paris uma nova
organização que levou o nome de "Institute Nationale des Jeunes Aveugles"
(Instituto Nacional dos Jovens Cegos), em 1784. Essa organização provocou
reações muito positivas e fez um grande sucesso desde o seu início.
A causa principal dessas reações foi esta: o Instituto não asilava
simplesmente o cego, mas procurava ensiná-lo a ler, tendo a Academia de
Ciências de Paris examinado e aprovado os tipos em relevo que o Instituto
utilizava. Com o passar dos anos o seu sucesso foi tão grande que Haüy
acabou sendo convidado a comparecer à corte de Luiz XVI para fazer uma
detalhada exposição quanto ao empreendimento, um pouco antes da eclosão
da Revolução Francesa que desacelerou ou eliminou muito do que fizera antes
a França com o apoio da nobreza.
Mas logo após a regularização da vida do país novas escolas para cegos
foram abertas. E isso aconteceu também em diversos outros países da Europa,
quase todas elas seguindo o novo modelo apregoado por Haüy. Os exemplos
mais positivos dessas escolas foram as de Liverpool em 1791, de Londres no
ano de 1799 e, já no século XIX, de Viena em 1805 e de Berlim em 1806.
- *Educação dos deficientes auditivos no século XVIII*
De outra parte, envolvendo diferentes segmentos da sociedade mais
esclarecida, notaremos a marcante evolução dos sistemas montados para a
educação dos deficientes auditivos em geral.
E no começo do século XVIII encontraremos o nome de John Conrad
Amman (1699 a 1724) publicando sua "Dissertatio de Loquela", que recebeu
em inglês um título enorme: "Uma dissertação sobre a fala, na qual não só a
voz humana e a arte de falar são analisados desde a sua origem, mas são
descritos os meios pelos quais aqueles que são surdos e mudos desde o
nascimento podem conquistar a palavra, e aqueles que falam imperfeitamente,
podem aprender como corrigir suas dificuldades".
Foi por essa época - início do século XVIII - que os educadores concluíram
que era necessário um alfabeto manual para que o surdo pudesse melhor se
comunicar e melhor entender o que precisava ser a ele repassado. Grande
colaboração foi dada para a definição do alfabeto manual por membros da
família Wren, da Inglaterra.
Fato importante na gradativa definição da realidade em que viviam os
surdos-mudos foi a publicação de Diderot intitulada "Carta sobre o Surdo e
Mudo para Uso daqueles que Ouvem e Falam".
Em 1755 o abade Charles Michel Epée (1712 a 1789) reconhecia que a
psicologia do surdo era diferente daquela da pessoa que ouvia. Fundou uma
escola para educação dos surdos em Paris, aperfeiçoando a linguagem por
sinais como meio para instrução e comunicação de seus alunos. Acreditava
que era necessário fazer entrar pelos olhos dos surdos tudo o que o restante
da sociedade absorvia por meio do som, pela audição.
O abade Sicard (1742 a 1822) ampliou as idéias de Epée no trabalho
intitulado "Relato sobre um Menino Nascido Surdo e Mudo".
- *Os primeiros sinais de assistência nas Américas*
Enquanto todos esses desenvolvimentos ocorriam na Europa, nas Américas
as mesmas tendências eram reconhecíveis com facilidade uma vez que todos
os núcleos de colonização recebiam direta influência da respectiva Pátria-Mãe.
Na verdade, os hospitais haviam há tempos surgido nas Américas. De fato,
logo após o descobrimento por Cristóvão Colombo ocorreram diversos esforços
para dar cobertura à população colonizadora.
Os conquistadores espanhóis procuraram, é natural, seguir mais ou menos
os padrões estabelecidos e encontradiços na Europa, nos seus esforços de
criação de casas de tratamento e mesmo de hospitais. Esses recursos
primitivos foram organizados pelos religiosos que haviam acorrido ao Novo
Mundo (às Índias Ocidentais) para a ingente tarefa de catequização dos
selvagens, com forte subsídio da coroa espanhola.
Assim é que já em 1524 havia surgido o Hospital Jesus de Nazaré, a mais
antiga organização de assistência médica do continente, no México. O mesmo
sucedeu nas colônias mais tarde estabelecidas pelas coroas francesa,
holandesa, inglesa e portuguesa.
Ressaltemos, entretanto, que só dois séculos após é que podemos localizar
nas Américas um primeiro esforço de organizada assistência médica e
hospitalar, com sucesso absoluto. Tratava-se do hoje conhecido Hospital de
Pennsylvania, na Philadelphia, inaugurado no ano de 1751.
É bastante válido chamar a atenção para o fato de que os descobridores e
colonizadores espanhóis já encontraram verdadeiros hospitais em nosso
continente. Segundo nos conta De La Vega, as expedições espanholas
comandadas por Cortés, conheceram hospitais mantidos pelos Aztecas nos
locais conhecidos como Cholula, Tlescoco, Tlaxcala e na sua mais importante
cidade, Tenochtitlán (hoje, Cidade do México).
Falando sobre a mesma questão junto aos Incas, no Peru, Poma de Ayala,
citado por De La Vega, afirma: "Nas grandes cidades havia verdadeiros
hospitais que admitiam os anões, os corcundas e os indivíduos com lábios
leporinos". Tinham eles também hospitais destinados a doentes incuráveis ou
enfermos de aspecto repugnante, segundo o mesmo autor. Ele acrescenta que,
à mesma época, os hospitais destinavam-se também a peregrinos, loucos,
velhos e desvalidos (Apud De La Vega).
Finalmente, ao terminar o século XVIII foi inaugurado o Hospital de New
York, mas relativamente poucos foram os hospitais criados na América do
Norte, seja pelos ingleses, seja pelos franceses, antes do século XVIII, devido
ao fato de haver muito poucas comunidades de porte suficiente para mantê-los
com a indispensável propriedade. Como sucedia na Europa, esses hospitais
das colônias caminhavam para a implantação de especialidades médicas e
dentro de algumas delas ocorriam os atendimentos às pessoas deficientes,
como não poderia deixar de acontecer.
- *O desencontro de atitudes na Europa*
Durante o século XVIII atitudes as mais desencontradas são relatadas por
estudiosos do desenvolvimento hospitalar em alguns países da Europa. No
Hospital Real de Bethlehem, de Londres, popularmente conhecido na época
pelo apelido de "Bedlam" (que significa manicômio ou confusão) muitas
pessoas de baixa cultura e possuidoras de doentia curiosidade chegavam a
pagar algumas moedas a vigias ou a atendentes do hospital para observar e
para rir de certos doentes acorrentados, de seus gritos e dos seus rostos
desfigurados e contorcidos, especialmente quando apresentavam deformações
sérias ou deficiências físicas e mentais, segundo nos relata Wolfensberger.
De um modo geral, todavia, a sociedade do século XVIII dos países
europeus, embora não homogeneamente, organizava-se para continuar a dar
cobertura cada vez melhor, pelo menos de abrigo e de alimentação mais
humanos àqueles que não dispunham de meios para se manter vivos fora dos
hospitais, e que não apresentavam mais problemas de natureza médica.
Abrigos e asilos mais modernos foram organizados, alguns já com os
primeiros indícios de valorização real do ser humano, a despeito das suas
malformações, da sua aparência ou das deficiências que apresentavam.
- *Inovações nas "Leis dos Pobres"*
No ano de 1723, na Inglaterra, foram aprovadas algumas alterações
operacionais nas conhecidas "Leis dos Pobres". Foi autorizado, por exemplo,
que cada paróquia construísse e colocasse em funcionamento casas de
trabalho ou oficinas ("workhouses") e que recusasse prestar ajuda aos pobres
que dela não participavam. Dessa forma, a situação das pessoas portadoras de
deficiências físicas ou sensoriais deteriorou muito. Passaram a ficar
bloqueadas dessa participação através do trabalho, uma vez que a prioridade
para atuar nessas casas de trabalho recaia sobre os pobres com dificuldade de
obter trabalho, mas sem qualquer tipo de deficiência. A experiência foi um
fracasso, pois não eliminou nem a mendicância nem a pobreza.
Apesar do objetivo original ter sido bom, ou seja, eliminar a inatividade e
dependência da assistência prestada pela comunidade, selecionar melhor os
candidatos ao recebimento de ajuda, abrigar as pessoas realmente enfermas,
os velhos e as crianças, e dar trabalho real aos fisicamente habilitados, essas
oficinas degeneraram completamente e com grande rapidez, tornando-se
verdadeiros depósitos de pessoas em situação de miserabilidade.
Esse fragoroso insucesso não nos permite, porém, esquecer algumas
tentativas válidas para tornar as casas de trabalho um recurso útil para o
atendimento à pobreza generalizada do século XVIII na Inglaterra. Seu
eventual sucesso, entretanto, foi efêmero e sem muito significado.
- *Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes*
Os bloqueios interpostos pela Igreja Católica para pessoas deficientes se
tornarem sacerdotes continuavam inabaláveis durante o século XVIII. Alguns
exemplos práticos nos são relatados por M.André, doutor em direito canônico e
membro de diversas sociedades de sábios do final do século XIX, em adição à
obra de Thomassin ("Ancienne & Nouvelle Discipline de l'Église") que fora
escrita ao final do século XVII.
Alguns dos mais significativos, citados ao final do capítulo sobre as
irregularidades relacionadas aos defeitos de nascimento, são os seguintes:
- No dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação recusou concordar
com a ascensão às santas ordens de um clérigo "manco" da Diocese de
Albenga, na Ligúria;
- O padre François Pujol, da Diocese de Vincennes, na França, tendo sofrido
um acidente vascular cerebral, perdeu o uso do braço e da mão esquerdos;
solicitou ao bispo a dispensa da irregularidade para exercício das funções
sacerdotais e para celebrar a missa numa capela privada. Embora seu bispo
tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregação recusou o pedido no dia
19 de agosto de 1797;
- O seminarista Ambroise Lamberti, da Diocese de Albenga, tinha um
problema de movimentação da perna esquerda, de tal forma que precisava
andar com o apoio contínuo de uma bengala. O bispo da Diocese foi
consultado a respeito e opinou que haveria graves inconvenientes em
promovê-lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada Congregação
no dia 20 de janeiro de 1798;
- O sacerdote Philippe Maggiorani, da Diocese de Borgo San-Sepolcro, na
Toscana, teve sua mão esquerda de tal forma mutilada pela acidental explosão
de espingarda excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi
necessário amputar parte do braço para evitar sua morte. Solicitou dispensa da
irregularidade para prosseguimento de seus trabalhos como sacerdote e esta
lhe foi negada em 18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma nova
e humilde solicitação, acompanhada do parecer favorável de seu bispo e do
total apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois
de haver submetido o assunto à consideração pessoal do papa, manteve a
recusa à dispensa de irregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787.
Outros casos poderiam ser acrescentados, mas os citados acima mostram a
posição quase que inalterada da Igreja Católica na aceitação de pessoas
portadoras de deficiência para o exercício do sacerdócio até o século XVIII.
- *Hospitais públicos na França: final do século XVIII*
Na segunda metade do século XVIII os hospitais públicos da França haviam
decaído tanto na qualidade de seus atendimentos que já estavam sendo
abominados até pelos pobres. É Voltaire que comenta a respeito no ano de
1768: "Temos em Paris um Hospital ("Hôtel-Dieu") onde reina o perpétuo
contágio, onde inválidos pobres, amontoados uns sobre os outros, contagiam
seus vizinhos com a praga e com a morte".
O historiador francês Michelet também comenta a respeito do mesmo
problema, dizendo: "Os doentes pobres e os prisioneiros ali confinados eram
geralmente considerados como condenados, atingidos pela mão de Deus, cujo
primeiro dever era expiar seus pecados e eram sujeitos a tratamentos cruéis.
Caridade desse tipo pavoroso faz-nos sentir horror. No entanto, foi feita uma
tentativa para eliminar a sensação de pavor dos hospitais: começaram a dar-
lhes nomes sugestivos: Hotel de Deus, A Caridade, A Piedade, O Bom
Pastor, etc. Mas isso não convenceu os doentes e os inválidos pobres que se
escondiam em casa para morrer, tão horrorizados estavam face à possibilidade
de serem levados pela força para esses lugares" (Apud "Encyclopedia of
Religion and Ethics").
Foi nessa mesma época que os doentes mentais eram acorrentados em
suas celas, pois acreditava-se que eram possuídos pelo demônio. O
Dr.Philippe Pinel (1745 a 1826) tomou uma iniciativa revolucionária entre os
anos de 1792 e 1826: quebrou as correntes que prendiam esses doentes às
celas, substituindo o chocante tratamento anterior por um trabalho cientifico
onde prevalecia uma enorme dose de bondade e de doçura.
- *Progressos no campo do atendimento à cegueira: século XIX*
Em 1819 um oficial do exército francês de nome Charles Barbier procurou o
Institute Nationale des Jeunes Aveugles, de Paris, com uma novidade que
esperava ser útil aos seus professores e alunos. Barbier pretendia adaptar o
que chamava de "sonografia" para o uso dos cegos. Era, na verdade, um
processo de escrita codificada e expressa por pontos salientes, chegando a ter
representados os 36 sons básicos da língua francesa. Fora idealizado pelo
oficial para ser usado na transmissão de mensagens no campo de batalha à
noite, sem chamar a atenção do inimigo pelo uso de qualquer ponto de luz.
A idéia interessou sobremaneira alguns professores do renomado Instituto
de cegos e logo começou a ser adaptada para uso dos alunos ali internados.
Em 1833 surgiu nos Estados Unidos da América do Norte o primeiro livro
para cegos de que se tem notícia. Adotava um alfabeto idealizado pelo
educador Frielander. De outra parte, na Inglaterra, havia informações de que o
primeiro livro para cegos surgira já em 1827, usando letras comuns em relevo,
o que não era muito inovador. Desde o século XVIII havia máquinas de
escrever em relevo essas mesmas letras comuns.
Foi alguns anos mais tarde que um jovem professor cego do Institute
Nationale des Jeunes Aveugles - Louis Braille (1809 a 1852) - baseado na idéia
de Charles Barbier e na experiência acumulada com a utilização diuturna
daqueles pontinhos em relevo, desenvolveu um sistema seu, já pelo ano de
1825, também de pontinhos em relevo, que podiam não apenas ser lidos como
também produzidos com facilidade pelos cegos com instrumentos bastante
simples. Na combinação de apenas seis pontinhos em relevo, Louis Braille
garantia noventa e seis símbolos para letras comuns e acentuadas, números,
pontuação e outros mais. A adoção do novo sistema em toda a França só
ocorreu em 1854, dois anos após a morte de seu idealizador, Louis Braille.
- *Ludwig van Beethoven: a trágica surdez*
Em 1827 morria Ludwig van Beethoven, que nascera em 1770 e que se
transformara num dos maiores gênios da música erudita, apesar de ter sofrido
imensamente com a gradativa perda da audição, em seus últimos anos de vida.
A surdez o isolara do restante do mundo, mas não o impedira de continuar sua
obra criadora.
A surdez de Beethoven começara em seu ouvido esquerdo quando estava
com 27 anos de idade. Logo a perda se transformara numa dificuldade bi-
lateral de ouvir bem, principalmente os sons de alta freqüência. Usava o grande
compositor o auxílio de trompas de ouvido e outras adaptações próprias para
seu trabalho quando ao piano.
Em algumas de suas cartas a amigos e confidentes, principalmente ao Dr.
Franz Gerhard Wegeler, nota-se sua aflição pelo mal que o atingia. Com 31
anos de idade escrevia o seguinte: " ... minha faculdade mais nobre, minha
audição, tem piorado muito ... esse problema causa-me as dificuldades menos
significativas ao tocar ou ao compor e as maiores quando em contato com os
outros" ... "meus ouvidos assobiam e fazem barulho sempre, dia e noite. Em
qualquer outra profissão isso poderia ser mais tolerável, mas na minha, essa
condição é verdadeiramente atemorizante. Posso lhe dizer que vivo uma
existência miserável" (Apud Landon).
A surdez gradativa influenciou o próprio estilo de Beethoven. Com a plena
consciência de sua surdez total próxima, tornou-se fortemente deprimido.
Parece até ter pensado no suicídio. E aos 52 anos de idade estava surdo.
Foi na fase inicial de sua perda de audição que o grande mestre compôs
suas obras mais românticas e de melodia da mais alta suavidade:
"Apassionata" e "Sonata ao Luar", em 1804; Sinfonias n° 3 até 6, de 1804 a
1808.
Contam seus biógrafos que ele foi o maestro honorário na primeira
apresentação de sua 9°. Sinfonia, mantendo-se sentado ao lado do maestro
regente. Não ouvia nada de toda a execução da magnífica peça musical, mas
seguia sua evolução pela partidura em suas mãos. Próximo ao final estava
alguns compassos atrasado e não notou quando a orquestra terminara. Um
dos solistas veio imediatamente até ele e virou-o para a platéia que aplaudia
delirantemente a obra e seu compositor.
- *Nelson, herói da Marinha Britânica*
Nascido no ano de 1758, o Visconde Horácio Nelson tornou-se o mais
famoso e talvez o mais querido dos heróis ingleses. Ele era mais do que um
brilhante dominador de táticas da guerra naval - era um líder sob todos os
aspectos. Há uma famosa frase de Nelson que passou para a História da
Inglaterra e que é a seguinte: "A Inglaterra espera que cada homem cumpra o
seu dever". Ela não foi dita por Nelson em reuniões ou em pronunciamentos a
seus subalternos. Ela foi transmitida de seu navio capitania, o "Victory", por
sinais, a toda a frota que navegava para a grande batalha de Trafalgar.
A estratégia tática que Nelson imprimiu na luta contra a esquadra dos
poderosos navios das forças napoleônicas (os franceses e os espanhóis)
consagrou-o para sempre.
Mas foi exatamente nessa batalha que Nelson foi atingido por um projétil que
fraturou sua espinha dorsal. Sem recursos médicos de grande monta que
talvez pudessem ter salvo pelo menos sua vida, o grande herói inglês faleceu
no meio do fragor da batalha que se desenrolou no dia 21 de outubro de 1805.
Segundo alguns autores, se tivesse sobrevivido Nelson provavelmente teria
sido vítima da paraplegia por secção da medula.
- *Os progressos nos Estados Unidos da América do Norte*
As primeiras providências observadas nos Estados Unidos da América do
Norte com relação à assistência mais organizada aos soldados feridos ou
mutilados parece terem acontecido em 1811, quando o Congresso autorizou o
Secretário da Marinha a construir um lar permanente para seus oficiais. Esse
novo recurso logo começou a aceitar marinheiros e fuzileiros navais com
problemas físicos sérios e outros problemas limitadores da independência
individual.
Foi construído na cidade de Philadelphia e só entrou em funcionamento em
1831. E no ano de 1867 surgiu um outro recurso: o Lar Nacional para Soldados
Voluntários Deficientes, assim que terminou a Guerra Civil Americana, com o
seu primeiro núcleo na cidade de Togus, Me. (Apud "Encyclopaedia
Britannica").
- *Os sinais de melhor compreensão dos problemas dos deficientes*
Foi no século XIX que a sociedade começou a assumir a responsabilidade
sobejamente reconhecida para com as pessoas portadoras de deficiências. Até
o século XVI, durante o fortalecimento da Renascença, os homens em geral
ainda relacionavam muito do que acontecia ao ser humano à força das
superstições, das diversas crendices dominantes e do sobrenatural. Mas, do
século XVI em diante, o mundo já se acostumara a examinar fatos em termos
mais práticos e naturais.
Precedida pela Revolução Industrial, a Revolução Intelectual fez com que a
sociedade de muitos países europeus pensasse um pouco nos seus grupos
minoritários e marginalizados como uma de suas muitas responsabilidades e
não apenas como objeto de promoções caritativas e de caráter voluntário.
Chegou-se à conclusão de que a solução para esses problemas não era
apenas uma questão de abrigo, de simples atenção e tratamento, de esmola ou
de providências paliativas similares, como sucedera até então.
Ao se dar maior volume de atenção, por exemplo, aos cegos, aos velhos,
aos surdos, aos mutilados de guerra, aos doentes crônicos e aos deficientes de
um modo mais amplo, chegou-se a pensar que eles na verdade não
precisavam tanto de hospitais de caridade ou de casas de saúde, mas de
organizações separadas, o que tornaria seu cuidado e seu atendimento mais
racional e menos dispendioso.
Foi em boa parte devido a esse tipo de raciocínio e à troca de experiências
que a sociedade de alguns países europeus, quase que exclusivamente por
iniciativa de particulares, fundou algumas entidades especializadas, sem
lembrar talvez que Constantinopla havia acenado para essa posição desde o
alvorecer do Cristianismo, ou seja, há mais de 15 séculos...
Essas novas organizações, todavia, não se destinavam apenas à assistência
e à proteção desses grupos marginalizados, mas também para estudo de seus
problemas e dificuldades, para o estabelecimento de algumas alternativas de
atendimento e também para o tratamento de situações concretas. Surgiram
abrigos para crianças (orfanatos, em geral) e para velhos (asilos), lares para as
crianças com defeitos físicos e muitas outras organizações separadas dos
hospitais gerais oficiais ou particulares.
Embora no século XIX ainda não se pensasse na integração do homem
deficiente à sociedade aberta ou mesmo à sua família, ele passou a ser visto
como ser humano (infeliz, desafortunado e coitado para aquela época, é
evidente) dono de seus sentimentos e capaz de viver ou de pretender levar
uma vida decente, desde que fossem garantidos meios para isso. Para um bom
volume de casos a questão acabava restringindo-se à redução de uma
situação de miserabilidade a um mínimo suportável, dando ao indivíduo
atingido um restante de vida mais tranqüilo, desde que possível.
- *Uma iniciativa de Napoleão Bonaparte*
Pensando mais avançada e utilitariamente, o arguto Napoleão Bonaparte,
que nasceu em 1769 e morreu em 1821, exigia de seus generais que olhassem
os seus soldados feridos ou mutilados como elementos potencialmente úteis,
tão logo tivessem seus ferimentos curados. Os exércitos franceses passaram,
em muitas de suas unidades, a utilizar esses soldados nos esforços de guerra
de tal forma que conseguiam ainda tornar-se produtivos e diretamente ligados
às suas unidades.
Napoleão procurava utilizar seus esforços conforme as circunstâncias o
permitiam. E foram usados em serviços de manutenção montados na
retaguarda, de acordo com suas capacidades físicas, conservando
fardamentos, trabalhando em selaria, cuidando dos equipamentos, de
alimentação, de limpeza de animais e outras atividades.
- *Madre Agostinha, fundadora das Irmãs Irlandesas da Caridade*
Mary Aikenhead (1787 a 1858), por solicitação do bispo Murray, de Dublin,
na Irlanda, fundou a congregação religiosa conhecida como Irmãs Irlandesas
da Caridade. As irmãs religiosas não eram enclausuradas e visitavam famílias
pobres em suas próprias casas.
Devido às características de desenvolvimento daquela época, durante a qual
não havia a emancipação dos católicos na Irlanda, Mary adotou o nome
religioso pelo qual ficou sendo conhecida (Madre Agostinha) apenas para
contatos com outras religiosas, e o seu nome leigo para todos os demais
contatos externos.
Um dos trabalhos mais notáveis dessas religiosas ainda durante a vida de
Madre Agostinha ocorreu durante uma epidemia de cólera.
Madre Agostinha ficou muito enferma em 1831 e impossibilitada de se
locomover até a sua morte, no ano de 1858. Dirigia sua comunidade mesmo
com a desvantagem da deficiência que a bloqueava e impedia de uma
participação maior e mais efetiva.
- *Lord Byron, poeta e satirista inglês*
George Gordon (1788 a 1824), barão e o sexto Lord Byron, teve uma vida
que cativou a imaginação de toda a Europa. De um lado era profundamente
melancólico e de outro era um homem repleto de aspirações políticas.
Nasceu com um problema físico (pé torto) e sempre foi muito afetado por
essa deficiência. Tratado como "garoto aleijado" por uma linda jovem da qual
estava enamorado, alimentou sua mágoa com poemas de profunda tristeza,
muitas vezes relacionados a amores inatingíveis. Dedicou muito de seu tempo
e fortuna à causa da libertação da Grécia e lá morreu.
Foi considerado e até hoje muitos o consideram um"herói nacional grego".
- *Antonio Feliciano de Castilho, um dos maiores literatos portugueses*
Castilho (1800 a 1875) tem sido indicado como poeta, prosador, ensaísta,
escritor e pedagogo, mas é, sem dúvida, uma das mais importantes figuras
literárias nascidas em Portugal.
Perdeu a visão aos 6 anos de idade, mas seu denodado irmão Augusto,
percebendo sua incrível memória, ajudou-o a estudar e a inteirar-se do mundo
que o cercava. Já prestes a finalizar seu curso em Coimbra, publicou em 1821
seu primeiro trabalho de verdadeira importância: "Cartas de Eco e Narciso".
Com a publicação de seu livro de poesias "O Outono", após uma viagem ao
Brasil e seus anos em Açores, despertou nos meios literários lusitanos uma
violenta polêmica que ficou conhecida como "Questão Coimbrã". Nela
estiveram envolvidos nomes famosos, como Antero de Quental, Camilo Castelo
Branco e outros.
A cegueira não impediu Antonio Feliciano de Castilho de se transformar num
dos mais respeitados nomes de toda a literatura portuguesa.
- *Outros cegos do século XIX que ficaram famosos*
Embora numa brevíssima nota, é importante que nos lembremos de três
cegos que ficaram famosos pela sua competência em pleno século XIX:
*Jacques Nicolas Augustin Thierry* (1795 a 1856) um grande renovador da
ciência histórica francesa e autor de "Narrativas dos Tempos Merovíngios",
"Considerações sobre a História da França" e "Ensaio sobre o Terceiro
Estado".
*William Hickling Prescott* (1796 a 1859), historiador inglês, autor de
"História do Reino de Fernando e Isabel" e "Conquista do México".
*Henry Fawcett* (1833 a 1884), economista e político inglês, autor de
"Manual de Economia Política" e catedrático na Universidade de Cambridge.
Foi casado com a famosa Millicent Garrett.
- *A ortopedia do século XIX e as deficiências físicas*
Já nos primeiros decênios do século XIX foi surgindo a própria base da
reabilitação de pessoas portadoras de lesões físicas. Essa base, ainda não
estabelecida, defenderia a idéia de que as pessoas que apresentavam
deficiências físicas deveriam receber, além dos cuidados médicos de que
precisassem, serviços especiais para poder continuar uma vida de acordo com
suas aspirações e a própria dignidade do homem - conceito esse derivado da
filosofia humanista somada às experiências práticas advindas do forte
progresso da ciência médica.
Dentro dessa corrente de raciocínio, muito maior e melhor volume de
atendimento médico-cirúrgico e/ou ortopédico surgiu em poucos anos na
Europa e em diversas outras partes do mundo. Vejamos alguns progressos
mais significativos:
1812 – Johann Georg von Heine criou um hospital só de atendimento
ortopédico na cidade de Würzburg, na Prússia.
1817 - Foi criado na cidade de Birmingham, na Inglaterra, um hospital
dedicado apenas a casos de ortopedia, ou seja, o chamado Orthopaedic
Hospital.
1818 - Em Lübeck, Alemanha, foi também fundado um hospital destinado a
pacientes que apresentassem males ortopédicos, por influência do médico
Lesthof.
1821 - Foi fundado na cidade de Bar-le-Duc, na França, um hospital
semelhante.
1826 - São construídos em Berlim, Alemanha, dois hospitais para ortopedia,
enquanto que no mesmo ano em Paris dois outros são também organizados.
1828 - Um hospital ortopédico é inaugurado na cidade de Montpellier,
França.
1830 - Inaugurado na cidade alemã de Hannover o famoso Stromeyer
Hospital, destinado exclusivamente ao atendimento de casos de ortopedia.
Muitos outros evidentemente surgiram à mesma época ou durante a
segunda metade do século XIX, não só na Europa como nos Estados Unidos, e
dentre eles cumpre que destaquemos os de Haia, Londres, Copenhague,
Praga, Florença, Petrogrado e New York.
Este avanço fulminante da ortopedia, aliada a outras áreas do atendimento
médico, levou a uma atenção muito mais apropriada a males diretamente
relacionados a deficiências físicas, conseqüentes a fraturas, amputações,
deformações e outros males do esqueleto.
- *Atendimento mais especializado aos cegos*
Verifiquemos alguns desenvolvimentos adicionais ocorridos no século XIX no
campo da cegueira:
- Três escolas destinadas ao atendimento especializado de cegos foram
organizadas nos Estados Unidos, sendo a mais famosa delas a New England
Asylum for the Blind, inaugurada no ano de 1832, hoje reconhecida no mundo
todo com o famoso nome de "Perkins School for the Blind". Está localizada em
Boston, Masachussets. As outras duas foram organizadas em 1832 e 1833,
nas cidades de New York e Philadelphia respectivamente.
Em outros países o atendimento mais específico e mais cuidadoso de cegos
gradativamente se implantava:
1863 - Em Lisboa, Portugal, no Castelo de Vide, foi iniciado o ensino
profissionalizante para alunos cegos.
1866 – Na Cidade do México foi criada e instalada a primeira escola para
cegos mexicanos.
1876/1880 - Em Kyoto e em Tóquio foram criadas duas modernas escolas
para receber somente alunos cegos.
1882 - Foi criada em Londres a Sociedade de Prevenção da Cegueira -
entidades semelhantes foram também organizadas em outros países logo
após.
1888 - Criada em Buenos Aires, Argentina, a Escola para Cegos e para
Surdos.
1890 - Em Santiago de Chile foi também criada uma escola para cegos.
De uma certa forma o Brasil foi pioneiro nas Américas Central e do Sul, com
a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, no ano de 1854, no Rio de
Janeiro. Sobre essa experiência daremos pormenores no capítulo seguinte.
Ainda no atendimento a cegos, dentro do Continente Asiático, ocorreu o
início da primeira escola para cegos da China em 1876, por iniciativa do
missionário William Hill Murray, da Sociedade Escocesa da Bíblia. Murray
dedicou-se muito a esse empreendimento e chegou mesmo a inventar um
sistema Braille para a língua chinesa, mais tarde substituído pelo Braille Union
Mandarin, aceito em todas as regiões da vasta China onde o Mandarin era
falado.
Um pouco antes disso, no ano 1868, durante a restauração Meiji, no Japão,
os privilégios especiais até então dados aos cegos para se dedicarem com
exclusividade à massagem e a certas áreas da acupuntura foram suspensos. A
tradição, porém, manteve-se e até hoje o número de massagistas cegos é
muito grande no Japão e em muitas outras partes do mundo.
- *A pessoa deficiente vista com potencial para o trabalho*
A partir da segunda metade do século XIX houve um forte incremento às
atenções destinadas às pessoas portadoras de males limitadores de sua
atuação, mais em concordância com as características individuais, tornando-
se, portanto, mais humanas no mundo todo mais atualizado. Em alguns países
nórdicos surgiram preocupações muito sérias quanto ao aspecto do potencial
da pessoa deficiente para a produção de bens e para desenvolvimento de
serviços, pelo menos para cobrir as próprias necessidades de sobrevivência.
Como resultado prático dessa preocupação, no dia 1º de maio de 1863, um
grupo de pessoas influentes da sociedade novaiorquina criou a New York
Society for Relief of Ruptured and Crippled, em plena Segunda Avenida, no
distrito de Manhattan. Hoje essa mesma sociedade foi transformada no New
York Hospital for Special Surgery, um dos melhores do mundo todo no
atendimento a casos de deficiências físicas das mais variadas ordens.
A Dinamarca também entrou na luta para um melhor aproveitamento da
mão-de-obra em potencial das pessoas deficientes, fundando uma organização
especial para atendimento social e profissional, em 1872, ou seja, a Sociedade
e Lar para Defeituosos (Society and Home for Cripples), seguindo praticamente
exemplo sueco que, segundo parece, havia sido divulgado alguns anos antes
de seu estabelecimento.
Outro exemplo de tentativa para encontrar uma solução de trabalho para
pessoas portadoras de limitações físicas surgiu com a iniciativa do Pastor
Hoppe, um alemão que em 1885 organizou uma sala de aulas para ensino de
um ofício para crianças deficientes. Sua iniciativa encontrou um sucesso muito
grande, pois toda aquela escola foi transformada num lar para pessoas com
deficiências aprenderem profissões diversas.
- *O problema dos surdos e dos surdos-mudos e suas soluções*
O atendimento aos surdos e aos surdos-mudos também progrediu muito no
século XIX. Exemplos desse progresso são os seguintes:
- Na Inglaterra, ao final do século XVIII e início do século XIX, o educador
Thomas Braidwood (1715 a 1806) organizou uma escola para surdos em
Edinbourgh e logo após uma outra em Londres. Eram escolas particulares e a
pagamento, que tiveram o condão de despertar a atenção para o problema dos
surdos e para as soluções que se apresentavam viáveis. A primeira escola
para surdos pobres havia já sido aberta em
1792, em Londres (Old Kent Road) mudando-se mais tarde para Margate.
Durante o século XIX muitas outras escolas para surdos foram organizadas
na Inglaterra, tanto assim que em 1870 havia dez escolas residenciais dessa
natureza. O governo inglês finalmente assumiu a responsabilidade pelo ensino
oficial dos surdos e dos cegos em 1893, tornando-se obrigatório entre os 7 e 16
anos de idade, como parte integrante do ensino oficial.
- Na Alemanha, Moritz Hill (1805 a 1874) desenvolveu um método próprio de
educação para crianças surdas, usando a comunicação oral e seguindo
exemplo do educador alemão Samuel Heinicke (1727 a 1790). Hill sempre foi
considerado um dos melhores educadores de surdos de todos os tempos.
- Nos Estados Unidos, em 1803, Francis Green de Boston já fizera
juntamente com alguns religiosos protestantes, uma tentativa de
recenseamento de surdos em todo o Estado de Masachussets, encontrando 75
surdos. Supondo, pelo seu levantamento, que no país todo deveria haver bem
mais do que 500 surdos, sugeriu a criação de escolas especiais.
No ano de 1815, em Hartford, Connecticut, foi organizada uma sociedade
para a instrução de surdos que tomou a sábia iniciativa de levantar fundos para
mandar o jovem professor Thomas Hopkins Gallaudet à Europa para aprender
métodos comprovados de ensino para surdos. Chegou a estudar o método de
sinais na escola do Abade Sicard, em Paris, e em 1816 voltou aos Estados
Unidos com um professor surdo: Laurent Clerc.
No dia 15 de abril de 1817 foi aberta a Escola Hartford para Surdos que
começou a utilizar tanto os sinais quanto o alfabeto normal e a própria escrita.
Foi em 1818 que foi criada a New York Institution for the Deaf, graças à
influência marcante e ao interesse direto do Reverendo John Stafford.
O ano de 1867 viu surgirem duas escolas de importância nesse campo: a
Clarke School, em Northampton, Masachussets e a Institution for the Impaired
Instruction of the Deaf, em New York, hoje chamada de Lexington School for
the Deaf. Elas usavam métodos de comunicação oral em contraposição ao de
comunicação por sinais, usado nos primeiros cinqüenta anos do século XIX.
- *Proteção ao acidentado de trabalho por legislação recente*
Otto von Bismark, Chanceler do Império Alemão, aprovou no ano de 1884 o
que é considerado como a primeira lei do mundo que protegia o acidentado no
trabalho, no que foi imediatamente imitado por muitos outros países europeus.
Era uma das primeiras providências objetivas relacionadas a trabalhadores
civis, levando gradativamente às programações de recuperação física e de
reabilitação, com tentativas de readaptação ao trabalho e reaproveitamento
daquela mão-de-obra prejudicada.
Boa parte da pressão por soluções que visualizassem a volta ao trabalho
como um ideal a ser atingido partiu de companhias de seguros, envolvidas no
processo devido às determinações legais de proteção ao trabalhador.
- *A modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes*
Ao se especular sobre cirurgia ortopédica e seu significado na eliminação, na
redução ou na prevenção de deformidades físicas, na segunda metade do
século XIX, não se pode deixar de mencionar nomes como os de John Hilton,
G.F.Stromeyer, William J.Little, H.O Thomas, Sir Robert Jones e outros.
Como é sobejamente sabido, a cirurgia ortopédica pode ser preventiva ou
reconstrutiva. E apenas para que possamos ter uma idéia do escopo amplo
dessa especialidade médica dentro da ortopedia, que tanto tem a ver com o
mundo das pessoas deficientes, relembremos que as deformidades podem ser
adquiridas ou congênitas.
Paremos por um instante apenas em nosso desenrolar histórico e
meditemos sobre a importância que teve e tem a cirurgia ortopédica em
problemas relacionados aos portadores de deficiências físicas, e façamos
justiça aos médicos que têm procurado dedicar-se a essa especialidade.
Dentro do vasto campo para suas intervenções, lembremos as mais
significativas: a cirurgia reconstrutiva da coluna vertebral e das extremidades é
da mais real importância; fraturas mal solidificadas ou mal restauradas são
tratadas por procedimentos cirúrgicos dentro da cirurgia ortopédica; tendões
podem ser reparados por transplantes e outros procedimentos específicos;
diferenças nos tamanhos das pernas podem ser acertadas; muitas doenças do
esqueleto humano podem ser resolvidas pela cirurgia ortopédica; amputações
a níveis adequados e com técnica cirúrgica que permita o uso de próteses são
possíveis; a prevenção de deformidades por procedimentos cirúrgicos é
também perfeitamente viável. Essas são algumas das intervenções mais
conhecidas da cirurgia ortopédica que avança continuamente para uma
atuação cada vez mais primorosa.
Dentre os cirurgiões ortopédicos mais famosos cumpre que separemos o
nome de Stromeyer, de Hannover, na Alemanha. Ele havia desenvolvido uma
operação conhecida por tenotomia (corte dos tendões), pela qual conseguia
corrigir com menos dificuldade alguns tipos de deformidades. Foi a ele que um
novo pioneiro da cirurgia ortopédica - William J. Little, da Inglaterra - recorreu
no ano de 1836.
O Dr.Little havia nascido com uma paralisia no pé, e com o tempo este havia
ficado deformado. Venceu barreiras, enfrentou ambientes e formou-se médico.
Seus estudos sobre as causas do pé torto e a introdução, na Inglaterra, da
tenotomia, sobre a qual tanto aprendera com Stromeyer antes, durante e
depois de sua própria cirurgia foram providências muito significativas para o
desenvolvimento da cirurgia ortopédica.
- *Reabilitação desabrocha num centro de atendimento, em Cleveland*
Os primeiros indícios de reabilitação aplicada como tal surgiram nos Estados
Unidos no ano de 1889 com a criação de uma organização especial para o
atendimento de pessoas deficientes e que utilizou o nome de Cleveland
Rehabilitation Center.
Um pouco depois, no ano de 1893, foi organizada na cidade de Boston uma
entidade chamada Boston Industrial School for the Crippled and Deformed, que
não só oferecia alguns treinamentos profissionalizantes mas também vários
outros serviços que o individuo necessitasse.
À época do nascimento de Helen Keller, em 1880, já havia movimentos bem
conscientes no Alabama quanto aos problemas de pessoas deficientes. Havia
profissionais que começavam a expressar sua preocupação com o conteúdo e
com a própria metodologia (ou ausência dela) dos programas que se iniciavam
em diversas áreas. Um dos sintomas claros dessa preocupação foi a criação
da American Association of Workers for the Blind (Associação Americana de
Trabalhadores com os Cegos, em Washington, no ano de 1895.
O conceito de reabilitação em seu sentido amplo e de atendimento às
necessidades do ser humano com deficiências, mas como um todo, tomou
forma no final do século XIX, devido a fatores múltiplos, dentre os quais não
podemos deixar de mencionar a preocupação de algumas sociedades com o
homem em seu sentido mais profundo, as tendências humanísticas em
algumas profissões, tais como a medicina psiquiátrica, e também o surgimento
de outros grupos de profissionais mais voltados para problemas sociais ou para
dificuldades individuais do ser humano num contexto familiar e comunitário.
Algumas organizações continuaram e continuam a manter uma tônica
custodial, assistencialista, caritativa e segregacionista. Mas o reconhecimento
da pessoa humana como um indivíduo de méritos próprios e de potencial a ser
melhor aproveitado passava a ser irreversível.
- *Helen Keller, cega, surda e muda: um marco indelével*
Ao final do século XIX (1880) nascia Helen e com 19 meses ficou cega e
surda. Logo a seguir não conseguiu mais falar. Foi com 7 anos de idade que
começou a receber a ajuda de Anne Sullivan, graças a uma sugestão de
Alexander Graham Bell, consultado pelos Keller quanto a uma solução para os
problemas de Helen. A assistência a Helen Keller resultou de uma combinação
de esforços de várias organizações que levaram a jovem a ler, escrever e até
falar.
Em 1900 Helen entrou no Colégio Radcliffe, graduando-se em 1904 "cum
laude". Desse ponto em diante sua vida foi marcada por uma plena dedicação
à causa de pessoas vítimas de múltiplas deficiências.
Ela foi um verdadeiro marco nos esforços para melhor compreensão das
potencialidades do ser humano para superar problemas considerados
insuperáveis.
Lutando com problemas semelhantes à mesma época, mas vivendo
situações de vida bem diversas, poderemos citar alguns nomes que fortalecem
a crença no potencial do ser humano e na criatividade de muitos profissionais
que levam a verdadeira ciência do atendimento para melhores e mais objetivos
resultados:
Laura Bridgman (que só tinha o sentido do tato e que mesmo assim recebeu
uma educação metódica) e Richard Clinton, ambos dos EUA; Marthe Obrecht,
da França; Inocêncio Juncar y Reyes, da Espanha; Eugênio Malassi, da Itália e
Marie Heurtin, da França - todos com deficiência visual e auditiva.
Marie Heurtin nasceu cega e surda e ao ser encaminhada a uma escola
especial em Notre Dame de Larnay, perto de Poitiers, rolava na terra e grunhia
como um pequeno animal. Segundo Pierre Villey, autor cego dos mais
categorizados, que escreveu sua interessante obra "Le Monde des Aveugles"
em 1914, Marie Heurtin "é hoje uma jovem de 25 anos, cordata, ativa, alegre,
que raciocina bem"... e ... "Laura Bridgman, que não tinha apenas a visão e a
audição, mas também o paladar e o olfato, fornece a prova irrefutável que
apenas as impressões do tato são suficientes para emancipar uma alma e para
liberar seu eco para os mais altos cimos que o espírito humano tem explorado"
("Le Monde des Aveugles", de Villey).
CAPÍTULO QUINTO
A PESSOA DEFICIENTE NO BRASIL COLONIAL E IMPERIAL
Conforme tivemos oportunidade de verificar no rápido passar pelos muitos
séculos da História do Homem, as doenças graves, os acontecimentos
nefastos e os muitos infortúnios que sempre levaram às situações de
deficiências físicas ou sensoriais jamais deixaram de existir. Essa verdade
sempre foi válida em todos os quadrantes da Terra, em qualquer época. Ela é
válida também para todos os períodos da História do
Brasil, tanto para os nossos aborígenes ou para os negros escravos que para
cá foram trazidos como carga humana em navios infectos e superlotados,
como também para os nossos muitas vezes bravos colonizadores provenientes
de Portugal, da França, da Holanda e da Espanha.
Se buscarmos nos arquivos de nossa História, poderemos surpreender-nos
com normas ou decretos que chegaram a abordar os problemas de pessoas
com defeitos físicos. E se formos pesquisar as atividades de organizações de
épocas remotas em diferentes cidades (principalmente entre os séculos XVI e
XVIII) certamente que acharemos referências várias a "aleijados", "enjeitados",
"mancos", "cegos", "surdos-mudos" e outras mais.
No entanto, assim como na velha Europa, a quase totalidade das
informações sobre pessoas defeituosas está diluída em comentários
relacionados aos doentes e aos pobres de um modo geral, como era usual em
todas as demais partes do mundo. Na verdade, também no Brasil a pessoa
deficiente foi considerada por vários séculos dentro da categoria mais ampla
dos "miseráveis", talvez o mais pobre dos pobres.
Os mais afortunados que haviam nascido em "berço de ouro" ou pelo menos
remediado, certamente passaram o resto de seus dias atrás dos portões e das
cercas vivas das suas grandes mansões, ou então, escondidos, voluntária ou
involuntariamente, nas casas de campo ou nas fazendas de suas famílias.
Essas pessoas deficientes menos pobres acabaram não significando nada em
termos de vida social ou política do Brasil, permanecendo como um "peso"
para suas respectivas famílias.
Sempre que analisamos o problema das pessoas deficientes em épocas
passadas da História do Mundo, não podemos deixar de prestar a devida
atenção à evolução das ciências e de um modo todo especial à evolução do
atendimento médico, à existência de recursos de assistência hospitalar das
mais variadas naturezas e à manutenção, pela sociedade ou pelos
governantes, de entidades de beneficência para pobres, pois as pessoas
deficientes sempre estiveram inseridas nesses reduzidos contextos.
É fácil depreender que no Brasil - uma mera colônia de Portugal - a situação
não foi e nem poderia ter sido muito diferente. Assim, é muito importante que
tentemos encontrar meios para visualizar, durante os primeiros três séculos de
nossa História, os problemas das pessoas com males incapacitantes, em
nossa realidade geral, sem entretanto poder destacá-los por quase absoluta
falta de dados específicos.
- *Os primeiros hospitais do Brasil Colonial*
Comecemos por verificar como nossos ancestrais enfrentavam os problemas
de saúde. E nesse sentido notaremos que não existe concordância entre os
autores quanto à criação de uma primeira entidade hospitalar no Brasil.
Seguindo modelo português, a tendência foi criar as Casas de Misericórdia,
com recursos provenientes da comunidade e com o fim específico de atender
aos doentes necessitados de assistência médica, sem ter condições de pagar
por esses serviços especiais.
Alguns historiadores defendem como ano de fundação da primeira Casa de
Misericórdia o de 1545, enquanto que outros falam do ano de 1567. Ao que
parece, Estácio de Sá (1520 a 1567), terceiro Governador Geral do Brasil e
sobrinho de Mem de Sá, trouxera orientações diretas do rei de Portugal, não só
para expulsar os franceses de Villegaignon, instalados na baía da Guanabara,
mas de construir ali, próximo ao morro conhecido com o nome de Pão de
Açúcar, uma cidade. Nela, dentre os recursos essenciais, o rei determinava a
construção de uma casa para abrigar a Confraria da Misericórdia e seus
serviços. A cidade recebeu o nome de São Sebastião, em homenagem ao rei.
Mas Estácio de Sá não teve muito tempo para se dedicar à completa
construção da nova cidade, pois no ano de 1567, com apenas 47 anos de
idade, faleceu, vítima de uma flechada no rosto, após ter passado semanas
com alta febre e com seriíssima infecção causada pelo ferimento. Anchieta, um
dos maiores jesuítas que atuaram no Brasil, esteve presente à sua morte.
Segundo vários autores, só mesmo no dia 24 de março de 1582 é que foi
determinada a construção de diversas palhoças de pau-a-pique cobertas de
sapé, onde o padre José de Anchieta instalou, na vila de São Sebastião do Rio
de Janeiro, o que foi depois conhecido como Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro. A construção fora acelerada para poder dar abrigo urgente à
tripulação e aos soldados da esquadra de um corajoso almirante espanhol,
Dom Diogo Flores Valdez, todos atacados por escorbuto e por febres malignas
durante sua longa viagem da Espanha para o Estreito de Magalhães, com 23
naus e 5.000 homens armados, a fim de lá construir fortificações e povoados. A
volumosa esquadra havia surgido na baía da Guanabara muito
cautelosamente, com a temida cruz negra no alto dos mastros de todas as
naus. Era o indicativo de peste a bordo. E foi socorrida.
Alojados, ainda que precariamente, os soldados e marujos espanhóis,
Anchieta e os outros jesuítas auxiliados por colonos de boa vontade e por
índios amigos, prepararam pomadas e mezinhas todas elas extraídas de nossa
muito rica flora.
Há autores que discordam da data e do local de instalação do primeiro
hospital brasileiro. Segundo Zarur, por exemplo, o Barão do Rio Branco
afirmava ter ocorrido no dia 24 de fevereiro de 1583 um violento combate entre
dois galeões ingleses e três espanhóis em pleno porto de Santos, praticamente
à frente de São Vicente. Devido a esse combate e aos seus desastrosos
resultados em termos de destruição de casas e ferimentos em muitos marujos
e habitantes da vila, ali foi organizada, no mesmo ano, a primeira Casa de
Misericórdia do Brasil.
As informações de Santos Filho dão-nos, todavia, uma visão bem mais
ampla de todo o assunto. Segundo esse renomado professor de medicina, eis
algumas datas de fundação de nossos hospitais de misericórdia no século XVI:
1543 - Data considerada incerta mas provável para a criação da Casa de
Misericórdia de Santos.
1549 - Ano de criação da Casa de Misericórdia da Bahia.
1540 - Embora anterior a todas, a data é bastante incerta para a alegada
criação da Casa de Misericórdia de Olinda.
1570 - Data das primeiras instalações da Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro, retomadas em 1582 com a construção de palhoças para a tripulação e
soldados embarcados com Dom Valdez.
1590 - Instalação da Casa de Recife.
1595 - Instalada a do Espírito Santo.
Lembremo-nos que quase todas essas pobres Casas de Misericórdia
mantinham a tristemente famosa Roda dos Expostos, na qual muitos recém-
nascidos com deformações foram colocados por mães desesperadas, tendo
eles sido criados em orfanatos ou nos conventos, como elementos à margem
da sociedade.
- *Anchieta e seu exemplo de assistência aos doentes*
Ressaltemos que bem antes dos empreendimentos acima indicados outras
iniciativas de assistência a enfermos, a doentes crônicos e enjeitados vinham
sendo levadas a efeito. Isso ocorreu com a presença dos jesuítas desde o
começo da fundação de São Paulo. Nada melhor do que buscarmos as
palavras de quem realmente esteve ali presente, por aqueles agrestes e muito
difíceis anos do início da maior metrópole brasileira, ou seja, o padre José de
Anchieta.
Em carta datada de 1554, enquanto ainda estava em Piratininga, ele narra o
seguinte: "De janeiro até o presente tempo, permanecemos algumas vezes
mais de vinte em uma pobre casinha feita de barro e paus, coberta de palhas,
tendo catorze passos de comprimento e apenas dez de largura, onde estão ao
mesmo tempo a escola, a enfermaria, o dormitório, o refeitório, a cozinha e a
dispensa" (Apud Rodrigues).
Doentes e acidentados acorriam a esse incipiente recurso polivalente
surgido em São Paulo de Piratininga no próprio ano de sua fundação. Ao
descer a serra para São Vicente, ainda no ano de 1554, Anchieta escreveu
uma carta especial para os seus irmãos jesuítas doentes em Coimbra,
afirmando: "... neste tempo que estive em Piratininga servi de médico e de
barbeiro, curando e sangrando a muitos daqueles índios dos
quais viveram alguns de que não se esperava vida, por serem mortos muitos
daquelas enfermidades" (Apud Rodrigues).
O termo "barbeiro" relaciona-se aqui à função de cirurgião e não à de
cortador de cabelos e aparador de barbas, pois conforme verificamos
anteriormente, durante vários séculos as sangrias e certas intervenções hoje
inseridas em cirurgia eram praticadas por esses profissionais.
Ao referir-se às atividades de José de Anchieta quando "sangrava"
portugueses e índios, o historiador Robert Southey (1779 a 1843) afirma:
"suscitaram-se escrúpulos a respeito desse ramo de sua profissão, pois que ao
clero é proibido derramar sangue; consultado Loyola, respondeu que a
caridade se extendia a tudo ("História do Brasil", de Southey).
O mesmo autor afirma também que Anchieta dispunha apenas de um
canivete de afiar penas de escrita para realizar essas famosas sangrias.
Não nos é difícil imaginar que Anchieta tenha lutado fortemente contra a
desabusada e muito aceita atuação de benzedores ou feiticeiros, uma vez que,
de acordo com seus próprios escritos, ele chegou a preparar mezinhas,
operou, sangrou, fez partos, exumou cadáveres, curou feridas bravas, tratou de
cancros, fez curativos, assistiu a velhos, crianças, moribundos e loucos. Cuidou
também de problemas decorrentes de flechadas, golpes de tacape, feridas de
guerra; combateu pestes, infecções, febres e até suicídios; chegou até a
descrever males desconhecidos à época e diversos tipos de doentes.
- *Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil*
Falando sobre nossos indígenas, Santos Filho informa-nos incisivamente:
"Eram raríssimos os aleijados e as deformações reconheciam origem
traumática". E cita-nos uma frase de Anchieta a esse respeito: "Achava-se
raramente um cego, um surdo, um mudo ou um coxo, nenhum nascido fora do
tempo" (Apud Santos Filho).
Sobre os nossos índios dos meados do século XVI Jean de Léry, que os viu
muito de perto e com os mesmos conviveu muito enquanto aguardava navio
para voltar à França, afirma: "Não são maiores nem mais gordos que os
europeus; são, porém, mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem
dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos
coxos, disformes,aleijados ou doentios" ("Viagem à Terra do Brasil", de Léry).
Entre os portugueses, no entanto, a situação era outra e não era tão serena.
No início da colonização brasileira, os colonos sofriam muito com a quantidade
de insetos nocivos à sua saúde e bem-estar. Afetavam-nos muito também os
males próprios dos trópicos e característicos de uma terra nunca desbravada,
alguns deles de natureza muito grave e que acabavam levando a severas
limitações de natureza física ou sensorial.
Havia, por exemplo, um inseto chamado "chigua", citado por diversos
autores da época. Era de proporções reduzidíssimas, muito encontradiço nas
primeiras pousadas ou fazendas que se dedicavam à produção de cana de
açúcar. Infestava também outras regiões, evidentemente. Essa espécie de
inseto pólvora introduzia-se entre as unhas e as carnes dos dedos das mãos e
dos pés. Chegava a afetar muito seriamente algumas juntas do corpo.
Léry conta que, por maior cuidado que tivesse e por maior esmero que
procurasse empregar para deles se livrar, não conseguia. Segundo seu relato,
chegaram a extrair dele mais de vinte "chiguas" num só dia. E, de acordo com
Southey, muita gente chegou a perder os pés de uma forma pavorosa, por
causa desse inseto.
Os nossos índios e nossos mamelucos sabiam de uma segura solução para
o problema dos "chiguas", não sendo por eles muito molestados. Aos poucos
foram os europeus também seguindo seu exemplo. "Untavam as partes que
mais expostas andavam a esta praga, com um azeite vermelho e espesso,
espremido do "courouq", fruta que em nossa terra é parecida com a castanha.
Por felizes se deram os franceses quando souberam desse preservativo. Para
feridas e contusões era o mesmo óleo soberano ungüento" ("História do Brasil,
de Southey).
Santos Filho, analisando peculiaridades do Brasil nesse incrível e muito
difícil século XVI, afirma que após anos de colonização "tal e qual como entre
os demais povos, e no mesmo grau de incidência, o brasileiro exibiu casos de
deformidades, congênitas ou adquiridas. Foram comuns os coxos, cegos,
zambros, corcundas" ("História Geral da Medicina Brasileira", de Santos Filho).
- *Cegueira noturna no Brasil dos séculos XVI e XVII*
O naturalista holandês Guilherme Pison viajou em companhia de outro
amigo das ciências, Margraff, ao Brasil no início do século XVII e escreveu sua
principal obra em 1648, à época intitulada "História Naturalis Brasiliae". Nela
ele nos fala de severos males dos olhos, mencionando-os como oftalmias de
muita seriedade e muito comuns aos moradores de nossa Terra. E diz que
"entre as calamidades do Brasil, não ocupam o último lugar as doenças dos
olhos, atacando mais que todos os soldados e os oprimidos pela miséria".
Pison não coloca esses males como epidemias, mas culpa as pessoas
vitimadas pelo mal devido à sua vida desregrada e corrupta. "Desses, uns
perdem a vista quando o sol se põe", diz ele, e "outros a perdem com o
crepúsculo matutino". Pison chama o problema médico de "gota-serena" e
também de "amaurose", palavras que até hoje correspondem a cegueira parcial
ou total. E comenta que as vítimas tratavam-se com "guabiraba" ("História
Natural do Brasil Ilustrada", de Pison).
Robert Southey, por sua vez, analisa o mesmo problema. O historiador
inglês parece ter-se baseado na opinião de Pison, pois a semelhança de seus
comentários é óbvia quando diz: "Moléstias dos olhos eram tão vulgares,
mormente entre soldados e pobres; a mais freqüente era essa meia cegueira
que os europeus freqüentemente experimentam entre os trópicos; os remédios
eram o fumo de tabaco, carvão de casca de guabiraba ou alvaiade em leite
humano, então muito empregada como medicinal" ("História do Brasil", de
Southey).
A meia cegueira citada ("evening blindness", no original da obra), a
"amaurose" ou a "gota-serena" devem corresponder à xeroftalmia, a cegueira
noturna dos nossos dias, cuja causa básica deve ter sido alimentação com
perniciosa falta de vitamina A.
- *Os problemas médicos nos séculos XVI e XVII no Brasil*
Não resta dúvida que a situação deve ter sido incrivelmente difícil e muito
problemática durante os séculos XVI e XVII, para casos de doenças mais
sérias, casos de fraturas expostas ou complicadas, ou mesmo de
deslocamentos e, ainda pior, casos que provocavam lesões permanentes e de
natureza incapacitante.
Quando surgia uma epidemia nesses terríveis duzentos anos da História do
Brasil, era um verdadeiro "salve-se quem puder". Nessas horas só se
apresentavam para dar algum atendimento à população mais pobre os
improvisadores e também os muito experimentados curadores. Pedro Calmon,
em sua "História do Brasil", relata-nos a epidemia da febre amarela, em pleno
século XVII, da seguinte forma: "A "bicha" era a febre amarela. Trouxera-a da
Ilha de São Tomé para o Recife um brigue negreiro. Abertas duas barricas com
carnes salgadas, logo morreram, como se vitimados pelo ar empestado, dois
marítimos; e o mal se espalhou pelo porto, pela vila de Olinda e seus
arredores, sem haver medicina que o atalhasse. Verificou-se na Bahia o
primeiro caso de doença em abril. A sordície dos sobrados, cujos porões
andavam cheios de escravos da África, o calor, as ruas sujas, a falta de
higiene, agravada pelo número crescente de negros mercadejados nos bairros
da praia, favoreceram a expansão da epidemia, "novo gênero de peste nunca
visto nem atendido dos médicos, de que já morreram dois", como participou
Vieira ao Conde de Castanheira em 1º de julho de 1686. Feria de preferência
os brancos, os menos adaptados ao clima. Dias houve em que morreram na
cidade duzentas pessoas" ... ... "Chegaram as ruas a estar despovoadas, não
só morrendo de vinte a trinta todos os dias, mas não havendo casa em que não
houvesse muitos enfermos e em algumas todos" ("História do Brasil", de
Calmon).
Diante de situação de tal seriedade podemos imaginar o abandono a que
foram relegados os infelizes que padeciam de males crônicos ou que
carregavam consigo a dificuldade própria de uma deficiência física ou
sensorial.
- *Médico com deficiência física na História de Pernambuco*
João Fernandes Vieira (1613 a 1681), herói da guerra contra os holandeses
que haviam invadido o Brasil, durante muitos anos organizou planos para a
libertação de toda a região ocupada do Nordeste. Participou valentemente das
duas batalhas de Guararapes, tendo sido um forte aliado de Vidal de Negreiros,
Camarão e Henrique Dias.
Tendo tomado posição em Covas com um improvisado exército mal treinado
e sem qualquer disciplina, João Fernandes teve que se haver com
descontentes e traidores em potencial, utilizando-se de medidas bastante
severas para contê-los.
No entanto, o problema da falta de assistência médica que afetava a todos,
sem exceção, levou João Fernandes a mandar um pequeno grupo de soldados
a Santo Amaro, para dali raptar um médico francês conhecido como Mestrola,
homem devotado ao seu mister, apesar de séria deficiência física que o
impedia de muita movimentação pelo local.
É Southey que nos conta: "Ao ver-se nas mãos de tal gente clamou o pobre
cirurgião que era cristão católico romano, e sempre curava os portugueses com
o maior cuidado e carinho; se aqueles fidalgos queriam levá-lo para as matas e
lá assassiná-lo, suplicava-lhes a bondade de o matarem antes ali mesmo perto
da igreja, onde algum bom cristão o enterraria pelo amor de Deus. Mas se
queriam que ele tratasse dos
portugueses feridos, lhe dessem um cavalo, que tinha ele a perna doente, com
que não podia andar" ("História do Brasil", de Southey).
O médico com a séria deficiência na perna conseguiu o cavalo e não teve
outro remédio a não ser aderir ao pobre e valente exército de João Fernandes,
ao qual prestou bons serviços.
- *O problema das paralisias no Brasil do século XVII*
Simão Pinheiro Morão foi um médico português que viveu muitos anos no
Brasil em pleno século XVII, depois de ter passado sérias frustrações em
Portugal. Ao final de sua permanência no Nordeste Brasileiro, precisamente no
ano de 1677, resolveu escrever aquilo que intitulou pouco sutilmente de
"Queixas Repetidas em Ecos dos Arrecifes de Pernambuco contra os Abusos
Médicos que nas suas Capitanias se
Observam Tanto em Dano das Vidas de seus Habitadores". O trabalho
destinava-se principalmente às pessoas que improvisavam na área da
medicina.
Nesse extenso manuscrito que ficou perdido por séculos, ele arrola diversos
males. Destaquemos aquilo que chama de "paralisia", mencionada
inespecificamente, mas dando a entender tratar-se das seqüelas de um
acidente vascular cerebral ou de alguns outros males que podem levar à perda
eventual da sensibilidade.
Percebe-se nas entrelinhas a inexistência de maiores preocupações com o
problema familiar ou social causado pelo mal, limitando-se Morão a registrar o
que pode ser usado em determinadas circunstâncias como medicamento.
" ... se à paralisia sobrevier tremor não é ruim sinal, senão bom, assim como
também se acharmos a parte ofendida com quentura, ou com calor, porque
com isso nos dá esperança de melhoria; e muito melhor se à paralisia sobrevier
febre. E também podemos fazer ruim prognóstico quando a parte ofendida se
for secando, a que os médicos chamam atrofia".
Um pouco mais adiante Morão começa a desfiar idéias suas e de outras
autoridades médicas daqueles tempos quanto à cura eventual da paralisia. Eis
algumas delas: "O mais eficaz remédio para este acidente de paralisia de que
todos os autores fazem particular menção, e a experiência tem mostrado
infinitas melhoras, é o das caldas, aonde acodem todos os anos, nos meses
destinados a isso, todos os enfermos desta enfermidade e de outras muitas
igualmente rebeldes; donde os mais deles saem com manifesta melhoria"...
Morão não entra, todavia, em muitos pormenores por julgar inoportuno e
devido ao fato de no Brasil - colônia portuguesa - não existirem então estações
de águas termais. Mas a medicina, auxiliada por boticários experientes, já
demonstrava sua criatividade e supria a falta das águas termais por "suores de
salsaparrilha ou de pau-da-china".
Após esse tratamento inicial de "suores" abundantes, o paciente devia
continuar os cuidados intensivos, caso não ocorresse a melhora. E nesses
casos, o que devia fazer?
"Seja a primeira mezinha untarem a nuca e o espinhaço todo com óleos
seguintes. Tomem de óleo de lírio e de arruda de cada um uma onça, de
aguardente do Reino meia onça com enxúndias de ganso e uns pós de
mostarda pisados se faça linimento, e com ele quente se untarão as partes
ofendidas, fazendo-lhe primeiro nelas uma esfregação com pano quente
perfumado com alfazema. E aqui se advirta, que as partes paralíticas se não
carreguem com coberturas".
O autor menciona outros tratamentos por meio do que chama de
"rubificantes". Um dos tratamentos mencionados é defendido por outro médico
e cientista português do século XVII, o Dr. Henrique de Quintal: “... tomar folhas
de mostarda bem pisadas, cozidas em urina fresca de meninos, até que tome
forma de papas, e estas moderadamente quentes se ponham nas partes
paralíticas".
Havia variações no uso de ervas, incluindo sempre a mostarda e muitas
vezes a salva, manjerona e arruda, misturadas e cozidas em óleo para "untar
as vértebras do espinhaço".
Morão chega a discutir o problema da paralisia na eventual clientela pobre e
que jamais poderia ter acesso a ingredientes dispendiosos como a
salsaparrilha e o pau-da-china pareciam ser. O substitutivo por ele indicado era
a salsa-da-praia, encontradiça com maior facilidade.
As pormenorizadas informações de Morão e de outros autores já citados
indicam-nos que sem a menor sombra de dúvida alguns procedimentos
indicados por eles provocavam algumas curas, bastante melhora ou pelo
menos algum alívio em pessoas que eram vítimas de algum tipo de paralisia
nos primeiros séculos de Brasil.
- *A medicina do século XVIII entre nós*
As crendices passadas de geração a geração pelos escravos, índios e
europeus predominavam no Brasil do século XVIII.
Embora toda a situação fosse muito primitiva e nosso país não contasse com
recursos significativos, alguns médicos procuraram documentar cientificamente
o problema. No ano de 1741 o médico João Cardoso de Miranda escreveu um
pequeno tratado intitulado "Relação Cirúrgica e Médica", dando alguns
pormenores quanto às nossas doenças, nossas endemias, os contágios
relacionados a males trazidos pelos negros escravizados e infecções várias. E
no final do século XVIII, exatamente em 1796, o Dr. José Mariano Leal
procurou organizar algumas aulas para demonstração e para tratamento
cirúrgico, a fim de repassar a colegas seus as experiências que conseguira
acumular durante toda a sua vida de médico. Em seus sonhos profissionais
havia também a preocupação de combater mais sistematicamente a temida
"lepra".
E tentativas para melhorar o padrão de atendimento médico e ampliar o campo
de conhecimentos da medicina ocorreram em vários pontos do país. Com esse
avanço os charlatães e os barbeiros foram sendo acuados para pontos menos
desenvolvidos do Brasil.
No entanto, bloqueios muito sérios ocorriam e a grande maioria deles
oriundos da Pátria-Mãe, Portugal. Em 1768, por exemplo, os vereadores de
Sabará, na Província de Minas Gerais, pediram ao rei de Portugal permissão
para a fundação oficial do que chamavam "Casa de Aulas", para ensinar
anatomia e cirurgia, tanto na teoria quanto na prática. A resposta, vinda do
reino depois de muito tramitar pelos corredores da corte, foi lacônica e
desagradável ao extremo: "Não convém"... O rei procurava preservar, custasse
o que custasse, a inquestionada liderança de Coimbra entre nós. De lá
emanava todo o saber lusitano (Apud Calmon).
Aqui em nossa Terra havia reduzido número de formados em Coimbra e
todos eles localizados nas melhores cidades. Só atendiam à elite portuguesa
ou aos homens mais ricos daqueles tempos. Para o povo em geral e para os
pobres prevalecia a experiência dos sangradores, dos utilizadores de ventosas
e sanguessugas e dos charlatães em geral. Não licenciados para essas
funções, na verdade tratava-se de padeiros, barbeiros, negros experimentados,
homens supostamente bem informados, mulheres habilidosas e curiosas, além
dos sempre famosos curandeiros.
- *Males limitadores que afetavam muito os negros escravos*
Muitos dos africanos que foram trazidos à força para o Brasil como escravos
aqui sofreram muitos castigos físicos, chegando mesmo a terem o corpo
marcado pelos maus tratos a eles infligidos.
Muitas vezes eram vítimas de raquitismo, de beribéri, de escorbuto (também
conhecido como "mal de Luanda"), ou seja, das síndromes mais sérias
denotadoras de carências alimentares.
"Foram portadores de defeitos físicos provocados por castigos e desastres
nos engenhos" ("História Geral da Medicina Brasileira", de Santos Filho).
Falando sobre os efeitos da varíola sobre os escravos negros, Sigaud nos
esclarece que "com o fito de provocar a erupção e de evitar tanto quanto
possível os acidentes provocados pelo seu atraso, ou também pelo surgimento
de pústulas nas mucosas e em alguns Outros órgãos (casos de cegueira foram
muito comuns, especialmente entre os negros), o Dr. João Alves de Moura,
médico do Rio de Janeiro, mandava fazer fricção na pele com certo óleo
extraído do corpo de lagartos brancos" ("Du Climat et des Maladies du Brésil",
de Sigaud).
- *Deficiências físicas e sensoriais entre nossos índios*
Como resultado da profícua viagem de uma comissão cientifica ao Brasil
durante três anos (1817 a 1820), Carl Friedrich von Martius (1794 a 1868)
escreveu um interessante trabalho: "Natureza, Doenças, Medicina e Remédios
dos Índios Brasileiros".
Nessa obra do botânico alemão encontraremos algumas afirmações
interessantes quanto a deficiências entre nossos índios do norte do Brasil.
Vejamos algumas referências do cientista:
"Escoliose, "pied-bot" e deformações outras do esqueleto não observamos
em parte alguma. Provavelmente, quando essas deformidades são
hereditárias, o que é admissível, sacrificam as crianças aleijadas, ao nascer.
Além disto é singular, e se poderá apresentar como característica da história
dos costumes daquela raça, que tantos enigmas nos oferece, que o índio
representa o curupira, produto de sua superstição, o assombro da mata,
sempre mau e hostil ao homem, com "pied-bot" ou pé torto, voltado para trás,
saindo do tórax".
Em nota explicativa à informação de von Martius, o tradutor Pirajá da Silva
acrescenta que o curupira "é gênio silvestre, o gnomo, anão de um pé só, ou
de uma banda só. Cavalga, às vezes, um caitetu ou taitetu e transmite a
desgraça a quem o avista. Sacy-pererê é outro gênio maléfico".
Von Martius confirma ainda que "às vezes aparecem paralíticos e coxos; sua
deformidade é sempre de origem traumática". Diz mais, quanto à cegueira:
"Por causas traumáticas ficam muitas vezes cegos, porém a catarata só
raramente os ataca"...
A respeito da surdez o botânico alemão afirma que "os autóctones brasileiros
sofrem mais dos ouvidos que dos olhos. Observamos muitos homens e
mulheres completamente surdos; mais numerosos ainda eram os casos de
meia surdez" ("Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios
Brasileiros", de von Martius).
- *Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho"*
Um exemplo muito importante de trabalho de alta qualidade de uma pessoa
portadora de deficiência física muito séria e progressiva aconteceu na metade
do século XVIII e alvorecer do século XIX.
Em 1800 Antônio Francisco Lisboa (1730 a 1814), apelidado pela população
que o conhecia mais de perto e reconhecido por todos como o "Aleijadinho",
com setenta anos de idade acertava um contrato para a execução em pedra
dos doze profetas no adro da igreja do Bom Jesus dos Matozinhos. Por essa
época já tinha que ser carregado, provavelmente devido à tromboangeíte
obliterante, que em seu caso se caracterizava por ulcerações nas mãos e nos
pés.
Com alguns dedos das mãos perdidos ou imobilizados, mandava que seus
auxiliares ou empregados amarrassem o martelo e o cinzel às suas mãos.
Morreu aos oitenta e quatro anos de idade, sozinho e esquecido, meio
paralisado e cego. Foi um homem competente em sua arte considerada hoje
como genial.
O apelido de "Aleijadinho" provavelmente indica a comiseração de seus
contemporâneos, muitos dos quais reconheceram sua arte e seu valor por
muitos anos.
- *Uma primeira tentativa em projeto de lei: ajuda a cegos e a surdos*
Desde 1835 surgira formalmente no Brasil a idéia de se fazer algo sério em
favor dos cegos, o que na certa já ocorrera em anos anteriores por meio da
iniciativa privada, tendo sido já tentado em alguns pontos mais civilizados de
nossa jovem pátria. Infelizmente a idéia não foi concretizada, mas o leitor
interessado poderá encontrar nos Anais da Câmara de Deputados do Rio de
Janeiro, um projeto de lei datado de 29 de agosto de 1835, que está assim
redigido:
"Art. 1°. - Na Capital do Império, como nos principais lugares de cada
Província, será criada uma classe para surdos-mudos e para cegos".
O Deputado Cornélio Ferreira França, seu autor, devido a motivos políticos
não esclarecidos, nem chegou a ver seu projeto devidamente discutido em
plenário. Seu mérito, porém, e incontestável. Apesar da restrita distribuição da
notícia, chegou a chamar a atenção da sociedade para o assunto e despertar o
interesse dos familiares das pessoas cegas, surdas e surdas-mudas.
- *O problema das amputações do século XVI ao XIX*
Durante os primeiros quatro séculos de nossa História, as amputações foram
a mais séria e a mais comum das cirurgias. Compreende-se, dessa forma, a
conotação dada naqueles séculos à cirurgia como técnica mutiladora.
Naturalmente as amputações ocorriam devido a acidentes, gangrena, tumores,
golpes violentos, entre diversas outras causas.
O que sucedia com os amputados, no entanto, não nos é relatado pelos
historiadores nem pelos cronistas.
Os nossos "físicos", como eram conhecidos os médicos, e os barbeiros que
tinham licença para ser cirurgiões, dispunham de poucos e mal conservados
instrumentos cirúrgicos.
Santos Filho relata-nos ilustrativamente que o cirurgião-mor do Hospital
Militar de São Paulo, em 1804 dispunha para amputações de uma única serra
de carpinteiro. Os demais ferros de cirurgia eram mal conservados e guardados
em qualquer lugar.
Muitos morriam em conseqüência da cirurgia, em grande parte devido a
infecções pós-operatórias. Não é de estranhar que isso acontecesse. Basta ler
um pequeno trecho de Luccock, que em 1809 visitou um cirurgião alemão em
São Pedro do Rio Grande do Sul. Ele "praticava tanto a cirurgia como a
medicina e de uma feita os instrumentos que usava caíram sob os meus olhos.
Estavam na maior das desordens e absolutamente impróprios para a mais
vulgar das intervenções. Tomando de uma serra enferrujada, perguntei-lhe se
se atreveria a amputar um membro com semelhante instrumento. "Por que
não?", replicou, "é a melhor que possuo e ninguém mais aqui é capaz de
realizar tal operação" ("Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do
Brasil", de Luccock).
- *A influência européia no Brasil*
No ano de 1841 Dom Pedro II mandou construir um hospital de misericórdia
ligado à corte, a fim de substituir as superadíssimas e sujas enfermarias da
praia de Santa Luzia. O estilo da nova construção adotava uma mistura do
gótico com o neoclássico. O edifício era portentoso, digno de alguns países
europeus bem adiantados. E com a presença da rica colônia portuguesa que
aqui se radicara em definitivo, começou também a surgir nas cidades mais
importantes do Império as chamadas "Beneficências Portuguesas",
sustentadas por taxas diversas cognominadas de "impostos da vaidade".
O Imperador, com o propósito de incentivar essas iniciativas e também
aquelas que levavam à criação e à manutenção das Santas Casas de
Misericórdia, honrava-as com títulos e condecorações.
De outra parte, com a própria Independência do Brasil já havia ocorrido um
inegável bloqueio à influência científica de Coimbra em nosso meio. Nossos
estudiosos começaram a procurar as escolas e as universidades francesas,
alemãs e austríacas. E a civilização francesa principalmente começou a invadir
o Brasil sedento de cultura e de modernização, chegando a dominar nossos
usos e costumes por aproximadamente um século todo. Alunos jovens de
famílias ricas, bolsistas, ou estudantes das mais variadas origens lá iam
estudar e, ao voltar, começavam a criar o nosso próprio ensino e o nosso
próprio meio técnico e cultural.
Foi o que ocorreu com a medicina entre os anos de 1824 e 1854. Foi
também o que sucedeu no campo de atendimento a pessoas com deficiências.
- *Organizações para pessoas deficientes criadas por Dom Pedro II*
No campo da assistência à população prejudicada por alguma deficiência em
épocas anteriores aos meados do século XIX, não encontramos nada de
relevante. A pessoa vítima de alguma paralisia, alguma deformação congênita,
algum tipo de amputação ou em conseqüência de alguma doença mais grave,
certamente acabava por se tornar responsabilidade de sua própria família. (*
Mesmo hoje, aqui no Brasil, o problema continua pouco alterado. Temos, entre
nós, aproximadamente dez milhões de pessoas deficientes, mas não as
vemos. Onde estão elas? Nos quartos dos fundos da casa? Nos quintais
cercados por altos muros? Institucionalizadas? Longe dos olhos curiosos do
povo? Essa população "continua" sendo responsabilidade de suas famílias...).
As condições delas no Brasil do século XIX não era outra. Ou antes,
certamente que era outra e bem pior do que hoje - e as pessoas apelidadas de
"aleijadas", "manetas", "pernetas", "zambras", "cambaias", "mancas",
"paralíticas", "ceguinhas", "loucas", "bobas" e defeituosas de um modo geral
ficavam sendo problema de seu grupo familiar e nunca do Estado ou da
sociedade.
As tendências européias que chegavam ao porto do Rio de Janeiro com o
atracar dos navios de passageiros, com a distribuição das revistas atrasadas,
com os livros publicados meses antes nos países mais adiantados e influentes
e também com o contínuo retorno ao Brasil de homens inteligentes, estudiosos,
bem preparados e interessados em sua Terra Natal, acabaram provocando o
esperado avanço brasileiro no sentido da modernização.
Foi por esses anos de renovação cultural e de ânsia de modernização que
foram criadas três organizações por iniciativa de Dom Pedro II, homem público
que esteve sempre muito voltado para as conquistas da civilização européia
para a solução de problemas cruciais da população. A elas nos limitaremos
neste capítulo.
a) Imperial Instituto dos Meninos Cegos
Em termos de empreendimentos concretos, nada havia sido feito no Brasil
Imperial em favor dos cegos até 1854, a não ser algumas iniciativas privadas
de mero alojamento, asilo ou segregação dos cegos em instituições mal
organizadas. Mas no dia 17 de setembro de 1854 foi inaugurado por Dom
Pedro II o primeiro recurso de iniciativa da coroa brasileira, ainda modesto mas
bastante significativo: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos.
De onde surgira a idéia? Por que a corte brasileira poderia estar interessada
em manter uma organização especialmente dedicada aos garotos deficientes
da visão? Por que o próprio Imperador havia se envolvido a ponto de dar o
peso da autoridade do governo a essa nova organização?
Dentre os fatos mais relevantes que cercam a criação do Imperial Instituto
dos Meninos Cegos cumpre que destaquemos que no ano de 1853
desembarcara no Rio de Janeiro, proveniente da França onde havia ido
estudar no já famoso Institute des Jeunes Aveugles de Paris, o jovem brasileiro
José Álvares de Azevedo.
Muito animado com o progresso que sentira em sua própria educação e
especialmente com as alterações positivas verificadas em sua vida pessoal,
esse jovem pensara muito durante seus estudos e durante sua longa viagem
de volta ao Brasil, e decidira, antes mesmo de pisar a terra natal e ser recebido
pelos seus familiares, considerar como sacerdócio, como missão de sua vida,
comunicar a outros brasileiros também cegos tudo o que havia aprendido.
E pouco tempo após sua volta, em sua busca de autoridades brasileiras que
poderiam se interessar e apoiar o que considerava sua missão, ficou sabendo
que o Dr.Xavier Sigaud, médico da família imperial, tinha uma filha cega.
Animado e instigado por sua idéia de organizar no Rio de Janeiro uma
instituição semelhante àquela que lhe dera tanto durante anos em Paris e que
pudesse ser realmente útil aos cegos brasileiros, procurou a residência do Dr.
Sigaud e ofereceu seus serviços para a educação especial da jovem Adélia. A
oferta, surpreendentemente generosa e interessante, foi aceita e acabou dando
ótimos resultados em muito pouco tempo. Adélia Sigaud aproveitava ao
máximo os ensinamentos práticos transmitidos pelo jovem Azevedo, deixando
toda a família muito contente.
O Dr.Xavier Sigaud comentou com a família imperial e com o próprio
Imperador sua felicidade, os trabalhos de ensino de sua filha e os evidentes e
rápidos progressos observados. Como era de se esperar, Dom Pedro II
percebeu logo a importância de um apoio oficial a essa causa e mandou
organizar, ligada à corte brasileira, uma instituição que seguia quase que até
no próprio nome aquela onde Azevedo havia estudado, ou seja, o Institute des
Jeunes Aveugles, de Paris. A nova organização levou o nome de Imperial
Instituto dos Meninos Cegos.
As primeiras regletes, punções, chapas para escrita e os primeiros livros de
pontos combinados em relevo chamados de "escrita pelo método Braille" foram
encomendados e chegaram ao Brasil em 1856, tendo sido uma doação pessoal
do Imperador ao novo Instituto.
E vale a pena relembrar e enfatizar aqui que esse sistema de escrita em
relevo recém-estabelecido e reconhecido na França apenas naqueles anos,
dava, com essa encomenda de Dom Pedro II, seu primeiro passo no sentido de
sua internacionalização. O pedido brasileiro foi executado com esmero e foi o
primeiro em uma língua que não a francesa.
O jovem idealizador não teve a ventura de ver o Instituto instalado e em
funcionamento, pois faleceu no dia 17 de março de 1854, com apenas 17 anos
de idade. Adélia, sua pupila aplicada e inteligente, embora por muito pouco
tempo, foi professora do Imperial Instituto dos Meninos Cegos e atuou no
ensino de cegos até sua aposentadoria. Por sua vez, seu pai, o Dr.Xavier
Sigaud, foi indicado para seu primeiro diretor pelo Imperador Dom Pedro II.
Foi dezoito anos após sua instalação que o Imperador fez a doação de um
vasto terreno ao Instituto, à avenida Pasteur, no Rio de Janeiro, onde até hoje
encontram-se as portentosas e muito conhecidas instalações do Instituto.
No entanto, segundo Silvado, durante muitos anos o Instituto só foi um mero
asilo e não passou disso, sempre sob a custódia imperial. "Em uma palavra:
uma escola que se limitava a preparar apenas seus próprios professores" ("Les
Aveugles au Brésil", de Silvado).
Muitos desses mestres chegaram a ser nomeados sem qualquer qualificação
para sua missão. Os poucos casos de sucesso aconteceram mais devido aos
esforços pessoais de alunos mais aplicados e inteligentes do que ao sistema
de ensino adotado. Este era excessivamente técnico e as oficinas ali montadas
limitavam-se às de tipografia e de encadernação para rapazes, e de tricô para
as meninas. A afinação de pianos, tão comum como atividade profissional bem
remunerada para cegos em muitos países, não foi levada muito a sério entre
nós, nem o Imperial Instituto dos Meninos Cegos deu a ela qualquer ênfase.
Cláudio Luiz da Costa foi o segundo diretor do Instituto. Este homem de
sérios propósitos tinha uma filha que havia casado com um jovem professor de
matemática que lecionava no Instituto desde 1861: Benjamin Constant. Este
sucedeu o sogro na direção do Instituto, por indicação do Imperador, dirigindo-
o por vinte anos seguidos. Durante os anos que dedicou à direção do Instituto
dos Meninos Cegos participou ativamente e foi um dos líderes na preparação
das idéias para a Proclamação da República. Como diretor do Instituto
procurou chamar a atenção das autoridades imperiais para o estado lamentável
em que o Instituto se encontrava, propondo diversas soluções, sem ter obtido
qualquer decisão. Com a Proclamação da República parece que conseguiu seu
intento. Elevado ao poder na qualidade de Ministro de Estado, o ex-diretor do
Instituto conseguiu rapidamente o decreto para sua reforma. A construção do
prédio definitivo, que começara em 1872, foi concluída em parte e suas novas
instalações foram ocupadas apenas após a Proclamação da República, ou
seja, no ano de 1890.
Foi no dia 17 de maio de 1890, pelo Decreto 408, assinado pelo Marechal
Deodoro da Fonseca e por Benjamin Constant, que o Instituto mudou de nome
e teve seu regulamento aprovado. Diz o Decreto:
"O chefe do governo provisório, constituído pelo Exército e pela Armada, em
nome da Nação, resolve aprovar o regulamento para o Instituto Nacional dos
Cegos, que a este acompanha, assinado pelo general de brigada Benjamin
Constant Botelho de Magalhães, Ministro da Instrução Pública, Correios e
Telégrafos, que assim o faça executar. Palácio do Governo Provisório da
República dos Estados Unidos do Brasil, 17 de Maio de 1890 - 2ºda
República".
No entanto, Benjamin Constant faleceu logo a seguir, em 1891, e o governo
republicano rebatizou o Instituto em sua homenagem com o seu nome atual:
Instituto Benjamin Constant.
b) Instituto dos Surdos-Mudos
Existe também um relato publicado em 1887 por Tobias Leite, sobre o
Instituto dos Surdos-Mudos, hoje conhecido como o Instituto Nacional de
Educação de Surdos - INES. Era um centro vinculado à coroa brasileira, por
Decreto de Dom Pedro II.
Tratava-se, à época de sua criação, de uma organização especial, também
criada e inaugurada por Dom Pedro II, e que se caracterizava como um
estabelecimento de educação que tinha como finalidade a educação literária e
o ensino profissionalizante para garotos surdos-mudos.
Embora não houvesse o volume de conhecimentos relacionados à surdez
como ocorre hoje, já naqueles anos algumas preocupações básicas
transparecem no relato indicado acima: "O ensino pela palavra articulada e
leitura sobre os lábios, está a cargo de um professor expressamente habilitado
na Europa, para dá-lo aos surdos-mudos nas condições de recebê-lo".
Havia nesse Instituto ensino da linguagem escrita, para o qual o
estabelecimento contava com coleções européias de objetos, instrumentos,
aparelhos e estampas que enriqueciam seu museu escolar, coleções essas
bem completas que cobriam assuntos relacionados a substâncias alimentares,
habitações, instrumentos de caça e pesca, "meios de locomoção terrestre
desde o burro até o trem de caminho de ferro", meios de navegação, fios para
roupas, lãs, calçados, utensílios para a vida nas cidades e nos campos,
móveis, materiais para construção, globos e mapas geográficos e outras mais.
A maior parte desse material fora trazido da Europa, como era costumeiro
em quase todas as áreas do ensino em todos os níveis.
A educação profissional mantida pelo Instituto dos Surdos-Mudos do Rio de
Janeiro era dada em oficinas de sapataria e de encadernação. (* Algumas
instituições existentes ainda hoje lançam mão apenas dessas duas áreas de
treinamento). O rendimento pela venda dos produtos era dividido em 2 (duas)
partes: uma pagava o custo do produto e a outra era recolhida à Caixa
Econômica, já existente no final do século XIX, e era escriturada nas
cadernetas individuais de cada aluno. Ao final do curso cada um retirava o
capital somado aos juros.
Nesse Instituto eram admitidos alunos entre 7 e 14 anos de idade, apenas
do sexo masculino. Viviam em regime de internato, sem qualquer distinção de
tratamento ou de instalações entre garotos ricos ou pobres. Nenhum deles
pagava qualquer tipo de contribuição para ali ser internado e educado.
Numa orientação aos pais e à sociedade em geral, o autor da obra aqui
analisada fazia algumas considerações quanto à futura vida profissional do ex-
aluno surdo-mudo. E dentre as orientações mais interessantes cumpre
destacar as seguintes:
- "É inquestionavelmente de máxima importância e conveniência que o
surdo-mudo tenha um ofício, ou arte de que subsista".
- "Na escolha do ofício ou arte a que o surdo-mudo deve aplicar-se, convém
atender-se à sua constituição física, à localidade em que tem de residir, à sua
aptidão e até à posição ou gênero de vida de seu pai".
- "Em geral, as artes e ofícios convêm mais aos habitantes das cidades e a
agricultura aos dos campos".
- "Das artes e ofícios devem ser preferidos os que podem ser exercidos em
qualquer parte, cidade ou pequenos povoados. Sapateiro, alfaiate, correeiro,
torneiro, oleiro, chapeleiro, tintureiro, impressor e encadernador, são indústrias
que muito lhe convém".
- "Os ofícios de carpinteiro, pedreiro e outros que exigem comunicações
simultâneas com o trabalho, não lhe são tão convenientes".
Princípios básicos da programação do Instituto já eram bem estabelecidos e
de certa forma bem aplicáveis para nossos dias, embora tivessem sido
formulados há cem anos atrás: ... "os que não se deixam levar pelas
exterioridades e encaram as situações pelo lado utilitário entendem que o
objetivo da educação dos surdos-mudos é dar-lhes uma profissão de que
subsistam nobremente, e habilitá-los a comunicar-se com os seus concidadãos
pelo meio que lhes for mais fácil e mais cômodo" ("Notícia do Instituto dos
Surdos-Mudos no Rio de Janeiro", de Leite).
c) Asilo dos Inválidos da Pátria
Outro relato de extrema importância para análise de atitudes predominantes
no Brasil Imperial com relação a pessoas portadoras de deficiências diversas é
o que se relaciona com o "Asilo dos Inválidos da Pátria", de autoria de Manoel
da Costa Honorato e intitulado "Descripção Topográphica e Histórica da ilha do
Bom Jesus e do Asylo dos Inválidos da Pátria", publicado no ano de 1869 pela
Typographia Americana.
Esta organização, destinada ao abrigo e à proteção dos soldados brasileiros
mutilados em guerras ou em operações militares, surgiu em nossa terra, não só
devido a uma necessidade premente da segunda metade do século XIX, mas
também, para a grande maioria dos governantes e da população, por uma
questão de gratidão e de justiça para com os jovens soldados feridos ou
"inutilizados" para a vida militar e talvez até para a civil. No entanto, nota-se
nas entrelinhas de crônicas da época um outro motivo, ou seja, o forte orgulho
de uma jovem Nação do Novo Mundo que não pretendia ficar muito atrás das
nações civilizadas da Europa.
Orgulho, ufania, comiseração, caridade, emoção, interesse genuíno,
reconhecimento patriótico a seus heróis, alguns lances literários e pouco
práticos sobre integração à família e à sociedade, e muito mais, um leitor
curioso poderá encontrar nessa interessante obra. É um relato bem elaborado,
curioso, ao estilo da época imperial, às vezes emotivo, apresentando
ambientes e circunstâncias que cercaram a criação e principalmente a
inauguração de um abrigo oficial (esse o verdadeiro sentido da palavra "asilo")
para os soldados que estavam lutando uma guerra sangrenta e muito difícil
contra o desafiador vizinho nosso que era o Paraguai, e que poderiam voltar
para o Brasil doentes ou incapacitados, tanto para o serviço militar quanto para
atividades da vida civil.
A idéia da criação do Asilo dos Inválidos da Pátria encontra vários similares
na Europa do século XIX, dentre os quais o mais famoso do mundo todo era o
"Hôtel des Invalides" (Palácio dos Inválidos) de Paris. Luís XIV mandara
edificar esse monumental abrigo para soldados desde o século XVII, mas suas
obras haviam sido concluídas pomposamente apenas no século XIX, um pouco
antes do empreendimento brasileiro.
Havia outros exemplos, como o Chelsea Hospital, em Londres; o
Invalidenhaus, em Berlim; as Soldier's Homes, nos Estados Unidos da América
do Norte em várias de suas unidades federadas. A Espanha mantinha o
conhecido Cuartel de Invalidos, em Madri, junto à igreja de Atocha. Na Itália
existia o Ricovero dei Veterani, localizado em Milão, enquanto que na Turquia
havia o Malja El-Kuçah, em Constantinopla.
A Áustria já organizara o Kund Iz Invalidenhaus, na cidade de Thyrnan que hoje
fica na Hungria. A Grécia tinha sua organização com o nome de
"Tephonomeisda" na cidade de Atenas. Muito mais perto do Brasil, o Uruguay
contava com o Asilo de Invalidos na cidade de Três Cruces e a Argentina com
o Asilo de los Invalidos, na própria capital Buenos Aires.
Muito mais próximo à cultura brasileira havia também o exemplo dado pelo
reino de Portugal, que durante o governo de Dom José I (entre 1750 e 1777)
fundara o Asilo dos Inválidos Militares, também conhecido como Hospital de
Runa, organizado e inaugurado pela princesa Dona Maria Francisca Benedicta.
Trata-se de um edifício em um só andar, mas bastante imponente, que havia
sido uma quinta e fora adaptado para os fins acima. Só a título de curiosidade,
o Asilo famoso tinha 99 metros de frente, por 61 metros de fundo e era
acabado em mármore.
O nosso Asilo dos Inválidos da Pátria, entretanto, era composto de edifícios
mais simples do que aqueles que Luís XIV mandara construir para seus
soldados, mas talvez correspondessem mais aos bons sentimentos daqueles
que haviam patrocinado sua edificação. "O luxo foi inteiramente banido dos
edifícios em que os bravos abrigam-se, pois, o luxo não é decência", segundo
Honorato.
Analisemos, porém, alguns pontos desse precioso documento para nele
buscarmos indicativos do modo de ver a pessoa deficiente e das atividades
dominantes, que muitas vezes transparecem no linguajar inflamado e colorido
do autor, ou no conteúdo dos documentos e dados transcritos na mesma obra.
A idéia da criação do Asilo não foi novidade no Brasil. Já em 11 de março de
1840 Dom Pedro II havia criado na corte brasileira e nas Províncias do Pará,
Rio Grande do Sul e Mato Grosso, asilos para receberem soldados
incapacitados para o serviço militar, ou em vias de baixa da ativa, por doença,
por deficiência ou por idade. Em 30 de novembro de 1841, também por Decreto
Imperial, criara-se nas imediações da corte brasileira um asilo de inválidos que,
graças a uma Resolução da Assembléia Geral, recebera um pormenorizado
regulamento para seu funcionamento e para que um soldado fosse ao mesmo
admitido. Pelo que se pode deduzir, pouca gente era ali recolhida, pois por um
Decreto de 1843, Dom Pedro II mandou ali recolher também os marinheiros
deficientes.
Todavia, apesar dos esforços e dos investimentos para garantir no Brasil os
indícios de civilização no estilo europeu, e também por falta de experiência e
de conhecimento de causa, nenhuma dessas medidas havia sido implantada.
Eram empreendimentos puramente militares e de questionável qualidade. "Sem
disciplina, ordem e asseio, eram essas companhias mais centros de distúrbios
e focos de vícios do que asilos protetores de mutilados da pátria", segundo
Honorato.
No dia 25 de fevereiro de 1865, quando o Brasil se empolgava numa
resposta efetiva a provocações e a incursões paraguaias e marchava para a
guerra, os filiados, diretores e membros mais proeminentes da Comissão da
Praça do Comércio do Rio de Janeiro reuniram-se no Palácio Imperial e,
ansiosos para colaborar de alguma forma com os esforços do governo e dos
homens que, deixando tudo, lutavam abertamente contra o inimigo, resolveram
defender a idéia de angariar fundos e tomar providências para criar um "asilo
para os que se invalidassem pela pátria"..."e em sessão solene desse mesmo
dia 25 de fevereiro, foi aclamado seu presidente nato o nosso Augusto
Monarca o Senhor Dom Pedro II".
O imperador deve ter apreciado muito a idéia, que talvez tenha até brotado
de seu espírito estudioso e interessado ou de algum colaborador recém-
chegado do Velho Mundo e conhecedor das experiências ali mantidas. O fato é
que louvou os planos todos e nomeou um delegado seu para a missão, não se
omitindo, porém, de seguir pessoalmente as providências necessárias.
"Escolheu o lugar que melhor lhe pareceu para que os inválidos tivessem
liberdade sem obstáculos da massa popular e gozassem de melhor clima,
mandou fundar os edifícios e ativou aos trabalhadores, a fim de que não
houvesse retardamento, animando-os com sua presença quase diariamente".
O Asilo foi construído numa pequena e muito aprazível ilhota conhecida
como a ilha do Bom Jesus, em plena Baía da Guanabara. E Dom Pedro II,
numa festa engalanada e completamente dedicada aos heróis mutilados ou
paralisados na guerra contra o Paraguai, inaugurou o Asilo no dia 29 de julho
de 1868, aniversário de nascimento de sua filha e herdeira do trono brasileiro, a
Princesa Isabel.
Conta-nos Honorato que "às 9,30 horas era recebido Sua Majestade o
Imperador ao som do Hino Nacional, que de todas as partes se ouvia, repiques
de sinos e salvas". Com ele estavam a Imperatriz Da.Thereza Christina, a
Princesa Isabel e o Conde d'Eu; também presentes estavam todos os seus
ministros de estado, o corpo diplomático em peso, o corpo consular, as
autoridades eclesiásticas e também os oficiais de navios de guerra americanos,
ingleses, franceses e espanhóis que com a sua presença demonstravam apoio
formal à causa brasileira; e, como não podia deixar de ser, havia muita gente
representativa do comércio, da indústria, das corporações e muito povo.
A chegada do Corpo dos Inválidos, como era conhecido o grupo de oficiais e
soldados mutilados, parece que foi muito comovente ao Imperador que tanto
havia acarinhado aquele projeto e que tanto apreciava o sacrifício feito pela
Pátria Brasileira. E deve ter sido comovente também à família imperial; e
certamente muita gente vibrou com o foguetório, com o repicar dos sinos,
enfim, com a "pompa e circunstância" toda que fora armada na ilha do Bom
Jesus. O próprio Imperador, em seu traje de gala, "com sua Imperial família e
sua corte pôs-se no lugar do desembarque a fim de receber os infelizes que
eram objeto da solenidade". Bandeiras tremulavam por todas as partes, arcos
triunfais estavam montados desde o cais até a capela onde seria cantado um
solene "Te Deum" e todos estavam colocados em alas para a passagem
dos"mutilados de guerra", sob salvas de palmas e vivas misturados a marchas
militares, na manhã ensolarada da baía da Guanabara.
Pela narrativa de Honorato, os heróis assim recebidos, porém, "eram
infelizes" e à Pátria restava amenizar seus dias para viverem em paz. Todos
eles estavam voltando da frente de batalha contra os paraguaios e recebiam -
pelo menos naquele dia - o carinho de seu Imperador e de toda a multidão
presente. "... Aqueles homens foram os que inutilizaram-se pela Pátria, foram
os bravos que regaram os campos de batalha com o sangue de suas veias,
foram os que viram para sempre a estrela fagueira, que lhes acenava para o
futuro, desaparecer"...
O Corpo dos Inválidos era composto de oficiais, cadetes e soldados, quase
todos mutilados ou sem maiores possibilidades de atuar no serviço militar ativo.
E eram todos pobres - segundo relato da época - e não tinham qualquer
chance de receber da sociedade brasileira do final do século XIX muita coisa, a
não ser talvez compaixão, como podemos notar nas entrelinhas de alguns
documentos transcritos no livro de Honorato que aqui estamos analisando.
O Imperador brasileiro, ao notar a finalização das manobras de atracação do
barco que trazia o Corpo dos Inválidos, quebrou o protocolo e dirigiu-se à
prancha de desembarque. "Os raios do sol, a fadiga do cansaço, a
aglomeração do povo, a demora do desembarque não o incomodaram; com o
semblante risonho, a todos os que desembarcavam dava a mão, ajudava-os a
subir a escada de desembarque e recomendava aos demais que facilitassem-
lhes a passagem, ajudando-os em seu caminho; e a Imperatriz parecia
atravessada por tantas setas quantos eram os mutilados que passavam"...
Esse corpo de soldados prejudicados por ferimentos graves, por amputações
ou por doenças sérias, durante a guerra contra o Paraguai, havia sido
provisoriamente instalado na Ponta da Armação, da Marinha Brasileira, e no
dia da inauguração do Asilo correspondiam a "29 oficiais, 67 sargentos, 6
cornetas, 1 coronheiro, 7 músicos, 239 cabos e semelhantes, 1.010 soldados e
1 tambor". E, no mesmo lote de doentes e deficientes do exército brasileiro,
"havia também 42 prisioneiros paraguaios nas mesmas condições físicas".
Num comentário empolgado Honorato analisa com ênfase o sentimento
brasileiro naqueles exatos momentos: "Quando pensaram nossos
antepassados que o Brasil possuiria um estabelecimento tão importante, que
transmitirá às gerações vindouras a idéia do verdadeiro reconhecimento aos
que por ela sacrificaram-se? Pois bem, o Brasil já não deve estar tão atrás da
civilização; o Brasil, rico em tudo, será também nobre de sentimentos. Os
inválidos são pobres, é verdade; porém, são nobres; eles deram em favor da
pátria tudo quanto tinham, a vida, a saúde, tudo eles expuseram; e por atos de
tanta generosidade são credores de tudo quanto em seu favor se possa fazer".
Mas vale a pena conhecer um pouco do cenário da festa toda. O Asilo dos
Inválidos da Pátria estava localizado na ilha do Bom Jesus, e a descrição de
Honorato é esta: " ... desde logo principia a ver os edifícios que constituem a
encantadora vista do Asilo dos Inválidos; vê uns à beira da praia entre dois
elevados morros, cercados todos da bela verdura que orna esta aprazível ilha,
e com suas imponentes perspectivas atraindo a atenção de quem para aí se
dirige".
Na realidade, a "aprazível vista" - irreconhecível no Rio de Janeiro do século
XX - referia-se a dois edifícios, um em cada lado do ancoradouro; o da direita
continha em seu andar térreo as oficinas destinadas às atividades dos asilados.
Veja-se, portanto, que já na fase de planejamento havia sido considerado,
como em vários projetos similares europeus, o fator ocupação e, quem sabe, a
aquisição de conhecimentos profissionais suficientes para o individuo poder
deixar o Asilo, se quisesse integrar-se na sua própria comunidade, como era,
aliás, permitido pelo Regulamento.
O andar superior do primeiro prédio era destinado apenas a uma espécie de
museu militar, O outro edifício - o da esquerda do cais - era também de dois
andares e servia para enfermaria e acomodação dos mais doentes no andar
superior, enquanto que no inferior residiam as irmãs de caridade que eram as
responsáveis pelos serviços de enfermagem da entidade.
Dos edifícios localizados nas elevações, um servia para cozinha e como
refeitório, pois só no dia da inauguração o Corpo dos Inválidos contava com
aproximadamente 1.500 homens. O pavimento superior servia para recreação
e lazer dos asilados.
Havia na ilha também um antigo convento franciscano que o Asilo utilizava
como escola primária para os asilados, sob a responsabilidade do Capelão.
Mais para trás e para o interior da ilha, seguindo paralelo ao antigo convento,
havia outro prédio para abrigo de outras companhias de "inválidos". E,
separado de todos, havia também o local onde se abrigavam os prisioneiros
paraguaios.
Terreno havia bastante na ilha para hortas e para diversos tipos de
plantação mais extensa, nas quais os soldados ali recolhidos eram de certa
forma "obrigados" a atuar, de acordo com sua capacidade física. O próprio
Regulamento do Asilo diz: "Compete ao Comandante do Asilo: ..6º Obrigar os
inválidos a que trabalhem na horta, nas oficinas, conforme suas aptidões e
forças físicas". Cremos não ser muito de espantar essa autoridade para obrigar
os soldados a fazer isto ou aquilo, uma vez que o Artigo 8º das Instruções para
o Asilo diz muito claramente: "O Asilo fica sujeito ao regime e disciplina militar".
Havia, pelo Regulamento já indicado, obrigatoriedade de participação e de
colaboração também nos aspectos financeiros. Na verdade, cada soldado ou
oficial ali recolhido por invalidez ou doença deveria contribuir para as despesas
do estabelecimento com as pensões que recebiam do Tesouro Nacional; os
que não recebiam pensões, por serem idosos, por exemplo, deviam contribuir
com a metade do soldo de sua reforma.
No entanto, cumpre destacar que não era vedado ao internado trabalhar no
próprio Asilo e ganhar algum dinheiro extra. Pelo Artigo 19, por exemplo, fica
bem claro que tanto os oficiais quanto os praças considerados como inválidos
poderiam exercer no Asilo os empregos que seriam compatíveis com suas
forças físicas - e eram remunerados pela atividade .
E havia mais - alguns dos que eram casados poderiam viver com suas
mulheres e filhos, em quartos próprios, sendo até possível às mulheres
trabalhar no próprio Asilo com as irmãs de caridade.
Quanto aos produtos, tanto de horta quanto de oficinas, o Regulamento
estabelecia que eram todos destinados ao proveito do estabelecimento, no que
se referia aos da horta. Quanto aos da oficina, dois terços destinavam-se aos
indivíduos que os haviam produzido e uma terça parte era creditada em favor
do Asilo.
Do esmerado sermão proferido na cerimônia religiosa de 29 de julho de 1868
pelo Cônego Joaquim José da Fonseca Lima, com a presença de Dom Pedro
II, de tantas autoridades e dos beneficiários do novo Asilo, encontramos
palavras que representam vislumbres de total compreensão daquilo que é
integração social, idéias que já brotavam naquelas épocas em ambientes mais
cultos e seletos - há mais de um século atrás: "O inválido da pátria que aqui
vier descansar à sombra de seus louros, terá ainda o honroso direito de tomar
parte na vida ativa da sociedade: o seu trabalho continuará a enobrecer sua
existência"...
José Joaquim de Lima e Silva, Presidente da Comissão Central da Praça do
Comércio do Rio de Janeiro, em seu relatório datado de 31 de agosto de 1869,
um ano após a inauguração do Asilo, afirma textualmente: "É hoje na velha
Europa questão duvidosa a eficácia dos asilos para os inválidos, embora ali se
veja obras soberbas para esse fim, como o dos Campos Elíseos em Paris e do
Greenwich em Inglaterra; sustentando muitos a preferência de se deixar o
inválido livre na escolha de sua moradia e trabalho, recebendo do estado a
pensão e socorro que as leis criaram ou criarem".
E continua o interessante relatório: "Que o inválido deve ser livre em
recolher-se ou não ao asilo é questão que nos parece liquida e jamais
pensamos que, criando o asilo, se faça dele uma morada forçada para o
inválido e principalmente quando atendendo para o caráter dos nossos homens
vemos que eles são essencialmente e em grande número, amigos da vida
social ou da família, e que assim preferirão a mais humilde choupana ao mais
deslumbrante palácio, contanto que ali encontrem o prazer da família que aqui
não podem ter. Essa liberdade de vida e esse amor da família não dispensa a
criação do asilo, que será sem dúvida procurado por muitos que nele acharam
os cômodos que não podem encontrar em outra parte e para
quem o sentimento ou o amor da família não e dominante"...
Mas, o sonho não durou muito tempo, não. Terminada a guerra contra os
paraguaios e os envolvimentos brasileiros em ações armadas, terminou
também a euforia e o projeto caiu no rápido esquecimento do governo e do
povo. Logo após a proclamação de nossa República, a situação na ilha do Bom
Jesus já estava péssima. No ano de 1899, ou seja, dez anos de República, um
jornalista resolveu tirar tudo a limpo e foi à ilha famosa. Era Ernesto Senna.
Seu relato, em cores muito vivas e realistas, deixa-nos a sensação de um
sonho desmoronado - talvez bem pior do que isso. Nem o Império soubera
manter o Asilo dos Inválidos da Pátria, nem a nova República por ele se
interessara. A burocracia ministerial acabara deformando o empreendimento.
Algumas frases do jornalista serão suficientes para que compreendamos a
fraqueza da organização e a debilidade do interesse. A sorte dos mutilados de
guerra passara a ser problema deles mesmos.
... "Repetidas queixas chegaram à redação do Jornal do Comércio sobre o
estado de abandono em que se achava o Asilo. Tantas foram elas que há
tempos enviamos à ilha do Bom Jesus um nosso representante para "de visu"
conhecer a realidade das queixas. Efetivamente eram justas e mereciam ser de
pronto sanadas. Repugnava-nos, então, dar publicidade minuciosa do estado
do Asilo, contando com as providências que se esperavam fossem tomadas
pelo Quartel Mestre General, Senhor General Santiago, que havia visitado o
estabelecimento e que mostrava-se interessado em melhorar a situação dos
inválidos ali recolhidos. Como, porém, fossem improfícuas as medidas
tomadas, a julgar pelo estado cada vez mais deplorável em que se acham
aqueles servidores da pátria, resolvemos hoje publicar as notas que colhemos
em uma recente visita, depois de uns ligeiros reparos que foram feitos no
edifício."
..."dos 46 prédios que existiam em 1869, todos pertencentes ao Estado,
apenas existe uma meia dúzia em ruínas, graças ao abandono e à indiferença.
Os inválidos construíram à sua custa, por toda a ilha, 36 casinhas (ranchos),
onde habitam com suas famílias, já por falta de acomodações no Asilo, já para
evitar a morada em velhos pardieiros, que ameaçam ruínas" ...
... "Logo ao desembarcar na ilha notamos o abandono em que está a
instituição acobertada com o pomposo título de Asilo dos Inválidos da Pátria. O
capim cresce com abundância e o local que se prestava para um belo e
formoso jardim apenas ostenta vistosas palmeiras enfileiradas em frente do
edifício enegrecido pela ação do tempo, pela falta de pinturas e de consertos
externos e internos"...
... "Mas quem transpuser a entrada principal de uma ou outra ala do edifício,
sente certa opressão ao reparar nas escadas velhas, imundas, deixando à
mostra os montantes laterais do estuque sem reboco e os ferros azebrados
pela umidade que se escoa pelas paredes e onde existem faltas de táboas.
Galqando a escada da ala direita, no segundo pavimento, o visitante sente as
exalações das imundas latrinas sem água, sem portas, sem tampas e sem a
menor atenção aos preceitos de higiene. É nesta ala do edifício que se
acham os quartos reservados aos oficiais" ...
... "Velhas camas de ferro enferrujado, com as molas partidas e sem táboas
e sobre elas colchões imundos e travesseiros que reclamam de muito um lugar
na ilha da Sapucaia"...
... "O estabelecimento não fornece ao oficial nem um acessório de cama ou
de quarto, de maneira que para lavar o próprio rosto é preciso que comprem
bacia" ...
... "Latrinas foram colocadas nos alojamentos unicamente por luxo, pois que
não existe encanamento para o serviço das mesmas. Não tem o Asilo mesas
dignas de figurarem no refeitório, porque as duas que vimos, apesar de serem
de mármore, precisam de guarnições e de pronta pintura"...
... "As praças não têm um banheiro e o fogão para as que tem família é
comum, pois, está no pavimento térreo do alojamento dos casados e consta de
um grosso paredão de tijolos com 36 bocas, e isto mesmo em péssimas
condições" ...
O artigo de Ernesto Senna entra em pormenores suficientemente claros
quanto ao estado de coisas, apenas 30 anos após a festiva inauguração do
Asilo dos Inválidos da Pátria, orgulho de um Brasil progressista.
No entanto, o que escapou ao arguto jornalista é que o Ministério da Guerra
já iniciara providências muito sérias para a devida recuperação do Asilo. Tanto
é verdade que o Governo Republicano com ele se preocupava, que os heróis
mutilados ou gravemente enfermos vindos da Guerra de Canudos para lá
foram encaminhados no ano de 1897/98.
Reformas muito sérias foram empreendidas e alguns dos edifícios em piores
condições foram demolidos e substituídos.
Se o leitor desejar conhecer algumas das instalações do Asilo dos Inválidos
da Pátria, precisará saber o seguinte:
1. A ilha do Bom Jesus não existe mais. Ela foi inserida nos imensos
trabalhos de aterro da ilha da Cidade Universitária, que eliminou algumas ilhas
e as uniu num bloco só. No entanto, as pontas e contornos das ilhas do Fundão
e do Bom Jesus permaneceram inalterados, embora ligados à ilha principal da
Cidade Universitária. A antiga ilha do Bom Jesus fica ao sul, após os prédios
relacionados à agronomia. Sua área original, pertencente ao Exército
Brasileiro, é ocupada pela Cia. de Comando da Primeira Região Militar, além
de residências de militares e funcionários civis do Ministério do Exército.
2. Existem alguns prédios originalmente inaugurados por Dom Pedro II,
ocupados pelo Comando da Companhia ali sediada. A igreja também está
intacta, no alto de uma elevação. Lá dentro estão enterrados os restos mortais
do Marechal Osório.
3. Há alguns descendentes dos "inválidos" nela instalados no final do século
passado, e de vários outros soldados que ficaram mutilados em operações
militares mais recentes.
E se o leitor chegar até lá, verá que se trata de uma "ilha" de contornos
agradáveis, sem alterações em sua forma original. E terá a surpresa de
encontrar quase que exatamente o que é descrito por Honorato em 1869
quando diz: "Collocado em frente ao desembarque o visitante vê dous edifícios,
não tão elegantes, quanto forão aquelles que o faustoso Luiz XIV fez edificar
para os seos soldados, mas tão singelos quanto podem ser os bons
sentimentos daqueles que os fizeram fundar".
De fato, os dois edifícios são vistosos, ao estilo da época, e muito sólidos.
Estão atualmente muito bem conservados, pintados e limpos, após restauração
bastante significativa.
... "Sobe-se por uma espaçosa escada com os corrimãos e balaústrês
envernisados, no patamar da qual, fronteira à porta, vê-se gravada em uma
pedra mármore a seguinte legenda: No reinado do Sr.D.Pedro II, sendo
ministro da guerra o conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá, erigio-se
este edifício em 1868. - Dahi partem duas escadas em sentido inverso à
primeira, uma para o lado direito e outra para o esquerdo". E é exatamente isso
que o visitante interessado lá irá encontrar.
... "Passemos agora à igreja. A igreja do Bom Jesus, fundada em 1705,
como diremos, no alto deste môrro não podia ser edificada em melhor posição.
Elevada a uma altura proporcional, com uma escadaria de sete degráos de
pedra, tem na frente tres arcadas, sobre as quaes vê-se outras tantas janellas
que ficão no côro da mesma igreja, e uma porta que dá entrada para o
interior"...
A linda igreja do Bom Jesus lá está, no alto de um pequeno morro, olhando a
baía da Guanabara há mais de dois séculos.
No entanto, o visitante deverá ficar atento para o fato de que o Asilo dos
Inválidos da Pátria não funciona mais. Segundo informações obtidas no próprio
local, foi desativado no ano de 1976, 107 anos, portanto, após sua festiva
inauguração por Dom Pedro II.
CAPÍTULO SEXTO
O SÉCULO XX E OS CAMINHOS DA REABILITAÇÃO NO MUNDO
Como em quase todas as áreas de atendimento à população mais pobre,
houve um incremento substancial de assistência a pessoas portadoras de
deficiências no mundo todo, durante todos os anos até agora vividos do século
XX. Esse incremento não ocorreu apenas em razão de uma filosofia social
mais voltada para a valorização do homem em alguns países mais
proeminentes, mas também devido ao engajamento de muitos setores da
sociedade no bem-estar comum - e por que não o dizer, em conseqüência dos
evidentes progressos das ciências e suas aplicações práticas, em todos os
campos.
Mesmo nos países sub-desenvolvidos, muitas áreas receberam o impulso no
sentido da modernização e do avanço técnico. Além de se beneficiar dessa
tendência geral, a medicina progrediu muito também em todos os seus setores
especializados, tais como na cirurgia ortopédica, na ortopedia e na
traumatologia - áreas que mais nos tocam neste estudo - devido a muitos
fatores, mas em especial devido a duas guerras mundiais e várias outras de
âmbitos mais restritos que assolaram o mundo.
Os problemas múltiplos de grandes contingentes populacionais
desabrigados ou simplesmente desalojados pelas ações destruidoras da
guerra, as imensas dificuldades encontradas pelos refugiados, pelos doentes e
pelos mutilados nos conflitos, a orfandade e o abandono quase que
generalizados, levaram a grandes programas assistenciais de caráter
internacional. Além disso, o contato direto com elevados contingentes de
população que apresentavam problemas especiais teve como conseqüência
melhores e mais precisas providências de ordem prática para o encontro de
soluções que incluíam a completa reintegração dos mesmos à vida normal,
numa sociedade produtiva devidamente reconstruída. Esforços especiais foram
criados para lutar pela normalização da vida desses grupos populacionais
vítimas das atividades de guerra.
Antes dos conflitos armados, porém, no que concerne às medidas
relacionadas diretamente aos portadores de deficiências de países mais
evoluídos, a atenção para com as crianças portadoras de deficiências físicas foi
se concentrando efetivamente em seu melhor cuidado e em sua educação
especial, desde a primeira década do século. Princípios já defendidos há
séculos na Europa, desde a época da Renascença, para o atendimento de
órfãos e de crianças carentes e deficientes, foram efetivamente melhor
definidos e postos em prática no início deste século.
Além da simples proteção, da assistência para prevenir o abandono e a
criminalidade, e da educação, algum treinamento profissionalizante, através do
qual a criança ao chegar à idade adulta poderia obter meios para sobreviver,
começou a ser de fato implantado em diversas entidades.
O humanismo filosófico, em constante ascensão, sem dúvida que ajudou na
ênfase a ser dada a esse grupo marginalizado, e ao seguir os seus princípios
fundamentais, a medicina mais especializada encontrou o caminho ideal para
um completo engajamento. E com ela vieram outras ciências e outros grupos
de profissionais ou de voluntários interessados e muito vinculados a uma
população de classe média politizada e mais consciente da necessidade de
beneficiar a todos os que precisavam de ajuda.
A crescente migração de segmentos populacionais deslocados ou tangidos
pelo sofrimento das guerras e suas conseqüências amedrontadoras,
procurando resolver os seus problemas básicos de vida, e a troca mais fácil de
experiências devido aos meios de comunicação mais penetrantes e
convincentes, levou a todos os quadrantes do mundo novas tecnologias e
novos sistemas para análise e tratamento dos problemas sociais.
Em várias das nações mais civilizadas do mundo ocorreram nesses períodos
de pós-guerra melhorias consideráveis nos sistemas de bem-estar social,
chegando ao seguro social, à assistência pública, à promoção social e também,
de um modo todo especial, às atividades totalmente voltadas para a saúde
publica.
Os avanços cada vez mais acelerados da medicina começaram a surtir
efeitos surpreendentes, aumentando a expectativa de vida, reduzindo o número
de mortes por acidentes ou por doenças, diminuindo a taxa de mortalidade e
morbidade infantil e quase extinguindo as epidemias avassaladoras. Esses
resultados não teriam sido viabilizados se, por outro lado, os serviços públicos,
mais conscientes de seu papel na garantia do bem-estar de todos, não
tivessem atuado com eficiência na implantação de melhores sistemas de
tratamento de água, de fiscalização de alimentos, de tratamento de esgotos, de
vacinação contra males contagiosos e muitos mais. O mundo comercial e
industrial muito colaborou também para definições mais precisas daquilo que
era preocupação de todos, ou seja, a garantia de certa dose de qualidade de
vida, a fim de dar condições essenciais para o homem progredir.
Profissões voltadas para o atendimento aos problemas de pessoas em
dificuldades foram surgindo e se fortificando, algumas delas como verdadeiro
desdobramento da medicina, enquanto que outras, especialmente nos campos
da educação, em razão da inegável valorização do ser humano. Mas a
medicina sem dúvida que antecedeu no atendimento ao portador de problemas
incapacitantes ou de lesões conseqüentes a doenças graves, chegando ao
ponto de assegurar a vida aos casos antigamente considerados como fatais, e
aumentando a expectativa de vida ao homem idoso. O Dr.Bernard Baruch, com
carradas de razão já afirmara certa vez que "a medicina adicionou alguns anos
à vida do homem, e agora depende da educação adicionar vida a esses
anos"...
Nesse contexto é interessante ressaltar o delineamento de profissões como
a do serviço social (que muita gente até hoje chama de "assistência social"),
que desde seus primórdios tem procurado levar para uma atuação de cunho
técnico velhos e superados conceitos muito diluídos e por vezes até
desacreditados de toda a área correspondente ao bem-estar social - situação
que mesmo ao final do século XX persiste em muitos países do mundo em
desenvolvimento.
Vejamos alguns dos pontos mais relevantes dessa evolução toda nos
programas de assistência às pessoas deficientes, dentro do século XX.
- *O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século*
Entre os anos de 1902 e 1912, na Europa, mais de 20 instituições
destinadas ao exclusivo atendimento de pessoas que apresentavam problemas
de deficiências físicas já existiam, levantando fundos e fazendo campanhas
para garantir sua manutenção e para incrementar sua causa, em acréscimo às
campanhas e aos levantamentos de dinheiro que já vinham ocorrendo para
causas anteriormente absorvidas pela sociedade, como as de ajuda aos
pobres, de proteção aos velhos, de assistência à criança desamparada, entre
muitas.
De outra parte, a ajuda a pessoas deficientes - não só as provenientes das
fileiras militares, como das atividades civis - começou a se firmar em bases
novas, mais modernas. Esse novo tipo de ênfase no atendimento, que brotara
nos Estados Unidos, causou na Europa um movimento bastante dinâmico e
coerente, incorporando-se a vários empreendimentos vindos do século XIX, ou
mesmo dos primeiros anos do século XX. Por exemplo, em 1904 ocorrera já a
organização da Primeira Conferência sobre Crianças Inválidas, em Londres. No
ano de 1909, seguindo a mesma tendência de dar cada vez maior atenção aos
portadores de deficiências, um primeiro censo de pessoas deficientes foi
levado a efeito na Alemanha, por iniciativa de Bielaski, que tentava com isso
aquilatar a extensão do problema. No mesmo ano, nos Estados Unidos, havia
também sido organizada a Primeira Conferência da Casa Branca sobre os
Cuidados de Crianças Deficientes, que havia aprovado uma resolução
incentivando programas de preparo das crianças institucionalizadas para sua
futura integração na sociedade (Apud Agüero).
- *EUA: um primeiro congresso mundial de deficientes auditivos*
No ano de 1904, na cidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, foi
organizado um primeiro congresso destinado a estudar todos os problemas das
pessoas surdas - era o Congresso Mundial dos Surdos. Nesse conclave, o
método oral de comunicação foi combatido pelos seguidores do método de
comunicação por sinais. No entanto, o chamado "oralismo" foi seguido por
escolas particulares e por semi-internatos, combinando sua técnica com a dos
sinais. Foi exatamente por essa época que Helen Keller recebia suas primeiras
lições de linguagem falada, por meio de professores da Escola de Horace
Mann.
- *A gradativa implantação da reabilitação*
O desenvolvimento de atividades coordenadas que chegariam a ser
genericamente reconhecidas como "reabilitação" (e não apenas um nome de
centro, como o de Cleveland à época de sua fundação...), aconteceu
lentamente e sua implantação foi um tanto indecisa, quase que conseqüente à
impotência dos médicos Face à multiplicidade de problemas que afetavam
diretamente as pessoas mutiladas ou portadoras de outros tipos de
deficiências. E isso ocorreu logo após a Primeira Guerra Mundial. Já fazendo
parte de um programa de assistência ampla a pessoas deficientes e que logo
se transformaria num esquema de reabilitação, o primeiro Estado norte-
americano a fazer uma provisão específica para tal fim foi o Estado de
Minesota que em 1897 já havia feito uma dotação para assistência a "crianças
defeituosas" e com necessidade de tratamento médico.
Mas as primeiras organizações norte-americanas a estudar o problema geral
das pessoas com deficiências e desse ponto partir para programas destinados
à melhoria de sua condição física e social foram a Fundação Russel Sage e o
Bureau do Deficiente da Sociedade Organização de Caridade, da cidade de
New York, no ano de 1908.
- *As tentativas iniciais para a solução do problema de trabalho*
Em 1907 surgia na cidade de Boston a Goodwill Industries, até hoje
mundialmente famosa. Não se dedicava ao problema geral das pessoas
deficientes nem se preocupava com problemas de ordem médica ou social que
elas pudessem apresentar. Dedicava-se intencionalmente aos aspectos de
envolvimento da pessoa deficiente em atividades de trabalho remunerado -
mesmo que separado, isolado das outras empresas, institucionalizado ou
"protegido", como viria a ser conhecido. Essa organização foi uma iniciativa da
Igreja Metodista, tornando-se posteriormente dela desvinculada e sem qualquer
cor religiosa. O plano original era dar às pessoas deficientes sem emprego ou
sem qualquer rendimento, uma oportunidade de ganhar a vida pelo
recondicionamento de roupas, sapatos, móveis descartados como velhos e
outros artigos, cuidando a Goodwill Industries de vender todos esses artigos
por preços muito módicos à população mais pobre.
Focalizando o ângulo de treinamento para o trabalho melhor definido e
qualificado, surgiu no ano de 1906, no Estado de Pennsylvania, a Widener
Memorial Training School for Crippled Children, uma das mais importantes do
gênero durante muitos anos.
- *Implantação de serviços de naturezas diversas*
Foi também no ano de 1906 que, na pequena cidade de Kallithéa, na Grécia,
surgiu uma primeira escola para cegos, baseada na experiência localmente
acumulada por pessoas interessadas no problema. Essa velha escola é hoje
conhecida como Centro de Educação e Reabilitação.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, criava-se a Primeira Comissão Estadual
para o Cego, no Estado de Masachussets, destinada a implementar programas
pela primeira vez financiados pelo governo federal.
No campo da assistência a deficientes mentais, os Estados Unidos, a par
com muitos esforços do continente europeu, haviam também dado passos
importantes ao finalizar o século XIX e iniciar o século XX, com as iniciativas de
Horace Mann e Samuel Howe, criando organizações de atendimento a
deficientes mentais. Programas equivalentes para surdos e também para cegos
espalharam-se pelo país todo, e pelo ano de 1914 classes especiais com
pessoal especificamente preparado existiam nas escolas públicas de Baltimore,
Detroit, New York e também em Philadelphia.
Como conseqüência da guerra que eclodira no continente europeu, no ano
de 1915, em Londres, o Saint Dunstan's Hostel for the War Blinded foi
organizado e iniciou seus valiosos serviços, atendendo os soldados cegos
provenientes dos campos de batalha. Soldados de Colônias de toda a
Comunidade Britânica também eram atendidos.
- *Os esforços de pós-guerra*
Após o ano de 1918, apesar de todas as dificuldades econômicas e sociais
causadas pela guerra que assolara o mundo, com o volume de pessoas
mutiladas, acidentadas, deslocadas ou refugiadas bem à mostra, os países
mais evoluídos aumentaram substancialmente seus esforços para a sua ajuda,
não só na área militar mas também na civil.
Impulso dos mais significativos foi dado à reabilitação de pessoas deficientes
na Inglaterra, assim que terminou a Primeira Guerra Mundial, pois muitos
esforços foram surgindo para a elas dar todo o atendimento requerido, bem
melhor e mais completo do que por meio das tentativas anteriormente
adotadas. Devido ao quase que contínuo envolvimento da Inglaterra em
guerras nas mais diversas partes do mundo, os problemas das deficiências
eram tão generalizadamente conhecidos que muitos esforços isolados
existiam, mas que requeriam uma certa coordenação. Criou-se então a
Comissão Central da Grã-Bretanha para o Cuidado do Deficiente.
Também devido aos seus muitos envolvimentos em guerras, surgiu nos
Estados Unidos, na cidade de New York, no ano de 1917, uma entidade que
desempenharia no futuro da reabilitação um dos papéis mais marcantes: a
chamada Red Cross Institute for the Crippled and Disabled Men, mais tarde
redenominada de Institute for the Crippled and Disabled, já atendendo a civis.
Hoje é conhecida essa organização como
ICD Rehabilitation and Research Center.
E como não poderia deixar de ser, de muita influência para definição dos
programas de reabilitação foram os esquemas montados para dar assistência
completa a soldados que voltavam mutilados de guerras em diversos países do
mundo. Exemplo interessante disso foi o que sucedeu na França, onde, por lei
assinada em 2/1/1918, todo militar ferido na guerra ou portador de uma
deficiência devido às suas atividades de soldado e que se tornasse
incapacitado para o trabalho civil ou militar, tinha o direito de inscrever-se
gratuitamente numa escola profissionalizante, tendo em vista a necessidade de
sua readaptação para o trabalho e sua colocação no mercado competitivo. A
prioridade para obtenção de empregos na área civil, de cuidados médicos, de
aparelhos ortopédicos e de cadeiras de rodas gratuitas, fazia e faz até hoje
parte desse direito. Uma lei de 30 de janeiro de 1923 deu aos mutilados de
guerra e também às conhecidas como viúvas de guerra, direito de preferência
para certas funções no Estado, funções essas que, se fossem ocupadas, não
poderiam ser extintas pelo Governo.
- *Surge a "Easter Seal Society"*
Enquanto essas necessidades começavam a ser cobertas em vários países,
era criada nos Estados Unidos uma associação já de caráter nacional que,
graças à cooperação de diversas outras organizações, passaria a ser de
importância fundamental no desenvolvimento de uma reabilitação muito mais
técnica, precisa e objetiva, ou seja, a Associação Nacional para Crianças e
Adultos Deficientes - muito mais conhecida como a "Easter Seal Society". Essa
entidade de caráter nacional, que foi criada em 1919, existe até os dias de hoje
e tem um relevante papel na manutenção de programas os mais variados.
- *O Código de Direito Canônico e os bloqueios a homens deficientes*
O Código de Direito Canônico continuou mantendo seus bloqueios a
candidatos ao sacerdócio católico que apresentassem defeitos. O Capítulo
Segundo do Código versa sobre as chamadas Irregularidades em Particular e
analisa em pormenores o assunto. Seu Artigo Primeiro fala sobre as
Irregularidades por Defeito e indica que existem oito espécies de defeito que
podem tornar um candidato impedido de chegar até o sacerdócio:
1º - Por defeito de espírito
2º - Por defeito de corpo
3º - Por defeito dos pais
4º - Por defeito de idade
5º - Por defeito de liberdade
6º- Por defeito de sacramento
7 º - Por defeito de mansidão
8º - Por defeito de fama.
Vamos nos limitar, todavia, a uma pequena análise dos chamados "defeitos
corporais" e seu relacionamento à irregularidade ou impedimento canônico que
torne ilícita a recepção do sacramento da Ordem, de um modo direto, ou o
exercício das funções sacerdotais, de um modo indireto. Segundo a disciplina
da Igreja Católica, a irregularidade não é um castigo, mas um dos meios
encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do estado
sacerdotal e para a exclusão daqueles que não tem capacidade ou aptidão
para o mesmo. Enquanto a irregularidade é permanente, o impedimento é
transitório.
Dentro dos regulamentos e normas vigentes na Igreja, são considerados
como irregulares, além dos casos citados mais acima, os "corporalmente
defeituosos que por fraqueza não podem exercer as funções do altar com
segurança ou que por deformidade não o puderem fazer com dignidade. Quem
se torna defeituoso depois de legitimamente ordenado, só pode ser impedido
no exercício de suas funções se o defeito for
notável. Não se proíbem, porém, atos que, apesar dos defeitos, puderem ser
exercidos convenientemente" ("Compêndio de Moral Católica", de Jone-Fox).
Os mesmos autores enumeram com exemplos pormenorizados os defeitos
que tornam um candidato ao sacerdócio "irregular", da mesma forma que o faz
o Padre João Pedro Gury em sua memorável obra "Compêndio de Teologia
Moral", ao analisar o Código de Direito Canônico e jurisprudência encontrada.
Segundo eles, são "irregulares" aqueles que não têm um dedo polegar ou um
indicador, ou ambos; que usam uma perna mecânica ou que estão
impossibilitados de usar as mãos; aqueles que tremem tanto que poderiam
"derramar o preciosíssimo Sangue"; os cegos ou que tenham deficiência visual
tão grave que não conseguem ler o conteúdo do missal; os casos de surdez
que não consigam ouvir a voz do ajudante de um ato litúrgico; os que
gaguejam de tal maneira que provoquem riso e desprezo; os que são vítimas
de paralisias ou deformações que causem o andar típico de um "coxo", e que
não conseguem ficar no altar sem bengala ou muleta; os que estão
desfigurados por mutilações ou por outra causa (por agenesias de qualquer
natureza ou por defeitos causados por males degenerativos); os que têm
corcunda muito grande que provoque riso ou que os impeça de se colocar em
posição ereta.
As normas relacionadas a defeitos corporais entram em pormenores quanto
a problemas de visão. Assim, a falta da vista esquerda não caracteriza casos
de irregularidade, se o defeito for disfarçado por uma prótese ocular. O olho
esquerdo, considerado como o Olho do Canon, é necessário para o sacerdote
ler o Canon da Missa; se o sacerdote conseguir fazê-lo sem maiores
problemas, a irregularidade poderá ser dispensada. Quem se torna surdo
"depois da recepção das ordens", não fica proibido de celebrar os atos
litúrgicos.
Ainda para casos de ocorrência de uma deficiência após a ordenação as
normas são bastante condescendentes. Vejamos alguns casos:
- Quem estiver quase cego, segundo Jone-Fox, poderá obter do Papa
dispensa para celebrar a chamada missa "de Beata", ou a missa cotidiana dos
defuntos. Se um sacerdote ficar completamente cego, só poderá rezar a missa
com a assistência de outro sacerdote.
- O sacerdote que não consegue ficar de pé junto ao altar, ou que puder
assim permanecer apenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderá
celebrar missa privadamente e nunca em público. Isso também é verdadeiro
para o sacerdote que sofrer de hanseníase ou doença grave.
- Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorre também a irregularidade,
dependendo do bispo local ou das autoridades eclesiásticas constituídas a
permissão do exercício de suas funções sacerdotais, depois de curados ou de
terem o mal sob controle.
É evidente que existe nesses regulamentos da Igreja Católica grande
preocupação pela aparência física de seus ministros, mas muito mais do que
isso, o firme propósito de não levar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar
seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos.
Em diversas cerimônias litúrgicas da Igreja Católica é fundamental no
sacerdote poder ajoelhar-se e levantar-se diversas vezes, em atos de
adoração; é básico também que tenha a mão direita para distribuir a comunhão
ou para dar a bênção. (* Quando em meus dez ou doze anos fui "coroinha" de
um sacerdote que pessoalmente considero um mártir do câncer: Pe. Luiz Alves
de Siqueira. Lembro-me perfeitamente bem quando chegou de volta a paróquia
sem o braço esquerdo, amputado por um tumor maligno. Celebrava
missa, desenvolvia todos os atos requeridos - e fora disso tudo, ainda guiava
automóvel por algumas ruas do bairro. Colocado o braço artificial, continuou da
mesma forma atuante, usando o braço mecânico para segurar o cibório na
distribuição da comunhão a seus paroquianos...)
- *Reconhecimento das verdadeiras necessidades das pessoas deficientes*
Uma centena de leis que reconheciam os direitos e favoreciam às crianças
portadoras de deficiências surgiu em diversos países, e de um modo todo
especial nos Estados Unidos da América do Norte, durante os primeiros trinta
anos deste século. A maioria dessas leis referia-se a cuidados médicos e a
programas educacionais.
Graças a programas parecidos desenvolvidos nos Estados de New York e
de Ohio, e iniciados no ano de 1917 com a colaboração de comissões locais
com a ajuda dos governos estaduais, houve progressos bastante significativos
no cuidado à pessoa deficiente porque mostraram que a solução de seus
problemas não dependia apenas de providências na área médica nem de
esquemas educacionais mantidos em hospitais, asilos ou instituições de
diversas naturezas. Ficou muito claro que o que era necessário compreender
era que tanto crianças quanto adultos com deficiências necessitavam não só
dos cuidados que instituições especiais pudessem lhes prover, mas também de
atenção pessoal, de carinho, de relacionamento familiar e de um ambiente que
possibilitasse alguma participação na vida comunitária, como qualquer outra
pessoa.
- *A previdência social e os acidentes de trabalho*
As primeiras leis de compensação a trabalhadores que se acidentavam nas
atividades industriais aconteceram a partir do ano de 1911 nos Estados Unidos,
seguindo um exemplo de legislação que vinha sendo promulgada na Europa,
desde o final do século XIX. Na verdade essa legislação acabou significando
um passo à frente na fixação da responsabilidade que o governo deve assumir
face ao problema de deficientes provenientes da indústria.
Ao se findar a Primeira Guerra Mundial, a legislação de aposentadoria ou de
compensação financeira para os acidentados no trabalho civil foi sendo
introduzida com mais regularidade e foi se tornando cada vez mais comum no
mundo ocidental. Acabou por se transformar em um dos mais sérios fatores
que chegaram a levar muitas nações a aprovar extensos programas de volta
das pessoas aposentadas à vida de trabalho, o que de fato acabou se
definindo como programa de reabilitação profissional. E nesse movimento todo,
a experiência acumulada por centenas de empreendimentos de assistência
financeira, de abrigo ou de compensação por danos sofridos pelos soldados
nas fronteiras em litígio aberto ou nos conflitos armados, foi de alto significado.
Benefícios acarretados aos trabalhadores foram, de início, muito bem
recebidos, mas esses programas provaram logo não ser muito eficientes,
especialmente quando mantidos por companhias de seguro e outras
organizações privadas, e em muitos casos, mesmo pelo sistema oficial de
seguro social.
O atendimento às vezes não era nem completo nem adequado, ou
apresentava-se como de caráter paliativo e muito superficial, vendo-se as
pessoas forçadas a comparecer às atividades programadas para poder receber
os proventos a que tinham direito.
Esses programas iniciais limitavam-se aos acidentados no trabalho, como
hoje está ocorrendo com órgãos ligados ao nosso sistema nacional de
previdência social e vários de seus programas, ressaltando-se o programa de
reabilitação profissional mantido pelo Instituto Nacional da Previdência Social.
As pessoas que, já na década de vinte, eram vítimas de acidentes domésticos,
de trânsito e de outras naturezas, ou eram atingidas por alguma enfermidade
grave ou malformação congênita, não podiam ser atendidas em sua
reabilitação - como acontece na década de oitenta em nosso Brasil.
- *A reabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército*
O ano de 1918 foi aquele que viu aprovada a lei conhecida nos Estados
Unidos da América do Norte como Vocational Rehabilitation Act. Essa lei dava
condições de reabilitação para o trabalho a veteranos portadores de
deficiências, vindos quer das fileiras da Marinha, quer do Exército. Em 1920 o
chamado Fessenyon Civilian Vocational Rehabilitation Act autorizou o
atendimento de civis com deficiências físicas. Esta legislação procurou
enfatizar soluções de trabalho e descuidou-se excessivamente dos aspectos de
recuperação ou de restauração física, como parte do programa. No entanto, foi
uma grande colaboração aos programas de reabilitação, pois abriu uma grande
avenida para a compreensão da problemática global das pessoas deficientes e
reconhecimento da necessidade de se implantar programas mais abrangentes.
- *A retração dos anos trinta e as pessoas deficientes nos EUA*
A década de trinta constituiu-se num período dos mais obscuros para
pessoas deficientes, devido especialmente à retração econômica que varreu o
país norte-americano. Todos os progressos até então feitos para empregar
adequadamente as pessoas deficientes acabaram caindo a quase zero. A
enorme avalanche de desempregados que não tinham qualquer deficiência,
cujas necessidades de emprego pareciam à primeira vista mais urgentes do
que aquelas das pessoas deficientes que sempre haviam sido consideradas
como objeto de caridade e comiseração e não tanto como potencial humano
sério a ser considerado para o mercado de trabalho fez com que o valor de seu
trabalho fosse subestimado.
Apesar da depressão econômica, muito se aprendeu quanto ao atendimento
social das pessoas deficientes através de serviço social bem orientado. Mas a
herança deixada pelo colapso econômico norte-americano foi muito amarga, e
uma dessas heranças foi a criação das chamadas agências de bem-estar
social, nas quais havia atendimento individualizado, com aconselhamento para
o trabalho, orientação para treinamento profissionalizante, serviços globais de
saúde, assistência psicológica e por vezes psiquiátrica, conforme o caso.
- *A influência da Segunda Guerra Mundial na reabilitação*
Quando a Segunda Guerra Mundial foi deflagrada, o problema dos soldados
vítimas de deficiências causadas pela guerra atraiu novamente a atenção do
mundo. Mas a situação era bem diferente daquela deixada pela Primeira
Guerra Mundial, pois logo ao terminar o segundo conflito, já existiam serviços
de reabilitação tanto para civis como para militares. Para atender a esses
problemas de deficiências, funcionavam agências que já haviam trabalhado por
anos a fio com esse assunto. O que contribuiu grandemente para obter
melhores condições para o desenvolvimento de reabilitação mais completa,
nos EUA, foi a presença de Franklyn Delano Roosevelt, um paraplégico por
poliomielite, na Presidência do país, eleito em 1932. Ficou evidente que uma
pessoa deficiente poderia realizar perfeitamente bem até uma função de
natureza executiva de alto nível, sustentando sua própria vida através de um
emprego remunerado.
Durante a Guerra, graças à escassez de braços e à premência de
desenvolver os esforços de guerra, tanto as mulheres quanto os portadores de
deficiências foram aproveitados aos milhares nas indústrias, nas vagas
daqueles que haviam sido incorporados às forças armadas.
Um dos grandes resultados da atuação de profissionais que cuidavam dos
problemas de deficiências foi o avanço incontestável da Medicina Física e da
Terapia Ocupacional. Além disso, foi sendo reforçada a impressão que havia
de que a pessoa deficiente não precisa nem ser carga pública nem
dependente; que a pessoa deficiente pode ser útil, contribuinte à economia
geral de um país, participante na formação da riqueza nacional.
Dessa época de anos difíceis do pós-guerra é que foram se definindo
preocupações cada vez mais marcantes como o ajustamento psico-social das
pessoas portadoras de deficiências.
- *A criação de sociedades internacionais privadas*
Quase sempre serviços de assistência a grupos minoritários são
organizados e desenvolvidos por entidades da área privada. Cada esforço novo
tem sido sempre inspirado em sucessos de esforços semelhantes ocorridos em
países ou cidades vizinhas. Essa tendência é encontradiça em reabilitação e
em esquemas de assistência a pessoas deficientes em todas as partes do
mundo.
Estudiosos do assunto "reabilitação" acabaram provocando no início do
século o intercâmbio de informações e de sugestões entre todos os que se
interessavam pelo problema, estabelecendo uma espécie de organização
internacional de caráter informal. No entanto, havia claramente a necessidade
de existir organizações do tipo não-governamental, mas de caráter
internacional, voltadas para toda essa imensa problemática legada pela
Primeira Guerra Mundial.
A mais antiga dessas sociedades internacionais surgiu na Escandinávia, no
início do século. Foi a Sociedade Escandinava de Ajuda a Deficientes
congregando entidades que atendiam pessoas deficientes na Suécia, Noruega
e Dinamarca, desde o século XIX.
A sociedade internacional que hoje é conhecida mundialmente como a
Rehabilitation International surgiu como uma das primeiras e mais importantes
organizações voluntárias interessadas no ângulo internacional do problema,
com o objetivo principal de manter contato com o progresso mundial na ajuda a
pessoas deficientes. Ela foi fundada em 1922 com o nome inicial de Sociedade
Internacional para a Criança
Deficiente, graças a alguns interessados pertencentes ao Rotary International
que, ao observar movimentos semelhantes aos que eram organizados nos
EUA para crianças deficientes, compararam-nos a outros movimentos em
outras partes do mundo. O Rotary International acabou patrocinando a idéia de
formar uma federação para coordenar e estimular atividades destinadas a
pessoas deficientes.
O primeiro Congresso Mundial dessa sociedade internacional que já adotara
o nome de Sociedade Internacional para o Bem-Estar dos Aleijados
(International Society for the Welfare of the Cripples) foi na cidade de Genebra,
na Suíça, no ano de 1929, graças a interessados no problema que
participavam de uma reunião do Rotary International.
Existem versões diferentes para a criação da Sociedade Internacional para o
Bem-Estar dos Aleijados. Segundo uma delas, no ano de 1919, na cidade de
Elyria (Estado de Ohio - EUA), foi fundada a International Society for Crippled
Children, mas no ano de 1922 ela foi dividida em duas outras organizações
internacionais, ou seja, a "Easter Seal Society for Domestic Action" e a
"International Society
for the Welfare of Cripples".
Tendo seu nome sido alterado para "International Society for Rehabilitation
of the Disabled", na década de cinqüenta, ela é hoje conhecida como
"Rehabilitation International", conta com 115 organizações do mundo todo a ela
filiadas, incluindo nisso 64 países de todos os continentes.
Evidentemente que existem hoje diversas organizações conhecidas como
"não-governamentais", que têm características internacionais, que se dedicam
aos problemas de pessoas deficientes. Dentre elas cumpre destacar as
seguintes:
- Federação Mundial dos Veteranos
- Sociedade Internacional de Medicina Física
- Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais
- Confederação Mundial de Fisioterapia
- Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos
Todo o esforço de muitas das organizações não-governamentais é
atualmente coordenado pela Conferência de Organizações Mundiais,
Interessadas na Pessoa Deficiente.
- *O envolvimento das organizações inter-governamentais*
Desde o final da segunda guerra que assolou o mundo no século XX, ou
seja, desde o ano de 1945, expandira-se muito a compreensão daquilo que
vinha insistentemente sendo chamado de "reabilitação". E com essa
compreensão, muitas sociedades caminhavam para a plena conscientização
quanto à sua necessidade, havendo muito pouca gente que duvidava que
problemas sérios das pessoas deficientes só poderiam ser cobertos com sua
aplicação. Programas muito mais amplos precisavam ser garantidos para dar
assistência não só aos deficientes do aparelho locomotor, mas também que
apresentavam dificuldades sensoriais e mentais.
Um dos fatores mais significativos na divulgação dessa nova técnica de
trabalho foi, sem dúvida, o envolvimento das organizações internacionais de
caráter inter-governamental, comandadas pela Organização das Nações
Unidas, incluindo nessa verdadeira família de organizações o Fundo de
Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial de Saúde (OMS), a
Organização das Nações Unidas para Refugiados e a Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). O verdadeiro
envolvimento dessas organizações internacionais iniciara-se mesmo antes da
própria criação da ONU, quando o organismo de congregação das nações do
mundo era ainda a Liga das Nações, com sua sede em Genebra.
Um exemplo desse envolvimento está no documento intitulado"Report on the
Welfare of the Blind in Various Countries" (Relatório a respeito do Bem-Estar
dos Cegos em Vários Países), datado de 1929 e publicado sob a
responsabilidade da Liga das Nações. Esse documento apresentou um resumo
analítico da evolução dos serviços de proteção e de assistência aos cegos, na
Europa e na América do Norte.
No entanto, um passo decisivo para um maior envolvimento da ONU e de
suas Agências Especializadas ocorreu quando, no mês de dezembro de 1946,
sua Assembléia Geral adotou uma resolução que estabelecia o primeiro passo
para um programa de consultoria em diversas áreas do bem-estar social, nele
incluindo a reabilitação das pessoas deficientes, como uma das principais
áreas com possibilidades de captar recursos financeiros para assistência
técnica a ser colocada à disposição dos países sub-desenvolvidos e
interessados no assunto. Foi montado o Bureau of Social Affairs, dentro do
Secretariado da ONU, que iniciou seu funcionamento quando a ONU ainda
trabalhava em Lake Sucess, nos arredores de New York. Dentro da estrutura
do Bureau foi inserida uma Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes.
Enquanto isso começava a acontecer a nível da nova Organização das
Nações Unidas, os programas da já antiga Organização Internacional do
Trabalho continuavam, pois já haviam sido montados há alguns anos. Logo
envolveram-se as outras organizações e devido ao volume surpreendente de
atividades e ao estabelecimento de áreas específicas de atuação para cada
uma delas, gradativamente surgiu a necessidade de um sistema de
coordenação internacional, envolvendo não só as organizações inter-
governamentais, mas também as organizações mundiais de caráter não-
governamental que iam proliferando em diversos campos.
Durante o Seminário Internacional sobre Administração de Programas e de
Centros de Reabilitação nos Países em Desenvolvimento, organizado pela
ONU e pelo Governo da Dinamarca, em Copenhague, de 18 de julho a 5 de
agosto de 1966, e do qual participamos como Secretário-Técnico, tivemos
oportunidade de analisar a questão da coordenação em um painel de
especialistas, sendo nossa missão apresentar pontos relevantes que
justificavam a necessidade de coordenação a nível internacional. Fizemo-lo em
nome da Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes do Bureau de
Assuntos Sociais, da qual éramos funcionário técnico. O trabalho escrito,
apresentado na ocasião, aplicável quase que "in totum" à realidade de hoje, é
relevante no contexto deste capítulo, face à importância que a ONU e suas
Agências Especializadas têm tido no desenvolvimento da reabilitação no
mundo de hoje. Alguns trechos parecem-nos relevantes:
... "A prevenção das deficiências e a reabilitação de pessoas deficientes são
problemas nos quais a ONU e um certo número de Agências Especializadas
têm demonstrado grande interesse muito antes de 1950. Nesse ano, tendo em
mira obter uma atuação bem coordenada nesse campo, o Conselho Econômico
e Social da ONU solicitou ao Secretário-Geral para planejar “inter-alia”,
juntamente com as Agências Especializadas e em consultoria com as
organizações não-governamentais interessadas, um bem coordenado
programa internacional para a reabilitação das pessoas fisicamente deficientes.
Planos para esse programa foram inicialmente discutidos por um grupo técnico
de trabalho composto de especialistas indicados pela ONU, pela Organização
Internacional do Trabalho, pela UNESCO, pela Organização Mundial de Saúde,
pela Organização Internacional dos Refugiados e pelo Fundo de Emergência
das Nações Unidas para as Crianças. O grupo reuniu-se em Lake Success e
em Genebra, e o novo programa internacional, dinâmico em sua forma e
baseado em princípios sólidos, começou a existir."
Coordenação prática dessas atividades - o tópico principal das primeiras
reuniões - continuou a constituir-se no foco de discussão através dos anos. Em
tese parecia haver uma clara divisão de responsabilidades, mas na prática
havia diversas áreas nas quais a sobreposição de responsabilidades persistia.
Os problemas colocados por essas áreas "cinzas", poderiam ser resolvidos
apenas por meio de uma eficiente coordenação que, em contrapartida,
dependeria de uma precisa definição de responsabilidades. Depois de muita
discussão, planejamento e revisão, a seguinte alocação de responsabilidades
foi aceita:
a) A Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes das Nações Unidas
ficou encarregada de aspectos de Planejamento, Administração, Legislação,
Aspectos Sociais, Aspectos Psicológicos e Próteses. Além disso, a Unidade de
Reabilitação ficou responsável por manter um controle sobre todas as
providências tomadas com relação a projetos práticos, e por garantir, tanto
quanto possível, que as Agências Especializadas se mantivessem em dia e
estivessem perfeitamente informadas das atividades umas das outras.
b) A responsabilidade da Organização Internacional do Trabalho cobria
todos os aspectos profissionais da reabilitação, tais como treinamento de re-
condicionamento, de avaliação e de atividades pré-profissionais (como eram
conhecidas àquela época); emprego protegido e organização de oficinas
protegidas; medidas especiais para garantia de emprego para a pessoa
deficiente; e centros de reabilitação industrial. Deve-se notar aqui que os
princípios gerais da reabilitação profissional sempre estiveram baseados na
Recomendação nº 99 da OIT, aprovada pela Conferência Internacional do
Trabalho, em junho de 1955.
c) A competência técnica da UNESCO no campo da reabilitação cobre o que
é conhecido por todos nós como educação especial. A UNESCO inclui, nesse
sentido, alguns programas para cegos, para surdos e em geral para os
deficientes físicos e mentais. Uma Resolução sobre educação especial foi
adotada pela Conferência da UNESCO de 1964, e espera-se que atividades de
assistência técnica dessa Agência Especializada, em educação especial,
aumente durante os anos futuros.
d) A responsabilidade da Organização Mundial de Saúde em geral é
promover a saúde de todas as pessoas. Quanto a atividades de reabilitação,
seu papel é prevenir, sempre que possível, males incapacitantes, e
desenvolver programas em cirurgia ortopédica e protética; em medicina física;
em fisioterapia; em enfermagem especializada; em próteses e órteses na
prática médica.
e) O papel do UNICEF em reabilitação, bem como em outros campos de
assistência, é prover equipamento e transporte. O UNICEF normalmente
coordena seus próprios planos com os planos da ONU e de suas Agências
Especializadas e somente dá assistência a projetos que tenham a aprovação
técnica da relevante Agência das Nações Unidas". (Isto era verdade à época
em que o documento foi apresentado e discutido - hoje em dia o UNICEF
mantém seus próprios programas e suas próprias consultorias, contratando
eventualmente a assessoria de especialistas mundialmente renomados ou de
organizações não-governamentais especializadas).
O trabalho em pauta, que foi devidamente liberado pela ONU antes de sua
apresentação quanto ao seu conteúdo e análise das atuações das Agências
citadas em seu corpo, continua, estudando os fatores comuns encontradiços
em seu trabalho, e que caracterizavam as organizações inter-governamentais.
Só para informação do leitor, esses pontos comuns eram os seguintes:
a) todas as organizações internacionais de caráter inter-governamental,
inseridas na família de Agências das Nações Unidas, estavam e estão
preparadas para prestar assistência técnica, mas apenas quando fossem
apresentadas solicitações pelos governos;
b) essa assistência técnica tanto poderia ser dirigida a órgãos ou programas
oficiais, quanto àqueles da área privada;
c) todas elas praticamente prestam serviços de consultoria de técnicos
especializados ou provêm bolsas de estudos para o treinamento de pessoal
local, sendo que uma boa parte delas ainda prepara literatura básica
(monografias, estudos, pesquisas e outras publicações);
d) elas organizam seminários inter-regionais ou internacionais, cursos
intensivos e viagens de estudos, conforme programação aprovada com
antecipação e notificação aos governos;
e) elas de um modo geral procuram envolver outras agências internacionais
nos programas desenvolvidos em determinado país.
Para obter a almejada coordenação, até hoje cabe à ONU uma série de
providências práticas, tais como a organização periódica de Reuniões Inter-
Agências, a freqüente troca de informações e também as publicações
conhecidas como "Summary of Information on Projects and Activities in the
Field of Rehabilitation of the Disabled Throughout the World" (Sumário de
Informações sobre Projetos e Atividades no Campo da Reabilitação do
Deficiente através do Mundo). Pessoalmente vivenciamos não só a preparação
dessas publicações mas também seu significado para as organizações Inter-
Governamentais e as Não- Governamentais envolvidas, uma vez que foi nossa
responsabilidade direta sua elaboração do volume V (relacionado a atividades
de 1963) até o volume IX (sobre atividades de 1967), correspondendo
exatamente aos cinco anos de trabalho nosso na Unidade de Reabilitação das
Pessoas Deficientes da O N U, em New York.
O chamado "programa internacional coordenado" que havia sido
recomendado pela Assembléia Geral da ONU ao seu Secretário-Geral, sempre
foi levado a efeito por meio de um trabalho burocrático silencioso e persistente
(e por que não o dizer, paciente) do qual percebíamos os resultados por vezes
promissores, por vezes extremamente desoladores. Personalidades envolvidas
dificultavam muitas vezes o andamento usual de processos; atitudes de ciúme
de antigos funcionários internacionais barravam o dinamismo de pessoal mais
novo; surgiam pruridos por "avanços" milimétricos nas conhecidas e muito
disputadas "áreas cinzentas"; ocorriam bloqueios velados a projetos - mesmo
que de boa qualidade - elaborados por alguma cabeça de origem "ocidental"
quando a cabeça "oriental" estava no poder, e vice-versa ... e tantos problemas
mais! Olhando daquele prisma que costumávamos olhar (ou seja, de dentro da
ONU para fora), considerávamos um verdadeiro prodígio ninguém de fora
perceber o drama que significava lutar sob a égide da bandeira azul e branca
da ONU, na qualidade de funcionário público internacional, procurando dar ao
barco de tantas velas desencontradas um rumo que era de fato esperado por
todos os que se envolviam em reabilitação. Foram anos muito difíceis, e no
trabalho que citamos há um desabafo velado nas entrelinhas, nos dois últimos
parágrafos que dizem o seguinte:
"Por todos esses meios e outros que podem surgir no correr do tempo, e
também por meio da experiência acumulada, espera-se continuamente que a
plena coordenação torna-se-á útil na manutenção de um programa
internacional de reabilitação para todos os tipos de pessoas deficientes, com a
eliminação de toda a duplicação desnecessária, sobreposições ou
antagonismos, que normalmente surgem devido à ignorância quanto às
atribuições e às atividades dos outros".
"Certamente que muitos anos deverão passar antes que tal programa – e
outros que possam ser organizados no futuro - traga completo alivio para a
pessoa deficiente no mundo todo. Cada ano esperamos ver grandes
progressos na direção de nosso objetivo último em reabilitação, de um plano
claro e objetivo que possa ser seguido desde agora".
Muita gente que se diz conhecedora da Organização das Nações Unidas faz
dela a idéia de um órgão político, no qual se ressaltam dois constantemente
citados setores: a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança. No entanto, a
ONU mantém, através de seu Executivo, que é o Secretariado (funciona no
prédio que todos conhecem, localizado em New York, às margens do East
River, e que é todo envidraçado em todos os seus 38 andares) uma incrível
programação em contínua expansão, que levou a uma descentralização inicial,
dentro da própria cidade de New York. Toda a área de Desenvolvimento Social,
Defesa Social, Reabilitação da Pessoa Deficiente e outras, foi transferida para
alguns andares do Chrysler Building. Anos após, num audacioso momento de
decisão do Secretário Geral Kurt Waldheim, esses assuntos todos passaram
para o Centre for Social Development and Humanitarian Affairs (Centro para
Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários), em Viena, na Áustria, onde
se localiza hoje.
Muitos, dessa forma, não tem a mínima idéia do montante de atividades que
são programadas e desenvolvidas para o benefício da humanidade que vive
nos países em desenvolvimento.
Gostaríamos de documentar a pujança das programações e o seu
inquestionável alcance, no campo da reabilitação apenas, durante um curto
período de tempo, já pertencente ao passado, mas muito ilustrativo.
Responsabilizamo-nos pessoalmente pela informação, pois delas participamos
num trabalho diuturno.
Período de 1964 a 1966 apenas:
*Técnicos* - Vinte e oito técnicos em reabilitação em diversos aspectos
foram enviados pelas Nações
Unidas para missões em vinte e dois países em desenvolvimento. A grande
maioria dessas missões internacionais foram de curta duração e destinadas a
pesquisas iniciais para que o governo pudesse tomar uma posição face à
problemática das pessoas deficientes. No entanto, algumas dessas missões,
especialmente nos campos de fisioterapia e de próteses, duraram mais de um
ano.
*Bolsas de treinamento* - A ONU concedeu 45 bolsas de treinamento para
estudos de diferentes aspectos de reabilitação. Os bolsistas eram oriundos de
17 países e tiveram uma duração entre 3 e 14 meses seus respectivos
treinamentos. Foram também concedidas 96 bolsas de treinamento para a
participação de profissionais de alto nível em seminários internacionais ou
viagem de estudo, organizados pela ONU ou contando com sua colaboração,
no campo da reabilitação. Com essas bolsas de curta duração, 45 países em
desenvolvimento foram beneficiados.
*Seminários internacionais* -
a) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Próteses para Pessoas
Deficientes - Este Seminário foi organizado pelas Nações Unidas com a
cooperação da Sociedade e Lar para Aleijados na Dinamarca (Society and
Home for Cripples in Denmark) e do Comitê Internacional de Próteses e
Órteses da Sociedade Internacional para Reabilitação do Deficiente (hoje
Rehabilitation International). Foi realizado em Copenhague, de 5 de julho a 15
de agosto de 1964 (um curso intensivo, portanto), com a presença de 32
participantes de 26 países em desenvolvimento na América Latina, África, Ásia,
Oriente Médio e Europa. Os participantes foram selecionados entre candidatos
designados pelos governos e, em sua grande maioria, eram diretores ou
gerentes de importantes oficinas de próteses em seus países. Do Brasil
tivemos dois participantes de São Paulo, ligados a projeto do Centro de
Demonstração a que nos referimos um pouco mais adiante, neste mesmo
capítulo. Participamos na qualidade de Diretor, em nome das Nações Unidas.
Durante este Seminário - organizado como um curso intensivo e com firmes
propósitos de elevar os conhecimentos dos participantes - foram dados
certificados de sua conclusão apenas para aqueles que tivessem passado nos
exames finais. Ao encerrar-se o Seminário, diversas recomendações foram
aprovadas. E a mais relevante foi, sem dúvida, aquela que indicava a
necessidade de se organizar outro Seminário da ONU para o estabelecimento
de padrões mínimos para treinamento de pessoal. A recomendação foi
aprovada logo em seguida pela Comissão Social do Conselho Econômico e
Social da ONU, e incluída no programa de trabalho da Unidade de Reabilitação
para 1968.
b) Viagem de Estudos das Nações Unidas para Recursos de Reabilitação na
Polônia e na Rússia, organizada pela ONU em estreita colaboração com os
países visitados. Foi realizada em setembro de 1965, com 34 participantes de
24 países em desenvolvimento, incluindo pessoal de alto nível em seus
respectivos países, mas envolvidos em reabilitação. Tiveram oportunidades de
observar as várias modalidades de programas para resolver os problemas dos
deficientes, todos eles baseados em vastos programas de seguro social.
Enquanto a viagem era realizada, permanecemos em New York na direção da
Unidade de Reabilitação. Brasil com dois participantes.
c) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Administração de
programas e de importantes Serviços de Reabilitação em Países em
Desenvolvimento. Foi realizado em Copenhague, sob a égide da ONU, com o
patrocínio do Governo da Dinamarca, de 18 de julho a 5 de agosto de 1966.
Foram 31 participantes de 26 países em desenvolvimento, tendo o Brasil
participado com dois profissionais, sendo um da Coordenação da Reabilitação
Profissional do INPS e o outro, o Diretor de um Centro de Reabilitação da
Bahia. Também na forma de um curso intensivo, foi um Seminário bem
agradável aos participantes, pois incluiu viagem a várias cidades
dinamarquesas e à bonita cidade de Oslo, na Noruega, mas com
compromissos de aulas e conferências em todas elas. Os assuntos tratados
cobriram aspectos médicos, sociais, psicológicos e profissionais da reabilitação
e suas tendências mais atualizadas. Participamos deste Seminário na
qualidade de Secretário Técnico, em nome da ONU.
É evidente que muitos outros Seminários Internacionais, cursos ou viagens
de estudos - empreendimentos que envolvem grupos - foram patrocinados ou
organizados tanto pela ONU quanto pelas agências de sua família
organizacional, no campo da reabilitação, com resultados que só poderão ser
dimensionados com o tempo. Se formos analisar os resultados dos Seminários
aqui indicados, com informações eventuais que temos recebido, poderemos
afirmar sem susto que para 50% dos participantes eles devem ter significado
apenas uma viagem às custas das Nações Unidas e seu Programa Ampliado
de Assistência Técnica, de um país sub-desenvolvidos para os
extraordinariamente belos países escandinavos. Aprenderam muita coisa, é
óbvio, pois a freqüência às atividades dos mesmos era obrigatória e eventuais
distrações ou atividades sociais ocorriam apenas aos sábados ou domingos.
Esses Seminários caracterizavam-se por atividades muito bem programadas
pela manhã e à tarde - e às vezes à noite. E o local de concentração,
conferências, trabalhos em grupo, refeições e alojamento para dormir não era
perto de Copenhague. Mas sempre era a Dinamarca, a Suécia, a Noruega e
aquele povo por vezes indiferente, por vezes formal, por vezes gentil e correto,
mas quase sempre bem diferente das realidades encontradiças nos países
africanos, asiáticos ou latino-americanos ... Para esses 50% certamente que os
melhores momentos estiveram ligados a recordações que nada têm a ver com
os Seminários em si: Tivoli, "smorebrods", gramados e jardins floridos, a
sereiazinha triste, restaurantes, bicicletas, bandeiras, muita gente loira, uma
língua impossível, planuras imensas com plantações de cereais quase sem fim,
nenhum rio, nenhuma montanha, ferryboats e as gaivotas em seu encalço,
palácios reais, museus - enfim, a Dinamarca propriamente dita.
Mas houve o restante dos participantes - os 50%, que devem ter aproveitado
e muito, ouvindo, discutindo, estudando, escrevendo. E para esses o programa
de reabilitação deve ter aproveitado muito. Saldo positivo deve haver, sem a
menor sombra de dúvida!
O que nos fica muito patente é que assegurar resultados imediatos não está
nem poderia estar relacionado ao conteúdo desses eventos, mas aos tipos de
participantes que nem sempre foram (ou são) os mais indicados ou os mais
competentes para tirar o devido proveito de encontros tão cuidadosamente
preparados.
Uma boa porcentagem das atividades destinadas à transferência de
tecnologia de reabilitação dos países mais evoluídos para aqueles em estágio
menos avançado de desenvolvimento, na ONU e em suas Agências
Especializadas, sempre se concentrou na preparação e na distribuição de
bibliografia relevante. Não são apenas relatórios de missões de consultores em
áreas pouco evoluídas do mundo, ou missões de caráter regional e inter-
regional, que às dezenas enriquecem o acervo de informações relacionadas ao
desenvolvimento da reabilitação no mundo, mas também estudos especiais. A
maioria das publicações da ONU e de suas Agências Especializadas leva em
consideração as discrepâncias culturais e sociais do mundo, e respeitam os
processos implantados nos seus diversos Estados-Membros.
Preocupação das mais relevantes ocorreu na década de sessenta, quando a
Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes da ONU iniciou uma série
muito interessante intitulada: "Serviços e Material Básicos para os Centros de
Reabilitação". Visava a série transmitir idéias, programas, exemplos dos
serviços básicos existentes em centros de reabilitação, com o propósito de
chegar aos diretores de programas, de atingir os profissionais, de alertar os
governos. A série chegou a incluir números sobre fisioterapia, terapia
ocupacional, serviço social, psicologia, próteses em geral, próteses para
hansenianos. E seu grande alcance levou a Organização das Nações Unidas a
traduzir cada volume (de aproximadamente oitenta páginas cada), em várias
línguas. Essa série chegou a contar com suas publicações em inglês,
espanhol, francês, russo e árabe.
Na relação bibliográfica deste volume o leitor poderá ter uma diminuta idéia
de publicações da ONU sobre reabilitação. Muitos outros trabalhos foram
publicados, é evidente, sendo impossível a apresentação de uma relação
completa.
A mesma observação relacionada a publicações é aplicável à Organização
Internacional do Trabalho, e em menor escala à Organização Mundial de
Saúde e UNESCO nos assuntos de reabilitação.
Outros esforços muito sérios foram desenvolvidos pela família de
Organizações das Nações Unidas para divulgar, implantar ou fortificar
programas de reabilitação em todas as partes do mundo. Um deles, quase
esquecido entre nós, é o Centro de Demonstração de Reabilitação, a respeito
do qual algumas explicações precisarão ser feitas, a fim de que seja feita
justiça - tanto à ONU, OIT e OMS, quanto àqueles que a esse plano dedicaram
seus esforços, suas inteligências, seu gabarito técnico, em quatro pontos
diferentes do mundo.
- *Centros de demonstração de técnicas de reabilitação*
No início da Década de Cinqüenta a ONU, em decorrência de uma
deliberação de caráter inter-organizacional da qual participaram os seus
representantes e aqueles da OIT, OMS e UNESCO, resolveu adotar uma
estratégia mais efetiva para a implantação de projetos de reabilitação nos
quatro continentes: provocar a organização de centros de Demonstração de
Técnicas de Reabilitação, que acumulassem a responsabilidade de não só dar
atendimento qualificado, mas também de desenvolver cursos para a formação
de pessoal básico nessas mesmas técnicas.
O plano contava com o apoio das organizações envolvidas, mas de um
modo todo especial da própria Organização das Nações Unidas, da
Organização Internacional do Trabalho e da Organização Mundial de Saúde.
As três organizações haviam estabelecido prioridade em programações de
assistência técnica, dentro de certas condições, e haviam igualmente
combinado as condições fundamentais para montagem de centros dessa
natureza.
Além de ser necessário manter um em cada continente, seus especialistas
internacionais levaram a campo e indicaram aos governos visitados os critérios
para escolha dos países, estados e cidades onde esses novos recursos
poderiam ser instalados. Esses critérios resumiam-se nos seguintes:
a) A existência de uma realidade universitária pujante que desse cobertura à
formação de pessoal destinado aos programas do centro, ou seja, médicos,
assistentes sociais, enfermeiros e psicólogos. Essa mesma realidade
universitária deveria estar apta a, com esforço adicional, cobrir ainda a
necessidade de formação de profissionais faltantes numa equipe de
reabilitação (fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, técnicos em próteses e
órteses e conselheiros de reabilitação), com a montagem de cursos ainda não
existentes no país, mas básicos para programas reabilitacionais.
b) Existência de uma realidade industrial, comercial e de serviços em franca
expansão, devido ao seu significado na montagem de programas de
aconselhamento e de colocação da mão-de-obra das pessoas deficientes
adultas em programas de reabilitação.
c) Disponibilização de instalações, se possível nas proximidades de um
complexo hospitalar que contasse com serviços de ortopedia e neurologia,
suficientes para localização de todos os serviços e espaço para internamento
de adultos de ambos os sexos.
d) Preferência seria dada a país que já contasse com alguns profissionais
que tivessem experiência no campo da reabilitação, e com recursos
institucionais já instalados de treinamento profissional.
e) O compromisso formal e o interesse direto do governo federal e do local
(estadual) para a organização do centro de reabilitação e para sua manutenção
como projeto de demonstração de tecnologia e de aproveitamento dos novos
profissionais em formação.
f) O compromisso adicional do governo central de dar prioridade aos pedidos
de assistência técnica à família de organizações da ONU, não só pedindo
especialistas nas áreas necessitadas de cobertura, mas também bolsas de
estudos para a preparação adicional dos profissionais que trabalhassem como
assistentes dos consultores das Agências Internacionais, se de todo
necessário.
Após exaustivos estudos e muitas consultas, os quatro pontos foram
escolhidos de comum acordo com os governos interessados. Os Centros de
Demonstração de Técnicas de Reabilitação foram instalados na lugoslávia
(Skopje), Egito (Alexandria), Índia (Bombaim) e . . . Brasil (São Paulo). Criava-
se em nossa Pátria um recurso altamente promissor que deveria ser o
elemento catalítico do desenvolvimento da reabilitação em nosso meio: o
Instituto Nacional de Reabilitação (INAR) da Universidade de São Paulo!
- *O Instituto de Reabilitação: vida e morte*
Analisemos, pelo menos superficialmente, o esquema de assistência técnica
montado em termos de São Paulo para a implantação de um centro de
reabilitação de natureza demonstrativa, padrão de atendimento, voltado para a
formação de pessoal especializado.
No ano de 1956 o Governador Jânio Quadros assinava decreto criando na
USP, o Instituto Nacional de Reabilitação, algum tempo depois transformado
em Instituto de Reabilitação. Foi instalado na Clínica Ortopédica do Hospital
das Clínicas (1° Andar), sob a direção forte do Professor Doutor Francisco
Egydio Godoy Moreira. Conforme instalado, já contando com alguns
profissionais que haviam se beneficiado de bolsas de estudos nos Estados
Unidos, tornou-se o Instituto, o primeiro centro de reabilitação global do Brasil,
um verdadeiro modelo para futuros empreendimentos. Havia outros esforços
no Brasil, não se pode negar, como aquele desenvolvido por um grupo
dedicado e aprimorado de médicos e assistentes sociais do antigo Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Comerciários; havia também as tentativas de um
grupo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários. Outros nomes
de organizações daquela época podem ser relembrados pelos imensos
esforços feitos, sem contar com as vantagens de assessoria de técnicos
internacionais, como a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação, o
Instituto Baiano de Reabilitação, o Hospital Arapiara, a Associação de
Assistência à Criança Defeituosa, o Lar-Escola São Francisco, o Serviço de
Reabilitação do SESI e outros mais. E já em 1958/59 a nascente Brasília, tão
nova e tão surpreendente, contava com um singular e moderníssimo prédio
muito bem instalado e equipado – mas sem clientes - que era o Centro de
Reabilitação Sarah Kubitschek.
Os técnicos especializados da ONU, indicados para o projeto do Instituto de
Reabilitação da USP, enfatizavam continuamente em seus relatórios
confidenciais às suas organizações de origem que aquele novo centro piloto de
reabilitação deveria ser um paradigma para toda a América Latina - pretensão
extremamente alta, tanto para as Organizações Internacionais que
demonstravam pouco conhecer a realidade latino-americana, quanto para o
próprio Brasil e em especial São Paulo, pois todas as autoridades envolvidas
haviam se embalado naquela suave e hipnotizante melodia e na utópica
vanglória de estar montando um recurso para todo um continente, esquecendo-
se de se voltar para uma realidade bem própria e bem nossa - nada, ou quase
nada, estava sendo feito em reabilitação pelos milhões de deficientes
brasileiros.
Conforme foram chegando, os especialistas internacionais foram cobrindo as
áreas de consultoria geral e administração de reabilitação, aspectos especiais
de reabilitação de cegos, aspectos profissionais de reabilitação, fabricação de
próteses e treinamento de seu pessoal, organização dos departamentos de
fisioterapia e terapia ocupacional e montagem dos cursos específicos. Bolsas
de estudos foram concedidas em número bem reduzido nas áreas de
enfermagem, medicina física, administração de centros e aspectos
profissionais de reabilitação. Uma bolsa especial foi concedida na área de
locomoção de cegos, um dos aspectos enfatizados pelos consultores da OIT.
Após diversos anos de funcionamento, contava o Instituto de Reabilitação
com uma equipe especializada, tinha um bom número de leitos para casos que
precisavam de internação, atendia um bom volume de clientela e dava cursos
de preparação dos técnicos em fisioterapia, em terapia ocupacional e no
campo de próteses e órteses. Além disso, o Instituto aceitava profissionais
formados ou alunos dos últimos anos para estágios de especialização,
organizava congressos, seminários e dava uma expressiva cota de
contribuição ao desenvolvimento dos ideais da reabilitação em nosso meio. Os
problemas internos, seja de ordem financeiro-administrativa, seja de ordem
técnica, eram discutidos, e os caminhos eram encontrados. Tratava-se de um
centro de reabilitação que era o real detentor de um papel de alta relevância.
O sucesso dos centros da Iugoslávia, do Egito e da Índia poderá, sem
qualquer sombra de dúvida, ser medido pelos frutos gerados nesses países.
Entre nós, porém, o final dessa promissora tentativa foi no mínimo lacônica: o
Instituto de Reabilitação da Universidade de São Paulo, apesar de contar com
bons profissionais e de ter potencial para atendimento de clientela adulta
diversificada, acabou fechando suas portas ao final da década de sessenta,
devido a problemas muito sérios. Seus cursos de Terapia
Ocupacional e de Fisioterapia, acrescidos de um curso de Fonoaudiologia,
foram absorvidos pela Faculdade de Medicina da USP. As instalações
ocupadas foram devolvidas integralmente ao Instituto de Ortopedia e
Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Seus profissionais, por anos a fio sem ter clientela para atender, sem verbas
para atuar, dispersaram para outros serviços do Hospital das Clínicas ou
pediram demissão.
E, o mais terrível desse desfecho todo, as pessoas deficientes adultas
ficaram sem um importante centro de reabilitação que procurava oferecer
serviços globais - aliás, à época de seu fechamento, era o único centro fora da
Previdência Social que atendia a adultos em São Paulo - lacuna essa até hoje
não preenchida condignamente.
- *A evolução mais recente da reabilitação*
Houve um incremento tão grande a programas de reabilitação de pessoas
deficientes que seria tarefa impraticável tentar relatar a história da evolução
mais atualizada dessa técnica no mundo todo ou mesmo entre nós. Injustiças
muito flagrantes poderiam ser cometidas com a citação de alguns nomes e a
omissão de outros. Só na capital paulista estão cadastradas hoje mais de
setenta entidades privadas que trabalham em prol das pessoas deficientes,
seja em termos de abrigo, seja em termos de tratamento, seja em termos de
reabilitação.
Procuramos, através do reconhecimento das muitas atuações das
organizações inter-governamentais filiadas ao Sistema Nações Unidas,
compensar por essa lacuna. Façamos justiça à Organização das Nações
Unidas, à incansável Organização Internacional do Trabalho, à inovadora
Organização Mundial de Saúde, à batalhadora Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, e também ao tão
prestigiado UNICEF em sua contínua luta pela infância carente do mundo
atribulado de hoje. Essas organizações desenvolvem um trabalho silencioso e
continuo, e sempre anônimo, que se tem mantido na sua meta original, ou seja,
fazer com que a reabilitação e serviços afins cheguem a todos os recantos do
mundo.
Mas façamos também justiça àquelas organizações que não estão na família
organizacional da ONU, ou seja, as Não-Governamentais voltadas para os
problemas dos cegos, dos veteranos, dos surdos, das pessoas deficientes de
um modo geral. E não nos esqueçamos daquelas que, apesar de não serem
destinadas especificamente a esses propósitos, desenvolvem atividades que
beneficiam as pessoas deficientes. E mais uma vez para não fazer qualquer
injustiça, sem mencionar qualquer nome em especial, limitando-nos a prestar
nossas homenagens à Conferência das Organizações Mundiais Interessadas
nas Pessoas Deficientes, que as congrega desde o final da década de
cinqüenta.
Essas organizações todas, sejam elas Inter-Governamentais ou Não-
Governamentais, continuam seus trabalhos cada vez com maior ênfase e grau
mais elevado de especialização, face a uma problemática que agora todo o
mundo desenvolvido ou em desenvolvimento conhece, ou seja, a dos quase
quinhentos milhões de pessoas portadoras de deficiências, das quais apenas
menos de um terço tem possibilidade de receber algum tipo de serviço. Esse
novo despertar para um problema tão grave aconteceu também por iniciativa
da Organização das Nações Unidas, com o mais completo apoio das entidades
não-governamentais, através do Ano Internacional das Pessoas Deficientes.
CAPÍTULO SÉTIMO
1981 - ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES
Desde os primeiros dias do estabelecimento da Organização das Nações
Unidas tem havido uma ênfase especial a programas destinados a encontrar
soluções para toda a gama de problemas sociais sérios causados pela guerra e
pelo sub-desenvolvimento, conforme vimos anteriormente. E, como analisamos
no capítulo anterior, o problema de deficiências ocasionadas pelas atividades
de guerra era tão significativo que demandou a concentração de esforços em
programas de reabilitação das pessoas deficientes, quer tivessem elas sido
envolvidas na guerra como integrantes das forças em conflito, quer como
vítimas civis.
No entanto, os esforços internacionais dirigidos para esse objetivo acabaram
sendo muito pouco eficazes devido à sua falta de coordenação - na verdade
não havia um plano mundial para dar cobertura a toda a magnitude de
dificuldades. E descobriu-se rapidamente que, devido à dispersa - apesar de
grande - quantidade de esforços na tentativa de remediar problemas de
deficiências instaladas, pouca atenção estava sendo devotada à prevenção de
outras deficiências - situação que perdurou por vários anos do pós-guerra.
Assim, hoje em dia não é muito de espantar que o mundo tenha um total de
aproximadamente 500 milhões de pessoas que sofrem com algum tipo de
restrição séria à sua atuação, devido a deficiências de naturezas variadas.
Percebemos hoje que as guerras, apesar de serem uma das causadoras mais
sérias de deficiências, certamente que não são nem jamais foram as únicas. As
sociedades continuam, talvez por falta de atenção ou por mera negligência, a
produzir as pessoas com deficiências físicas e mentais, e aquelas que sofrem
com os bloqueios de problemas sensoriais, orgânicos, comportamentais e
sociais dos mais sérios.
Ações preventivas são imperativamente importantes - talvez sejam mesmo
tão importantes quanto a própria reabilitação. E uma importante razão para dar
ênfase à prevenção de males é evitar o desperdício de recursos humanos, que
são um componente básico de qualquer processo de desenvolvimento,
somados que devem ser aos recursos naturais e financeiros.
- *As declarações de direitos e sua importância*
Com esse tipo de raciocínio dominante, a Assembléia Geral da ONU tem
mantido muitos esforços para dar cobertura a esse problema social de alto
significado, tendo sempre sua atenção voltada para a grande variedade dos
demais problemas de desenvolvimento. Assim é que no ano de 1971 a
Assembléia Geral proclamou a aprovação de uma resolução de alto significado
a respeito das pessoas deficientes: a Declaração dos Direitos das Pessoas
com Retardo Mental. No ano de 1975, por sua vez, aprovou a Declaração dos
Direitos das Pessoas Deficientes.
Este documento internacional é fundamental e o leitor não poderá em
absoluto deixar de conhecê-lo pelo menos em seus postulados principais que
são os seguintes:
1) O termo pessoas deficientes refere-se a qualquer pessoa incapaz de
assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida
individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou
não, em suas capacidades físicas ou mentais.
2) As pessoas deficientes gozarão de todos os direitos estabelecidos a
seguir nesta Declaração. Estes direitos serão garantidos a todas as pessoas
deficientes sem nenhuma exceção e sem qualquer distinção ou discriminação
com base em raça, cor, sexo, língua, religião, opiniões políticas ou outras,
origem social ou nacional, estado de saúde, nascimento ou qualquer outra
situação que diga respeito ao próprio deficiente ou e sua família.
3) As pessoas deficientes têm o direito inerente ao respeito por sua
dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem,
natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos
fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica antes de
tudo, no direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto
possível.
4) As pessoas deficientes têm os mesmos direitos civis e políticos que outros
seres humanos: o parágrafo sétimo da Declaração de Direitos das Pessoas
com Retardo Mental aplica-se a qualquer possível limitação ou supressão
desses direitos para as pessoas mentalmente deficientes.
5) As pessoas deficientes têm direito a medidas que visem capacitá-las a
tornarem-se tão auto-confiantes quanto possível.
6) As pessoas deficientes têm direito a tratamento médico, psicológico e
funcional, incluindo-se neles os aparelhos de próteses e órteses, a reabilitação
médica e social, educação, treinamento profissional e reabilitação, assistência,
aconselhamento, serviços de colocação e outros serviços que lhes possibilitem
o máximo desenvolvimento de sua capacidade e habilidades e que acelerem o
processo de sua integração ou
reintegração social.
7) As pessoas deficientes têm direito à segurança econômica e social e a um
nível de
vida decente e, de acordo com suas capacidades, a obter e manter um
emprego ou
a desenvolver atividades úteis, produtivas e remuneradas, e a participar de
sindicatos.
8) As pessoas deficientes têm direito de ter suas necessidades especiais
levadas em consideração em todos os estágios de planejamento econômico e
social.
9) As pessoas deficientes têm direito de viver com suas famílias ou com pais
adotivos e de participar de todas as atividades sociais, criativas e recreativas.
Nenhuma pessoa deficiente será submetida em sua residência, a tratamento
diferencial, além daquele requerido por sua condição ou por sua necessidade
de recuperação. Se a permanência de uma pessoa deficiente em um
estabelecimento especializado for indispensável, o ambiente e as condições de
vida nesse local devem ser, tanto quanto possível, próximos da vida normal de
pessoas da sua idade.
10) As pessoas deficientes deverão ser protegidas contra toda exploração,
todos os regulamentos e tratamento de natureza discriminatória, abusiva ou
degradante.
11) As pessoas deficientes deverão poder valer-se de assistência legal
qualificada quando tal assistência for indispensável para a proteção de suas
pessoas e propriedade. Se forem instituídas medidas judiciais contra elas, o
procedimento legal aplicado deverá levar em consideração sua condição física
e mental.
12) As organizações de pessoas deficientes poderão ser consultadas com
vantagem em todos os assuntos referentes aos direitos de pessoas deficientes.
13) As pessoas deficientes, suas famílias e comunidades deverão ser
plenamente informadas por todos os meios apropriados sobre os direitos
contidos nesta Declaração.
Esta Resolução foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em sua
trigésima sessão, no dia 9 de dezembro de 1975, levando o número XXX/3447.
- *O significado de um "Ano Internacional"*
Um ano depois, no dia 16 de dezembro de 1976, foi aprovada a Resolução
n° 31/123, proclamando o ano de 1981 como o Ano Internacional para as
Pessoas Deficientes (International Year for Disabled Persons). Estava muito
claro o propósito dessa última declaração universalmente conhecida: dar
condições para a implementação das resoluções anteriores, através da
conscientização do mundo todo quanto à problemática das pessoas portadoras
de deficiências.
Muita gente que ouve falar de Anos Internacionais, questiona-os sob um
ângulo apenas: fala-se muito daquele assunto durante um ano todo e depois
tudo cai no esquecimento e quase nada de concreto é feito. Será, entretanto,
justo lembrarmo-nos que os princípios que lastreiam os chamados "Anos
Internacionais" podem ser resumidos num único: Que a comunidade
internacional tome conhecimento da existência de um certo problema que afeta
segmentos da população, procurando soluções através de consultas
internacionais, ação conjunta e cooperação. Neste caso particular do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes, existe, de fato, um problema sério para
a comunidade das nações concentrar toda a atenção de que puder dispor,
dando-lhe a possível prioridade durante um ano todo. E o problema que
estamos analisando é, de fato, o intolerável problema de "meio bilhão de
pessoas" - sim, estamos falando de "meio bilhão de pessoas" - que se vê à
margem de tudo e não desfruta de seus direitos.
Caso, através de um Ano Internacional, a ONU consiga obter um nível de
conscientização internacional bom, haverá pelo menos o início de uma
mudança gradativa nas condições de vida dessas pessoas marginalizadas
devido à deficiência. As necessidades são tão grandes e tão desproporcionais
aos recursos disponíveis que a mudança jamais poderia ocorrer com a mera
soma de esforços individualizados de cada país, ou das instituições oficiais ou
privadas. Essa mudança requererá a interação de todos esses esforços,
privados e oficiais, nacionais e internacionais. Apenas uma ação de caráter
nacional e internacional, regional e mesmo local, bem coordenada, poderá
garantir qualquer sucesso aos ideais do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes.
- *O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais*
Aprovada a idéia do Ano Internacional, era necessário que a própria ONU
preparasse um plano de ação mundial de atuação. Para tanto, um Comitê
Consultivo foi criado pela Assembléia Geral, composto de representantes de
vinte e três países, dentre os quais o Brasil não estava incluído.
As primeiras demonstrações de apoio à proposição do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes começaram logo a chegar à ONU, como nos é relatado
pelo Boletim n° 1/79 sobre o assunto. Uma das primeiras veio da Organização
de Unidade Africana que já aprovara uma resolução de apoio ao Ano
Internacional, em fevereiro de 1978, indicando a possibilidade de organizar um
Seminário a nível regional para encontrar meios destinados a implementar os
objetivos do Ano. O Centro Europeu para o Treinamento e para a Pesquisa em
Bem-Estar Social, a Organização Internacional de Padronização, o Conselho
Mundial para o Bem-Estar dos Cegos e a Federação Mundial dos Veteranos
indicaram seu apoio irrestrito.
O Comitê Consultivo apresentou seu relatório ao Terceiro Comitê da
Assembléia Geral da ONU em 1979 (34ª Sessão). Acabou tendo a satisfação
de ver o substancioso documento inserido no próprio Relatório do Secretário-
Geral da Organização.
- *O conteúdo básico das idéias consensuais para um plano de ação
mundial*
Desse relatório decisivo do senhor Secretário-Geral Kurt Waldheim é que
muito daquilo que tem sido citado como básico, seja verbalmente seja por
escrito, a respeito do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, está inserido.
E a maioria de seu conteúdo é de fato consideravelmente importante. Vejamos
alguns trechos:
"16. Diversos membros do Comitê enfatizaram a necessidade de levar em
conta as necessidades e os problemas das pessoas deficientes no processo de
planejamento do desenvolvimento nacional, Pessoas deficientes devem ter o
mesmo direito que todos os outros cidadãos de se beneficiar dos serviços
postos à disposição pelo Estado e pela sociedade em geral a seus cidadãos.
Pessoas deficientes devem ser consideradas como cidadãos comuns com
problemas especiais em vez de uma categoria especial de pessoas com
necessidades diferentes daquelas de outros cidadãos. Participação plena deve
ser entendida como participação em todos os aspectos da vida comunitária:
nas atividades políticas, econômicas, sociais, culturais e esportivas. Medidas
que forem necessárias para tornar essa participação possível devem ser
adotadas e colocadas em prática. Foi reconhecido que os obstáculos mais
significativos à participação plena eram as barreiras físicas, os preconceitos e
as atitudes discriminatórias, e que devem ser desenvolvidas atividades para
remover essas barreiras. Foi também reconhecido que a sociedade, ao
desenvolver seus ambientes modernos, tendia a criar barreiras novas e
adicionais, a menos que as necessidades de pessoas deficientes fossem
levadas em consideração nos estágios de planejamento.
“17. Alguns membros afirmaram que estava ocorrendo uma dramática
mudança nas atitudes das próprias pessoas deficientes. Elas estavam
assumindo cada vez mais o papel de um grupo consumidor que tinha seus
próprios pontos de vista quanto à forma como as melhorias de suas condições
de vida deveria ser efetivada e desejavam que esses pontos de vista fossem
conhecidos daqueles que tomavam decisões. Alguns membros
sugeriram que essa tendência deveria ser encorajada, e que os representantes
de pessoas deficientes deveriam desfrutar de plena participação não apenas
no planejamento de programas a elas relacionados, mas também no
planejamento do desenvolvimento social e econômico da sociedade em geral.
Foi também sugerido que as organizações internacionais deveriam dar
exemplo nesse sentido”.
"22.Com relação ao programa de ação a longo prazo, alguns representantes
enfatizaram que o Ano deveria marcar o início de um esforço internacional
nesse campo e que o programa deveria ser preparado pelo Comitê baseado
nas sugestões dos países-membros, das agências especializadas da ONU e
das organizações não-governamentais próprias, no curso de 1980 e 1981.
Poucos problemas poderiam vir a ser resolvidos durante o Ano e era também
necessário considerar medidas baseadas em prazos mais longos de tempo,
para assegurar ao máximo possível a concretização dos objetivos do Ano em
todos os países".
O relatório do Comitê Consultivo, aprovado pela Assembléia Geral ao ser
apresentado como parte integrante do próprio relatório do Secretário-Geral da
ONU, prossegue enfatizando a necessidade de medidas preventivas de males
incapacitantes, bem como de envolvimento das próprias pessoas deficientes
para a garantia de seus direitos. Havia, no entanto, membros desse mesmo
Comitê que queriam saber de resultados práticos, de programas objetivos e de
medidas exeqüíveis.
"24. Diversos membros expressaram sua preferência por programas práticos
para o Ano Internacional, que deverão incluir o uso de tecnologia apropriada
para a reabilitação do deficiente, a concessão de bolsas de estudos para
especialização, o desenvolvimento de um banco de equipamentos e outros
programas que possam trazer benefícios diretos para as pessoas deficientes e
assim tornar a observância do Ano mais significativa.
25. Alguns membros indicaram que pessoas deficientes, de fato, formavam
um grupo bastante variado, dentro do qual havia pessoas com deficiências
diferentes e que havia, em conseqüência, grandes diferenças nas
necessidades e nos requisitos para serviços. Foi sugerido que o programa para
o Ano deverá levar em conta diferentes deficiências e prover meios para
assegurar a implantação dos objetivos do Ano para todas as pessoas
deficientes".
"29. O representante da Organização Mundial de Saúde referiu-se
particularmente a certos levantamentos recentes indicadores de que,
presentemente, apenas uma pequena porcentagem de pessoas deficientes nos
países em desenvolvimento recebiam os serviços de que necessitavam; o
sucesso dos esforços para melhorar as condições de vida da maioria das
pessoas deficientes da zona rural dos países em desenvolvimento depende da
descoberta de novos meios para estender a prestação de serviços básicos
necessários, a nível de comunidade, meios esses que devem estar em
consonância com os recursos já colocados à disposição para tal finalidade nos
países em desenvolvimento, ou que podem ser disponibilizados para tanto".
- *As recomendações para atividades a nível nacional*
Depois de discutir assuntos relacionados à cobertura de secretariado para o
Ano Internacional, e de analisar algumas proposições que não chegaram a ser
aprovadas, o documento apresenta suas Recomendações que, devido à sua
relevância, transcrevemos.
"III. RECOMENDAÇÕES
A - Introdução - Princípios básicos adotados para as recomendações
57. A finalidade do Ano Internacional das Pessoas Deficientes é promover a
concretização de objetivos de "participação plena" de pessoas portadoras de
deficiências na vida social e no desenvolvimento das sociedades nas quais
vivem, "igualdade" significando condições de vida iguais àquelas de outros
cidadãos na sua sociedade e uma participação igual na melhoria das condições
de vida que resultam do desenvolvimento social e econômico. Esses conceitos
são aplicáveis da mesma maneira e com a mesma urgência em todos os
países, independentemente de seu nível de desenvolvimento.
58. Problemas de pessoas portadoras de deficiências deverão ser
apreendidos em sua totalidade e levados em consideração em todos os
aspectos de desenvolvimento. Todavia, deve-se notar que, em vista dos muitos
problemas de alta prioridade e de meios e recursos insuficientes, os países em
desenvolvimento têm-se visto impossibilitados de alocar os necessários
recursos para resolver os problemas de pessoas deficientes".
"B - Atividades a nível nacional
68. A Comissão Consultiva recomenda que os Estados-Membros sejam
convidados, em conformidade com seus direitos e responsabilidades, a
determinar com plena liberdade seus objetivos de desenvolvimento e
prioridades, e, à luz de suas próprias circunstâncias, considerar a adoção das
seguintes medidas para a implementação e verificação dos objetivos do Ano
Internacional, conforme estabelecido pela Assembléia Geral em sua resolução
n.°31/123. Os Estados-Membros são convidados a:
a) Fazer uma proclamação no início do ano (1981) contendo as medidas
prioritárias a serem implantadas para a plena participação de pessoas
portadoras de deficiências na sociedade.
b) Estabelecer como medida preparatória, Comissões Nacionais ou Grupos
semelhantes para o Ano, cujo nível de representação deverá ser de tal
natureza que possa assegurar a implementação de suas metas, com a
finalidade de planejar, coordenar e executar, ou encorajar a execução de
atividades de apoio aos objetivos do Ano Internacional a nível local e nacional;
dentre os que participam de Comissões deverão estar incluídos representantes
de Ministérios, organizações governamentais e organizações não-
governamentais e grupos voluntários, inclusive aqueles que representam a
juventude e a comunidade econômica. A participação de representante de
organizações de ou para pessoas portadoras de deficiências em tais
Comissões deverá ser considerada como prioritária.
c) Preparar, ao final de 1981, planos nacionais para o prosseguimento dos
objetivos do Ano, tendo em vista a revisão e a avaliação de resultados do ano,
previstos para 1991.
d) Promover campanhas de divulgação para disseminar informações sobre
os objetivos do Ano Internacional e esclarecer o público, aumentando seu
conhecimento quanto aos direitos das pessoas deficientes de participar e de
construir para a vida econômica, social e política de sua sociedade, elevando
também a consciência da comunidade para o potencial das pessoas portadoras
de deficiências de assim o fazer.
e) Integrar os serviços destinados a pessoas portadoras de deficiências nos
programas de desenvolvimento geral da comunidade e adotar o conceito de
reabilitação integral em todos os serviços de saúde, de educação e de serviços
sociais.
f) Treinar pessoal profissional e técnico nos números e nos níveis que
garantam a implementação de programas nacionais relacionados a todos os
aspectos da reabilitação integral, através, por exemplo, da inclusão no currículo
das escolas, universidades e outras instituições educacionais, do conceito de
reabilitação integral.
g) Prestar atenção especial à coordenação e fornecimento de serviços
governamentais no que diz respeito a pessoas portadoras de deficiências,
particularmente nas áreas de prevenção, cuidados de saúde, educação,
habilitação e reabilitação social e profissional.
h) Estabelecer mecanismos apropriados governamentais para coordenação
de toda a política relativa às pessoas portadoras de deficiências,
particularmente nas áreas de prevenção, de cuidados com a saúde, de
educação, de habilitação e de reabilitação social e profissional.
i) Rever a legislação existente para eliminar possíveis práticas
discriminatórias com relação à educação e ao emprego de pessoas deficientes.
k) Tornar o planejamento para desenvolvimento e programação de
prevenção e serviços de reabilitação uma parte integrante no processo de
planejamento nacional.
l) Concretizar programas existentes relativos a medidas profiláticas de
moléstias, como importante passo na prevenção de deficiências.
m) Desenvolver todo o esforço para analisar com seriedade a incidência de
deficiências, por exemplo, por pesquisas preliminares em residências, a fim de
capacitar as organizações que determinam a política de atuação a conhecer a
natureza e a extensão das necessidades que os serviços devem atender. Os
órgãos de planejamento econômico e social deverão estar envolvidos num
nível mais elevado em questões relacionadas a deficiências, prestação de
serviços de reabilitação, e a estimulação do treinamento de especialistas de
planejamento neste campo.
m) Rever seus serviços e benefícios para assegurar que ajudem e
encorajem as pessoas portadoras de deficiências a permanecer e/ou a tornar-
se uma parte integrante da sociedade onde vivem, em vez de provocar
segregação e isolamento.
n) Quando do estabelecimento de política para as pessoas portadoras de
deficiências, dar ênfase ao desenvolvimento de suas habilidades e promover
informação para o deficiente a respeito de serviços e benefícios que estão ao
seu dispor.
o) Iniciar investigações quanto a restrições discriminatórias que limitam a
liberdade da pessoa deficiente em participar plenamente da sociedade, e tomar
as medidas que forem necessárias para remediar a situação.
p) Promover condições adequadas, inclusive acesso sem obstáculos a
instalações, para a plena participação de pessoas portadoras de problemas
físicos em educação, trabalho, esportes e outras formas de recreação.
q) Manter-se alerta para a necessidade de introduzir legislação que assegure
que todos os edifícios novos e edifícios nos quais adaptações de grande monta
estejam sendo iniciadas, garantam acesso pleno para pessoas com deficiência,
e reconhecer formalmente que pessoas deficientes tenham o mesmo direito de
acesso a todos os prédios públicos e sociais das demais pessoas. Isso deveria
incluir também medidas para criar e aumentar o acesso à informação pública
para pessoas surdas e aquelas que têm deficiência auditiva e visual, através,
por exemplo, do aumento de literatura gravada em cassetes ou transcrição em
Braille e com a provisão de equipamentos auxiliares de audição em edifícios
públicos e serviços de intérpretes para surdos.
r) Com relação à habitação para as pessoas portadoras de deficiências,
evitar programas de reabilitação segregados que provocam um ambiente
semelhante ao da vida institucionalizada e, em países onde instituições estão
sendo reduzidas, transferir recursos de cuidados institucionais para cuidados
relativos à integração e assegurar apoio adequado para pessoas portadoras de
deficiências, em casa e junto à família.
s) Rever e quando necessário revitalizar, programas destinados a prevenir a
ocorrência de deficiências.
t) Promover a saúde no contexto de "cuidados básicos com saúde" para a
prevenção de deficiências, particularmente aquelas que são de origem pré-
natal e natal, ou que ocorrem na primeira infância, pela adoção de atividades
destinadas a melhorar os programas de reabilitação, nutrição, serviços de
saúde maternal e infantil, assistência adequada durante a gestação e durante o
parto, controle da doença microbacteriana e o controle de doenças crônicas,
tanto transmissíveis como não-transmissíveis.
u) Dar ênfase às normas de segurança no trabalho como medida preventiva,
e adaptar sua aplicação à pessoa portadora de deficiência no trabalho às
necessidades individuais.
v) Tornar o ambiente de trabalho acessível à pessoa com mobilidade restrita,
àquelas com problema de orientação e àquelas com problemas alérgicos.
Atenção devida deverá também ser dada a fatores psicológicos no ambiente de
trabalho e à influência das condições de trabalho sobre a saúde mental da
pessoa.
w) Possibilitar a isenção de taxas alfandegárias e de taxas sobre
equipamentos, maquinaria, adaptação e outros materiais usados por e para
benefício de pessoas deficientes, devido às suas incapacidades, e prover
também a necessária licença de importação e alocações de câmbio para
moeda estrangeira, quando aplicáveis.
x) Assegurar, conforme for recomendável, que organizações não-
governamentais estejam adequadamente envolvidas na preparação e
implantação de programas nacionais no campo de serviços sociais para
pessoas deficientes.
y) Dar alta prioridade às atividades iniciadas por pessoas deficientes e
encorajar o estabelecimento de organizações de pessoas deficientes.
z) Indicar, se possível, representantes de pessoas com deficiência, para
delegações que participem de encontros internacionais, particularmente
quando os assuntos se relacionem a elas e ao Ano Internacional.
aa) Proclamar o Dia Nacional das Pessoas Deficientes.”
(Extraído do Documento n°. A/34/158, de 13 de junho de 1979 "International
Year for Disabled Persons - Report of the Secretary-General" - United Nations,
New York).
- *O Ano Internacional das Pessoas Deficientes a nível de Brasil*
Foi através de uma carta datada de 25 de outubro de 1979 que Esko
Kosunen, Oficial Encarregado do Ano Internacional para as Pessoas
Deficientes e Chefe da Unidade de Reabilitação da ONU, remeteu-nos longos
comentários e material farto e relevante quanto a 1981, até então conhecido
como o Ano Internacional para as Pessoas Deficientes. Trabalháramos um ano
e meio juntos na ONU, em New York, no final de nosso período de cinco anos
de atuação na Organização, e sabíamos muito bem que a preocupação dele
era que alguém, fora de âmbito oficial federal, pudesse dar um primeiro impulso
a nível de Brasil, para que o evento internacional surtisse efeitos em nosso
meio. Por remessa postal separada, enviou-nos também o seguinte material
inicial, depois complementado por outros mais atualizados:
- Resolução da Assembléia Geral da ONU, n° 31/123, sobre o Ano
Internacional para as Pessoas Deficientes, datada de 2 de fevereiro de 1977;
- Relatório do Secretário-Geral da ONU, datado de 11 de novembro de 1977,
sobre o Ano Internacional;
- Resolução da Assembléia Geral da ONU, n°. 32/133, de 28 de fevereiro de
1978, também sobre o Ano Internacional;
- Relatório evolutivo do Secretário-Geral da ONU sobre Prevenção de
Deficiências e Reabilitação do Deficiente, datado de 19 de fevereiro de 1978;
- Relatório do Secretário-Geral da ONU juntando a minuta do Programa
Internacional para os anos de 1980/81, para consideração da Assembléia
Geral;
- Anexo II do Relatório sobre a Situação Social do Mundo, contendo medidas
relacionadas à Implementação dos Direitos das Pessoas Deficientes;
- Circular n°. 3/79, de comunicação sobre o ano Internacional das Pessoas
Deficientes;
- Relatório do Secretário-Geral da ONU à Assembléia Geral, adotando o
relatório da Comissão Consultiva, e apresentando-o na íntegra para aprovação
contendo todas as proposições sobre o Ano Internacional das Pessoas
Deficientes (transcritas em parte neste capítulo).
De posse dessa documentação, tomamos providências pessoais para
tradução dos trechos mais relevantes para o português, com o intuito de iniciar
uma série de discussões sobre seu conteúdo, e de chegar ao final do ano de
1980 com algumas idéias bem estabelecidas.
A primeira oportunidade surgiu em maio de 1980 quando um incipiente
movimento de São Paulo, até então conhecido como "Coalizão de Pessoas
Deficientes" e hoje conhecido como "Movimento pelos Direitos das Pessoas
Deficientes" reuniu-se numa manhã de sábado e discutiu as "proposições a
nível nacional", contidas no documento. Os quase trinta participantes da
reunião distribuíram-se em quatro grupos de trabalho e discutiram as vinte e
sete proposições, elaborando propostas novas para aplicação local daquilo
que, no documento original, parecia mais uma colcha de retalhos de idéias.
A segunda oportunidade para estudar essas proposições surgiu durante o
Segundo Congresso Brasileiro de Reintegração Social, organizado em São
Paulo, no mês de julho de 1980. O tema "Ano Internacional das Pessoas
Deficientes" foi incluído no programa para debates durante uma tarde toda de
trabalhos. O congresso aprovou uma série de conclusões dos grupos de
trabalho, bem mais profundas e mais incisivas do que as primeiras, devido à
heterogeneidade dos grupos, à diversidade de sua composição, ao acervo de
experiências de seus debatedores e também devido ao fato de estar contando
com os resultados das primeiras discussões durante o mês de maio, o que
muito ajudou os membros integrantes dos grupos de trabalho.
Também no início do mês de julho de 1980 surgiu em São Paulo um grupo
conhecido como "de apoio e estímulo ao Ano Internacional das Pessoas
Deficientes". Logo após sua primeira reunião, convocada por Dona Dorina de
Gouvêa Nowill, foi tomada a deliberação de remeter ao Senhor Presidente da
República ofício co-assinado por entidades participantes, para que ele desse
ao Ano Internacional o nome correto, ao assinar o decreto criando a Comissão
Nacional ao mesmo destinada. Ouvia-se falar de traduções inaceitáveis, tais
como "Ano Internacional do Incapacitado", "Ano Internacional do Excepcional"
e outros nomes que estavam sendo fortemente tentados. A mensagem,
juntamente com outras de locais e iniciativas diferentes, parece que chegou ao
destino, pois em 16 de julho de 1980 o Presidente da República assinava
decreto criando a Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes, vinculando-a ao Ministério da Educação e Cultura. Seus membros
foram nomeados por Portarias do Senhor Ministro da Educação em 28 de
agosto e 17 de setembro de 1980.
- *A Comissão do Estado de São Paulo e seu relatório*
A Comissão Estadual de São Paulo foi criada apenas no dia 5 de março de
1981, uma vez que a Secretaria de Estado da Casa Civil do Governador ficara
aguardando orientações da Comissão Nacional até então. Foi criada com o
nome de Comissão Estadual de Apoio e Estimulo ao Desenvolvimento do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes, por meio de um decreto datado de 5 de
março de 1981 e teve em sua presidência o próprio Secretário-Chefe da Casa
Civil do Governador. Recebeu o prazo de sessenta dias para apresentar seu
relatório final. Prazo cumprido, o relatório foi impresso e amplamente
distribuído para informação de todos os interessados no assunto, além de
servir de base para discussão de seus temas nos mais variados níveis.
Trata-se de um documento "que representa um consenso de opiniões de
todos os seus componentes, analisa em cores adequadas a extensão dos
problemas das deficiências entre nós e apresenta sugestões de naturezas
várias, não só para 1981, mas para toda a Década de Oitenta, conforme
indicado em suas considerações", segundo nota introdutória do documento em
questão.
- *As propostas para ação em São Paulo*
A Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano
Internacional das Pessoas Deficientes inseriu em seu relatório uma série de
propostas para ação, a curto, médio e longo prazos. A primeira dessas
proposições dirige-se ao Governo Estadual e a todos os Governos Municipais
do Estado, indicando pontos básicos para o estabelecimento de uma política de
ação para toda a Década de Oitenta. Assim, o relatório sugere medidas quanto
à prevenção de males incapacitantes e à redução das conseqüências das
deficiências já instaladas; sistemas municipais simples para a detecção
precoce das deficiências, com o propósito de atender, tratar e reabilitar,
levantando dados e adequando programas e ações futuras; acesso de pessoas
deficientes de todas as idades à educação e à profissionalização; pesquisas
das mais variadas naturezas nessas áreas; revisão de normas e padrões de
funcionamento das entidades de atendimento; revisão tanto do Código de
Obras quanto daquele relacionado a Normas Técnicas, e muitos outros pontos
de relevância.
Nesse importante documento a Comissão Estadual defende também a
criação de um órgão de coordenação, a fim de verificar que a política de ação
seja efetivada, assumindo a responsabilidade de planejar, incrementar e
coordenar as atividades de atendimento às pessoas deficientes e seus
familiares. Segundo os postulados da Comissão Estadual, esse órgão deverá
ser de caráter inter-secretarial, contando com representação não só das
Secretarias de Estado envolvidas, mas também de entidades de/para pessoas
deficientes.
Indica também a Comissão Estadual a necessidade da criação de um Fundo
Especial de desenvolvimento, com dotação orçamentária própria para subsidiar
programas reabilitacionais. Esse Fundo, considerado um programa
coordenado, só poderá ser gerido pelo Órgão de Coordenação já indicado.
Logo a seguir a Comissão Estadual entra em pormenores quanto a outros
objetivos, tais como Educação, Prevenção, Reabilitação Global, Trabalho,
Conscientização, Acesso e Eliminação de Barreiras, Materiais e Equipamentos,
e Legislação.
Documento inédito em termos de Brasil, o relatório da Comissão Estadual de
São Paulo foi amplamente distribuído para todas as Comissões
Estaduais/Territoriais ainda em setembro de 1981, com o intuito de dar
subsídios e de ajudar na discussão dos problemas.
- *As realizações da Secretaria Executiva da Comissão Estadual*
A Comissão Estadual para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes que
foi organizada em São Paulo entregou seu relatório dentro do prazo
estabelecido, e no ato de sua entrega ela encerrou as suas atividades. Decidiu,
entretanto, seu Presidente, manter em atuação sua Secretaria Executiva,
cabendo a ela prosseguir os entendimentos até então mantidos e assumir a
responsabilidade de continuar todos os esforços viáveis para o objetivo
fundamental de levar a uma conscientização mais completa possível quanto à
problemática das pessoas deficientes.
Do mês de julho até setembro foram distribuídas mais de quinze mil cópias
do Relatório da Comissão Estadual, tendo cada Comissão Estadual ou
Territorial recebido cinqüenta cópias para seu uso e como subsídio da
Comissão Paulista aos esforços que estavam sendo feitos a nível de cada
Unidade Federada.
Além disso, dentro do mesmo período de tempo, foram remetidas cópias
para vários organismos internacionais, tais como a ONU e seu escritório central
para o A.I.P.D., em Viena, a Organização Mundial de Saúde, a Organização
Internacional do Trabalho, a Organização Pan-Americana de Saúde, a
UNESCO, o UNICEF, a Rehabilitation International, o Conselho Mundial para o
Bem-Estar dos Cegos, a Federação Mundial dos Veteranos e diversas outras
organizações não-governamentais de caráter internacional, envolvidas no
assunto.
Reações as mais diversas ocorreram a esse documento básico, trabalhado
por São Paulo. A Organização das Nações Unidas solicitou cópias adicionais,
pois pretendia estudar seu conteúdo com cuidado. A Rehabilitation
International, por meio de uma correspondência atenciosa, chegou a se
expressar da seguinte forma, por meio de seu Secretário-Geral, Norman Acton:
"Prezado Otto,
Com a maior sinceridade quero que me desculpe porque até agora não me
foi possível responder pessoalmente à sua carta de 11 de agosto e todas as
informações que mandou com ela. Este foi um exemplo extremamente
interessante dos tipos de coisas positivas que aconteceram durante o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes, e eu sei que você deve ter uma
sensação de grande satisfação porque a atuação de vocês, em São Paulo, foi
muito maior e mais efetiva do que foi o caso ao redor da maior parte do
mundo".
- *Dois Encontros Regionais discutem as propostas da Comissão Estadual*
O Relatório da Comissão Estadual foi discutido em dois Encontros Regionais
organizados especificamente para esse fim:
- I Seminário Regional de Habilitação e Reabilitação das Pessoas
Deficientes, organizado pela Comissão Municipal de Ourinhos com a estreita
colaboração da Comissão Estadual;
- Encontro Regional sobre Integração das Pessoas Deficientes, organizado
pela Comissão Municipal de Bauru em colaboração com a Comissão Estadual.
De ambos os Encontros conclusões interessantes foram encaminhadas à
Secretaria Executiva da Comissão Estadual, contendo não só uma análise do
relatório em discussão, mas também proposições para sua implementação a
nível local e/ou regional.
- *Conscientização: a meta para 1981*
Mantendo-se na linha de garantir como prioridade para o Ano Internacional
das Pessoas Deficientes o objetivo de conscientização, a Secretaria Executiva
traduziu e conseguiu que fossem impressas 50.000 cópias da "Carta para a
Década de Oitenta - Declaração", das quais 40.000 foram distribuídas até
dezembro de 1981, tanto para Comissões Estaduais e Territoriais, à base de
500 cópias cada, como também para entidades que congregam pessoas
deficientes, seminários, palestras, faculdades e outros pontos. Um volume de
500 cópias foi também remetido para o Secretariado Nacional de Reabilitação
de Portugal.
A Secretaria Executiva da Comissão Estadual também coordenou a
gravação de quinze mesas redondas na Rádio Cultura de São Paulo, para
transmissão em ondas curtas e longas, com a ampla participação de pessoas
deficientes discutindo informalmente temas de alta relevância, como a
necessidade de conscientização, a realidade de trabalho, a vida afetiva, as
barreiras atitudinais e arquitetônicas e vários outros. Recebido o conjunto de
gravações, providenciou também a Secretaria Executiva sua transcrição para o
papel, com o intuito de futuramente preparar documento para impressão e
distribuição. Esses conjuntos de gravações têm sido usados em Centros de
Reabilitação e têm sido muito importantes para a discussão dos problemas de
pessoas deficientes nos mais variados ambientes.
Além disso, manteve também a Secretaria Executiva compromissos de
palestras e conferências sobre o Ano Internacional em vários pontos do
território nacional.
Atuação das mais marcantes, entretanto, foi a pormenorização do projeto de
órgão de coordenação para sua apresentação aos órgãos competentes, e o
trabalho de elaboração dos projetos de reabilitação a nível comunitário, com o
uso de tecnologia apropriada, e de cooperação e assistência técnica em
reabilitação. Ambos os projetos foram preparados para serem colocados em
prática tão logo o governo paulista se definisse quanto ao órgão coordenador,
sem o qual pouca coisa poderia ser feita ordenadamente.
Assim, muito embora sem qualquer divulgação externa, a Secretaria
Executiva da Comissão Estadual do A.I.P.D. em São Paulo demonstrou que
muito pode ser feito sem alarde, com o lançamento de sementes que são de
fundamental importância no futuro desenvolvimento de programas de
reabilitação no Brasil.
- *O apagar das luzes para o Ano Internacional*
Embora alguns artigos de jornal ou revista procurassem martelar uma certa
sensação de vazio quanto a realizações concretas do Ano Internacional das
Pessoas Deficientes, o Encontro Nacional das Comissões Estaduais para o
A.I.P.D. parece que demonstrou com clareza que ela não se justifica, a menos
que se procurasse chegar apenas a realizações concretas.
Na verdade, ninguém em sã consciência poderia esperar que séculos -
milênios, para ser mais preciso - de esquecimentos e de desvalorização
pudessem ser suplantados em um ano apenas, com realizações marcantes,
mudanças de atitudes, elevação de prioridades governamentais, construção de
centros, adaptação de meios de transporte, rebaixamentos de guias e
eliminação de barreiras.
Poucas foram as realizações concretas. A totalidade das Comissões
Estaduais e da própria Comissão Nacional para o A.I.P.D. tiveram o bom senso
de trabalhar com o objetivo de "conscientizar" o mais possível a sociedade
quanto ao problema e quanto à necessidade de todos nos voltarmos para
essas pessoas marginalizadas que aspiram uma participação adequada, em
condições de igualdade de direitos e deveres.
O Encontro Nacional realizado na cidade de Contagem - ao lado de Belo
Horizonte - avaliou as atividades desenvolvidas e aprovou algumas
recomendações fundamentais para toda a Década de Oitenta, relacionadas
que devem estar a projetos a curto, médio e longo prazos.
E finalizamos este trabalho com sua transcrição, esperando que não
tenhamos todos nós passado por um Ano Internacional das Pessoas
Deficientes sem dele termos saído convencidos de que precisamos interiorizar
a extensão e a gravidade desses problemas todos que afligem gente
semelhante a cada um de nós, e que precisam de uma solução agora, hoje - e
não no século XXI, quando o nosso País estiver melhor desenvolvido e houver
recursos específicos para atender a todos os males.
- *Recomendações finais de todas as Comissões: um desafio para o futuro*
"Irmanados na luta em prol da melhoria de condições de vida das pessoas
deficientes, a Comissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes, os representantes das Comissões Estaduais/Territoriais e do
Distrito Federal, de Entidades não-governamentais de assistência às pessoas
deficientes e de organismos que congregam essas pessoas, reuniram-se em
Contagem, Minas Gerais, de 23 a 26 de março de 1982.
Este Encontro chegou a algumas conclusões fundamentais para o
prosseguimento dos trabalhos ao longo da década, a partir das seguintes
considerações:
1) As resoluções aprovadas pela Assembléia Geral da ONU, concretizadas
na Carta para os Anos Oitenta, enfatizam sobretudo o esforço conjunto para a
consecução dos ideais de Igualdade e Participação Plena;
2) Há necessidade de mudança de atitudes visando a eliminar os
estereótipos e preconceitos que impedem a consecução dos ideais acima
mencionados, o que foi amplamente evidenciado neste Encontro;
3) O trabalho, a educação e a saúde são direitos inalienáveis de todo ser
humano e que tantas vezes são negados às pessoas portadoras de
deficiências, pela insistência de muitos em conceitos obsoletos, ultrapassados
e claramente preconceituosos;
4) Torna-se premente a cooperação técnica internacional no sentido de
intensificar e divulgar estudos e pesquisas nas diferentes áreas do
conhecimento humano com o intuito de prevenir deficiências ou reabilitar
pessoas tornadas deficientes;
5) Os ideais visados pela ONU realmente se efetivarão quando todo aquele
que sofrer de limitações de ordem física, sensorial e mental, tiver acesso, em
sua conotação mais ampla, a um ambiente livre de barreiras de qualquer
natureza;
6) Os legisladores devem estar atentos para que as pessoas ditas
deficientes usufruam dos mesmos direitos assegurados aos demais cidadãos;
7) O A.I.P.D. não teve a finalidade e nem a pretensão de solucionar a
problemática em que se debate a pessoa dita deficiente, mas objetivou
sobretudo ser um grito de alerta para a consciência de todos nós.
Com base nas premissas acima enunciadas, recomenda-se:
1. A utilização sistemática e continua dos veículos de comunicação de
massa para disseminar e realizar o intercâmbio de idéias e temas relativos as
pessoas ditas deficientes, promovendo, assim, tanto uma sensibilização cada
vez mais crescente de todas as camadas da população como uma mobilização
das pessoas ditas deficientes e suas famílias;
2. A intensificação das medidas de imunização, diagnóstico e tratamento
precoce, de atendimento materno-infantil, bem como programas de prevenção
de acidentes e de proteção ao meio-ambiente;
3. A implantação gradativa, na medida do possível, de Centros de
Reabilitação, para aprofundamento e intercâmbio de tecnologia específica e
treinamento de pessoal, ao lado de Centros Regionais de Reabilitação e
dinamização de programas de reabilitação a nível comunitário com utilização
de tecnologia simplificada e aproveitamento de recursos locais;
4. A crescente ampliação do atendimento em educação especial a crianças,
adolescentes e adultos, portadores de qualquer tipo de deficiência, bem como
um maior incremento à capacitação de recursos humanos;
5. O desenvolvimento de esforços para a adequação dos cursos
profissionalizantes existentes e a criação de outros, ao mesmo tempo em que
se intensifiquem não só a conscientização do empresariado como também
trabalhos integrados para o encaminhamento a empregos condizentes, as
pessoas portadoras dos vários tipos de deficiências;
6. Maior estímulo a projetos de pesquisa e construção e medidas práticas
visando a melhoria de acesso das pessoas ditas deficientes a edifícios públicos
e sistemas de transporte;
7. Gestão junto ao poder legislativo para a elaboração de novos projetos de
lei visando eliminar a discriminação de que ainda são vítimas as pessoas ditas
deficientes;
Para que essas recomendações se efetivem ao longo da década, constatou-
se, neste Encontro, a necessidade da criação de um Órgão Nacional para dar
continuidade à coordenação desenvolvida pela Comissão Nacional durante o
A.I.P.D. Esta medida virá responder ao anseio das Unidades federadas que,
através de órgãos já criados para os fins propostos ou em vias de criação,
prosseguirem, a nível estadual, os esforços em prol das pessoas ditas
deficientes, iniciados durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes que
ora se encerra."
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SEGUNDA PARTE
A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE - O
DESAFIO DE NOSSOS DIAS
INTRODUÇÃO
Aqueles que se defrontaram com a problemática das pessoas portadoras de
algum tipo de deficiências pela primeira vez durante o ano de 1981 - por ter
sido o Ano Internacional das Pessoas Deficientes – talvez não tenham tido
oportunidade alguma de parar um pouco em sua própria vida e pensar sobre o
assunto. Mas todos aqueles que têm algum tipo de problema limitador que
pode levar em muitos casos à deficiência, seus familiares e todos os que de
alguma forma trabalham ou se dedicam ao seu atendimento e à sua
assistência sabem muito bem que tem havido uma inacreditável lentidão da
sociedade e do governo em aceitar as reais dimensões do complexo de
situações enfeixadas nas deficiências físicas, sensoriais, orgânicas e mentais.
Podemos imaginar que essa atitude quase de imobilidade prevaleça devido
à inexistência de dados entre nós. Nossos recenseamentos nacionais não têm
inserido estudos dessa natureza em seus questionários. Diga-se de passagem
que desde o ano de 1959, quando o General Lott ocupava provisoriamente a
Presidência do Brasil, gestões tem sido feitas para tal fim, mas sem o menor
vislumbre de sucesso.
De outra parte, estimativas mundiais só começaram a ser profusamente
divulgadas durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que foi
expressamente criado pela Organização das Nações Unidas para alertar o
mundo todo a respeito da existência de um certo percentual de pessoas
marginalizadas por problemas físicos ou sensoriais, seus direitos, deveres e
aspirações.
Mas não é somente por falta de dados que a sociedade em geral e nossos
governantes tem se omitido. Existe uma certa dose oculta de rejeição,
consciente ou não, que é muito ponderável nesse panorama todo que envolve
pessoas com deficiências no mundo de hoje.
Face a esses fatores é muito importante chamarmos a atenção para o fato
de que, exatamente por haver desconhecimento quanto às verdadeiras
dimensões dos problemas relacionados a deficiências entre nós, e por ocorrer
uma evidente rejeição das pessoas que são diferentes devido a uma anomalia
física ou mental, a maneira como o Brasil está encaminhando programas e
atividades voltadas para pessoas deficientes - salvo raras e mui distintas
exceções - tem sido na melhor das hipóteses limitada. Na pior, poderá ser
inadequada, talvez inócua, irrelevante e mal fundamentada, quando não
contra-producente.
As conseqüências da falta de conhecimento e de convicção quanto à
gravidade da situação e à dimensão do problema, mesmo por pessoas
altamente envolvidas, levará fatalmente nossos planejadores de governo,
nossas organizações privadas, nossas repartições públicas e nossa população
em geral a não dar atenção própria, a eliminar possibilidades de
estabelecimento de qualquer nível de prioridade, a preterir a adequada
assistência a pessoas deficientes por outros programas e a não apoiar
qualquer tipo de ênfase nesse campo.
Acresce a tudo isso que, por estarem mal informados ou desinformados por
completo sobre a verdadeira natureza do problema, todos aqueles que não
estão diretamente envolvidos tentam ignorá-lo, evitá-lo ou simplesmente
pretender que ele não existe. Quase toda a responsabilidade pelo atendimento
dos casos concretos tem ficado nas mãos de algumas entidades privadas, bem
ou mal preparadas para a tarefa, ou de órgãos governamentais, lamentando-se
de quando em quando, ao se deparar com situações mais chocantes, a
inviabilidade de melhor ajudar a família que literalmente vive a dificuldade
permanente.
Temos visto e ouvido muito em nosso meio que as famílias "atingidas"
acabam sentindo o problema como exclusivamente seu.
Muitas delas procuram esconder seu membro deficiente, a fim de evitar
também situações sociais embaraçosas, tais como contínuas interpretações
quanto à natureza e gravidade do mal, esclarecimentos quanto a providências
já tomadas, elucidações quanto a este ou àquele médico especializado que
resolveu casos semelhantes e tantas mais.
Os documentos das organizações internacionais mais categorizadas
indicam-nos que pelo menos 10%, da população de qualquer país do mundo
em tempos de paz sofrem as conseqüências de algum tipo de problema físico
ou mental ou da combinação de males, de tal maneira que precisam de
serviços especiais de alguma natureza. No entanto, se fizermos uma superficial
análise da distribuição geográfica das populações no mundo e dos recursos
disponíveis para ajudar as pessoas portadoras de deficiências, verificaremos
que a maioria delas, por estarem localizadas em países sub-desenvolvidos,
não teve, não tem e não terá qualquer oportunidade de acesso aos mesmos.
A Rehabilitation International, em sua farta documentação para o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes e também para a Década de Oitenta,
afirma categoricamente que as modernas e por vezes palacianas instalações
que costumamos chamar de "centros de reabilitação" ficam tão distanciadas de
suas vidas quanto um carro de luxo de último tipo. E um dos motivos é que a
maioria das deficiências ocorre nas áreas mais pobres com muita probabilidade
de complicações adicionais devido à falta de assistência. Nessas realidades o
que conta é a sobrevivência, o pão, o teto e não as aspirações "mais altas".
Como pensar em reabilitação quando não há dinheiro para a alimentação ou
vestuário?
As dimensões verdadeiras e realistas das deficiências no Brasil não podem
ser estabelecidas apenas por números de pessoas atingidas, conforme
indicamos anteriormente.
O claro estabelecimento da verdadeira extensão desses problemas deverá
levar em conta os efeitos das deficiências sobre a vida das pessoas, tanto a
vida daqueles que são diretamente atingidos, quanto a de alguns dos membros
de seu grupo familiar, do povo, da comunidade e da sociedade em geral.
Por estudos realizados em países mais avançados que o nosso, sabemos
que por causa da deficiência física ou mental, 1/4 da população de uma nação
poderá estar, de uma maneira ou de outra, limitada ou bloqueada quanto à
plena utilização de suas capacidades e de seu potencial.
É evidente que existe o reverso da situação. A sociedade, a comunidade, os
círculos de vizinhança ou de amizade, o grupo de referência familiar, têm uma
reconhecida influência no eventual agravamento da situação, ou seja, na
transformação daquilo que é um "impedimento" físico, sensorial, orgânico ou
mental numa "deficiência". E isso ocorre devido a atitudes, receios, estigmas,
comportamentos, preconceitos e também à discriminação, que são mantidos
consciente ou inconscientemente para com pessoas que apresentam essas
limitações. As dificuldades que cada um de nós individualmente cria para a sua
educação, participação na vida social ou colocação em empregos, adicionais
que sempre são às barreiras de acesso a edifícios, ao transporte, aos recursos
relacionados à recreação e ao lazer, geram problemas que tornam sua solução
cada vez mais difícil.
Ressaltemos, a bem da verdade, que não são poucos os segmentos da
sociedade diretamente atingidos por deficiências físicas ou mentais. Adicione-
se que há outros que são responsáveis pelas conseqüências negativas das
limitações acima referidas.
Uma redução objetiva dessas conseqüências poderá ser garantida por uma
ação conjunta, dirigida a cada uma de suas origens. Como exemplo vale
lembrar um maior provimento de serviços adequados de reabilitação para
pessoas deficientes, incluindo nele serviços com tecnologia mais simplificada
ou serviços baseados em recursos já existentes na comunidade.
É fundamental que tenhamos programas de reabilitação mais dinâmicos,
cujos profissionais não trabalhem apenas no físico, mas também nas atitudes e
no comportamento das pessoas – tanto aquelas que são deficientes quanto as
que não são portadoras de deficiências – quer individualmente, quer em grupo.
Estaremos dessa forma dando àqueles que chamamos hoje, com uma certa
despreocupação e sem medir bem o significado da palavra, de “deficientes”,
oportunidades para superar o complexo de problemas que os afligem e passar
a ser muito mais “eficientes” na sociedade.
Analisarmos o quadro completo de evolução dessas situações no Brasil é
tarefa impossível nos dias de hoje. Um olhar para o futuro poderá nos sugerir
que o volume de problemas trazidos pelas deficiências continuará existindo e
estará sempre vinculado às tendências mais gerais de evolução social e
humana de nosso país.
Essas tendências nos dias que correm mostram-nos taxas assustadoras de
desemprego e num crescendo quase sem barreiras, o imenso acervo de
pessoas sobrevivendo em situações de sub-emprego, o que deixa –
aparentemente – as pessoas deficientes numa dificuldade ainda maior para
serem absorvidas pelo mercado aberto de trabalho.
Continua existindo a migração de pessoas provenientes de regiões mais
pobres para áreas mais promissoras, caindo quase sempre em favelas, em
cortiços que se encontram super-povoados, ou em outros tipos de habitações
infra-humanas. Boa porcentagem da população, em vez de estar trabalhando
em produção de alimentos, volta-se para ocupações não qualificadas do meio
urbano, tangida pela ambição de obter melhores condições de vida. A tudo isso
acrescentemos o imenso abismo, em continua expansão, que existe entre a
nossa população que possui bens daquela população que não os possui.
Procuremos, deste ponto em diante, analisar a situação das pessoas
chamadas deficientes, dentro do final do século XX e dentro de nossa realidade
brasileira. Tentaremos iniciar discussões quanto aos motivos que poderão levar
pessoas portadoras de deficiências a uma situação de marginalidade.
Elaboraremos também um pouco quanto ao verdadeiro significado e às
implicações daquilo que é verbalizado muito facilmente como "integração social
das pessoas deficientes".
O que é que significam essas palavras bonitas em termos práticos?
Como é que podemos traduzi-las para o nosso dia-a-dia?
Analisaremos a importância do ajustamento do indivíduo portador de
deficiência como pessoa, pois é a adequação pessoal o objetivo último do
processo reabilitacional. É por meio dela que a pessoa poderá ter condições
suficientes para sair de uma situação de dependência e marginalidade para
uma outra de auto-suficiência na sociedade em que vive.
Focalizaremos também um pouco mais pormenorizadamente os
componentes do ajustamento à vida de trabalho, ou seja, a adequação da
pessoa portadora de deficiência a uma situação concreta de produção de bens
e serviços.
Por não podermos de forma alguma desconsiderar a importância de uma
consagrada ação que, sem a menor sombra de dúvida, desde os seus
primórdios se caracterizou como um trabalho multi-profissional que extrapola
em muito às atuações de um só profissional, teremos um capítulo especial de
discussão quanto às características e as dificuldades do trabalho de equipe nos
programas reabilitacionais de hoje. E finalmente iniciaremos pontos de
discussão com o objetivo de dar uma visão de como poderá ser viável a
avaliação e o controle das atividades de nossos centros e de nossos
programas de reabilitação, considerados tão dispendiosos para nossa
sociedade, tão aparentemente fora de nossa realidade, mas tão fundamentais
para aqueles que precisam de serviços especiais para terem condições
mínimas a fim de tentar a grande aventura da integração completa na
sociedade, pois têm o direito de desfrutar de tudo aquilo que está implícito nos
temas básicos do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, ou seja,
"participação plena e igualdade".
CAPÍTULO PRIMEIRO
AS CAUSAS DA MARGINALIDADE DAS PESSOAS DEFICIENTES
A ignorada epopéia de parcelas da população mundial, através dos muitos
séculos da História do Homem sobre a Terra, mostra-nos com muita clareza
que a sociedade dos homens, em todas as partes do mundo e em todas as
épocas, sem qualquer exceção praticamente, colocou e continuará colocando
por muito tempo mais à margem de sua correnteza principal certos tipos de
indivíduos que dela poderiam fazer parte.
A nossa sociedade, em seus múltiplos segmentos, não se apresenta como
exceção, apesar de ser notória a pretensão que tem de muito aberta à
integração de todos, sem adotar qualquer medida preconceituosa. A verdade
dos fatos é outra, porém: as atitudes discriminatórias existem entre nós e com
elas suas conseqüências mais lamentáveis, que são as situações reais de
marginalidade social.
Na tentativa de analisar com cuidado este tema, uma das primeiras e
cruciais dúvidas aflora: quais os motivos que levam as pessoas ou os grupos a
tomar uma atitude discriminatória e muitas vezes repleta de idéias pré-
concebidas, em detrimento de outros indivíduos?
Que tipo de raciocínio ocorre para alguém, sem muito pensar, simplesmente
eliminar de sua vida e de seu meio uma pessoa por apresentar um tipo
qualquer de anomalia?
Embora muitos pontos possam ser colocados à consideração do estudioso
do assunto, um dos mais sérios e significativos mostra-nos que a sociedade
marginaliza - ou seja, retira da correnteza principal - alguns indivíduos devido
a motivos vários e definidos, mas cumpre que coloquemos em relevo aqueles
que se relacionam à apresentação visual, ou aqueles que estão diretamente
relacionados ao comportamento face ao grupo. Com isso ela demonstra que
existem alguns padrões de aceitabilidade.
Essa verdade é aplicável a várias situações, mas de um modo todo especial
ela é quase universal com relação às características físicas e/ou mentais dos
indivíduos.
Preconceitos e medidas discriminatórias existem concretamente contra
quase todos os tipos de "anormalidades" ou de "anomalias", muito embora
essas atitudes apresentem tonalidades de ênfase diferente, pois "a maioria das
pessoas não tem contra os deficientes a mesma espécie de preconceitos, que
alimenta contra certos grupos religiosos, raciais ou desfavorecidos" ("O
Indivíduo Excepcional", de Telford e Sawrey).
Para todo aquele que procura melhor compreender as origens deste
problema de ponderável complexidade, será de grande valia conscientizar-se
das características aproximadas da normalidade, em seu sentido sociológico,
procurando especular um pouco quanto às características que o ser humano
precisa apresentar para ser considerado como "normal", em nossos grupos
sociais. É importante compreender com alguma segurança quais os fatores que
determinam ser o indivíduo assimilável, ou então, pouco aceitável.
Essa preocupação levar-nos-á, sem dúvida, a lembrar primeiramente que
não existe um indivíduo sequer que seja idêntico a outro. Na verdade, ser
diferente é bem próprio da natureza humana e as diferenças são de caráter
universal. No entanto, há vagos limites de tolerância para essas diferenças
individuais entre os homens, a tal ponto e de tal maneira que o grupo social
poderá chegar mesmo a bloquear aquele seu membro "excessivamente
diferente", colocando-o de lado.
Para todos os efeitos, "ser diferente" é ser "colocado de lado", o que em
linguagem de relações inter-pessoais, pode significar rejeição.
... "Muitos escritores têm também atribuído a rejeição de uma pessoa
deficiente ao fato dela ser diferente. O "ninguém quer ser diferente" é aceito
como uma lei óbvia do homem" ("Physical Disability - A Psychological
Approach" de B. Wright).
Tudo aquilo que é muito diferente, que não é nada igual ao costumeiro, que
foge à normalidade, que é raro, chama a atenção. A diferença e a
"excepcionalidade" podem existir tanto para melhor quanto para pior. Quando
elas ocorrem para o lado positivo, como nos casos de beleza excepcional, da
forma física perfeita, da inteligência fora do comum, elas causam deleite
àqueles que com elas se defrontam.
É a excepcionalidade positiva que estimula o homem a se aproximar ou a
almejar o ideal perfeito, sempre sonhado e nunca atingido.
No entanto, todos sabemos muito bem que há exceções que nos levam para
o lado negativo e são essas as que mais causam dificuldades. Acontecimentos
excepcionais catastróficos, grandes desastres coletivos, guerras ou revoluções
como solução de disputas são acontecimentos que polarizam a atenção. Da
mesma forma chamam a atenção os comportamentos irracionais e os padrões
de desenvolvimento físico ou de aparência anormal do ser humano.
Essas anomalias ou exceções preocupam as pessoas atingidas, as famílias
envolvidas, as comunidades às quais pertencem, os poderes constituídos e a
própria estruturação da sociedade. E chamam a atenção porque, para a grande
maioria dos membros ativos ou passivos de nossa sociedade, num certo
sentido não só desagradam, como também ameaçam a tranqüilidade, o bem-
estar, o sentido de estética, a harmonia, a segurança pessoal e a familiar,
criando eventuais dificuldades para a posição social das pessoas afetadas,
além das respectivas famílias ou grupos de relacionamento, quando não da
sociedade maior.
Quando ocorrem catástrofes naturais ou situações anormais de caráter geral
a sociedade mobiliza-se, pois ela sabe muito bem que esses eventos ou
situações precisam ser contornados ou resolvidos - e mesmo eliminados -
sempre que possível com a colaboração dos mais diversos setores da
comunidade. Com essas providências ela se desenvolve cada vez mais e
procura garantir melhores condições de vida e maior índice de segurança para
o povo. As condições de divergência do usual atingem o homem como
indivíduo e como membro de um grupo. Nesses casos a sociedade mais
consciente, por meio de grupos os mais diversificados, procura também tomar
sua posição. Assim como no primeiro exemplo, neste também ela se sente
ameaçada.
Dependendo de valores culturais predominantes, suas necessidades globais,
sua composição, sua realidade política, seu grau e capacidade de
desenvolvimento, seu modo de ver o indivíduo, seu nível de conscientização, e
outros fatores, ela age através de atividades assistenciais que podem levar à
compreensão do problema, à prevenção de males, eventualmente ao controle
das pessoas afetadas por esses males e aos programas que levem à sua
reabilitação global. Com isso ela "extermina" o mal, "elimina" a
excepcionalidade, separa o contingente atingido, assiste-o financeiramente,
abriga-o ou segrega-o do restante da sociedade, ou parte para sua completa
integração em bases equânimes.
- *Normal ou anormal: eis o problema*
Será muito difícil para um estudioso afirmar com segurança que consegue
indicar tudo aquilo que é "normal" ou "anormal" num ser humano, em dada
realidade, seja em termos de desenvolvimento pessoal, seja em termos de
comportamento. Ninguém sabe, na verdade, até que ponto uma diferença dos
padrões da aceita "normalidade" poderá ser assimilada sem maiores
dificuldades pela sociedade onde ocorre. O único ponto de conhecimento
generalizado e que todos sabemos que existe um limite indefinido para as
diferenças do "normal" serem assimiladas pelo grupo social. Segundo cada
realidade social e cada cultura podem ocorrer claras delineações quanto aos
desvios da normalidade que são ou não aceitáveis, que podem até ser
considerados como vantajosos, dependendo sempre dos resultados práticos
provocados pela "anormalidade" e do papel que os indivíduos afetados possam
ter na sociedade.
Vejamos um exemplo prático:
Na época em que atuamos na Unidade de Reabilitação do Deficiente -
Departamento de Desenvolvimento Comunitário e Bem-Estar Social da
Organização das Nações Unidas - tivemos um dia a oportunidade de entrar em
contato com uma situação "sui-generis", que estava embaraçando um consultor
geral de reabilitação, em programa de assistência técnica num país africano de
antiga vinculação com a Inglaterra.
O governo federal dessa nação mantinha uma equipe volante de bem-estar
social que passava parte do mês em viagens pelas aldeias da região norte do
país. Rodava milhares de quilômetros para garantir o desenvolvimento
contínuo de programas e para fazer os indispensáveis contatos oficiais.
Um dos objetivos desse programa volante era também entrevistar pessoas
deficientes e seus familiares para estabelecer um bom clima de relacionamento
com os mesmos e com isso gradativamente encorajá-las a participar de um
programa de capacitação para o trabalho rural. O relacionamento com o chefe
da aldeia era fundamental sempre. No caso em pauta o objetivo principal era
garantir o encaminhamento de pessoas adultas cegas para um centro de
reabilitação dos arredores da capital, que mantinha programações práticas
para nativos que quisessem se dedicar a atividades próprias da aldeia.
O Centro em si era muito simples e adaptado à realidade do país e todo o
treinamento era custeado por verbas federais. Quase sempre a equipe volante
retornava à base com alguns cegos dispostos a residir por alguns meses nas
instalações do centro e aprender não só habilidades da vida de todo dia, mas
também aquelas relacionadas ao cultivo do milho, da mandioca, do café, de
legumes e de hortaliças, além dos cuidados com animais domésticos.
Numa certa aldeia localizada às margens de um sereno lago, entretanto, um
velho e indecifrável chefe de aldeia protelava indefinidamente a viagem de três
cegos. Aparentemente não havia motivo algum. O chefe não dizia um "não"
categórico e os cegos, apoiados em seus bastões, sorriam e não diziam nada.
Na comunidade em si ninguém apresentava qualquer explicação.
Numa das últimas viagens empreendidas pelo especialista da ONU com a
equipe de campo, foi feita uma visita especial à aldeia em questão. Como
sempre, todos foram recebidos muito bem e após os cumprimentos sorridentes
sentaram-se ao redor do chefe-ancião. No grupo de negros de características
muito puras, a tez clara do estrangeiro sobressaía. E foi ele quem fez a
pergunta direta que nenhum outro havia feito antes, seja por respeito às
decisões do chefe, seja em conseqüência de uma posição cultural:
"Por que esses três jovens, que são cegos, não viajam para nosso centro para
ali poderem aprender a ser independentes, a cuidar de si mesmos, a ter suas
plantas, suas cabras e sua própria cabana?".
A resposta veio clara, embora repleta de cautela. Segundo os ancestrais
daquela tribo, toda aldeia poderia ter motivos para ser valente e muito
aguerrida. Mas só aquela que tivesse motivos para ajudar seus próprios
membros é que poderia ser uma aldeia feliz. Ora, os cegos, os velhos, as
mulheres sem seus maridos significavam uma bênção dos deuses e dos
ancestrais, pois todos eram muito bem cuidados por todas as famílias que
repartiam entre si a responsabilidade pela sua alimentação, vestuário e abrigo.
Se eles fossem levados a um centro para voltarem independentes, cuidando
por si mesmos de suas plantas e seus animais, o que restaria àquela aldeia
fazer para merecer a felicidade que só a caridade trazia?...
- *As "diferenças" assimiláveis ou inaceitáveis*
Situações que fogem aos padrões normais existem no mundo inteiro, mas as
características próprias dos tipos de preconceitos e das diversas formas de
discriminação a elas relacionadas dependem diretamente dos padrões culturais
de cada povo. Têm elas significado bastante variável de povo para povo e só
poderão ser bem compreendidas no contexto social onde ocorrem.
Numa cultura primitiva, por exemplo, na qual a qualidade de vida, o bem-
estar geral e o relativo conforto podem depender em grande parte dos
resultados da caça, as aptidões individuais correspondentes a um físico ágil e
forte são as mais relevantes para o grupo social. Nele, a deficiência física, a
debilitação geral, a velhice, as demonstrações de medo, o excessivo cuidado
com a segurança do corpo são graves desvantagens. Nessa mesma sociedade
primitiva a inabilidade para falar desembaraçadamente, ou para fazer cálculos,
a incapacidade para ler e para escrever, a falta de condições para o
desenvolvimento de atividades artísticas são muito pouco relevantes.
Numa outra realidade hipotética, escassamente habitada e de características
agro-pastoris, o indivíduo mentalmente retardado ou aquele socialmente
desajustado não oferece preocupações relevantes para o grupo maior. A
criança de uma região dessa natureza, que é incapaz de ler ou de escrever,
sempre poderá ser muito útil para o desempenho de diversas tarefas, podendo
constituir-se num membro bastante produtivo da família ou do grupo social,
enquanto que num ambiente mais competitivo e desafiador, como o de
cidades, a situação seria bem diversa.
As diferenças individuais e que caracterizam cada um dos seres humanos
serão encontradas sempre. Será o grupo social, todavia, que irá estabelecer
quais as divergências que poderão ser consideradas como prejudiciais ou
como vantajosas e quais as que provocarão depreciações ou valorizações do
ser humano.
Analisemos um outro exemplo concreto:
Numa ilha do Oceano Pacífico, sempre cercada por cardumes de vorazes
tubarões, a atividade de pesca, muito mais do que a atividade agrícola ou
pastoril, é a fonte principal de alimentos de toda a população. Devido às
circunstâncias próprias, apesar de atividade vital, é sempre muito perigosa.
Ocorrem de quando em quando acidentes com os pequenos barcos de pesca
que atiram às águas seus ocupantes. E muitas vezes eles são quase que
imediatamente atacados por tubarões. Dessas vítimas poucas são as que
sobrevivem. Nessa perdida ilha o fato de um adulto não ter um braço ou uma
perna não leva a depreciação alguma. Muito pelo contrário, a deficiência
corresponde à garantia de uma inquestionável posição de prestígio na
comunidade, pois todos sabem que aquele homem enfrentou o inimigo mortal
durante a luta pela sobrevivência do grupo. O homem amputado é ali olhado
com respeito e admiração.
- *A questão em termos de Brasil*
Qual a situação que encontramos no Brasil de nossos dias a esse respeito?
Todos sabemos muito bem que existem no Brasil situações as mais díspares e
costumes os mais estranhos, pois temos uma sociedade que no geral fala a
mesma língua, distribuindo-se por um território de tamanho continental, com
realidades bem evoluídas de um lado, enquanto que em regiões mais pobres e
menos desenvolvidas há camadas da população que ainda não chegaram a
entrar em contato direto com o mundo moderno.
Nessa realidade vastíssima, tão cheia de contrastes, observa-se também
que em geral as pessoas com menor capacidade física e mental, com menor e
menos atualizado conhecimento das implicações da vida moderna, vão sendo
gradativamente marginalizadas. Com o desenrolar do tempo e com a real
impossibilidade desses indivíduos conseguirem superar os problemas que os
atiram à margem da sociedade atuante, acabam caindo, quer a contragosto,
quer de bom grado, na dependência de membros mais ativos e produtivos. E
há o contingente populacional de tamanho significativo que acaba como
beneficiário dos bem ou mal definidos programas assistenciais mantidos pela
comunidade.
Entre nós, como em muitas outras sociedades do mundo moderno, existem
diferenças que via de regra levam as pessoas a depreciar o indivíduo, quando
essas diferenças são muito evidentes. E nas eventualidades dessas diferenças
consideradas desagradáveis não serem pelo menos disfarçadas, escondidas
ou reduzidas, acabam provocando reações que determinam providencias
especiais para que o indivíduo seja separado, seja tratado ou seja
simplesmente mantido longe.
- *A visibilidade da deficiência*
A visibilidade de uma diferença física menos agradável sempre dificulta
tentativas de integração da pessoa humana atingida ao seu grupo,
principalmente devido às dúvidas e à ansiedade que ela provoca.
Há receios ocultos quanto às prováveis conseqüências das vinculações ou
da convivência com o ser humano deficiente. A maioria das pessoas ditas
normais não se sente à vontade na presença de pessoas gravemente
deficientes que passam a ser tratadas como gente estranha e numa razoável
distância social.
As amputações de membros superiores (e em alguns casos as de membro
inferior também), a paraplegia, a hemiplegia, a paralisia cerebral, as
deformações congênitas em geral, todas tem grande visibilidade, enquanto que
os males orgânicos, alguns sensoriais, os desvios psicológicos e sociais
chamam muito menos a atenção e levam a menos significativas reações.
Provocam em contrapartida menor índice de boa vontade por parte do público
em termos de causas, de programas ou de campanhas.
A visibilidade das alterações do padrão médio de normalidade física, às
vezes precisa ser muito bem ponderada e cuidadosamente considerada por
pais e educadores quando formulam planos educacionais para uma criança. E
uma das perguntas mais cruciais é esta: "Até que ponto poderá uma criança
diferente - portadora de algum tipo de deficiência mais facilmente perceptível -
beneficiar-se de uma escola segregada ou de uma escola integrada?"
- *O problema do "comum" e do "normal"*
Conforme analisado, aparentemente um dos motivos mais ponderáveis para
que se desencadeie um processo marginalizante é um certo desvio dos
padrões da normalidade aceita pelo grupo. Embora seja muito importante a
compreensão exata das implicações da "normalidade", a sociedade em geral
confunde aquilo que é "normal" com aquilo que é "comum". Sob o ângulo
prático de análise dos termos, "comum" é aquilo que é encontradiço, enquanto
que "normal" é o desejável. O comum em termos de Brasil, por exemplo, pode
ser um no Estado do Amazonas e outro bem diverso no Rio Grande do Sul - e
ambos diferentes do que é encontradiço e considerado comum no Nordeste.
Em algumas regiões brasileiras é comum vermos o homem analfabeto
vinculado a situações quase que escravizadoras de trabalho. É comum a
subnutrição, a ausência de recursos para ensino ou saúde. São situações
comuns, mas não são normais, aceitáveis, dignas do homem. No entanto,
essas situações anômalas são tantas vezes tomadas como naturais,
corriqueiras, usuais e sem maior importância, que ficam sendo consideradas
como normais - e não o são!
Nessa mesma linha de exemplificação prática de raciocínio, o "normal" é e
sempre será o desejável e aquilo que está em plena concordância com a
natureza humana e com a dignidade do homem. Em qualquer sociedade do
mundo civilizado de hoje, no qual não existem mais barreiras de comunicação,
a palavra "normal" deveria estar sempre incluindo todas as condições
conseqüentes aos direitos básicos previstos na Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
É muito difícil eliminarmos qualquer um dos direitos previstos nessa
Declaração, pois cada um deles focaliza aspectos de inquestionável
importância na vida do homem sobre a Terra. Entretanto, é nesse mesmo
mundo de hoje, que aceita tranqüilamente uma Declaração Universal dos
Direitos do Homem, adicionando a ela declarações subsidiárias relacionadas à
mulher, às pessoas com retardo mental, às pessoas deficientes, que vemos de
quando em quando situações realmente desumanas de natureza muito comum
que acabam sendo assimiladas e aceitas por grupos da sociedade, inclusive
pela nossa própria. Isso jamais poderá significar que elas possam ou devam
ser aceitas ou consideradas como "normais".
- *A grande variedade de condições marginalizantes*
Esse ângulo da questão leva-nos, sem dúvida, a alarmantes conclusões
quanto à situação da maioria dos países do mundo - inclusive do Brasil - pois
se formos levar até as últimas conseqüências a consideração do problema das
deficiências, sob esse prisma, deveremos considerar como indivíduos
colocados à margem da correnteza principal da sociedade todos aqueles que:
- recebem salários injustos e insuficientes para seu sustento e para
manutenção de seu grupo familiar;
- não têm acesso aos benefícios da previdência social estabelecida;
- são impedidos, na prática, de receber instrução básica;
- passam fome ou alimentam-se inadequadamente por não terem condições
financeiras para adquirir alimentos;
- habitam de forma infra-humana;
- não conseguem livrar-se dessas situações apesar de tentarem.
- *Como classificar as condições marginalizantes*
Mas estamos aqui procurando analisar somente o problema das pessoas
que sofrem o estigma das deficiências físicas, mentais, sensoriais, orgânicas,
ou conseqüentes a doenças mentais ou à idade. Para podermos dimensionar e
avaliar concretamente o desafio apresentado por esse estigmatizado segmento
da sociedade, procuremos uma forma de classificar as diferenças dos padrões
de normalidade considerados usuais e por ela idealizados. Poderemos ter
dessa maneira, uma idéia mais clara da verdadeira extensão dos problemas
daqueles que são muitas vezes conhecidos como "deficientes", "excepcionais",
"incapacitados" - e que passaremos a chamar de "pessoas deficientes" - e do
seu desafio para programas que pretendem ter como meta a sua integração
plena na sociedade.
Na bibliografia existente encontraremos vários tipos de classificação dessas
diferenças ou situações de excepcionalidade. Uma das mais claras e mais
felizes é aquela que analisa o problema sob o ângulo do desvio básico dos
padrões de normalidade, adotada também por Telford e Sawrey. Limitemo-nos,
entretanto, a discutir os desvios de normalidade de natureza mais agravante,
conforme referido acima, que podem levar o indivíduo a um tipo de
marginalidade mais difícil de ser superada sem o concurso de serviços
especialmente organizados.
Mantenhamos em mente que para nossa cultura o indivíduo normal é o que
tem um corpo praticamente perfeito e sem aberrações, aquele que tem os
órgãos e os sentidos funcionando bem, com uma inteligência pelo menos em
nível adequado, dono de um acervo de hábitos e de comportamentos que não
chegam a causar preocupações e dentro de uma faixa etária considerada como
produtiva e não muito avançada. Quase tudo que escapa desses padrões
passa a ser visto com certa dificuldade e poderá levar o indivíduo a situações
de certa marginalidade.
É nesse sentido que poderemos citar os desvios intelectuais, os sensoriais,
os motores, os funcionais e os orgânicos; além disso, incluiremos os problemas
de personalidade e os sociais mais sérios; e não deixaremos de lado as
dificuldades encontradas por pessoas de idade avançada.
Procuremos analisar um a um, em poucas palavras, esses diversos tipos de
desvios de que falamos acima.
- *Desvios intelectuais*
Existem estudos muito interessantes a respeito de problemas intelectuais
que levam a certos desvios, tanto para o lado positivo quanto para o negativo,
partindo sempre de um ponto médio. A preocupação básica de nossa
sociedade, entretanto, tem-se centralizado nos desvios para menos, ou seja,
nos casos de deficiências mentais de vários graus, incluindo os limítrofes, os
educáveis, os treináveis e todos aqueles que não conseguem ser absorvidos
pela sociedade devido a um rebaixamento intelectual.
- *Desvios motores*
Agrupados sob este tipo de desvio de normalidade encontraremos todos os
casos de amputações, as malformações motoras congênitas ou adquiridas, os
problemas ortopédicos de gravidade e provocadores de seqüelas
incapacitantes, os males neurológicos com os mesmos tipos de
conseqüências, dentre os muitos que poderiam ser aqui inseridos. Na verdade
são os problemas que mais chamam a atenção quando se fala em reabilitação
ou quando se menciona o problema das deficiências de um modo genérico.
- *Desvios sensoriais*
Sendo normal o uso de todos os sentidos, o ser humano que se vê privado
de um só deles pode facilmente ser vítima de séria marginalização se não
souber como superar o problema vivido. Assim é que, dentre os casos mais
notórios, temos os cegos ou deficientes visuais, os surdos e casos afins,
conhecidos como deficientes auditivos, com diminuição ou gradativa perda do
sentido da audição. A perda ou redução de outros sentidos como o olfato, o
paladar e o tato não é comum nem causadora de sérias dificuldades sociais,
apesar de poderem ser arroladas as muitas exceções que acabarão por
confirmar a regra.
- *Desvios funcionais*
Certas funções do organismo, quando prejudicadas por um defeito, por uma
doença ou por um acidente poderão trazer sérios problemas para o indivíduo.
Assim temos o caso dos afásicos ou daqueles que têm dificuldades de
comunicação que é o tipo mais facilmente encontradiço neste grupo.
- *Desvios orgânicos*
Dentre os desvios orgânicos que mais trazem problemas ao homem estão
aqueles ocasionados por vários tipos de cardiopatias sérias e por males da
respiração, incluindo-se nos mesmos os casos de tuberculose, dentre muitos
outros.
- *Desvios de personalidade*
Este tipo de dificuldade está diretamente ligado a problemas emocionais ou
distúrbios mais graves como as neuroses e as psicoses. Vários males
relacionados à saúde mental podem também levar as pessoas a situações de
marginalização.
- *Desvios sociais*
Os delinqüentes juvenis, os criminosos adultos, certos tipos de
contestadores, os viciados em drogas, os alcoólatras, os fármaco-dependentes
são alguns tipos que ilustram o chamado desvio social. Muitos deles não têm
absolutamente nada em comum e os programas montados para sua
assistência são muitas vezes totalmente separados ou alheios uns aos outros.
- *Problemas de idade avançada*
Os problemas ocasionados pela velhice são muito próprios e característicos.
Apesar de em outros tipos de situações encontrarmos eventualmente certas
superposições sempre agravantes, na velhice e que sempre encontramos a
maior incidência dessas superposições que tornam a assistência a idosos
muito difícil. São os casos de velhos cardiopatas, cegos, surdos e outros tipos.
- *Outras condições que levam à marginalidade*
Cada um desses problemas mencionados separadamente poderá levar uma
pessoa menos preparada ou menos protegida a certo grau de marginalização,
ou pelo menos a uma série de dificuldades para garantir uma completa
integração ao seu grupo. Nos casos de desvio motor, sensorial, orgânico,
intelectual, de personalidade e de idade avançada, no entanto, verificamos
muitas vezes que, além de ocorrer uma eventual superposição de dificuldades,
existe também com muita freqüência a ocorrência de hábitos, de atitudes e de
comportamentos inaceitáveis ou inadequados, provocando situações muito
mais sérias do que o próprio desvio em si mesmo.
São também muito ponderáveis os problemas causados por certos tipos de
rótulos estigmatizadores aplicados a indivíduos ou a populações que vivem em
condições diferentes daquelas consideradas como aceitáveis, ou seja os
"favelados", os "aleijados", os "paralíticos", os "loucos" e tantos mais.
As dificuldades, entretanto, não se limitam a essa questões ou a esses
ângulos, pois aos problemas ocasionados pela existência de uma deficiência
qualquer ou pela ocorrência de estigmas rotuladores, eventualmente deve-se
também adicionar uma série de situações causadas por fatores pessoais ou
sociais. Dentre os fatores pessoais convém que não nos esqueçamos dos
males provocados pelo analfabetismo, pelas crendices e superstições, pela
ignorância generalizada, pela inabilidade de resolver problemas e pela miséria
material.
Dos fatores sociais mais significativos causadores eventuais de situações de
marginalização cumpre que destaquemos o crescimento vertiginoso e
desordenado de nossas grandes cidades, a falta ou a inoperância dos recursos
humanos ou dos equipamentos sociais da comunidade, o evidente
descompasso existente entre a educação e o desenvolvimento tecnológico,
além dos preconceitos e das atitudes discriminatórias.
- *Deficiência e incapacidade: distinção importante*
Segundo consenso internacionalmente existente, quando, em conseqüência
de algum mal, o ser humano é vítima de um certo impedimento de ordem física,
por exemplo, temos a instalação de uma deficiência. Essa deficiência poderá
levar ou não a uma incapacidade, ou seja, a uma situação de desvantagem, de
inferioridade. Claro que um impedimento sempre poderá causar uma
deficiência inócua, pouco significativa e sem maiores conseqüências para o
indivíduo afetado. Por exemplo, no caso de um auxiliar de caminhão perder o
dedo mínimo da mão esquerda. Esse mesmo impedimento, fisicamente
observado e diagnosticado, trará conseqüências marcantes para um pianista,
para um datilógrafo, para um clarinetista profissional.
O que sucede é que quando essa deficiência é tomada como uma
desvantagem significativa para com os demais, ou quando ela é rejeitada sem
que o indivíduo atente para suas conseqüências práticas, em geral a pessoa
portadora da deficiência começa a agir e a desenvolver hábitos e atitudes tais
que o grupo social se vê forçado a deixá-la de lado e cada vez mais à sua
margem.
Consideradas as circunstâncias em que acontecem e muitas vezes as
pessoas que atingem, certas deficiências não podem nem devem ser tidas
como "incapacidades", pois estas são realmente problemáticas e estão
presentes sempre que ocorrer a somatória de três tipos de limitações:
- a limitação objetiva, imposta pelo impedimento ou desvio (por exemplo, um
paraplégico não consegue mais andar e tomar uma condução pública sem a
ajuda de muletas ou de uma cadeira de rodas; um cego não poderá ler
instruções em planilhas de trabalho; um amputado de mão, por mais hábil que
procure ser, não poderá ser um violinista);
- a limitação estabelecida por segmentos da sociedade com os quais o
indivíduo se relaciona (por exemplo, clubes não aceitam pessoas com
deficiências físicas, a sociedade evita contatos próximos com vítimas de
paralisia cerebral, ou procura manter os hansenianos fora de seu alcance);
- a limitação que o próprio indivíduo atingido estabelece (por exemplo, o
paraplégico que acha estar liquidado para a vida de trabalho ou a vida social; o
cego que não se dispõe a aprender o Braille ou a andar sem a ajuda dos outros
por medo de não o conseguir).
Conforme foi já comentado anteriormente, os objetivos da vida de cada um
de nós é que acabam por determinar se uma deficiência pode ser
desvantajosa, tornando-se uma incapacidade, ou não. Como indicamos, para
um violinista profissional as conseqüências da perda do dedo mínimo da mão
esquerda são muito mais contundentes do que para um ajudante de caminhão.
Uma datilógrafa poderá ter uma feia cicatriz no rosto, mas não uma
recepcionista.
Em síntese, a marginalidade existe entre nós, como existe em todos os
países do mundo moderno. Ao analisarmos a história da humanidade
descobrimos que o indivíduo deficiente quase sempre foi relegado a segundo
plano, quando não apenas tolerado ou exterminado.
Verificamos, no entanto, que segmentos mais esclarecidos e politizados de
nossa sociedade, bem como parcelas significativas de nossos programas
oficiais de assistência à população, preocupam-se e armam-se para dar
cobertura àqueles que sofrem as conseqüências da marginalização. Todos
sabemos que essas providências não são fáceis, nem baratas, o que também
nos leva a raciocinar em termos do desafio que significam atividades às vezes
conhecidas como programas de reabilitação, programas de reinserção social
ou de integração social, sem que haja plena consciência de seu escopo e do
seu valor.
Fica conosco a dúvida: "Por que existem esses programas"?
Em que tipo de raciocínio prático ou de princípios filosóficos, ou mesmo de
racionalismos baseamo-nos para dedicarmos tempo e dinheiro destinados ao
atendimento a portadores de deficiências? Qual é o verdadeiro significado da
integração social das pessoas deficientes?
CAPÍTULO SEGUNDO
O SIGNIFICADO DA INTEGRAÇÃO SOCIAL DAS PESSOAS
DEFICIENTES
Para muitos de nós o problema de integração de uma pessoa deficiente na
sociedade é apenas questão de acomodação adequada, de equipamentos
especiais, de arranjos práticos, de tratamento físico eficiente e muito pouca
coisa mais. Acreditam muitos que a "integração" acontece naturalmente se a
pessoa simplesmente voltar ao seu ambiente original com o auxílio dos
recursos que a medicina coloca à sua disposição e com a remoção de alguns
obstáculos físicos.
Claro que esses fatores todos são importantes. No entanto, a desejada
integração não acontece naturalmente; ela é resultante de um complexo
processo cuja necessidade e significado pretendemos aqui estudar e discutir -
ou seja, ela não é uma "volta", pura e simples.
Antes de mais nada cumpre que notemos o seguinte: há pessoas que hoje
têm uma deficiência e que por causa dela sentem-se marginalizadas, quando
na verdade podem ter vivido e trabalhado em sua comunidade - antes da
deficiência - sem ter estado realmente integradas nela. Viviam
independentemente fazendo o que bem entendiam, sem se importar com o
mundo ao seu redor. Quando uma pessoa desse tipo torna-se deficiente,
percebe que não era tão integrada à sociedade quanto pensava. O contato
restrito com os demais (que a pessoa nota pela primeira vez quando adoece ou
quando se torna deficiente) acaba associando-se com a presença da
deficiência.
Se desejarmos trabalhar pela integração de pessoas deficientes na
sociedade maior, é muito importante perceber que uma simples tentativa de
fazê-la "voltar" à situação anterior à deficiência muitas vezes não é suficiente.
Outro fator muito importante a ser lembrado é que a personalidade de uma
pessoa deficiente não é a mesma antes e depois da deficiência surgir em sua
vida. Se atuamos no sentido de colaborar para que a pessoa portadora de
uma deficiência atinja o grau melhor possível de integração na sociedade,
devemos estar preparados para ajudá-la a compreender-se melhor e a
entender sua nova visão de vida, com a existência das limitações impostas
pela deficiência. E isto é especialmente verdadeiro com aquelas pessoas
deficientes que, antes de se tornarem deficientes, jamais se haviam
preocupado com opções, com o significado de um bom ajustamento pessoal, e
de repente notam a importância de tomar uma séria decisão face a esses
requisitos invisíveis mas muito concretos e inseridos na vida social e familiar.
Assim o processo de integração que a pessoa marginalizada por uma
deficiência vive jamais poderá ser estacionário, pois move-se continuamente
numa direção ou noutra: seja na direção de uma boa integração, seja na
direção da segregação e do isolamento cada vez maiores. E todos os que
trabalham em reabilitação ou que mantêm contatos com pessoas deficientes
influenciam esse processo, quer o queiram, quer não.
O processo de integração não acontece de repente ou só porque a pessoa
deficiente de um lado, e o grupo social de outro, assim o decidem; ele
demanda tempo para atingir sua plenitude e a plena consciência de todas as
suas implicações.
Em todas as comunidades e em todos os tempos encontramos pessoas que
por alguma razão são segregadas, individualmente ou em grupos. Talvez elas
mesmas tenham procurado o isolamento, mas em muitos casos elas são
simplesmente excluídas da sociedade. Algumas resignam-se à situação, outras
protestam contra isso. Há alguns anos atrás o indivíduo portador de uma
limitação física ou sensorial cedia à evidência de fazer parte de um grupo
marginalizado e marcado. Hoje a situação está ficando cada vez mais diferente
entre nós, seguindo as tendências mundiais. As pessoas deficientes protestam
e com muito boas razões. Elas demandam participação total em igualdade de
condições; de sua parte a sociedade exige a contrapartida, ou seja,
competência pessoal e profissional, independência de atuação, comunicação
adequada, comportamento social aceitável e um papel definido.
Nesse processo todo é muito importante que haja muita compreensão de
todos os lados, pois a integração verdadeira só poderá ocorrer como resultado
de cooperação entre duas partes.
Por essa razão resolver os problemas apenas em parte ou só de um lado
não solucionará a questão. Não é só a pessoa deficiente que deve ser
trabalhada, mas também a realidade social na qual a integração é pretendida,
para que todos entendam os problemas em sua complexidade e ajudem na
busca de suas soluções.
Embora muitos peçam ou exijam mesmo a integração em bases equânimes,
essa integração é um sonho impossível. A sociedade não poderá jamais
integrar uma pessoa sequer. Ela poderá apenas oferecer as possibilidades de
integração e ficar disponível para tanto. O trabalho de chegar a essa situação
integrada dependerá da própria pessoa deficiente.
Muitas pessoas que são marginalizadas procuram escapar a essa faceta do
processo, esquecendo-se que apenas elas poderão atingir esse objetivo,
responsabilidade da qual jamais poderão escapar.
Os progressos da medicina, os recursos técnicos e a organização de
serviços de reabilitação global poderão tornar o processo de integração bem
menos difícil.
- *A complexidade do desafio*
Por mais paradoxal e estranho que possa parecer, certos segmentos da
sociedade em que vivemos colocam de lado o homem indesejável e que
consideram fora dos padrões de aceitabilidade, enquanto que, ao mesmo
tempo e muitas vezes dentro de uma idêntica área geográfica restrita, outros
setores da mesma sociedade procuram montar programas de assistência e
proteção a esse mesmo homem. Dependendo muito do grau de
desenvolvimento da área em que as situações concretas acontecem esses
pretendidos programas de atendimento podem chegar a ser bastante
diversificados, indo desde a mera assistência segregativa e estigmatizadora,
até modernos e sofisticados centros de reabilitação ou serviços de integração
social.
Que motivos poderiam ser tão fortes e tão ponderáveis para levar uma
sociedade toda, ou alguns de seus setores, a canalizar esforços, recursos
financeiros, voluntariado e outros programas das mais variadas naturezas para
o desenvolvimento dessas atividades? Que tipo de raciocínio lógico poderia ser
tão convincente para levar autoridades a dar prioridade a programas tão
complexos e de tão difícil concretização? Estaria a sociedade apenas
investindo em reabilitação devido à sua preocupação com a solidariedade para
com seus membros mais fracos? Estaria ela preocupada com a
magnanimidade que precisa demonstrar para com os mais fracos?
As injustiças que assolam nossa sociedade e a ameaça que elas
representam levaram o Papa João Paulo II a assim se expressar em São Paulo
no seu famoso encontro com os operários: "O bem comum da sociedade
requer, como exigência fundamental, que a sociedade seja justa! A persistência
da injustiça, a falta de justiça, ameaça a existência da sociedade de dentro
para fora, da mesma maneira que tudo quanto atenta contra a soberania ou
procura impor-lhe ideologias e modelos, toda chantagem econômica e política,
toda força das armas pode ameaçá-la de fora para dentro. Esta ameaça a partir
do interior existe realmente quando, no domínio da distribuição de bens, se
confia unicamente nas leis econômicas do crescimento e do maior lucro;
quando os resultados do progresso tocam apenas marginalmente, ou não
tocam em absoluto, as vastas camadas da população; ela existe também,
enquanto persiste um abismo profundo entre uma minoria muito grande de
ricos de um lado, e a maioria dos que vivem na necessidade e na miséria, de
outro lado.
Todo aquele que trabalha em programas de promoção humana ou
desenvolve atividades de atendimento - profissionais ou voluntárias - a grupos
marginalizados, e basicamente todos aqueles que vivem uma situação
concreta de marginalidade, prefeririam que a sociedade se envolvesse nessas
atividades principalmente devido ao reconhecimento quanto ao valor do
homem - mas isso nem sempre ocorre, uma vez que a sociedade dos homens
mobiliza-se apenas de acordo com as circunstâncias, os interesses de grupos
e as pressões que sobre ela são feitas.
A sociedade mobiliza-se, por exemplo, diante de grandes desastres, de
acontecimentos especiais ou anormais, de catástrofes, porque esses eventos
provocam mal-estar generalizado, trazem desconforto, ameaçam a estabilidade
da família e da sociedade, pondo em risco a propriedade.
As sociedades mais evoluídas têm demonstrado uma crescente
preocupação não apenas com seus membros mais problemáticos ou anormais,
mas também com grupos minoritários que acabam sendo prejudicados por
atitudes preconceituosas. A despeito dessa preocupação crescente, nossa
civilização tem dado mostras de suas fraquezas e de suas inconseqüências.
Todos nós estamos acostumados e mesmo cansados de ouvir palavras
ponderadas e altamente recomendáveis, ou ler estudos muito bem elaborados
e louváveis quanto ao valor do homem, em contraposição a atuações de
caráter aviltante e desumano. Tem-se a nítida impressão de que o indivíduo é
visto por prismas que provocam espectros distorcidos, irreconhecíveis e que
não correspondem a um mínimo desejável e mesmo esperado.
"Talvez uma das mais evidentes debilidades da civilização atual esteja na
inadequada visão do homem. A nossa época é, sem dúvida, aquela em que
mais se escreveu e falou sobre o homem, a época dos humanismos e do
antropocentrismo. Entretanto, paradoxalmente, é também a época das mais
profundas angústias do homem com respeito à sua identidade e destino, do
rebaixamento do homem a níveis antes insuspeitados, época de valores
humanos espezinhados como jamais o foram antes" (João Paulo II - no
Encontro com os Construtores da Sociedade Pluralista, em Salvador, no dia 7
de julho de 1980).
Os programas destinados à adequada assistência ao homem marginalizado
ou em franco processo de marginalização, e à sua integração à correnteza
principal da sociedade, muito embora dispendiosos e de difícil concretização,
sempre foram verdadeiras e inquestionáveis demonstrações da existência de
uma sociedade voltada para os valores do ser humano e também da
objetividade de seus propósitos. Segundo alguns autores, mede-se o nível de
desenvolvimento e o grau de cultura de um povo pelo tipo e pela qualidade de
preocupação que demonstra para com os seus grupos minoritários e
marginalizados, ou para com os pobres.
Mas por que falarmos em "integração social" que é tão complexa e
problemática? Não seria suficiente para a sociedade falar apenas em
"assistência social", em "abrigo", em "institucionalização"? Por que não a
separação pura e simples desses marginalizados ou marginalizáveis, como se
faz, institucionalmente, com todos os elementos que podem causar perigo ou
preocupação séria à sociedade? Talvez a sociedade tivesse muito mais
tranqüilidade se pudesse colocar, internar, segregar em organizações especiais
aqueles que são rotulados como "débeis mentais", "leprosos", "tuberculosos",
"cancerosos", "paralíticos", "cegos", "surdos" e ainda os "maloqueiros",
"favelados", "pedintes", "trombadinhas", "viciados em drogas" e outros mais
que, sob os olhos dessa sociedade comodista constituem a legião dos
miseráveis, ou dos assim chamados "carenciados", "excepcionais", dos dias
em que vivemos.
- *A integração social e seus porquês*
Motivos para qualquer sociedade do mundo moderno e progressista valorizar
o ser humano existem do sobejo. Muitos desses motivos, já estudados e
arrolados, fazem parte quase que obrigatória das Declarações Universais de
Direitos do Homem, da Criança e da Mulher. Mais recentemente a Organização
das Nações Unidas, por meio de sua Assembléia Geral, aprovou Declarações
dos Direitos da Pessoa com Retardo Mental, da Pessoa Deficiente e outras
mais. Ao que nos parece, os motivos de que estamos falando são mais do que
suficientes para o surgimento de programas destinados à assistência adequada
e à integração social de todos os grupos existentes na sociedade, mesmo que
marginalizados. Não há, na verdade, necessidade de mais Declarações de
Direitos. Há, sim, necessidade de colocá-las em prática, em todos os
quadrantes de qualquer nação, pois estamos falando do homem, a respeito do
qual já se falou e escreveu tanto e tão bem, e pelo qual tão pouco tem sido
feito de concreto.
Existem alguns tipos de considerações bastante convincentes que têm sido
decisivas para o estabelecimento de programas objetivos das mais diversas
naturezas, especialmente os destinados à integração de grupos humanos
colocados à margem da sociedade.
No entanto, para não dispersarmos muito e entrarmos em divagações
quanto à miríade de facetas existentes nos grupos especiais até aqui
indicados, limitemo-nos a considerar o problema de uma significativa parcela
dessa população: os chamados "deficientes".
Por "pessoas deficientes" entendemos todas aquelas que estão abaixo dos
padrões estabelecidos pela sociedade como de "normalidade", por motivos
físicos, sensoriais, orgânicos ou mentais, e em conseqüência dos quais vêem-
se impedidas de viver plenamente.
Dentre as considerações mais relevantes e que têm sido utilizadas em
muitas partes do mundo para o estabelecimento de adequados níveis de
prioridade e para a montagem de programas, podemos destacar as seguintes:
a) *O elevado número de pessoas consideradas como "deficientes".*
Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas e de suas
Agências Especializadas, o problema é dos mais graves, pois, "pelo menos
10% da população de qualquer país do mundo sofre de algum tipo de
incapacidade física ou mental, sendo das formas mais prevalescentes a
limitação física, a doença crônica, o retardo mental e as incapacidades
sensoriais".
"Há mais de 400 milhões de pessoas deficientes no mundo" ("Rehabilitation
of the Disabled - The Social and Economic Implications of Investments for this
Purpose", United Nations).
Infelizmente a dimensão desse problema não está vivamente impressa e
muitas das autoridades brasileiras o ignoram. A Fundação Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, que ao final de 1980 realizou nosso recenseamento
geral, não incluiu nos dados pesquisados qualquer menção ao problema
discutido aqui, de forma que precisamos continuar a utilizar as estimativas
internacionais.
Dessa forma, já que temos uma população de mais de 120 milhões de
pessoas, temos mais de doze milhões delas com problemas limitadores e que
as bloqueiam de uma plena participação na sociedade. Segundo depoimento
de Norman Acton, Secretário Geral da Rehabilitation International, órgão
consultivo da ONU, através de seu Conselho Econômico e Social,
"desconhecendo as reais dimensões da deficiência e suas muitas
conseqüências, nossos planejadores, nossas instituições e nossos governos,
com poucas exceções, não tem dado atenção, prioridade ou apoio adequados
a programas nesse campo. Desinformados quanto à real natureza do
problema, nossos cidadãos tentam ignorá-lo ou evitá-lo, deixando a
responsabilidade nas mãos das profissões e das instituições especializadas.
Por vezes sem conta nossas comunidades lidam com esses problemas,
escondendo as pessoas seriamente deficientes atrás dos muros de suas
casas, ou então, nas áreas residenciais mais sofisticadas, por detrás das
cercas-vivas dos jardins de rosas. A idéia de que nossos modernos conceitos
de direitos humanos se estendam aos portadores de deficiências físicas e
mentais é hoje mais revolucionária do que a própria doutrina de Karl Marx"
("The Global Dimensions of Disability", de N. Acton).
Conforme indicamos no capítulo anterior, o volume de pessoas deficientes já
é muito grande na forma como é considerado pelos órgãos internacionais. Se
adicionarmos a ele os grupos de pessoas que são vítimas de outros males de
natureza repulsiva ou de desvios de conduta, e ainda por cima somarmos
aqueles indivíduos que ganham insuficientemente para viver e sustentar a
própria família, os que habitam sub-
-normalmente, os desajustados tecnológicos, os que são privados da
assistência médica, os que passam fome crônica, os que não tem acesso à
educação e à previdência social - e também aqueles que não conseguem
livrar-se dessas situações, ou seja, os deficientes sociais, certamente que
formaremos uma visão desalentadora.
b) *O valor próprio do ser humano*
A idéia de se colocar o ser humano à margem da sociedade, sem que se
estabeleça ou sem que se possibilite um caminho de retorno, não é aceitável,
pois o homem tem o direito de fazer parte da correnteza principal da sociedade
que gera e que consome bens, pelo simples fato de ser um indivíduo dono de
um valor intrínseco próprio e inalienável.
Só mesmo a ignorância maliciosa e o barbarismo primitivo ou ultra-moderno
de atitudes chegam a negar a importância que o homem tem como
componente da sociedade e como ser individualizado. O ser humano pode, de
fato, chegar a situações de marginalidade tal que só com um preparo
extraordinário passará a ter condições de ser assimilado pela sociedade.
Ninguém pode se esquecer de que uma das características principais do
homem é a sua perfectibilidade, ou seja, sua capacidade de melhorar sempre e
de se superar. Além disso, nenhum grupo social pode se arrogar o direito de
impedir um de seus membros de atingir o máximo do seu potencial latente, pois
o direito à realização pessoal é muito próprio do homem, independemente das
diferenças individuais de cor, sexo, idade, credo, atividades políticas ou
profissionais, ou das prioridades governamentais.
A sociedade que assume as atitudes que são demonstrativas de sua posição
de comiseração, de caridade piegas, de assistencialismo, monta seu próprio
estilo de ajuda a grupos marginalizados que é muito característico, pois
apresenta quase que exclusivamente programas de natureza segregativa e
assistencialista. São os orfanatos, os asilos, os lares, as colônias especiais que
se localizam longe dos núcleos populacionais, os internatos das mais variadas
naturezas, as casas especiais e muitos outros "recursos" da comunidade.
No entanto, na medida em que a sociedade se conscientiza e raciocina
concretamente quanto ao valor do ser humano, ela tende a se aparelhar para
atendê-lo adequadamente e passa a demonstrar essa preocupação pelo
desenvolvimento de programas muito mais destinados à promoção humana, à
libertação do homem da dependência odiosa, e à sua integração ao grupo
social.
Embora todos acreditemos no valor próprio do ser humano, é necessário que
se faça uma séria parada para um exame crítico, a fim de que passemos todos
de uma cômoda posição teórica, muitas vezes bem verbalizada, para uma
atuação concreta, com o estabelecimento de programas objetivos de
valorização do homem.
c) *O valor econômico da mão-de-obra não utilizada*
Em qualquer realidade existe elevado percentual de elementos considerados
naturalmente como não-produtivos, ou seja, crianças e pessoas em idade
avançada principalmente. Esse volume é aumentado por pessoas enfermas,
por pessoas aposentadas precocemente e por contingentes populacionais
marginalizados da força produtiva por muitos motivos e pretextos. As pessoas
portadoras de deficiências físicas, sensoriais, orgânicas, funcionais e mentais
encontram-se nessa situação, com a agravante de não só deixarem de
produzir, como também de, apesar de terem potencial para o trabalho, serem
ônus para a sociedade.
No entanto, segundo Ballester Hoys, "nenhum país pode considerar-se hoje
suficientemente rico para desprezar a mão-de-obra do incapacitado" (Apud
Gonçalves). E, de fato, se raciocinarmos um pouco, verificaremos que, se dos
10% da população que é vítima de males incapacitantes, pelo menos 25%
estivessem de alguma forma engajados na produção de bens e serviços, não
estariam apenas consumindo e dependendo de elementos mais produtivos,
recebendo por vezes a contragosto auxílios dos cofres públicos ou da
previdência social. Em termos de realidade brasileira, essa mão-de-obra em
potencial poderia chegar a mais de 3 milhões de pessoas com algum tipo de
deficiência, em idade adulta, cujo objetivo principal de vida é trabalhar e sair da
desagradável situação de dependência e de contínua frustração.
O desemprego, a dependência econômica, o sub-emprego desumanamente
remunerado e atividades muito pouco rentáveis são fantasmas que rondam
significativa parcela da população em nossa sociedade repleta de contrastes e
injustiças. No entanto, quando o emprego mal remunerado, o sub-emprego ou
o desemprego ocorrem pura e simplesmente devido à existência de uma
deficiência ou incapacidade de natureza física ou sensorial, ou de limitações
orgânicas e mentais, eles passam a se tornar muito mais injustos e
inaceitáveis, por melhores explicações que possam ser dadas ou encontradas
para sua existência.
Uma das principais tônicas de programas de bem-estar social com
populações carenciadas e/ou marginalizadas deve ser a preocupação com o
trabalho, ao qual elas têm direito. Os nossos governos - a nível federal,
estadual e municipal - têm papel relevante nessa grande batalha de
assimilação de mão-de-obra potencialmente produtiva, estando nela também
engajados, além do poder público, o comércio, a indústria, o mundo dos
serviços.
Existem especialistas no assunto que se opõem à assimilação da mão-de-
obra das pessoas deficientes em detrimento daquelas pessoas|não-deficientes
desempregadas, como se as pessoas deficientes fossem meros cidadãos de
segunda classe, com direito à sobrevivência após garantida a vida das pessoas
consideradas como "normais". Esses argumentos são, no mínimo, "parvos",
excessivamente pequenos para poderem ser levados em consideração.
Cremos que talvez a colocação do argumento no sentido inverso poderia ser
menos injusta, ou seja, aproveitamento da mão-de-obra das pessoas
deficientes prioritariamente.
- *Os princípios básicos da reabilitação*
Essas poderiam ser as três pilastras básicas para garantir o
desenvolvimento de programações destinadas a minorar toda essa gama de
dificuldades, através da integração social. Se realmente pensamos em integrar
socialmente o homem marginalizado e prejudicado por certos tipos de
deficiências, temos a obrigação de nos inteirar de como iremos conseguir essa
integração. Se as estimativas das organizações internacionais de
inquestionável credibilidade são válidas para a nossa realidade - e por que não
o seriam? - precisamos analisar com muito cuidado em que ponto estamos na
assistência adequada a esses grupos especiais de seres humanos que se
vêem prejudicados em todos os seus direitos, inclusive no direito de participar.
Muito embora possamos relacionar diversos pontos de partida para o
deslanche de programas tendentes a resolver os problemas que levam as
pessoas portadoras de deficiências à marginalidade social (como, por exemplo,
o estabelecimento de prioridades governamentais nesse campo, incluindo
ações de prevenção de impedimentos, atividades de detecção precoce das
deficiências e seu atendimento, financiamento de programas de atendimento
especializado, garantia da formação de pessoal para essa atuação especial,
organização de esquemas que garantam a profissionalização de pessoas
deficientes, programas educacionais próprios, revisão da Consolidação das
Leis do Trabalho, regulamentação da Emenda à Constituição Federal de n°.
12/78 e muitos outros), não há dúvida que o desafio maior estará sempre na
interiorização individual e na aplicação de tudo aquilo que pode ser chamado
de credo no homem:
- O ser humano, mesmo portador de deficiência e marginalizado, tem um
valor próprio, intrínseco e inalienável. Tem, portanto, direito a todo o respeito
devido a qualquer indivíduo.
- A dignidade do homem independe de sua inteligência, raça, credo, idade,
sexo, ideologia e integridade física.
- Ele é único, complexo e diferente de todos os seus semelhantes; ele só
poderá ser considerado globalmente e nunca em partes estanques.
- O indivíduo, mesmo que marginalizado, tem um potencial que deverá ser
enfatizado, apoiado e fomentado, pois todo homem é perfectível e tem
condições de se superar.
- Todo ser humano faz parte de uma sociedade na qual deverá ter seu papel;
o indivíduo tem também seu valor econômico como colaborador em potencial
no processo de produção de bens e de serviços.
- *O despreparo nos programas reabilitacionais*
Os problemas físicos, psicológicos, sociais, educacionais e de natureza
profissional são aqueles que marcam a grande maioria dos casos de
marginalização devido a deficiências diversas, demandando soluções que
jamais poderão olvidar o homem como um todo. Ao trabalhar com a
problemática das pessoas deficientes, porém, a maioria de nossas
organizações, de orientação simplista ou puramente tecnicista (pseudo-
técnica), consideram que a grande questão está relacionada apenas à
eliminação ou redução quando não, à camuflagem - da deficiência. Esquecem-
se que o indivíduo sem uma perna ou sem um braço, que não pode fazer uso
da visão ou da audição, estigmatizado por algum mal ou incapacidade, faz
parte (ou deveria fazer parte) de grupos e deseja legitimamente seu lugar na
sociedade, sentindo que tudo isso está fora de foco e ameaçado. Esquecem-se
essas entidades - e os profissionais nelas inseridos - que esse mesmo
indivíduo, já frustrado e magoado, pode ter desenvolvido e adotado hábitos
inadequados, apresentando um comportamento inaceitável.
Mais do que tudo isso, esquecem-se que esse indivíduo deficiente poderá ter
algo a dizer e a contribuir quanto à evolução de seus problemas e das
perspectivas para sua solução.
Nessa infeliz somatória de atitudes de esquecimentos, de “não-lembrancas”,
de “estar-fazendo-um-grande-favor”, de “a-gente-já-faz-muito-por-você-que-é-
um-coitado-e-não-reconhece” - intencional ou não - percebemos uma velada e
latente descrença no homem diminuído, feito escravo das situações e das
pessoas, que não tem importância em termos sociais, cujos direitos são
analisados e avaliados só muito contingencialmente.
As organizações a respeito das quais comentamos acabam se esquecendo
de que a marginalidade do indivíduo ocorre por uma série de motivos e não
apenas devido à existência de uma anomalia, de uma deficiência física ou
sensorial, por exemplo. Na verdade, a marginalidade surge no momento em
que, além da deficiência apresentada, ocorrem limitações de graus e naturezas
os mais variados quanto à estabilidade junto ao grupo e, de um modo todo
especial, quanto a desvantagem sentida, pesada pelo próprio indivíduo, que é
vítima do mal, da falta, da carência, da anomalia e de suas conseqüências.
- *A complexidade do trabalho de equipe em reabilitação*
Conseqüentemente, para a integração social de um indivíduo que já está
colocado à margem dos grupos principais da sociedade, a questão não se
limita e jamais poderia se limitar à mera solução de um problema físico, como
não poderia se limitar à simples obtenção de um emprego remunerado. A
integração social ocorrerá, de fato, desde que se obtenha o pleno envolvimento
do indivíduo atingido, e mais, se desenvolva com ele um trabalho de
reaquisição de valores perdidos, de sua dignidade, de seu amor próprio, de seu
real sentido de homem.
Trabalho de tal natureza só poderá ser desenvolvido em condições
especiais, incluindo obrigatoriamente atividades que levam à valorização
pessoal. Além disso, por menos agradável que possa parecer, é bom também
que essas atividades mostrem ao indivíduo a importância que pode ter em sua
vida a criação ou a mudança de hábitos e de atitudes, o desenvolvimento de
comportamento que a sociedade aceite, por estar de acordo com aquilo que ela
espera de cada um daqueles que dela pretende participar e nela ter um papel
definido e digno.
Estamos caracterizando, dessa forma, um trabalho que jamais poderia ser
responsabilidade de uma pessoa só, requerendo uma atuação integrada e uma
ampla e permanente colaboração da comunidade. Na verdade, é somatória de
esforços nos quais dão-se as mãos diversos profissionais, tais como médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais,
psicólogos, fonoaudiólogos, além de educadores e conselheiros diversos, para
ajudar cada indivíduo a se definir quanto aos seus objetivos de vida, numa
situação de plena participação na vida da comunidade.
- *Os programas necessários em nosso meio*
Trabalho dessa natureza e qualidade poderá ser desenvolvido em
organizações especificamente criadas para esse fim, ou seja, em centros de
reabilitação, cuja organização e manutenção não são de natureza nem fácil
nem barata. Programas de integração a nível de comunidade, com o uso de
uma tecnologia menos dispendiosa são também recomendados, face ao nosso
nível de desenvolvimento, tendo sido uma preocupação contínua da
Organização Mundial de Saúde desde os meados da década de setenta.
Tanto centros de reabilitação quanto programas que utilizam tecnologia mais
simples e menos cara requerem profissionais muito bem preparados que, além
de seus cursos básicos, dominam também uma série de conhecimentos
adicionais relativos aos procedimentos e ao embasamento filosófico do
processo de reabilitação e da própria integração social. Essa qualificação
adicional e indispensável deverá ser sempre informada e alimentada por
atitudes positivas quanto ao trabalho multiprofissional, sem as quais nenhum
programa poderá ser produtivo e útil para quem dele necessita e muito mais do
que isso, por atitudes de verdadeira e genuína crença no ser humano, em sua
dignidade, em sua perfectibilidade, e de respeito ao indivíduo como ele é e
onde ele está ou pretende ficar.
CAPÍTULO TERCEIRO
ADEQUAÇÃO PESSOAL - O OBJETIVO ULTIMO DA REABILITAÇÃO
Analisamos anteriormente algumas idéias quanto às dificuldades que podem
levar indivíduos a situações sérias de marginalização; formulamos alguns
princípios básicos sobre os quais programas de assistência a esses mesmos
indivíduos podem basear-se; delineamos as condições fundamentais para um
envolvimento da sociedade face a essa problemática; e chegamos à conclusão
que os serviços destinados a dar apoio e cobertura de natureza integral a
pessoas que vivem em situações dessa natureza não podem deixar de cobrir
as necessidades essenciais do ser humano, em todos os sentidos.
Verificamos também, que praticamente todos os desvios da normalidade
podem ser considerados negativamente pelo grupo social e muitas vezes pela
própria pessoa atingida, especialmente quando a anomalia provocadora do
desvio não é bem aceita ou bem compreendida. Para especialistas em
reabilitação, essa anomalia poderá chegar a significar uma “perda”, uma
“restrição” ou um “bloqueio” a atividades usuais tais como andar, escrever,
olhar, contar e outras - ou seja, uma deficiência; poderá também significar uma
“desvantagem” - isto é, uma incapacidade.
- *Impedimento, deficiência e incapacidade*
Nunca será demais repetirmos um pouco o raciocínio a respeito dessa
questão, uma vez que não estamos aqui discutindo apenas ângulos de
sinônimos, pontos de semântica, mas de conceituações que são fundamentais
para quem pretende compreender esses problemas e suas soluções. Assim é
que, verificada a “anomalia”, o “defeito físico ou mental”, a “falta de um
membro” (e tudo isso é reconhecido no Brasil como “impedimento”), temos
instalado algum grau de deficiência, ou seja, o indivíduo não ouve, não fala,
não vê, não anda; ouve mal, fala mal, enxerga mal, anda mal; não leva a mão à
boca, não tem controle de esfíncteres. São conseqüências diretas da anomalia
no funcionamento da pessoa. Portanto, a pessoa deficiente é aquela que vive
em situações de bloqueios eventuais ou permanentes, em conseqüência de um
mal, perda ou restrição.
“Incapacidade” já e algo diferente. Na verdade, é o resultado da deficiência
somado às conseqüências pessoais e sociais, com evidente prejuízo para o ser
humano.
No sentido de caminhar para uma uniformidade de conceitos, muitos
profissionais têm adotado uma nomenclatura próxima àquela publicada pela
Organização Mundial de Saúde e que foi inserida num importante documento
da Rehabilitation International,em cooperação com o UNICEF, ou seja, “A
Deficiência Infantil: Sua Prevenção e Reabilitação”.
A guisa de esclarecimento: essa nomenclatura ou classificação terminológica
é aqui transcrita:
“Impedimento: um dano psicológico, fisiológico ou anatômico, permanente ou
transitório, ou uma anormalidade de estrutura ou função”.
“Deficiência: qualquer restrição ou prevenção na execução de uma atividade,
resultante de um impedimento, na forma ou dentro dos limites considerados
como normais para o ser humano”.
“Incapacidade: uma deficiência que constitui uma desvantagem para uma
determinada pessoa, porque limita ou impede o desempenho de uma função
que é considerada normal, dependendo da idade, sexo, fatores sociais e
culturais, para aquela pessoa”.
O documento prossegue com esclarecimentos que são relevantes para a
diferenciação desses conceitos, ao afirmar:
a) Um impedimento pode ser uma parte do corpo, ausente ou defeituosa;
uma perna amputada, uma paralisia pós-poliomielite, diminuição da capacidade
pulmonar, diabetes, miopia, retardo mental, diminuição da capacidade auditiva,
deformação da face, ou outra condição anormal.
b) Deficiência como resultado de um impedimento pode consistir de
dificuldade de marcha, visão, fala, audição, escrita, de contar, de levantar-se ou
de interessar-se em fazer contato com o meio-ambiente.
c) A deficiência pode tornar-se uma incapacidade quando interfere com a
execução do que seria normal em determinada época de uma vida. Crianças
com deficiências podem tornar-se incapacitadas para cuidar de si próprias,
relacionar-se socialmente com outras crianças e adultos, manifestar seus
pensamentos e preocupações, aprender na escola e fora dela e desenvolver a
capacidade para atividade econômica independente (A Deficiência Infantil: Sua
Prevenção e Reabilitação, da RI/UNICEF). Pormenorizando um pouco e
referindo-nos ao que foi expresso no Capítulo Oitavo, a incapacidade (o
handicap dos ingleses e norte-americanos) ocorre quando existe a
desvantagem - e esta acontece sempre que exista a somatória de três tipos de
bloqueios ou de limitações: os impostos pelo próprio impedimento,
objetivamente falando; os estabelecidos pelo grupo, ou grupos sociais, ou pela
comunidade da qual a pessoa deficiente é oriunda; e aqueles que o próprio
indivíduo estabelece.
Às vezes uma deficiência quase imperceptível pode ser transformada em
incapacidade devido basicamente as expectativas relacionadas aos propósitos,
aos objetivos de vida da pessoa deficiente. Um nariz extremamente
desproporcional poderá ser uma grande vantagem a um comediante, enquanto
que uma pequena cicatriz no rosto poderá determinar o fim de carreira de uma
estrela de cinema.
- *Programas de reabilitação global*
Muitas deficiências, quando transformadas em incapacidades, levam as
pessoas atingidas à marginalidade de algum tipo, provocando muitas vezes
situações de tal natureza e complexidade que apenas serviços especializados
poderão possibilitar sua reintegração na sociedade. Tais problemas ocorrem
principalmente nos casos de desvios mais evidentes ou limitadores, como os
desvios motores, sensoriais e orgânicos, e muitos de natureza neuro-
psiquiátrica grave. Para situações dessa natureza criou-se aquilo que é
convencionalmente conhecido como programa de reabilitação.
Esse programa destina-se a prover serviços especiais e especializados para
possibilitar à pessoa deficiente superar dificuldades de ordem física,
psicológica, social e profissional, sempre através da prestação de serviços de
uma forma integrada por meio de equipes multidisciplinares. O objetivo desse
trabalho é levar a pessoa deficiente a uma participação mais completa em
todos os aspectos de sua vida. O objetivo último da reabilitação é a
independência dos indivíduos, como membros da sociedade e não como meros
recebedores de serviços, em débito com ela, considerados sempre seus
direitos, seus deveres e sua dignidade.
A solução global é necessária, pois o indivíduo, ser complexo e
potencialmente considerável, repleto de respeitabilidade e de valor, não pode
deixar de ser considerado quanto às suas necessidades de ajustamento físico,
psicológico, social e profissional. E todos os serviços de reabilitação precisam
invariavelmente envolver a pessoa deficiente nos programas de tomada de
decisão que ocorrem, pois ela é o agente principal de sua integração social.
Embora seja possível encontrarmos situações especiais, nas quais,
conforme o tipo de problema físico ou mental apresentado, a tônica do recurso
em discussão possa ser ligeiramente alterada, basicamente o que se deve
pretender em reabilitação é uma adequação pessoal que poderá ser obtida
com o concurso de três áreas principais de atuação técnica, que podem ser
identificadas como:
- condicionamento físico;
- ajustamento psico-social;
- ajustamento à vida de trabalho.
- *Condicionamento físico em reabilitação*
Qualquer recurso que seja destinado à reabilitação integral das pessoas
deficientes, quer do físico, quer do sensorial ou do orgânico, e em muitos casos
até das vítimas de problemas mentais e sociais, deve pretender levar o
indivíduo à otimização de seu potencial físico. As pessoas deficientes poderão
ter ou não capacidade para se locomover para superar as dificuldades
materiais de seu meio-ambiente, mas em um centro de reabilitação toda a
equipe de profissionais deverá estar voltada para situações mais complexas e
desafiadoras, pensando em termos do indivíduo lançado num ambiente
absolutamente hostil e competitivo onde apenas o aspecto mobilidade não
chega a ser satisfatório. Deve-se pensar e programar em termos de uma
movimentação diuturna de casa para o trabalho, com qualquer tipo de tempo e
condução, na deambulação e movimentação dentro do trabalho, na volta para
casa e todas as demais circunstâncias previsíveis ou não, mas que o indivíduo
precisará superar.
Um programa reabilitacional precisará, portanto, manter serviços que
possam orientar a pessoa deficiente a superar essas dificuldades de ordem
física. Conforme situações individualmente consideradas, poderemos ter
problemas com um ou dois membros inferiores amputados, com membros
inferiores paralisados, com fraqueza generalizada, com vícios de postura, com
rigidez muscular e muitas outras, para não citar problemas especiais com
pessoas que são cegas ou surdas, por exemplo. Além disso, poderemos
encontrar situações que requeiram assistência especial para membros
superiores, como nos casos de amputações, paralisias, malformações e outras.
Um recurso destinado à reabilitação deverá contar com alguns profissionais
especialmente preparados para levar a pessoa deficiente a superar
dificuldades físicas, ou seja, médicos versados, experimentados ou formados
em fisiatria,enfermeiras especializadas em reabilitação, fisioterapeutas,
terapeutas ocupacionais e técnicos em próteses e aparelhos ortopédicos.
Conforme o tipo de pessoas atendidas no centro de reabilitação, poderá ser
indispensável a presença de técnicos em aparelhos ortopédicos ou talvez a
especialidade médica requerida não seja a fisiatria, mas a relacionada a
problemas de visão ou de audição. No entanto, teremos sempre a presença de
um grupo de profissionais voltados para o melhor condicionamento físico
possível das pessoas em atendimento e sua independência pessoal, pois,
conforme foi já explicado, todo o potencial físico da pessoa deficiente deverá
ser melhorado em muito para que ela possa enfrentar a vida em competição
que a espera fora do recurso de reabilitação.
Um centro de reabilitação cuja clientela tenha problemas de ordem física
deverá manter seus serviços de medicina física, de atividades da vida diária, de
terapia ocupacional, de fisioterapia, conforme as necessidades apresentadas
pelas pessoas que se submetem ao programa. As dificuldades mais sérias que
encontramos neste aspecto dos centros de reabilitação não estão tanto na
disponibilidade de pessoal, mas num correto conhecimento do conteúdo de
cada área e na sua respectiva coordenação. Dificuldades sem conta têm
surgido em programas de reabilitação graças ao eventual despreparo dos
profissionais envolvidos - e isso é aplicável não só em condicionamento físico
mas em todas as áreas - e o problema torna-se muito sério em
condicionamento físico quando vemos médicos, fisioterapeutas e terapeutas
ocupacionais digladiando entre si. Problemas surgem também quanto às
responsabilidades face à programação usualmente reconhecida como de
atividades da vida diária, na qual por vezes chocam-se enfermeiras,
fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.
- *O ajustamento psico-social no processo de reabilitação*
Uma das áreas de reabilitação que luta com grandes dificuldades é aquela
que tem sob sua responsabilidade o desenvolvimento de atividades destinadas
a levar a pessoa deficiente a um bom ajustamento social e psicológico.
Envolvem-se aqui alguns profissionais que atuam com uma forte
interdependência com as áreas de condicionamento físico e ajustamento
profissional. Psicólogos, assistentes sociais e educadores, principalmente,
desenvolvem as suas atividades procurando dar à pessoa deficiente condições
de iniciar seu processo reabilitacional pela exata compreensão de seu
problema e pela assimilação do significado que ele pode ter em sua vida;
desse ponto o processo poderá ter condições para uma evolução satisfatória e
equilibrada, tanto nos aspectos físicos quanto pessoais ou profissionais.
Dentre as funções existentes num centro de reabilitação aquela assumida
por assistentes sociais, desde que considerada com profundidade e na sua
globalidade, é das mais difíceis. Cabe a esses profissionais uma atuação que
não só elimine os eventuais bloqueios à participação da pessoa deficiente em
seu programa de reabilitação, mas também que as ajude no necessário
ajustamento à vida em geral, à situação familiar e ao seu grupo de referência.
Distorções na organização de muitos centros de reabilitação limitam a
atuação de assistentes sociais apenas e tão somente para resolver problemas
que nunca saem das dificuldades financeiras, questões ligadas a problemas de
acesso ao centro, ou listas de clientes que são oriundos de organizações
financiadoras ou conveniadas. Nesses centros todos os problemas práticos ou
que possam dificultar a pessoa deficiente e sua família são encaminhados às
cegas ao serviço social. Contatos mais profundos da pessoa deficiente com o
assistente social para discussão de problemas individuais relacionados às
dificuldades de aceitação ou de assimilação do processo nunca ocorrem e
ficam parecendo esdrúxulos. Em centros nos quais assistentes sociais limitam
seus papéis a essas funções simples e de meros providenciamentos, há um
permanente corre-corre e os profissionais ou seus auxiliares envolvidos
trabalham suas seis ou oito horas diárias duramente, mas não atingem o
âmago de sua função precípua. Na verdade, não chegam nem a arranhar a
problemática que é a própria causa de sua inserção num centro de reabilitação.
De um modo geral assistentes sociais envolvem-se numa avaliação social de
triagem da clientela do centro de reabilitação. Essa avaliação em geral contém
estudo e relato objetivo da situação familiar, do posicionamento da pessoa
deficiente nela, da pessoa que busca reabilitação como integrante de uma
vizinhança ou de um círculo de pessoas com as quais se vincula de alguma
forma, do regime de sua vida familiar e seu ajustamento ao mesmo, das
dificuldades e das barreiras que demonstra como um ser social, de sua vida
extra-familiar, seja escolar, seja de ordem cultural.
Além disso, assistentes sociais podem ter um papel muito relevante na
interpretação do programa do centro de reabilitação, procurando, ao lado de
outros profissionais, e com eles entrosados, levar a pessoa deficiente ao
aproveitamento máximo da oportunidade que tem, procurando afastar
eventuais obstruções ao seu progresso, quer elas partam do próprio cliente,
quer partam de seus amigos e colegas, quer partam de algum profissional da
equipe.
Quanto ao psicólogo, teremos uma atuação muito significativa no processo
de triagem, pois uma avaliação psicológica é fundamental a fim de que a
equipe atue com propriedade em cada caso. O valor de uma adequada
avaliação psicológica não pode ser minimizado, pois é através dela que a
equipe do centro de reabilitação terá condições de não só selecionar bem os
casos, como também de trabalhar bem com eles. A avaliação preparada pelo
psicólogo, devidamente complementada e feita por médicos e assistentes
sociais, ajudará o programa de condicionamento físico, o de avaliação e
ajustamento ao trabalho, o de treinamento profissional, os vários aspectos e
momentos de aconselhamento no centro e fora dele, e facilitará a compreensão
do cliente e a adequação do programa conforme suas características e
necessidades. Uma boa avaliação psicológica deverá conter tudo aquilo que
pode ser conhecido como atividade intelectual, análise de personalidade e seus
traços principais, análise dos interesses e aptidões e a opinião do profissional
quanto a recomendações e contra-indicações. Não pode nem deve ser um
mero relatório de alta sofisticação a ser inserido no prontuário do cliente, mas
um instrumento de utilização prática para toda a equipe. Deve ser claro e
objetivo, com indicativos seguros quanto às aspirações do cliente e quanto às
condições psicológicas de natureza positiva ou negativa, e da orientação do
que ele necessita para melhorar.
Durante o processo de reabilitação, o psicólogo poderá estabelecer um
programa de assistência psicológica regular para casos que considerar
oportunos face a dados em seu poder desde o processo inicial de triagem, ou
para casos nos quais pode ocorrer uma solicitação da própria equipe do centro
de reabilitação.
Nem o assistente social nem o psicólogo podem atuar isoladamente em seus
papéis na realidade de um centro de reabilitação. Hoje em dia, em centros de
reabilitação de orientação mais moderna e objetiva, existe uma pequena
equipe de ajustamento psico-social que trabalha com o propósito de colaborar
com a pessoa deficiente para que ela consiga se posicionar face às exigências
da vida em competição e consiga assumir as responsabilidades
correspondentes à vida independente. Essa atuação de alta necessidade inclui,
em diversos casos, educadores que desenvolvem programas de treinamento
mental para tomadas de decisão ou atividades práticas destinadas a levar a
pessoa deficiente a um bom ajustamento pessoal, por meio da educação de
base, em estreita colaboração com a programação específica do serviço social
e da psicologia.
- *Ajustamento à vida de trabalho*
O trabalho muito contribui para a auto-estima e confiança e para determinar
o status da pessoa adulta. Seu papel é de fundamental importância para o
indivíduo obter um meio de vida satisfatório e produtivo. Pode-se perceber,
com muita clareza, a extensão com a qual o trabalho contribui para o bem-estar
do ser humano, pelo grau de ajustamento emocional, físico e intelectual que
pode provocar, desde que o trabalhador esteja nele bem ajustado.
Esta observação é de um modo todo especial verdadeira com indivíduos
portadores de deficiências físicas ou mentais de alguma severidade, para os
quais obstáculos para uma vida útil e feliz no trabalho e na vida social
assumem proporções bem maiores do que para outras pessoas que não têm
problemas da mesma natureza.
Estes pontos de reflexão nos chamam a atenção para a necessidade de um
programa que nunca poderá deixar de ser completo, global, onde todos os
aspectos da vida do ser humano precisam entrar em consideração. E em tudo
aquilo que se relacionar, direta ou indiretamente, à vida de trabalho, a
adequação da pessoa deficiente às exigências de uma atuação produtiva
requer um cuidado todo especial.
Dentre os múltiplos requisitos para um programa dessa natureza, é
fundamental que haja um aconselhamento prático que ajude a pessoa
deficiente a raciocinar com segurança quanto às perspectivas reais do mercado
de trabalho e das possibilidades dela ser por ele absorvida; é necessário que o
centro de reabilitação estabeleça um método próprio destinado à avaliação do
potencial da pessoa deficiente para a vida de trabalho, avaliação essa que
deverá ser capaz de indicar um trabalho específico que seja adequado não só
ao físico prejudicado, mas às aspirações do indivíduo. Além disso, torna-se
necessário desenvolver programas de ajustamento a situações de trabalho, de
treinamento profissional para dar à pessoa deficiente armas bastante
poderosas para poder enfrentar o mundo competitivo do trabalho, e de
colocação e seguimento dos casos colocados, para garantia de seu sucesso.
As dificuldades usuais que uma pessoa deficiente que tenha enfrentado o
processo de reabilitação poderia encontrar para se integrar na sociedade
produtiva, deve-se acrescentar problemas relacionados a atitudes muito pouco
adequadas que ela vai encontrar por parte de segmentos da sociedade. Devido
a esses tipos de atitudes a reabilitação não pode deixar de trabalhar com o
indivíduo para que ele domine quase perfeitamente as condições que poderão
facilitar sua aceitação como um ser normal.
Os aspectos específicos do processo de reabilitação que se relacionam ao
ajustamento profissional estão normalmente divididos em atividades que são
variáveis, dependendo do tipo de centro e da orientação seguida; mas de um
modo geral essas atividades englobam:
- avaliação e ajustamento ao trabalho;
- treinamento profissional;
- colocação e seguimento dos casos.
Para muitos centros de reabilitação essas atividades podem se confundir
numa só, enquanto que certos recursos levam sua programação da área de
ajustamento profissional apenas até os aspectos de avaliação e ajustamento
ao trabalho, deixando aos próprios reabilitandos a responsabilidade de obter e
manter sua colocação. Teremos oportunidade de melhor analisar estes
assuntos no capítulo especificamente dedicado a eles.
- *Hábitos, atitudes e comportamentos*
Como em diversos outros tipos de empreendimentos, as tonalidades da
programação de um centro de reabilitação também podem divergir e acabam
dependendo não apenas da orientação de seu elemento diretivo, mas também
do tipo, da adequacidade e da profundidade de preparo de componentes de
sua equipe de reabilitação.
Por que existem os Centros de Reabilitação? Para prover um programa
centralizado e individualizado para pessoas portadoras de deficiências que
vivem em situação de marginalização e que não conseguem sair dessa
situação por seus próprios meios, procurando cobrir suas necessidades
básicas em todos os sentidos, para com isso levá-las a um nível mais
adequado possível de atuação individual e social.
No entanto, um centro de reabilitação só poderá atingir esses propósitos
com um trabalho muito sério e voltado para a imperiosa necessidade de fazer
com que pessoa deficiente seja “integrável” na sociedade. Para tanto, é básico
que trabalhe não só com o físico ou com a preocupação de encontrar uma
colocação ou re-colocação em trabalho competitivo, mas com a eventual
alteração de hábitos, atitudes e comportamentos do indivíduo face à sua
deficiência, face à família, à comunidade, ao mundo que nos cerca em todos os
momentos de nossa vida.
Assim, a questão não é apenas dar emprego a um portador de deficiência
física que vive da caridade pública, mas levá-lo a lembrar valores médios e
aceitos pela sociedade à qual pertence (ou pretende pertencer), que talvez ele
tenha esquecido, perdido ou posto de lado face às circunstâncias e à
necessidade de sobreviver. O sentido de dignidade e o amor próprio devem
também ser trazidos à tona por meio de atividades próprias reforçadas pela
atuação de toda a equipe de reabilitação. Essas atividades específicas
precisam ser criadas, pois elas favorecerão o ressurgimento ou a criação de
hábitos, de atitudes e de comportamentos que a sociedade pode esperar de
cada um daqueles que dela pretendem fazer parte. Em poucas palavras: A
pessoa deficiente precisa ter meios para tornar-se “competente” para enfrentar
as situações que esperam todos aqueles que são integrados a uma vida social.
Não é repetição desnecessária voltarmos a lembrar os princípios
fundamentais da reabilitação, pois se considerarmos, de fato, que lidamos com
pessoas que - apesar da deficiência - têm dignidade, valor, potencial e direitos
inalienáveis, é necessário que verifiquemos com critério se o centro ou
programa de reabilitação do qual participamos não só mantém programação
que esteja de acordo com esses princípios, mas também se essa programação
funciona concretamente. Precisamos manter-nos alertas para o fato de que a
reabilitação, ou o processo de integração social que todos defendemos, não é
apenas o resultado de um processo tecnológico ou do surgimento de grupos
profissionais novos no cenário das profissões. Onde quer que esse programa
se desenvolva com pujança ele é conseqüência de uma linha de pensamento
humanista predominante, passado para a prática. O humanismo prático
depende muito da atitude mental de cada um de nós em dar importância ao
homem, às suas faculdades, ao seu potencial, à sua individualidade, à sua
liberdade e ao seu bem-estar.
Onde quer que essa tecnologia moderna surja só como conseqüência do
progresso técnico, da mera importação de conhecimentos sem a indispensável
depuração, ou do interesse puramente econômico de alguns profissionais, ela
vacila e se descaracteriza no correr de sua implantação.
Há um certo ceticismo a respeito de alguns técnicos inseridos em
reabilitação (sejam eles médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais,
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, conselheiros de
reabilitação - não importa) que não atentam para a necessidade de se
conscientizar e de assumir uma linha de pensamentos básicos quanto ao
homem que procuram atender e que nela permanecem apenas pela
remuneração ou pela inexistência de opção para outras áreas. Existe também
uma atitude de reserva para com pessoas que apenas visam rentabilidade
econômica, números, estatísticas, grandes e modernas construções e que se
esquecem do homem portador de deficiência para o qual foi criado o processo
de reabilitação.
Considerada a expectativa que as pessoas deficientes têm quanto à atuação
de profissionais que se dedicam à reabilitação - sejam eles bem preparados ou
não - a programação de um centro de reabilitação, completamente voltada para
o ser humano com deficiência, deverá estabelecer como sua meta última a
integração social do indivíduo, mas esta só poderá ocorrer bem se a sociedade
estiver conscientizada e se o homem que nela pretende se integrar estiver bem
consigo mesmo e se considerar como um membro útil de um grupo familiar e
social.
- *A adequação pessoal e seu significado*
Todo ser humano tem necessidades que precisam ser satisfeitas, objetivos a
serem atingidos, sonhos a serem colocados em prática, qualquer que seja seu
nível intelectual, seu tipo de personalidade, seu grau de cultura. E todo ser
humano sente necessidade de eliminar ou de minimizar desconfortos e
dificuldades, como a fome, o cansaço, o sono, o fracasso, a insegurança, a
raiva, a pobreza, a carência. Precisa também satisfazer sua necessidade de
sucesso, de afeto, de segurança, de repouso, de “status” e outras mais.
Muitos de nós atingimos esses objetivos sem dificuldades maiores e sempre
que isso ocorre existe uma automática retomada de equilíbrio que estava
provisoriamente suspenso pela presença do problema. O processo de
ajustamento ou de satisfação de uma necessidade, no entanto, nem sempre
ocorre na hora certa, desejada, ou desejável; ou na forma planejada,
pretendida ou sonhada. Surgem barreiras diversas que podem impedir - e
impedem mesmo - o indivíduo de eliminar o problema ou de satisfazer a
necessidade sentida, em todo ou em parte. O que sucede, então? O ser
humano utiliza-se de vários meios e de situações para superar essas
dificuldades e não é sempre que os meios empregados são os mais
recomendáveis ou aceitáveis. E neste ponto do processo surge uma situação
de óbvio desequilíbrio, de desajustamento, de quebra de princípios éticos, de
infração a normas estabelecidas. É evidente que quando os objetivos são
atingidos por meios normalmente aceitáveis a pessoa sente aquela esperada
sensação de realização, de alívio, eliminando completamente ou reduzindo o
volume de atividades destinadas a contornar o problema e a atingir o alvo em
mira.
Psiquiatras e psicólogos têm estudado abundantemente as causas que dão
origem a necessidades e a frustrações para o homem em geral. Aqui estamos
interessados apenas e tão somente naquelas advindas de motivos mais
significativos que podem levar uma pessoa a um programa de reabilitação:
uma deficiência física, sensorial, mental ou orgânica e todos os estigmas
sociais criados contra ela.
As deficiências podem trazer ao indivíduo tensões emocionais múltiplas, pois
são fonte constante de frustrações as mais variadas, dentro dos diferentes
níveis de atuação do ser humano integrante de uma sociedade como a nossa.
Todos nós – pessoas com ou sem deficiências - tomamos todos os dias
diversas providências ou adotamos as mais variadas atitudes para satisfazer
necessidades obstaculizadas por problemas vários que se interpõem entre
nossos desejos ou necessidades e o bem almejado. Isso acontece através
daquilo que os psiquiatras e psicólogos chamam de “mecanismo de
ajustamento” a situações. Em qualquer compêndio de psicologia
encontraremos explicações suficientemente claras a respeito e que nos
mostram que mecanismos de ajustamento podem ser evidenciados por
compensações, projeções, sublimações, racionalizações e diversos outros
tipos de comportamentos. Esses mecanismos, que podem ser de fuga, de
defesa, de ansiedade, dentre muitos outros, acabam levando o indivíduo a criar
hábitos por vezes inadequados, pouco aceitáveis ou combatidos pelo meio em
que vive ou do qual faz parte.
É teoricamente admissível o enquadramento do homem a uma situação
concreta, com comportamentos considerados normais, mesmo que ele traga
dentro de si motivos de sobejo para lançar mão de mecanismos de
ajustamento os mais variados. Em reabilitação, todavia, a pessoa deficiente
revela às vezes comportamentos inadequados, com hábitos e atitudes quase
sempre rejeitados pela sociedade.
Ao trabalhar com pessoas deficientes, voluntários e mesmo profissionais
razoavelmente bem preparados acham que a solução dos problemas da
clientela de reabilitação poderá encontrar-se na eliminação, na diminuição ou
na camuflagem pura e simples de uma deficiência. Há outros que consideram
estar a dificuldade resolvida com a solução do problema do trabalho
remunerado. Entretanto muitos são os profissionais de reabilitação melhor
conscientizados da profundidade dos problemas que atingem a pessoa
deficiente e que acabam se preocupando com o ser humano como um todo,
que percebem ter o problema facetas várias e que é fundamental envolver o
cliente para fazer com que ele assuma a responsabilidade de fazer tudo para
superá-lo.
Considerando que, além das dificuldades ocasionadas por certos tipos de
desvios ou de impedimentos, são os comportamentos inadequados e a
manifesta incompetência pessoal e social que levam as pessoas a situações de
marginalidade, a redução do impedimento já considerado, a eliminação
consciente de comportamentos menos aceitáveis e a conquista de um certo
grau de competência pessoal, familiar e social tenderão a gradativamente levar
o indivíduo às faixas de normalidade.
Não é sem motivo, portanto, que na programação de um centro de
reabilitação, o enfoque deve ser sempre globalizante, apesar de se notar que,
conforme o caso, o processo de ajustamento pessoal poderá ser desenvolvido
com diferentes ênfases e isso ninguém pode condenar. Em um centro de
reabilitação para o trabalho, por exemplo, o ponto principal de concentração de
esforços poderá estar voltado, e com muita razão, para hábitos e atitudes no
ambiente de trabalho.
- *Adequação pessoal - fator decisório na integração social*
Adequação pessoal é um objetivo e é conseqüente a um processo
sistemático de tratamento e de treinamento em reabilitação que utiliza vários
profissionais voltados todos para um trabalho individualizado ou em grupo, com
o intuito de propiciar às pessoas deficientes condições de compreender o
completo significado da vida familiar e social, o valor de seu próprio
envolvimento e as exigências da sociedade em termos de vida familiar, social e
profissional.
Dentro desse tipo de ênfase o processo reabilitacional procurará garantir
condições para ajudar a pessoa deficiente a alterar, se necessário, e a
desenvolver atitudes e comportamentos mais próprios à sua realidade e a
manter uma atuação aceitável nessa mesma realidade.
Para que a equipe que trabalha em reabilitação possa, ao desenvolver suas
atividades específicas, atingir esse objetivo, é preciso que auxilie, treine e
ensine as pessoas deficientes a desenvolver por si mesmas:
- conhecimentos mais claros do processo reabilitacional e de sua
importância para atingimento do objetivo de integração social;
- melhor aproveitamento do tempo de que dispõem no centro;
- o melhor condicionamento físico que puderem atingir;
- níveis aceitáveis de estabilidade emocional;
- habilidades sociais mínimas de acordo com seus objetivos de vida;
- confiança em seu potencial e aspirações realistas;
- estabelecimento ou reaquisição de valores pessoais;
- hábitos normais de trabalho, tais como comparecimento pontual e
constante, envolvimento em todas as etapas do dia de trabalho, higiene
pessoal e apresentação adequada ao ambiente, nível correto de
relacionamento no trabalho e fora dele, perseverança no trabalho em todas as
suas fases;
- resistência à fadiga e tolerância às rotinas da vida de trabalho;
- habilidade de ouvir críticas consideradas menos justas, e de analisá-las
sem reações impróprias;
- atuação de trabalho sem atitudes e comportamentos tendentes a
interrompê-la;
- capacidade de resolver problemas por seus próprios recursos;
- equilíbrio no reconhecimento de suas limitações e na busca de ajuda.
Os componentes indispensáveis de um programa de adequação pessoal
desenvolvido num centro de reabilitação global, por sua equipe multidisciplinar
de trabalho, são vários.
Em primeiro lugar devemos procurar garantir a todos os membros da equipe
a possibilidade da observação direta para a identificação de problemas
ocasionados por certos hábitos e atitudes das pessoas deficientes e o
estabelecimento dos objetivos a serem perseguidos com a sua ampla
participação. Concomitantemente a isso, é fundamental que se trabalhe com a
pessoa deficiente e sua família, por meio de entrevistas ou de atividades de
grupo, na identificação dos problemas mais significativos de sua vida familiar e
social. É muito importante também que seja feita uma clara análise dos
problemas que podem causar dificuldades comportamentais e uma definição
operacional do programa destinado à sua eliminação, com a integral
colaboração do cliente.
Assim sendo, é básico que todos os técnicos disponham-se a fazer
anotações e observações sistemáticas, relatando-as com objetividade.
Dentre vários tipos de material que poderão ser úteis na elaboração de um
programa dessa natureza, a equipe poderá tomar como parâmetros
orientadores para tal fim, um indicativo para identificação de problemas de
comportamento, que cada centro deve manter, com o devido critério, para
avaliação e para controle (V. anexos I e II).
Um programa de adequação pessoal da pessoa deficiente, como aqui
pretendido, é possível com a aliança das atividades próprias de cada setor do
centro de reabilitação com as atividades destinadas especificamente à melhoria
dos hábitos, atitudes e comportamentos dos clientes.
Deverá tal programa ser objeto de constantes estudos por parte da equipe
que o adotar, podendo a parte relacionada à adequação pessoal ser aplicada e
desenvolvida através de entrevistas, de atividades de grupo, de terapia de
apoio e de programações especiais de educação de base.
A preocupação com a eventual mudança de hábitos e comportamentos das
pessoas deficientes em programas de reabilitação nunca poderá ser isolada a
de um só profissional, ou meramente individual. Toda a equipe, durante todo o
programa, deverá voltar-se para ela.
Caberá ao setor de ajustamento psico-social do centro de reabilitação a
coordenação de programações dessa natureza.
ANEXO I
INDICATIVO PARA IDENTIFICAÇÃO DE COMPORTAMENTOS
Nome do cliente:
Treinamento na área de:
Data do início:
Encaminhado por:
Observações deste Indicativo válidas na data:
Levantamento feito por:
CONCEITOS: A = Ótimo, sem problemas; B = Deve ser melhorado; C = Deve
ser modificado; D = Inaceitável.
Observação: segue quadro: categorias – comportamento observado –
conceito.
CATEGORIAS
1. Aparência pessoal;
2. Hábitos irritantes;
3. Dificuldades de comunicação;
4. Assiduidade às atividades;
5. Pontualidade em geral;
6. Capacidade de resolver problemas;
7. Queixas pessoais;
8. Vitalidade nas atividades;
9. Resistência à fadiga;
10. Persistência na atividade;
11. Capacidade de seguir regulamentos;
12. Distração durante atividade;
13. Reações à mudança de tarefas;
14. Reações à monotonia;
15. Habilidade social com colegas;
16. Requer supervisão após tarefa nova;
17. Aceitação da supervisão;
18. Tensão devido à proximidade da supervisão;
19. Necessidade de ajuda da supervisão;
20. Reação à crítica ou pressão da supervisão;
21. Organização com equipamentos e materiais;
22. Comportamentos estranhos;
Comentários adicionais no verso
Assinatura.
ANEXO II.
LISTA DE COMPORTAMENTOS OU HÁBITOS INADEQUADOS
CATEGORIA 1. Aparência pessoal
- costuma comparecer com a pele ou cabelos sujos;
- tem mau hálito;
- excesso de gordura;
- mantém cabelos mal penteados;
- tem barba mal cuidada, para os que a usam crescida;
- barba mal feita ou por fazer, para os que se barbeiam;
- não usa desodorante quando deveria usar, devido ao odor;
- veste roupas manchadas;
- veste roupas amassadas;
- usa roupas rasgadas;
- veste roupas de tamanhos errados;
- veste roupas inadequadas (formais ou ao contrário);
- veste roupas necessitando de revisão ou conserto;
- usa roupas soltas que podem causar acidentes;
- usa sapatos muito largos, soltos e desamarrados;
- usa sapatos sujos, não-engraxados ou de má aparência descuidado com
vestuários, com zíper aberto, bolso cheio;
- usa cosméticos inadequadamente;
- tem posturas inadequadas;
- mantém dentes sujos, que necessitam ser escovados;
- tem caspa e não cuida do assunto;
- tem odor característico da falta de asseio corporal;
- costuma ter olhos sujos;
- mantém unhas compridas, mal cuidadas e sujas;
- costuma ter mãos sujas;
- costuma ter nariz sujo;
CATEGORIA 2: Hábitos irritantes
- assobia sem parar ou com muita persistência;
- cantarola sempre;
- canta continuadamente;
- mantém riso constante;
- tosse em excesso e sem necessidade;
- tem respiração funda e sonora;
- funga sempre, aparentemente, sem necessidade;
- limpa a garganta com freqüência excessiva e desagradavelmente;
- cospe sempre que limpa a garganta;
- tamborila os dedos incessantemente;
- tamborila sempre com ferramentas, lápis, pés, dedos e outros objetos;
- mastiga goma de modo desagradável;
- chupa ar pelos dentes;
- morde a dentadura de modo muito visível;
- balança o corpo enquanto trabalha ou estuda;
- costuma coçar o nariz ou o rosto;
- coça a barba ou o cabelo com freqüência;
- coça partes do corpo com freqüência e ruidosamente;
- vive pregando peças nos outros;
- chupa ar barulhentamente pelo nariz;
- estala os dedos com freqüência;
- encara as pessoas distraidamente;
- roe as unhas;
- costuma virar os olhos quando conversa;
- faz caretas ou palhaçadas constantes e em momentos inadequados;
CATEGORIA 3. Dificuldades de comunicação
- gesticula demais ao falar;
- fala demais, sem dar chance aos outros;
- tem fala inaudível;
- fala fanhosamente;
- fala excessivamente rápido;
- gagueja sempre ou ocasionalmente;
- fala alto demais;
- mantém tons de voz guturais;
- usa palavras de baixo calão;
- usa gíria em excesso;
- deixa de fazer perguntas na hora certa;
- vocabulário limitado, não dando nomes certos às coisas ou pessoas;
- fala em linguagem extremamente errada;
CATEGORIA 4. Assiduidade às atividades
- falta à atividade várias vezes sem dar a mínima justificativa;
- fica ausente da atividade diversos dias consecutivos;
- fica ausente da atividade diversos dias alternados;
- deixa a área de atividade por meia hora, pedindo a colega para justificar-se
diante do supervisor ou técnico;
- fica freqüentemente ausente devido a motivos particulares;
- fica ausente duas horas para uma entrevista de meia hora;
- inventa pretextos para se ausentar ou manter-se ausente;
- falta à atividade por motivos triviais;
- inventa motivos graves para faltar, mentindo ao supervisor;
CATEGORIA 5. Pontualidade em geral
- esquece-se de marcar o cartão do ponto;
- começa a atividade apenas depois dos outros terem começado;
- conversa com os colegas cinco minutos antes de começar;
- habitualmente atrasado nas atividades;
- gasta muito tempo nos intervalos para descanso;
- chega atrasado após o intervalo do almoço ou do lanche;
- é o último a chegar após o intervalo;
- demora-se muito para começar nova tarefa;
- sempre atrasado para entrevistas com pessoal de supervisão;
- não aceita que o relógio do ponto esteja certo;
- procura chamar a atenção pelos constantes atrasos;
CATEGORIA 6. Capacidade de resolver problemas
- indiferente a problemas que ocorrem por perto;
- interrompe sua atividade e espera ajuda nos mínimos problemas;
- grita pelo técnico ou supervisor quando encontra dificuldades;
- acusa os colegas de causadores de seus problemas;
- persiste por mais de uma hora tentando resolver problemas sem pedir ajuda,
quando a ajuda é indispensável;
- pede ajuda imediatamente, sem experimentar resolver o problema por sua
própria iniciativa;
- fica apertando e torcendo as mãos ou fica tremulo quando solicitado a
desenvolver trabalho de cooperação com colegas;
- bate com ferramentas e materiais na bancada para obter ajuda;
CATEGORIA 7. Queixas pessoais
- expressões de doença ou de mal-estar;
- queixas de dor de cabeça;
- queixa-se constantemente de dores de estômago, em várias partes do
corpo, musculares e outras – hipocondríaco;
- queixa-se de câimbras, calafrios, cansaço generalizado e sono;
- indicativos de dores físicas, de depressão, de desconforto: franze a testa,
manca, suspira alto, geme, tem respiração rápida, boceja;
- declarações evidentes de desagrado pelas atividades que desenvolve;
- queixa-se do ambiente onde desenvolve suas atividades: temperatura,
iluminação, equipamentos, bancadas, assentos, ferramentas, barulho;
- verbalizações negativas ou depreciativas por outras pessoas, tais como
colegas, técnicos, supervisores e outros;
- expressões de inconformismo ou de remorso por causa de certos infortúnios,
tais como doenças, mortes de membros da família, problemas financeiros, falta
de amigos, inadequacidade pessoal;
CATEGORIA 8. Vitalidade nas atividades
- move-se com lentidão e produz abaixo da média de produção na parte da
manhã;
- é lento em atividades ou tarefas que deve desenvolver parado, numa
bancada, mostrando maior vitalidade em trabalhos movimentados;
- trabalha vagarosamente quando sozinho, mas recobra velocidade quando
colegas e supervisores estão envolvidos;
- mostra-se cansado durante todo o dia de trabalho;
- é constantemente apático e indiferente ao trabalho;
- atua com ansiedade e grande agitação;
CATEGORIA 9. Resistência à fadiga
- trabalha com maior lentidão no período da tarde do que da manhã;
- queixa-se de tarefas pesadas e puramente braçais;
- produtividade evidentemente reduzida durante a sexta-feira;
- mostra sinais de fadiga no final do dia de atividades;
- pede para repousar duas ou três vezes por dia;
- descansa a cabeça na bancada em intervalos freqüentes;
- sente falta de ar e reclama quando colocado em área de trabalho mais
pesado;
- mantém postura inadequada na bancada de trabalho;
CATEGORIA 10.Persistência na atividade
- faz quatro ou mais intervalos por hora para fumar ou relaxar;
- vagueia longe da área de trabalho;
- fica olhando para o vazio durante o dia várias vezes;
- encontra diversas desculpas para interromper o trabalho, perguntando
coisas irrelevantes ao supervisor;
- leva duas vezes mais o tempo em tarefas que não aprecia;
- gasta uma boa parte de seu tempo de trabalho arrumando e re-arrumando
materiais e ferramentas de trabalho;
- tem manifestações repentinas de velocidade por menos de meia hora e
então reduz a produtividade para quase zero ao final da hora;
- começa novas tarefas antes de terminar as iniciadas;
CATEGORIA 11.Capacidade de seguir regulamentos
- tenta ou arrisca-se a operar equipamento ou máquina potencialmente
perigosos,sem permissão e sem supervisão;
- fuma em áreas proibidas;
- deixa ferramentas, materiais, máquinas ou equipamentos em corredores, no
chão ou em locais inadequados;
- deixa de colocar em boa ordem áreas de trabalho e não devolve aos
respectivos lugares ferramentas e equipamentos utilizados;
- distrai outros que estão trabalhando com o uso de equipamento
potencialmente perigoso;
- deixa de se proteger e de vestir aventais de segurança, sapatos, óculos de
proteção e outros;
- faz brincadeiras de mau gosto com colegas, pondo em perigo a si próprio e
aos outros por não escolher local ou momento adequado;
- mantém atitudes viscosas, face ao regulamento em vigor;
CATEGORIA 12.Distração durante a atividade
- interrompe seu trabalho diversas vezes numa hora;
- olha peia janela a cada dois minutos;
- cumprimenta cada pessoa que passa pela sua bancada, mesmo que já o
tenha feito antes;
- levanta os olhos do trabalho cada vez que um ruído mais alto do que um
sussurro é ouvido;
- lança olhares distraídos pela oficina ou ambiente a intervalos regulares;
- leva mais de cinco minutos para retomar uma tarefa interrompida por
qualquer motivo;
- não consegue concentrar-se quando por perto haja alguém do sexo oposto;
CATEGORIA 13. Reações à mudança de tarefas
- aceita com má vontade sua indicação para qualquer tipo de nova tarefa;
- rejeita sua indicação para alguns trabalhos mas não para outros;
- aceita alterações nas tarefas, mas é necessário uma grande quantidade de
apoio e de encorajamento;
- aceita alterações de má vontade, mas tornará sua atuação mais lenta ou
sabotará o trabalho propositadamente, fazendo-o incorretamente;
- adapta-se com dificuldade à maior parte das alterações em suas tarefas;
- fica confuso com as rápidas e freqüentes alterações nas tarefas;
- mostra-se inconformado com mudanças de tarefas;
CATEGORIA 14. Reações à monotonia
- recusa-se a realizar a tarefa;
- reluta, exigindo encorajamento ou pressão da supervisão;
- reduz significativamente a velocidade ou qualidade de trabalho;
- há aumento de distração ou de falta de atenção;
- reclama constantemente com os colegas;
- há aumento de reclamações por motivos físicos;
- interrompe seu relacionamento com colegas;
- boceja ruidosamente e sem necessidade;
CATEGORIA 15.Habilidade social com colegas
- dá as costas ou vai embora quando um colega se aproxima;
- demonstra indiferença quanto ao progresso social dos colegas (por exemplo,
deixa de responder a cumprimentos, deixa de responder adequadamente a
perguntas que lhe são dirigidas);
- esquiva-se de qualquer tipo de contato social com pessoas do sexo oposto;
- foge de todo contato social, exceto com um ou dois indivíduos;
- comporta-se de maneira exagerada ou é dado ao flerte indiscriminado com
pessoas do sexo oposto;
- nunca inicia saudações ou conversas;
- faz tentativas exageradas para fazer amigos ao ponto de o indivíduo passar
a ser considerado uma praga pelos demais;
- interrompe conversa dos colegas para poder juntar-se ao grupo;
- domina as conversas dos colegas ao ponto deles deixarem o grupo;
- fica freqüentemente irritado com seus colegas;
- tenta freqüentemente incitar discussões, por puro antagonismo;
- estimula rivalidades entre colegas através de mentiras ou de mexericos;
- ridiculariza os problemas físicos dos outros;
- mantém uma interação com colegas muito variada devido ao próprio humor;
- faz constantes mexericos e é dado às fofocas;
CATEGORIA 16.Supervisão após tarefa nova
- dispensa a supervisão de imediato após as primeiras orientações quanto a
novas tarefas;
- precisa de considerável apoio e encorajamento para poder produzir a nível
aceitável;
- solicita supervisão e orientação de colegas para novas tarefas;
- necessita de repetidas explicações com freqüência;
- gasta considerável tempo do supervisor na identificação de falhas;
- tende a ser descuidado quando trabalha com ferramentas ou com máquinas
elétricas;
- chama constantemente o supervisor após receber tarefas novas;
CATEGORIA 17.Aceitação da supervisão
- relaciona-se inadequadamente com todos os supervisores;
- trata supervisores como amigos, esperando ser tratado diferentemente dos
demais colegas de trabalho;
- dá a impressão de reconhecer a autoridade do supervisor, mas faz seu
trabalho à sua própria maneira quando ele se ausenta;
- reconhece a autoridade de todos os supervisores, mas dá a impressão de
trabalhar melhor sob supervisão mais permissiva;
- recusa-se a aceitar supervisão, exceto que venha de certo indivíduo ou de
certo tipo de supervisor (por exemplo: que seja homem, ou que seja mulher,
que dê apoio, etc.);
- recusa-se ruidosamente a aceitar a supervisão e mantém atitudes de quem
sabe e pode fazer como quiser;
CATEGORIA 18.Tensão devido à proximidade da supervisão
- aumenta a velocidade da atividade com prejuízo de sua qualidade;
- melhora a qualidade, mas diminui a velocidade;
- fica desajeitado, derruba materiais, aumenta volume de erros;
- agita-se, tremem suas mãos, transpira fortemente, ruboriza-se;
- parece perder o fio da meada, esquece-se de fases do trabalho, deixa de
seguir instruções;
- não muda visivelmente com a proximidade da supervisão, mas fica em
tensão que poderá vir a ser prejudicial;
- interrompe completamente a atividade quando o supervisor está próximo;
CATEGORIA 19.Necessidade de ajuda da supervisão
- pede freqüentemente e exageradamente a ajuda do supervisor a fim de
obter sua atenção;
- continua trabalhando em vez de pedir ajuda quando incerto se o trabalho
está sendo feito corretamente;
- chama o supervisor aos gritos, de modo a chamar sua atenção;
- pede ajuda aos colegas por receio de parecer pouco inteligente aos olhos do
supervisor;
- interrompe o supervisor quando ele está ocupado ou conversando com
alguém;
CATEGORIA 20. Reação à crítica ou pressão da supervisão
- mostra sinais de ansiedades ou de temor, incluindo gagueira, transpiração,
choro, mãos trêmulas;
- fica desajeitado, derrubando ferramentas ou materiais;
- demonstra resistência ao supervisor, inclusive discutindo, queixando-se de
problemas físicos, responsabilizando os colegas, as ferramentas ou o próprio
local de trabalho, pedindo para ser transferido para trabalho diferente, com mau
humor e recusando-se a continuar no trabalho;
- há um decréscimo imediato na velocidade, acompanhado de aumento no
número de erros;
- passa a trabalhar mais rápido, sem alterações perceptíveis;
- culpa companheiros de trabalho ao receber críticas da supervisão;
CATEGORIA 21 .Organização com equipamentos e com materiais
- tem movimentos inadequados;
- usa inconvenientemente ou impropriamente ferramentas;
- deixa o local de trabalho com freqüência para obter ferramentas ou
materiais;
- estoca materiais de maneira imprópria ou perigosa;
- mantém movimentos desnecessários e sem utilidade;
- gasta muito material como resultado de seus descuidos;
- costuma fazer trabalho mal feito;
- costuma furtar material ou ferramentas;
CATEGORIA 22. Comportamentos estranhos
- há mudanças freqüentes e/ou extremas entre períodos de muita e de pouca
atividade, com mudanças conseqüentes na disposição geral;
- períodos de alta produtividade podem ser caracterizados por risadas
inadequadas;
- palavreado rápido e inconseqüente;
- barulho, movimentos rápidos e exagerados do corpo;
- períodos de baixa produtividade coincidem com isolamento de contatos
sociais, choro ou opiniões negativas a seu próprio respeito;
- mantém o olhar no vazio por longo período de tempo, ao ponto de parecer
totalmente alheio ao ambiente que o cerca;
- tem reações inadequadas à crítica, com riso, choro, explosão de
temperamento ou completa falta de reação;
- fala ou ri consigo mesmo nos momentos em que parece alheiado ao que faz
ou ao ambiente que o cerca - incapaz de responder, quando solicitado, a
informar a respeito do que fala ou ri;
- faz comentários ou dá resposta totalmente estranhos ao tópico de
conversação ou de comentário;
- conta estórias ou faz declarações que são evidentemente mentirosas
especialmente quando o indivíduo não parece estar alerta quanto às
inverdades;
- faz freqüentes tentativas de ouvir conversas, olhando diretamente os outros,
olhando por sobre ombros, devido à própria crença de que estão falando de si,
estão gozando de sua pessoa ou por não gostar de sua pessoa;
- tem preocupação excessiva com limpeza, ordem e higiene, demonstrada
pelas constantes idas ao banheiro para lavar as mãos;
- demanda excessivo tempo para ordenar seus materiais e ferramentas;
- faz freqüentes limpezas na área de trabalho, ou estudo, ou atuação, ao
ponto de essas atividades ocuparem mais tempo do que a principal;
(Esta lista está parcialmente baseada em levantamento contido em trabalhos
de Luís Carlos Dutra - Ver Bibliografia)
CAPÍTULO QUARTO
PREPARO PARA A VIDA DE TRABALHO
Conforme verificamos anteriormente o programa de ajustamento profissional
dentro do processo de reabilitação de pessoas deficientes tem vários
componentes que são basicamente os seguintes.
- aconselhamento para a vida de trabalho;
- avaliação e ajustamento ao trabalho;
- treinamento profissional;
- colocação em emprego e seguimento.
O ajustamento profissional pressupõe, é óbvio, bons níveis de ajustamento
psico-social e um bom condicionamento físico.
Muito embora haja padrões já reconhecidos para o funcionamento dos
componentes de um programa dessa natureza, para alguns clientes o processo
poderá significar a inclusão em todas as atividades programadas, enquanto
que para outros poderá se resumir numa simples tomada de posição quanto a
problemas de ordem prática de trabalho, ou talvez numa simples colocação. De
acordo com princípios anteriormente expostos, pelo simples fato de a
reabilitação lidar com seres humanos, sua programação deverá ser adaptada
às suas peculiaridades e deverá ser flexível, pois cada caso considerado
individualmente apresentará características próprias e demandará soluções
específicas.
- *Aconselhamento para a vida de trabalho*
O processo de aconselhamento para a vida de trabalho é iniciado logo após
a determinação da elegibilidade da pessoa deficiente ao programa
reabilitacional, através de avaliações que cobrem os aspectos do potencial
físico e problemático correspondente, de sua estrutura psicológica e de seus
problemas sociais e familiares. O conselheiro de reabilitação deverá fazer seu
primeiro contato com a finalidade de obter da pessoa deficiente certos tipos de
informação e também de formar seu próprio juízo quanto aos seguintes pontos
de básica importância em sua vida:
- Características pessoais;
- Experiência educacional;
- Experiência profissional;
- Aptidões e potencialidades;
- Interesses;
- Capacidade física para o trabalho;
- Capacidade mental.
A finalidade desse estudo é a elaboração de um plano concreto de atuação
nos diversos tipos de atividades do programa do centro de reabilitação, com a
participação consciente da pessoa portadora de deficiência em busca de sua
Integração social.
Vejamos, porém, alguns importantes ângulos do conteúdo do processo de
aconselhamento de pessoas deficientes em reabilitação, com a finalidade de
obter o seu melhor ajustamento profissional. E para tanto, nada melhor do que
analisar, ponto por ponto, os itens acima indicados.
a) Características pessoais: As características individuais e as atitudes da
pessoa para com o trabalho são, juntamente com a destreza manual, fatores
muito importantes na determinação da adequação de uma pessoa deficiente
para um trabalho em competição no mercado aberto.
Entretanto, o simples fato de viver ou de ter a pessoa vivido uma deficiência
física, por exemplo, e as contínuas dificuldades encontradas na vida familiar e
social, podem levar o indivíduo a se sentir em uma posição desvantajosa no
mundo do trabalho. A mensuração desses fatores não é nada fácil e o
conselheiro de reabilitação deverá, para tanto, basear-se em resultados dos
estudos ou da atuação dos médicos, dos psicólogos, dos assistentes sociais e
de diversos outros profissionais que atuam em reabilitação. Técnicos bem
treinados poderão chegar a posições bem delineadas com relação a esses
problemas, devido à sua atuação diária e devido às observações que são
rotineiramente feitas nas oficinas de avaliação ou de ajustamento profissional.
As entrevistas com o conselheiro de reabilitação poderão ser um excelente
instrumento para a obtenção de um quadro bem objetivo das características
pessoais do reabilitando, bem como de suas atitudes para com o programa do
Centro e, é evidente, de sua futura vida profissional e social. Vale lembrar,
todavia, que, por melhor e mais tarimbado que o conselheiro de reabilitação
seja - e esta observação é válida para toda a equipe - quando esse quadro de
características e atitudes não for informado por um estudo psicológico, familiar
e social da pessoa deficiente, ele poderá se tornar simplesmente inconclusivo e
muito limitado.
Já que as características pessoais são aquelas que mais influenciam na
formação e na manutenção de hábitos, de atitudes e de comportamentos da
pessoa, sua observação poderá dar à equipe condições para trabalhar com
mais segurança em seu ajustamento global.
b) Experiência educacional e profissional: A entrevista do conselheiro de
reabilitação procurará fazer uma verdadeira análise das experiências
relacionadas à vida escolar, à forma como a pessoa deficiente vê o problema
de sua educação e o que isso poderá significar em sua vida futura. Será
necessário também que o profissional analise com cuidado as experiências de
trabalho já vividas pela pessoa sob orientação, com informações quanto ao tipo
de empresa em que trabalhou, remunerações percebidas, atribuições e
requisitos para o desempenho de suas funções, ambiente de trabalho, motivo
de desligamento e ida para uma nova empresa, quando for o caso.
Será, portanto, de extrema valia essa análise quanto à vida educacional e de
trabalho, tendo em vista o papel que a vivência anterior representa nas atuais
atitudes do reabilitando, face a um programa de aprendizado. Dessa análise
poderão ser retirados e utilizados muitos dados e informações de real valia
para a pessoa portadora de uma deficiência planejar com a equipe o
desenvolvimento de seu programa de atividades no centro de reabilitação.
c) Aptidões e potencialidades: A simples existência ou a constatação de uma
aptidão revela o fato límpido de a pessoa ser dona de uma facilidade ou de
uma habilidade para aprender e para fazer, a qual, pela prática ou pelo
treinamento sistematizado, poderá ser transformada em experiência. A aptidão
em geral envolve mais do que a simples capacidade de adquirir
conhecimentos. E ela que faz desabrochar o interesse e o desejo de aprender
algo. Ela não promete à pessoa o sucesso, mas é indicativa de alguma
facilidade na aquisição de técnicas de atuação e de habilidades no trabalho.
Notemos, porém, que para uma aptidão ser transformada numa habilidade
concreta, ou seja, numa capacidade real efetiva, ela depende de muitos fatores
e de esforços de seu detentor.
Assim, a capacidade já é uma habilidade adquirida, em geral conseqüente a
uma tendência ou a aptidões. Mas também uma capacidade poderá não estar
ligada a qualquer aptidão e sim a esforços contínuos, conscientes e bem
determinados por parte da pessoa. A capacidade retrata um estado
razoavelmente estável que precisa de constante prática para se manter.
As aptidões, normalmente classificadas em sensoriais, motoras e mentais,
manifestam-se de diversas maneiras. Assim é que as aptidões SENSORIAIS
dizem respeito aos sentidos (audição, olfato, paladar, visão e tato). As
MOTORAS são a velocidade, a força, a direção, a tração, a precisão, a
destreza e diversas outras, enquanto as MENTAIS são a inteligência, a
imaginação, a atenção, a memória e outras.
É básico esse tipo de conhecimento para todo profissional que trabalha em
reabilitação. No entanto, o conhecimento dessas características em cada um
dos reabilitandos dependerá de uma avaliação psicológica completa, incluindo
não só aptidões e capacidades, mas também seus traços de personalidade e
análise de seus interesses.
d) Interesses: O interesse pelo trabalho, por parte de uma pessoa deficiente
em processo de reabilitação, poderá ser consideravelmente aumentado com a
obtenção de certas satisfações pessoais, conseqüentes à constante
participação nas atividades a esse fim destinadas no centro de reabilitação. O
nível de interesse aumentará conforme crescer o seu prazer diante do trabalho,
isto é, além de desenvolver bem as atividades, ela deve ver essas atividades
com resultados que lhes sejam favoráveis.
O interesse não depende, todavia, "in totum", da qualidade do trabalho
executado. A pessoa deficiente poderá ter interesse por certos tipos de
trabalho ou atividade que não consegue executar com perfeição, devido a
circunstâncias várias, inclusive devido a uma deficiência adicional até então
não considerada.
Para alguns clientes de reabilitação, a dificuldade de certos tipos de tarefa
significa desafio, sendo esse um motivo mais do que suficiente para tentar
executá-la bem, dedicando-se ao máximo a ela. O pessoal que trabalha em
oficinas de reabilitação na qualidade de avaliador de atividades precisa ter
condições para distinguir o que a pessoa deficiente faz apenas para superar
um desafio e aquilo que ela faz por puro interesse. A atitude para com um
desafio é de extrema importância no processo de integração social,
principalmente ao se analisar, em confronto, suas atitudes em outras atividades
no programa. Se essa atitude for adequada e equilibrada, a equipe poderá
ponderar melhor as suas possibilidades de sucesso na vida após terminado o
processo de reabilitação.
O reabilitando demonstra interesse no trabalho pela sua aplicação e
dedicação a certos tipos de função, bem como pelo esforço intelectual e físico
dispendido na obtenção de melhorias ou de aperfeiçoar os resultados até então
conseguidos. Essas demonstrações de interesse ficam patenteadas de várias
formas, como, por exemplo, pela vontade de dedicar mais tempo do que o
indicado na tarefa, pela curiosidade e desejo de aprender mais, pelo desagrado
ao ter que interromper sua atividade na oficina, pela ordem, pelo cuidado, pela
limpeza que demonstra na bancada, pela atitude de permanente colaboração
com o instrutor de oficina.
O conselheiro de reabilitação deve estar informado quanto a alterações nos
interesses expressos pela pessoa deficiente e o avaliador de oficina é o
profissional mais indicado para discutir o assunto, na área de trabalho,
especialmente se tiver um preparo especial, como o de terapeuta ocupacional,
por exemplo.
e) Capacidade física: Ninguém pode medir a adequacidade de uma
colocação profissional apenas pela habilidade que a pessoa deficiente
demonstra na bancada de trabalho. Uma pessoa que possui a indispensável
habilidade ou capacidade de trabalho para certos tipos de tarefas, pode não ser
considerada boa para certa colocação no mercado competitivo de trabalho se
não tiver, além da habilidade requerida, a capacidade física para o trabalho
durante o dia todo, todos os dias da semana e todas as semanas do mês. A
mesma restrição poderá ser feita se puder trabalhar apenas por limitado
número de horas ou de dias. Problemas surgem também em outras áreas de
extrema importância, como, por exemplo, no que diz respeito a
comportamentos durante o trabalho, relacionados com colegas, com superiores
e outros mais.
Quando, no setor de avaliação e de ajustamento ao trabalho, o indivíduo
conseguir demonstrar pela sua atuação que pode ampliar o volume de horas
de trabalho diário até chegar às oito horas diárias, sem grandes dificuldades e
gradativamente, com a mesma produtividade, durante os cinco dias da
semana, teremos um resultado significativo em termos de condicionamento
físico para o trabalho.
Dependendo da cronicidade do mal e das características físicas da pessoa
deficiente, somente um período significativo numa oficina protegida de trabalho
poderá determinar com segurança sua resistência à fadiga e demais desafios
colocados pela situação de trabalho.
O conselheiro de reabilitação deverá estar perfeitamente a par desses
aspectos da atuação da pessoa deficiente em processo de reabilitação, uma
vez que só o gradativo aumento de sua capacidade física, por meio de um
programa constante de melhoria de suas condições físicas, supervisionado,
sempre que viável, por fisioterapeuta familiarizado com problemas e
características da deficiência, é que poderá dar condições dela enfrentar a vida
de trabalho competitivo, após sua passagem pelo centro de reabilitação.
f ) Capacidade mental: A capacidade intelectual de uma pessoa deficiente
que se submete a um programa de reabilitação global precisa ser conhecida e
devidamente considerada por toda a equipe. De um modo especial, precisa ser
contínua e concretamente lembrada pelo conselheiro de reabilitação, em seu
programa de aconselhamento para a vida de trabalho, pois é fator de
preponderante importância na determinação dos planos de trabalho.
Os níveis requeridos de aprendizagem para determinada área diferem muito
e chegam mesmo a contrastar marcadamente com os níveis para áreas afins.
O conhecimento da capacidade mental de um cliente de reabilitação é
importante também para o estabelecimento de planos exeqüíveis de colocação
profissional. Certos empregos competitivos exigem habilidades físicas e
mentais de determinada natureza, e se a pessoa deficiente não chegar aos
níveis requeridos, a colocação poderá redundar num grande fracasso.
Nesse sentido o conselheiro de reabilitação poderá ser ajudado não só pelos
resultados da avaliação psicológica como também pelos trabalhos
desenvolvidos no setor especifico do centro de reabilitação, destinado a
atividades de avaliação do potencial do indivíduo para o trabalho e de
ajustamento a situações concretas de trabalho em competição. O processo de
avaliação colabora muito com todo o esquema de orientação e expõe muito às
claras as capacidades que correspondem aos requisitos da colocação
competitiva pretendida.
No anexo I deste capítulo o leitor encontrará uma proposição de roteiro para
análise de cada caso que for encaminhado para programas de ajustamento
profissional.
- *Avaliação e ajustamento ao trabalho*
A avaliação para a vida de trabalho, ou "avaliação profissional" como é de
um modo geral conhecida, é um recurso fundamental que todo centro de
reabilitação global deveria procurar manter. Essa avaliação deverá ser
processada em unidade física praticamente acoplada a todos os demais
aspectos de ajustamento profissional do centro de reabilitação.
Trata-se de um processo que procura ajudar os indivíduos a entender o
significado, o valor e as exigências do trabalho; procura também colaborar para
que atitudes e hábitos positivos sejam corroborados, adquiridos ou modificados
e que características pessoais ou comportamentos voltem-se para a demanda
diuturna do ambiente de trabalho.
Um programa dessa natureza não poderá deixar de levar os clientes a
desenvolver hábitos funcionais.Usa, para tanto, a atividade de trabalho - e não
a terapia. Esse trabalho poderá ser real ou simulado e através dele procura
conhecer melhor o indivíduo e fazer um pouco de exploração profissional. Uma
oficina de reabilitação organizada para esses fins deve ser parte integrante do
processo de orientação de cada caso, sendo um dos mais positivos veículos de
capacitação do cliente, pois conscientiza-o praticamente do alcance das
medidas e do plano de reabilitação.
Dentre os aspectos que fazem parte das contínuas preocupações dos
sistemas de avaliação e de ajustamento ao trabalho, os mais relevantes e que
jamais poderão ser esquecidos são os seguintes:
a) Potencial do indivíduo para o trabalho: Para ter utilidade concreta no
programa de reabilitação, as atividades de avaliação e de ajustamento ao
trabalho devem oferecer ao cliente de um centro de reabilitação toda
oportunidade possível para demonstrar o seguinte:
- sua capacidade de preencher todas as condições necessárias para um
emprego competitivo, após o programa de reabilitação;
- sua aptidão para alguma das diversas oportunidades de treinamento
oferecidas pelo centro ou mantidas pela comunidade.
É necessário que a oficina de avaliação e de ajustamento ao trabalho esteja
planejada sobre bases sólidas não só quanto ao seu papel no processo
reabilitacional, mas também quanto às exigências do mercado aberto de
trabalho, relacionando-as ao potencial desse mesmo mercado quanto às
oportunidades de assimilação de pessoas deficientes, mas devidamente
qualificadas.
Isso não significa nem que a oficina deve ter possibilidade de testar o cliente
de reabilitação em todas as possíveis funções existentes no mercado de
trabalho, nem que a pessoa deficiente deva passar por todas as suas áreas de
análise. Significa, isso sim, que as atividades do setor devem ter aplicabilidade
ampla e estar bem relacionadas com as oportunidades de emprego, de tal
forma que o avaliador de oficina possa fazer um julgamento quanto ao
potencial do reabilitando para as oportunidades existentes.
Um fato que precisa ser levado em consideração num programa de
avaliação do potencial do indivíduo para o trabalho é que no campo das
profissões semi-qualificadas, de um modo geral, são os esforços físicos de
mediana intensidade e habilidades mais ou menos uniformes que são
requeridos, não interferindo muito com o fato de a pessoa ter ou não problemas
orgânicos ou deficiências não-aparentes, como nos casos de cardiopatias ou
de males da respiração. O problema está localizado muito mais no ambiente de
trabalho - calor, barulho, poeira, tensão, velocidade - do que no dispêndio de
energias físicas para desenvolver a atividade.
O cliente de reabilitação deve gradativamente dominar tudo aquilo que é
comumente indicado como mínimas condições para o trabalho, uma vez que
ele só conseguirá vencer na vida profissional se chegar a essas condições
mínimas aceitáveis de qualidade, de quantidade de produção, de adequado
relacionamento, de organização, de assiduidade, de pontualidade, de
apresentação pessoal, de atitudes - enfim, de bom ajustamento pessoal.
b) Significado para o indivíduo: A pessoa deficiente em programa de
reabilitação poderá beneficiar-se de muitas maneiras de uma boa programação
mantida por uma oficina de avaliação e de ajustamento ao trabalho. Como
acontece com a maioria das pessoas deficientes que nunca trabalharam, mas
que almejam muito uma situação efetiva de atuação remunerada, o cliente de
reabilitação vive num mundo de suposições e de fantasias quanto às suas
possibilidades, quanto às suas qualificações e pretensões para o futuro
profissional, logo após o término do programa. Ao passar por um organizado
sistema de avaliação e de ajustamento ao mundo do trabalho, passará a sentir
melhor a realidade e procurará, com a ajuda da equipe do centro, planejar e
concretizar um futuro profissional realista e atingível.
Nesta fase do programa de reabilitação, essa posição é conquistada não
apenas com o sucesso nesta ou naquela área avaliada, mas também com os
eventuais resultados medíocres ou de má qualidade, ao desenvolver as mais
variadas tarefas. É interessante notar que, enquanto alguns clientes de
reabilitação enfrentam um esquema de avaliação na certeza de que dominam
tudo, ou de que sabem tudo, especialmente quando se fala em hábitos de
trabalho, outros tomarão parte do programa com reservas e com temor de mais
um fracasso, pois tem a impressão de que nada mais sabem e de que não tem
experiência alguma válida. Ambos os tipos, e todos aqueles que são
intermediários, encontrarão o seu momento de verdade, pois o sistema
avaliativo poderá deixar muito claro que o primeiro não é tão bom quanto
gostaria de ser, enquanto que o outro extremo pode saber e sair-se
muito.melhor do que julgava.
Atividades de avaliação para o trabalho inseridas numa programação mais
ampla de ajustamento profissional muito beneficiará as pessoas deficientes na
gradativa e indispensável modificação de toda a gama de atitudes e de hábitos
inadequados que poderão tornar-se um bloqueio e interferir seriamente em seu
sucesso fora do Centro.
O indivíduo precisa absorver o verdadeiro papel do trabalhador, com todos
os comportamentos que o grupo pode esperar dele, tais como: ser pontual, ser
cordial, seguir orientações, concentrar-se, manter produção sem reduzir
qualidade e outros mais. Com a melhoria dos hábitos de trabalho, passará o
cliente de reabilitação a notar pessoalmente suas possibilidades de sucesso e
a ter mais confiança em seu futuro profissional.
Em geral, um programa de ajustamento às peculiaridades do trabalho a mais
longo prazo é indicado para casos de baixa produtividade, de atrasos ou
ausências constantes, de má reação às ordens da supervisão, da falta de
interesse, de dificuldades comportamentais, de dificuldades de relacionamento
com colegas, principalmente.
Devendo funcionar basicamente como unidade avaliativa e, conforme as
circunstâncias, como unidade destinada ao melhor ajustamento do indivíduo ao
trabalho, à oficina de reabilitação caberá elevar as possibilidades do
reabilitando para as atividades indicadas numa certa situação de trabalho
competitivo. Deverá sempre a oficina levar em consideração os pontos
indicados pela equipe de técnicos durante todo o programa de reabilitação.
c) O processo de ajustamento à vida de trabalho: Passado pela fase de
tomada de contato com o programa por meio das atividades que determinam a
elegibilidade para o centro de reabilitação, deverá o cliente adulto iniciar de
imediato sua programação no esquema de discussão de seus planos
profissionais. O seu primeiro contato nessa área será com o conselheiro de
reabilitação, pois será ele o coordenador de sua atuação nas atividades de
avaliação, de ajustamento, de treinamento profissional e de colocação,
conforme foi indicado mais acima.
O conselheiro de reabilitação deverá manter-se informado quanto ao
condicionamento físico e quanto à evolução das programações de ajustamento
psico-social do reabilitando. Logo após o primeiro contato o cliente de
reabilitação deverá ser encaminhado e iniciar imediatamente o programa da
oficina, para uma análise rápida de seu potencial para atividades de trabalho.
Com essa análise inicial será possível ao conselheiro discutir com o
reabilitando sua programação a prazo mais curto ou mais longo, na oficina de
avaliação e de ajustamento ao trabalho.
Assim, a oficina procurará, observadas as solicitações e as recomendações
do conselheiro de reabilitação, desenvolver uma avaliação inicial mais
pormenorizada e logo após procurará trabalhar o potencial do cliente para o
programa de ajustamento à vida de trabalho e eventualmente para treinamento
profissional de algum tipo, mantido pelo centro ou pela comunidade.
No sistema de funcionamento usual de um centro de reabilitação global,
caberá ao conselheiro de reabilitação - como coordenador da área de
ajustamento profissional - fazer solicitações especificas à oficina quanto à
observação de hábitos e comportamentos, bem como quanto à observação
destinada a determinar o potencial do indivíduo para o trabalho, que deverá ser
medido pelos avaliadores de oficina através de um formulário próprio, no qual
uma lista de requisitos deverá deixar bem claro o que deve ser observado e/ou
medido, para um concomitante aproveitamento daquilo que poderá prejudicar a
pessoa em sua vida de trabalho e/ou social.
Ao ser concluída, uma avaliação para o trabalho poderá sugerir uma ou
várias das seguintes providências:
- colocação imediata do indivíduo;
- necessidade de educação complementar;
- desejo e necessidade de um treinamento formal;
- necessidade de atividades para correção ou alteração de falhas em sua
atuação como trabalhador;
- colocação em oficina protegida de trabalho;
- outras soluções a critério da equipe do centro de reabilitação;
d) A importância dos instrumentais de avaliação: Os hábitos e atitudes do
indivíduo num programa dessa natureza deverão ser analisados e trabalhados
de forma sistemática em todo o centro de reabilitação e por toda a sua equipe.
Para tanto, os avaliadores de oficina deverão ter à sua disposição um
instrumental adotado pelos mesmos, em discussão com o conselheiro de
reabilitação. Como anexos II e III deste capítulo estão transcritos instrumentais
à guisa de orientação para a organização inicial de uma oficina. Apresentam
aos avaliadores de oficina fatores diversos a serem identificados, conceituados
e trabalhados - todos eles de alto interesse no mundo empresarial, ou seja, no
mundo competitivo de trabalho.
O instrumental de avaliação para o trabalho e de ajustamento aos seus
requisitos mínimos - corresponde ao anexo III - inclui todos os hábitos e
atitudes que deverão ser observados ou trabalhados, conforme o caso
podendo seu conteúdo ser confrontado com o instrumental relativo à
adequação pessoal - desde que adotado pelo centro - para fins de ampliação
da análise por parte do avaliador de oficina.
A lista apresentada no instrumental de avaliação retrata uma tentativa de
estabelecer com clareza o conteúdo inicial do sistema de avaliação. A
necessidade da existência de um rol de observações é devida ao fato de o
potencial de um reabilitando não poder ser apenas suposto. Deve ser medido o
mais acuradamente possível.
O próprio conselheiro de reabilitação, ao fazer contatos com os dirigentes de
empresas, notará a diferença nas reações do empregador entre ser procurado
para empregar uma pessoa deficiente (por ser deficiente ou coitada ou algo
assim) e colocar uma pessoa deficiente que já passou pela reabilitação global e
cujo desempenho observado nas áreas de ajustamento profissional foi de um
certo nível quanto à pontualidade, à assiduidade, à rentabilidade, à
concentração, ao interesse, ao relacionamento com colegas e supervisores, e
tantos outros dados pormenorizados de atuação em situações reais de
trabalho, que podem ser tirados do instrumental acima proposto.
"Sacar informações", apelar para o senso humanitário, "inventar
comportamentos de super-heróis", usar das amizades, dar dados errôneos
quanto a um determinado indivíduo ou generalizar comentários quanto à maior
seriedade ou produtividade de pessoas deficientes, não corresponde nem a
princípios básicos de atuação profissional, nem ao respeito que se deve a cada
um.
- *O treinamento profissional em programas de reabilitação*
Muitos autores de reabilitação consideram fundamental que a pessoa
portadora de deficiência deva ter ao seu dispor algumas oportunidades para
treinamento em profissões específicas, a fim de que tenham possibilidade de
lutar por boas condições de trabalho, como profissionais desses ramos
selecionados.
Quando as limitações físicas ou sensoriais assim o permitem, a pessoa
deficiente deverá procurar, no entanto, os recursos da comunidade, do tipo
SENAI e/ou SENAC, quando não as próprias empresas, para tal propósito
enfrentando sem maiores regalias os sistemas e os padrões adotados na
seleção dos alunos. Deve ficar muito claro que não caberá jamais a centros ou
programas de reabilitação montar sistemas paralelos e segregados de
treinamento profissional, não só por serem segregativos, mas por serem
também inteiramente descabidos e muito dispendiosos.
A experiência de integração da pessoa deficiente com colegas que não têm
dificuldades ou limitações físicas, nos programas já existentes na comunidade,
poderá sempre ser válida e útil para adaptação ao trabalho em condições
competitivas, ajudando inclusive a pessoa não-deficiente a se posicionar
melhor e eventualmente a se despojar de preconceitos, revendo conceitos e
reformulando idéias.
Tal tipo de linha de orientação está perfeitamente consoante com os
princípios da própria integração social das pessoas deficientes. Seria sua
própria negação manter instalações e programas segregados de treinamento
profissional, quando o que o processo de reabilitação busca é a inserção do
indivíduo em seu meio.
Para as pessoas deficientes que têm sérias limitações e para as que
requerem métodos e técnicas especiais de ensino, poder-se-á pensar no
planejamento de cursos especiais de treinamento profissional através de
programas, técnicas e métodos seletivos, considerando:
- A necessidade de uma instrução mais individualizada;
- a organização de cursos profissionalizantes bem selecionados e de maior
duração.
Cursos dessa natureza que os centros de reabilitação possam desejar
manter, precisarão conter exigências adicionais devido ao fato de serem mais
flexíveis em alguns aspectos, a fim de que obtenham o reconhecimento oficial
e para que tenham o nível requerido. Centros de reabilitação que dão
atendimento a deficientes visuais, por exemplo, também podem organizar
treinamentos profissionais válidos em certas funções próprias para tais casos,
usando técnicas especiais de comunicação.
Não se pode, entretanto, confundir o treinamento profissional que prepara
profissionais para áreas definidas (como tornearia mecânica, fabricação de
calçados, eletrônica, eletrotécnica, artes gráficas, funilaria e outras) com os
meros adestramentos para algumas funções existentes especialmente no
grande e variado mundo dos serviços (tais como telefonistas, consertadores de
eletro-domésticos, barbeiros, sapateiros, consertadores de rádio e tantos mais)
que realmente podem ser mantidos por centros de reabilitação.
Seja num, seja noutro caso, porém, o importante é que o cliente de
reabilitação aprenda que ele não poderá ser aceito simplesmente pelo diploma
ou certificado que tiver em mãos, mas pela competência como "trabalhador"
que domina uma área de conhecimentos específicos que nunca poderá ser
dissociada de sua atuação como "pessoa humana". Seu sucesso estará muito
mais na dependência desse tipo de competência pessoa!/profissional do que
de outros fatores.
- *Colocação em emprego*
A finalização do processo de reabilitação total é a colocação da pessoa
deficiente em algum tipo de trabalho condizente com seu potencial, suas
aspirações e seu preparo, e poderá sempre ter sucesso se trabalharmos dentro
dos princípios que se aplicam ao emprego de pessoas não-deficientes, ou seja,
dos demais trabalhadores. No entanto, são freqüentes os casos em que se
requer a aplicação de métodos especiais na escolha de empregos para
pessoas portadoras de deficiências.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dever-se-á sempre levar
em conta certos fatores particulares que tornam mais difícil a colocação de
pessoas deficientes reabilitadas. Deve se procurar uma colocação que
corresponda, não às deficiências do candidato, mas às aptidões, como é feito,
aliás, com boa parte de todo o contingente de mão-de-obra assimilado pelo
mundo de trabalho. Será necessário considerar não apenas sua qualificação
profissional ou suas qualidades pessoais, seus conhecimentos e sua
disposição ou preferências, mas também - e com cuidado todo especial - sua
capacidade física para desenvolver o trabalho indicado.
Não se deve esquecer que a pessoa deficiente precisa sentir que tem uma
tarefa a desenvolver e que poderá fazê-lo com a mesma chance de sucesso
que seus demais colegas, sem perigo para si mesma e sem que se tema um
agravamento de suas condições físicas ou suas limitações.
Para se determinar o trabalho e as condições mais adequadas para cada
pessoa deficiente em situações de trabalho, é necessário que o conselheiro de
reabilitação ou o profissional encarregado de promover sua colocação faça a
indispensável análise de diferentes postos, comparando seus requisitos às
capacidades residuais e qualidades da pessoa que procura emprego, ou seja,
uma "análise de trabalho".
"Análise de trabalho é usada para vários propósitos na empresa, e pode ser
utilizada de maneira mais significativa na área de reabilitação humana e nas
oficinas de reabilitação. Seu uso maior é como um instrumento através do qual
os atributos e as exigências do trabalho podem ser combinados com os traços
comprovados dos clientes, que vieram à tona e foram posteriormente
desenvolvidos durante sua estada nas oficinas de reabilitação. Um estudo
cuidadoso dos traços característicos de um dado trabalho ou trabalhos, e os
traços característicos verificados no cliente, resultará em uma colocação
melhor e mais satisfatória". ("Análise de Trabalho (Job Analysis)", de Vieira).
Numa análise de trabalho não podem deixar de constar os requisitos de
educação, aptidões, interesses, traços de personalidade, exigências físicas ou
mentais, e também condições de trabalho, tais como temperatura, poluição
ambiental, barulho e muitas mais.
É fundamental que sejam feitos levantamentos de ocupações disponíveis,
com o cuidado de não caracterizá-las como "funções para deficientes". Dentre
os profissionais que atuam em reabilitação, há aqueles que visualizam seus
clientes em funções não-qualificadas, sedentárias e despidas de maiores
envolvimentos, independentemente do nível intelectual, da formação, dos
planos e aspirações, ou mesmo do potencial do indivíduo. Essa posição
profissional não deixa de ser injusta, demonstrando a descrença no processo
de reabilitação. Ela é também encontradiça entre dirigentes empresariais e
predomina entre selecionadores de pessoal.
Apesar de sempre ser trazido à baila o momento de recessão do mercado
como fator decisivo para a não-abertura da contratação de pessoas deficientes,
encontramos nas empresas uma atitude de reserva quanto à colocação aberta,
indiscriminada de pessoas portadoras de deficiências. Há temores que elas
possam se tornar pontos de atrito na empresa, ou que assumam atitudes
inadequadas; há também uma generalizada propensão a julgar que pessoas
deficientes têm mais possibilidade de se acidentar no trabalho e que seu
rendimento e produtividade sejam menores.
Muitos desses receios e tendências são plenamente justificáveis, pois o
mundo empresarial tem seus canais de comunicação formais e informais e os
sucessos ou insucessos de pessoas deficientes no trabalho correm muito
velozmente. E nesse sentido é fácil deduzir que más experiências em política
de pessoal - no que se relaciona a empregados com deficiências,
evidentemente chegam a todos os cantos.
Uma das causas dos eventuais fracassos na colocação de pessoas
deficientes vem do fato muito simples de muitas delas não terem condições de
trabalho, seja devido a atitudes inaceitáveis, seja devido à falta de condições
físicas ou psicológicas para o trabalho.
A conquista dos empregadores e de seus gerentes de pessoal, diretores de
relações industriais, diretores de produção chefes de seleção e outros
elementos categorizados numa empresa não dependerá nunca de campanhas
inconseqüentes por meio de programas de comunicação de massa, como
sucedeu durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, através de um
canal de televisão no Brasil todo. A idéia "empregue um deficiente" é péssima
sob todos os ângulos e traz dentro de seus termos a própria condição para seu
fracasso, pois o termo "deficiente" em si já é depreciativo e tem conotações de
insucesso, de perda, de fracasso. Se qualquer um de nós for um empregador
convicto de sua função e do seu papel no mundo da produção de bens e
serviços, levantaria a questão: "Empregar um deficiente por que? Eu preciso de
empregados produtivos e não de deficientes que sempre são problemáticos,
cheios de dificuldades, revoltados, limitados, criadores de problemas" ... Essa é
a imagem que a grande maioria tem de pessoas deficientes - até que provemos
o contrário por casos bem colocados e de sucesso.
O envolvimento do mundo empresarial deverá se dar pela competência que
as pessoas portadoras de alguma deficiência poderão mostrar - e essa
"competência" elas precisam adquirir através de uma educação adequada em
casa e na escola, ou num centro de reabilitação que não seja apenas um
simulacro de centro. Aliás, é um requisito que é válido e é aplicado a toda a
mão-de-obra, sem qualquer exceção. Pessoas incompetentes, criadoras de
problemas, sem escolaridade ou preparo de natureza profissional, sem
experiência, sem documentação em ordem, são pessoas consideradas
inaceitáveis. quer tenham, quer não tenham qualquer tipo de deficiência.
Por mais incrível que possa nos parecer o grande problema que temos no
Brasil é a existência de muitas entidades que trabalham em reabilitação e, seja
devido a dificuldades financeiras, seja devido à verdadeira noção das
implicações desse processo complexo de trabalho com o ser humano portador
de deficiências, não conseguem atingir plenamente os objetivos propostos.
Elas sabem que a reabilitação finaliza o processo com vida de trabalho e fazem
a promoção da colocação do indivíduo sem tê-lo realmente preparado para
tanto.
E entramos num círculo vicioso no qual o elemento mais prejudicado é o ser
humano diretamente envolvido numa colocação inadequada que ele logo
perde; mas a longo prazo temos prejuízos muito mais sérios e lamentáveis
para a própria causa da reabilitação, pelo descrédito do processo
reabilitacional.
Assim, vislumbramos um caminho apenas: a conquista individual de cada
empresa, oferecendo a ela mão-de-obra bem preparada, conhecedora das
implicações da vida de trabalho, pronta para uma atuação normal. E essa
conquista individual funciona muito bem - sempre funcionou, aliás.
O problema da absorção da mão-de-obra de pessoas portadoras de
deficiências é muito sério e já mereceu estudos profundos em países mais
evoluídos que o nosso. Entre nós mereceria também um estudo crítico, pois
não é em duas ou três páginas de considerações que ele poderá ser dissecado
com propriedade.
ANEXO I
ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
ACONSELHAMENTO DE REABILITAÇÃO
RELATÓRIO.
I. IDENTIFICAÇÃO
1. Dados pessoais: Sexo; Estado Civil; Data de Nascimento;
Local/Nascimento; Filiação: Pai; Mãe.
2. Localização: Endereço residencial; Bairro; CEP; Cidade; Endereço Atual;
Bairro; CEP; Cidade.
3. Documentação: Carteira Identidade RG n°; Est; Carteira de Trabalho n°;
Série; Est; Título de Eleitor n°; Zona Eleitoral; C.P.F. n°; Outros.
4. Problema físico:
5. Situação familiar/social:
6. Procedência (encaminhado por):
7. Observações especiais:
II. EXPERIÊNCIA ESCOLAR
1. Curso primário: Escola; Relacionamento cliente-escola; Matérias
preferidas.
2. Curso secundário: Escola; Relacionamentos cliente-escola; Matérias
preferidas.
3. Outros cursos: Escola; Relacionamentos cliente-escola.
4. Comentários sobre: a) Experiência escolar; b) Significado dos estudos
feitos.
5. Planos de estudos:
III. ORIGEM DA IDENTIDADE PROFISSIONAL
1. Profissão/ocupação dos pais ou equivalentes: a) O que os pais pensam do
próprio trabalho; b) O que o cliente pensa do trabalho dos pais.
2. Profissão/ocupação dos irmãos: a) O que os irmãos pensam do próprio
trabalho; b) O que o cliente pensa do trabalho dos irmãos.
3. Interesse profissional de amigos/colegas; O que o cliente pensa a
respeito.
4. Interesse profissional do grupo de referencia; Como o cliente se vê nessas
profissões/ocupações.
5. 0 que o próprio cliente imagina vir a ser no trabalho:
6. Opinião do cliente quanto a: a) Trabalho de pessoas deficientes e não-
deficientes; b) Trabalho de pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto; c) O
papel do trabalho na vida do homem..
IV. EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL
1. Comentário geral sobre vida profissional:
2. Empregos especificados:
a) Primeiro local de trabalho: Nome da organização; Tipo de empresa;
Endereço; Função exercida; Período de permanência; Como conseguiu
emprego; Motivos de saída; Remuneração (última); Horário; Observações
quanto a: - Aspectos percebidos como positivos; - Aspectos percebidos como
negativos; - relacionamento com superiores; relacionamento com colegas.
b) Empregos intermediários (comentários):
c) Último local de trabalho: Nome da organização; Tipo de empresa;
Endereço; Função exercida; Período de permanência; Como conseguiu
emprego; Motivos de saída; Remuneração (última); Horário; Observações
quanto a: - Aspectos percebidos como positivos; - Aspectos percebidos como
negativos; - Relacionamento com superiores; - Relacionamento com colegas; -
Comentários adicionais relevantes.
d) Informações sobre "situação de trabalho":
e) Significado do trabalho na vida do cliente:
f) Situação atual face ao trabalho (fatos):
g) Atividades atuais: - Como ocupa o dia da semana; - Como ocupa o fim de
semana;
h) Como vê sua situação atual frente ao trabalho e como procura resolvê-la:
- Fantasias de solução do problema; - Papel atribuído ao progr. ajust.
Profissional.
i) Planos para a vida de trabalho, após a reabilitação: - Como espera atingir
o objetivo; - Caso não consiga atingi-lo.
j) Conhecimento do universo ocupacional:
l) Expectativa a respeito do futuro (global):
V. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CASO
a) Síntese interpretativa:
b) Planos de atuação para os primeiros 3 meses:
VI. PONTOS ESPECIAIS A CONSIDERAR:
LOCAL, DATA E ASSINATURA.
Nome do cliente:
VII. EVOLUÇÃO NO PROGRAMA
a) Condicionamento físico: Data – observação.
b) Ajustamento psico-social: Data – observação.
c) Problemas especiais, intercorrências e outros:
VIII. PLANOS PARA O AJUSTAMENTO PROFISSIONAL (EVOLUÇÃO):
a) Programa de aconselhamento: Data – observação.
b) Avaliação para o trabalho: Data – observação.
c) Ajustamento à vida de trabalho: Data – observação.
d) Treinamento em área específica: Data – observação.
e) Colocação: Data – observação.
f) Seguimento: Data – observação.
IX. CONCLUSÕES PARA O CASO:
Local, data e assinatura.
Anexo II.
ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO INICIAL
I. IDENTIFICAÇÃO: nome; data de nascimento; local; estado civil;
residência; bairro; cidade; escolaridade; experiência de trabalho; diagnóstico;
observações.
II. ASPECTOS FUNCIONAIS
Desempenho qualitativo; desempenho quantitativo; ritmo de execução;
organização na atividade; conhecimento/habilidade no manuseio de
materiais/ferramentas; resistência psico-física; tolerância; utilização de resíduos
e/ ou tato; observações especiais.
III. ASPECTOS INTELECTIVOS
Atenção/concentração; compreensão/ assimilação.
IV. ATITUDES
Motivação; iniciativa; independência; relacionamento.
V. OBSERVAÇÕES FINAIS QUANTO AO CLIENTE:
PROGRAMA DE ATUAÇÃO PARA OS TRÊS PRIMEIROS MESES: ...
Data de início do programa:
Local, data e assinatura.
Anexo III
ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL
AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
RELATÓRIO EVOLUTIVO DO CASO
Nome do cliente:
Avaliação inicial em:
FATORES A SEREM AVALIADOS – CONCEITO/SEMANA. (1, 2, 3 E 4)
FATORES PROFISSIONAIS
Quantidade de trabalho;
Qualidade de trabalho;
Aceitação de crítica do supervisor;
Aceitação de crítica de colegas;
Organização da bancada de trabalho;
Ordem e limpeza no trabalho;
Relacionamento com colegas;
Relacionamento com superiores;
Trabalho em situações difíceis;
Assiduidade;
Pontualidade;
FATORES SOCIAIS E PESSOAIS
Comunicação;
Sociabilidade;
Embasamento cultural;
Atitude perante a vida como um todo;
Atitude perante a vida de trabalho;
Habilidades relacionadas à vida diária;
Apresentação pessoal;
Conceitos simplificados: E = Excelente (sem maiores dificuldades no
trabalho); B = Bom (quase aceitável, mas precisa melhorar); R = Regular
(demonstra algum potencial); P = Péssimo (cliente com hábitos inaceitáveis).
Outros conceitos poderão ser dados por extenso, no verso deste
instrumental, chamando o avaliador a atenção para o mesmo ponto relevante.
OBSERVAÇÃO: Outros fatores poderão ser inseridos, à vontade, tais como:
Persistência na atividade de trabalho; Vitalidade no desempenho; Disciplina em
trabalho; Cuidado com materiais e ferramentas; Perseverança nas atividades;
Resistência à fadiga.
AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO
(EVOLUÇÃO)
PORMENORES QUANTO AOS FATORES AVALIADOS
Quantidade de trabalho: Total produzido comparado com o total do mesmo
produto a nível competitivo de trabalho industrial.
Qualidade de trabalho: Habilidade de produzir peças perfeitas e executar
tarefas sem erros, continuamente.
Aceitação de crítica de seu supervisor: Aceitação e uso construtivo quanto
aos pontos criticados pelo supervisor.
Aceitação de críticas de colegas: Com ou sem discussão de pontos de vista
de colegas mais experientes, com boa vontade e sem irritação.
Organização da bancada de trabalho: Mantém seu local de trabalho com
ferramentas no local certo, sem perigos para si e para os outros, com maior
produtividade.
Ordem e limpeza no trabalho: Não apenas na bancada propriamente dita,
mas também nas imediações de seu local de trabalho.
Ansiedade no trabalho: Não tem preocupações e receios evidentes; está
bem enquadrado e sem tensões aparentes.
Relacionamento com superiores: Faz contatos adequados que trazem como
conseqüência maior produtividade e melhor ambiente.
Relacionamento com colegas: Estabelece bons níveis de relacionamento
que acabam contribuindo para melhoria do ambiente de trabalho.
Trabalho em situações difíceis: Consegue desenvolver seus trabalhos sem
maiores dificuldades, em condições consideradas difíceis e fora do normal.
Assiduidade: Inexistência de ausências sem constantes justificativas.
Pontualidade: Marca o ponto nas entradas e saídas, nos horários
estabelecidos.
Comunicação: Tem habilidade de se expressar no trabalho e fora dele.
Sociabilidade: Tem conduta aceitável na área de trabalho, durante os
eventuais intervalos e em outras situações, tanto com colegas individualmente,
quanto com grupos e com supervisores.
Embasamento cultural: Tem nível cultural adequado ao seu potencial e aos
seus planos de trabalho.
Atitudes perante a vida como um todo: Tem atitude positiva com relação à
sua vida pessoal e familiar.
Atitude perante a vida de trabalho: Tem atitude positiva com relação ao
trabalho e com relação aos seus planos profissionais.
Habilidades relativas à vida diária: Mantém-se diária e diuturnamente bem
com relação aos componentes da vida de todos os dias.
Apresentação pessoal: Bem penteado, bem barbeado, limpo, vestido de
forma adequada para o trabalho.
CAPÍTULO QUINTO
AS EQUIPES DE REABILITAÇÃO NOS PROGRAMAS DE HOJE
Na assistência à pessoa deficiente, através dos tempos, podemos
reconhecer os diversos métodos de trabalho, os objetivos dos programas
estabelecidos e os procedimentos adotados para levá-la a sair da situação de
dependência.
O processo de reabilitação, conforme hoje concebido e posto em prática,
reconhece um método apenas, um único objetivo e apenas um tipo de
procedimento que são aceitáveis. O método precisa ser devidamente centrado
na pessoa portadora de deficiência e com isso garantir seu tratamento como
um todo e nunca em partes estanques. O objetivo do processo reabilitacional,
que é respeitado universalmente e não apenas em nosso meio, é o de prover
meios para que o indivíduo satisfaça suas necessidades, enquanto que o
procedimento reconhecido adota o tratamento global do homem deficiente.
Para que esses pontos fundamentais possam chegar a ser concretizáveis
num centro de reabilitação e para que, como resultado prático, a pessoa
deficiente possa se sentir beneficiada, é básico que exista e que de fato ocorra
a reunião de vários especialistas, cada um dono de suas próprias habilidades
de caráter profissional, para formar o que todos conhecem como "equipe de
reabilitação”.
- *O trabalho de equipe em reabilitação*
O trabalho de equipe tem se tornado cada vez mais importante e
recomendado. Ouvimos falar a respeito desse tipo de atuação em atividades do
mundo industrial, nas ciências, nos esforços comunitários, na medicina, na
educação, nos esportes, na reabilitação e em quase toda atuação na qual as
pessoas trabalham juntas para atingir objetivos comuns. Não é de estranhar
que a expressão "trabalho de equipe" tenha sido muito utilizada, própria ou
impropriamente, para todas as experiências que demandam esforços
cooperativos.
O trabalho de equipe, na acepção correta do termo, porém, supõe um modo
especial de trabalhar em conjunto, com a indispensável integração de todos os
que compõem o grupo. Especialistas podem ser agrupados e podem encontrar-
se para trabalhar juntos ou em colaboração com outros, sem que essa atuação
resulte num típico trabalho de equipe.
Verifica-se que em certos tipos de atividades a atuação de equipe é tão
fundamental que sua inexistência acaba provocando seu mais contundente
fracasso. Uma dessas atividades é a reabilitação, que somente tornou-se viável
após o estabelecimento de uma atuação conjunta de ciências diversas, com a
participação de profissionais pré-determinados que conseguem operacionalizar
um programa de atividades indispensáveis ao desenvolvimento do ser humano
que é portador de uma deficiência física, sensorial, orgânica ou mental.
A qualidade de sua atuação e os seus resultados dependem muito da
maneira como o trabalho de equipe é desenvolvido, e esse trabalho só
funcionará se cada um dos profissionais reconhecer o entrelaçamento existente
entre seu campo de atuação e os das demais profissões, assumindo todas as
conseqüências dessa posição. Em reabilitação das pessoas portadoras de
deficiências não existe simplesmente um tratamento físico, ou apenas um
trabalho que leve ao ajustamento psico-social, uma vez que, por definição
mesmo, o tratamento deverá ser sempre "global", somando os esforços dos
diversos profissionais. É também importante notar que um trabalho de equipe,
no campo da reabilitação, bem coordenado e bem dosado, evita duplicações
de esforços, conflitos de objetivos e a eventual omissão de um determinado
tipo de atendimento pela suposição de que outro profissional já o tenha
providenciado.
Consideradas as finalidades da reabilitação, a equipe de profissionais nela
atuante jamais poderá tornar-se um mero aglomerado de detentores de
habilidades específicas e não relacionadas entre si, uma vez que terá
significado e valor quando conseguir funcionar como uma unidade. É
interessante notar que uma equipe de reabilitação é mais complexa do que
uma outra formada, por exemplo, para trabalhos de comunidade, na qual um
certo número de representantes de entidades e empreendimentos participa. A
equipe multiprofissional de reabilitação no seu sentido mais global é também
mais ampla do que uma equipe médica ou do que uma equipe destinada à
"reabilitação hospitalar" que é necessariamente limitada em suas
possibilidades de bem lidar com as necessidades globais do ser humano.
A equipe destinada a centros de reabilitação global não pode deixar de
incluir todos os profissionais necessários para cobrir tudo aquilo que for
considerado essencial para um bom desempenho físico, social, psicológico e
profissional de cada indivíduo atendido. E pelo menos alguns dos membros
dessa equipe de reabilitação devem compreender e assimilar os princípios
básicos e os conhecimentos que são necessários para ajudar uma pessoa
deficiente em sua reabilitação.
Considerações importantes quanto aos fundamentos de um trabalho
reabilitacional poderão ser levantadas outra vez, mas três delas são básicas, e
não podem jamais ser esquecidas:
- o ser humano, dinâmico, perfectível, único e integrado, funciona à base de
interações;
- o processo de tratamento de reabilitação deve ser dinâmico e
suficientemente fluido para se manter na mesma velocidade de evolução e
progresso da pessoa em mudança, considerada sempre a globalidade de seus
problemas, o conjunto de suas potencialidades e sua participação no processo;
- para o desenvolvimento de um programa de reabilitação que dê um
atendimento à pessoa como um todo, o trabalho de equipes multiprofissionais é
indispensável, uma vez que enseja atividades de associação de vários
profissionais que interagem e que se especializam.
O trabalho de equipe, conforme deve ser aplicado num centro de
reabilitação, é a união próxima, democrática e multidisciplinar, devotada a um
propósito comum, ou seja, o tratamento mais completo possível do indivíduo
portador de deficiência, com base em suas capacidades, necessidades e
aspirações.
A equipe de reabilitação não deixa nunca de ser um grupo distinto em suas
partes, que age como uma unidade. Tanto isso é verdade que nenhuma ação
importante quanto ao cliente deve ser adotada pelos membros de uma
profissão sem que haja a ciência e mesmo a concordância da equipe como um
todo.
Para que isso venha a acontecer, é necessário que todos os que fazem
parte da equipe dominem um embasamento técnico que inclua não apenas
pontos fundamentais do processo de reabilitação, mas também:
- o reconhecimento dos limites de sua atuação profissional;
- a compreensão da linha básica de funcionamento do centro de reabilitação
onde atuam;
- o conhecimento essencial das práticas e o alcance das diversas ciências
ou técnicas que, no trabalho de equipe, se fazem companheiras.
É fundamental também que todos os componentes de uma equipe que se
responsabiliza pelo desenvolvimento de um processo complexo como é a
reabilitação, tenham mentalidade madura e flexível para discutir novas idéias e
aceitar novos desafios, sempre muito comuns para quem trabalha nesse
campo. Sendo assim, é claro, todos devem sentir-se seguros em suas áreas de
atuação.
- *As garantias para um verdadeiro trabalho de equipe*
Para assegurar o atingimento dos desideratos acima indicados, há que se
considerar em primeiro lugar a própria planta física do centro de reabilitação,
pois as instalações devem ser de tal natureza e distribuídas de tal forma que
dêem a todos os membros da equipe de trabalho oportunidades para o
estabelecimento fácil de discussões entre si – e, talvez mais do que isso, que
virtualmente levem a esse tipo de contato.
As salas do diversos profissionais de uma equipe de reabilitação devem ficar
próximas umas das outras – especialmente aqueles que cobrem áreas afins ou
convergentes, como condicionamento físico, ajustamento psico-social e
ajustamento profissional – de modo que eles se encontrem com freqüência
durante o dia de trabalho, mesmo fora de reuniões programadas, para discutir
pormenores que talvez possam ficar omissos ou deixados de lado, caso seja
necessário procurar alguém muito distante.
É necessário garantir também, com bastante persistência, uma atmosfera
agradável de trabalho, o que implica em não apenas haver salas e
equipamentos suficientes, mas também em manter muito clara e presente a
noção de que a cooperação deve ser mútua e constante dentro de um centro
de reabilitação.
A administração do centro, nesse desejável ambiente de trabalho, deve ser
suficiente democrática para permitir a livre troca de informações profissionais
no desenvolvimento do tratamento do cliente. Sem essa liberdade, o nível ideal
de atuação dificilmente poderá ser atingido por uma equipe consciente de seu
papel. Todos os membros da equipe devem ter a certeza de que, respeitada a
linha hierárquica e garantidas as normas vigentes na instituição, não há
bloqueios aos contatos com a administração do centro e que os problemas por
eles analisados serão sempre devidamente considerados.
- *A liderança de uma equipe de reabilitação*
Palavra super-valorizada, tanto em reabilitação quanto em atividades as
mais variadas do mundo moderno, "equipe" tem problemas inerentes e muito
característicos, de grande seriedade. Um desses problemas é o de sua
"liderança".
No caso da reabilitação, já ficou claro que o trabalho de equipe é essencial;
nenhum profissional conseguiria desenvolver o processo sozinho. Essencial
como ele é, o trabalho de equipe - seja em reabilitação, seja em outras
atividades - historicamente surgiu e foi adotado não só em conseqüência de
decisões estabelecidas pela observação científica, mas por analogia com
atividades esportivas em grupo. Pois foi essa mesma analogia que sempre
levantou a idéia de que uma equipe necessita de um "capitão", um "líder". E, de
fato, é crença generalizada que grupos de pessoas não conseguem atuar e
trabalhar juntos sem que haja um líder, um capitão, um responsável, um
diretor.
Qual dos profissionais poderá ser o líder de uma equipe de reabilitação?
Existem líderes pré-determinados?
Por mais técnicos e objetivos que os profissionais que atuam em reabilitação
queiram ser em sua atuação, todos eles, sem qualquer exceção, reconhecem
que há um problema que afeta diretamente uma equipe (dentre os muitos que
podem afetá-la que se resume nesta pergunta: "quem é o líder do grupo?").
Todos, sem exceção, concordam que é importante estabelecer claramente
essa questão de liderança ou coordenação, e quase todos concordam que
deve haver "um" líder. No entanto, a grande maioria dos médicos fisiatras acha
que não deve haver "um" líder, mas "o" líder, que precisa, necessariamente,
ser o médico. Claro que há motivos sérios para esse posicionamento, motivos
esses que vão desde a etiologia dos males e das deficiências, até a urgência
de se iniciar o processo reabilitacional ainda no hospital. Um outro motivo muito
sério que tem sido constantemente alegado é a evidente liderança que muitos
médicos têm exercido no desenvolvimento geral da reabilitação em todo o
mundo. O questionamento dessa posição de médicos não nasce e nem poderia
nascer desses argumentos, evidentemente, mas de alguns outros.
Há, por exemplo, profissionais de reabilitação que defendem a posição de
que o ato de coordenar o trabalho de uma equipe ou de liderá-lo depende
muito mais de habilidade para fazê-lo do que do cargo ou da formação
profissional do líder ou do coordenador - e há carradas de razão nesse
argumento.
Outros acham que a liderança ou a coordenação de uma equipe muito tem a
ver com questões e padrões de produtividade e essa missão deve caber a um
elemento em cargo de chefia ou ligado à administração do centro, que pode ser
médico ou não. Há também aqueles que defendem esta posição: deve
coordenar a equipe o profissional detentor da ênfase principal no programa do
cliente. Se a ênfase for médica, o médico coordena; se ela for profissional, o
conselheiro de reabilitação coordena, e assim por diante.
- *A ausência da coordenação formal de uma equipe*
Há uns poucos centros no mundo que defendem uma linha de atuação mais
aberta e mais moderna, que não mantêm coordenação alguma para suas
equipes, pois partem da pressuposição de que seus profissionais devem ser
maduros e muito conscientes de suas obrigações, e com noção clara das
possibilidades e necessidades de entendimentos complexos e objetivos.
"Um grupo de profissionais pode, portanto, funcionar sem necessidade de
supervisão ou de controle. O próprio grupo coordena ou dirige sua atuação e
garante os serviços de que cada cliente necessita. A continuidade dos serviços
pode ser mantida sem qualquer direção por parte de uma pessoa
especialmente designada para tanto. Cada profissional continua a trabalhar
com o cliente, do início ao fim do processo de reabilitação ou pelo tempo que
tiver algo a contribuir. O tratamento não é, ou não deveria ser uma questão de
passar um cliente de um especialista para outro. A qualquer tempo,
dependendo das necessidades do cliente, qualquer um dos profissionais
poderá ter responsabilidade mais séria de prestar serviços especiais ao cliente.
O grupo em si mesmo, através de contatos informais ou reuniões, bem como
através de contatos formais, coordena os serviços e atividades destinadas ao
cliente" ("Is the Team Concept Obsolete?", de
Patterson).
O autor acima refere-se a certos pré-requisitos para um funcionamento
dessa natureza. Ele acha que cada membro da equipe deve aceitar o outro
profissional em bases de igualdade e cada profissional deve ser competente
em seu próprio campo de ação. A pressuposição principal para que um centro
de reabilitação funcione bem deveria ser a de que toda a sua equipe é
composta de profissionais bem treinados e competentes em seu campo - o que
raramente sucede entre nós. Existem centros de reabilitação, em vários pontos
do Brasil, que não contam com profissional algum especializado.
Pessoalmente vivenciamos uma situação de observação e análise de uma
equipe de reabilitação que adotava há anos a chamada "auto-coordenação" - a
equipe em questão não dispunha de líder ou de coordenador estabelecido. À
época admiramo-nos da versatilidade e da naturalidade de fluência do
processo, bem como da objetividade das colocações e notamos que, de fato, é
um sistema viável de atuação em equipe, desde que ela conte com
profissionais de boa vivência e muito bem preparados quanto à reabilitação e
ao trabalho em cooperação. Não cremos que seja impossível tal sistema
funcionar entre nós, embora somente possa ter sucesso e a indispensável
continuidade em situações bastante especiais.
O fato concreto e irretorquível é que uma equipe precisa trabalhar num bom
equilíbrio, com respeito mútuo, competência e dentro de um ordenamento bem
estabelecido que acate todos os procedimentos básicos adotados pelo centro
de reabilitação - e isso não pode ocorrer em climas de tensão criados por
líderes inadequados ou impostos.
- *As dificuldades principais em coordenar uma equipe*
O trabalho de equipe em reabilitação não pode ser deturpado. Ele não pode
existir, por exemplo, apenas para colecionar opiniões dos vários profissionais,
cada um considerando o cliente sob o seu especializado ângulo de visão, de
forma estática, sob a coordenação de alguém que acaba assumindo a função
de uma espécie de "arranjador-mestre", cuja obrigação é fazer todo o possível
para combinar esses pontos de vista, a fim de chegar a uma conclusão.
Temos em diversas partes do Brasil centros de reabilitação - ou
organizações que usam esse título - das mais variadas naturezas e objetivos e
que funcionam dessa maneira. E assim o fazem, quer devido à reduzida
experiência profissional de alguns membros de sua equipe, quer pela
necessidade que algumas diretorias de centros sentem de manter o poder de
tomada de decisões em suas mãos. Há também a tendência de algumas
diretorias de manter o poder de tomada de decisões nas mãos de um só
elemento, ou seja, do coordenador da equipe, que assume essa função sem
apresentar condições básicas de preparo profissional, sem ter vivenciado
outras experiências, ou sem ter condições mínimas de liderança reconhecida
pela equipe que com ele atua.
As equipes assim "comandadas" apresentam, de um modo geral, um
fenômeno característico e muito sintomático: alguns profissionais menos
experimentados procuram tornar seus relatórios de um nível tão alto e
sofisticado, ou de um linguajar técnico tão rebuscado, que se torna quase
impossível qualquer tentativa de sumariação. Em conseqüência, não ocorre a
necessária assimilação do conteúdo dos relatórios pela equipe como um todo e
os programas dos clientes ficam repartidos e sub-divididos em áreas quase que
estanques. Dessa forma, os profissionais acabam se prejudicando, e muito
mais do que isso, os clientes sempre levam a pior de todas as desvantagens,
uma vez que seus programas perdem a objetividade.
O difícil papel de coordenador de uma equipe de reabilitação não se reduz à
simples cobrança de relatórios ou providências, nem à re-escalação de clientes
para uma reavaliação. Não se reduz também à simples função operacional de
facilitar o diálogo entre profissionais durante as reuniões da equipe, ou à
tentativa de levar a uma assimilação das informações profissionais contidas em
relatórios.
Cabe ao coordenador de uma equipe levar seus profissionais a entender a
importância do trabalho multiprofissional bem ajustado às capacidades da
clientela e ao andamento da equipe como um todo. Para que isso ocorra é
preciso que eles se mantenham alertas quanto à necessidade de elaborar seus
relatórios com propriedade, considerados os fins propostos pela reabilitação,
sem que caiam no extremo oposto e indesejável de transformá-los num mero
relato formal, cronológico e frio dos acontecimentos verificados durante o
desenvolvimento do programa, por vezes muito pouco úteis para os demais
serviços.
Cada profissional deverá dar sua contribuição em bases quase que
equivalentes com os demais colegas, para uma tomada de decisão ou
julgamento de situações, considerada a própria posição profissional.
A despeito das dificuldades características desse tipo de trabalho, o respeito
mútuo e o interesse pelo reabilitando e por seu programa de atividades devem
impedir, ou pelo menos refrear, irretratáveis diferenças de opinião que podem
transformar uma reunião de equipe num verdadeiro campo de batalha, na
tentativa de obter vitórias de argumentação quanto a procedimentos e formas
de atender a pessoa deficiente.
- *Problemas típicos encontrados num trabalho de equipe*
Além das dificuldades características relacionadas à liderança e/ou
coordenação de equipes, dentre os problemas que podem bloquear, impedir ou
dificultar o desenvolvimento das atividades de reabilitação poderemos citar os
seguintes adicionais:
a) Falta de confiança e respeito mútuos: Às vezes os membros de uma
equipe de reabilitação não demonstram na prática as necessárias doses de
confiança e respeito mútuos. Outras vezes agem como se considerassem seus
colegas de equipe como meros defensores de um determinado campo de
atuação de suas áreas profissionais, mantendo-se alertas para eventuais
"invasões" de campos alheios.
b) Excesso de importância à própria atuação: Para alguns profissionais o
longo processo educativo e formativo em sua área profissional leva a uma
quase certeza de que o tratamento do cliente precisa ser centrado em sua
atuação ou em sua profissão. Isso ocorre em quase todas as profissões
envolvidas, pois eventualmente cada profissional acaba dando maior ênfase à
sua atuação por considerá-la a mais importante para o cliente. Na verdade, em
qualquer programa de reabilitação, toda entrevista, teste, prova, atividade ou
esforço profissional sistematizado deve ser apenas um ponto de referência a
mais e nunca um trampolim para diagnósticos isolados e apressados.
c) Desconhecimento das demais profissões: É um fato sobejamente
conhecido que todas as profissões envolvidas no processo reabilitacional
procuram ser dinâmicas, mantendo-se em constante processo de mudanças e
de adaptações. Se o profissional consciente de hoje já acha difícil manter-se
atualizado com os progressos de sua própria profissão, torna-se tarefa sobre-
humana procurar atualizar-se com relação a outras profissões. Além do mais, o
conhecimento que adquirimos de um campo profissional alheio ao nosso,
acaba sendo quase que invariavelmente superado. Tem sido notório o engano
de imaginar-se o serviço social como uma profissão que só se preocupa com
providenciamentos de ordem prática, por exemplo. Pensar que fisioterapia
limita-se a massagens é também um erro que acontece. Outro engano usual é
julgar que psicólogos só aplicam testes.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas o que nos importa aqui
que saibamos que em muitos centros de reabilitação essas interpretações
errôneas ou tendenciosas poderão levar a prescrições ou a recomendações
causadoras de mal-estar e mesmo de agressividade. É fundamental que os
profissionais de reabilitação conheçam os campos de competência dos demais
colegas, sem que essa preocupação os leve a excessos.
d) Falta de atitudes de cooperação sistemática: Mesmo conhecendo as
atribuições ou papéis dos vários profissionais engajados em reabilitação,
existem aqueles que não adotam atitudes de cooperação sistemática, tornando
a atuação de todos bem mais difícil do que a usual. A cooperação profissional é
uma condição básica e insubstituível para o bom desenvolvimento do processo.
e) Comportamentos inadequados numa equipe: Certos tipos de
comportamentos no grupo de técnicos às vezes causam dificuldades ou
constrangimento. Alguns profissionais mantêm-se em competição quase que
inconsciente para um efetivo "controle" do cliente que estão atendendo. Alguns
outros são excessivamente rígidos ou inseguros no trabalho com outras
pessoas. Há também aqueles que são excessivamente permissivos no
relacionamento com os clientes, eliminando tudo aquilo que é característico da
relação profissional-cliente, causando com isso situações de sérias dificuldades
para a equipe.
De quando em quando encontramos em equipes de reabilitação profissionais
com um estranho domínio da noção de ética funcional/pessoal/profissional.
Conhecemos um profissional participante das reuniões de equipe que contava
aos clientes as opiniões dos diversos colegas quanto a assuntos delicados de
seus casos. O tom de suas informações era de tal natureza que a equipe
começou a sentir sérias dificuldades no desenvolvimento de seus trabalhos
f) Falta de experiência em trabalho de equipe: Devido ao fato de terem
vivenciado apenas experiências de trabalho isolado, com pleno sucesso, mas
limitadas no sentido de não ter ocorrido trabalho em colaboração com outras
profissões, alguns profissionais, ao ingressar num centro de reabilitação, não
se adaptam com facilidade ao trabalho de equipe. Experiências dessa natureza
às vezes dificultam a atuação em equipe, embora tais problemas possam ter
sido estabelecidos mais por ignorância do que por conhecimento das diversas
áreas de competência profissional. Além da atitude própria para trabalhar em
equipe, um técnico que trabalha em reabilitação deve dominar bem seu campo
de atuação e ter uma idéia clara de quais os aspectos de outras atividades por
eles desenvolvidas que podem ser mais adequadamente executadas por algum
profissional de outro setor ou área profissional.
g) Estilo inadequado de relatório: Por vezes ocorrem situações em que
membros da equipe simplesmente "relatam" em vez de "interpretar". A
linguagem precisa e especializada da medicina ou da fisioterapia, por exemplo,
rivaliza-se com as expressões técnicas do serviço social ou da psicologia.
Alguns profissionais chegam a utilizar-se de termos apenas adotados em
circuitos fechados, termos esses que acabam tornando-se pouco
compreensíveis para os que não militam no mesmo campo ou área de atuação.
E muitas vezes ocorrem dificuldades nos termos homógrafos que podem ter,
em certas profissões, conotações diferentes. Muitos exemplos poderiam ser
citados, mas apenas alguns são suficientes para alertar quanto ao estilo
inadequado de se relatar em reabilitação.
- De um relatório de terapia ocupacional: "Tônus normal, tendendo à
hipertonia do proximal para distal - MSE" ... "Sensibilidade: testada bilateral
p/MMSS" ... "Topognosia: percebeu difusamente no dorso da mão e na região
palmar" ...
- De um relatório de fisioterapia: "Resistência: FC antes da prova 86 bpm.
Após a prova a FC não se alterou" ... "Quadrupedia: adota a posição. Duplo
apoio heterolateral do MSE e MID" ...
Claro que são relatórios que precisam ser interpretados para aqueles
profissionais que não são versados em terminologia ou abreviaturas de origem
médica. Mais do que isso, precisam ser reformulados face aos objetivos do
processo de reabilitação.
Estudos desenvolvidos em países mais evoluídos no atendimento a pessoas
deficientes mostram que profissionais de formação equilibrada e seguros de
sua própria atuação ou de suas posições em geral, conseguem explicá-las,
interpretá-las e elucidar dúvidas, podendo com essa atitude educar e ser
educados.
h) Metodologia de cooperação quase inexistente: Embora prejudicial para
todos os programas destinados ao atendimento global da pessoa deficiente,
nenhum grupo profissional dele participante tem desenvolvido qualquer
tentativa válida para o ensino de métodos de cooperação com as demais
profissões. Em alguns programas de reabilitação sabe-se de tentativas e
esforços isolados de alguns profissionais para fomento dessa indispensável
cooperação, mas a eventualidade do esforço não o torna consagrado para
todas as situações.
i) Jogos de prestígio e de poder e seus malefícios: Os chamados jogos de
poder, do prestigio político ou pessoal, e dos compromissos já assumidos
existe muito forte e impregna toda nossa realidade, e não apenas a
reabilitação. A atitudes conseqüentes a esses tipos de expediente afetam
seriamente um trabalho que precisa ser desenvolvido em equipe. Exemplos
dessas inadequacidades de atuação podem ser facilmente encontrados, como
por exemplo, a influência indevida de quem controla a situação financeira da
entidade mantenedora do centro de reabilitação; a pressão de certos políticos;
a influência do prestígio de certos membros da equipe; o sutil e desagradável
efeito da atuação de profissionais que não se preocupam ou nunca se
conscientizaram quanto a certos princípios éticos, e que com isso procuram
manter situações sob seu controle indevido.
j) Ausência de uma boa política de pessoal: Uma administração ou direção
de entidade que não adota uma boa política de pessoal pode surgir - como de
fato tem surgido - como um bloqueio dos mais sérios à atuação da equipe de
reabilitação. O interesse autêntico de profissionais, o envolvimento constante, a
vitalidade do processo, as possibilidades de crescimento profissional, precisam
ser garantidos pela direção do centro, em dosagens adequadas.
Em resumo, uma equipe de técnicos de muito boa qualidade individual num
centro de reabilitação terá valor apenas limitado para as pessoas deficientes, a
menos que, além de dominar com segurança os princípios fundamentais e os
propósitos da reabilitação, os diversos técnicos que dela tomam parte se vejam
como membros de uma equipe multiprofissional, onde cada um tem seu papel
específico e um determinado valor. Trabalhar em diversas direções, ou pior
ainda, trabalhar em direções antagônicas, mesmo que seja com habilidade e
grande virtuosismo, não levará nunca à reabilitação e certamente prejudicará o
reabilitando.
- *A necessidade de tratamento global do cliente*
Existe certa uniformidade de conceito - pelo menos em tese - e uma
concordância generalizada quanto à consideração da pessoa humana do
cliente de reabilitação como um todo, como um ser global. Esse conceito é tão
universalmente aceito que trabalhos escritos em cada área profissional, seja
ela qual for, quase sempre indicam a necessidade de seus profissionais
ficarem alertas para os muitos aspectos da natureza humana e para a
necessidade de disseminação desse conhecimento às disciplinas componentes
da equipe de reabilitação, de tal maneira que essa criatura diferente, repleta de
valores próprios e de aspirações que é o ser humano portador de uma
deficiência, receba um tratamento cada vez mais adequado e de natureza
global.
Dentre as várias razões que podem ser alegadas para justificar esse tipo de
posicionamento, cumpre destacar aquilo que vem ocorrendo há muitos anos já
na medicina: tem-se observado a psiquiatria e a medicina psicossomática
procurando levar médicos e outros profissionais que colaboram direta ou
indiretamente com a medicina, a reconhecer que há problemas que afetam
seus pacientes que vão muito além de sua esfera de competência. Com a
complexidade crescente de todas as ciências e a necessidade cada vez maior
de especializações, fica sempre mais evidente que, dentro de uma única área,
o profissional não pode trabalhar com alguns sintomas especiais, sem uma
consulta ou troca de opiniões paralelas com outros profissionais.
A expansão da reabilitação que colocou uma certa variedade de
profissionais em contato com o outro, tem adicionado certo impulso a essa
tendência na Europa e na América do Norte. Surgem nesses países, hoje em
dia, muitas críticas quanto à profundidade de treinamento de médicos, por
exemplo, no entanto, se considerarmos o volume de tempo que tem
demandado o preparo de um profissional de medicina de bom nível, ficaremos
surpresos como esse treinamento tem aumentado através dos tempos e
admiraremos o esforço quase sobre-humano que tem sido dado por estudantes
de medicina que desejam levar a sério sua profissão. O campo a ser coberto é
tão vasto que o currículo médico é considerado, e com verdade, indevidamente
reduzido sob certos pontos de vista Mesmo assim, o médico é muitas vezes
educado somente em parte nas muitas das crescentes especialidades e ele
poderá muito bem não estar alerta quanto à problemática inserida na faixa de
responsabilidade do serviço social ou da psicologia.
É evidente que a profissão médica não é a única à qual esse tipo de
observação é aplicável. A verdade é que nenhum profissional consegue
entender outro ramo profissional tão bem quanto possa desejar.
A falta de tempo, por si só, seria um impedimento para tanto. Mas, tal falha
de compreensão, quando não for sanada por atitudes demonstrativas de
genuíno interesse e confiança, acaba gerando conflitos justificáveis ou não,
num trabalho de equipe, levando inclusive alguns profissionais a invadir a área
dos outros; é a temida superposição de atividades que acontece.
- *Superposição de atividades em equipes de reabilitação*
Os motivos que acabam provocando desentendimentos e conflitos em
equipes de reabilitação não são apenas conseqüentes à parcial ignorância das
funções e das responsabilidades de cada um dos profissionais. Decorrem
igualmente da falta de clareza na definição dessas funções, somada à eventual
tendência de algum profissional "resolver problemas práticos" pela simples
aplicação da tática do bom senso (subjetivo, claro) ou pela ampliação das
funções em seu campo de trabalho.
Essa tendência surge devido a problemas provocados por certos
profissionais omissos em suas obrigações para com o cliente; surge também
devido ao desejo de colaborar de um modo mais rápido, menos burocratizado,
mais efetivo. A conseqüência indesejável da ampliação indevida de funções é a
ocorrência de superposições e a eventual desorientação do reabilitando.
Apesar de reconhecer que todas as outras profissões são importantes, o que
ocorre com esses profissionais que avançam nas funções alheias é que eles
acham que as necessidades mais relevantes do cliente estão infalivelmente
dentro de seu campo de ação e todas as demais profissões acabam
consideradas como "auxiliares" de sua própria. Desta forma, um profissional
que trabalha dentro dessa linha de raciocínio acaba tentando usurpar a função
de outro, minimizando sua importância face ao elemento mais interessado que
é a pessoa deficiente em busca de uma solução para seus problemas. Essa
verdadeira invasão à custa do cliente bloqueia o trabalho de reabilitação, pois o
reabilitando fica inseguro em sua definição de vida de trabalho, por exemplo, se
um profissional qualquer que não o conselheiro de reabilitação lhe diz: "Você
poderá se tornar um joalheiro ou consertador de relógios" ... O mal feito nesses
casos poderá ser considerável, dependendo do tipo de profissional que tiver
feito o infeliz comentário. Opiniões mesmo que veladas em forma de pergunta,
ou expressas devido a uma atividade qualquer, podem ser avidamente
tomadas, dificultando a elaboração de planos mais objetivos e concretizáveis
relacionados à vida de trabalho.
Evitar problemas dessa natureza é muito importante e a cooperação para
esse fim poderá ser intensificada não só pelo respeito sistemático aos limites
de atuação de qualquer das profissões envolvidas, como também pela ação
integrada em um plano mais global, ou ainda em planos desenvolvidos
juntamente com outros colegas de trabalho, seja por meio de contatos
individuais, seja através das reuniões de equipe.
Para se trabalhar numa equipe de reabilitação não é necessário apenas ser
possuidor de um diploma de curso superior, mas é fundamental ser
profissionalmente maduro. Em decorrência dessa maturidade exigível, o
profissional precisa entender que a simples alegação de conhecimento de um
campo de trabalho alheio ao seu, será sempre inadequada. Só poderá alegar
conhecimento e domínio de um campo de trabalho quem vive continuamente
nele, formou-se nele, preocupa-se com ele e nele toma decisões, por vezes
difíceis, vendo seus resultados e ganhando conhecimento em profundidade. A
identificação, o prognóstico e o diagnóstico de uma necessidade podem ser
elaborados somente por profissionais especificamente orientados por um
sistema de formação profissional, além da experiência e treinamento para
assim fazê-lo.
- *O trabalho de equipe: perspectivas*
Considerada a realidade da reabilitação, e da formação de pessoal que
normalmente irá compor suas equipes, qual poderá ser a solução para o
tratamento mais adequado do cliente, globalmente considerado? Estará na
obtenção de maior volume de especialização? Estará no aumento do
treinamento acadêmico ou na maior profundidade quanto a conceitos básicos?
Cremos que qualquer tentativa de resposta não poderá ignorar os seguintes
pontos:
a) Existem, concretamente, as várias áreas funcionais e as respectivas
limitações de cada uma delas, nos programas de reabilitação. Assim é que,
consideradas as características do programa global que deve procurar levar o
individuo com deficiência a um estado de adequação pessoal de acordo com
seus planos e realidade, teremos o condicionamento físico, o ajustamento
psico-social e o ajustamento profissional, dentro dos quais se inserem todos os
componentes da equipe de reabilitação.
b) Há uma incontestável vantagem na combinação dessas áreas, ou seja,
num trabalho harmonioso desenvolvido por meio de uma equipe
multiprofissional, que deve ser obtida após o atendimento bem coordenado em
cada uma das áreas acima indicadas.
Em nenhuma outra situação temos encontrado maior necessidade de
integração de conhecimentos e de combinação de várias profissões do que no
campo da reabilitação. A complexidade da missão de integrar pessoas
portadoras de deficiências na sociedade aberta tem levado centros de
reabilitação a adicionar serviços novos, a fim de encontrar soluções cada vez
mais complexas às necessidades das pessoas que apresentam problemas
inter relacionados. No entanto, considerada a realidade de trabalho inter-
profissional de um centro de reabilitação a tendência para um treinamento mais
amplo e sem profundidade, ou para a especialização extrema, deve ser
evitada.
Para chegarmos a soluções que concretamente beneficiam os programas de
assistência reabilitacional e muitos outros que dão atendimento ao ser humano
através de trabalhos de equipe, algumas ponderações precisam ser feitas, pois
algumas alterações fundamentais precisam ocorrer e algumas delas bem
significativas, tais como:
- A escola primária precisa enfatizar continuamente os trabalhos em
cooperação, ênfase essa que deverá ser adotada e/ou mantida também nos
níveis secundário e superior, procurando dessa maneira levar as pessoas a
trabalhar em grupo.
- É muito importante que haja em todas as faculdades um ensino realista de
métodos e/ou de fórmulas de atuação inter-profissional, além da indispensável
oportunidade da prática de cooperação com profissionais de outras áreas,
sempre informada pela noção objetiva da importância que têm as outras
profissões.
- É muito importante que, em reabilitação, sejam enfatizados os
conhecimentos básicos e as atitudes profissionais para o trabalho de equipe, a
fim de que treinamentos bem orientados possam suprir as falhas decorrentes
da ausência de temas específicos em cursos superiores normais.
- É fundamental que sejam desenvolvidos e sempre encorajados estudos e
pesquisas a respeito dos processos de trabalho em colaboração e de caráter
multiprofissional.
Não resta dúvida que o trabalho de equipe num centro de reabilitação é um
ideal a ser atingido em sua plenitude. No entanto, há muito que se aprender
dentro de nossa realidade de atuação. Experiências já vividas nunca deixarão
de ser de valor muito concreto, podendo levar-nos a uma cuidadosa análise da
realidade que nos cerca, pois essa realidade mostrar-nos-á como é importante
um trabalho cooperativo.
Àqueles que trabalham em programas de reabilitação restará o desafio de
bem utilizar essas experiências, para o bem-estar de todos aqueles que
pretendem dedicar-se à reabilitação e para benefício de todas as pessoas
deficientes que dela necessitarem.
CAPÍTULO SEXTO
A AVALIAÇÃO E O CONTROLE NOS PROGRAMAS DE
REABILITAÇÃO
Ninguém pode negar que um centro de reabilitação pode determinar, por
iniciativa própria, a ênfase que deseja dar aos seus trabalhos. Encontramos,
por exemplo, organizações que dão maior volume de atendimento médico e
para-médico, outras que dão ênfase aos aspectos profissionais da reabilitação,
procurando levar o indivíduo a um ajustamento significativo em sua vida de
trabalho. No entanto, ao nos aprofundarmos no estudo de alguns recursos
existentes aqui no Brasil, notamos que há iniciativas que denotam menos uma
opção de ênfase técnica do que um real desconhecimento do que seja
reabilitação.
Encontramos em nossa realidade centros de reabilitação que trabalham
muito mais como ambulatório médico para males ortopédicos do que como
centro destinado à reabilitação do indivíduo. Há clínicas de fisioterapia que se
intitulam centros de reabilitação. A própria palavra "reabilitação" é utilizada
indiscriminadamente pelos próprios profissionais que nela atuam, patenteando
um desconhecimento real do assunto.
Aberrações dessa natureza ocorrem à nossa volta com certa insistência,
causando à reabilitação muito mais mal do que bem. Em centros de
reabilitação de caráter geral encontramos, via de regra, todos os profissionais e
serviços usualmente requeridos. Na verdade, há vários serviços que são óbvios
em termos de utilidade prática imediata, enquanto que outros ainda
permanecem como grandes dúvidas e são tolerados principalmente devido ao
fato de que sem eles a entidade passaria a ser mal conceituada ou, então, teria
seus convênios com organizações financiadoras cancelados. Essa seria uma
das poucas razões para manterem seu lugar ao sol.
- *Os profissionais envolvidos em reabilitação*
Analisemos um pouco o passado de certos serviços que cuidavam de
pessoas com deficiências físicas. A ociosidade era o que mais preocupava os
voluntários e profissionais de então. Importou-se a idéia de certa ocupação por
atividades de trabalho - a então chamada laborterapia. Diga-se de passagem
que muita gente que procura atuar nesse campo sem qualquer tipo de curso,
ainda batiza a atividade de laborterapia, ignorando por completo o que sucedeu
de avanço técnico na reabilitação desde 1956 no Brasil. Sabemos muito bem
que hoje em dia temos profissionais formados e que a terapia ocupacional
integra sempre os centros de reabilitação. Ela não só faz o específico, mas
também colabora significativamente na avaliação dos clientes para atividades
de trabalho. De quando em quando vemos com frustração, entretanto, que a
terapia ocupacional serve mais para ser mostrada a visitantes do que a
propósitos realmente terapêuticos.
Isso tudo é verdade também para a fisioterapia que evoluiu de métodos
muito mal definidos de massagem, aplicação de calor, aplicação da água e da
eletricidade e outros recursos, para uma gama de atividades que é de
responsabilidade de profissionais devidamente formados. No entanto, temos
verificado que a fisioterapia - ou melhor, alguns fisioterapeutas - tem servido
mais aos propósitos de alguns médicos que desejam fazer fisiatria, pois assim
como certos médicos recorrem à enfermagem para curativos, injeções e
serviços menos elevados, recorrem à fisioterapia para o desenvolvimento
prático da programação de exercícios que não se preocupam nem em aprender
nem em executar. Embora possa haver uma carrada de razão da parte desses
médicos, é necessário que eles reconheçam, mais do que todos os demais
profissionais, que a fisioterapia é fundamental em reabilitação e traz evidentes
benefícios aos clientes que recorrem aos centros. Assim sendo, embora
vivendo hoje em dia como profissão auxiliar da medicina e sendo mal
interpretada, ela tem um papel certo e valioso e não sofre muitas pressões por
parte de diretores de centros de reabilitação.
No entanto, com certos outros serviços a situação é bem diversa. O serviço
social, por exemplo, sofre injustiças bem piores e muitas dessas injustiças são
causadas pelos próprios profissionais que acabam se sujeitando a um tipo de
trabalho um tanto marginalizado no centro de reabilitação, ou seja: estudos
simples de levantamento socioeconômico do cliente e sua família, preparo de
relações de vagas para pagamento de "per capita" pelo INPS ou Secretaria da
Promoção Social, dificuldades financeiras do cliente, escala para remoção dos
clientes, financiamento ou plano de pagamento do tratamento e vários mais.
É com os profissionais de serviço social, em geral, que ocorrem os mais
sérios atritos por parte da diretoria de centros de reabilitação, pois argumentam
diretores que, para fazer o que os assistentes sociais fazem, não se requer
diploma de curso superior. E se considerarmos o que alguns assistentes
sociais fazem ou sujeitam-se a fazer, concordaremos plenamente. As
atribuições que às vezes são passadas a assistentes sociais poderiam ser
desenvolvidas por secretárias bem preparadas. Isso tudo não quer dizer que as
coisas estejam caminhando corretamente, pois não estão. Os profissionais
precisam lembrar que o serviço social tem um papel muito sério e complexo
num programa de reabilitação e compete a cada profissional lutar por ele. Mas
ficamos por vezes com a dúvida: será que ele sabe por que papel lutar?...
Com psicólogos acontecem situações semelhantes, mas menos graves. A
psicologia tem, em seu socorro, certos tipos de estudos que são menos óbvios,
tem seus testes e o conhecimento técnico indispensável para sua
interpretação. Assim sendo, o máximo que às vezes sucede é o médico tentar
questionar o papel do psicólogo como válido, chegando mesmo a indicar sua
dispensabilidade. Reduzindo-se despesa considerada inútil, obtém-se com
facilidade o aval de diretores da organização. Assim sendo, seja por pressão
de outros profissionais, seja por falta de objetivo prático no programa,
encontramos vários centros que não contam nem pretendem contar com
psicólogos. No entanto, vale aqui lembrar que o psicólogo tem um papel
relevante em reabilitação, cabendo também aos seus profissionais lutar por
uma boa definição de sua atribuição.
- *A falta de especialização e suas conseqüências*
Para qualquer área ou ramo profissional o que alarma acima de tudo é
verificarmos que certos profissionais procuram emprego num centro de
reabilitação, sem se inteirar com seriedade quanto ao que deles poderá ser
esperado. Essa observação é perfeitamente cabível para três tipos de
profissionais: médicos, assistentes sociais e psicólogos. Por que não
conselheiros de reabilitação? Porque esses surgem de uma das últimas
profissões e em geral trazem um bom acervo de conhecimentos específicos.
Devido ao fato lamentável de não termos cursos de reabilitação, a situação
tende a generalizar-se, pois o mercado de trabalho vai ficando difícil e um
profissional de nível superior precisa de emprego. Vemos, então, uma
reabilitação estagnada como técnica, e a leva de clientes a procurar serviços,
graças a financiamentos do governo ou do sistema previdenciário, que acabam
sendo apenas aquilo que procuram: serviços, isto é, consulta médica, uma
prótese, sessão de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, entrevista
de serviço social, testes de psicologia, etc.
Reabilitação propriamente dita ... bem, cada profissional acha que fez o seu
quinhão com o máximo de consciência profissional, o que não deixa de ser
verdade. Essas situações são tão generalizadas que se torna muito difícil
repetir frases verdadeiras como esta: “O centro de reabilitação deve
desenvolver seu serviço de forma integrada e coordenada, para levar o cliente
a um ajustamento global, a fim de que tenha condição de se reintegrar à
sociedade”.
Esta verdade precisa ser dita e repetida por mais que ela soe inexeqüível. A
maioria de nossos centros de reabilitação faz, sim, fisioterapia, faz terapia
ocupacional, faz algum treinamento profissional um tanto marginal e conta com
alguns profissionais que se debatem e procuram (ou não procuram) seus
papéis reais. As exceções existem e elas confirmam a regra, infelizmente.
Quando relembramos que a reabilitação, como processo, deve ajudar o
cliente a escolher metas práticas viáveis, nas quais haja oportunidade para a
independência, satisfação pessoal, contribuição social e outras, oferecendo
uma bateria de serviços multidisciplinares que restauram, preservam e
desenvolvem a capacidade física, psicológica, social e profissional para
enfrentar a realidade da vida, verificamos que muita coisa anda bem fora dos
parâmetros corretos e que algo de muito sério precisa começar a ser feito.
Resta perguntarmos: O que pode, afinal, ser feito para melhorar a situação
de vários de nossos centros de reabilitação?
O caminho para situações mais adequadas é bastante árduo e repleto de
problemas. E, como todo caminho, ele tem um início. Em nosso modo de ver,
esse deve ser através do estabelecimento de sistemas de avaliação: Avaliar
um centro de reabilitação não é e não pode ser o mesmo que avaliar outro tipo
de instituição social ou entidade de assistência médica. O centro de
reabilitação é entidade “sui-generis” de atendimento a pessoas com sérios
problemas marginalizantes.
Procuremos, portanto, estudar o assunto com cuidado para encontrar a
aplicabilidade a cada centro que procura desenvolver seus trabalhos de
reabilitação.
- *Métodos de avaliação em centros de reabilitação*
Avaliação é uma formulação de juízos a respeito do sucesso de um centro
de reabilitação ou de qualquer outro tipo de empreendimento. Ela é,
basicamente, uma técnica administrativa que se destina a alimentar a direção
da organização com a finalidade de aprimorar cada vez mais sua atuação. Ela
não é e não pode ser uma atividade isolada, mas precisa ser programada e
acontecer periodicamente.
O objetivo básico da avaliação é fornecer dados e informações que ajudem o
centro de reabilitação no processo de tomada de decisão Com isso, a
avaliação colabora definitivamente na melhoria dos serviços, na maior
rentabilidade dos investimentos financeiros feitos, no melhor aproveitamento e
no aprimoramento de seu pessoal técnico e administrativo e na mais adequada
alocação de recursos destinados ao seu desenvolvimento.
A avaliação tem propósitos utilitários, pois sua função é descobrir evidências
dos resultados dos programas e das atividades, para que aqueles que têm a
missão de planejar, supervisionar ou dirigir, possam julgar e tomar decisões
adequadas no presente e no futuro. Conforme as evidências dos resultados
denotarem que o centro de reabilitação vai chegando mais próximo de seus
objetivos e vai atingindo suas metas, a avaliação poderá ir se transformando
num instrumento de apoio para a continuação ou para a expansão dos serviços
prestados.
- *Modelos de avaliação*
Não existe nenhum modelo de avaliação que seja adequado a todas as
situações. Uma avaliação que transmita a informação pura e simples da
adequacidade ou da impropriedade de uma atividade num centro de
reabilitação, além de quase que infalivelmente inútil, acaba sendo prejudicial
trazendo em geral conseqüências indesejáveis. Assim sendo, é aconselhável
que o modelo de avaliação adotado e os avaliadores (que devem ser
profissionais de alto gabarito e grande vivência de reabilitação) tenham muito
mais a dizer e a sugerir do que simplesmente relatar que a atividade está ou
não atingindo seus objetivos parcial ou integralmente. A avaliação precisa
contribuir com os tipos de dados que dêem aos diretores de um centro de
reabilitação a possibilidade de fazer suas opções dentro do contexto em que
atuam. Tais considerações a respeito de avaliação podem, evidentemente, ser
aplicáveis a programas gerais de reabilitação ou a centros de reabilitação como
empreendimento isolado, e também a entidades sociais afins.
- *Sistemas de avaliação*
Não é fácil nem prático indicar qual seria o melhor sistema para avaliar um
centro de reabilitação. Dentre alguns dos sistemas reconhecidos pelos
estudiosos do assunto o mais aplicável poderá ser, em nossa opinião, o do
claro estabelecimento do grau de responsabilidade perante seus "públicos".
Verifiquemos então, qual o grau de responsabilidade de um centro de
reabilitação perante seus públicos, e quais seriam esses públicos.
Há diferentes tipos de "público" para um centro de reabilitação:
a) O "público" em geral ou seja, os componentes da comunidade onde o
centro atua, a sociedade da qual faz parte. Embora entre nós, brasileiros, esse
tipo de responsabilidade seja um tanto relativa e bastante diluída (indefinida
talvez seja o melhor termo) e as entidades sociais não a sintam nem se
preocupem com ela, é ela de considerável importância. O que sucede no Brasil
é que as entidades sociais acham que pelo simples fato de existirem já fazem
muito. Entretanto, a comunidade merece uma atenção, e esse tipo de
responsabilidade precisa ser gradativamente bem estabelecido e enfatizado.
As equipes de profissionais que trabalham em centros de reabilitação precisam
se voltar para ela e ficar alertas a esse respeito.
b) O "público" financiador - é aquele do qual provém o numerário destinado à
cobertura das despesas de todos os gêneros, ao desenvolvimento dos
programas, à construção ou reformas. Pode ser o governo federal, estadual, ou
municipal; pode ser o usuário que retribui remunerativamente pelos serviços
prestados; podem ser empresas participantes, entidades conveniadas,
doadores, sócios beneméritos. Seja qual for o público financiador, ele tem
direito a certa atenção e o centro tem definitivamente certo grau de
responsabilidade para com ele.
c) O "público" clientela - pode parecer espantoso para certos tipos de
entidades voluntárias dever satisfações ao público-clientela, pois muitas vezes
encontramos exatamente no seio delas as maiores distorções quanto aos
princípios básicos de sua atuação. No entanto, por não acreditarmos em
reabilitação a não ser que seja sedimentada nos princípios de respeitabilidade,
dignidade e potencialidade do ser humano, achamos tal tipo de posicionamento
muito correto. A clientela tem direito aos serviços de um certo padrão.
d) O "público" das famílias da clientela - O centro de reabilitação tem uma
séria responsabilidade para com as famílias dos clientes, não apenas nos
casos de crianças como também de adultos das mais variadas idades. O
"modus fasciendi" brasileiro coloca as entidades sociais e médicas num
pedestal inatingível, inquestionável. No entanto, as famílias dos clientes de um
centro de reabilitação merecem consideração e respeito e assim devem ser
tratadas. O grau de responsabilidade de um centro para com as famílias pode
ser facilmente delineado.
e) O "público" das entidades - Sejam essas entidades conveniadas ou não,
que usam os serviços do centro, para ele encaminhando casos ou dele
recebendo encaminhamentos, também merecem respeito, havendo
inquestionável grau de responsabilidade para com elas.
- *Conseqüências de uma avaliação*
Um centro de reabilitação não poderá nem deverá ficar imobilizado após um
estudo avaliativo. Ao tomar alguma atitude séria a respeito do trabalho
avaliativo e seus resultados, poderá ter que enfrentar alguns tipos de decisão.
Conforme o interesse da direção do centro de reabilitação, três tipos de
decisão poderão ser tomados:
a) Decisão política - Esta decisão deverá ser sempre a nível alto, em
resposta a indagações como esta: O centro de reabilitação deverá continuar
seus trabalhos ou não? O centro ampliará, reduzirá ou simplesmente manterá
suas atividades? O centro deverá reformular ou manter seus objetivos?
b) Decisão estratégica - Esta decisão relaciona-se com as eventuais opções
em termos de "modus operandi". Assim é que poderemos colocar o centro em
situação própria para resolver pendências como estas: Quando analisados os
objetivos, como atingi-los após sua reformulação, decidida numa tomada de
decisão de alto nível? Como interferir para manter os padrões aceitáveis e
recomendáveis de atuação técnica?
c) Decisão tática - Este tipo de decisão diz respeito aos problemas de
atuação prática do centro de reabilitação, às atividades rotineiras nele
existentes, ao sistema interno de funcionamento técnico ou administrativo e
muitas outras. Há providências na vida administrativa, na política de pessoal,
no fluxo de papéis, na gestão financeira e mesmo na atuação técnica que
muitas vezes precisam ser tomadas após uma análise avaliativa.
- *Controle num centro de reabilitação*
Verifiquemos o que é controle para determinarmos sua utilidade num centro
de reabilitação. Controle é uma função administrativa intimamente ligada à
avaliação, que se destina a medir e a corrigir o desempenho das diversas
atividades a fim de se assegurar que os objetivos sejam realizados. Consiste o
controle em verificar cuidadosamente se tudo ocorre corno foi planejado
originalmente, se tudo está de acordo com os princípios básicos estabelecidos.
Em palavras diferentes, controle consiste em aferir resultados, numa
comparação intencional com os resultados esperados ou planejados. O
estabelecimento preciso dos objetivos de um centro de reabilitação, além de
ser uma condição "sine qua non", torna mais fácil a tarefa de elaboração de
instrumentos próprios de controle.
Ressaltemos neste ponto que não é de utilidade tentar controlar fatos
passados. Controla-se o presente. As informações sobre fatos passados
podem ser muito úteis, se analisadas sob ângulo correto, para a elaboração de
julgamentos quanto à Situação atual e à formulação de planos que possam
eliminar ou corrigir desvios notados no presente.
- *Sistemas de controle utilizáveis em centros de reabilitação*
Qual poderá ser o melhor sistema de controle num centro de reabilitação?
Sem maiores preocupações poderemos afirmar que o melhor sistema de
controle que um centro de reabilitação poderá adotar será aquele que indicar
com clareza e objetividade os desvios do plano originalmente traçado, ou dos
objetivos vigentes, na medida em que esses desvios ocorrem.
Muitas vezes encontraremos profissionais das áreas técnicas achando que o
controle em alto nível será mais do que suficiente, com a clara presunção de
que o controle em níveis inferiores passa a ser supérfluo. Na verdade, o
controle nos níveis altos só se realiza com adequação quando for bem
realizado nos níveis inferiores.
- *Características do sistema de controle*
As características desejáveis de um sistema de controle implantado num
centro de reabilitação poderão ser as seguintes:
a) Deve refletir sempre a natureza daquilo que é indispensável às atividades
do centro. Todos os instrumentos de controle do nível operacional ou dos
trabalhos administrativos, por exemplo, devem ser específicos àquele nível ou
aos trabalhos indicados.
b) Deve mostrar com presteza os desvios ocasionais. As informações sobre
os desvios devem fluir com rapidez para o nível que é responsável pela
decisão, como pura rotina e não como medida especial, a fim de que o
responsável possa tomar as providências próprias que corrijam os desvios
notados eliminando dessa forma a repetição ou mesmo a perpetuação de
lapsos.
c) Dependendo do sistema a ser adotado ou da finalidade ele deve ser
efetuado através da própria direção do centro de reabilitação, ou do sistema
diretivo do programa, conforme for o caso. Evidentemente essa observação
não é válida "in totum" para problemas de ordem técnica de cada área
profissional dentro da equipe do centro de reabilitação.
d) O controle deverá ser simples e econômico. Mais do que isso, deverá ser
facilmente compreensível. Não é recomendável montar esquemas caros e
sofisticados de controle, sendo menos recomendável ainda controles de difícil
compreensão. Sua simplicidade e clareza são os requisitos básicos de seu
sucesso.
A conclusão lógica que tiramos é que um centro de reabilitação só poderá
beneficiar-se da montagem de esquemas de avaliação e do estabelecimento
de sistemas objetivos de controle de suas atividades. Terá condições, dessa
forma, de prestar serviços cada vez mais adequados à sua clientela,
assumindo gradativamente o papel de respeitabilidade que merece numa
comunidade. Sua programação melhorará, seus profissionais terão maior e
melhor participação, seus clientes serão os maiores beneficiados.
A avaliação não pode nem deve ser a mera análise crítica das atividades de
um centro de reabilitação. A avaliação pretendida para um centro de
reabilitação não é do tipo auditório-contábil. Ela deve estar voltada para as
soluções viáveis, de ordem técnica e administrativa. Os problemas advindos da
inexistência de análises avaliativas num centro de reabilitação sempre foram
notórios e não podem perdurar.
Esses problemas são perfeitamente superáveis. O ser humano que precisa
dos serviços de um centro de reabilitação, suas famílias, a comunidade onde
ele se insere, o seu público financiador, sua equipe de profissionais, merecem
melhor consideração que certamente surgirá se todos estiverem realmente
voltados para a perfeita adequação do recurso moderno e muito importante que
é um centro de reabilitação.
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