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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO MATEMTICA
ANA CAROLINA DE SIQUEIRA RIBAS DOS REIS
A FORMAO MATEMTICA DE PROFESSORES DO ENSINO PRIMRIO: um
olhar sobre a Escola Normal Joaquim Murtinho
Campo Grande/MS
2014
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ANA CAROLINA DE SIQUEIRA RIBAS DOS REIS
A FORMAO MATEMTICA DE PROFESSORES DO ENSINO PRIMRIO: um
olhar sobre a Escola Normal Joaquim Murtinho
Dissertao de Mestrado elaborada junto ao
Programa de Ps-Graduao em EducaoMatemtica da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul para obteno do ttulo de Mestre
em Educao Matemtica, sob a orientao da
Profa. Dra. Luzia Aparecida de Souza.
Campo Grande/MS2014
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ANA CAROLINA DE SIQUEIRA RIBAS DOS REIS
A FORMAO MATEMTICA DE PROFESSORES DO ENSINO PRIMRIO: um
olhar sobre a Escola Normal Joaquim Murtinho
Dissertao de Mestrado elaborada junto ao
Programa de Ps-Graduao em Educao
Matemtica da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul para obteno do ttulo de Mestre
em Educao Matemtica, sob a orientao da
Profa. Dra. Luzia Aparecida de Souza.
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Luzia Aparecida de Souza(Orientadora)
UFMSCampo Grande
Prof. Dr. Fernando Guedes CuryUFRNNatal
Prof. Dr. Jos Luiz Magalhes de FreitasUFMSCampo Grande
Campo Grande/MS, 21 de fevereiro de 2014
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Aos leitores deste trabalho, quefaam ecoar as ideias aquitraadas e continuem a tecernarrativas sobre a formao de
professores de matemtica.
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Agradecimentos
minha orientadora, Luzia Aparecida de Souza, pelo apoio, confiana e pacincia.
Aos membros do grupo HEMEP, pelas discusses e sugestes.
Aos professores Fernando Guedes Cury e Jos Luiz Magalhes de Freitas.
professora Heloisa da Silva, pelas contribuies no exame de qualificao.
minha famlia, pelo apoio e compreenso.
Fernanda e Katiane, pela amizade e pela ajuda nos momentos difceis.
Aos professores do mestrado que contriburam para o meu crescimento como pesquisadoranesse perodo.
Aos colegas do mestrado, pelas discusses e bons momentos juntos.
s ex-alunas da Escola Normal, por aceitarem participar desse trabalho.
CAPES, pelo apoio financeiro.
A todos que estiveram comigo ao longo dessa caminhada.
A Deus, por tudo.
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RESUMO
Este estudo teve como objetivo criar um cenrio da formao matemtica de professores do
Ensino Primrio na Escola Normal Joaquim Murtinho, escola pblica de formao deprofessores que funcionou em Campo Grande na poca regio sul de Mato Grosso de1931 a 1940 e de 1948 a 1974. Para criar esse cenrio adotou-se a Histria Oral comometodologia de pesquisa de modo a compreender a formao matemtica a partir de quemvivenciou esse processo. Alm das entrevistas com ex-alunos, tambm foram mobilizadasfontes escritas disponveis em acervo na Escola Estadual Joaquim Murtinho. Poltica,desvalorizao profissional, predominncia de mulheres no Curso, disciplina e ausncia deinformaes sobre o ensino de matemtica so algumas das temticas que orientaram aconstruo de uma anlise narrativa da instituio estudada, opo de anlise escolhida paraessa pesquisa.
Palavras-chave:Histria da Educao Matemtica. Escola Normal. Histria Oral.
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ABSTRACT
This study aimed to create a scenario of the mathematical formation of Primary School
teachers at Normal School Joaquim Murtinho, public school teachers formation which workedin Campo Grandeat the time located in southern Mato Grosso 1931-1940 and 1948-1974.To create this scenario was adopted the Oral History as research methodology in order tounderstand the mathematical formation from those who experienced this process. Beyondinterviews with formeralumni, were also mobilized written sources available in the StateSchool Joaquim Murtinho collection. Political, professional devaluation, women
predominance in the course, discipline and lack of information on the teaching math are somethemes that guided the construction of a narrative analysis of the institution studied, analysisoption chosen for this research.
Key words: History of Mathematics. Normal School. Oral History.
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................... 81 FORMAO DE PROFESSORES NAS ESCOLAS NORMAIS: TEXTOS ECONTEXTOS DA EDUCAO NO BRASIL................................................................ 111.1 Formao de professores e Escola Normal .................................................................. 162 FUNDAMENTAO TERICA E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA: UMAARTICULAO NECESSRIA..................................................................................... 222.1 Concepes historiogrficas ........................................................................................ 292.2 Potencialidade das narrativas ...................................................................................... 323 ESCOLA NORMAL JOAQUIM MURTINHO A PARTIR DE SEUS ESCRITOS:UM OLHAR....................................................................................................................... 343.1 A Escola Normal Joaquim Murtinho ........................................................................... 354 NARRATIVAS SOBRE A ESCOLA NORMAL JOAQUIM MURTINHO............ 514.1 Raimunda Luzia de Brito ............................................................................................ 514.2 Marina Lcia de Andrade Monteiro ............................................................................ 634.3 Vera Edwiges Teixeira de Barros Jafar........................................................................ 835 ESCOLA NORMAL JOAQUIM MURTINHO E A FORMAO DEPROFESSORES QUE ENSINAM MATEMTICA: UMA LTIMA (?)
NARRATIVA ..................................................................................................................... 89ALGUMAS CONSIDERAES .................................................................................... 121REFERNCIAS ............................................................................................................... 124APNDICES .................................................................................................................... 133Apndice Acarta de cesso ............................................................................................. 133Apndice B roteiro de entrevista ..................................................................................... 136
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INTRODUO
Estudos acerca da formao de professores que ensinam matemtica tm se mostrado
de grande importncia na rea da Histria da Educao Matemtica, e essa temtica vem
sendo abordada por diversas pesquisas, em particular, pelas investigaes do Grupo de
Pesquisa em Histria Oral e Educao Matemtica1(GHOEM), que busca mapear a formao
de professores que ensinam matemtica no pas, e do Grupo Histria da Educao
Matemtica em Pesquisa 2(HEMEP), com estudos voltados constituio de um cenrio da
formao desses professores no estado de Mato Grosso do Sul.
Essa pesquisa, inicialmente intitulada A formao matemtica de professores
primrios: um olhar sobre a Escola Normal em Campo Grande, tinha como objetivoconstruir um cenrio dessa formao especfica nas duas Escolas Normais de Campo Grande,
a saber, Escola Normal Joaquim Murtinho3 e a Escola Normal Auxiliadora4. No entanto,
devido dificuldade5para encontrar fontes relacionadas segunda instituio mencionada,
optamos por no mais abord-la nesse trabalho.
O meu primeiro contato com o tema Escola Normal e com a pesquisa cientfica em
Educao Matemtica deu-se durante o ltimo ano de graduao em Licenciatura em
Matemtica, perodo no qual desenvolvi o meu trabalho de concluso de curso (monografia)intitulado A formao de professores na Escola Normal Joaquim Murtinho. Esse estudo foi
o incio de um processo investigativo que me permitiu ficar frente fundamentaes tericas
na linha da Histria da Educao Matemtica, metodologia de pesquisa Histria Oral e ao
trabalho com acervos histricos.
Durante o desenvolvimento da monografia notamos a escassez de material que trata
dessa temtica e, devido ao curto tempo para a sua realizao, muitas questes que nos
chamaram a ateno no puderam ser compreendidas. Esses contratempos foram alguns dosfatores que nos estimularam a desenvolver essa pesquisa no mestrado.
Esta pesquisa faz parte de um projeto mais amplo do Grupo HEMEP intitulado
"Formao de professores que ensinam matemtica: um olhar para o Mato Grosso do Sul",
financiado pelo CNPq. Consideramos esse estudo de grande importncia por caracterizar a
formao oferecida por essa Escola Normal em Campo Grande, em relao matemtica,
1Maiores informaes no sitewww.ghoem.com.2Informaes sobre o Grupo HEMEP esto disponveis em http://www.hemep.blogspot.com.br e
http://hemep.org.3Inicialmente intitulada Escola Normal de Campo Grande.4Chamada inicialmente Escola Normal Dom Bosco.5Trataremos desse assunto mais adiante.
http://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/AppData/AppData/Documents%20and%20Settings/AppData/Local/Temp/www.ghoem.comhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/AppData/AppData/Documents%20and%20Settings/AppData/Local/Temp/www.ghoem.comhttp://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/AppData/AppData/Documents%20and%20Settings/AppData/Local/Temp/www.ghoem.comhttp://www.hemep.blogspot.com.br/http://www.hemep.blogspot.com.br/http://hemep.org/http://hemep.org/http://hemep.org/http://www.hemep.blogspot.com.br/http://localhost/var/www/apps/conversion/tmp/AppData/AppData/Documents%20and%20Settings/AppData/Local/Temp/www.ghoem.com -
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permitir compreender o papel que essa instituio, de modo geral, representou na histria do
nosso estado e por possibilitar, ainda, a digitalizao de documentos e sua disponibilizao,
visando contribuir para com o trabalho de outros pesquisadores.
Para a construo desse cenrio lanamos um olhar para a formao proposta por
essa instituio, buscando contemplar a forma como os professores eram preparados para dar
aula de matemtica no Ensino Primrio, os contedos propostos para sua formao e a
literatura indicada nesse processo.
A investigao foi orientada pela busca e anlise de fontes relevantes compreenso
de propostas pedaggicas, do objetivo do ensino de matemtica no Curso Normal, da
metodologia, dos livros adotados e da relao entre o que era ensinado e a prtica desses
professores j atuantes em sala de aula, podendo ser dividida em trs momentos(interligados): estudos de literatura de referncia sobre a Histria da Educao Matemtica,
Escolas Normais e contexto educacional em Campo Grande; levantamento e realizao de
entrevistas com antigos alunos da instituio investigada, organizao e digitalizao de
documentos encontrados no acervo da Escola Estadual Joaquim Murtinho e em arquivos
pessoais; e anlise dos documentos construdos por essa pesquisa, seja pelos procedimentos
da Histria Oral, seja pela prtica de leitura.
No primeiro captulo desse trabalho buscou-se construir um cenrio da educao nopas, ressaltando caractersticas gerais do perodo estudado, bem como aspectos polticos,
econmicos e sociais, evidenciando alguns movimentos educacionais e a situao da
formao de professores do Ensino Primrio no Brasil. Neste sentido, destacamos o perodo
que abrange o ano de 1930 at meados de 1970, contemplando desde a implantao at a
extino da Escola Normal Joaquim Murtinho.
O segundo captulo apresenta as discusses metodolgicas realizadas durante o
estudo, explicitando a postura adotada frente pesquisa qualitativa, historiografia, bem comoao processo da investigao, discutindo os procedimentos mobilizados e suas potencialidades.
Neste captulo, a Histria Oral assumida como perspectiva metodolgica que potencializa a
construo efetiva de documentos a partir da oralidade, bem como a construo (por meio do
exerccio de leitura) de documentos escritos encontrados no acervo da Escola em estudo e em
jornais da poca.
No terceiro captulo apresentado um cenrio da Escola Normal Joaquim Murtinho,
construdo a partir de documentos escritos e produzidos pela prpria instituio, como livros
de exames trimestrais e finais, de matrcula e de cartas expedidas, encontrados no acervo da
Escola Estadual Joaquim Murtinho. Com carter mais descritivo, esse texto no visa
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estabelecer relaes com outras fontes ou pesquisas, trata-se de um exerccio de construo de
uma Escola Normal Joaquim Murtinho a partir dos indicativos dos documentos produzidos
por essa durante seu funcionamento. Essa construo, provisria como todas as outras, uma
possvel a partir dos indcios materiais deixados por sua administrao.
J no quarto captulo, outras construes so apresentadas, outras Escolas Normais
Joaquim Murtinho so estruturadas no relato dos colaboradores dessa investigao. Trata-se
das narrativas de antigos alunos da Escola Normal estudada que se constituem enquanto tais
ao narrar sobre essa instituio.
O quinto captulo, por sua vez, explicita um esforo de elaborao de anlise
narrativa. Fundamentada em Bolvar, Domingo e Fernndez (2001); Cury (2007), Cury
(2011), Delgado (2006) e Albuquerque Jnior (2007), a perspectiva de que a pessoa seconstitui enquanto tal ao narrar-se frente ao outro se torna fundamental a essa investigao,
pois a elaborao de uma narrativa dessa pesquisa permite autora a possibilidade de
constituir-se pesquisadora frente comunidade de educadores matemticos, inicialmente
representados pela banca interlocutora. A diferenciao esttica entre esse tipo de anlise e os
exerccios de anlise paradigmtica evidencia a forma como contedo e, embora aqui seja
admitida a mobilizao de categorias em ambos os exerccios (ainda que, na narrativa, mais
como pensamento estruturante), ao dizer de modo diferente se dizem coisas diferentes. Nestecaso, diz-se das amarraes e impregnaes que essa pesquisadora efetivou/experienciou na
sua constituio enquanto tal ao investigar a formao de professores na Escola Normal
Joaquim Murtinho.
O texto Algumas Consideraes, por fim, traz compreenses acerca do processo de
investigao sobre a Escola Normal Joaquim Murtinho.
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1 FORMAO DE PROFESSORES NAS ESCOLAS NORMAIS: TEXTOS ECONTEXTOS DA EDUCAO NO BRASIL
A Escola Normal Joaquim Murtinho foi implantada em Campo Grande em 1930,
perodo em que o pas experimentava mudanas significativas em vrios setores. A Revoluo
de 19306caracterizou o fim da oligarquia cafeeira e a instituio do poder capitalista, o que
passou a exigir mo de obra especializada e a necessidade de investir na formao da classe
de trabalhadores emergentes.
Assim como a expanso capitalista atingiu de forma desigual as regies do pas, o
aumento da procura por escolas ocorreu mais significativamente nos estados onde o modo de
produo capitalista se consolidou. A desigualdade econmica entre as regies influenciou ocontraste educacional no territrio nacional, pois cabia aos estados a responsabilidade pelo
ensino e os mais ricos podiam investir mais, como foi o caso de So Paulo, onde ocorreram
grandes reformas educacionais.
Os conflitos de classes trazidos tona com a expanso do capitalismo trouxeram
consequncias tambm para a educao. Alm das ideias diferentes sobre o ensino (dos
revolucionrios e catlicos), a elite, que se encontrava no poder, e a populao em geral
tambm pressionavam o Governo. Enquanto a sociedade buscava a expanso escolardefendendo um ensino democrtico, a elite buscava manter o carter elitista da educao,
tentando conter a presso popular por meio da distribuio controlada de escolas, o que
acabou resultando, segundo Romanelli (2006), na expanso improvisada do ensino, pois o
Estado estava mais interessado em atender s reivindicaes do momento do que com uma
poltica educacional nacional. Houve aumento do nmero de escolas, entretanto, insuficiente e
insatisfatrio em relao qualidade.
A exemplo tem-se o Grupo Escolar, projeto republicano de Escola Primria pblicacriado em So Paulo na dcada de 1890 e com o qual foi implementada no Brasil a ideia de
escola graduada e propostos novos mtodos de ensino, como o mtodo intuitivo7 (SOUZA,
2011). Os Grupos Escolares, localizados nos centros urbanos e que reuniam vrias classes e
6 Movimento que armou a derrubada de Washington Luiz da presidncia e colocou Getlio Vargas nopoder . A situao em que o Brasil encontrava-se influenciou essa ao: a crise econmica nacional,agravada pela crise internacional, ecloso de revoltas militares, aumento de conflitos polticos ereivindicaes das classes sociais emergentes burguesa, mdia e operria , influenciou uma srie demanifestaes que contriburam para a revoluo. (ROMANELLI, 2006). Getlio Vargas governou de
1930 a 1945 e de 1950 e 1954.7O mtodo intuitivo uma prtica pedaggica caracterizada pelo ensino por meio de objetos conhecidosou perceptveis ao aluno, a partir dos quais ele estabelece relaes que o auxilia na construo doconhecimento.
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vrios professores em um mesmo prdio (havendo um professor para cada classe de cada
srie), foram disseminados por todo o pas tornando-se, segundo Saviani et. al. (2006), o
modelo de Ensino Primrio predominante no Brasil. Essa modalidade de ensino foi perdendo
seu prestgio na medida em que sua expanso foi se intensificando, a partir da dcada de
1930.
Quanto s divergncias de pensamento em relao educao, destacam-se os
defensores da Escola Nova que reivindicavam, por exemplo, uma educao laica, gratuita e
obrigatria, alm de cobrar do Governo uma poltica nacional8de educao (TANURI, 2000;
SAVIANI, 2009). Contrria a essa ideia estava a Igreja Catlica defendendo que a educao
moral dos indivduos s seria possvel com o ensino de religio nas escolas e que, sem a
influncia da religio catlica, a ideia de lar defendida e regulada pelos princpios cristospoderia ser corrompida (SAVIANI, 2006).
Polticas educacionais foram temas de vrias reunies no mbito nacional como a
Conferncia Interestadual do Ensino Primrio, realizada em 1921 para discutir a organizao
e a uniformizao do Ensino Primrio e dos cursos de formao de professores no pas; e as
conferncias nacionais promovidas pela Associao Brasileira de Educao (ABE) criada em
1924 e que, segundo Romanelli (2006), representou um confronto entre revolucionrios
(defendendo algumas das mudanas j citadas anteriormente) e o grupo dos catlicos, que viano Estado um perigo de monoplio e na laicidade e co -educao, uma afronta aos princpios
da educao catlica (p.130).
Apesar desses e de outros movimentos discutindo o ensino, foi na dcada de 1930
que a educao ganhou relevncia no pas, perodo em que aes foram realizadas pelo
Governo com o intuito de organizar o ensino. O novo modelo de Estado (centralizado,
moderno e nacionalista) implantado com Getlio Vargas na presidncia instituiu uma nova
organizao poltica educacional cuja orientao era a propagao de valores ligados ptria,religio, famlia e trabalho por meio das escolas, manifestados com o ensino de moral cvica,
moral crist e com a valorizao de festividades patriticas. Aps a criao do Ministrio da
Educao e Sade Pblica foi efetivado9, em 1931, um conjunto de decretos conhecido como
Reforma Francisco Campos, que tratava da criao do Conselho Nacional de Educao e da
organizao de diversos nveis de ensino. No entanto, o Ensino Primrio no foi pauta dessa
reforma mesmo sendo um tema importante a ser discutido e regulamentado, conforme os
8 Com o movimento de descentralizao do poder, o Ato Adicional de 1834, em relao instruopblica, repassou s provncias o direito de criar estabelecimentos prprios, regulamentar e promover aeducao primria e secundria respeitando, no entanto, as imposies gerais do Estado.9Criado em 1930, no governo de Getlio Vargas.
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movimentos educacionais do perodo evidenciam. Apesar disso, para Saviani (2006) a
regulamentao da educao no pas avanou significativamente com esse conjunto de
decretos, visto que ao Conselho Nacional de Educao cabia tratar das questes educacionais
analisando e propondo solues, alm de adotar para os ensinos visados uma estrutura
orgnica de carter obrigatrio em todo o pas. Quanto aos membros escolhidos para esse
Conselho, Romanelli (2006) critica a ausncia de representantes do Magistrio, do Ensino
Primrio e Profissional, ressaltando que a reforma deu prioridade para o sistema de ensino
elitista, tornando o Ensino Secundrio e o Superior pouco acessveis s camadas populares,
para as quais as maiores chances eram de ingressar nos cursos profissionalizantes.
Com essa reforma o Ensino Secundrio ficou dividido em dois ciclos: o Curso
Ginasial tendo como finalidade dar aos alunos os elementos fundamentais do EnsinoSecundrio, com durao de quatro anos; e os cursos paralelos (Clssico e Cientfico),
realizados em trs anos e que teriam como objetivo a consolidao da educao dada no
Curso Ginasial, bem como seu desenvolvimento e aprofundamento. Apesar de os cursos
Clssico e Cientfico terem disciplinas mnimas estabelecidas, Libneo, Oliveira e Toschi
(2009) destacam a ausncia de uma diferena considervel entre os dois cursos: ambos
preparavam os alunos para ingressarem no Ensino Superior.
Aps a Reforma Francisco Campos o Ensino Primrio manteve sua estrutura(implementada pelos Grupos Escolares enquanto projeto republicano), qual seja: curso com
durao de quatro anos abrangendo um conjunto de disciplinas que visava atender aos
princpios da educao moral, fsica e intelectual (SOUZA, 2011; SAVIANI, 2006).
Diretrizes para a organizao de um sistema nacional de ensino comearam a ser
traadas com o Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, lanado em 1932 e que defendia
a educao como um assunto essencialmente pblico e propunha a organizao de escola j
defendida anteriormente: nica, pblica, gratuita, laica e obrigatria. Os pensadores dessegrupo tambm criticavam a dualidade de ensino existente na poca, a saber, o Ensino
Primrio para as massas populares e o Ensino Secundrio para a elite (ROMANELLI, 2006;
SAVIANI, 2006). O Manifesto propunha tambm a formao dos professores em nvel
superior para lecionarem em todos os graus de ensino. Essa ideia ressurgiu em 1996, com a
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), que regulamentou o Ensino
Superior como formao mnima para o professor.
A questo de o ensino ser de competncia do Estado tambm foi assunto da
Constituio de 1934 que, embora ainda no tratasse da regulamentao, colocou como
exigncia traar as diretrizes da educao nacional, o que s aconteceu a partir de 1942 com a
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Reforma Capanema. Com essa reforma, alguns ramos do ensino foram regulamentados pelas
chamadas leis orgnicas do ensino. J a Constituio aprovada em 1937 dava orientaes
educacionais para o mundo capitalista, sugerindo a preparao de um maior contingente de
mo de obra para as novas atividades de mercado e se por um lado manteve a gratuidade e
obrigatoriedade do Ensino Primrio, enfatizando o ensino pr-vocacional e profissional; por
outro props que o ensino fosse livre iniciativa individual e coletiva, tirando do Estado o
dever com a educao.
Uma nova Constituio foi publicada em 1946 (j com Gaspar Dutra10 como
presidente) dando ao Estado a capacidade legal sobre as diretrizes e bases da educao
nacional. Foram promulgadas as Leis Orgnicas do Ensino Primrio e do Ensino Normal e,
como consequncia dessa Constituio, foi formulado um projeto de reforma geral daeducao nacional em 1947 e que, aps muitos debates, veio a se transformar na primeira Lei
de Diretrizes e Bases da Educao (LDB), publicada em 1961. Dentre as discusses acerca
desse projeto estavam a questo da centralizao ou descentralizao da organizao da
educao e a responsabilidade do Estado em oferecer escola pblica para toda a populao
(LIBNEO, OLIVEIRA, TOSCHI, 2009; SAVIANI, 2006).
O Ensino Primrio - assunto bastante discutido por educadores e que, at ento, era
responsabilidade dos estados - finalmente passou a ter regulamentao nacional. Caberessaltar que vrias reformas j haviam sido realizadas nesse nvel de ensino anteriormente,
porm essas mudanas favoreceram o aumento das diferenas educacionais entre os estados
brasileiros, pois as reformas ocorriam de forma isolada, uma vez que cada estado era
responsvel pelo ensino em seu territrio e investia de acordo com o que considerava mais
conveniente, conforme sua poltica.
Com a Lei Orgnica, ficou definida como finalidade do Ensino Primrio
proporcionar aos alunos de 7 a 12 anos uma cultura que os conduzisse ao conhecimento dasvirtudes morais e cvicas e aumentar o nvel de conhecimentos necessrios convivncia em
famlia, sade e iniciao no trabalho. Alm disso, esse ramo abrangia duas categorias de
ensino: o Primrio Fundamental, destinado a alunos de sete a doze anos e dividido em dois
cursos seguidos, o Elementar e o Complementar; e o Primrio Supletivo, destinado a
adolescentes e adultos.
A LDB de 1961 pouco alterou a estrutura de ensino anterior a ela, definido da
seguinte forma: Ensino Pr-primrio; Ensino Primrio com quatro anos de durao, havendo
10 Governou o pas de 1946 a 1951.
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possibilidade de ampliao de dois anos destinados s artes aplicadas; Ensino Mdio
compreendendo o Ginsio, com quatro anos, e o Colegial, com trs, ambos oferecendo Ensino
Secundrio e tcnico11. Essa LDB tornou possvel o acesso ao curso superior aps a concluso
de qualquer modalidade do Ensino Mdio por meio de vestibular e permitiu, tambm, a
transferncia de uma modalidade de ensino para outra, por meio do aproveitamento de
estudos. Para Romanelli (2006) talvez a nica vantagem da Lei tenha sido a revogao da
obrigatoriedade dos programas oficiais, dando liberdade para os estados organizarem seus
currculos, no entanto, muitas vezes esses continuavam os mesmos de antes, pois as escolas
compunham seus currculos com os recursos dos quais j dispunham.
J no Governo Militar12outras mudanas ocorreram. Alm do estmulo criao de
escolas particulares, foi incorporada nas instituies de ensino de modo geral a ideiaprodutivista de educao: a escolha de critrios de mercado na abertura dos cursos; a relao
entre processo formativo e processo produtivo; a adoo de parmetros empresariais na gesto
do ensino; e o esforo em racionalizar a administrao do ensino com o objetivo de reduzir
custos foram algumas das marcas desse perodo (OLIVEIRA, 2013; SAVIANI; 2008).
Ainda nessa poca houve a criao do curso obrigatrio de Primeiro Grau de oito
anos, com a unificao do Primrio e Ginsio, foi instituda a profissionalizao no ensino de
Segundo Grau visando formao de mo de obra qualificada para o mercado de trabalho etornaram-se obrigatrias nos currculos do Primeiro e Segundo Graus as disciplinas Educao
Moral e Cvica, Educao Fsica, Educao Artstica e Programa de Sade.
A partir dessas reformas comeou a surgir um novo perfil do profissional docente da
educao bsica. As Escolas Normais, principais instituies formadores de professores das
sries iniciais at o final da dcada de 1960, passaram a ser substitudas pela Habilitao
Especfica de Segundo Grau para o exerccio do Magistrio de Primeiro Grau (SAVIANI,
2009). Ainda segundo Saviani (2009), esse modelo de curso configurou uma situao deprecariedade bastante preocupante, obrigando o governo a lanar, em 1982, o projeto Centro
de Formao e Aperfeioamento do Magistrio (CEFAM) que apresentava uma proposta de
reestruturao das Escolas Normais.
neste contexto que a Escola Normal se estrutura e se movimenta em termos de
mudanas e permanncias com relao poltica educacional do pas e sobre a qual
trataremos a seguir.
11Agrcola, Comercial, Industrial e Normal.12De 1964 a 1985.
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1.1 Formao de professores e Escola Normal
A formao de professores do Ensino Primrio se mostrou uma preocupao pblica
aps esse se tornar responsabilidade das provncias13. Para a formao desses docentes, as
provncias adotaram o modelo que estava em expanso na Europa poca: as Escolas
Normais. Essas instituies surgiram, no Brasil, como um caminho para suprir a necessidade
de professores para o Ensino Primrio, modalidade de ensino que tinha como fim expandir-se
e estender-se populao de modo geral.
De acordo com dados histricos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
(IBGE), em 1933 havia 57.645 professores de Ensino Primrio no pas, dos quais 24.205 no
tinham formao apropriada para exercer tal funo (Curso Normal). J em 1947, dos 93.288professores que lecionavam no primrio comum, 37.995 no tinham a formao na Escola
Normal. Um dado interessante, tambm em relao aos professores do Ensino Primrio, a
predominncia de mulheres nesse ramo. Daqueles 57.645 professores citados anteriormente,
por exemplo, 9.182 eram homens.
Alvo de crticas por muito tempo devido a sua imagem associada a crebro em
desuso e falta de preparo, para exercer a profisso docente as mulheres aliavam-se a discursos
que defendiam sua funo natural de educadora (SOUZA, 2011). Nesse sentido, o magistrioseria um exerccio de vocao e o grupo feminino o mais indicado para modelaras crianas
para uma infncia saudvel, patritica e livre de maus costumesque pudessem corromper a
sociedade. Alm das mulheres que buscavam uma profisso, o magistrio era procurado
tambm por jovens de famlias mais abastadas que cresceriam com o propsito de serem boas
esposas, mes e, quando necessrio, professoras (SAVIANI, 2006).
Conforme j mencionado anteriormente, o Curso Normal, assim como outros nveis
de ensino, tambm demorou a ser regido por diretrizes nacionais, o que ocorreu somente em1946 com a Lei Orgnica do Ensino Normal. Antes disso, diversos movimentos j defendiam
mudanas dos cursos de formao de professores e entre essas mudanas estava a
padronizao das Escolas Normais no pas. A discusso sobre esse tema foi pauta da
Conferncia Interestadual de Ensino Primrio, realizada em 1921, e a partir da qual possvel
13Criadas em 1821, integravam as provncias brasileiras em 1822 o Gro-Par, Mato Grosso, Maranho,Piau, Cear, Rio Grande do Norte, Paraba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Gois, SoPaulo, Esprito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Cisplatina. As provncias
tinham pouca autonomia poltica, sendo seus governadores nomeados pelo governo central. Com aProclamao da Repblica, em 1889, adotou-se o governo presidencialista e as provncias transformaram-se em estados, com autonomia para escolher a Constituio e as leis pelas quais cada estado seria regido,no desrespeitando, porm, os princpios da Constituio Federal.
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perceber a preocupao de alguns representantes estaduais14 em relao falta de
regulamentos federais referentes ao Ensino Normal, o que evidenciado no relatrio15
apresentado porJos Rangel, delegado do Estado de Minas Gerais:
Devendo ser identico e objectivo, no se comprehende que o gro de culturado professor e o padro dos seus estudos e habilitaes varie de uma paraoutra unidade da Federao e que o diploma conferido pelo instituto normalde um Estado no tenha validade para a docencia em outro Estado.(CONFERNCIA INTERESTADUAL DE ENSINO PRIMRIO, 1921a, p.186).
Alm da preocupao com uma regularizao nacional evidenciada no relatrio do
Dr. Jos Rangel, possvel perceber a viso de alguns representantes acerca da formao
docente. Sobre a organizao do currculo de uma possvel Escola Normal unificada, ele
ressalta que a formao deveria ser limitada funo docente, no excedendo
[...] s exigencias da sua funco, pois, de outra frma, com mais amplasaptides, a outros misteres mais remuneradores se dedicaro os mestres,abandonando a carreira, em busca de collocaes vantajosas, nocommercio, nas industrias ou em outros cargos, no seio do proprio
funccionalismo publico.(CONFERNCIA INTERESTADUAL DE ENSINOPRIMRIO, 1921a, p. 186-18).
Ainda sobre a formao docente, Dr. Victor Vianna, um dos representantes do
Governo Federal16, tece algumas consideraes:
[...] O fim das escolas normaes "ensinar a ensinar". Mas, quem no sabeno pde ensinar. S se ensina bem o que bem se sabe. Portanto, antes de
preparar o programma da escola primaria, preciso preparar o da escolanormal; e antes de educar e instruir alumnos, preciso instruir e educar os
professores. Por isso no podemos desprezar a parte relativa ao preparointellectual do normalista. O normalista, que no pde atender a todas asnecessidades de alumnos intelligentes, inutil. preciso que os professorestenham consciencia de sua misso. indispensavel que saibam o queconvm ensinar. (CONFERNCIA INTERESTADUAL DE ENSINO
PRIMRIO, 1921b, p. 157-158).
[...] O problema da formao do professorado tem dous aspectos, como odo proprio ensino: o de qualidade e o da quantidade. Ensinar melhorar,elevar a cultura. Si comeamos por querer tomar to pratico o ensino quereduz dous annos a expresso mais simples a instruca normal, cahimos
14Estiveram presentes, ainda, na Conferncia os seguintes representantes: Dr. Alberto Moreira(Amazonas), Deputado Eurico Valle (Par), Senador Godofredo Mendes Vianna (Maranho), SenadorFelix Pacheco (Piau), Deputado Godofredo Maciel (Cear), Deputado Jos Augusto (Rio Grande doNorte), Deputado Tavares Cavalcanti (Paraba), Deputado Corra de Brito (Pernambuco), SenadorMendona Martins (Alagoas), Deputado Carvalho Netto (Sergipe), Deputado Clementino Fraga e Dr.Canna Brasil (Bahia), Dr. Mirabeau Pimentel (Esprito Santo), Deputado Azevedo Sodr (Rio de Janeiro),e D. Esther Pedreira de Mello (Distrito Federal).15Todos os trechos dos anais da Conferncia esto escritos de forma idntica aos originais.16Estiveram presentes tambm os seguintes representantes do Governo Federal: Drs. Jos Augusto Bezerrade Medeiros, A. Carneiro Leo, J.B. Mello e Souza, Victor Vianna, professor Orestes Guimares eCoronel Raymundo Pinto Seidl.
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em contradico. Si tanto menor o ensino, melhor, ento pelo mesmoraciocnio chegaremos a excluir a propria necessidade delle. A verdade que tanto mais instruimos melhor. (CONFERNCIA INTERESTADUAL DE
ENSINO PRIMRIO, 1921b, p. 154).
Nas Escolas Normaes fundadas pelo Conselho Federal precisamos obter omaximo de efficiencia com o minimo de tempo, e de dispendio. O minimo detempo, porque no podemos esperar que frmem em muitos annos os novos
professores; de dispendio, porque durante muito tempo as verbas serodeficientes em relao s necessidades. (CONFERNCIA
INTERESTADUAL DE ENSINO PRIMRIO, 1922b, p. 156-157).
A regulamentao dessa modalidade de ensino ocorreu em 1946 com a Lei Orgnica
do Ensino Normal, j mencionada anteriormente, vinte e cinco anos aps o incio dos debates
nessa Conferncia e de outros vrios acerca das diretrizes nacionais da formao de
professores. Essa Lei trouxe maior estabilidade e equiparou os Cursos que antes ficavam
sujeitos a um constante processo de modificao e extino, sendo fechados ora por falta de
alunos ora por falta de continuidade administrativa. Antes da promulgao dessa Lei, a
expanso das Escolas Normais possibilitou a constituio de cursos com currculos
diversificados de acordo com a poltica educacional de cada estado.
A Escola Normal passou a ter por finalidade formar docentes necessrios s escolas
primrias, habilitar administradores escolares para essas mesmas escolas e desenvolver e
propagar os conhecimentos e tcnicas relativos educao elementar. Com trs anos de
durao, podendo ser realizado em dois anos de estudos intensivos, o Curso compreenderia no
mnimo as seguintes disciplinas:
Quadro 1. Disciplinas mnimas exigidas na Escola Normal
1 ano 2 ano 3 anoPortugus Biologia educacional Psicologia educacionalMatemtica Psicologia educacional Sociologia educacional
Fsica e qumica Higiene e educao sanitria Histria e filosofia daeducaoAnatomia e fisiologiahumanas
Metodologia do EnsinoPrimrio
Higiene e puericultura
Msica e Canto Desenho e artes aplicadas Metodologia do EnsinoPrimrio
Desenho e artes aplicadas Msica e Canto Desenho e artes aplicadasEducao fsica, recreao e
jogosEducao fsica, recreao e
jogosMsica e canto
Prtica do ensinoEducao fsica, recreao e
jogosFonte: BRASIL. Lei Orgnica do Ensino Normal, de 02 de janeiro de 1946.
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Essa Lei propunha ainda a adoo de processos pedaggicos ativos; a educao
moral e cvica no como uma disciplina e sim como resultado da execuo do ensino, de
modo geral; a explicao sistemtica dos programas do ensino primrio nas aulas de
metodologia bem como a retomada desses contedos quando necessrio; a prtica de ensino
realizada em exerccios de observao e participao real no trabalho docente; e o ensino
religioso que, embora pudesse ser ministrado como disciplina, no poderia ser obrigatrio.
Cada Escola Normal deveria manter um Grupo Escolar para as atividades de prtica de ensino
e, quanto aos professores, esses deveriam receber formao em cursos apropriados para o
exerccio docente, em regra de Ensino Superior. Quanto aos alunos que terminassem o Curso
Normal, foi assegurado o direito de ingressar em cursos das Faculdades de Filosofia,
ressalvadas as exigncias para a matrcula em cada caso.Na dcada de 1950 foi possvel a equiparao da Escola Normal a outras
modalidades de cursos de nvel mdio, o que permitiu o acesso ao Ensino Superior, afastando
do Curso Normal a imagem de curso profissionalizante para o magistrio primrio
(SAVIANI, 2006). Dessa forma, a Escola Normal, em alguns casos, passou a ser vista no s
como um curso de formao docente para atuar no Ensino Primrio, mas tambm como um
curso de carter preparatrio, j que era uma forma de ingressar em cursos superiores.
De modo geral, ao lanar um olhar sobre a formao de professores do EnsinoPrimrio no Brasil, percebe-se que muitas vezes seu objetivo esteve ligado formao de
cidados necessria para atender s necessidades polticas em cada poca, por exemplo, com a
disseminao de escolas primrias para a populao em geral em determinadas regies surgia
a escassez de professores para o exerccio do magistrio e, assim, realizavam-se cursos com
menor durao para amenizar o problema da falta de professores habilitados, formao essa,
muitas vezes, realizada com poucos recursos financeiros e em carter emergencial, com o
objetivo de solucionar problemas imediatos da educao.A expanso do ensino deu-se, principalmente, a partir da dcada de 1930 com o
desenvolvimento do capitalismo, conforme j mencionado. Em virtude das mudanas
econmicas pelas quais o Brasil passava (transio do modelo agroexportador para o de
industrializao), verificava-se em algumas regies a migrao de pessoas do campo para a
cidade, o que resultou em um processo de urbanizao, com o qual surgiram novas classes
sociais. Nesse cenrio de mudanas houve a ampliao tanto das ofertas de trabalho quanto do
mercado consumidor e a educao escolar passou a ser considerada de grande importncia,
tanto por educadores quanto por grupos das novas camadas sociais que reclamavam mais
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escolas. Assim, como diria Andreotti (2006), a educao que j era vista pelo governo
republicano como impulsora do progresso foi, tambm, instrumento para a ascenso social.
Durante o Governo Militar surge um novo perfil de professores no ensino bsico
brasileiro. A implementao dos ensinos de Primeiro e Segundo Graus trouxe consequncias
tambm para a formao de professores e, como j discutido anteriormente, princpios do
modo de produo capitalista foram incorporados educao. A ampliao da escolaridade
obrigatria de quatro para oito anos levou expanso do ensino de Primeiro Grau e para
suprir a necessidade de professores foram criados cursos de formao aligeirada: os chamados
cursos de licenciatura curta.
Segundo a LDB de 1971, o ensino de primeira a quarta sries deveria ser realizado
por professores habilitados no Segundo Grau, enquanto a habilitao especfica de grausuperior (licenciatura curta) seria obrigatria para professores de primeira a oitava sries. J
aqueles que quisessem lecionar tanto no Primeiro quanto no Segundo Grau deveriam ter
habilitao especifica de nvel superior em cursos de licenciatura plena. Com essas mudanas
a Escola Normal foi, aos poucos, perdendo a condio de escola, transformando-se em uma
das vrias habilitaes profissionais de Segundo Grau, denominada Habilitao Especfica
para o Magistrio.
Foi nesse contexto do movimento da Escola Nova e de polticas j esboadasanteriormente queentrou em cena em 1931 a Escola Normal em Campo Grande17(situada na
regio sul do Mato Grosso uno) a partir da necessidade de professores formados para atender
as escolas da regio. poca da implantao da Escola Normal Joaquim Murtinho a regio
sul de modo geral vivia um processo de crescimento tanto econmico como populacional,
influenciado pela criao da Estrada de Ferro Noroeste, inaugurada em 1914 (PESSANHA;
ARAJO, 2009). At a dcada de 1930 predominavam no estado as Escolas Rurais, onde o
ensino era considerado ineficiente pelo ento governador de Mato Grosso, Anbal deToledo18, para quem faltavam instalaes apropriadas, material escolar, professores e
fiscalizao (MATO GROSSO, 1930). At ento os Cursos Secundrios oficiais existentes no
estado eram o Liceu Cuiabano e a Escola Normal de Cuiab, capital de Mato Grosso.
Pode-se dividir o funcionamento da Escola Normal em Campo Grande em duas
fases: i) em um primeiro momento, de 1931 a 1938 (com a ltima turma tendo se formado em
1940), quando foi substituda por um ano de curso especializado para alunos que tivessem
17Fundada em 1872 e legalmente reconhecida em 1889, Campo Grande era inicialmente uma pequenacomunidade que se desenvolveu economicamente e conquistou autonomia poltica em 1911,transformando-se na capital econmica do estado de Mato Grosso. (BITTAR, 2009).18Governou de janeiro a outubro de 1930.
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concludo o Curso Ginasial abrangendo as disciplinas19Didtica; Prtica de Ensino; Histria
da Educao; Escritura escolar; Psicologia geral e educacional; Pedagogia; Biologia aplicada
Educao e Higiene da criana; Higiene escolar, domiciliar e rural; e Trabalhos manuais; ii)
a segunda fase trata da reativao dessa escola, sob os moldes da Lei Orgnica do Ensino
Normal. Essa instituio funcionou at 1974, quando foi substituda pela Habilitao de
Segundo Grau para o exerccio do Magistrio.
A Escola Normal Joaquim Murtinho permaneceu, durante o perodo em que esteve
em funcionamento, como o principal curso de formao de professores para o Ensino
Primrio em Campo Grande. A formao proposta por essa instituio, mais especificamente
a formao matemtica, foi o tema abordado nessa pesquisa.
Apresentamos, no prximo captulo, a perspectiva metodolgica adotada napesquisa, bem como os processos metodolgicos e discusses que permearam a investigao.
19Decreto n. 229, de 27 de dezembro de 1938.
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2 FUNDAMENTAO TERICA E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA: UMAARTICULAO NECESSRIA
Essa pesquisa de abordagem qualitativa e, por isso, faz-se necessrio apresentar o
nosso entendimento em relao a essa forma de investigao, alm de questes que perpassam
os processos investigativos, como metodologia e pressupostos tericos.
Realizar uma pesquisa luz da abordagem qualitativa , segundo Garnica (2005),
reconhecer
[...] (a) a transitoriedade de seus resultados; (b) a impossilidade de umahiptese a priori, cujo objetivo da pesquisa ser comprovar ou refutar; (c) ano neutralidade do pesquisador que, no processo interpretativo, vale-se de
suas perspectivas e filtros vivenciais prvios dos quais no consegue sedesvencilhar; (d) que a constituio de suas compreenses d-se no comoresultado, mas numa trajetria em que essas mesmas compreenses etambm os meios de obt-la podem ser (re)configuradas; e (e) aimpossibilidade de estabelecer regulamentaes, em procedimentossistemticos, prvios, estticos e generalistas []. (p. 7).
Dessa forma, o desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa requer andar
sistemtica e rigorosamente em torno de uma questo problematizadora, desenvolvendo uma
postura que reconhea a subjetividade do pesquisador e, com isso, o leve a ter o cuidado de
explicitar seu processo metodolgico, justificando suas opes tericas e procedimentais aolongo do trabalho. Nas palavras de Souza (2011), [] o foco dos procedimentos desloca-se
para a postura com que se faz uma opo por um caminho ou outro, por implementar e regular
um procedimento ou outro, por analisar e avaliar as vantagens, disperses, equvocos,
contaminaes de uma ou outra estratgia (p. 64).
Reconhecer a influncia da postura e a existncia de opes, caracterizadora da
pesquisa, traz para essa dissertao o reconhecimento da subjetividade do pesquisador. Em
acordo com Goldenberg (2003), considera-se fundamental o cuidado de explicitar na pesquisaos processos que levaram s concluses (no sentido no finalista, mas de apresentao de
indicativos), as dificuldades encontradas pelo caminho, bem como os resultados negativos
obtidos no estudo. Esses, tanto quanto as discusses sobre os encaminhamentos produtivos,
so partes constituintes do pesquisador em formao.
Visando a construo de um cenrio da formao matemtica na Escola Normal
Joaquim Murtinho, buscamos entend-lo a partir de pessoas que vivenciaram essa formao.
Para Delgado (2006),
[]cada pessoa umcomponente especfico de um mosaico maior que acoletividade. Portanto, cada depoente fornece informaes e verses sobre si
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prprio e sobre o mundo no qual vive ou viveu. A histria oral, emdecorrncia, um processo de recordao realizado por um sujeitoindividual, mas socialmente integrado. (p. 52).
Nessa perspectiva, os depoimentos orais permitem uma ampliao da compreensodas transformaes nas instituies visadas, da forma como as pessoas experimentaram essas
mudanas e levantar discusses sobre essas experincias de forma mais geral e, em relao
histria da Educao,
[...] narrativas de experincias de professores ou ex-professores, suasdescries sobre a forma como vivenciaram certas reformas educacionais,bem como as relaes estabelecidas com a instituio escolar vmdesarticular a abordagem comumente centrada nas polticas pblicas e nasfilosofias pedaggicas. (SILVA; SOUZA, 2007, p. 149).
Essa concepo, aliada s potencialidades da Histria Oral como metodologia de
pesquisa qualitativa observadas no desenvolvimento da monografia, nos levou a adot-la
tambm nessa pesquisa.
A Histria Oral (MEIHY, 2002; GARNICA, 2005; SOUZA, 2006; DELGADO,
2006) uma metodologia de pesquisa que articula fundamentao terica e procedimentos de
pesquisa na construo de narrativas20. Fundamentao terica, em nosso caso, ligada a
perspectivas historiogrficas e em princpios ticos voltados criao intencional de fontes, a
partir de situaes de entrevistas.A metodologia adotada envolve procedimentos especficos como: mapeamento e
contato de/com possveis interlocutores no contexto da investigao, elaborao de um roteiro
de apoio para entrevista, gravao do momento da entrevista (gerao de uma fonte oral),
transcrio, textualizao e carta de cesso (para utilizao da fonte criada por esta e por
outros pesquisadores).
A escolha dos entrevistados deu-se por duas maneiras: via internet e critrio de rede.
Durante o desenvolvimento da monografia alguns poucos contatos de ex-alunos e ex-professores foram indicados, no entanto no tivemos sucesso na busca devido a alguns j
terem falecido, estarem com a sade debilitada ou, ainda, pelo telefone no existir mais. A
alternativa ento foi fazer uma busca na internet por nomes identificados em um
mapeamento21 de ex-alunos tambm realizado durante o trabalho de monografia. Nessa
20A narrativa um modo de construir a ideia de temporalidade ao articular indcios do passado.21A maioria dos nomes era de mulheres.
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pesquisa foi encontrado o telefone de Raimunda Luzia de Brito22, uma ex-aluna da Escola
Normal Joaquim Murtinho que se mostrou disposta a colaborar com o nosso trabalho.
Outra ex-aluna que tambm tinha se colocado disposio desistiu no dia da
entrevista alegando no se lembrar de muita coisa da poca, indicando o telefone de outra
pessoa, com quem no conseguimos falar, pois ela passa muito tempo fora da cidade.
Tambm no tivemos sucesso no contato, via e-mail, com outros dois possveis interlocutores
que haviam sido professores da Escola Normal Joaquim Murtinho. Embora tivessem se
colocado disposio, um23no respondeu mais aos e-mails e o outro, que no momento da
entrevista optou por responder s questes por escrito devido aos seus compromissos, no as
encaminhou de volta nem retornou os nossos contatos.
Voltando novamente busca via internet, conseguimos entrar em contato com duaspessoas entre os vrios nomes listados. As dificuldades que justificam essa situao esto
associadas, alm dos pontos j mencionados anteriormente - como falecimento, sade
debilitada e telefones desativados -, ao fato de algumas pessoas residirem em outros estados,
outras recusarem participar por acreditarem que no iriam contribuir com a investigao
devido a pouca memria. Um possvel motivo, tambm, para a dificuldade de localizao
dessas pessoas pode ter sido porque muitos dos nomes indicados ou encontrados em
documentos eram nomes de moas solteiras que, hoje, levariam o nome de casadas.Alm de Raimunda Luzia de Brito, outras duas ex-alunas tambm participam como
interlocutora da pesquisa: Marina Lcia de Andrade Monteiro, que inicialmente ficou em
dvida se aceitaria ou no por achar que no se lembraria de muita coisa, e Vera Edwiges
Teixeira de Barros Jafar.
Uma ex-professora de Matemtica da Escola Normal Joaquim Murtinho, citada pelas
ex-alunas, aceitou colaborar com a pesquisa, no entanto, sua narrativa no foi incorporada a
esse trabalho. Essa professora precisou passar por cirurgias e acabou indo embora para o RioGrande do Sul (j que no tinha parentes em Mato Grosso) antes de assinar o documento
autorizando a utilizao da entrevista e, como no deixou nenhum telefone para contato, no
conseguimos mais encontr-la. Tambm realizamos duas entrevistas com uma ex-professora
de Didtica e essas tambm no foram mobilizadas nesse trabalho porque no momento da
conferncia do material a entrevistada, reconhecida na cidade e escritora de matrias em
jornais, no concordou com o estilo do texto narrativo criado a partir de sua fala, julgando que
22Sobre a indicao de outros nomes, Raimunda informou que no teria como ajudar porque as pessoasque eram prximas a ela j haviam falecido.23Essa pessoa nos passou o telefone de uma professora de Didtica que havia lecionado na Escola NormalJoaquim Murtinho e que, inicialmente, aceitou colaborar com o trabalho.
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esse no estava apropriado para um trabalho acadmico. Mesmo tendo liberdade para fazer as
alteraes necessrias no texto, ela optou por no faz-las, pois achou que precisaria mexer no
texto todo para aproxim-lo da sua escrita.
Alm das trs entrevistas com ex-alunas, utilizamos nesse trabalho entrevistas
realizadas durante a graduao para o trabalho de monografia, tambm de ex-alunas, outras
apresentadas na dissertao de mestrado de Arajo (1997) sobre o ensino de Didtica no sul
de Mato Grosso na dcada de 1930, e, ainda, algumas presentes no livro de Rosa (1990),
intituladoMemria da Cultura e da Educao em Mato Grosso do Sul.
Para as entrevistas elaboramos um roteiro24de apoio contendo questes tidas como
relevantes compreenso da temtica dessa pesquisa: a formao na Escola Normal Joaquim
Murtinho e, em particular, a formao matemtica. As questes geradoras, com pontosespecficos a serem tratados, e a escolha das questes deu-se a partir de leitura de documentos
e de literatura sobre o tema. Para a elaborao buscou-se tomar algumas precaues como,
por exemplo, evitar questionrios rgidos, perguntas que induzissem as respostas e perguntas
longas ou diretas, cuidados citados por autores como Delgado (2006) e Goldenberg (2003).
Alguns ajustes foram feitos aps a primeira entrevista, como reescrita e acrscimo de questes
e, apesar de elaborarmos dois roteiros, um para alunos e outro para professores, os dois
ficaram bem semelhantes, tendo como diferena alguns pontos mais especficos como aformao mnima para lecionar no Curso Normal e cursos de aperfeioamento.
Posteriormente realizao das entrevistas, passamos aos momentos de edio: a
transcrio e textualizao. A transcrio um processo de degravao, etapa que consiste em
passar para a forma escrita o que antes se apresenta apenas como oralidade (SOUZA, 2011) e
exercita um cuidado de procurar registrar no papel detalhes do momento da entrevista, como a
ordem em que as questes foram dispostas, entonaes, vcios de linguagem e interrupes.
Cabe ressaltar que alguns cuidados
25
devem e foram tomados no momento da entrevista paraque no houvesse interferncia na gravao, como a escolha de um local com a presena
mnima de barulho, sem interrupo de terceiros, e a posio do gravador, colocado prximo
ao entrevistado e em um lugar fixo, evitando, dessa forma, atritos que pudessem prejudicar o
udio.
O exerccio de transcrio importante no s por proporcionar a divulgao de um
documento escrito mais prximodo momento de entrevista, mas tambm por proporcionar
24O roteiro segue nos apndices da pesquisa.25Durante o trabalho de monografia esta pesquisadora pode perceber o quanto as interferncias citadasprejudicam a gravao. Qualquer rudo, por menor que parea, pode ganhar mais destaque do que a vozdas pessoas, dificultando o momento de transcrio.
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ao pesquisador uma maior familiaridade com as ideias e entonaes a orientar o movimento
analtico (SOUZA, 2006) na produo da textualizao. A textualizao, por sua vez, um
momento de exerccio analtico em que construda uma narrativa mais fluente com a edio
da transcrio, reorganizando as ideias e retirando as pausas e vcios excessivos, permitindo
uma maior clareza do que foi dito pelo entrevistado. uma narrativa escrita em primeira
pessoa, uma produo que se espera conjunta entre pesquisador e entrevistado, no sentido de
que um legitima a leitura do outro. Mais recentemente, Souza (2011) identificaria a
textualizao como uma produo em co-autoria.
Quanto forma da textualizao, podemos optar por preservar questes feitas pelo
pesquisador no corpo do texto ou incorporar as questes nas respostas do entrevistado,
gerando uma narrativa contnua. Para este trabalho adotamos a segunda opo por julgarmosser possvel uma maior interveno do pesquisador ao articular as ideias na produo de um
texto fluente e, com isso, uma maior interveno do entrevistado no sentido de legitimar ou
no essa articulao. Alm disso, essa opo no necessariamente exclui a possibilidade de
indicar ao leitor as questes que foram feitas no momento da entrevista. Ao escolher essa
opo, em acordo com Souza (2006), deve-se tomar o cuidado de no omitir informaes
obtidas com o direcionamento das perguntas e, a fim de tentar explicitar esses
direcionamentos, foram incorporadas26
textualizao, por exemplo, expresses comoquando voc me pergunta, sobre o que voc me perguntou, enfatizando que o
entrevistado s respondeu a uma determinada questo porque ela era diretiva.
Apesar dos cuidados tomados para o momento das entrevistas, baseados nas
primeiras experincias desta pesquisadora, ficam evidentes nas transcries interrupes
desnecessrias, por parte da mesma, e a falta de maiores intervenes na explorao de
determinadas temticas, de modo a enriquecer as lembranas apresentadas.
Depois de realizadas a transcrio e a textualizao, os interlocutores conferiram otexto, fazendo alteraes como complementao, ocultao, correo e reconhecimento da sua
fala. Algumas fizeram alteraes relacionadas escrita e organizao dos pargrafos e poucas
informaes foram adicionadas por elas no texto. Raimunda Luzia de Brito e Marina Lcia de
Andrade Monteiro optaram ainda por retirar alguns trechos, o que no comprometeu as
informaes dadas por elas. Raimunda Luzia tambm reorganizou uma parte do texto,
26
O cuidado de explicitar o direcionamento das perguntas foi feito nas questes relacionadas matemtica.Os outros direcionamentos e as intervenes desta pesquisadora no dilogo, como as interrupes,tambm no ficam claros na textualizao, mas podem ser consultadas pelo leitor na transcrio dosdilogos.
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percebendo, j na textualizao, que a mudana de determinados tons levou a um
entendimento equivocado do que ela pretendia afirmar.
Feitas as intervenes, as trs entrevistadas autorizaram, por meio de uma carta de
cesso, a utilizao desse material para fins acadmicos. Segundo Souza (2006), esse
momento refora a ideia de que o cuidado tico perpassa o processo investigativo, no sendo
tomado somente aps a anlise das informaes obtidas, visto que [] direito do
entrevistado ocultar informaes j ditas no momento da gravao ou acrescent-las quando
julgar necessrio [] (p. 96).
A escolha da Histria Oral entre outras metodologias que se valem de entrevistas
deu-se por esta permitir uma maior aproximao dos significados atribudos pelos
interlocutores s situaes por eles vivenciadas, o que se apresenta como relevante para aspesquisas na rea da Educao e Educao Matemtica ao possibilitar compreender a maneira
como reformas educacionais so incorporadas por pessoas do meio escolar, o modo como
professores se apropriam dos mtodos de ensino, entre outros, informaes que, muitas vezes,
no podem ser obtidas em documentos oficiais ou em documentos arquivados nas escolas
(BOLVAR, DOMINGO, FERNNDEZ, 2001; SILVA, SOUZA, 2007).
Alm das entrevistas, para compor um cenrio da formao matemtica na Escola
Normal Joaquim Murtinho, outras fontes tambm foram mobilizadas nesse trabalho comodocumentos produzidos pela prpria instituio no perodo em que esteve em funcionamento,
documentos pessoais e oficiais.
Muitos desses documentos produzidos pela
instituio j haviam sido encontrados, organizados e
digitalizados durante o trabalho de monografia aps a
autorizao do ento diretor da Escola Estadual
Joaquim Murtinho (Lucilio Souza Nobre), instituioresponsvel por esses materiais. Os materiais do
acervo encontravam-se dispostos em caixas em uma
sala pequena e com pouca luminosidade. Como a sala
havia sido dedetizada, os documentos, dos mais
diversos perodos, estavam todos misturados, sendo
necessrio abrir caixa por caixa para visualizar o teor
de cada livro.
Depois de examinar as caixas, encontramos vinte e trs registros referentes Escola
Normal, tema de nossa pesquisa. O estudo de alguns desses documentos ficou bastante
Fonte: arquivo nosso.
Imagem 1. Acervo da escola
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limitado devido s suas condies, por vezes muito ruins. Outros nem puderam ser
aproveitados devido ao mau estado de preservao em que se encontravam.
O Livro Ponto a seguir permite uma melhor ideia acerca dessas ms condies.
Mesmo o ambiente tendo passado por um processo de dedetizao recente, era possvel
encontrar entre as pginas dos livros cupins e traas vivas.
Imagem 1. Livro Ponto
Fonte: Acervo da Escola EstadualJoaquim Murtinho.
Os materiais mobilizados nessa pesquisa foram organizados e digitalizados na
prpria escola (j que no obtivemos autorizao para sua retirada, devido a no devoluo de
materiais mobilizados por outros pesquisadores em anos anteriores). Essa situao evidencia a
importncia do compromisso tico com a instituio colaboradora, o quanto a nossa postura
enquanto pesquisador pode facilitar ou dificultar o trabalho de outros pesquisadores.
Assumindo esse compromisso tico, os materiais digitalizados foram gravados emum CD que foi entregue Escola Estadual Joaquim Murtinho em 2013, com o objetivo de
preservar seu contedo e facilitar seu acesso por parte de outros pesquisadores. A relao
desses materiais est disposta no quadro abaixo.
Quadro 2. Documentos encontrados no acervo da Escola Estadual Joaquim Murtinho
Quantidade Documentos Perodo
1 Cadastro de Funcionrios e Professores 1968-19752 Exames trimestrais e finais 1931-19402 Matrculas 1931-1938
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8 Livro Ponto1953-1956, 1963-1968,1970-1973
2 Portarias 1934-1945, 1952-19552 Registro de Correspondncias Expedidas 1934, 1937, 1954-1958
4 Registro de Diplomas 1935- 1940, 1948-19741 Registro de Licenas, Nomeaes e Portarias 1934-1938
1Registro das matrias lecionadas durante oano letivo
1935-1940
Fonte: elaborado pela autora.
Alm das fontes j mencionadas, foram mobilizados tambm os seguintes materiais:
Quadro 3. Outras fontes escritas mobilizadas na pesquisa
Documento Perodo
Revista do professor Mato-e Dez/1966
Jornal do Comrcio27/08/1950; 24/12/1950; 15/09/1953; 11/12/1953;22/02/1960
Jornal Folha da Serra Dez/1931; 26/08/1936; Set/1937; Set/1940
Jornal Correio do Estado07/05/1955; 24/05/1955; 17/10/1955; 17/11/1955; 11e 12/01/1974; 16/02/1974; 06 e 07/07/1974;31/07/1974
Decretos e leis estaduais29/09/1926; 22/06/1929; 18/05/1933; 31/12/1937;27/12/1938; 31/01/1947; 19/03/1947; 18/02/1948;31/12/ 1948; 31/10/1958
Relatrios 1931; 1937; 1948
Mensagens de governadores1930; 1936; 1937; 1939; 1940; 1947 a 1949; 1950 a1961; 1964; 1966; 1968; 1971
Fonte: elaborado pela autora.
Optar pela Histria Oral como metodologia no significa necessariamente
desenvolver um trabalho historiogrfico (embora em nosso caso, sim), mas certamente
implica em, ao assumir a construo de fontes histricas a partir da oralidade, pensar alguns
pressupostos historiogrficos, assunto do qual trataremos a seguir.
2.1 Concepes historiogrficas
As perspectivas historiogrficas modificam-se com o tempo. Para os historiadores
positivistas a construo da Histria fundamentava-se em fatos e grandes nomes, e os
documentos descreviam o que havia acontecido em uma determinada poca. Por muito tempo,
a realizao de uma pesquisa historiogrfica estava diretamente ligada reconstruo da
histria, reconstituio do passado por meio da linguagem. Em outras palavras, pensava-se
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que ao ler um estudo historiogrfico era possvel ter acesso a eventos do passado, forma
como realmente aconteceram.
No entanto, no incio do sculo XX percebe-se um movimento contrrio a essa forma
de se pensar Histria. A escola dos Annales, fundada por Marc Bloch, teve um papel de
grande importncia na organizao de um novo modelo de historiografia, introduzindo a
percepo da histria como um problema. Iniciava-se, assim, o mtodo regressivo: questes
do presente pem condies e limites nossa volta, possvel, ao passado (BLOCH, 2001).
Dessa forma, a Histria j no poderia mais ser olhada como uma cincia do
passado. O passado comeou a ser questionado com um lugar a se voltar e passou a ser visto
como uma construo por meio de estudos dirigidos por questionamentos do presente.
Essas reflexes comearam a ser mais discutidas a partir de consideraes acerca dopapel da linguagem, evidenciando que as palavras no permitem descrever as coisas como
elas realmente so. Com a virada hermenutica, a prpria existncia desse o que realmente
posta em questionamento e a aproximao da Histria com a Literatura refora o
processo construtivo de qualquer exerccio. Albuquerque Junior (2007) articularia esse tema
mobilizando a ideia de linguagem como uso e do homem narrativo e narrado como em estado
de palavra.
Assim como a configurao de vestgios do passado se d por meio da linguagem, osujeito da histria s o em estado de palavra. Desse modo, o historiador ao falar de uma
determinada pessoa fala, na verdade, de um sujeito criado a partir das diferentes
representaes das quais o historiador toma conhecimento, aproximando Histria e Literatura.
Como as palavras no evoluem com o tempo e [] se amoldam a situaes e moldam
condies e configuraes [] (Idem, 2011, p. 6), esto prontas para serem usadas em
diferentes situaes, muitas vezes o historiador, assim como o escritor literrio, precisa
recorrer a figuras de linguagem. A diferena, ento, est nas regras estabelecidas pelacomunidade (cientfica ou no) na qual o texto est inserido e no pacto que se estabelece entre
leitor e escritor, pacto este que permite a quem est lendo um trabalho historiogrfico
perceber que o sujeito do qual se fala no um sujeito de todo fictcio, corresponde a algum
que existiu (Idem, 2011).
Do mesmo modo que a concepo de Histria adotada pelos positivistas passou a ser
duramente criticada, as fontes tambm deixaram de se apresentar verdadeiras por si s.
Comearam a ser vistas como registros produzidos com certa intencionalidade (irrecupervel),
que no falam ao menos quando so interrogados (BLOCH, 2001) e, nesse sentido, tanto as
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fontes orais, criticadas pelos positivistas, quanto s escritas e pictogrficas so passivas das
mesmas crticas que, isoladamente, a oralidade sofreu por muito tempo.
Se a Histria agora vista como uma construo, no existe a histria verdadeira
que representa o passado, alis, dada sua inexistncia, caberia em vez de representao, falar
em criao. A historiografia seria, nesse sentido, mltipla e interminvel, pois no se
constitui, tambm, como um conjunto de verses histricas, mas de um movimento criador
dessas verses a partir de fontes que, ao serem mobilizadas, tornam-se documentos para a
pesquisa e respondem s questes formuladas por aquele que as estuda. Albuquerque Jnior
(2011) diria que a historiografia a palavra comprometida com a problematizao de eventos
do passado, o uso cuidadoso das palavras, com as quais o historiador constitui verses
desses eventos.Quanto escolha das fontes, o mesmo autor defende que nenhum acontecimento
histrico possui [...] uma documentao consagrada que no possa ser substituda por outra
ou mesmo constitudo de um conjunto de eventos que no possam ser substitudos por
outros [...] (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p.156), estando sujeita ao olhar do prprio
historiador e ao tipo de histria que ele quer escrever. Podemos concluir, assim, que toda
organizao do passado efmera, que todo marco central pode ser descentralizado e que a
Histria fluxo.Dessa forma, podemos dizer que os grandes marcos considerados pelos historiadores
positivistas so criaes de acontecimentos que escondem pistas de toda a complexidade da
realidade histrica que os envolvem (Idem, 2007), visto que
Os movimentos da Histria so mltiplos e se traduzem por mudanas lentasou abruptas, por conservao de ordens sociais, polticas e econmicas etambm por reaes s transformaes. Na maior parte das vezes, essesprocessos, contraditrios entre si, acontecem simultaneamente e se integrama uma mesma dinmica histrica. So diferentes lados de uma mesma
moeda, ou faces plurais de um cristal lapidado. So os denominadosconflitos da Histria, que o marxismo conceituou como luta de classes e que,em tempos contemporneos, tm sido identificados como contradiesintrnsecas prpria condio do homem como ser social. (DELGADO,2006, p. 15).
Assim, no podemos pensar na existncia de uma linearidade de acontecimentos,
esses no formam um curso coerente e no marcam ou apresentam continuidade. As coisas
acontecem de modo catico, algumas coisas mudam para que outras aconteam, outras
permanecem, e nem sempre evoluem com o passar do tempo (GARNICA; SOUZA,2012).
Nesse sentido, a busca pela origem se mostra incoerente e, por isso, a importncia de o
pesquisador delimitar um incio para a pesquisa. Como j citado anteriormente, uma maneira
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de construir a prpria ideia de temporalidade ao organizar indcios por meio de narrativas,
prximo assunto a ser discutido.
Ao nos comprometermos com a Histria Oral, a ideia de historiografia da qual
compartilhamos a de estudo (contnuo e inacabado) dos homens no tempo, vivendo em
comunidade (SOUZA, 2006; BLOCH, 2001). Essa perspectiva assume que o exerccio
historiogrfico no se efetiva somente em relao a grandes nomes e datas especficas
(marcos de acontecimentos), mas, ao no descol-lo da comunidade que o constitui e que
ajuda a constituir, prev o estudo das relaes entre os homens em sua durao e contexto.
Diante das discusses realizadas, reconhecemos a impossibilidade de construir a histria,
buscando a construo de um cenrio histrico a partir de depoimentos de pessoas que
vivenciaram determinadas situaes, sem desprestigiar, no entanto, outras fontes como asescritas e pictogrficas (GARNICA, 2005).
Esse estudo fundamenta-se, alm das entrevistas, em fontes documentais como livros
de matrcula, atas de exames trimestrais e finais, livros de portarias, livros de registro de
diplomas, revistas, jornais, documentos oficiais e de referncias bibliogrficas sobre o assunto
e, na tentativa de articular as informaes obtidas sobre a Escola Normal Joaquim Murtinho
no decorrer da investigao, optamos pela anlise narrativa, prximo assunto a ser discutido.
2.2 Potencialidade das narrativas
Durante muito tempo a investigao cientfica foi realizada nos moldes da pesquisa
positivista, segundo a qual a pesquisa uma cincia objetiva cuja inteno fazer
generalizaes e construir regularidades e, dessa forma, os acontecimentos sociais poderiam
ser reduzidos quantificao. Outra ideia defendida pelos positivistas era de que a pesquisa
deveria ser neutra e caberia ao pesquisador no afetar a pesquisa, anulando, assim, suasubjetividade.
Essa perspectiva viria a ser duramente criticada por pesquisadores das Cincias
Sociais, segundo os quais o modelo positivista de investigao no poderia ser aplicado a
estudos voltados a acontecimentos sociais, trazendo tona a subjetividade como caracterstica
intrnseca a esse tipo de investigao. Com a virada hermenutica, os sujeitos, suas
experincias e o prprio mundo passaram a ser vistos, como diria Albuquerque Junior (2007),
em estado de palavra, como textos construdos na leitura singular de cada um. Bonda (2002)
diria que
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[] O homem um vivente com palavra. E isto no significa que o homemtenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou umaferramenta, mas que o homem palavra, que o homem enquanto palavra,que todo humano tem a ver com a palavra, se d em palavra, est tecido depalavras, que o modo de viver prprio desse vivente, que o homem, se dna palavra e como palavra. (p.21).
Essa nova viso de mundo implicaria na busca por mtodos prprios de investigao
para uma pesquisa qualitativa e, nesse sentido, a Escola de Chicago contribuiu
significativamente ao usar relatos pessoais no estudo cientfico (GOLDENBERG, 2003). Em
outras palavras, as experincias pessoais como cartas, dirios e entrevistas foram legitimadas
na pesquisa cientfica, e tm possibilitado evidenciar perspectivas distintas acerca de
determinados eventos e compreender algumas dimenses que, muitas vezes, as fontes escritas
no permitem como, por exemplo, sentimentos e desejos.
Os relatos pessoais, por exemplo, ganharam espao em pesquisas desenvolvidas na
rea de Educao Matemtica e so defendidos como fontes fundamentais por pesquisadores
que se utilizam da Histria Oral como metodologia, pois possibilitam uma maior
compreenso dos significados atribudos pelas pessoas a situaes por elas vividas, forma
como experienciaram esses acontecimentos.
Para a ideia de narrativa usada neste trabalho partimos da perspectiva de Bolvar,
Domingo e Fernndez (2001) de que a narrativa um relato produzido a partir de experincias
pessoais. Experincia usada aqui na perspectiva de Bonda (2002), aquilo que nos passa,
nos marca, nos toca; ao narrar que damos sentido ao que nos acontece. Sendo assim, a
narrativa uma interpretao dada pelo sujeito, [] ela conta os significados que a pessoa
constri para o si mesmo (RABELO, 2011, p. 176).
Alm da possibilidade de ser mobilizada como fonte em pesquisas cientficas, a
narrativa tambm tem sido pensada e utilizada como um procedimento de anlise. Quanto aos
tipos de anlise, Bolvar, Domingo e Fernndez (2001) diferenciam dois tipos: paradigmticae narrativa. Tanto a paradigmtica quanto a narrativa, a nosso ver, trabalham com categorias.
No entanto, enquanto a anlise paradigmtica estrutura-se em torno de categorias,
evidenciando caractersticas semelhantes nas experincias humanas e anulando as diferenas
do indivduo (BOLVAR, DOMINGO e FERNNDEZ, 2001; RABELO, 2011; CURY,
2011), a narrativa busca fugir generalizao, assumindo que cada ao nica e, portanto,
no pode ser categorizada.
A anlise narrativa percebe movimentos de convergncia e divergncia, masestrutura-se em torno daquilo que pode ser narrado sobre o tema da investigao aps/durante
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o exerccio do pesquisador em compreender no s esses movimentos, mas tambm o que,
neles, se apresenta como singular.
A construo dessa trama narrativa visa evidenciar a formao do olhar do
pesquisador, pois, segundo Bolvar, Domingo e Fernndez (2001), ao narrar-se frente ao
outro, est-se a constituir-se enquanto figura narrada. A anlise narrativa, desse modo, uma
possibilidade de construir uma trama argumentativa sobre a temtica da pesquisa, mas
tambm a possibilidade dessa pesquisadora constituir-se como tal frente comunidade de
educadores matemticos.
Na tentativa de articular as informaes explicitando as compreenses obtidas no
trabalho, propomos, cientes do desafio que se impe, do exerccio de uma anlise narrativa.
3 ESCOLA NORMAL JOAQUIM MURTINHO A PARTIR DE SEUS ESCRITOS:UM OLHAR
Neste captulo construmos um dos cenrios possveis da Escola Normal Joaquim
Murtinho a partir de documentos encontrados no acervo da Escola Estadual Joaquim
Murtinho e produzidos pela instituio pesquisada durante seu funcionamento. Como j
mencionados anteriormente, os materiais encontrados e mobilizados foram Cadastro deFuncionrios e Professores (de 1968 a 1975), Exames Trimestrais e Finais (de 1931 a
1940), Matrculas(de 1931 a 1938), Livro Ponto(de 1953 a 1956, 1963 a 1968; e 1970 a
1973), Portarias (de 1934 a 1945 e de 1952 a 1955); Registro de Correspondncias
Expedidas (de 1934 a 1937 e de 1954 a 1958), Registro de Diplomas (de 1935 a 1974);
Registro de Licenas, Nomeaes e Portarias(de 1934 a 1938); e Registro das Matrias
Lecionadas(de 1935 a 1940).
Esse exerccio trata-se de uma construo com carter descritivo que visa, alm daconstituio de um cenrio dessa Escola Normal, divulgar os documentos existentes sobre
essa instituio e por ela produzidos, bem como seu contedo, contribuindo para futuras
pesquisas.
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3.1 A Escola Normal Joaquim Murtinho
Imagem 2. Grupo Escolar e Escola Normal Joaquim Murtinho
Fonte: arquivo nosso27.
A Escola Normal Joaquim Murtinho foi implantada efetivamente em 1931 no prdio
do Grupo Escolar de Campo Grande (tambm denominado Grupo Escolar Joaquim
Murtinho). Embora tenha funcionado at 1974, quando foi substituda pela Habilitao de
Segundo Grau para o Magistrio, ficou desativada de 194028 a 1948, perodo em que a
formao de professores do Ensino Primrio passou a ser realizada em um curso
especializado29com durao de um ano. Sendo assim, podemos dizer que essa Escola Normal
teve duas fases: a primeira corresponde ao perodo do incio das atividades at o ano de 1940
e a segunda de 1948 a 1974. Alm da nomenclatura Joaquim Murtinho (utilizada a partir de
1948) aparecem, tambm, nos documentos da primeira fase outras denominaes como
Escola Normal de Campo Grande, Escola Normal e Modelo Anexa, e Escola Normal e
Modelo Complementar.
Durante a primeira fase da Escola Normal estiveram frente do cargo de direo
alguns nomes como Mcio Teixeira Junior (de 1931 a 1932 e de 1935 a 1937), Lucina Prado
de Albuquerque (diretora interina em 1933), Lourival de Oliveira Azambuja (de 1933 a 1934)
e Maria Constana de Barros Machado (de 1937 a 1940).
27Imagem cedida por uma ex-professora da Escola Normal para o trabalho de monografia.28A partir de 1938 no iniciaram novas turmas no Curso.29 No Decreto n. 229, de 27 de dezembro de 1938, contam como disciplinas do curso especializado:Didtica; Prtica de ensino; Histria da Educao; Escrita escolar; Psicologia geral e educacional;Pedagogia; Biologia aplicada educao e Higiene da criana; Higiene escolar domiciliar e rural; eTrabalhos manuais.
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Ainda nesse perodo o Curso Normal teve quatro anos de durao e os alunos que
ingressavam tinham idades que variavam de 11 a 20 anos, conforme as datas de nascimento
dos alunos registradas nos livros Matrculas(de 1931 a 1938) e Registro de Diplomas (de
1935 a 1951). Ainda no documento Matrculaspodem ser encontradas outras informaes
como a data em que essas foram realizadas, nome completo dos alunos, naturalidade e o nome
do responsvel (pai). J no Registro de Diplomas (1935-1951), alm dos dados j
mencionados, h registro das notas finais dos alunos obtidas em cada ano do curso.
A partir desses documentos, nota-se a predominncia de mulheres no Curso Normal
(os documentos do indcios de um aluno apenas matriculado na primeira fase). Apesar de a
maioria dos discentes ser de Mato Grosso, h registro de alunos naturais de Alagoas, Cear,
Distrito Federal, Par, Paran, So Paulo e Rio Grande do Sul. O nmero de matrculas e dediplomas pode ser visualizado nos quadros a seguir.
Quadro 4. Relao de matrculas no perodo de 1931 a 1938
1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938
1 ano 21 11 5 17 13 16
2 ano 15 12 4 3 11 9 113 ano 8 12 3 9 12 8
4 ano 11 10 2 8 10Fonte: elaborado pela autora.
Quadro 5. Diplomas de 1935 a 1940
Ano 1935 1936 1937 1938 1939 1940
Nmero de diplomas registrados 10 2 7 10 7 8
Fonte: elaborado pela autora.
Os dados explicitados nos quadros do indcios de um considervel nmero de
reprovao e/ou desistncia na Escola Normal o que, em alguns casos, pode estar associado
ao motivo matrimnio, uma vez que nas entrevistas emergiu esse discurso: a desistncia tanto
do Curso quanto da profisso devido ao casamento.
Para ingressar no Curso os candidatos passavam antes pelo Curso Complementar,
com durao de dois anos. Aqueles que no conclussem o 2 ano do Complementar
realizavam um exame de admisso ao Curso Normal. Da mesma forma, esses exames eram
realizados tambm por alunos dos Grupos Escolares que no tivessem terminado o 4 ano.
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Quanto s disciplinas estudadas
pelos alunos na primeira fase da Escola
Normal Joaquim Murtinho notam-se
algumas alteraes de nomenclatura e na
grade curricular. Os registros de avaliaes
contidos nos livros Exames Trimestrais e
Finais30 (de 1931 a 1940) apontam para:
Portugus, Matemtica31, Francs,
Geografia, Desenho, Ginstica (em 1934)
e Trabalho (em 1934 e 1937) no primeiro32
ano; Portugus, Matemtica, Francs,Corografia33, Psicologia34, Desenho,
Trabalho (em 1934), Ginstica (em 1934),
e Msica (em 1937), no segundo35; no
terceiro36 ano h indcios de Portugus,
Pedagogia37, Fsica e Qumica, Histria
Natural, Histria Universal38, Higiene,
Desenho, Ginstica (em 1934 e 1938),Msica (em 1934 e 1938) e Trabalho (em
1934 e 1938); e no ltimo ano do Curso
constam Literatura, Didtica e Histria da
Educao39, Fsica e Qumica, Histria Natural, Histria do Brasil, Msica (em 1934 e 1940)
e Trabalho (em 1937). H tambm registros de exames de prtica profissional de Didtica
realizados em 1937 pelas alunas do quarto ano da Escola Normal.
Apesar de o Curso Normal ter quatro anos de durao nota-se que, nessa primeirafase, Matemtica fazia parte da grade curricular dos dois primeiros anos do Curso, no entanto,
30 Contam ainda, nesse livro, registros de atas de abertura e encerramento de exames escritos e deinscries para exames de admisso Escola Normal.31Em 1933 a disciplina estava registrada como Aritmtica. Em 1934 como Aritmtica e lgebra e, a partirde 1935, como Matemtica apenas.32De 1933 a 1937. No h registro do primeiro ano no perodo de 1938 a 1940.33Descrio particular de uma nao ou de uma rea geogrfica.34Essa disciplina estava registrada como Psicologia e Pedagogia no ano de 1935.35De 1933 a 1938. No h registro de exames da turma do segundo ano em 1939 e 1940.36No perodo de 1933 a 1939.37Registrada como Psicologia e Pedagogia em 1935.38Em 1938 est registrada como Civilizao.39Didtica e Histria da Educao foi registrada apenas como Didtica em 1936 e 1939, e comoMetodologia e Didtica em 1937.
Fonte: Livro Exames Trimestrais e Finais. 1931 a 1935.
Imagem 4. Ata de encerramento dos exames finais daEscola Normal Joaquim Murtinho.
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contedos matemticos eram vistos tambm na disciplina Desenho, ministrada para as turmas
dos trs primeiros anos.
Alguns dos contedos40ministrados podem ser encontrados no livro Registro das
Matrias Lecionadas, de 1935 a 1940. No que diz respeito matemtica trabalhada nesse
perodo constam os seguintes pontos destacados nos quadros a seguir.
Quadro 6. Contedos ministrados no 1 ano na Escola Normal Joaquim Murtinho
1 ano
lgebra Aritmtica Desenho
Diviso de monmios(expoente zero e
negativo); Diviso de polinmios
por monmios; Divisibilidade de um
polinmio inteiro em x naforma x-a;
Diviso de polinmios; Diviso de polinmios
com resto e quociente silimitados;
Casos notveis da divisoalgbrica;
Fatorao: casos notveis(fator comum,agrupamento, diferenaentre dois quadrados,trinmio quadrado
perfeito); Fatorao: caso de um
trinmio de segundograu;
Exerccios prticos sobrea fatorao algbrica; Clculo do