MONOGRAFIA
ANSP – ACADEMIA NACIONAL DE SEGUROS E PREVIDÊNCIA
A FRAUDE CONTRA O SEGURO – ASPECTOS TÉCNICOS E JURÍDICOS
Acadêmico catedrático advogado PEDRO PAULO OSÓRIO NEGRINI
Assistente advogado Antonio Carlos Nóbrega
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 2
CAPÍTULO 1 – PRIMÓRDIOS DO SEGURO 5
1.1 PRIMÓRDIOS DO SEGURO NO MUNDO 6
1.2 PRIMÓRDIOS DO SEGURO NO BRASIL 14
CAPÍTULO 2 – A FRAUDE NO MERCADO SEGURADOR BRASILEIRO 17
2.1 MODALIDADES DE FRAUDE E SEUS AGENTES 20
2.2 COMBATE À FRAUDE NO SEGURO 25
2.3 A PROVA 26
2.4 INVESTIGAÇÃO POLICIAL 30
2.5 CRIMES CONTRA O SEGURO 33
2.6 AÇÃO PENAL 38
2.7 ADVOCACIA CRIMINAL PARA O MERCADO SEGURADOR 43
CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO 48
ANEXO I 50
BIBLIOGRAFIA 52
INTRODUÇÃO
A atividade securitária é de significativa importância no cenário interno do País,
representando atualmente mais de 3% do PIB nacional, segundo dados
estatísticos disponibilizados pela FENASEG – Federação Nacional das
Empresas de Seguros e Capitalização. Tal representatividade dentro do
cenário brasileiro demonstra a relevância deste segmento da economia, que,
além de ser responsável pela geração de milhares de empregos, propicia o
desenvolvimento dos mais diversos setores de produção do país.
Apesar dessa notável posição, o mercado de seguros sofre expressivos
prejuízos com a indústria da fraude. A prática constante de golpes contra o
seguro acarreta a elevação dos custos da operação deste serviço, já que são
necessários vultuosos investimentos em métodos preventivos e procedimentos
inibitórios, de modo a criar mecanismos eficientes de combate à fraude.
Ademais, o aumento da sinistralidade é uma conseqüência natural da fraude e
dos índices fictícios por ela gerados, causando a elevação no valor dos
prêmios em diversas modalidades de seguro, de acordo com a própria lógica
mutualista que permeia toda a atividade securitária. Na realidade, evidencia-se
que o benefício indevidamente recebido por poucos, que utilizaram métodos
fraudulentos para induzir a seguradora em erro, acaba por gerar prejuízo para
muitos, que arcam com o aumento dos custos para contratação do seguro.
Por fim, é inegável o prejuízo causado pela fraude à imagem das empresas
que atuam neste importante ramo do mercado, pois a demora para o
pagamento das indenizações, acarretada pela necessidade de perícias e
sindicâncias nos mais diversos sinistros, e a negativa de pagamento de
sinistros fraudulentos, acabam por causar uma falsa impressão à sociedade,
que passa a ter uma certa desconfiança em relação à prática do seguro.
O principal escopo deste trabalho é justamente demonstrar a forma como a
fraude contra o seguro é praticada e os danos por ela causados, tanto para as
empresas que atuam neste segmento de mercado, como para toda a
sociedade. A identificação das diversas modalidades de golpes realizados por
fraudadores tornará possível uma ação planejada e inibitória contra a fraude,
de modo a dar credibilidade e segurança ao serviço prestado, bem como
melhorar a imagem das seguradoras perante o público.
Os aspectos penais e processuais penais também merecem destaque neste
trabalho, já que somente com o estudo de tais pontos será possível vislumbrar
o trâmite dos procedimentos policiais e judiciais envolvendo fraudadores, além
de demonstrar a relevância das provas colhidas para a comprovação de golpes
contra o seguro.
As conseqüências cíveis da fraude contra o seguro apresentam-se como tema
indispensável para a conclusão deste estudo. A quebra da boa-fé, paradigma
do Novo Código Civil, repercute de modo vigoroso no contrato de seguro,
merecendo, assim, uma abordagem detalhada acerca de suas conseqüências
legalmente previstas.
CAPÍTULO 1 – PRIMÓRDIOS DO SEGURO
Antes de adentrarmos no universo da fraude que é praticada contra o seguro,
tecendo uma análise sobre os aspectos e conseqüências criminais e cíveis das
diversas modalidades desses delitos praticados no mercado, é necessária uma
abordagem histórica sobre a criação e o desenvolvimento do instituto do
seguro no mundo.
Diante do quadro que apresentamos a seguir, sobre a história do seguro, será
possível compreender o nascimento, advindo de necessidade específica, de
diversos princípios inerentes à própria natureza dessa modalidade de contrato,
demonstrando-se, ao fim, como a fraude pode prejudicar o equilíbrio de toda a
lógica atuarial que norteia a atividade seguradora.
A definição do seguro, nos moldes atuais, deu-se através de um extenso
processo de formação, com a construção de uma base normativa adequada ao
longo dos séculos, baseada, muitas vezes, somente nas experiências
vivenciadas por aqueles que atuavam naquele então ainda desconhecido setor
econômico.
Apesar da falta de registros históricos sobre as fraudes contra o seguro
cometidas no passado, é certo que, neste longo percurso, a própria natureza
humana se incumbiu de criar diversos mecanismos para a proteção do
mutualismo atinente ao contrato de seguro, já que se pode afirmar, com algum
grau de precisão, que desde os primórdios, em qualquer coletividade social,
sempre há aqueles que tentam, de alguma forma, tirar proveito das fragilidades
que integram os mais variados tipos de negócio.
Para um entendimento introdutório, segue adiante uma abordagem histórica
sobre a formação do instituto do seguro, seus princípios e o modo com que os
Estados Soberanos passaram a conviver com essa modalidade de contrato,
complementada com uma referência ao histórico da atividade no Brasil.
Após a construção de tais alicerces, necessários para a compreensão de toda
a complexidade que envolve a atividade seguradora, será possível passar ao
exame das várias faces da fraude contra o seguro, prática que nem sempre é
vista com a relevância e gravidade devidas pelas autoridades públicas,
tornando-se socialmente aceita por parte da população.
1.1 Primórdios do Seguro no Mundo
A atividade seguradora surgiu e se desenvolveu de forma lenta e gradativa, na
medida em que os antigos tinham a necessidade de se proteger contra os
infortúnios a que estavam sujeitos. Não é possível apontar um momento
histórico para o aparecimento do instituto do seguro, já que sua criação não
está necessariamente vinculada à capacidade criativa de alguém, sendo, na
realidade, o resultado de um esforço coletivo de pensamento e trabalho
desenvolvido ao longo dos séculos.
Segundo os estudiosos, o nascimento do seguro decorreu da necessidade
específica dos homens do comércio, que precisavam de um instrumento hábil
para proteger seu negócio contra a incidência dos riscos inerentes às suas
atividades.
A evolução do instituto acompanhou a tendência do progresso mundial,
aglutinando os ensinamentos da prática e das ciências que iam nascendo, em
razão da expansão e da especialização da cultura humana.
Porém, antes de se transformar em instituição autônoma, baseada na
sistematização de seus elementos essenciais, assumiu variadas formas que
não lhe permitiam uma configuração perfeita e lógica, tendo sido necessário
muitos séculos de prática para que a atividade seguradora se tornasse uma
ciência própria, merecedora de estudos aprofundados sobre suas principais
características e peculiaridades.
Os primeiros registros históricos referentes ao contrato de seguro propriamente
dito surgiram somente no século XIV. Tais documentos ainda não abordavam
de forma clara o instituto do seguro, sendo confundidos com contratos de
compra e venda, já que se utilizavam de muitas cláusulas semelhantes,
sobretudo as que se referiam à promessa de compra e venda.
Na Itália do século XIV, as cidades de Pisa, Florença e Gênova detinham uma
grande concentração da atividade de seguro. Posteriormente, em virtude do
sucesso de sua prática, a celebração de contratos de seguro irradiou-se para
outros países da Europa, tais como Espanha, Inglaterra, Portugal e Países
Baixos.
Segundo apanhado documental, as primeiras apólices de seguro surgiram em
Pisa e em Florença, com origem nas datas de 11/07/1385 e 10/07/1387,
respectivamente. As cláusulas inseridas naqueles instrumentos revelaram uma
disciplina jurídica marcada pelo uso e costumes das diferentes praças
comerciais, o que pode ser atribuído à ausência de uma sistematização
normativa da matéria.
Desde então, quando se acentua o desenvolvimento dos negócios envolvendo
contratos de seguro e a relativa dependência que a atividade comercial passou
a ter sobre tal prática, é despertado o interesse das autoridades públicas da
época. O Estado passa a entender que era imprescindível fixar bases jurídicas
mais estáveis para esse tipo de atividade que, inicialmente, se apoiava
exclusivamente nos usos e costumes das praças comerciais.
Assim, as Ordenanças de Barcelona, publicadas em 1435, já demonstravam
uma preocupação do Estado com a normatização das regras inerentes aos
contratos de seguro, destinando diversas de suas disposições à
regulamentação desse instituto. No mesmo período, cria-se um tribunal
especializado para a apreciação e julgamento de assuntos ligados ao seguro,
cujo principal objetivo era coibir a prática de determinadas operações que
pudessem afetar e desqualificar a natureza dessa modalidade de contrato.
É possível que diante deste contexto histórico a fraude já começasse a se
manifestar, ainda que de forma tênue, dentro do embrionário setor, com a
realização de contratos estranhos à atividade seguradora e a tentativa de
cobertura de sinistros não previstos pelas apólices. Tais comportamentos eram
incentivados pela ausência de um ordenamento jurídico apropriado e de uma
regulação devida nos pleitos indenizatórios.
Com o passar do tempo, as Ordenanças de Barcelona vão sendo modificadas
sucessivamente, e caminha-se no sentido da busca de uma verdadeira
codificação do instituto do seguro, com disposições de mérito, forma e
procedimento.
Apesar desse esforço em nível legislativo, a fim de disciplinar o contrato e
tutelar os interesses das partes, as operações de seguro ainda careciam de
maior estabilidade, tendo em vista a ausência de estruturação técnica para o
suporte das obrigações assumidas.
Dentro das limitações da época, e como a celebração dos contratos de seguro
era feita sem um estudo estatístico e atuário do risco assumido, os
seguradores determinavam o prêmio em função da experiência de outras
praças comerciais, o que, inevitavelmente, acabava por causar grandes
distorções no momento da ocorrência de um sinistro.
Essa falta de técnica, para cálculo de reservas e de riscos, trazia uma
sensação de insegurança aos operadores de seguro, limitando sua
responsabilidade em cada negócio. Ademais, a capacidade de cada segurador
era reduzida, já que as obrigações eram assumidas por pessoas físicas e não
por sociedades detentoras de grandes capitais.
Visando à troca de informações e à unificação dos diversos princípios que
integram o instituto, os seguradores passaram a se reunir no mesmo local,
onde tinham o conhecimento das diversas técnicas utilizadas para avaliação
das condições de risco e do valor dos prêmios cobrados.
É possível que as operações de co-seguro tenham surgido neste momento,
diante da necessidade de um processo coletivo de cobertura de sinistros e
diluição de riscos, prática que se mostrou produtiva e que foi mantida ao longo
dos séculos.
O resseguro, outra atividade de repartição de risco entre vários seguradores,
foi conhecido já no século XIV. Em vez de cada contratante assumir
diretamente parte da responsabilidade perante o segurado, apenas um
segurador aparece contratando a garantia e se obrigando integralmente pela
cobertura do risco. Transfere, entretanto, para outros seguradores, o excesso
de sua capacidade de retenção, não arcando com todo o valor da indenização
no caso da ocorrência do sinistro.
Tal operação favorecia ao segurado que não necessitava acionar, em hipótese
de litígio, vários seguradores concomitantemente para obter a indenização
devida, como ocorria no co-seguro. Para o segurador, o resseguro consistia em
mais um processo de pulverização dos riscos. Está é sua grande relevância e
utilidade, preservada até os dias atuais.
Em relação às pessoas responsáveis pela operação do seguro, merece
destaque o fato de que, segundo relatos históricos, a formação de sociedades
seguradoras, devidamente constituídas, começou a ser desenhada no século
XV, embora o costume de seguradores individuais tenha prevalecido ainda por
muito tempo, vindo a desaparecer somente séculos mais tarde. Na Inglaterra,
entretanto, se mantém até os dias atuais.
Inicialmente, a atividade seguradora tinha como principal foco a cobertura de
riscos marítimos, em razão das freqüentes expedições realizadas para
distantes localidades do mundo. Com a gradual evolução da sociedade e das
relações comerciais entre os povos, o seguro começou a ampliar seu campo
de atuação, alcançando riscos de outra natureza, tal como o seguro de
transportes terrestres, cujas apólices abrangiam a garantia durante todo o
percurso, até o destino final da mercadoria.
É curioso lembrar que os escravos eram freqüentemente aceitos na cobertura
de diversos tipos de risco de transporte, já que se igualavam a mercadorias,
possuindo valor de mercado, o qual era utilizado para fixação do montante das
indenizações.
A expansão da atividade seguradora para outras modalidades de risco, além
daqueles ligados à fortuna do mar, somada à falta de experiência sobre esses
novos negócios, acabou por confundir, em alguns momentos, o seguro com o
jogo, com a realização de operações estranhas ao objeto da prática do seguro.
Para se ter uma idéia, realizavam-se, sob a forma de seguro, vultosas apostas
sobre a vida de pessoas importantes, como príncipes e representantes da
Igreja, comprometendo-se uma das partes ao pagamento de determinada
soma pecuniária, caso sobrevivessem a certa data.
Apesar da expansão da atividade seguradora para outros campos, o seguro
marítimo ainda detinha uma posição de destaque dentro do cenário da época.
As grandes descobertas marítimas, ocorridas no século XVI, e a abertura de
um novo caminho para as Índias tiveram profunda repercussão na economia
européia, e resultaram na intensificação do comércio com o Oriente e na
distribuição da riqueza advinda da exploração dos produtos extraídos das
colônias do continente americano. Tais mudanças acarretaram o acréscimo do
volume de bens transportados, evidenciando a demanda por um instrumento
jurídico consistente para sua proteção.
Era previsível que essa transformação no cenário mundial se refletisse na
atividade seguradora, que sentiu a necessidade de se aparelhar para garantir
o comércio contra os novos riscos assumidos. Fomentar sua
operacionalização, incrementar suas normas jurídicas, bem como eliminar a
instituição dos vícios que impediam sua efetiva evolução, eram requisitos
indispensáveis para que o contrato de seguro pudesse desempenhar o novo
papel que lhe cabia naquela conjuntura mundial, já transformada.
Com efeito, para alcançar tal objetivo, houve um incansável trabalho legislativo
no século XVI. Além das Ordenanças de Barcelona, mencionadas em
parágrafos anteriores, surgiram as Ordenanças de Florença, Burgos, Sevilha,
Bilbao, Amsterdam e Flandres. Além da inestimável contribuição dos trabalhos
doutrinários sobre a matéria, esses dispositivos legais foram resultantes da
aglutinação de leis anteriores e de modificações introduzidas pela prática dos
usos e costumes da época.
A relevância obtida pelo seguro naqueles séculos trouxe um grande
desenvolvimento ao instituto; não impediu, porém, o surgimento de problemas
no setor, devidos principalmente ao aumento da demanda e à inexperiência de
alguns seguradores.
Pela falta da técnica atuarial indispensável à atuação no segmento do seguro e
do expertise para a prestação de um serviço sem riscos, muitos seguradores
se arruinaram, levando consigo segurados que neles depositavam suas
esperanças e acabavam por não receber suas devidas indenizações.
Concluiu-se que a instabilidade do seguro vinha do fato de ele ser exercido por
seguradores particulares e não por sociedades especializadas, as quais
possivelmente teriam melhores condições para captar capitais elevados e
estabelecer bases econômico-financeiras estáveis. No entanto, as primeiras
sociedades não tiveram melhor sorte. A grande maioria, apesar de apresentar
uma maior capacidade financeira, acabou na insolvência, possivelmente por
falhas ligadas ao cálculo do risco e das reservas indispensáveis à manutenção
do negócio. Havia, portanto, a necessidade de uma estruturação técnica à
altura das obrigações arcadas.
A má experiência gerencial das sociedades seguradoras, com conseqüências
negativas para a própria instituição e, de um modo geral, para toda a
economia, proporcionou que o governo francês, a partir de 1685, efetuasse
uma medida drástica, monopolizando as operações do seguro marítimo, que
ficaram sob total responsabilidade da Compagnie Générale des Assurances et
Grosses Aventures.
É necessário registrar que foi em meio a esse cenário que, no século XVII,
surgiram as primeiras companhias de seguro para o caso de incêndio,
modalidade que apresentou um significativo crescimento nos anos posteriores
e, até os dias de hoje, possui grande representatividade no mercado.
O seguro de incêndio ganhou maior importância depois de um pavoroso
incidente ocorrido na cidade Londres, quando foram destruídas 13.200 (treze
mil e duzentas) casas, 89 (oitenta e nove) igrejas, fazendo com que 20.000
(vinte mil) pessoas ficassem sem abrigos. Tal infortúnio chamou a atenção da
opinião pública para o iminente perigo desse risco nas grandes aglomerações
urbanas, estimulando a criação das primeiras seguradoras dispostas a suportar
os sinistros de incêndio. Surgiram, com isso, várias sociedades: a Fire Office
(1680), a Friendly Society (1684) e a Hand in Hand (1696). O aparecimento
dessas empresas estampa o início de uma nova etapa na evolução do seguro,
que passava a interessar-se pelos riscos terrestres.
O fato de que a instituição de seguro passava por um momento de dificuldade,
devido aos constantes problemas de solvência dos seguradores, não foi
suficiente para impedir que aqueles que operavam no mercado tentassem
expandir seus negócios para outras modalidades de risco, tais como os riscos
terrestres, esforçando-se, inclusive, para se adaptar às novas condições sócio-
econômicas da época. Apesar das dificuldades iniciais e da falta de um
conhecimento técnico adequado, o desenvolvimento dos seguros terrestres
ocorreu de forma mais rápida do que o marítimo.
O século XVII registra, ainda, o lançamento dos estudos iniciais e das bases
científicas do seguro de vida, com a elaboração das primeiras tábuas de
mortalidade. Assim, o caminho estava praticamente aberto para a definitiva
fixação da disciplina basilar desta modalidade de seguro, descobrindo a seu
turno a técnica da operação, condicionada à organizada das reservas para o
pagamento dos sinistros.
Já na segunda metade do século XVIII, os seguros terrestres, sobretudo, os de
incêndio e de vida, começaram um intenso processo de expansão pelas
diferentes classes da população, com preços mais acessíveis e com bases
científicas e técnicas mais sólidas para as operações.
Com a evolução natural das ciências inerentes à atividade securitária, e o
conseqüente aumento de confiança no instituto, as restrições legais para que
as sociedades explorassem o seguro foram se extinguindo. Devido a maior
segurança oferecida e preços mais competitivos, as grandes companhias
praticamente expulsaram do mercado os seguradores individuais.
É certo que os ramos de incêndio e vida propiciavam, e ainda propiciam, a
incidência de práticas fraudulentas, ou pelo menos contrárias aos princípios
que regem o instituto do seguro. Os seguros de vida, devido às altas
indenizações previstas nas apólices, são um convite para que pessoas sejam
beneficiárias de segurados com os quais não possuem qualquer relação, é a
chamada ausência de interesse segurável.
Já os seguros de incêndio podem ser muitas vezes utilizados de forma
indevida, com a cobertura de bens não previstos nas apólices, ou com a
intencional causa do sinistro, devido à perda do interesse do segurado no bem
coberto pelo contrato.
A expansão do seguro terrestre, iniciado nos ramos acima mencionados no
século XVIII, conseguiu maior força no século seguinte com a exploração de
outras modalidades. O aperfeiçoamento das bases técnicas, que fez do cálculo
de probabilidade a alavanca do progresso da instituição, apontou a
oportunidade para seu estudo e diversificação em vários outros ramos do
seguro.
Todo o risco que equivalesse a um montante econômico, que se submetesse a
uma experiência estatística satisfatória e à lei dos grandes números, podia ser
alvo de uma nova carteira. As regras técnicas seriam as mesmas destinadas
aos outros ramos, variando apenas o preço e a correlação dos elementos de
cobertura, em razão da natureza da garantia.
Conforme aconteceu com os seguros marítimos, cuja legislação surgiu bem
mais tarde, os seguros terrestres não tiveram inicialmente uma legislação
própria. Eram aplicadas as normas do seguro do mar e, subsidiariamente, os
princípios gerais do direito, especificamente o direito das obrigações. Os usos
e costumes adotados pelos diferentes países também tiveram papel relevante,
solidificando as cláusulas principais dos contratos.
Com o surgimento do sistema de codificação, nascido no século XIX, as
normas de seguro que vigoravam nas antigas ordenanças passaram por nova
compilação. A publicação do Código Comercial francês em 1807 serviu de
base para os ordenamentos jurídicos de diversos países. Todavia, apesar da
relevância econômico-social adquirida pelo seguro terrestre, tal Código
somente tratou de aspectos do seguro marítimo.
O Código holandês de 1838 foi um dos primeiros a inserir, dentre os seus
artigos, dispositivos específicos sobre o seguro terrestre. No Brasil, o Código
Comercial de 1850 tratou apenas de assuntos ligados ao seguro marítimo,
tendo em vista que os aspectos do seguro terrestre somente foram abordados
com o advento do Código Civil de 1916.
1.2 Primórdios do seguro no Brasil
Pode-se afirmar, com base em segura e farta documentação existente, que a
atividade seguradora tem no Brasil idade próxima ao do nascimento do próprio
país. Os historiadores especializados costumam fixar o aparecimento das
primeiras formas de mutualismo ainda no Século XVI, quando o Padre José de
Anchieta valeu-se desse modo de incorporação de bens e de prestação de
serviços, para dar assistência aos primeiros colonizadores e à população
indígena.
A preocupação do Estado Português com uma relação que já pode ser
caracterizada como produção de serviços voltados ao mercado e ao consumo,
no âmbito da atividade seguradora, só viria a acontecer no Século XVIII, ao
serem promulgadas as "Regulações da Casa de Seguros de Lisboa", postas
em vigor por alvará de 11 de agosto de 1791, e mantidas até a proclamação da
independência em 1822.
Em 1808, com a abertura dos portos, teve-se, finalmente, em nosso país, o
início propriamente dito da exploração comercial dos seguros marítimos sob
regulação do Estado, o que se deu através do funcionamento da Companhia
de Seguros Boa Fé, sediada na Bahia. Esta foi a primeira sociedade
seguradora a funcionar no país, sob as vistas do governo regulador,
preocupado com aquilo que já poderíamos considerar uma situação de
mercado e consumo.
Destaque-se que somente em 1831 o mercado segurador começou a ser
regulado por um órgão público específico: a Procuradoria de Seguros das
Províncias Imperiais. Vinte anos mais tarde, o seguro marítimo foi inserido no
corpo do Código Comercial de 1850.
Naquela ocasião, inúmeras seguradoras começavam a operar no Brasil,
aprovando seus estatutos pela lei nacional, mas preservando sua operação –
sobretudo nos ramos de seguros elementares, incêndio e vida – nos moldes da
indústria de seguros já largamente universalizada pelos ingleses.
A atividade seguradora no Brasil ganha uma moldura mais adequada em 1860,
quando aparecem os primeiros regulamentos sobre demonstrativos financeiros
das companhias, cujo funcionamento é então condicionado à autorização
governamental. Anos mais tarde, em 1895, tal exigência foi ampliada para as
companhias estrangeiras que funcionavam no território brasileiro, que
passaram a atuar sob supervisão estatal.
Em 1901 edita-se o Regulamento Murtinho (Decreto 4.270), com a criação da
Superintendência Geral de Seguros. Este órgão, subordinado ao Ministério da
Fazenda, recebeu a missão de estender a fiscalização a todas as seguradoras
que operavam no País. O Brasil entrava na era moderna da atividade
seguradora, com a lei impondo mecanismos de modulação de interesses de
seguradoras e segurados. Percebe-se que já se trata, portanto, de uma
situação de consumo tutelada pelo Estado.
Em 1966, quando o país vivia uma conjuntura de forte presença do Estado em
sua vida econômica, e acabava de passar por uma reforma centralizadora em
seu sistema bancário (Lei 4595/65), sai editado o Decreto-lei 73. Tal norma cria
o Sistema Nacional de Seguros Privados e a SUSEP- Superintendência de
Seguros Privados, destinada a ser o órgão controlador e fiscalizador da
constituição e funcionamento das sociedades seguradoras e entidades abertas
de previdência privada.
Dotada de poderes para administrativamente apurar responsabilidades e
apenar corretores de seguros que atuem culposa ou dolosamente em prejuízo
das seguradoras ou do mercado, a SUSEP assume, de maneira efetiva, a
tutela direta dos interesses dos consumidores de seguros, dividindo algumas
de suas atribuições com o IRB – Instituto de Resseguros do Brasil.
O quadro de intervenção regulatória e fiscalizatória no mercado segurador
ampliou-se em 1998, com a edição da Lei nº 9656, pela qual foi criado o
CONSU – Conselho de Saúde Suplementar, órgão colegiado que estabelece e
supervisiona a execução de políticas gerais para o setor de saúde
suplementar. A esse Conselho, seguiu-se a criação da ANS – Agência
Nacional de Saúde Suplementar, autarquia especial vinculada ao Ministério da
Saúde, através da Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000.
Ás duas entidades cabe a política de promoção da defesa do interesse público
na assistência suplementar à saúde, bem como a regulação da atividade de
operadoras de planos e seguros de saúde, inclusive quanto às suas relações
com prestadores de serviços e consumidores. Desde então, as seguradoras
que atuavam no segmento de Seguro Saúde – que era normatizado e
fiscalizado pela Susep – tiveram que se transformar em empresas
especializadas, e foram submetidas à nova estrutura de regulação.
CAPÍTULO 2 – A FRAUDE NO MERCADO SEGURADOR BRASILEIRO
O mercado segurador brasileiro vem conseguindo uma relevante posição
dentro do cenário econômico nacional. De acordo com dados estatísticos
obtidos junto à FENASEG – Federação Nacional das Empresas de Seguros
Privados e de Capitalização, nos anos de 2004 e de 2005 a atividade
seguradora teve a significativa participação de 3,39% sobre o PIB do país. Tal
atuação se torna ainda mais impressionante, se for levado em consideração
que no ano de 1995 a participação do setor era de 2,53%.
É certo que além dos inúmeros benefícios trazidos por esse expressivo
crescimento, as empresas seguradoras também passaram a ser vítimas de
pessoas mal intencionadas, que vislumbraram uma oportunidade de obter
vantagens financeiras indevidas em prejuízo de todo o grupo segurado.
A fraude, em termos mais objetivos e menos técnicos, nada mais é do que o
ato pelo qual alguém engana a companhia seguradora, passando-lhe falsas
informações na contratação do seguro, no aviso de sinistro ou no processo de
regulação do evento coberto, com o fim de obter uma indenização cujos
valores são parcial ou totalmente indevidos.
Os danos acarretados por essa prática delituosa são de grande monta,
principalmente quando tal prática ocorre em âmbito nacional, irradiando-se
pelas variadas modalidades de seguro, tanto para coberturas de baixo valor,
como para aquelas de patamar mais elevado.
A quantificação da fraude no mercado segurador brasileiro, apresentada em
recente publicação da FENASEG, indica que em 7,6% dos sinistros pleiteados
às seguradoras há suspeita de fraude, e, desse percentual, somente em 1,2%
é possível comprovar a ocorrência do golpe. No caso específico dos seguros
de automóvel, a situação é ainda mais grave, já que o percentual de sinistros
com suspeita de fraude chega a 9,7%, e em apenas 0,9% dos casos é possível
a demonstração do crime. Por fim, merece destaque o fato de que o ramo de
transportes apresenta o maior percentual de sinistros com suspeita de fraude,
com 14,7% dos casos, sendo que a comprovação do crime só ocorre em 2,8%
dos pleitos (tais índices encontram-se no anexo 1 do presente trabalho
monográfico).
Essa alta incidência de casos de fraude contra o seguro tem inúmeras
conseqüências, sendo que duas são facilmente perceptíveis: elevação dos
custos da operação do seguro e prejuízo à imagem de todas as companhias
que atuam neste mercado.
O aumento do valor do prêmio e uma conseqüência natural da fraude, já que
para combatê-la é necessária a realização de intensos procedimentos
inibitórios e preventivos, tais como perícias, análises documentais, verificação
da subscrição, campanhas de publicidade etc. Ademais, é certo que a
comunicação de sinistros fraudulentos acaba por gerar índices inexatos acerca
de eventos cobertos pelo seguro, fazendo com que, de acordo com a própria
lógica mutualista inerente a esta modalidade de contrato, toda a coletividade
pague um preço mais elevado pelo prêmio.
Em relação à imagem das companhias seguradoras, é certo que a demora no
pagamento das indenizações, devido a auditorias e sindicâncias necessárias
para a regulação do sinistro, e a negativa de pagamento de eventos
fraudulentos acabam acarretando prejuízos à imagem do setor, que passa a
ser visto com uma certa dose de antipatia por toda a sociedade.
Não há dúvida de que essa percepção que a sociedade passa a ter das
empresas que atuam no mercado de seguro estimula, de alguma forma, a
tolerância de pessoas em relação à fraude. A partir do momento em que a
população passa a acreditar que as seguradoras buscam somente a obtenção
de lucros fáceis, com o pagamento do menor número de indenizações
possíveis e a cobrança de altos prêmios, – ao invés de compreender que
essas empresas apenas gerenciam recursos alheios para um fim comum - a
fraude passa a ser socialmente aceitável.
A alta incidência da prática de fraudar o seguro tem gerado intensos debates.
A procura por métodos e fórmulas eficazes para inibir e combater tais condutas
vem ocupado o espaço de seminários e congressos promovidos por aqueles
que atuam no meio, possibilitando uma intensa troca de experiências e
sugestões.
O cuidado na contratação do seguro, a averiguação das informações prestadas
pelo segurado, a regulação cuidadosa de cada sinistro e, principalmente, as
campanhas publicitárias para conscientização da sociedade, são algumas das
providências adotadas pelo setor para diminuir a incidência da pratica da
fraude contra o seguro ou, quando possível, mitigar seus efeitos negativos.
Mesmo com as variadas medidas adotadas pelas seguradoras e pelas
autoridades públicas competentes, o número de pleitos indenizatórios
suspeitos de fraude ainda é extremamente significativo. Não é possível
precisar o percentual de sinistros fraudulentos pagos pelas seguradoras,
contudo, acredita-se que, em determinadas modalidades de seguro, tal número
possa ultrapassar a barreira dos 15%, trazendo significativos danos para toda
a atividade.
Pelo relevante papel que o seguro ocupa dentro do cenário nacional e da
importância de sua atividade econômica, resta evidente que tal número não
pode ser desconsiderado. O contrato de seguro é o principal meio
desenvolvido pela sociedade para se proteger contra os infortúnios a que todos
nós estamos submetidos diariamente. O mutualismo, presente nos diversos
tipos de contrato de seguro, permite que os prejuízos, advindos de uma
situação imprevisível e totalmente inesperada, sejam diluídos por toda a massa
segurada.
É de fácil percepção o fato de que o alto percentual de sinistros fraudulentos
no Brasil causa grandes abalos ao funcionamento da atividade securitária, já
que traz um desequilíbrio nas regras e princípios que regem este serviço, o
qual, sem sombra de dúvida, é um dos motores propulsores do
desenvolvimento nacional.
2.1 Modalidades de Fraude e seus agentes
As conseqüências e os métodos utilizados para fraudar as companhias que
atuam nesse segmento de mercado variam de acordo com o tipo de seguro
contratado, pois cada carteira tem suas peculiaridades e características
próprias.
Em relação às modalidades de fraude e aos agentes que cometem esse tipo
de delito, é interessante mencionar, para fins didáticos, a seguinte
classificação:
• Fraudes ocasionais praticadas por segurados em determinadas situações;
• Fraudes premeditadas praticadas por segurados isoladamente;
• Fraudes premeditadas praticadas por segurados em parceria com
funcionários da companhia seguradora ou prestadores de serviços;
• Fraudes exclusivamente praticadas por funcionários das companhias
seguradoras.
• Fraudes praticadas por quadrilhas especializadas em certas modalidades
de seguro.
A primeira hipótese caracteriza-se pela prática eventual do delito, realizada por
pessoas que não tem o hábito de fraudar o seguro e que, diante de
circunstâncias ocasionais e muitas vezes inesperadas, tentam de algum modo
obter indenizações indevidas.
Nesses casos, em regra, não há um planejamento cuidadoso por parte do
fraudador, até pelo fato de não possuir um know-how das técnicas necessárias
para encaminhar um pedido fraudulento à seguradora. Além disso, o fraudador
costuma atuar isoladamente ou com, no máximo, mais duas ou três pessoas,
as quais, por sua vez, também não tem a habitualidade de praticar este tipo de
crime.
Um exemplo que é constantemente presenciado por aqueles que atuam nesse
segmento de mercado ocorre no ramo de automóvel. É comum que segurados,
insatisfeitos com o preço pelo qual seu carro está avaliado no mercado, tentem
se desfazer do veículo, criando sinistros fictícios (roubos e furtos) para
posteriormente encaminhar um pedido de indenização à seguradora.
Ainda no ramo de automóveis, é usual que motoristas segurados forjem falsos
acidentes ou assumam a culpa por eventos nos quais não tiveram qualquer
participação. Tal conduta busca estender a cobertura para pessoas – muitas
vezes um amigo ou parente - que não tem um seguro contratado e sofreram
um acidente com seu veículo. Essa prática resulta, ainda, na cobertura de
danos resultantes de outros eventos anteriores à celebração do contrato de
seguro e que acabam sendo inadvertidamente indenizados pelas companhias
seguradoras.
Por fim, um último exemplo desta primeira hipótese pode ser vislumbrado nos
casos de seguro-saúde, quando um segurado empresta seu cartão a membros
da família ou a amigos para consultas e exames em clínicas que não tomam os
devidos cuidados para verificação da identidade do paciente, o que, inclusive,
é um tanto comum.
A segunda e a terceira classificação referem-se aos casos em que a fraude é
premeditada, ou seja, antes mesmo da celebração do contrato de seguro os
envolvidos no golpe já haviam pensado em uma forma de obter vantagens
financeiras indevidas em prejuízo da companhia seguradora.
Tanto as fraudes premeditadas praticadas isoladamente por segurados, como
aquelas praticadas em conluio com funcionários ou prestadores de serviços
das seguradoras, têm como característica primordial a má-fé presente desde a
fase pré-contratual. Como será abordado em capítulos ulteriores, a boa-fé é
elemento inarredável para que o contrato de seguro produza seus efeitos
jurídicos naturais, tendo sua ausência conseqüências graves para a relação
entre as partes.
Nessas situações é comum que o próprio instrumento contratual já esteja
contaminado com informações inexatas ou inverídicas acerca do seu objeto
principal. O segurado, possivelmente orientado por funcionários da seguradora
e antes mesmo de firmar o contrato, já pensa em todos os dados que deverão
ser apresentados, de modo a maximizar o valor da indenização a ser recebida
e de minimizar o valor do prêmio que será pago.
Em outros casos, apesar do teor do contrato exprimir de modo fiel as
circunstâncias em torno do objeto segurado, o sinistro pode não ter ocorrido ou
ter ocorrido de modo diverso àquele comunicado. Estamos falando aqui de
situações em que, aparentemente, o segurado agira de boa-fé antes da
celebração do acordo, mas, na realidade, antes mesmo do contrato começar a
produzir seus efeitos, a má-fé já podia estar presente, pois todos os passos
para o falso sinistro já tinha sido anteriormente planejados.
São diversos os exemplos em que a fraude é premeditada pelo segurado antes
da celebração do contrato, de modo isolado ou contando com a colaboração
de funcionários ou prestadores de serviços das companhias seguradoras:
- contratação de seguro de bens inexistentes e que, posteriormente, são
reclamados pelo valor total da indenização, em situações de roubo, furto,
incêndio etc.;
- realização de seguro de objetos falsos, tais como obras de arte e outras
relíquias, como se verdadeiro fossem, com posterior pedido de indenização
pelo valor contratado;
- Pedido de reembolso com apresentação de falsos recibos de contas
médicas, bem como despesas com medicamentos ou tratamentos que nunca
foram realizados;
- Falsificações de certidões de óbito, nascimento e casamento, com o
objetivo de passar informações inverídicas à seguradora, tanto no momento da
celebração do contrato como no processo de liquidação do sinistro;
- Contratação do seguro após a ocorrência de um evento que será
posteriormente informado como sinistro, com uma falsa data posterior à
celebração do contrato;
- Laudos técnicos elaborados por prestadores de serviço ou funcionários
da companhia seguradora, contendo informações inverídicas acerca do objeto
segurado, com o objetivo de aumentar o valor da indenização.
A quarta classificação reporta-se aos casos em que as fraudes são cometidas
exclusivamente por funcionários das seguradoras. Tal situação ocorre
geralmente no interior das empresas, quando um funcionário, aproveitando-se
de uma oportunidade pontual ou de uma falha no sistema interno da
companhia, obtém uma vantagem indevida em prejuízo da própria seguradora.
Podemos mencionar, exemplificativamente, os casos em que funcionários
apropriam-se dos valores devidos aos segurados a título de indenização ou do
prêmio pago por estes. Praticada desta forma, a fraude tem duras
conseqüências para a imagem das companhias seguradoras que, além de
suportar todo o prejuízo advindo do comportamento criminoso de seu
funcionário, sofrem sérios danos em sua imagem, causados pela demora no
pagamento do sinistro e por todo o constrangimento a que os contratantes
estão submetidos até que o delito seja devidamente esclarecido.
Deve-se fazer alusão, ainda, às situações em que há conluio de funcionários
da seguradora e de corretores, os quais, supostamente representando de
forma legítima os interesses do segurado, informam a ocorrência de sinistros
inexistentes e apropriam-se das indenizações pagas. Quando este é o modus
operandi utilizado, é comum que o segurado demore a ter conhecimento do
que efetivamente aconteceu, só tendo ciência do ocorrido em momento
posterior, possivelmente na ocasião em o contrato for rescindido ou quando for
solicitada a indenização por um sinistro que de fato existiu.
Por fim, em relação às fraudes praticadas por quadrilhas criminosas, é
necessário tecer aqui algumas considerações.
Em regra, as quadrilhas que realizam este tipo de golpe no mercado têm alto
grau de especialização, utilizando tecnologia de ponta, técnicas avançadas e
pessoal com razoável capacitação profissional. Tais requisitos são
indispensáveis para que não haja falhas durante o processo da fraude, que se
inicia antes mesmo da contratação da apólice, com todo o planejamento
necessário para que o golpe seja bem sucedido.
Diferente do que ocorre com as fraudes ocasionais, em que o segurado ou o
funcionário de uma companhia aproveita-se de uma situação excepcional para
praticar o golpe, a fraude praticada por uma quadrilha costuma ocorrer
reiteradas vezes, contra uma mesma ou entre variadas seguradoras, causando
um enorme prejuízo a todo o setor. Essa situação explica-se pelo fato de que,
a partir do momento em que a quadrilha já está devidamente estruturada,
dispondo do material e do pessoal necessário para a prática do crime, fica
muito mais fácil dar continuidade àquela prática.
Sem dúvida, um dos principais desafios enfrentados por aqueles que atuam no
mercado segurador e o combate a este tipo de fraude. Tal dificuldade acentua-
se diante do fato de que as quadrilhas estão sempre inovando na forma e nos
métodos utilizados para induzir as seguradoras em erro. Na realidade, quando
as fraudes deste porte são descobertas, é provável que outros grupos
criminosos já estejam desenvolvendo novos meio de obter indenizações
indevidas em prejuízo das seguradoras.
Porém, é certo que, do mesmo modo que as técnicas arrojadas e a sólida
estrutura de uma quadrilha fazem com que sejam expressivos os prejuízos
causados pela fraude à indústria do seguro, a grande quantidade de pessoas
envolvidas no processo torna mais fácil a detecção do crime, já que as
companhias seguradoras, durante o processo de regulação, e as autoridades
policiais, durante uma eventual investigação, terão mais chances de se
depararem com algum dos criminosos que participou do golpe.
Alguns exemplos de práticas fraudulentas contra o seguro cometidas por
quadrilhas especializadas:
- Falsificações em massa de Boletins de Ocorrência, Laudos Médicos,
Certidões de Óbito, Certidões de Nascimento, Certidões de Casamento e
outros diversos documentos necessários a instruir pleitos indenizatórios de
seguro obrigatório de DPVAT. Nestes casos, as quadrilhas costumam
organizar-se de modo a cometer o golpe reiteradas vezes em variados
Estados, forjando a ocorrência de acidentes que jamais aconteceram ou
apresentando solicitações em nome de pessoas inexistentes;
- Transporte e venda de carros em outros países, de modo a possibilitar que
segurados possam informar à seguradora que o veículo foi furtado ou roubado,
recebendo o valor da indenização prevista na apólice e parte da quantia
recebida pela venda do automóvel;
- Oficinas especializadas em superfaturar os orçamentos para conserto de
veículos segurados, incluindo danos que não estavam inicialmente cobertos
pela apólice ou veículos que não se envolveram no acidente comunicado no
aviso de sinistro;
- Utilização do mesmo veículo para contratação de diferentes apólices, fazendo
com que o segurado receba diversas indenizações por um mesmo sinistro, o
qual, na maioria das vezes, foi provocado por parte da quadrilha ou não
aconteceu.
2.2 Combate à Fraude no Seguro
A fim de proceder à repressão à fraude, as companhias seguradoras têm dado
uma atenção especial ao processo de regulação dos sinistros, com a
intensificação dos procedimentos internos para apurar a regularidade do pleito
e com a contratação de empresas especializadas em verificar todas as
circunstâncias envolvendo o evento. Tais atividades implicam um considerável
decréscimo no número de pagamentos de pleitos fraudulentos, porém, essa
atuação limita-se à esfera repressiva, com poucas conseqüências no âmbito
preventivo, não inibindo de modo eficaz a ocorrência de novos casos de
fraude.
Em relação a esta atividade repressiva, as seguradoras brasileiras vêm
investindo pesado no combate às diversas modalidades de fraude realizadas
no mercado. Algumas de suas ações consistem na criação de números de
disque-denúncia ou departamentos específicos para lidar com o público,
através de e-mails ou qualquer outra forma de comunicação, com o objetivo de
tomar conhecimento de casos onde haja suspeita da prática de eventuais
ilicitudes.
A contratação de empresas de auditoria para proceder à investigação de
sinistros, bem como de escritórios de advocacia que militam na esfera criminal,
é outra medida adotada pelas companhias seguradoras, que, desta forma,
montam equipes especializadas em lidar com quadrilhas de fraudadores e
colher as provas necessárias para a demonstração da ocorrência da fraude.
É relevante destacar que com o advento da Circular SUSEP n. 344, de 21 de
junho de 2007, as sociedades seguradoras e de capitalização, bem como as
entidades abertas de previdência complementar, deverão implementar, até 1º
de julho de 2008, estruturas internas de combate à fraude. Ou seja, a criação
de departamentos específicos para coibir à fraude deixa de ser apenas
recomendável, tornando-se uma obrigação imposta pela entidade responsável
pela regulação do mercado. Dentre as diversas medidas, previstas no art. 6º da
referida norma, que deverão ser adotadas pelas seguradoras e demais
empresas que atuam nesse segmento do mercado, destacam-se as seguintes:
-estabelecimento de uma política de prevenção, detecção e correção de
fraudes;
-elaboração de critérios e implementação de procedimentos de identificação de
riscos de fraude;
-elaboração e execução de programas de treinamento contra fraudes para os
funcionários e demais pessoas que mantenham um relacionamento comercial
com a empresa;
-elaboração e execução de procedimentos de auditoria interna, com o objetivo
de verificar o cumprimento dos procedimentos exigidos pela circular.
2.3 A prova
A regular materialização da prova de um delito pelas empresas de auditoria é
um assunto de grande relevância e ao mesmo tempo de enorme preocupação
do mercado segurador. A importância se dá na medida em que somente a
coleta lícita da prova é capaz de auxiliar as autoridades públicas a determinar a
autoria e a materialidade do crime, além de possibilitar uma futura condenação
do fraudador e a conseqüente inibição a prática de futuros golpes contra a
indústria do seguro.
A principal atividade das empresas de auditoria consiste na análise da
legitimidade da documentação que instrui os pleitos indenizatórios de seguro,
bem como verificar a congruência entre a realidade fática do evento e os
termos formalizados no aviso de sinistro encaminhado à companhia de
seguros.
São diversos os tipos de prova que podem ser coletadas durante a
investigação realizada por uma empresa de auditoria, tais como: testemunhal,
resultante de depoimentos prestados por pessoas estranhas ao processo,
sobre fatos de seu conhecimento referentes ao sinistro; documental, produzida
por meio de comparação entre os documentos acostados ao pleito
indenizatório e documentos legítimos obtidos em cartórios ou outras
repartições públicas; e material, quando obtida por meio químico, físico ou
biológico, como, por exemplo, exames e vistorias.
É fundamental que as provas obtidas em sindicância sejam suficientemente
robustas para caracterizar de modo cristalino a ocorrência da fraude. Se as
provas coletadas não apresentarem um mínimo de segurança ao julgador,
prevalecerá o princípio constitucional do in dubio pro reo, previsto no inciso
LVII da Carta Magna, com a conseqüente improcedência do pedido de
condenação formulado em face do fraudador e dos eventuais partícipes do
delito.
Além disso, a negativa de pagamento de um pleito indenizatório e o pedido às
autoridades públicas para que adotem as medidas criminais cabíveis são
providências que devem estar sempre apoiadas em sólidos alicerces, sob pena
de a companhia seguradora, seus funcionários e a própria empresa que
realizou a auditoria no sinistro, responderem penal e civilmente pela
comunicação de um crime que não ficou devidamente comprovado.
Diante do exposto, percebe-se a relevância do procedimento de auditoria,
momento em que deverão ser colhidas provas seguras e inequívocas da
prática da fraude, permitindo a constatação da verdade real de um sinistro e a
responsabilização dos envolvidos no ilícito.
No entanto, a busca pelas provas da prática de uma fraude deve respeitar
determinados parâmetros legais, previstos como garantias individuais em
nossa Constituição. Tal limitação pode ser percebida por intermédio da simples
interpretação literal da redação do artigo 5º, inciso LVI, da Carta Magna, que
dispõe: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícito”.
Logo, para que o segurado seja condenado pelo envolvimento em uma fraude,
não basta a demonstração de que o ilícito de fato ocorreu, é necessária que as
provas tenham sido obtidas na forma da lei, sem a violação das garantias
individuais previstas em nosso ordenamento jurídico.
A obtenção de provas ilegítimas e ilícitas em procedimentos de regulação e de
sindicância, realizadas pelas próprias companhias ou por empresas
terceirizadas, é um assunto que preocupa o mercado segurador, já que, além
de serem imprestáveis para uma eventual condenação dos fraudadores
envolvidos no golpe, as violações de direitos fundamentais sumamente
relevantes, tais como honra, intimidade, privacidade, imagem, reputação e,
eventualmente, a própria liberdade, pode causar um grande prejuízo à imagem
das empresas que atuam no setor.
Diante destas considerações, evidencia-se a necessidade de repelir todas as
arbitrariedades e abusos cometidos durante a realização das atividades de
auditoria, notadamente nos casos de confissões e termos de desistência
firmados sob coação, bem como interceptações telefônicas sem a devida
autorização judicial.
Além da proibição da utilização das provas ilícitas e ilegítimas, tanto a doutrina
quanto a jurisprudência também vêm repudiando a prova ilícita por derivação,
a qual, apesar de ser lícita em si mesma, deriva de provas obtidas de modo
contrário à lei. Podemos citar, a título exemplificativo, um depoimento prestado
legitimamente por uma testemunha localizada através de uma escuta
telefônica feita sem a observância das formalidades legais necessárias. Na
situação apresentada, a prova testemunhal é lícita, contudo, foi derivada de
uma prova ilícita, já que não houve autorização judicial para a interceptação
telefônica.
A prova ilícita por derivação tem origem na teoria norte-americana dos frutos
envenenados (fruit of the poisonous tree), segundo a qual o vício da planta se
transmite aos frutos. Mencionada teoria tem sido recepcionada pelos tribunais
brasileiros, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, que, embora relutante,
freqüentemente, vem posicionando-se pela inadmissibilidade das provas ilícitas
por derivação.
Recentemente, o princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas tem sido
abrandado pela teoria da proporcionalidade, inerente ao sistema normativo
brasileiro. De acordo com este entendimento, a proibição das provas obtidas
ilicitamente, como todo princípio constitucional, deve ser interpretado de forma
relativa, em harmonia com as outras regras esculpidas na Carta Constitucional
e com as peculiaridades do caso aonde a previsão legal será subsumida.
Diante desses termos, é certo que em alguns momentos haverá um choque
entre determinados princípios fundamentais, tais como a proibição de provas
ilícitas e a liberdade constitucionalmente assegurada. Nesses casos, em razão
do princípio do favor rei, aquele que for acusado injustamente da prática de um
crime, poderá se beneficiar das provas obtidas fora dos contornos definidos em
lei.
Por fim, é necessário ressaltar que a interceptação de ligações telefônicas
constitui crime, conforme se depreende do texto do art. 10 da Lei 9.296, que
dispõe o seguinte:
“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de
informática ou telemática, ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização
judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”
2.4 Investigação Policial
Após a coleta de provas realizada pelas empresas de sindicâncias, as
seguradoras, através de escritórios de advocacia criminal ou com seus próprios
corpos jurídicos, encaminham às autoridades públicas todos os documentos
necessários que comprovam a prática da fraude, objetivando a deflagração de
uma investigação policial e a subseqüente instauração de uma ação penal para
a punição dos criminosos.
A análise jurídica e técnica dos documentos apresentados pelas empresas de
auditoria é uma etapa fundamental para o processo de combate à fraude
contra o seguro, sendo necessária para verificar se o fato apresentado
realmente constitui um ilícito penal e se as provas foram colhidas de acordo
com a legislação vigente. Somente após este exame será possível o ingresso
da medida jurídica cabível para dar início a um procedimento criminal.
É grande a quantidade de notitia criminis (representações criminais noticiando
a prática de um delito) encaminhadas anualmente às autoridades públicas de
nosso país, contendo o relato e as provas dos mais diversos crimes praticados
contra o mercado segurador.
Diante da noticia da prática de um ou mais crimes contra o seguro, as
autoridades públicas começarão um longo período de investigações, repleto de
depoimentos e perícias documentais, com o objetivo de identificar todos os
elementos necessários para a configuração do delito. Tal empreitada
enfrentará diversos obstáculos, os quais, muitas vezes, impedem a deflagração
da ação penal respectiva e a eventual condenação dos fraudadores.
Uma das primeiras dificuldades que se apresenta com freqüência em
inquéritos policiais instaurados para averiguação dessa modalidade de infração
é o desconhecimento dos próprios agentes policiais acerca das peculiaridades
inerentes ao contrato do seguro.
É notório que inquéritos policiais são freqüentemente arquivados sob o
argumento de que o fato praticado pelo segurado não é um ilícito criminal, e
sim um simples comportamento equivocado cometido pelo agente ou um mero
descumprimento contratual. Tal conduta é resultado de uma tolerância social
com as fraudes menos graves praticadas usualmente contra o mercado
segurador, que, não obstante a sua baixa carga de lesividade, traz prejuízos a
todos os segurados, de acordo com a própria lógica mutualista atinente ao
contrato de seguro.
São inúmeros os exemplos de casos que poderão ter esse destino, tais como:
preenchimento da proposta de seguro com informações inverídicas acerca do
objeto do contrato, uso de carteiras de planos de saúde de terceiros para
realização de consultas médicas, inclusão no sinistro de danos oriundos de um
evento anterior etc.
Outro fator que muitas vezes faz com que os procedimentos policiais
instaurados simplesmente adormeçam nas prateleiras das delegacias, é a
natureza do crime de estelionato, principal delito ligado à fraude contra o
seguro.
Ora, como se sabe, a violência que assola nosso País é motivo de
preocupação constante em todas as esferas do governo e nas diversas
ramificações da sociedade. Assim, é certo que os crimes “de sangue”, aqueles
mais violentos e que causam maior comoção social, receberão um tratamento
diferenciado e prioritário pelas já assoberbadas autoridades públicas, fazendo
com que a apuração de delitos ligados ao contrato de seguro fique em
segundo plano. Alguns, equivocadamente, olvidando-se da característica
mutualista anteriormente citada, justificam tal fato com a afirmação de que a
fraude trará prejuízos somente a industria de seguro, sendo necessário, assim,
que as mencionadas infrações cedam espaço para a investigação daquelas
que afetam toda a coletividade.
Por fim, um outro fato que impede uma apuração detalhada e minuciosa das
fraudes praticadas contra o seguro e a falta de investimento em inteligência
policial e em preparo do pessoal. Em regra, para que esta modalidade de delito
seja adequadamente esclarecida são necessários um aparato técnico
específico e uma equipe multidisciplinar, composta por peritos de diversas
especialidades.
Para exemplificar a dificuldade de se demonstrar a fraude em algumas
hipóteses, imagine-se um pleito de seguro de vida em que o segurado, apesar
de aparentemente ter falecido causas naturais, veio a óbito em virtude de
envenenamento causado pelo próprio beneficiário. Sem dúvida, serão
necessários minuciosos exames de necropsia para que o golpe seja
descoberto.
Cite-se, ainda, o exemplo de uma colisão provocada propositalmente por um
segurado, com o objetivo de obter indevidamente a indenização do seguro.
Neste caso, somente com a perícia de técnicos especializados no local do
sinistro, e diante de uma análise aprofundada nas condições em que o evento
ocorreu, será possível a identificação da fraude.
Ressalte-se que a criação de delegacias especializadas é uma medida que
certamente poderá modificar tal quadro, pois o treinamento especializado e o
constante contato com as mais diversas modalidades de fraude contra o
seguro propiciarão a expertize e o desenvolvimento profissional necessários
para que os agentes públicos possam combater, de modo vigoroso, esta
modalidade de crime.
Outra providência que poderá trazer uma inestimável contribuição às
autoridades policiais, na difícil tarefa de combate à fraude contra o seguro, é o
convênio com empresas da iniciativa privada, já que estas têm, em regra, uma
condição financeira muito mais satisfatória que o sempre endividado Estado
brasileiro, o que propicia um investimento constante em pessoal e tecnologia,
além de possuírem o know-how necessário para identificar e quantificar os
golpes praticados contra a indústria do seguro. A utilização dos bancos de
dados de seguradoras, federações, sindicatos e prestadores de serviço que
atuam neste segmento de mercado são uma importante ferramenta para esta
empreitada, possibilitando a identificação de quadrilhas e o planejamento de
ações mais eficazes por parte dos departamentos de polícia. A parceria entre o
setor público e o privado é um passo decisivo para o êxito na guerra contra a
fraude.
2.5 Crimes contra o seguro
Os delitos mais comuns ligados à fraude contra o seguro são os seguintes:
- estelionato (artigo 171 e 171, §2, inciso V do CP);
- formação de quadrilha ou bando (artigo 288 do CP);
- falsificação de documento público (artigo 297 do CP);
- falsificação de documento particular (artigo 298 do CP);
- falsidade ideológica (artigo 299 do CP);
- falso reconhecimento de firma ou letra (artigo 300 do CP);
- uso de documento falso (artigo 304 do CP);
- comunicação falsa de crime ou contravenção (artigo 340 do CP);
- falso testemunho ou falsa perícia (artigo 342 do CP).
Com exceção do crime tipificado no artigo 171 do Código Penal, todos os
outros delitos são classificados como crime meio, pois, na realidade, fazem
apenas parte do caminho percorrido pelo fraudador para obter seu objetivo
final: o recebimento da indenização.
Tal entendimento vai de acordo com a teoria da consunção, abraçada pelo
Direito Penal como um dos princípios para regular um conflito aparente de
normas, excluindo-se, através de uma análise lógica e uma valoração jurídica
do fato, os crimes que porventura sejam somente parte do caminho natural
para que seja alcançado o resultado pretendido pelo agente.
O crime de estelionato, da forma como se encontra no caput do art. 171,
abrange uma grande gama de possibilidades:
“Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio,
induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer
outro meio fraudulento”
Tal redação permite que o estelionato seja praticado nas mais variadas
hipóteses, bastado que haja a vantagem ilícita, o prejuízo alheio e, pelo menos,
a indução de alguém em erro por algum meio fraudulento. Sem dúvida, são
inúmeras as situações em que tais elementos serão encontrados, incluindo-se,
certamente, a esmagadora maioria dos casos de fraude contra o seguro.
Contudo, não obstante a amplitude do texto legal do artigo 171, o legislador
brasileiro visou tutelar, de modo específico, as operações de seguro, conforme
se percebe pela leitura do parágrafo 2º, inciso V, do referido artigo, que dispõe:
“ Fraude para recebimento de indenização ou valor do seguro
V – Destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio
corpo ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença com o
intuito de haver indenização ou valor de seguro.”
O dispositivo supra parece, entretanto, não ter cumprido de modo completo
seu mister, já que muitos casos de fraude contra o seguro não se adequarão à
hipótese normativa tipificada no inciso V, do parágrafo 2º, do art. 171 do
Código Penal.
Como exemplo, podemos citar as freqüentes situações em que o segurado
propositadamente oculta informações acerca do objeto do contrato, de modo a
obter no futuro uma indenização sobre um bem que talvez nunca tenha existido
ou cujas características eram diversas daquelas informadas na proposta.
Recordemos, ainda, os casos nos quais carteiras de plano de seguro saúde
são emprestadas a terceiros para que estes as utilizem como se fossem os
próprios segurados.
É certo que, apesar de tais situações não se adequarem aos moldes da
previsão legal do art. 171, §2º, V, do Código Penal, ainda serão consideradas
ilícitos penais, não mais pela redação deste artigo, e sim pelo texto do caput do
art. 171 do Código Penal, que, pela sua amplitude e generalidade, alcança
praticamente todas as outras modalidades de fraude contra o seguro.
------------------------------------------------------
Na prática, tal discussão somente terá relevância para se averiguar em que
momento o crime foi consumado – conforme se demonstrará adiante -, pois,
em ambos os tipos legais, a punição prevista para os referidos crimes é a
mesma: pena de um a cinco anos de reclusão e multa.
Quando se trata de fraudes contra o seguro que apresentem todos os
elementos do art. 171, §2º, V, do Código Penal, é certo que, de acordo com a
doutrina predominante, não há necessidade do recebimento da indenização
para que se considere consumado o delito. Tal afirmativa decorre do fato de
que o mencionado tipo legal é considerado um crime formal, também
denominado de consumação antecipada, não havendo obrigatoriedade da
obtenção do proveito ilícito para que a infração penal complete seu ciclo de
formação.
Nesta esteira de pensamento, é válido ressaltar as lições do mestre Julio
Fabbrini Mirabete, que, ao tratar da previsão normativa do art. 171, §2º,V do
Código Penal, afirma que:
“Consuma-se o crime com a prática da conduta típica (destruir ou ocultar a
coisa ou lesar o próprio corpo). Ao contrário dos demais tipos de estelionato,
trata-se de crime formal, não se exigindo para a consumação a obtenção da
vantagem ilícita.” (Mirabete, Julio Fabrini, Código Penal interpretado, 5ª ed.,
São Paulo: Atlas 2005)
Nossos tribunais já entenderam neste mesmo sentido, demonstrando de forma
concisa e clara a posição aqui defendida:
“A fraude para recebimento de seguro é crime formal, que não requer a
ocorrência de efetivo dano em prejuízo da vítima para sua consumação, o que
ocorre pela simples conduta de ocultar” (TAPR, Rel Oswaldo Espíndola, RT,
572:383)
O momento da consumação do delito é fator de extrema relevância, já que a
pena aplicada ao agente criminoso poderá sofrer uma diminuição de um a dois
terços quando este responder somente pela tentativa. No caso de delitos que
se subsumam na descrição típica do art. 171, §2º, V, do Código Penal, mesmo
que a indenização não seja recebida pelo criminoso, não haverá pena de
tentativa, pois a consumação do crime ocorrerá desde o momento em que o
agente tenha iniciado a execução do golpe, com a destruição proposital do
objeto segurado ou o agravamento intencional de lesões ou doenças.
Desta forma, o pagamento pela seguradora dos valores pleiteados pelo
segurado – ou seja, o recebimento da vantagem ilícita - seria somente o
exaurimento da infração penal, sem maiores conseqüências para a análise da
responsabilidade criminal do agente.
Situação diversa ocorre quando o golpe realizado contra o seguro não
preencher todos os elementos do tipo objetivo do art. 171, §2º,V, sendo
necessário adequá-lo à fórmula geral do art. 171 do Diploma Penal. Nestes
casos, para que o delito seja considerado consumado, é indispensável que a
vantagem ilícita almejada pelo agente criminoso tenha sido obtida, de outro
modo, a conduta ficará no plano da tentativa, com a conseqüente redução de
um a dois terços da pena prevista em lei.
A conduta prevista no caput do art. 171 do Código Penal é considerada um
crime material, admitindo-se seu fracionamento e a possível interrupção do iter
criminis (caminho percorrido pelo agente para a obtenção do resultado), o que
impediria a consumação do delito.
Imaginemos uma situação em que o segurado afirme ter provocado um
acidente automobilístico, no qual efetivamente não teve qualquer participação,
somente para que seu seguro cubra os prejuízos do veículo danificado no
evento, de propriedade de um amigo. Ao encaminhar o aviso de sinistro à
empresa seguradora, o segurado relata que ao cruzar um sinal fechado de
madrugada não viu um outro automóvel que vinha em sentido perpendicular,
fazendo com que este fosse obrigado a realizar uma manobra brusca e
acabasse por colidir com um poste.
Durante o processo de sindicância da empresa seguradora, constatou-se,
através de entrevistas com pessoas que estavam no local do acidente e com
parentes dos supostos envolvidos no evento, que o acidente ocorreu em dia
diverso daquele informado no aviso de sinistro, e que o segurado estava fora
da cidade naquela ocasião. Diante de tais evidências, a seguradora opta por
não realizar o pagamento da indenização pleiteada.
Percebe-se que na situação hipotética apresentada, o terceiro e o segurado
não lograram êxito na empreitada delituosa, sendo interrompidos em meio ao
iter criminis para obter a vantagem ilícita em prejuízo da seguradora, devendo,
assim, responder somente pela tentativa do crime previsto no art. 171, caput, já
que a conduta descrita não se enquadra no tipo penal do art. 171, §2º, V do
Código Penal.
Agora, suponha-se que um segurado destrua ou esconda seu veículo,
alegando posteriormente à seguradora que o automóvel for roubado por
meliantes. Neste caso, é certo que a conduta descrita amolda-se com
perfeição aos contornos do art. 171, §2º, V do Código Penal e, deste modo,
mesmo que a seguradora descubra a realidade fática envolvendo a situação e
conseqüentemente negue pagamento ao pleito, o segurado irá responder pelo
delito em sua forma consumada, e não tentada, já que a obtenção do resultado
desejado pelo agente é dispensável para que se complete o ciclo de formação
do mencionado tipo normativo.
As considerações aqui expostas representam o entendimento majoritário na
doutrina e em grande parte da jurisprudência, contudo, há algumas decisões
judiciais que sustentam que o crime previsto no art. 171, §2º, V, do Código
Penal é material, o que favoreceria – e, de certo modo, até incentivaria - a ação
de alguns fraudadores que praticassem a conduta delitiva prevista no referido
tipo legal. Tal entendimento decorre do fato de que os agentes criminosos,
nesses casos, só iriam sofrer uma punição mais severa se recebessem a
indenização. Por outro lado, se o golpe fosse identificado a tempo pela
seguradora, o fraudador responderia somente pela tentativa, com uma pena
substancialmente menor e com diversos benefícios legais.
2.6 Ação Penal
Com o término das investigações em sede policial, os autos do inquérito serão
encaminhados ao Ministério Público, que poderá solicitar ao juiz o
arquivamento do procedimento criminal ou oferecer a denúncia em face dos
envolvidos no golpe.
Saliente-se que é possível que o promotor de justiça tome conhecimento dos
fatos criminosos diretamente – sem que ocorra uma fase policial -, como, por
exemplo, no caso de petições devidamente documentadas encaminhadas ao
Ministério Público ou através de ofícios de outros órgãos e entidades públicas.
Nestes casos, o promotor de justiça poderá, desde já, oferecer a denúncia,
dispensando o inquérito, ou, não estando convencido ainda da autoria e
materialidade do crime, determinar que os autos sejam encaminhados à
autoridade policial, requerendo a realização das investigações necessárias ao
esclarecimento dos fatos.
É comum que os advogados das empresas seguradoras, diante de
documentos que comprovem de modo inequívoco a prática da fraude
(relatórios de empresas sindicantes, laudos de vistoria ou periciais etc),
encaminhem diretamente suas petições ao Ministério Público, buscando
abreviar o caminho até a responsabilização final do envolvido, com a dispensa
das investigações policiais, as quais, muitas vezes, podem demorar anos.
Contudo, para que seja possível ao promotor de justiça o oferecimento
imediato da denúncia, é necessário que a fraude esteja cristalinamente
demonstrada nos documentos acostados à petição, emergindo daí a
necessidade de clareza e transparência no relatório de sindicância e nas
perícias eventualmente realizadas, conforme demonstrado em capítulos
anteriores do presente trabalho monográfico.
O trâmite processual da ação penal, deflagrada em face de agentes envolvidos
em golpes contra seguradoras, não se distancia muito do procedimento
observado na maioria dos outros delitos previstos em nosso ordenamento
jurídico, até porque grande parte dos crimes praticados contra a indústria do
seguro é considerada de maior potencial ofensivo, o que significa que os
referidos delitos não irão obedecer às regras da Lei 9.099/95, que instituiu os
Juizados Especiais Criminais. Assim, não será possível a proposta de
transação penal – conhecida popularmente pelo oferecimento de cestas
básicas - e nem a realização de audiência de conciliação, as quais poderiam,
antes mesmo do oferecimento da denúncia, extinguir a punibilidade do agente.
Todavia, a Lei 9.099/95 criou o benefício legal da suspensão condicional do
processo (sursis processual), que poderá ser aplicada para os casos em que a
pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano, independentemente do
crime ser de maior ou menor potencial ofensivo. Nessas situações, a ação
penal ficará suspensa pelo prazo de dois a quatro anos, mediante o
cumprimento de determinadas condições estabelecidas pelo juiz
(comparecimento mensal ao cartório, proibição de freqüentar determinados
lugares etc). Após esse lapso temporal, a punibilidade do agente será
declarada extinta, sem demais conseqüências.
Como a pena mínima cominada para a pratica do tipo legal previsto no caput
do art. 171, bem como para o delito tipificado no § 2º, inciso V, do mesmo
artigo, é de um ano, resta evidente que uma significativa parcela dos
envolvidos em casos de fraude contra o seguro poderá ser beneficiada pelo
mencionado instituto legal, bastando que o acusado preencha as exigências
subjetivas do artigo 89 da Lei 9.099/95.
A concessão desse benefício é um obstáculo no combate aos casos de fraude
contra o seguro, pois basta que o acusado preencha todos os requisitos
previstos em lei, para que no prazo dois a quatro anos, conforme determinação
judicial, seja declarada a extinção de sua punibilidade, sem que tenha ocorrido
qualquer apreciação sobre o mérito da causa, ou seja, o acusado manterá a
sua condição de réu primário.
Tal fato se torna ainda mais preocupante se levarmos em consideração a
precariedade da interligação dos diversos tribunais de justiça da Federação.
Logo, é possível que diferentes processos, instaurados em vários estados do
País, em face de um mesmo acusado, fraudador contumaz, sejam
simultaneamente suspensos, com a concessão do sursis processual ou, ainda,
que este benefício seja concedido mesmo existindo outro(s) processo(s) em
andamento em localidade(s) diversa(s).
Frise-se que uma das características do fraudador de seguro é a sua atuação
circulante, justamente para evitar a repressão das autoridades públicas
regionais e o acúmulo de processos judiciais e inquéritos deflagrados para
apurar os delitos de sua autoria. Assim, é evidente que a falta de comunicação
entre os diversos órgãos de justiça é um elemento complicador para o combate
à fraude contra o seguro, já que possibilita que um mesmo golpista atue em
diferentes frentes, sem que sua eventual responsabilização pela prática de um
delito acarrete conseqüências em procedimentos criminais instaurados em
outras localidades.
É relevante destacar que o sursis processual é somente um dos possíveis
benefícios previstos em nossa legislação. Além desta permissão legal, vale
recordar a existência de outros institutos jurídicos que podem favorecer
aqueles que estejam ou estiveram diretamente envolvidos com a prática de
crimes, tais como: suspensão condicional da pena, reabilitação, conversão de
penas privativas de liberdade por outras mais amenas etc. Contudo, para não
fugir ao escopo do presente trabalho e devido à profundidade necessária para
a abordagem de tais temas, vamos nos limitar aos breves comentários feitos à
suspensão condicional do processo.
Não sendo possível a concessão do benefício do sursis processual, a ação
penal terá prosseguimento, porém, até que o processo chegue ao seu término,
com uma eventual condenação do fraudador e seus comparsas, um longo
caminho deverá ser percorrido.
A fase de instrução, momento em que as provas deverão ser produzidas, é,
muitas vezes, demasiadamente lenta, sendo necessária a oitiva de
testemunhas – freqüentemente através de cartas precatórias expedidas para
outros estados -, a realização de perícias e a solicitação de documentos a
órgãos públicos e entidades privadas. É comum que um processo fique parado
durante meses, ou até mesmo anos, aguardando a realização de todas as
diligências determinadas pelo juiz, principalmente quando o réu ou algumas
das testemunhas morarem em estado distante daquele onde a ação penal está
tramitando.
A demora da fase probatória é ainda mais grave diante da necessidade de se
refazer diversas das provas realizadas durante o inquérito policial,
principalmente as oitivas das testemunhas e alguns exames periciais, que só
terão validade quando submetidos ao contraditório de um processo judicial,
exigência constitucional inarredável de nosso sistema jurídico.
É mister registrar que esse longo período decorrido entre a realização do delito
e a oitiva de testemunhas que, por exemplo, presenciaram a prática da fraude,
conspira contra o êxito da pretensão punitiva estatal. Ora, é notório que as
memórias tendem a lentamente se fragmentar e apagar com o passar do
tempo, fazendo com que somente as informações reconhecidas pelo cérebro
como mais relevantes sejam devidamente armazenadas. Como a fraude contra
o seguro é um delito de caráter predominantemente técnico, em que a
presença de mínimos detalhes pode ajudar a esclarecer o modus operandi
utilizado pelo criminoso, é certo que a oitiva de testemunhas, dois ou três anos
após a realização do golpe, pode acarretar perdas substanciais para o lastro
probatório mínimo necessário para que o réu seja condenado.
Imagine-se, por exemplo, uma fraude cometida em diversos estados do País
por uma mesma quadrilha, que, utilizando nomes e veículos de terceiros,
pleiteava indenizações indevidas ao seguro obrigatório de DPVAT. Além das
provas documentais, é de extrema relevância o depoimento das testemunhas
que presenciaram as diversas etapas da fraude, tais como corretores de
seguro ou terceiros que tiveram seus nomes e veículos utilizados. A demora
para que estas pessoas sejam ouvidas – lembrando-se que possivelmente a
oitiva de muitas delas será por carta precatória - pode trazer grandes
prejuízos, tanto a investigação criminal como para uma eventual condenação
dos fraudadores, já que, além da possibilidade destas testemunhas não serem
localizadas, inúmeros detalhes acerca do modo de operação da quadrilha
(nome dos envolvidos, datas etc) poderão se perder no tempo.
Insta salientar, ainda, que, tratando-se de relatórios de sindicância ou laudos
periciais, é usual que alguns magistrados contentem-se com a simples
ratificação em juízo, por parte do auditor ou do perito responsável, do conteúdo
inserido nos referidos documentos, considerando verossímil as informações ali
apresentadas.
Mesmo diante de um quadro probatório satisfatório para a demonstração da
ocorrência da fraude, e de uma eventual decisão condenatória proferida pelo
juiz, ainda haverá uma complexa trajetória pela frente, com a possibilidade da
interposição de variados recursos para as instâncias superiores.
Os caminhos permitidos pelo sistema recursal pátrio possibilitam que o réu
prolongue o processo por vários anos, com apelos meramente protelatórios,
adiando uma inevitável condenação e sua conseqüente responsabilização
criminal. A legislação anacrônica, somada à falta de racionalização e
simplificação das fases do procedimento criminal, diminui a possibilidade do
fraudador sofrer uma punição severa por parte do Estado, que, com as mãos
amputadas, presencia a pretensão punitiva esvaecer-se nas incontáveis laudas
do processo.
Por fim, merece destaque o fato de que a costumeira morosidade do aparato
judiciário estatal é agravada pelo acúmulo de processos em trâmite nas varas
criminais do País. É comum que após o recebimento da denúncia oferecida em
face de um fraudador – ou qualquer acusado de outra prática delituosa –, a
fase processual seguinte, o interrogatório do réu, seja marcada somente para o
ano seguinte, já que não há espaço disponível na “agenda” em data anterior.
Outros atos processuais também padecem do mesmo mal, tal como a
audiência para oitiva das testemunhas de defesa e de acusação, as quais são
ouvidas anos após a realização do crime.
A falta de estrutura e de pessoal para lidar com a enxurrada de procedimentos
criminais, que deságuam anualmente nos tribunais de justiça, causa
transtornos em toda a marcha processual, que muitas vezes é interrompida por
movimentos grevistas ou falta de funcionários para realizar diligências
imprescindíveis, tais como citações e intimações.
Diante do quadro exposto, percebe-se que são muitas as mudanças
necessárias para que o Estado, através do Poder Judiciário e do Ministério
Público, possa dar uma resposta eficiente e severa àqueles que insistem em
praticar golpes contra a indústria do seguro. As inovações passam pela
necessária revisão da arcaica legislação de direito material e processual penal,
de modo a eliminar a excessiva quantidade de benesses previstas aos
criminosos, além de criar um coerente sistema recursal, eliminando a presença
de recursos meramente protelatórios, que fazem com que um processo se
arraste por anos até seu desfecho final. Outrossim, é fundamental o
investimento em pessoal e em infra-estrutura, possibilitando que os atos
processuais sejam realizados dentro de um prazo razoável, conforme,
inclusive, preceitua o recente inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição
Federal.
2.7 Advocacia Criminal para o Mercado Segurador
A maior parte dos escritórios de advocacia que atuam na seara criminal limita-
se à defesa de acusados, em infrações que vão desde os crimes de
repercussão nacional, envolvendo grandes empresários e conhecidas
personalidades políticas, até os pequenos delitos, de competência dos juizados
especiais criminais, instituídos pela Lei 9.099.
Em determinadas situações, porém, alguns destes escritórios também prestam
serviço para as vítimas, ocupando a posição de assistente de acusação ao
lado do Ministério Público. Tais exemplos são raros, limitando-se a casos
pontuais, em que o profissional do direito é contratado somente para atuar em
um processo específico, com o objetivo de tutelar os interesses da vítima, a
qual, em regra, é uma pessoa física.
São poucos os advogados que exercem a atividade exclusiva de defesa das
empresas que são vítimas de grandes golpes de fraude. Tal mister exige um
conhecimento específico da matéria, além de um corpo altamente qualificado
para analisar de forma minuciosa as diversas modalidades de fraudes e as
quadrilhas envolvidas com o golpe. Este tipo de trabalho não se restringe às
questões predominantemente jurídicas, requerendo o know-how na forma e no
modo de identificar os crimes.
Quando um escritório de advocacia é contratado para atuar em juízo (ou
mesmo em sede policial) defendendo o interesse de companhias seguradoras,
é certo que seu trabalho não deverá se limitar a desenvolver teses jurídicas e
pesquisar jurisprudências favoráveis à condenação dos envolvidos em casos
análogos. A identificação de quadrilhas e a análise das provas também têm
significativa relevância para o êxito da acusação, possibilitando a condenação
dos fraudadores.
Muitas vezes as fraudes são cometidas de forma reiterada por um mesmo
grupo de pessoas, que migram de uma localidade para outra do País,
cometendo os mais variados tipos de golpes contra a indústria do seguro.
Quando os advogados contratados atuam com suporte em forte sistema de
tecnologia de informações e possuem um rico banco de dados, tudo aliado a
um bem estruturado serviço de inteligência, é possível a identificação das
quadrilhas e das pessoas que as compõem, para se estabelecer a correlação
de fraudes praticadas em diferentes Estados, fornecendo-se maiores subsídios
para uma eventual condenação do criminoso.
Além disso, quando o combate à fraude contra o seguro é realizado em nível
nacional pelos escritórios de advocacia, de forma inteligente e integrada com
os órgãos públicos locais, o resultado final tende a ser mais expressivo, já que
a prática reiterada de golpes ficará evidente, com a maior exposição dos
fraudadores e sua conseqüente responsabilização criminal.
Na realidade, os advogados terão um importante papel nesse momento, pois
caberá a eles a missão de comunicar as autoridades de um determinado
estado que uma mesma quadrilha, envolvida em fraudes naquela localidade,
também está atuando em outras unidades da federação, bem como informar
acerca do modus operandi do grupo criminoso. Esse trabalho de inteligência é
fundamental para que ocorra uma comunicação entre os órgãos policiais e o
Ministério Público de diferentes estados, propiciando um planejamento
eficiente de ações conjuntas, além de possibilitar o compartilhamento de
provas para demonstrar de modo inequívoco a responsabilização dos
criminosos.
Contudo, mesmo diante da relevância das atividades acima descritas, é na
análise e na coleta da prova para demonstrar a empreitada criminosa que o
corpo jurídico deverá desenvolver a sua mais notável tarefa. Ora, como já
demonstrado anteriormente neste trabalho monográfico, a procura pelas
provas de um crime é um momento extremamente delicado, em que é
necessária a observância de diversos dispositivos legais que regem as
garantias e direitos individuais. Assim, é recomendável que antes que grupos
de auditores e peritos, devidamente selecionados pela seguradora, verifiquem
a realidade de um sinistro, tais profissionais sejam orientados por advogados
especializados, evitando, destarte, futuras alegações de nulidade no processo,
em virtude da forma como as provas foram obtidas.
Após a coleta das provas, é necessária uma análise pormenorizada em todos
os documentos obtidos, com o desiderato de constatar se tal conjunto
probatório é ou não suficiente para ingressar com a medida criminal cabível.
Os escritórios de advocacia contratados – ou o corpo jurídico interno da
seguradora – devem ter extrema cautela nesse momento, já que a
apresentação de uma peça criminal, sem qualquer subsídio para demonstrar a
existência da fraude, possibilita que o criminoso alegue que ocorreu a falsa
comunicação de um crime, e que a seguradora fez uso de tal expediente
somente para evitar o pagamento da indenização. Se a autoridade pública
assim entender, é certo que tanto a companhia seguradora como seus
dirigentes poderão sofrer algum tipo de responsabilização, tanto na esfera
cível, como na seara criminal, respectivamente.
Após o ingresso da medida criminal pertinente, as seguradoras, representadas
por seus advogados, deverão dar todo o auxílio às diligências realizadas pelas
autoridades policiais durante o inquérito, fornecendo documentos e
informações relevantes para demonstrar com clareza a ocorrência do golpe e a
identificação de todos os membros de uma eventual quadrilha criminosa.
Na fase judicial, é possível que os advogados das companhias seguradoras se
habilitem como assistente do Ministério Público, consoante a regra do artigo
268 e seguintes do Código de Processo Penal. Nesses termos, a seguradora
auxiliará a assoberbada Promotoria de Justiça durante a instrução criminal,
propondo meios de prova, requerendo perguntas e diligências que busquem a
verdade real dos fatos, além de proceder a uma minuciosa análise dos
diversos documentos acostados aos autos, de modo a identificar todos os
elementos caracterizadores do golpe.
A atuação dos advogados criminalistas que prestam serviços às companhias
seguradoras não se limita ao ingresso de medidas criminais em face de
fraudadores, ou mesmo à análise das provas que demonstram a realização do
crime. O papel do profissional do direito também tem um notável destaque
quando defende os prepostos das empresas em procedimentos criminais
provocados por segurados, o que pode ocorrer nas mais diversificadas
situações.
Como exemplo, imagine-se uma hipótese em que o processo de sinistro
apresente indícios veementes de irregularidades, tendo sido suspenso o
pagamento da indenização até ulterior deliberação. Visando desvirtuar o foco
da apuração sobre a eventual fraude contra o seguro, muitos segurados e
terceiros intervenientes, que estão sendo “investigados”, acabam por registrar
ocorrências em delegacias especializadas em crimes contra o consumidor,
com a alegação de serem vítimas do crime tipificado no artigo 72 do Código de
Defesa do Consumidor, acusando membros de seguradoras de terem omitido
as razões da suspensão da liquidação de seus processos de sinistros.
Nessa situação, como em muitas outras análogas em que funcionários das
companhias seguradoras acabam indo parar no banco dos réus, a atuação do
advogado, além de ser indispensável para a análise dos autos, com o objetivo
de identificar eventuais nulidades e tecer considerações sobre demais
aspectos processuais do feito, deverá se focar na demonstração da ausência
de dolo – ou, quando for o caso, de culpa -, elemento imprescindível para a
configuração tipológica do crime. Tal alegação tem prosperado em sede de
juizado especial, órgão competente para a apreciação da grande maioria de
crimes envolvendo prepostos de seguradoras, possibilitando que o Ministério
Público requeira o arquivamento dos autos antes do oferecimento da denúncia.
CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO
As idéias expostas no presente trabalho monográfico são apenas uma pequena
contribuição ao tema. Não se tem a pretensão de tê-lo esgotado. Mas concluímos a
abordagem com um resumo de tudo que foi dito.
Ao se deparar com pleitos indenizatórios de sinistros fraudulentos, a seguradora
deve tomar algumas medidas e precauções, com o objetivo de coibir aquele tipo de
prática e preservar a imagem da empresa perante a sociedade e o próprio Poder
Público.
A produção da prova da fraude é um momento extremamente delicado, em que
todos os cuidados devem ser tomados. A prática do crime deve ficar claramente
demonstrada, de modo a abreviar uma eventual fase de investigação policial, além
de fornecer todos os elementos imprescindíveis para o oferecimento da denúncia
por parte do Ministério Público. É certo, ainda, que a coleta lícita de provas, regra
que deve necessariamente ser observada pelas empresas de sindicância que
prestam serviços para o mercado, além de afastar qualquer responsabilidade cível
e criminal da seguradora e de seus dirigentes, impede a alegação de eventuais
nulidades no processo criminal.
O combate à fraude contra o seguro não se limita à materialização das condutas
delitivas e a apresentação dos documentos às autoridades policiais ou ao Ministério
Público, mas passa ainda por campanhas de conscientização da sociedade,
esclarecendo todos os males causados por este crime, notadamente o acréscimo
do valor dos prêmios cobrados dos segurados. A distribuição de manuais
explicativos, bem como a veiculação de informes publicitários, são etapas
fundamentais no processo para que a população passe a ver com outros olhos os
constantes golpes praticados contra o seguro, e passe a apoiar as medidas das
seguradoras para combater
Outra medida eficaz, é a manutenção de departamentos específicos nas
companhias seguradoras para analisar sinistros suspeitos, com pessoal que
detenha o know-how necessário para a identificação de fraudes. Outrossim, a
operação de bancos de dados significativo papel nesta empreitada, já que fornecerá
relevantes informações para detectar quadrilhas especializadas em pleitear sinistros
fraudulentos.
Concluímos afirmando: combater a fraude é perfeitamente possível, o mesmo se
podendo dizer em relação à diminuição sensível dos prejuízos que a fraude causa.
Mas para isso é preciso que as companhias seguradoras se decidam, não a
executar escaramuças contra os fraudadores, mas decretar e manter contra eles
uma verdadeira guerra.
A experiência já posta em prática demonstra que cada real investido na repressão à
fraude resulta em benefícios palpáveis sete a dez vezes maiores. São incalculáveis
os benefícios não palpáveis da inibição e da educação resultantes de uma política
constante de conscientização contra a fraude.
A execução de um ataque sistemático contra a fraude exige vontade política e
investimentos financeiros em tecnologia, infra estrutura e material humano
profundamente especializados, sem o que tudo não passará de discurso.
São Paulo, setembro de 2008.
ANEXO I – INDICADORES DA FRAUDE CONTRA O SEGURO
Todos os ramos:
Suspeita de fraude 7,6%
Fraude detectada 1,4%
Fraude comprovada 1,2%
Automóvel:
Suspeita de fraude 9,7%
Fraude detectada 1,2%
Fraude comprovada 0,9%
DPVAT:
Suspeita de fraude 2,6%
Fraude detectada 0,6%
Fraude comprovada 0,6%
Patrimonial:
Suspeita de fraude 2,2%
Fraude detectada 0,3%
Fraude comprovada 0,2%
Transportes:
Suspeita de fraude 14,7%
Fraude detectada 2,9%
Fraude comprovada 2,8%
Vida:
Suspeita de fraude 8,1%
Fraude detectada 2,9%
Fraude comprovada 2,8%
Demais ramos:
Suspeita de fraude 0,8%
Fraude detectada 0,3%
Fraude comprovada 0,3%
Cascos:
Suspeita de fraude 0,1%
Fraude detectada 0%
Fraude comprovada 0%
Habitacional:
Suspeita de fraude 4,4%
Fraude detectada 2,7%
Fraude comprovada 2,7%
Responsabilidade:
Suspeita de fraude 2,2%
Fraude detectada 0%
Fraude comprovada 0%
Rural:
Suspeita de fraude 6,8%
Fraude detectada 0%
Fraude comprovada 0%
BIBLIOGRAFIA
ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999;
AZEVEDO, S. Falso sinistro mobiliza seguradoras de veículos. Gazeta
Mercantil, São Paulo, julho de 2001;
BITTENCOURT, Marcello Teixeira. O contrato de seguros e o Código de
Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Idéia Jurídica, 2000;
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Ed.
Saraiva, 2002;
CALDEIRA, Liliana. O contrato de seguro privado e a proteção do consumidor.
Rio de Janeiro, Caderno de Seguros, teses, v.2, n.3: FUNENSEG, 1997;
FENASEG, Atividade seguradora no Brasil, 4 ed. Rio de Janeiro: Fenaseg,
2004;
FENASEG, Quantificação da Fraude no Mercado de Seguros Brasileiro, 4º
Ciclo, 2007;
FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Procedimento no Processo
Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005;
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor
comentado pelos autores do anteprojeto. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
GUIA FENASEG, Novo Código Civil Brasileiro, Seguro, Previdência Privada e
Capitalização, Recomendações e Comentários. Rio de Janeiro: Fenaseg,
2003;
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman; MIRAGEM, Bruno.
Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos
Tribunais 2003.
MARTINS, João Marcos Brito. O contrato de seguro. 1 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003;
MIRABETE, Julio Fabrini. Código Penal Interpretado. 5 ed. São Paulo: Atlas,
2005;
MIRABETE, Julio Fabrini. Código de Processo Penal Interpretado. 5 ed. São
Paulo: Atlas, 1997;
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil v. 1: parte geral. 39
ed. São Paulo: Saraiva, 2003;
NEGRINI, Pedro Paulo. O Custo da Fraude para o Brasil. Gazeta Mercantil,
São Paulo, outubro de 2002;
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5 ed.
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005;
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Contrato de seguro: interpretação doutrinária e
jurisprudencial. Campinas: LZN Editora, 2002.
SANTOS, Ricardo Bechara. Direito de seguro no cotidiano. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1999;
TEIXEIRA, Raul. Os reflexos do novo Código civil nos contratos de seguro. 1
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004;
TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz; PIMENTEL, Ayrton. O
Contrato de Seguro de acordo com o novo Código Civil Brasileiro. 2 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003;