CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
A IGNORÂNCIA PROPOSITAL E A IMPUTAÇÃO SUBJETIVA
EM SITUAÇÕES PROVÁVEIS: BREVES CONSIDERAÇÕES
ACERCA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
Gabriela de Aguillar Lima*
RESUMO: Com base na doutrina, o trabalho começa por delinear os aspectos pertinentes aos
institutos do dolo e da culpa, classificando, categorizando e situando a cegueira deliberada.
Analisa as disposições do Model Penal Code, nos Estados Unidos da América, casos
emblemáticos no direito internacional e as incipientes aplicações da Cegueira Deliberada no
Brasil. Comenta distinções doutrinárias entre ignorância e cegueira deliberadas. Analisa
acórdãos em que o instituto é relevantemente considerado em nossos tribunais e conclui pela
ineficiência da doutrina clássica para dar conta desse tema e pela necessidade de evolução e parametrização de critérios para a aplicação da Cegueira Deliberada em conjunto com a ideia
de dolo normativo.
Palavras-chave: Teoria da Cegueira Deliberada. Willfull blindness ou conscious avoidance
doctrine. Instruções de avestruz. Ignorância proposital. Ignorância intencional. Dolo
normativo.
Sumário: 1 Teoria do tipo subjetivo – dolo e culpa. 2 Teoria da cegueira deliberada. 2. 1
Histórico. 2.2 Características do Instituto. 3 Aplicação no Direito Brasileiro. 4. Acórdão
analisado. 5 Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que
vêem, cegos que, vendo, não veem”. (SARAMAGO, 1995)
1 TEORIA DO TIPO SUBJETIVO – DOLO E CULPA
Como de notório conhecimento, o crime deve ser analisado sob três aspectos:
tipicidade, ilicitude e culpabilidade. A tipicidade é composta de conduta (culposa ou dolosa),
resultado e nexo causal. Limitarmos à análise dos elementos subjetivos do tipo, cuja
compreensão é fundamental para a delimitação do campo de estudo da teoria da cegueira
deliberada.
* Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Ciências Criminais
pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – IEP/MPRJ.
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A teoria finalista da ação, preconizada por Hanz Welzel em meados do século XX,
parte da premissa de que toda ação humana é dirigida a uma finalidade. O crime é o
comportamento humano, voluntário, psiquicamente dirigido a uma finalidade, antijurídico e
culpável. O grande marco da teoria finalista foi a alocação dos elementos subjetivos do tipo
(dolo e da culpa) na estrutura do fato típico (especificamente, na conduta), sendo conferida
maior importância ao desvalor da conduta do que ao desvalor do resultado. A culpabilidade
passa a representar meramente um juízo de reprovação.
Os elementos subjetivos do tipo são o dolo e a culpa e é importante delimitar seu
campo de abrangência para que o agente não sofra uma imputação injusta. Os limites do
desconhecimento da lei e das circunstâncias fáticas também devem ser deve ser definidos,
para evitar que o agente não se valha da alegação de desconhecimento para se eximir de sua
responsabilidade.
Importante premissa deve ser esclarecida. Enquanto a doutrina brasileira, cuja teoria
do finalismo se mostra tão arraigada e sedimentada, enaltece a noção de dolo ontológico,
percebe-se que a jurisprudência começa a adotar, ainda que de forma tímida, a idéia de dolo
normativo, no qual se pretende perquirir o elemento subjetivo do agente com base em
elementos objetivos.
O dolo traduz-se na consciência e vontade de praticar os elementos objetivos do tipo e
é composto dos elementos cognitivo (intelectual) e volitivo. O agente, no atuar doloso, tem
conhecimento dos fatos e das circunstâncias e opta por agir de determinada maneira, o que
engloba o domínio sobre os atos praticados (aqui também são inseridos os riscos do
comportamento). Além disso, o agente tem vontade de se comportar daquela maneira e quer a
realização do tipo objetivo.
O dolo pode ser direto, na hipótese em que o agente quer a produção do resultado,
sendo subdividido em dolo direto de primeiro grau (finalidade precípua do agente) ou de
segundo grau (também chamado de dolo de consequências necessárias, pois há aceitação dos
resultados necessários para se atingir o fim desejado).
Já o dolo indireto ou eventual é verificado na hipótese em que o agente, embora não
queira a produção do resultado, anui com essa possibilidade, já que aceita o provável e é
indiferente a sua ocorrência. Ele tem consciência dos riscos de sua conduta, prevê que dela
poderá advir certo resultado, mas se mostra indiferente caso ele aconteça. Há possibilidade de
um segundo resultado não desejado, porém previsível.
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A culpa, por sua vez, traduz-se na violação a um dever objetivo de cuidado. A despeito
de o artigo 18, inciso II, do Código Penal, estabelecer que o atuar será culposo quando o
agente der causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia, não vemos razão
para subsunção apenas nessas formas de agir, sendo mais abrangente e adequada a utilização
da expressão “violação do dever objetivo de cuidado”.
Os elementos do crime culposo são: i) inobservância do dever de cuidado; ii)
previsibilidade objetiva do resultado e iii) resultado advindo de forma involuntária.
O crime culposo traz ínsita a idéia de desvalor da ação (inobservância do dever de
cuidado) e pune o comportamento proibido pelas regras mínimas desse dever. Há
previsibilidade objetiva do resultado, porém esse é involuntário. Some-se a isso o desvalor do
resultado em razão da inobservância do dever de cuidado (desvalor da ação).
As regras de cuidado podem advir da norma ou do comportamento social. Em razão de
o agente ter a possibilidade de não conhecer em que consiste o dever de cuidado e/ou a norma
impositiva desse dever, Claus Roxin sustenta que o crime culposo tem como fundamento
necessário a idéia de risco, sendo a criação ou incremento de um risco juridicamente proibido
a base da famosa Teoria da Imputação Objetiva.
A culpa é dividida em consciente, na hipótese em que o resultado é previsto, e
inconsciente, na situação em que, mesmo previsível e não desejado, o agente acredita que
pode agir e neutralizar as conseqüências do resultado.
Embora não seja o escopo desse trabalho, não poderíamos deixar de consignar nossa
posição, no sentido de que a culpa em sentido estrito, no Direito Penal, deveria ser extinta,
ficando a cargo de outros ramos do Direito a resposta em relação à sanção sobre o atuar
culposo, em homenagem aos Princípios da Intervenção Mínima e da Subsidiariedade.
Entendemos ser mais danoso à sociedade a presença de comportamentos cuja intenção seja
eminentemente criminosa do que aqueles descuidados, razão pela qual as condutas seriam
subsumidas às ideias do dolo eventual e a valoração sobre o grau de culpabilidade seria
levado em conta quando da quantificação da pena.
Embora objeto do trabalho não seja esmiuçar os institutos do dolo e da culpa, faz-se
necessário estabelecer certas diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente, a fim de
situar o espectro de estudo da Teoria da Cegueira Deliberada.
Há dois grupos de teorias para a diferenciação de tais institutos, que serão expostos de
maneira suscinta. As Teorias Volitivas fundamentam-se no dolo, à margem de qualquer
critério normativo. São elas: i) Teoria do Consentimento - o agente sabe que o resultado
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danoso pode ocorrer, esse não é seu objetivo, porém não o desaprova; ii) Teoria da
Indiferença - o agente tem consciência de que a conduta é arriscada, confia na não ocorrência
de resultados indesejados, mas se mostra indiferente caso esses advenham.
Já as Teorias Cognitivas fazem parte do outro grupo que estuda a diferença entre dolo
eventual e culpa consciente. Para tal grupo, interessa se o agente conhecia o perigo que
deveria ter sido levado a sério, mas não foi. Em suma: não importa se o agente levou a sério o
risco, contanto que tivesse prévio conhecimento.
A primeira espécie a ser estudada é a Teoria da Representação, a qual afirma que, se
um agente tem consciência de que sua conduta é adequada para atingir o resultado lesivo, tal
já é suficiente para a caracterização do dolo. Basta provar a representação da possibilidade de
que sua conduta seja adequada para produzir um resultado lesivo para que seja caracterizado o
dolo. É menos problemático provar a consciência com elementos objetivos do que cm
elementos subjetivos intrínsecos, realmente descobrir a real vontade do agente.
A segunda espécie é a Teoria da Probabilidade, que prega estar configurado o dolo
eventual quando o sujeito considera o resultado lesivo provável. O “possível” não é suficiente
para caracterização do dolo e, se o agente assume que o resultado é provável, é porque
reconhece que sua conduta acarreta riscos. Já se o agente confia na inocorrência do elemento
típico, tem-se a culpa consciente.
Para a Teoria da Qualidade do Perigo Conscientemente Criado, preconizada por
Puppe, estar-se-á diante de dolo eventual na hipótese em que o agente sabe que seu
comportamento é idôneo a causar um resultado lesivo e despreza a integridade do bem
jurídico. Caso o agente acredite que sua conduta perigosa é idônea a causar o resultado, a
hipótese será de dolo. Já se o agente acreditar que sua conduta perigosa não é capaz de causar
o resultado, estaremos diante de hipótese de culpa. O perigo será um perigo doloso quando
representar uma forma idônea para provocação do resultado. Além disso, sendo o perigo de
tal magnitude que se apresenta com grande força na visão do agente, sua confiança na
inadequação de sua conduta para causar o resultado induz a uma recusa de se posicionar
diante do perigo e essa indiferença será reprovada. Se o perigo é intenso e se apresenta com
grande evidência diante dos olhos do autor, esta ‘confiança’ nada mais representa que uma
recusa de tomar posição diante do perigo, sendo que é essa indiferença que deverá ser
reprovada no autor doloso.
Por fim, como quarta espécie do gênero ‘teoria cognitiva’, temos a Teoria da Cegueira
Deliberada, objeto precípuo desse estudo e cuja análise será desenvolvida no tópico a seguir.
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2 TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
2.1 HISTÓRICO
Hodiernamente, há situações limítrofes e que não encontram adequação completa nos
conceitos tradicionais de dolo ou culpa. Pode-se até fazer um esforço para enquadrá-las no
dolo eventual ou culpa consciente, porém, em nossa concepção, devem ser analisadas de
forma autônoma e, se for o caso (mas não necessariamente), amoldar-se àqueles conceitos.
A teoria surgiu como tentativa de suprir situações lacunosas, em que o agente se
coloca propositadamente numa situação de ignorância e, caso não se debruçasse sobre os
elementos volitivos que permeiam a ignorância, ensejariam a absolvição.
Não se pode negar que as pessoas praticam condutas e, dependendo do campo de
atuação, há uma responsabilidade especial no atuar, sendo descabida a alegação de ignorância
sobre aspectos que o sujeito tem dever social, moral - quiçá legal -, de conhecimento e
evitação do resultado. O desenvolvimento de atividades econômicas, de gestão, entre outros,
exigem precauções dos responsáveis, que têm o dever de praticá-las sob a égide da boa-fé
(objetiva e subjetiva) e adoção de providências para evitar a ocorrência de resultados lesivos
ao ordenamento jurídico penal, sob pena de servirem de meio de garantia à impunidade e
acobertamento de ilícitos perpetrados por terceiros, oportunidade em que o ilícito poder-lhe-á
ser atribuído.
Não há um consenso doutrinário sobre os elementos que compõem a Teoria da
Cegueira Deliberada (willful blindness ou conscious avoidance doctrine), também conhecida
como “instruções de avestruz”. Por se tratar de construção advinda do common law, por vez
se afigura mais esclarecedora a análise do caso concreto.
Em linhas gerais, a teoria sustenta a equiparação entre o conhecimento efetivo de que
a conduta do sujeito contribui para a prática de um delito a situações em que, estando este
conhecimento acessível, o sujeito opta deliberadamente por não acessá-lo. Segundo Ramón
Ragués Vallés, três são os requisitos para a aplicação da teoria: (i) a falta de representação
total dos elementos típicos; (ii) a decisão do sujeito de permanecer em um estado de
ignorância; e (iii) o propósito de beneficiar-se deste estado de ignorância1.
1 RAGUÉS VALLÉS, Ramón. La Doctrina de la Ignorancia Deliberada y su Aplicación al Derecho Penal
Económico-Empresarial. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MIRÓ LLINARES, Fernando (Org.). La teoria
del delito em la práctica penal económica. España: La Ley, 2013.
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Na lição de Gustavo Badaró e Pierpaolo Bottini:
A cegueira deliberada equiparada ao dolo e ventual exige, em primei ro
lugar, que o agente crie consciente e voluntariamente barrei ras ao seu
conheci mento , com a intenção expressa de deixar de tomar contato
com a atividade ilí cit a, caso ela ocorra (NR. 139). A desídia ou a
negligência na criação de mecanismos de cont role de atos de l avage m
de dinhei ro não é suficiente ao dolo eventual, caracterizando apenas a
ceguei ra imprudente. (.. .) A falt a de percepção da violação da nor ma
de cuidado afasta o dolo e ventual . Por outro l ado, se o mesmo diretor
desati va o setor de cont role i n terno, e suspende os mecanis mos de
regist ro de dados sobre as t ransações de cli entes, com a di reta
intenção de afastar os f iltros de cuidado, pode criar uma situação de
ceguei ra deliberada. Mas, para isso há um segundo requisito: o agente
deve representar que a criação das barrei ras de conheci mento facilit ará
a práti ca de atos infracionais sem sua ciência. (.. .) Co mo afi rma Moro:
‘Desde que presentes os requis itos exigidos pela dout rina da
‘ignorância del iberada’, ou seja, a pro va de que o agente tinha
conheci mento da ele vada probabilidade da natureza e origem
criminosas dos bens, direitos e valores envol vidos, e quiçá de que ele
escolheu agir e permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos,
ou seja, desde que presentes os elementos cognosci vo e voli ti vo, não
se vislumbra objeção jurídica ou moral para reputá -lo responsável pelo
resultado deliti vo . (BADARÓ; BOTTINI, 2016, p. 144-145)
A fim de possibilitar uma análise completa do instituto, suas bases
filosóficas e desenvolvimento, passaremos à breve análise histórica sobre o
surgimento e evolução do instituto.
O primeiro julgado que mencionou essa teoria foi em 1861, na Inglaterra, no caso
Regina versus Sleep. Um ferreiro embarcou em um navio com um barril contendo parafusos
de cobre com o símbolo real – e, portanto, de propriedade do Estado. O acusado foi
considerado culpado pelo júri por malversação de bens públicos. Entretanto, acabou absolvido
pelo juiz, que levou em conta que o agente não tinha conhecimento de que os parafusos
estavam marcados como propriedade do Governo (tal conhecimento era elementar do tipo) e
nem que ele propositadamente se absteve de obter tal conhecimento.
A despeito de não ter havido condenação, uma mudança de paradigma começou a ser
aventada, na medida em que se equiparou ao conhecimento real o fato de alguém se abster de
buscar o conhecimento, sendo possível fazê-lo.
Ainda na Inglaterra, em 1875, no caso Bosley versus Davies, a teoria começa a ganhar
força. Davies era proprietário de uma pensão e foi acusado de permitir a realização de jogos
ilegais em suas dependências. O acusado alegou desconhecimento dessa prática mas, ao revés
do primeiro julgado, foi considerado culpado, sob o fundamento de que o conhecimento real
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não era obrigatório para configuração do crime, bastando a existência de circunstancias que
levassem à presunção de que Daves e seus funcionários eram coniventes com tal prática.
Em 1899, os Estados Unidos, no célebre caso Spurr versus United States, passou a
assumir a teoria como válida em seu ordenamento. Spurr, presidente do Commercial National
Bank of Nashville, certificou diversos cheques de uma pessoa jurídica sem verificar, de forma
adequada, a suficiente provisão de fundos. Como mencionado de forma clara por Spencer
Toth Sydow:
A corte, no julgado, apontou que a expressão “deliberada” (willful) exigiria tanto
intenção quanto conhecimento (semelhante ao binômio vontade e consciência), mas
que o propósito malicioso (figura equiparada ao elemento subjetivo do tipo da
doutrina brasileira) do agente poderia ser presumido em situações em que este se
coloca propositadamente em posição de ignorância. (SYDOW, 2017, p. 78-79.)
(sem grifos no original)
De acordo com as conclusões da Suprema Corte no caso específico, a má intenção
seria presumida nas hipóteses em que o agente se mantém deliberadamente na ignorância
acerca da existência de fundos na conta bancária ou quando mostra grande indiferença a
respeito de seu dever de se assegurar acerca desta circunstância. Passou-se a entender que o
acusado poderia ser condenado se tivesse fechado os olhos para algum fato criminalmente
relevante, ou seja, a autocolocação na ignorância.
Apesar de começar a ser difundida e aceita no common law, a Teoria da Cegueira
Deliberada carecia de parâmetros objetivos. A partir da década de 1970, a teoria começa a ser
aplicada em casos de tráfico de drogas.
Antes de prosseguir com a análise dos julgados, faz-se necessária a menção ao Model
Penal Code, normativa criada pelo American Law Institute no ano de 1962. Não se trata de
uma lei propriamente dita (como se fosse um Código Penal, nos modelos de países que
adotam o civil law), mas documento elaborado por juristas que trouxe diversos conceitos, a
fim de uniformizar a interpretação da lei penal – lembre-se que, à época, havia 52 (cinquenta
e dois) Códigos Penais diferentes nos Estados Unidos da América. O Model Penal Code
trouxe mais segurança por ser uma base interpretativa a ser utilizada como fundamentação em
todo o país e foi um marco na história jurídica dos Estados Unidos.
O Código Penal Modelo trouxe pela primeira vez a ideia de culpabilidade (na
concepção de comportamento culpável, reprovável) e foram estabelecidos 4 graus de
subjetividade no direito norteamericano: i) com intencão (purposely); ii) com conhecimento
certo de um resultado delitivo (knowlingly); iii) com irresponsabilidade, sem consideração
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diante dos efeitos de um risco criado (recklessly) e iv) com negligência (negligently), o que
equivale à concepção de culpa em sentido estrito do Direito Penal Brasileiro.
A seção 2.02 trouxe as noções gerais de culpabilidade, conforme a seguir
demonstrado:
MODEL PENAL CODE - 2.02 General Requirements of Culpability2.
(1) Minimum Requirements of Culpability. Except as provided in Section 2.05, a
person is not guilty of an offense unless he acted purposely, knowingly, recklessly
or negligently, as the law may require, with respect to each material element of the
offense.
(2) Kinds of Culpability Defined.
(a) Purposely - A person acts purposely with respect to a material element of an
offense when (i) if the element involves the nature of his conduct or a result thereof,
it is his conscious object to engage in conduct of that nature or to cause such a
result; and (ii)bifbthe element involves the attendant circumstances, he is aware of
the existence of such circumstances or he believes or hopes that they exist.
(b) Knowingly - a person acts knowingly with respect to a material element of an
offense when (I) if the element involves the nature of his conduct or the attendant
circumstances, he is aware that his conduct is of that nature or that such
circumstances exist; and (ii) if the element involves a result of his conduct, he is
aware that it is practically certain that his conduct will cause such a result.
(c) Recklessly - a person acts recklessly with respect to a material element of an
offense when he consciously disregards a substantial and unjustifiable risk that the
material element exists or will result from his conduct. The risk must be of such a
nature and degree that, considering the nature and purpose of the actor's conduct and
the circumstances known to him, its disregard involves a gross deviation from the
standard of conduct that a law-abiding person would observe in the actor's situation.
(d) Negligently - a person acts negligently with respect to a material element of an
offense when he should be aware of a substantial and unjustifiable risk that the
material element exists or will result from his conduct. The risk must be of such a
nature and degree that the actor's failure to perceive it, considering the nature and
purpose of his conduct and the circumstances known to him, involves a gross
deviation from the standard of care that a reasonable person would observe in the
actor's situation.
(3) Culpability Required Unless Otherwise Provided. When the culpability sufficient
to establish a material element of an offense is not prescribed by law, such element
is established if a person acts purposely, knowingly or recklessly with respect
thereto.
(4) Prescribed Culpability Requirement Applies to All Material Elements. When the
law defining an offense prescribes the kind of culpability that is sufficient for the
commission of an offense, without distinguishing among the material elements
thereof, such provision shall apply to all the material elements of the offense, unless
a contrary purpose plainly appears.
(5) Substitutes for Negligence, Recklessness and Knowledge. When the law
provides that negligence suffices to establish an element of an offense, such element
also is established if a person acts purposely, knowingly or recklessly. When
recklessness suffices to establish an element, such element also is established if a
person acts purposely or knowingly. When acting knowingly suffices to establish an
element, such element also is established if a person acts purposely.
2 Disponível em:
<http://www.cs.xu.edu/~osborn/main/lawSchool/criminalHtml/bottomScreens/Briefs/Model%20Penal%20Code
%20Section%202.02.htm>. Acesso em: 18 fev. 2018, 13:30.
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(6) Requirement of Purpose Satisfied if Purpose Is Conditional. When a particular
purpose is an element of an offense, the element is established although such
purpose is conditional, unless the condition negatives the harm or evil sought to be
prevented by the law defining the offense.
(7) Requirement of Knowledge Satisfied by Knowledge of High Probability. When
knowledge of the existence of a particular fact is an element of an offense, such
knowledge is established if a person is aware of a high probability of its existence,
unless he actually believes that it does not exist. (sem grifos no original)
(8) Requirement of Wilfulness Satisfied by Acting Knowingly. A requirement that
an offense be committed willfully is satisfied if a person acts knowingly with respect
to the material elements of the offense, unless a purpose to impose further
requirements appears.
(9) Culpability as to Illegality of Conduct. Neither knowledge nor recklessness or
negligence as to whether conduct constitutes an offense or as to the existence,
meaning or application of the law determining the elements of an offense is an
element of such offense, unless the definition of the offense or the Code so provides.
(10) Culpability as Determinant of Grade of Offense. When the grade or degree of
an offense depends on whether the offense is committed purposely, knowingly,
recklessly or negligently, its grade or degree shall be the lowest for which the
determinative kind of culpability is established with respect to any material element
of the offense.
Importante destaque para a abordagem do tema é a noção de que o conhecimento real
pode ser verificado pela circunstância de conhecimento de alta probabilidade, conforme
estabelecido na seção 2.02(07). Em tradução livre, a norma estabelece que, na hipótese em
que o conhecimento da existência de um fato particular é elementar de um crime, tal
conhecimento se perfaz quando o agente está ciente de uma alta probabilidade da sua
existência, a menos que ele acredite que essa probabilidade não exista.
Uma das críticas a essa idéia de alta probabilidade revela-se no sentido de redução do
campo de atuação da teoria da cegueira deliberada, na medida em que apenas nos casos em
que a suspeita for de tal monta que induza à alta probabilidade de ocorrência do resultado é
que se poderá aplicar a aludida teoria como forma de suprir o dolo ontológico.
As premissas do Model Penal Code foram utilizadas em 1969, no caso Leary versus
United States, que versava sobre o transporte doloso de droga importada e fundamentou-se na
teoria da cegueira deliberada para imputar o conhecimento da posse da droga ao agente, que
foi condenado.
Em 1976, o caso United States versus Jewell passou a ser o marco referencial do tema.
Trata-se de um caso criminal em que o tribunal considerou que ignorância intencional
satisfazia os requisitos de conhecimento de um fato. A exploração do caso deu origem à
instrução do júri conhecida como “instrução de avestruz”.
Jewell foi abordado em um bar ao longo da fronteira entre o México e os Estados
Unidos e, depois de ter sido perguntado sobre a venda de maconha e negado conhecimento,
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uma pessoa perguntou se ele dirigiria um carro pela fronteira por US$ 100,00 (cem dólares), o
que foi aceito. O carro foi parado na fronteira e, após inspeção, foram encontradas 110 (cento
e dez) libras de maconha em um compartimento do carro que Jewell sabia existir, mas não
inspecionou. A lei exigia conhecimento de que a maconha estava no carro e o réu alegava
desconhecimento do que efetivamente transportava, apesar de reconhecer a suspeita de que
era algo ilegal.
O Tribunal de Apelação asseverou que a ignorância deliberada e o conhecimento
positivo são igualmente culposos. Agir com consciência englobaria tanto o agir com
conhecimento positivo quanto o agir com consciência da alta probabilidade do fato em
questão.
A partir desse julgado, a aplicação da teoria da cegueira deliberada começou a ser
norteada pelas noções de probabilidade, de acordo com a regra 2.02(7) do Model Penal Code.
Recentemente, no ano de 2010, outro caso emblemático e que trouxe novo passo para
a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada foi o Globaltech Appliances Inc. Versus SEB
S.A., no qual a teoria foi utilizada em um caso de natureza cível.
Na Espanha, país que adota o sistema do civil law, há diversos casos de aplicação da
teoria ora abordada, que encontrou bastante aceitação naquele ordenamento. O primeiro
julgado foi no ano de 2000, em um julgado do Tribunal Supremo Espanhol, em que o relator
Giménez García afirmou expressamente se tratar de situação em que o agente não quer saber
aquilo que pode e deve conhecer. Tal acarreta, em sua visão, um estado de não representação
de um elemento do tipo, sendo necessárias três características: i) a possibilidade de o agente
abandonar a situação de ignorância, caso queira; ii) o dever de procurar obter o conhecimento
real e iii) o agente, ao se colocar ou manter em situação de ignorância, visa à obtenção de
alguma vantagem.
Em breves linhas, a fim de situar o leitor, consigna-se que o caso versava sobre a
revisão de condenação de sujeito por receptação em razão do transporte de vultosa quantia em
dinheiro oriunda do tráfico de drogas. O réu, como esperado, negou o conhecimento da
origem dos valores, porém a condenação foi mantida levando em conta as premissas acima
mencionadas.
Na Espanha, a partir de determinado momento, passou-se a considerar a cegueira
deliberada como um “princípio”, como uma nova forma de imputação subjetiva além do dolo
e da culpa. Entretanto, as premissas, requisitos e espectro de atuação não estão pacificadas,
talvez até mesmo por se tratar de instituto relativamente recente.
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Ultrapassadas as premissas históricas do instituto, passaremos à análise da teoria da
cegueira deliberada e sua aplicação e desenvolvimento no Direito Brasileiro.
2.2 CARACTERÍSTICAS DO INSTITUTO
Devemos sempre ter em mente que a teoria foi desenvolvida para os casos em que o
agente pratica uma conduta fingindo não estar percebendo a ilicitude, pois seu intuito é não
ser responsabilizado. O agente coloca-se numa posição deliberada de ignorância e pretende
alegar o desconhecimento da situação fática para que não seja alcançado pela norma punitiva
– penal ou cível.
Na verdade, o dolo do agente é realmente não conhecer tal situação, passível de
conhecimento, para que, no futuro, possa se valer desse desconhecimento para se eximir da
responsabilização. Na verdade, pode-se até cogitar que se trata da aplicação do dolo numa
conduta omissiva.
As regras atuais exigem que o órgão acusador prove a existência dos elementos
subjetivos do tipo, o que, muitas vezes, é de difícil caracterização partindo das premissas
clássicas de dolo e culpa. Com o intuito de permitir a comprovação de dolo, conhecimento,
anuência e eventuais elementos subjetivos exigidos como elementares do tipo, foram
preconizadas circunstâncias que, analisadas no contexto fático, levariam à conclusão do atuar
doloso.
Spencer Toth Sydow3, autor brasileiro que mais se debruçou sobre o tema, propõe a
diferenciação entre a ignorância deliberada e cegueira deliberada em sentido estrito.
A ignorância deliberada engloba situações em que o agente tem dúvida sobre algum
elemento do tipo e, de forma proposital, deixa de buscar esclarecer sua dúvida, permanecendo
no estado de desconhecimento justamente em razão das vantagens que isso lhe trará. Na
verdade, haveria um propósito presumido na inércia em realmente conhecer o elemento do
tipo sobre o qual recai a dúvida. Acrescenta que a pessoa que prefere se manter no estado de
desconhecimento real, embora tenha dever e seja possível o esclarecimento, na verdade,
compreende parte do caráter contra legem de sua conduta e seu intuito é garantir salvaguarda
em sua omissão.
3 SYDOW, Spencer Toth. A teor ia da cegueira deliberada. Belo Horizonte: D’Placido, 2017, p.
60-63.
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Situação diversa, segundo construção do autor, seria a cegueira deliberada em sentido
estrito, na qual o agente cria uma estratégia para que mantenha o desconhecimento de sinais
que apontam para a existência de determinados elementos do tipo. Ao alegar
desconhecimento, acredita que não poderá ser responsabilizado – e, até o desenvolvimento e
aperfeiçoamento da teoria, não o era. O agente, de forma premeditada, trabalha seu elemento
de inconsciência sobre possíveis situações futuras, ainda que possíveis, com o intuito de não
ser responsabilizado penalmente. Há autocolocação em um estado de não saber, levada a cabo
pelo sujeito responsabilizável, que daria azo à sua não responsabilização pela ausência de
consciência atual. Há um esforço consciente em não galgar o real conhecimento da situação.
Em nossa opinião, data venia, tal diferenciação não apresenta grandes vantagens,
sendo as situações pelo autor diferenciadas vertentes da análise do desconhecimento
proposital, o que ensejará, segundo a teoria ora estudada, possibilidade de imputação
subjetiva.
A cegueira deliberada é um duelo entre conhecimento e ignorância e propõe a análise
sobre o limite e situações em que o agente, legitimamente, pode alegar o desconhecimento da
situação ou a probabilidade de sua ocorrência para se eximir da responsabilidade penal. Caso
reste demonstrado que ele permaneceu “cego” com o propósito de legitimar seu
comportamento, tal alegação não será válida para excluir o dolo.
Há situações em que o agente, a fim de não agir caso soubesse de algum fato, prefere
colocar-se ou manter-se numa situação de ignorância, na medida em que o conhecimento
acarretaria a obrigação de agir ou impediria a obtenção de determinada vantagem desprovida
de responsabilidade penal.
Pela doutrina clássica, seria impensável atribuir responsabilidade a alguém que não
possua conhecimento sobre o fato, o que ensejaria a exclusão do elemento subjetivo. A partir
do surgimento da Teoria da Cegueira Deliberada, fatores que circundam o simples elemento
cognoscitivo passam a ser valorados para determinar a presença do elemento subjetivo como
um todo, passando a levar em consideração comportamentos que denotam a presença do
elemento volitivo, ainda que se alegue ignorância.
3 APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
As raízes da Teoria da Cegueira Deliberada já foram consagradas pelo folclore
brasileiro, na década de 1980, em “Roque Santeiro”, obra de Dias Gomes. Nela, o
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
personagem “Sinhozinho Malta”, ao ouvir de seu capataz Terêncio que resolveria o problema
trazido pelo retorno de Roque Santeiro à cidade de Asa Branca – que dava a entender que
providenciaria sua morte -, era prontamente interrompido pelo Coronel, que tampava os
ouvidos e bradava em alto e bom som: “não me digue nada, eu não quero saber de nada!”.
No Brasil, a primeira aplicação da teoria da cegueira deliberada em um julgamento foi
no processo 0014586-40.2005.4.05.8100 (caso derivado do famoso furto ao Banco Central em
Fortaleza, abaixo analisado), sendo posteriormente aplicada em outros crimes que não o de
lavagem de dinheiro. Ousamos afirmar que a teoria ganhou notoriedade a partir do julgamento
da Ação Penal 470-MG pelo Supremo Tribunal Federal, que aplicou a Teoria da Cegueira
Deliberada para crimes de lavagem de dinheiro, sendo as condenações fundamentadas na
caracterização do elemento subjetivo do tipo por meio de dolo eventual. Recentemente, a
teoria ganhou força e ampla divulgação a partir dos julgamentos da chamada “Operação Lava-
Jato” e outras dela derivadas.
A título de exemplo, no caso da receptação, a expressão “deve saber” como elemento
subjetivo do tipo engloba tanto o dolo eventual como abre espaço para a aplicação da teoria
da cegueira deliberada4. Já no caso do tráfico de drogas, há imputação de dolo a pessoa que
alegava desconhecer levar drogas em sua mochila, porém restou provado que a ignorância foi
proposital com o intuito de garantir proveito para si ou outrem5.
Caso que se revela bastante interessante foi aplicado na Justiça do Trabalho. Como se
sabe, com a crescente terceirização de mão de obra e busca incessante pelo lucro, diversas
marcas consagradas mantêm-se ignorantes em relação às reais circunstâncias da cadeia
produtiva. Essa autocolocação na ignorância também tem como intuito esquivar-se das
obrigações trabalhistas, situação denominada “lucro injusto”. Por mais que tais empresas não
estejam vinculadas diretamente com a exploração de mão de obra escrava, entendemos que
elas têm obrigação de inspecionar as linhas de produção e, ao menos, desconfiar do montante
pago por determinado produto, mormente por ocupar posição hierárquica superior na cadeia
de produção.
No campo do Direito Administrativo, a teoria da cegueira deliberada também foi
reconhecida no campo da improbidade administrativa, também para caracterização do dolo6.
4 Apelação 0000050-56.2013.8.26.0653, TJSP, 7ª Câmara de Direito Criminal, Relator Reinaldo Cintra, julgado
em 04/02/2016 5 AC 1364241-2, TJPR, 4ª Câmara Criminal, Relator Renato Naves Barcellos, julgado em 23/07/2015.
6 Apelação nº 0003527-67.2005.8.26.0136, TJSP, Des. Relator João Batista Morato Rebouças de Carvalho, 9ª
Câmara de Direito Público, DJe 13/11/2013
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
A decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (AREesp 845.485/SP,
Relator Min. Herman Benjamin, decisão publicada em dia 13/05/2016, conforme
se demonstra a seguir:
O entendimento do STJ é de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta
do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é
necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os
tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo
10. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que o ato de improbidade
administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92 exige a demonstração de dolo, o
qual, contudo, não necessita ser específico, sendo suficiente o dolo genérico. Assim,
para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é
imprescindível, além da subsunção do fato à norma, caracterizar a presença do
elemento subjetivo. A razão para tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa
não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de
lealdade e boa-fé. Cito precedentes: AgRg no REsp 1.500.812/SE, Rel. Ministro
Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 28/5/2015, REsp 1.512.047/PE,
Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30/6/2015, AgRg no REsp
1.397.590/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 5/3/2015,
AgRg no AREsp 532.421/PE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,
DJe 28/8/2014. O Tribunal de origem foi categórico em afirmar a presença do
elemento subjetivo e do dano ao Erário.
Em meados de janeiro do ano de 2018, o Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, por meio do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, ajuizou Ação
Civil Pública em defesa da probidade administrativa, da qual a autora desse trabalho foi uma
das signatárias. Na referida ação, o fundamento para imputação da responsabilidade de alguns
agentes públicos foi justamente a Teoria da Cegueira Deliberada, conforme pode ser
verificado nos autos do processo nos autos do processo 0010991-03-2018.8.19.0001, em
trâmite na 7ª Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital.
Durante a colheita de provas, especificamente a partir das declarações dos envolvidos,
pôde-se perceber que era comum a alegação desconhecimento de determinada situação
invocando o não conhecimento da irregularidade apontada, atribuindo a responsabilidade a
setor diverso. Em contrapartida, agentes com posição hierárquica inferior afirmavam que
estavam apenas seguindo ordens, acrescentando terem agido de determinada maneira com o
aval e conhecimento do alto escalão. Ao final, os elementos de convicção demonstraram,
cristalinamente, que um agente “empurrava” a culpa para outro, todos na vã tentativa de
eximirem-se da responsabilidade pelas imoralidades e danos ao erário.
Abaixo, a ementa da ação:
Procedimento MP/RJ nº: 2017.00301238 (ICP nº.: 04/2017 - inquérito principal ) –
procedimentos conexos: MPRJ 2017.01146288 (ICP nº 37/17); 2017.01149674 e
2017.01222304 - Improbidade administrativa – ofensa aos princípios reitores da
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
administração pública - regalias conferidas ao preso SÉRGIO DE OLIVEIRA
CABRAL SANTOS FILHO - promoção das regalias pela cúpula da Secretaria
Estadual de Administração Penitenciária (SEAP) em favor de ex-governador preso
cautelarmente por crimes cometidos quando do exercício da governança – escambo
de benefícios em troca de regalias – sistema penitenciário que não se ocupa de
prover tratamento impessoal ao ex-mandatário do Estado. Privilégios
injustificáveis que se protraem no tempo desde o ingresso no sistema
penitenciário passando da segurança à visitação e alimentação – quadro de
permissividade institucional consolidado – ação civil pública – pedido de tutela
de urgência para afastamento cautelar da função pública.
Até a data de conclusão desse trabalho, o MM. Juiz de Direito
competente para o julgamento havia deferido liminar para afastamento da função
pública de alguns réus, decisão sobre a qual há recurso pendente de julgamento.
Ainda que de forma implícita, o magistrado reconheceu a Teoria da Cegueira
Deliberada como fundamento para a responsabilização dos agentes públicos
demandados. Aguardemos o deslinde da ação.
Exemplo não raro na Administração Pública é o caso em que um su perior
hierárquico, ao ind icar um agente de sua confiança para ocupar determinado
cargo, recebe uma quantia periódica que não foi pré-acordada, mas não
questiona a origem desse valor.
Como o trabalho ora desenvolvido tem como foco a seara penal, pensamos
que outras situações podem ocorrer e em quais delas a aplicação da Teoria da
Cegueira Deliberada servirá para imputar o elemento subjetivo a agente que, de
forma proposital, se coloca em situação de ignorância. Cite -se, como exemplo,
um rapaz que conhece uma moça, bem avantajada, e por ela se encanta, mas
percebe haver a probabilidade de ela ter menos que 13 anos, haja vista o
conteúdo de sua conversa e rotina de vida. Ocorre que, de forma proposital, o
enamorado não pergunta a idade da moça com o intuito de se eximir da aplicação
da lei penal, pois caso ela seja menor de 13 anos e porventura haja acusação
formal de estupro de vulnerável, poderá alegar desconhecimento de elementar do
tipo, qual seja, a idade.
Outra hipótese por nós ventilada é do dono do mercado que expõe
produtos à venda e, propositalmente, não confere a data de validade dos
produtos, pois pretende vendê -los e, caso haja fiscalização da Vigilância
Sanitária, poderá alegar desconhecimento sobre o fato de estarem com a validade
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
vencida, excluindo o dolo de cometimento do crime previsto no artigo 7º, inciso
IX, da Lei 8137/90.
4 ACORDÃO ANALISADO
No Brasil, a primeira vez que um tribunal tratou da Teoria da Cegueira Deliberada de
maneira explícita foi no julgamento da Apelação Criminal ACR nº 5520/CE pelo Tribunal
Regional Federal da 5ª Região, cuja ementa é abaixo transcrita.
“PROCESSO Nº 0014586-40.2005.4.05.8100/05 (2005.81.00.014586-0/05)
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO (ACR5520/05-CE)
ORGÃO: Segunda Turma –
VARA: 11ª Vara Federal do Ceará (Privativa em Matéria Penal)
ASSUNTO: Crimes de "Lavagem" ou Ocultação de Bens, Direitos ou Valores -
Crimes Previstos na Legislação Extravagante – Penal
JUIZ FEDERAL DANILO FONTENELLE SAMPAIO.
EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO À
CAIXA-FORTE DO BANCO CENTRAL EM FORTALEZA. IMPUTAÇÃO DE
CRIMES CONEXOS DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA, FALSA
IDENTIDADE, USO DE DOCUMENTO FALSO, LAVAGEM DE DINHEIRO E
DE POSSE DE ARMA DE USO PROIBIDO OU RESTRITO. SENTENÇA
CONDENATÓRIA. PRELIMINARES: JUNTADA DE NOVAS RAZÕES
RECURSAIS. IMPOSSIBILIDADE. PRECLUSÃO CONSUMATIVA.
CERCEAMENTO DE DEFESA. OMISSÃO DA SENTENÇA QUANTO À
APRECIAÇÃO DE TODAS AS TESES DA DEFESA. LIVRE
CONVENCIMENTO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE POR FALTA DE
CORRELAÇÃO ENTRE A ACUSAÇÃO (DE LAVAGEM DE DINHEIRO) E A
SENTENÇA CONDENATÓRIA. HIPÓTESE DE EMENDATIO LIBELLI.
INEXISTÊNCIA. MÉRITO: AUTORIA E MATERIALIDADE. PARCIAL
PROCEDÊNCIA DA DENÚNCIA. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO NA
PRÁTICA DE FURTO CONTRA A AUTARQUIA. NÃO CONFIGURAÇÃO.
SENDO O CRIME PRATICADO POR ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA,
DEVIDAMENTE CONFIGURADA, RECONHECE-SE O DELITO
ANTECEDENTE DO CRIME DE BRANQUEAMENTO DE VALORES. TEORIA
DA CEGUEIRA DELIBERADA (WILLFUL BLINDNESS). INEXISTÊNCIA DA
PROVA DE DOLO EVENTUAL POR PARTE DE EMPRESÁRIOS QUE
EFETUAM A VENDA DE VEÍCULOS ANTES DA DESCOBERTA DO FURTO.
ABSOLVIÇÃO EM RELAÇÃO AO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO.
NÃO CONSTITUI CRIME O MERO PORTE DE DOCUMENTO DE TERCEIRO,
MORMENTE QUANDO PARENTE PRÓXIMO. ABSOLVIÇÃO PELO CRIME
DE FALSA IDENTIDADE. ABSOLVE-SE DA IMPUTAÇÃO DE FORMAÇÃO
DE QUADRILHA O ACUSADO DE QUEM NÃO SE DEMONSTROU A
RELAÇÃO ESTÁVEL COM OS INTEGRANTES DO BANDO. FIXAÇÃO DAS
PENAS: CIRCUNSTÂNCIAS DO ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL.
EXACERBAÇÃO EXCESSIVA DA PENA-BASE. REDUÇÃO. ATENUANTE
DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. NÃO INCIDÊNCIA. AFASTAMENTO DA
CIRCUNSTÂNCIA ESPECIAL DE AUMENTO EM RELAÇÃO AO DELITO DE
LAVAGEM. INEXISTÊNCIA DE PROVA QUANTO À HABITUALIDADE DAS
CONDUTAS. REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA.
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
I- PRELIMINARES:1.1 Acolhe-se a preliminar arguida pelo BACEN (assistente da
acusação) de não conhecimento da segunda apelação de fls.3999/4000, em face de a
procuração outorgada pelo réu (fls.3997) ao advogado signatário do primeiro
recurso de apelação de fls.3994/3996 ter gerado a revogação de poderes
anteriormente conferidos ao profissional que apresentou a segunda apelação às
fls.3999/4000.-Com a interposição do primeiro apelo operou-se a preclusão
consumativa, sobretudo porque, com a outorga de nova procuração para o exercício
dos mesmos poderes antes conferidos a outro patrono, o primeiro instrumento de
mandato resta revogado.
1.2- Sentença que, ao fazer a soma das penas aplicadas em concurso material,
registra quantidade de anos superior às condenações impostas. O erro meramente
aritmético, na indicação final, não tem o condão de impor aos condenados a
quantidade de pena ao final mencionada, prevalecendo, de qualquer modo, a
condenação concreta por cada um dos crimes cometidos, em concurso material.
Inexistência de nulidade.
1.3- Estando os fatos pormenorizadamente descritos na denúncia, pode o juiz dar ao
crime definição diversa sem prejuízo para o réu, hipótese não configuradora de
mutatio libelli, mas sim de emendatio libelli. Afasta-se o argumento de nulidade da
pena em face da falta de correlação entre a acusação (de lavagem de dinheiro) e a
sentença.
1.4- Não ofendem o princípio da inviolabilidade do domicílio o ingresso na
residência do acusado, bem como a arrecadação do dinheiro lá encontrado, sem o
amparo de mandado de busca e apreensão, em face da incidência da exceção
prevista no art. 5º, XI, da Constituição Federal. Sendo permanente o crime de
ocultação de bens e valores, a situação de flagrância dispensa a ordem judicial.
1.5- A existência de outras provas contra o acusado torna dispensável a perícia, para
comprovação do alegado rompimento dos seus tímpanos, em virtude da suposta
violência da polícia. Mesmo que eliminada a confissão na fase policial,
alegadamente obtida sob tortura, outras provas foram suficientes para embasar o
decreto condenatório, a exemplo dos depoimentos dos demais acusados e o próprio
fato de terem sido encontrados em seu poder mais de doze milhões de reais.
1.6- Não está o juiz sentenciante obrigado a afastar, um por um, todos os
argumentos elencados pela defesa nas alegações finais.- Enfrentando a sentença a
matéria alegada e discutida, valorando as provas e abordando as questões relevantes
trazidas pelas partes, após discorrer sobre os motivos do convencimento do julgador
e apontando no quadro fático e nas provas as causas que o determinaram, não
necessita expressamente analisar todos os argumentos da defesa. Rejeição da
preliminar de nulidade da sentença, por falta de fundamentação.
1.7- Réus condenados pelo crime de contrabando (Código Penal, art. 334) e pelo uso
de documento falso (Código Penal, art. 304), sem que tenha a sentença, contudo,
fixado a pena relativa àqueles delitos. Ausência de oposição de embargos de
declaração nem o manejo de apelação por parte da acusação.- Impossibilidade de
aplicação das penas na fase recursal, à falta de apelação do Ministério Público
Federal. Preclusão do poder punitivo para o Estado, em razão da proibição de
reformatio in pejus.- Não sendo a hipótese de anular a sentença pois, em novo
julgamento, também não teria o julgador monocrático como fixar a pena em patamar
mais elevado, sob pena de se configurar reformatio in pejus indireta, declara-se a
ineficácia da sentença no que tange às condenações sem a fixação da pena
respectiva.
II- MÉRITO- AUTORIA E MATERIALIDADE:
2.1- Confirmando a instrução criminal que os acusados tinham pleno domínio do
fato criminoso, correta a condenação pelos crimes de furto qualificado, formação de
quadrilha, uso de documento falso e pelo crime de ocultação de bens e valores,
previsto na lei de lavagem de dinheiro.
2.2- Configura o crime de furto qualificado a ação perpetrada contra o Banco
Central do Brasil, sede em Fortaleza, na madrugada de 5 para 6 de agosto de 2005 e
que resultou na subtração de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões,
setecentos e cinqüenta e cinco mil, cento e cinquenta de reais) ou cerca de U$
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
71.000.000 ( setenta e um milhões de dólares), em notas de cinquenta reais que já
estiveram em circulação, sendo interessante notar que no interior da caixa-forte
existiam ainda muitos outros milhões de reais em notas seriadas, que não foram
levadas pelos acusados.- Caracterizadas as circunstâncias dos incisos I e II do § 4º
do art. 155 do Código Penal, tendo em vista que o crime foi cometido mediante a
utilização de túnel escavado a partir da casa nº 1071 da Rua 25 de março, região
central da Capital cearense, distante mais de 75 (setenta e cinco) metros da sede da
Autarquia, com o rompimento de laje de concreto de 1,10m de espessura. A
residência de onde partiu a escavação era usada com o subterfúgio de ser sede de
uma empresa de grama sintética, depositando-se em suas dependências, ocultadas
em paredes falsas de gesso, a terra retirada do túnel, que tinha entrada disfarçada
com tampa de tacos, era equipado com sistema de refrigeração, iluminação artificial
e lanternas de segurança, além de contar com 900 (novecentas) escoras de madeira
com preenchimento de argamassa, ventiladores e segmentos de tubos de cimento.
2.3- O enquadramento típico no crime de lavagem de capitais exige que os valores
sobre os quais se empreguem os procedimentos de lavagem tenham sido produto de
um dos crimes antecedentes precisamente definidos na lei. A sentença utilizou os
incisos V e VII do art. 1º da Lei 9613/98 para esse enquadramento: crime contra a
Administração Pública e crime praticado por organização criminosa.- Os crimes
contra a Administração Pública estão bem definidos no Código Penal, sendo certo
dizer que esse rótulo indica um preciso grupo de figuras típicas. Não traduz qualquer
crime que tenha como vítima uma entidade da Administração Pública. É preciso que
o bem jurídico protegido seja a própria Administração Pública brasileira e, por esse
motivo, apenas os delitos previstos nos capítulos com essa nomenclatura (dentro do
Código Penal ou, eventualmente, em legislação esparsa) assim podem ser
considerados.- Inadequação do enquadramento pretendido na sentença de primeiro
grau, de que um crime de furto (crime contra o patrimônio) venha a ser considerado
"crime contra a Administração Pública" apenas pelo fato de que teve uma autarquia
federal como vítima.-A intenção do legislador foi, certamente, restringir os crimes
precursores a um rol definido, não sendo admissível a interpretação extensiva para
enquadrar outros delitos além dos expressamente relacionados. A locução "crime
contra a Administração Pública" está relacionada ao bem jurídico tutelado, e não à
qualidade da vítima.-Correta a sentença recorrida quanto ao enquadramento do
crime antecedente na moldura de "crime praticado por organização criminosa".-
Embora a legislação não defina o que seja uma organização criminosa, a Lei n.
9.034/95, em seu art. 1º, define e regula os meios de prova e procedimentos de
investigação com relação a crimes praticados por "quadrilha ou bando ou
organizações ou associações criminosas de qualquer tipo". A configuração típica da
"quadrilha ou bando" está no art. 288 do Código Penal, mas não existe norma que
defina organização ou associação criminosa.- O teor da Lei n. 9.034/95, em termos
práticos, sugere que haja (ou deva haver) uma diferenciação entre as duas primeiras
figuras (quadrilha ou bando) e as duas últimas (organização criminosa e associação
criminosa), já que, em todos os casos, há uma pluralidade de pessoas em busca da
prática de uma pluralidade de crimes.- De acordo com certa doutrina relevante, a par
da utilização de meios operacionais sofisticados, da padronização de
comportamentos, da utilização de informações privilegiadas, um determinado
critério seria considerado essencial: o envolvimento de agentes do Estado. É verdade
que, no caso relativo ao furto ao Banco Central, não há provas concretas de
ramificações no Estado. Todavia, aquela circunstância não é essencial para a
caracterização da organização criminosa. De qualquer modo, tendo-se em conta que
a utilização de pessoas anteriormente empregadas na segurança do Banco Central e a
profundidade do conhecimento que o grupo demonstrou ter das instalações da
Autarquia sugerem fortemente a infiltração ou mesmo a "contaminação" do aparelho
do Estado, de modo que a quadrilha - dotada de acesso a pessoas ligadas à
Administração Pública de alguma forma - reuniria os elementos que fariam dela uma
organização criminosa, permitindo a subsunção do fato no inciso VII do art. 1º da
Lei n. 9.613/98. A organização criminosa assemelha-se a uma grande sociedade
empresária: não é a realização exitosa de um grande negócio que lhe colocará um
fim. Ao contrário, servirá para reforçar os laços que unem seus integrantes, para
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
arregimentar novos membros, para otimizar seus procedimentos. Os recursos assim
obtidos servem à retroalimentação do sistema, tal qual uma sociedade empresária
que reinveste no negócio os lucros auferidos em determinado exercício. São
exatamente a estabilidade e a perenização que caracterizam uma organização
criminosa, e que não é essencial à configuração da quadrilha. A criminalidade
organizada é aquela "que funciona nos moldes de uma genuína empresa comercial,
supondo organização hierarquizada, administração profissional e disponibilidade de
meios materiais e humanos para a execução de tarefas distintas e escalonadas, não se
podendo, contudo, esquecer que a característica que lhe é mais peculiar é a sua (em
maior ou menor grau) clandestinidade" (CASTELLAR, João Carlos. LAVAGEM
DE DINHEIRO-A QUESTÃO DO BEM JURÍDICO-Rio de Janeiro: Revan, 204,
pág. 122). No caso dos autos, o grupo que executou os fatos configura uma
verdadeira organização criminosa, tendo empreendido esforços, recursos financeiros
de monta, inteligências, habilidades e organização de qualidade superior, em uma
empreitada criminosa altamente ousada e arriscada. O grupo dispunha de uma bem
definida hierarquização com nítida separação de funções, apurado senso de
organização, sofisticação nos procedimentos operacionais e nos instrumentos
utilizados, acesso a fontes privilegiadas de informações com ligações atuais ou
pretéritas ao aparelho do Estado (pelo menos a empregados ou ex-empregados
terceirizados) e um bem definido esquema para posterior branqueamento dos
capitais obtidos com a empreitada criminosa antecedente. Reunião de todas as
qualificações necessárias à configuração de uma organização criminosa, ainda que
incipiente.
2.4- Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em
Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da
doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da
sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há
elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados
tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada
ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso II do § 2.º do art. 1.º
dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de
indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso II do §
2º.- Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente
realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à
conduta do art. 1.º, § 1º, inciso II, da mesma lei; na verdade, talvez, pudesse ser
atribuída aos empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave),
mas não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de modo
informal e com base em confiança construída nos contatos entre as partes.- É
relevante a circunstância de que o furto foi realizado na madrugada da sexta para o
sábado; a venda dos veículos ocorreu na manhã do sábado. Ocorre que o crime
somente foi descoberto por ocasião do início do expediente bancário, na segunda-
feira subsequente. Não há, portanto, como fazer a ilação de que os empresários
deveriam supor que a vultosa quantia em cédulas de R$ 50,00 poderia ser parte do
produto do delito cometido contra a autarquia. A empresa que explora a venda de
veículos usados não está sujeita às determinações dos arts. 9 e 10 da Lei 9.613/98,
pois não se trata de comercialização de "bens de luxo ou de alto valor", tampouco
exerce atividade que, em si própria, envolva grande volume de recursos em espécie.-
Ausência de ato normativo que obrigue loja de veículos a comunicar ao COAF, à
Receita, à autoridade policial ou a qualquer órgão público a existência de venda em
espécie. Mesmo que a empresa estivesse obrigada a adotar providências
administrativas tendentes a evitar a lavagem de dinheiro, a omissão na adoção
desses procedimentos implicaria unicamente a aplicação de sanções também
administrativas, e não a imposição de pena criminal por participação na atividade
ilícita de terceiros, exceto quando comprovado que os seus dirigentes estivessem,
mediante atuação dolosa, envolvidos também no processo de lavagem (parágrafo 2º,
incisos I e II).
2.5- Afastamento da dupla condenação em lavagem (ocultar e ter em depósito):
tendo sido encontrados os réus em residência, onde estava ocultada quantia de mais
de 12 milhões de reais, é evidente que não poderiam ser condenados por dois crimes,
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
em cúmulo material, como se tivessem infringido dois dispositivos distintos da lei
de lavagem (ocultar os valores e ter em depósito o mesmo numerário). Ofensa ao
princípio que veda o bis in idem. É possível a configuração de mais de um crime de
lavagem, mesmo quando o objeto material (dinheiro) utilizado é oriundo do mesmo
crime antecedente, desde que as ações sejam distintas e com desígnios autônomos.
As atividades de empréstimo de dinheiro a juros, através de interposta pessoa, e de
compra de objetos, imóveis e empresas em nome de terceiros, podem, de acordo
com as circunstâncias, ser consideradas crimes distintos, em concurso material.
2.6- Conflito aparente de normas. Alegações de que os fatos praticados constituiriam
receptação ou favorecimento real. Há, é certo, grande aproximação entre a
receptação e a lavagem de capitais, pois ambas as figuras típicas têm uma mesma
finalidade: assegurar a utilização de bens ou valores obtidos por meio de crime
antecedente. A receptação visa, no entanto, assegurar a manutenção e a consolidação
de bens advindos de crime contra o patrimônio praticado por terceiro, admitindo-se,
ainda, que o crime antecedente atinja outros bens jurídicos, a exemplo do
descaminho ou do peculato, desde que o seu produto seja coisa passível de valoração
econômica, mas sempre ligada à idéia de patrimônio, público ou particular. É crime
parasitário de um delito antecedente praticado, em geral, contra o patrimônio.
Ocorre que a atividade do receptador é periférica em relação aos agentes do crime
patrimonial precedente. No caso do crime de ocultação de bens e valores da lei de
lavagem de dinheiro, as atividades tendentes a assegurar as vantagens materiais
estão imbricadas à própria ação antecedente. O crime de favorecimento real (Código
Penal, artigo 349) exclui quem participou do delito antecedente, ao contrário do que
ocorre com a reciclagem de valores, em que os agentes de ambos os delitos podem
ser os mesmos. O favorecimento real exige especial fim de agir: tornar seguro o
proveito do crime, ao passo em que, na lavagem, a intenção é não apenas tornar
seguro o proveito, mas fazê-lo reingressar na economia, embora de forma segura. Os
acusados não se limitaram a tão-somente adquirir, em proveito próprio, o produto do
crime, ou simplesmente assegurar o proveito do crime de furto, mas também a
conferir às transações de que participaram, aparência regular, lícita, razão pela qual
o conflito aparente de normas deve ser dirimido aplicando-se o princípio da
especialidade.
2.7- Absolvição de Flávio Augusto Maitioli dos crimes de falsa identidade e de
formação de quadrilha. O simples ato de trazer consigo documento de terceiro
(mormente em se tratando de irmão) não configura o tipo do art. 304 do Código
Penal. Sem a demonstração da ligação estável com os integrantes do bando, não há
que se falar em tipificação do crime de quadrilha.
III- FIXAÇÃO DA PENA:
3.1- Não fere o artigo 59 do Código Penal a sentença que fixa a pena-base num
patamar acima do mínimo legal, se devidamente fundamentada, com esteio nas
circunstâncias judiciais do crime.- Parte da doutrina em nosso país tem entendido
que a pena-base deve, salvo situações excepcionais, devidamente justificadas,
aproximar-se do termo ou ponto médio entre a pena mínima e pena máxima (metade
da distância entre a pena mínima e a pena máxima). (SCHMITT, Ricardo Augusto.
Sentença Penal Condenatória, 2.ª Edição. Salvador, Editora JusPodivm, 2007. pp. 78
a 91). Naquelas situações excepcionais, e com a devida fundamentação, a pena-base
poderia aproximar-se do termo ou ponto médio superior (metade da distância entre o
termo ou ponto médio e a pena máxima): A fixação da pena-base na pena máxima,
por impedir a aplicação de agravantes, contrariaria, em tese, a idéia penal quanto à
limitação destas à pena máxima cominada em abstrato e de sua proporcionalidade.
Haveria a necessidade de averiguação objetiva sobre a contribuição de cada uma das
circunstâncias judiciais para a majoração da pena-base, ou seja, deveria haver uma
proporcionalidade entre a valoração de cada circunstância judicial e o incremento da
pena-base. Sustenta-se que a cada circunstância judicial deve corresponder uma
possibilidade de aumento de 1/8 na fixação da pena-base, excetuando-se os
antecedentes, que corresponderiam a 2/8. Por outro lado, há autores que descartam a
precisão aritmética, inclusive em face de pronunciamento do Col. Supremo Tribunal
Federal, no sentido de que "A PONDERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
JUDICIAIS DO ART. 59 DO CÓDIGO PENAL NÃO É UMA OPERAÇÃO
ARITMÉTICA:POR ISSO, SERIA TEMERÁRIO ASSEVERAR QUE DA
SUBTRAÇÃO DE UM DENTRE DIVERSOS NEGATIVOS, AOS QUAIS
ALUDIU A SENTENÇA, RESULTASSE NECESSARIAMENTE A FIXAÇÃO
DE PENA MENOR" (STF, HC 84120/SP, rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julg.
22.6.04), havendo, ainda, corrente doutrinária segundo a qual não há qualquer
fundamento legal para a adoção do limitador do chamado termo médio, podendo a
pena básica ser aplicada no máximo quando a situação concreta demandar. (NUCCI,
Guilherme de Souza, INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. Revista dos Tribunais,
São Paulo, 2004, pág 343). Posições extremadas que podem ser temperadas,
aproveitando-se adminículos relevantes de cada uma delas: i) a fixação da pena não
pode ter precisão aritmética, mas, por outro lado, as oito circunstâncias devem ser
sopesadas, nada impedindo que uma prepondere ante as demais; ii) é razoável a
adoção do "ponto médio", como limitador à fixação da pena-base, mas nada impede
que aquele marco seja ultrapassado em situações excepcionais; e iii) a fixação da
pena-base no máximo cominado em abstrato atenta contra o princípio da
proporcionalidade, que deve orientar a compreensão e a aplicação do direito penal;
iiii) em face de situações excepcionais, é perfeitamente possível a fixação da pena-
base acima do chamado ponto médio, ou mesmo um pouco acima do ponto médio
superior. No caso concreto, impõe-se a redução das penas-bases fixadas na sentença
recorrida, não obstante as oito circunstâncias previstas no art. 59 do Código Penal
(culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, os motivos, as
circunstâncias e as conseqüências do crime e o comportamento da vítima) sejam
desfavoráveis à grande maioria dos acusados. Por outro lado, a excepcionalidade
daquelas circunstâncias, mesmo que afastados os maus antecedente no que tange a
parte dos réus, autoriza a dosimetria um pouco acima do termo médio superior, em
relação ao delito principal, pois, somente assim, será suficiente para a reprovação e
prevenção do crime. Sentença que valorou negativamente, em relação a todos os
réus, "as suas personalidades desvirtuadas e voltadas para o crime, bem como suas
condutas sociais reprováveis, além do único móvel ter sido o lucro ilícito em
detrimento do patrimônio público, com graves conseqüências sociais". No que tange
ao comportamento da vítima, afasta-se o argumento de que o Banco Central, ao
relaxar nos procedimentos de vigilância e segurança, teria incentivado a prática do
crime. As instalações da Autarquia eram dotadas de vigilância armada, circuito de
TV, com monitoramento humano 24 horas por dia, sensores de presença na caixa-
forte e sensores de impacto nas paredes e no teto. Tanto existia o esquema de
segurança que foi necessária a montagem de organização com sofisticado
planejamento e vultosos investimentos para que a empreitada criminosa tivesse
êxito. É verdade que a sentença, ao apreciar as circunstâncias judiciais, não se
deteve na avaliação dos antecedentes dos réus. Entretanto, em sede de apelação,
mesmo que o recurso tenha sido manejado exclusivamente pela defesa, pode o
Tribunal reavaliar cada um dos aspectos previstos no art. 59 do Código Penal,
atribuindo-lhes valoração diversa ou mesmo considerando circunstâncias não
mencionadas no julgado recorrido, desde que a pena não venha a ser majorada. No
caso, é perfeitamente possível considerar os antecedentes dos acusados, sem que
isso constitua reformatio in pejus, especialmente quando, ao final, a pena-base vem
a ser reduzida.
3.2- É certo que a mera situação de flagrante, por si só, não retira a espontaneidade
da confissão. Entretanto, para justificar a sua natureza de atenuante, é necessário que
a confissão seja feita de forma ampla, geral e irrestrita, o que não é o caso, até
porque, em relação a alguns dos acusados, foi retratada em juízo. A par da ausência
do elemento moral (arrependimento da prática criminosa), não se verificou a
predisposição para colaborar com a Justiça, facilitando a instrução. Nenhum dos
recorrentes forneceu qualquer informação útil à localização dos demais integrantes
da organização criminosa ou ao rastreamento dos milhões de reais ainda ocultados.
3.3- O § 4º do artigo 1º da Lei nº 9613/98 disciplina causa especial de aumento, ao
determinar que a pena será aumentada de 1(um) a 2/3(dois terços), nos casos
previstos nos incisos I a IV, do caput do artigo 1º, se o crime for cometido de forma
habitual ou por intermédio de organização criminosa. A primeira hipótese cuida da
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
figura da habitualidade criminosa, ou do criminoso habitual, conceito diferente do
de crime habitual. Como ensina DAMÁSIO DE JESUS "o delito habitual se
distingue da habitualidade no crime. Naquele, o delito é único, constituindo a
habitualidade uma elementar do tipo. Na habitualidade no crime, ao contrário, há
pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma qualidade do autor, não da
infração penal". Ao contrário do crime habitual (onde a reiteração de atos
penalmente indiferentes de per si constitui um delito único, ante a existência de um
todo ilícito) aqui temos uma seqüência de atos típicos que demonstram uma
tendência por parte do autor. No crime habitual a prática de um ato apenas não gera
tipicidade.- O aspecto mais importante é que o parágrafo introduz a figura da
"reiteração criminosa", que nada mais é do que uma característica do criminoso
chamado "profissional" ou "habitual". Não se cuida de um crime continuado
propriamente dito (art. 71 do Código Penal). Tampouco a lei faz referência e exige
uma comunhão de circunstâncias temporais, espaciais e operativas para que se
reconheça uma "unidade" fictícia ou real de delitos. O dispositivo está reservado,
portanto, às situações em que o agente, reiteradamente e de forma habitual, venha se
dedicando ao delito de reciclagem de bens ou valores.- Inexistência de qualquer
prova nos autos, ou ao menos vaga menção, de que os recorrentes reiteradamente se
dedicavam à prática de delitos de lavagem de capitais ou de que tenham
anteriormente, de algum modo, infrigido a Lei 9.613/98. Afastada a habitualidade
criminosa, restaria verificar a presença ou não da outra circunstância especial de
aumento, prevista no mesmo dispositivo legal, ou seja, o fato do crime ter sido
cometido por organização criminosa. Não há qualquer dúvida de que o furto ao
Banco Central em Fortaleza foi cometido por integrantes da criminalidade
organizada. Todavia, a circunstância foi considerada para a própria tipificação do
delito de lavagem de capitais, ao considerar o crime de furto cometido por
organização criminosa como delito antecedente ao de reciclagem. O acréscimo da
pena pelo mesmo motivo implicaria intolerável bis in idem. Reforma da sentença
que aumentara a pena-básica em 2/3(dois terços), para afastar a causa especial de
aumento do § 4º do artigo 1º da Lei nº 9.613/98.
3.4- A fixação da pena pecuniária segue o método bifásico: i) na primeira etapa,
determina-se o número de dias-multa (entre 10 e 360-Código Penal, art. 49),
devendo-se guardar certa proporcionalidade com a pena privativa de liberdade
fixada; ii) na segunda fase, arbitra-se o valor de cada dia-multa (entre um trigésimo e
5 vezes o salário mínimo-Código Penal, art. 49, § 1º), considerando-se a situação
financeira de cada acusado. De acordo com o artigo 60, § 1º, do Código Penal, o
valor da pena pecuniária poderá ser aumentado até o triplo, caso o máximo previsto
apresente-se ineficaz, em razão da condição econômica do réu. Trata-se de regra de
especial elevação do valor da pena de multa, nos moldes das causas especiais de
aumento da pena privativa de liberdade. O critério consagrado no artigo 59 do
Código Penal, qual seja o da suficiência e da necessidade, que norteia o magistrado
na individualização da pena-base proporcional, é o mesmo critério que o orientará na
fixação da pena de multa. Sentença que aplicou penas pecuniárias no patamar
máximo possível, mesmo em relação aos crimes conexos de menor potencial
ofensivo, sem guardar qualquer proporção com a pena privativa de liberdade
concretamente imposta.- A pena de multa deve ser dosada guardando simetria com a
pena privativa de liberdade aplicada cumulativamente.
3.5- O crime perpetrado contra o Banco Central em Fortaleza, com a subtração de
quase 71 milhões de dólares é, muito provavelmente, o maior furto da história da
humanidade. A quadrilha que o executou, por sua vez, demonstrou incrível
organização, planejamento e capacidade de articulação. O fato teve repercussão
internacional e ainda hoje deixa incrédula a população. Merece, assim, punição
adequada, de modo suficiente a reprovar o ilícito cometido e a desestimular a prática
de crimes contra o patrimônio e contra a paz pública, conforme recomenda o art. 59
do Código Penal. A apenação, tanto em relação ao crime principal quanto no que
tange aos crimes conexos, deve, no entanto, ser feita com atenção aos limites da lei.-
Redução das penas de multa e de privação da liberdade.ACÓRDÃO. Vistos, etc.
Decide a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, à
unanimidade, ACOLHER a preliminar de não conhecimento da segunda apelação
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
ofertada pelo réu ANTÔNIO EDIMAR; PROCLAMAR DE OFÍCIO a ineficácia da
sentença na parte em que condenou, mas deixou de aplicar a pena respectiva, em
relação aos crimes de uso de documento falso e contrabando imputados aos réus
DAVI SILVANO E ANTÔNIO EDIMAR; DAR PROVIMENTO à apelação dos
réus FRANCISCO DERMIVAL E JOSÉ ELIZOMARTE para, aplicando o
princípio in dubio pro reo, absolvê-los com base no art. 386, inciso VII do Código
de Processo Penal, com a redação da Lei nº 11.690 de 09 de junho de 2008; DAR
PARCIAL PROVIMENTO às apelações de ANTÔNIO EDIMAR BEZERRA,
MARCOS DE FRANÇA e DAVI SILVANO DA SILVA, para excluir a dupla
apenação, em concurso material, por duas supostas condutas de lavagem de ativos;
DAR PARCIAL PROVIMENTO às apelações dos réus MARCOS DE FRANÇA,
DEUSIMAR NEVES QUEIROZ, MARCOS RIBEIRO SUPPI, ANTONIO
EDIMAR BEZERRA, JOSÉ CHARLES MACHADO DE MORAIS, PEDRO JOSÉ
DA CRUZ E DAVI SILVANO DA SILVA para reduzir as penas privativas de
liberdade e as multas aplicadas, nos termos do voto do relator, na forma do relatório
e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do
presente julgado.Recife, 09.09.2008Des. Federal ROGÉRIO FIALHO MOREIRA –
Relator”.
Trata-se de julgamento do recurso dos dois gerentes de concessionária de veículos, na
cidade de Fortaleza, que venderam 11 (onze) carros a pessoas que participaram do furto ao
Banco Central na mesma cidade, sendo a transação paga em espécie.
O furto (a despeito de ser popularmente conhecido como “assalto”) ao Banco Central
foi um dos crimes mais notórios já ocorridos no Brasil. Em síntese, os agentes alugaram um
imóvel a cerca de 100 (cem) metros da agencia do BACEN em Fortaleza, e montaram uma
empresa de grama sintética “de fachada”, para justificar a ocupação no imóvel. O real intuito
era escavar um túnel que levaria ao interior do banco e o material advindo da escavação seria
depositado na loja – o que teria ligação com a atividade supostamente desenvolvida.
Na madrugada de 06 de agosto de 2005, os meliantes usaram o túnel para chegar ao
interior da agência, de onde subtraíram cerca de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro
milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta reais), tudo em notas de R$
50,00 (cinquenta reais) que já haviam sido retiradas de circulação e seriam incineradas – e,
portanto, não eram rastreáveis.
Na manhã do dia 06 de agosto de 2005, um dos agentes foi a uma concessionária de
automóveis e adquiriu 11 (onze) veículos de alto padrão, cujo valor total foi de R$ 980.000,00
(novecentos e oitenta mil reais), pago em notas de R$ 50,00 (cinquenta reais), acondicionadas
em sacos de náilon. Os empresários, mesmo verificando a estranheza da situação, optaram por
não saber da origem do dinheiro, a razão pela qual estava em sacos de náilon e sequer tiveram
a curiosidade de saber quem era aquele próspero comprador. A venda foi concretizada.
Posteriormente, a autoridade policial desconfiou da transação e, com a veiculação do
furto ao Banco Central, os veículos foram apreendidos no Estado de Minas Gerais, dentro dos
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
quais havia a quantia de R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), que seriam transportados por
caminhão cegonha.
Os empresários donos da concessionária foram condenados em primeiro grau pela
prática de lavagem de dinheiro, adotando como fundamento a Teoria da Cegueira Deliberada.
O magistrado sentenciante entendeu ser evidente a ciência de que o valor pago pelos veículos
era de procedência ilícita, sendo o elemento subjetivo do dolo suprido pela demonstração de
que os empresários, deliberadamente, se autocolocaram numa situação de ignorância. Além
disso, abstiveram-se de comunicar às autoridades responsáveis a movimentação suspeita.
Esse julgamento conferiu à Teoria da Cegueira deliberada, pela primeira vez, destaque
em nosso ordenamento jurídico.
Em primeira instância, o magistrado entendeu – a nosso ver, de forma acertada - que
os gerentes, intencionalmente, cegaram-se sobre o que estava diante de seus olhos. Não é
usual a compra de 11 (onze) veículos de uma só vez e, menos ainda, que tal seja pago em
espécie, com notas de R$ 50,00 (cinquenta reais) em sacos de náilon. Na verdade, não é usual
a compra de um só veículo em dinheiro em espécie, ainda mais da forma em que foi
apresentado. Na esfera de conhecimento do profano, até o tão conhecido “homem médio”
poderia perceber alguma coisa de estranho naquela transação. As pessoas honestas, que
prezam pelo dinheiro obtido com o suor do trabalho, adotam o máximo de cautelas para
preservar a integridade de seu patrimônio e dificilmente andariam com vultosa soma em sacos
de náilon.
Além disso, em se tratando de uma concessionária de veículos, era de se esperar, no
mínimo, que os responsáveis tomassem alguma providência: ou a recusa da venda imediata,
com perquirição sobre a pessoa do comprador e origem dos valores, ou a informação às
autoridades responsáveis. Entretanto, nas considerações do magistrado de primeiro grau, eles
preferiram se beneficiar daquela situação, mantendo-se ignorantes sobre aspectos penalmente
relevantes, razão pela qual foram condenados pelo crime de lavagem de dinheiro.
Como se percebe do acordão acima, a sentença de primeiro grau foi reformada sob o
argumento de caracterização de responsabilidade penal objetiva – entendimento do qual, data
venia, não comungamos. Ainda que não se aceitasse a utilização da Teoria da Cegueira
Deliberada como fundamento para a condenação, poder-se-ia cogitar na subsunção da conduta
dos empresários num dolo eventual, na medida em que, a despeito da suspeita sobre a origem
ilícita do dinheiro e das bizarrices do caso concreto, optaram por manter a venda e, com isso,
em nosso entender, assumiram o risco de participarem da reinserção do dinheiro “sujo” na
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
economia do país. Afinal, estar-se-ia buscando o lucro, intuito que legitimaria o recebimento
de valores sem o questionamento da origem.
Além disso, a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região consignou a
impossibilidade de condenação dos agentes por crime de lavagem de dinheiro também em
razão da atipicidade formal, pois o rol dos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro,
previsto no artigo 1º da Lei 9613/98 era taxativo – e o furto não fazia parte desse rol. Com o
advento da Lei 12.683/2012, o legislador, de forma acertada, suprimiu esse rol, sendo a
redação atual do artigo 1º da Lei 9613/98 “Ocultar ou dissimular a natureza, origem,
localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.” (sem grifos no original).
O julgamento ainda consignou que o crime de lavagem de dinheiro não admite o dolo
eventual, posição atualmente minoritária na jurisprudência, conforme se verifica dos autos da
Ação Penal 470 e corroborado pela Convenção de Varsóvia (2005)7.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Teoria da Cegueira Deliberada, de aplicação incipiente no Direito Brasileiro,
encontra cada vez mais aceitação. Isso porque as noções tradicionais de dolo e culpa já se
mostram insuficientes para imputar o elemento subjetivo do agente em determinadas
situações, dando azo para que determinadas pessoas “se beneficiem da própria torpeza”, o que
se afigura repugnante e merece a suficiente reprimenda na seara penal.
A despeito de controvérsias acerca do elemento a ser considerado para aplicação da
teoria, entendemos que a tradicional figura do dolo eventual, por enquanto, é suficiente, na
maioria dos casos, para se imputar o elemento subjetivo. Sustentamos, como já mencionado, a
extirpação do conceito de culpa do Direito Penal, tal como tradicionalmente estudada, na
medida me que outros ramos do Direito seriam capazes de sancionar o comportamento
culposo de forma mais adequada, conferindo efetividade aos Princípios da Intervenção
Mínima e Subsidiariedade.
7 “A convenção de Varsóvia (2005) indica que os Estados-membros da Comunidade Europeia podem tomar
medidas para entender como crime os casos de lavagem em que o agente suspeitava da origem elícita dos bens
ou deveria conhecer a origem ilícita dos bens, indicando a possibilidade da prática do crime a título de dolo
eventual ou mesmo imprudência (art. 9,3). BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem
de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 140.
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
Com a atual tendência em remodelar o conceito ontológico de dolo, a doutrina
encontra campo fértil para começar a desenvolver a parametrização do conceito de dolo
normativo no Direito Penal Brasileiro, aliando a idéia de atividade arriscada (e seus ônus)
com a delimitação (em respeito ao Princípio da Legalidade Estrita) de situações que supririam
a demonstração do dolo, concebido como a vontade em praticar determinada conduta,
assunção voluntária de riscos ou a conclusão, com base em elementos a e circunstâncias
extraídas do caso concreto, sobre a real intenção do agente, a despeito de sua omissão.
A moderna aplicação do Direito Penal, cuja evolução se mostra necessária ante a real
aproximação entre os sistemas do Common Law e do Civil Law, confere espaço ao julgador
para a adequação de uma conduta à norma penal, levando em conta a exteriorização, na
sentença, dos motivos e circunstâncias do caso concreto que o levaram àquele entendimento,
sem prejuízo da aplicação do princípio in dubio pro reo. Assim, casos de verdadeira
ignorância ou estupidez não encontram adequação às premissas da Teoria da Cegueira
Deliberada. Há necessidade de que o princípio da probabilidade seja aplicado de forma
subsidiária aos deveres de cuidado.
Entretanto, determinadas situações, de tão previsíveis e levando e conta as
características pessoais, levam à conclusão de que se trata de dolo propriamente dito, sendo
desnecessário o esforço jurídico em enquadrá-las na teoria da cegueira deliberada.
Sabe-se que um dos grandes problemas do Direito Penal é demonstrar, ao certo, a real
intenção do agente, exigência para caracterização do elemento subjetivo do tipo. A prática
forense demonstra que, na maioria dos casos, os réus, já orientados, alegam que “não queriam
praticar tal conduta”, na vã tentativa de que o dolo seja excluído – e, pela excepcionalidade do
crime culposo, procurar a absolvição por falta de adequação típica. Com o intuito de impedir
que a torpeza prevaleça sobre a Justiça, os magistrados já se valem de institutos e presunções
que levam à afirmação da presença do dolo, o que corrobora a ausência de entraves para que a
Teoria da Cegueira Deliberada seja aplicada em conjunto com a idéia de dolo normativo.
Esperamos a evolução e parametrização dos critérios a serem considerados para
aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada de forma pacífica, o que carece da revisão e
modernização de conceitos arraigados e arcaicos tão sedimentados e repetidos de forma
automática pelos ordenadores do Direito.
Tal permitirá que essa teoria, além de outras que porventura criadas, sejam caminho à
imputação típica em relação a condutas cada vez mais sofisticadas, para as quais a doutrina
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
clássica já se mostra de insuficiente eficácia e que induz a soluções injustas em nome da
preservação desses dogmas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos
penais e processuais penais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
BEM, Leonardo Schmitt de; MARTINELLI, João Paulo Orsini. Lições Fundamentais de
Direito Penal - parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011.
PUPPE, Ingebord. Dolo eventual e culpa consciente. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, 2006.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MIRÓ LLINARES, Fernando (Org.). La teoria del delito
em la práctica penal económica. España: La Ley, 2013.
SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: D’Placido, 2017.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.