A Imagem de Lutero na Arte: Os retratos de Lucas Cranach
Teresa Maria Oliveira1
Resumo
Este trabalho aborda a arte de Lucas Cranach, procurando
sublinhar a sua importância como meio de propaganda das ideias
reformistas, recorrendo para tal, especificamente, à análise de alguns
retratos de divulgação da imagem pública de Lutero como reformador.
Após uma breve introdução contextualizante, apresentamos as
principais características da arte no tempo de Lutero. A proximidade
e cumplicidade de Cranach com Lutero e com as suas ideias
reformistas são consideradas, com destaque para o acompanhamento
dos protestos de Lutero contra a Igreja Católica, que o pintor regista
num conjunto específico de ilustrações, o que nos conduz ao mundo
pictural dos Protestantes.
1 Doutoranda em Estudos Medievais (Universidade Nova de Lisboa/FCSH e Universidade Aberta) a preparar tese de doutoramento sob orientação da Prof. Dra. Isabel Barros Dias. Áreas de formação académica e de interesse científico; História, História de Arte, História Bíblica e Literatura. Atualmente, investigadora integrado do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa e investigadora bolseira do CIAC (Centro de Investigação de Arte e Comunicação) da Universidade Aberta, onde desenvolve trabalhos de pesquisa, publicação de artigos, organização e participação em colóquios e conferências.
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Por fim, procuraremos mostrar a influência da reforma na arte,
enfatizando sobretudo o que mudou na arte pós reforma.
Palavras-Chave- Lutero, Reforma, Arte, Retrato, Cranach
1 - Introdução: breve contextualização
Durante toda a Idade Média e Renascimento, a igreja de Roma,
foi a maior patrocinadora da arte em geral, com destaque para a
pintura e escultura. Artistas como Rafael e Miguel Ângelo, ambos entre
o fim do século XV e inícios de XVI, produziram diversas obras por
encomenda com temas explicitamente religiosos, para adornar os
templos, lugares de adoração, túmulos, ou atividades eclesiásticas.
No contexto da época, objetos de arte como telas ou vitrais,
presentes nesses diversos locais, não eram apenas belos, mas
funcionavam também como uma forma de liturgia visual,
apresentando a criação do homem, o nascimento de Cristo, a via Crúcis
/ via-sacra, e outras narrativas sagradas, assim disponibilizadas para
aqueles que não tinham acesso ao texto bíblico e nem conheciam o
latim, língua na qual as cerimónias eram realizadas. Assim, as imagens
funcionavam como um ensino bíblico, o que justifica que
questionemos as várias ideologias e engrenagens que moviam este
sistema, sem que com isso, obviamente, desvalorizemos as tradições
artísticas nelas presentes.
No que se refere especificamente à intervenção de Lutero
(1483-1546) na cultura e sociedade do seu tempo, podemos dizer que
a obra de Cranach constituiu uma importante ferramenta na
ampliação da fama de Lutero, bem como na propagação do movimento
e na difusão das temáticas religiosas da reforma e dos inícios do
protestantismo.
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2 -Lucas Cranach, o velho, e a sua amizade com Lutero
Lucas Maler nasceu em Kronach, Baviera em 1473 e, em
homenagem à cidade natal, adotou o nome artístico de Lucas Cranach.
Quando seu filho, que recebeu o mesmo nome, começou a fazer
sucesso como pintor, acrescentou «o velho» no final do nome. Cranach
viveu em Wittenberg entre 1504-1550 e tornou-se o pintor oficial da
corte, a convite de Frederico III, príncipe eleitor da Saxónia. Lucas
também pintou vários retratos da família de Lutero, além de ilustrar a
primeira edição do Novo Testamento em alemão em 1522 (fig.1) e a
Bíblia ilustrada de 1534 (fig.2). Foram inúmeras as obras concluídas
até ao seu falecimento em 1554, além de outras póstumas concluídas
pelo filho Lucas Cranach, o jovem.
Nessa época, a arte e a cultura desempenhavam papel vital na
consolidação dos estados alemães medievais. Frederico III, como
grande conhecedor de arte contemporânea e colecionador de
antiguidades, cercou-se dos melhores talentos na arte e no ciclo
académico a fim de atrair a máxima atenção para a nascente
Universidade de Wittenberg fundada por ele em 1502. Podemos dizer
que Frederico III foi o elo de ligação entre Carnach e Lutero ao
convidar ambos para integrarem o corpo docente da emergente
Universidade.
Quando Martinho Lutero chegou a Wittenberg para ser
professor de Bíblia na Universidade, iniciou-se uma amizade
intemporal entre Lutero e Carnach. Este foi padrinho de um dos filhos
do pintor que, por sua vez, foi testemunha do casamento de Lutero
com a ex-freira Katharina Von Bora em 1525.
Lucas Cranach soube como nenhum outro colocar em imagens
aquilo que Lutero escrevia em seus textos. Aplicou a Lutero e às suas
ideias uma fórmula que tanto a igreja como a sociedade já utilizavam
desde sempre, mas não de forma tão organizada e inovadora como fez
o pintor: a propaganda. Na verdade, já em Viena, Lucas entrou em
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contato com as ideias dos humanistas que pretendiam transformar a
sociedade através de uma educação livre das amarras da igreja.
3- A arte de Cranach como meio de propaganda das ideias
reformistas e os retratos como divulgação da imagem de Lutero.
A arte de Lucas Cranach constituiu, sem dúvida, uma peça
maior na propaganda da fé luterana na época. O making of da reforma
pode ser analisado, em boa medida, considerando-se a relação entre
esses dois grandes nomes de Wittenberg, Lutero e Cranach, e suas
respetivas obras e mútua cooperação (pintura e escrita). Podemos
dizer que o seu contributo para a cultura reformadora e para a arte
protestante foi essencial. No caso da arte, a tradição dos retratos dos
reformadores começou com Cranach. A imagem dos reformadores que
retratou fixou-se na consciência popular. É certo que Cranach pintou
reformadores como Philippe Melanchthon2, que teve grande
importância na reforma e foi amigo íntimo de Lutero. O relevo das
personagens que retratou também terá sido significativo para a
difusão da obra pictórica, porém, os retratos não terão sido peça de
somenos na divulgação de imagens específicas destas personalidades.
No fundo ter-se-á tratado de uma dinâmica com vantagens mútuas.
Em todo o caso, o cerne do presente trabalho é o caso
específico dos retratos de Lutero. Desde os primeiros tempos da
atuação de Lutero, Cranach foi responsável pela criação da sua
imagem pública do primeiro impulsionador da Reforma graças, quer
a gravuras impressas, quer a retratos pintados, dos quais a sua oficina
produziu séries inteiras a partir da terceira década do século XVI.
2 Philippe Melancthon (1497-1560) foi um reformador, astrólogo e astrónomo alemão. Colaborador de Lutero redigiu a “Confissão de Ausburgo” (1530) e converteu-se no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero.
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Cranach acompanhou a celeuma dos tratados de Lutero contra
os católicos com uma série de gravuras ilustrativas e particularmente
cortantes. Na sequência destas imagens, um cânone de assuntos
pictóricos preferenciais, emergiu lentamente e tomou forma no lado
Protestante. Foi Cranach quem encontrou as formulações artísticas
mais adequadas para os reformadores. Além disso, Cranach apoiou
Lutero em tudo o que este último afirmou e propôs, promovendo-o
com os seus retratos. Deste modo, ajudou a expandir a fama do
reformador. Ainda produziu uma diversidade de pinturas e (xilo)
gravuras que retratam as suas perceções relativamente aos
ensinamentos de Lutero. As suas obras foram impressas em panfletos
e / ou expostas em igrejas, servindo como propaganda do movimento
reformador, e como ilustração das temáticas religiosas defendidas
pelos reformadores. Os retratos de Martinho Lutero como Monge
Agostiniano, como Junker Jorg e o retrato de 1525, a seguir
apresentados, exemplificam o que acabámos de referir.
Martinho Lutero como um Monge Agostiniano - 1520 (fig. 3)
Esta imagem de "Monge Agostiniano exausto pela de Sua Vigília
noturna" (Wilhelm Worringer)3 marcou a memória coletiva do povo
alemão. Trata-se de uma gravura que sobreviveu à época em que foi feita,
pois sabemos que as publicações no início foram vítimas da censura.
Pode ser que a austeridade do quadro fosse considerada
radical, porque se concentrou completamente na fisionomia de um
rebelde, na altura ameaçado de excomunhão e perseguido como
herege.
3 Frase proferida por Wilhelm Robert Worringer (1881-1965) historiador de arte alemão conhecido essencialmente por suas teorias sobre arte abstrata e sua relação com movimentos de vanguarda como o expressionismo alemão.
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A inscrição concede-lhe uma nova reivindicação à
imortalidade: "O próprio Lutero expressa a natureza duradoura de seu
espírito, mas seus traços mortais decorrem do traço de Lucas".
Retrato de Lutero como Junker Jorg (fig.4 e 5)
A vida de Lutero estava em grande perigo depois da sua
presença na dieta de Worms em 17 de abril de 1521, onde foi exortado
pela última vez a repudiar as suas teses (já em janeiro desse ano ele
tinha sido excomungado pela bula emitida pelo papa Leão X), tendo
então persistindo-nos os seus pontos de vista, declarando-se de
consciência limpa. Esta pintura retrata Martinho Lutero, precisamente
no momento em que a sua vida estava em perigo, daí o seu disfarce, de
aristocrata: Junker Jörg, ou seja, “cavaleiro Jorge”.
As teses religiosas apresentadas por Lutero eram tão radicais
que o imperador Carlos V o colocara sob uma proibição imperial, o que
o deixava sob constante ameaça de prisão ou homicídio. Para o
proteger, o eleitor Frederico, o Sábio, ordenou que Lutero fosse
sequestrado. Este facto aconteceu no seu retorno da Dieta de Worms,
por um grupo de homens mascarados a cavalo, que o levaram para o
Castelo de Wantburg onde ele permaneceu por cerca de um ano.
Deixou crescer a barba e tomou as vestes de um cavaleiro, assumindo
o pseudónimo de Junker Jorg. Durante este período de retiro forçado,
Lutero trabalhou na sua célebre tradução da Bíblia para o alemão,
tendo-se as suas publicações e ideias tornado cada vez mais populares.
Durante este período, era convicção generalizada que o líder reformista
estava morto. Assim, Lucas Cranach produziu uma imagem do
reformador disfarçado para provar que ele ainda estava vivo. Cranach
tratou este tema em gravura e, pelo menos, em duas pinturas (fig.15)
(atualmente, uma no Museum de Bildenden Künste, em Leipzig e outra
em Weimar).
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O disfarce é evidente neste trabalho pois a túnica preta com um
colar alto e barba aparada encaixa-se totalmente na moda estética dos
aristocratas da época e combina com as pinturas coevas de personagens
da classe alta4.
Retrato de Lutero de 1525 (fig.6)
Nesta obra, a expressão de Lutero parece mais restringida, as
tensões internas, já visíveis, agora estão retratadas de forma mais
calma. Isso não se deve a falhas técnicas do artista, como podemos ver
na cuidadosa execução da pintura: o penteado, cabelo, sobrancelha e
barba são descritos em detalhe com precisão caligráfica. O manto
preto oculta as mãos, as dobras tubulares que descem em linhas
paralelas dos ombros e contrastam com os vincos da manga direita são
diferenciadas da roupa interior visível entre as asas do colar virado
para cima, mesmo que o manuseamento seja consideravelmente mais
resumido do que a área facial. Esta imagem assemelha-se muito ao
retrato usado para a metade esquerda de um díptico que Lucas
Cranach pintou do casamento escandaloso de Lutero com Katharina
von Bora em 1525.
Uma vez que o objetivo destes retratos era documentar a
legitimidade do casamento e usá-lo como propaganda, Cranach
manteve-se próximo da forma convencional do retrato do casamento.
Alguns elementos inovadores, como a retratilidade das sensibilidades
internas, foram relegados para segundo plano.
4 Este retrato também é apresentado numa composição diferente. O formato longo e o posicionamento das mãos difere tanto da pintura em Leipzig, como em Weimar.
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4 - Duas pinturas de Lucas Cranach que espelham as ideias
reformistas em conformidade com o pensamento de Lutero
Altar da Reforma – 1547 (fig.7)
Em altar da reforma, pintura exposta na igreja de Santa Maria,
em Wittenberg, encontramos o trabalho mais ambicioso, demorado e
pessoal de Cranach. Nele o pintor procurou retratar a mensagem
protestante a respeito da salvação e o que, segundo a compreensão
dos reformadores, seria a verdadeira igreja de Jesus Cristo - onde se
administra o batismo, a Santa Ceia, e onde os pecados são confessados
e perdoados pela graça divina.
Assim, no centro do quadro observa-se a ceia. Ao meio do
círculo da mesa está o cordeiro e os discípulos à volta com Jesus. A sala
é aberta ao mundo, convidando o observador a olhar além e, por outro
lado, a integrar-se no grupo. Judas aparece com o saco de moedas,
conversando com Jesus, mas já com um pé fora do círculo. O jovem
servo em pé teria sido inspirado na figura do filho de Lucas Cranach
que eventualmente o teria auxiliado na obra.
O servo alcança o cálice a Lutero, anacronicamente integrado
na cena, onde se encontra retratado com o disfarce de Junker Jorg,
recebendo o cálice para o devolver ao grupo, uma referência ao que
seria, na compreensão luterana, a verdade do evangelho, retomada
pelo reformador e devolvida à comunidade cristã.
A pintura da esquerda retrata um batismo, outro sacramento.
Aquele que o realiza seria uma representação da figura de Filipe
Melanchton, importante articulador teológico e sistemático da
reforma. A pia batismal, de grandes dimensões, mostra a possibilidade
do batismo por submersão, até mesmo de um adulto. À direita de
Melanchton está novamente Lucas Cranach na sua nova função de
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padrinho e, à esquerda, está o eleitor Frederico, também como
padrinho do batizado.
Já a pintura da direita é uma ilustração do que seria o Ofício das
Chaves5 na teologia luterana. Vê-se a representação do primeiro pastor
protestante da igreja de Santa Maria e confessor de Lutero, Johannes
Bugenhagen6, em seu confessionário aberto. Há duas pessoas, uma
ajoelhada sobre a qual o pastor coloca uma chave, absolvendo-o, e
outra pessoa que, aparentemente, não se arrepende dos seus pecados.
Dela o pastor retém a “chave da absolvição”.
A pintura mais famosa é a disposta na base (fig. 8) nela vemos
a centralidade da cruz, pois, na teologia de Lutero, ela seria o conteúdo
e o fundamento de tudo o que acontece na igreja. A mortalha, na qual
o crucificado está envolto, permanece em movimento, tanto em
direção ao pregador, como em direção aos ouvintes. Esta seria uma
representação da terceira pessoa da trindade (Espírito Santo) que
manteria a mensagem de Cristo viva e presente na pregação e na vida
do povo.
No púlpito está Lutero com a bíblia aberta e apontando para
Cristo, tido como o centro da doutrina anunciada. Do outro lado do
mesmo quadro está representada a família de Lutero. O pequeno
Johannes, primogénito do reformador e afilhado de Cranach, é o jovem
de casaco vermelho entre as pernas de sua mãe. Também estão
representados alguns membros da congregação de Wittenberg e o
5 O Oficio das Chaves na doutrina Luterana é o poder especial que Cristo deu à sua Igreja na terra para perdoar os pecados aos pecadores penitentes e retê-los aos impenitentes, enquanto não se arrependerem.
6 Johannes Bugenhagen (1485 -1558), também chamado Doutor Pomeranus por Lutero. Introduziu a Reforma Protestante no Ducado da Pomerânia e na Dinamarca no século XVI. Entre as suas principais realizações destacam-se a organização de igrejas luteranas no norte da Alemanha e na Escandinávia. Também foi conhecido como o Segundo Apóstolo do Norte.
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próprio Lucas Cranach que, com essa aparição, se identifica com a
nova igreja.
Cristo na Cruz (iniciada em 1552, concluída por Lucas
Cranach, o jovem em 1555 - fig. 9)
Esta é uma obra parcialmente póstuma, de co-autoria com o
filho. É considerada o monumento visual mais importante e a
expressão artística mais incisiva e sucinta da fé protestante. Exposta
na igreja de São Pedro e São Paulo, em Weimar, a obra sintetiza a
história da humanidade e da salvação na interpretação luterana. Em
primeiro plano está novamente a cruz e também a mortalha do
crucificado, em movimento.
Ao lado esquerdo observa-se Jesus derrotando a morte e o
diabo. Ao lado direito Lutero mostra a bíblia enquanto o sangue do
crucificado jorra sobre a cabeça do homem ao seu lado, identificado
como o próprio pintor. Cranach não aparece como um profeta ou
reformador, mas como um penitente solitário, em sinal de oração.
Lucas Cranach, o jovem, terá acrescentado essa figura à obra após a
morte do pai. Ao inserir a sua imagem entre os dois expoentes da
mensagem de Cristo (João Batista e Lutero) mostra acreditar que o pai
era, de fato, uma testemunha da fé cristã protestante e uma
personificação deste movimento religioso.
O conjunto da obra remete para o cristianismo primitivo e seu
“renascimento” com a Reforma. Em pé diante da cruz e com a bíblia na
mão vemos Lutero e ao fundo cenas Bíblicas; Moisés atrás da cruz com
as tábuas da lei; tendas que fazem lembrar o povo judeu em
peregrinação; à frente das tendas está representado o episódio da
serpente de bronze levantada por Moisés no deserto; e, bem ao fundo,
o que parece ser o anuncio da “boa nova” aos pastores de Belém acerca
do Messias prometido. O reformador, em primeiro plano, com os olhos
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voltados para o alto e face serena simboliza a fé e a esperança de
salvação através da mensagem da crucificação e ressurreição de
Cristo, base da sua mensagem religiosa.
O que chama a atenção nestas telas, especialmente no Altar da
Reforma, é que as pessoas da comunidade se reconheciam nestas
pinturas. Estavam lá. Os crentes que não tinham acesso à leitura,
escutavam as pregações e os debates, mas, principalmente, viam a
reforma acontecendo nestas pinturas e também nas gravuras que
acompanhavam os escritos reformadores.
Assim, podemos dizer que a pintura, tal como a música ou a
imprensa, foi um instrumento e um importante meio na propagação
da mensagem religiosa da reforma. Como esta ideologia se baseia na
ideia da dependência do homem relativamente ao sacrifício de Cristo
para sua salvação, essa mensagem tornou-se particularmente
importante na arte evangélica de Cranach que, não obstante, tomou
parte nela pessoalmente. Pode-se acrescentar, por fim, que, de certa
maneira, o envolvimento da população e o sucesso da reforma foi
tanto causa como consequência da participação também da arte da
pintura como mídia de propaganda religiosa
5- Influências da Reforma na arte
Com a proposta de mudança segundo as normas da religião
cristã, a Reforma também acarretou, nas suas áreas de influência, o
declínio da forma da “arte Cristã” como produzida até então. Um dos
efeitos imediatos foi a aversão à decoração exagerada dos templos.
Enquanto a experiência sensorial no catolicismo era rica em símbolos,
no protestantismo as representações físicas capazes de promover
adoração e devoção eram evitadas. Ainda hoje, para quem já esteve
num local ou momento de culto católico e evangélico é fácil perceber
como a arte é geralmente muito incorporada no primeiro contexto e
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bem pouco no segundo. Grande parte da recusa protestante em fazer
arte de cunho religioso pode ser explicada pela proibição da criação
de ídolos. Porém, alguns viam a criação de imagens de outra forma,
considerando que a enfâse desse mandamento recai exclusivamente
na repreensão à adoração de ídolos, o que atribuía a ícones materiais
a glória que era devida somente a Deus. “Onde, porém, imagens ou
estátuas são produzidas sem idolatria, então a fabricação delas não é
proibida”, disse Lutero. “Meus confinadores devem também deixar-
me ter, usar, e olhar para um crucifixo ou uma Madonna (…) Contanto
que eu não os adore, mas apenas os tenha como memoriais”.7
A reforma Luterana, sobretudo a dos seus sucessores, como
Calvino, representa uma rotura e combaterá a estética da imagem e a
extensão do sacrilégio do culto dos santos. O iconoclasmo traduziu-se
historicamente nas destruições das estátuas e dos quadros. Este
movimento, no meio protestante, foi também no sentido da
“destruição de imagens”, como forma de chamar a atenção para a
pureza dos lugares de oração protestantes dos quais as imagens
visuais - quadros, e estátuas de santos - foram expulsos. Porém,
diminuiu de intensidade quando se “passa a cultuar mais as escrituras
e também a música” 8, ou seja, o imaginário protestante não se
esmerou em preservar o equilíbrio desejado – entre palavra e imagem,
tendo ficado para o texto literário como também musical. Sendo assim,
ficou para o discurso da apresentação oral (sermões) e para os hinos
(acústica). A afirmação dos reformadores de que Cristo era Senhor não
apenas nos períodos de oração, adoração e estudo bíblico, mas sobre
todas as coisas, legitimava a revindicação dos aspetos não religiosos
da vida para Deus, o que trouxe uma nova perspetiva, ao que poderia
7 LUTERO. Contra os Profetas Celestiais. 1525; LW, Vol. 40, pág. 32-33
8 DURAND, Gilbert, O imaginário: Ensaio acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem, Rio de Janeiro, DIFEL, 1998, pág. 21 e 22.
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constituir uma “arte cristã”. Assim, realizar obras para Deus não
significava produzir telas, artefactos ou qualquer tipo de manifestação
artística que apresentasse uma ligação direta com temas religiosos ou
com o momento de culto, mas sim produzir tais expressões de arte
para glorificar o nome de Cristo.
Mesmo sem o compromisso com temas divinos, o
relacionamento entre o Cristianismo e as artes ainda permaneceu em
tensão, por conta da divisão entre o secular e o sagrado.
Segundo Steve Turner, apreciar uma arte que lida com a vida
diária, quando ela não apresenta relações ou conclusões
explicitamente espirituais, ainda se mostrava uma tarefa de difícil
assimilação9.
Como sabemos, na Idade Média as pinturas eram, na sua maior
parte, de temática religiosa. Mesmo quando retratados temas
seculares (tal como os mitos pagãos) personagens ou imagens bíblicas
eram integradas como se de alguma forma o assunto secular exigisse
alguma justificativa. Assim, os artistas da reforma, faziam arte secular
sem complexos de culpa porque sabiam que estavam glorificando a
Deus. Somos sensibilizados pelos seus retratos de vida comum nas
vilas, no campo a trabalhar, a descansar, ou famílias reunidas para
uma refeição.
9 Turner,Steve, Cristianismo Criativo? – Uma Visão sobre o Cristianismo e as artes, São Paulo, W4Editora, 2006, pág. 56-58
Nesta obra o autor, jornalista, escritor e artista, considera que os cristãos devem confrontar a sociedade e a igreja, valendo-se do poderoso impacto que a arte pode causar. Turner acredita que a arte pode registrar fielmente a vida de pessoas comuns e, do mesmo modo, expressar a transcendência de Deus. Por isso, os cristãos devem se envolver em todos os níveis no mundo das artes e em todos os meios de comunicação possíveis.
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Assim podemos reter dois princípios importantes:
1- A arte influenciada pela reforma é totalmente realista,
humanizada, não espiritualizada. A reforma enfatizou que Deus se fez
homem, trazendo dignidade à vida terrena e secular.
2 - Não é necessário “santificar” a arte exigindo que ela sirva os
interesses morais e religiosos da igreja.
O que esses artistas compreenderam foi que no secular e no
sagrado, Deus é Senhor. As áreas são distintas, mas Deus é o mesmo.
São estes conceitos e modelos que libertaram os grandes
artistas seguidores da reforma, para criar obras que servissem tanto a
religião quanto o avanço da cultura de modos apropriados para cada
tarefa, sem confundir as duas.
Conclusão
Apoiando Lutero e promovendo seus retratos, a obra de
Cranach foi um importante meio na propagação do movimento e da
mensagem religiosa da reforma luterana.
A forma e o conteúdo da arte protestante - em particular a
pintura – refletiu deste modo o Cristianismo mais claro e mais pessoal
do movimento da Reforma. Neste contexto, obras em grande escala de
arte Bíblica, não eram encomendados pelos órgãos da igreja
protestante, como foram outrora pela igreja católica. Com a
autoridade do catolicismo enfraquecida, seu potencial de atuação
como benfeitor de artistas foi reduzido, apesar de ainda subsistirem
áreas de influência no panorama artístico-cultural. Na ausência de um
forte discurso religioso contrário ao acúmulo de riquezas, as
encomendas aos artistas passaram a ser de obras com temas de
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interesses pessoais, como retratos e paisagens. As experiências diárias
dos cristãos comuns da Europa, antes dificilmente retratadas nas
obras artísticas, passaram a também ter seu lugar. Esta queda do
patrocínio eclesiástico forçou muitos antigos mestres a diversificarem
em suas artes, tornando-as mais seculares, como pinturas históricas,
retratos, pintura de gênero10 e naturezas-mortas.
De modo geral, os protestantes removeram a arte de suas
igrejas, preferindo representar sua fé através de cenas bíblicas mais
humildes em vários formatos impressos, ou nomeadamente em
Bíblias ilustradas. Ao mesmo tempo, as sociedades protestantes
adotaram um estilo discreto de arte que promoveu a necessidade de
piedade pessoal, bem como o respeito pela beleza nua e crua das
criações de Deus, incluindo as pessoas criadas à Sua imagem. Em
contraste, a Contra-Reforma Católica patrocinou gloriosas pinturas e
continuou a defender sua própria marca de "arte sacra", que ilustra
questões importantes de dogma ou tradições católicas.
10 A Pintura de gênero, desenvolveu-se a meio do florescimento do Barroco na Europa Católica (século XVII) nos Países Baixos, sobretudo nos Países Baixos do Norte (a porção que hoje corresponde à Holanda). Trata-se de um estilo sóbrio, realista, comprometido com a descrição de cenas rotineiras, temas da vida diária como homens dedicados ao seu ofício, mulheres cuidando dos afazeres domésticos, ou até mesmo paisagens
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Anexos:
Fig. 1 - Novo Testamento em Alemão (traduzido por Lutero 1522)
e ilustrado por Lucas Cranach
Fig. 2 - Bíblia de 1534 ilustrada por Lucas Cranach
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Fig. 3 Martinho Lutero como
Monge Agostiniano (1520)
Gravura, 14,3 x 97cm Stadel,
Museum, Frankfurt,
Fig. 4 Retrato de Lutero em Junker Jorg (1522)
Gravado em Madeira, 28,3 x 20,2 cm
Bruxelles, Bibliotéque Royale de Belgique
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Fig. 5 - Retrato de Martinho Lutero como Junker Jorg (1521-22)
Óleo e tempera s/ madeira , 33,5 x 25,3 cm
Museum der Bildenden Kunste, Leipzig
Fig. 6 - Retrato de Martinho Lutero (1525)
Óleo e tempera s/ madeira, 40 x 26,6 cm
City Museum & Art Gallery, Bristol
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Fig. 7 - Altar da Reforma (1547) - Óleo s/ tela
Wittenberg, Igreja santa Maria
Fig. 8 - Altar da Reforma (pormenor)
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Fig. 9 - Cristo na Cruz (1552-1555)
Concluído por Lucas Cranach, o Jovem
Óleo s/ tela
Weimar, Igreja de São Pedro e São Paulo
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DENOO, Mare, Cranach, Paris, Herscher, Cop, 1996.
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HUYGHE, René, La Peinture D’occident, Paris, Nouvelles Editions Française, 1954.
LAWSON, Steven J, A Heroica Ousadia de Martinho Lutero: Um Perfil de Homem
Piedoso, Barcarena, Edições Fiel, 2014.
MESSLING, Guido, Cranach et Son Temps, Paris, Flammarion Cop. 2014.
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