PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito
Programa de Pós-graduação em Direito
A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO DIREITO TRIBUTÁRIO
Luciana Goulart Ferreira Saliba
Belo Horizonte 2010
Luciana Goulart Ferreira Saliba
A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO DIREITO TRIBUTÁRIO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.
Linha de pesquisa: Estado, Constituição e Sociedade no Paradigma do Estado Democrático de Direito Orientador: Marciano Seabra de Godoi
Belo Horizonte 2010
S165i Saliba, Luciana Goulart Ferreira
A interpretação econômica do Direito Tributário. / Luciana Goulart
Ferreira Saliba. Belo Horizonte, 2010. 171f.
Orientador: Marciano Seabra de Godoi Dissertação. (mestrado – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Faculdade Mineira de Direito, Programa de Pós-graduação em Direito).
1. Direito tributário – interpretação econômica. I. Godoi, Marciano Seabra de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. III. Título.
CDU: 336.2
Para minha mãe, Luiza, minha inspiração e meu orgulho. Para Wilton, Gustavo e Guilherme, razão do meu viver. A Nilcéia, amiga de tantos anos, pela ajuda incansável e incentivo constante.
AGRADECIMENTO
Ao Professor Marciano, minha referência intelectual, pelo estímulo, pela instigação e pela
persistência em orientar com precisão.
“Nunca desaparecerá, ciertamente, la tensión entre la realidad y la norma; ésta es la vida misma del Derecho. Los asesores fiscales tienen el deber de aconsejar a sus clientes acerca de la manera menos onerosa fiscalmente de lograr sus fines de negocios; pero no por medio de la manipulación de las normas, que es cosa de leguleyos, no de verdaderos juristas. También en este campo conviene no olvidar que el Derecho tiene que estar impregnado de valores éticos.” (PALAO TABOADA, 2009, p. 43)
RESUMO
A antiga visão do tributo como algo odioso implicava a interpretação literal e restritiva das normas
tributárias. Contra essa visão formalista da norma tributária surgiram as escolas da interpretação
econômica e funcional do Direito Tributário, segundo as quais o fato gerador é sempre uma relação
econômica privada cuja existência é suficiente para determinar o nascimento da obrigação tributária,
qualquer que seja o envoltório jurídico da referida relação econômica. O radicalismo inicial da
interpretação econômica foi posteriormente abandonado e atualmente prevalecem para o Direito
Tributário os critérios normais da hermenêutica jurídica, consistentes na fixação do mais restritivo e
mais extensivo sentido literal possível da norma e na definição do seu sentido por meio da aplicação
dos critérios lógico-sistemático, histórico e teleológico. A interpretação econômica, nesse contexto, é
concebida como critério de interpretação teleológica ou como forma de combate à elusão fiscal,
prestigiando tanto os princípios da legalidade e da segurança jurídica quanto os princípios da
igualdade e da capacidade contributiva. A doutrina formalista brasileira, por outro lado, confere um
peso excessivo ao princípio da legalidade e não admite a interpretação econômica nem mesmo como
forma de combate à elusão fiscal. Para essa parte da doutrina, a interpretação não tem nada de
“criativo” e consiste em um ato frio e mecânico de subsunção do fato à lei. Os dispositivos do
Anteprojeto e do Projeto do CTN que visavam à incorporação da interpretação econômica não
prevaleceram no texto final aprovado em 1966. Os arts. 107 a 112 do CTN não negam nem acolhem a
interpretação econômica, uma vez que o critério teleológico decorre da Teoria Geral do Direito e
independe de previsão em lei, tal como ocorre nos demais ramos do Direito.
Palavras-chave: Direito Tributário; Interpretação econômica; Superação da versão original;
Interpretação teleológica; Combate à elusão fiscal; Recepção pela doutrina antiformalista do Direito
Tributário; Análise das normas de interpretação e integração do CTN.
ABSTRACT
The old perception of taxes as something hateful implied the literal and restrictive interpretation of the
tax rules. The schools of economic and functional interpretation of tax law, which were created against
this formalistic perception of tax law, stated that the tax triggering event is always a private economic
relationship whose existence is enough to determine the birth of the tax liability, whatever is the legal
shape of such economic relationship. The initial radicalism of the economic interpretation was later
abandoned and the normal criteria of legal interpretation currently prevail for tax law. Those criteria
consist of the determination of the most possibly restrictive and extensive literal sense of the rule and
also of the determination of its sense through the application of logical-systematic, historical and
teleological criteria. The economic interpretation, in this sense, is conceived as criterion of teleological
interpretation or as a way of fight against tax elusion, valorizing the principles of lawfulness and
predictability as well as the principles of equality and ability to pay. Brazilian formalist jurists’
opinion, on the other side, valorizes excessively the principle of lawfulness and does not admit the
economic interpretation neither as a way of fight against tax elusion. For this jurists’ opinion,
interpretation does not correspond to “creativity” and consists of a cold and mechanic act of
submission of the fact to the rule. The provisions of the bills of the Brazilian Tax Code (CTN) which
sought the inclusion of the economic interpretation did not prevail in the final text approved in 1966.
Sections 107 to 112 of CTN do not deny nor adopt the economic interpretation since the teleological
criteria derives from the General Theory of Law and is independent from its express adoption by law,
as occurs in other fields of Law.
Keywords: Tax law; Economic interpretation; Surpass of the original version; Teleological
interpretation; Fight against tax elusion; Adoption by the antiformalist jurists’ opinion of tax law;
Analysis of interpretation and integration of CTN.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
2 SURGIMENTO, DESENVOLVIMENTO E SIGNIFICADO ATUAL
DA INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO DIREITO TRIBUTÁRIO ..
13
2.1 Contexto histórico do surgimento da interpretação econômica ............... 13
2.2 A versão original da interpretação econômica. Evolução da legislação e
da jurisprudência alemãs ................................................................................
15
2.3 A versão equilibrada da interpretação econômica do Direito Tributário . 27
2.3.1 A teoria de Ezio Vanoni ................................................................................... 29
2.3.2 Antonio Berliri. Crítica à versão original da interpretação econômica ........ 38
2.3.3 Albert Hensel. Oberservações de Andrés Báez Moreno, Maria Luisa
González-Cuéllar Serrano e Enrique Ortiz Calle ...........................................
44
2.3.4 A posição de Achille Donato Giannini ............................................................ 47
2.3.5 Andrea Amatucci .............................................................................................. 49
2.3.6 Heinrich Beisse ................................................................................................ 50
2.3.7 Klaus Tipke e Joachim Lang ........................................................................... 52
2.3.8 Carlos Palao Taboada ...................................................................................... 56
2.3.9 Síntese da versão equilibrada da interpretação econômica ........................... 62
2.4 Crítica da atual corrente formalista à interpretação econômica do
Direito Tributário ............................................................................................
63
2.5 Síntese conclusiva ............................................................................................ 67
3 A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA E A DOUTRINA BRASILEIRA
DO DIREITO TRIBUTÁRIO ........................................................................
71
3.1 A posição dos primeiros estudiosos do Direito Tributário no Brasil .......... 74
3.2 A doutrina formalista do Direito Tributário ................................................ 83
3.3 A teoria antiformalista do Direito Tributário .............................................. 90
3.3.1 Marco Aurélio Greco ........................................................................................ 90
3.3.2 Ricardo Lobo Torres ........................................................................................ 108
3.3.3 Marciano Seabra de Godoi .............................................................................. 112
3.3.4 Johnson Barbosa Nogueira ............................................................................. 120
3.4 Síntese conclusiva ............................................................................................ 126
4 A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA E O CÓDIGO TRIBUTÁRIO
NACIONAL .....................................................................................................
128
4.1 A interpretação econômica no Anteprojeto e no Projeto do CTN .............. 128
4.2 A interpretação econômica e o CTN .............................................................. 133
4.2.1 Art. 107 do CTN ................................................................................................ 133
4.2.2 Art. 108 do CTN ................................................................................................ 134
4.2.2.1 Analogia ............................................................................................................ 138
4.2.2.2 Princípios gerais de Direito Tributário ......................................................... 143
4.2.2.3 Princípios gerais de Direito Público .............................................................. 144
4.2.2.4 Equidade .......................................................................................................... 145
4.2.3 Art. 109 do CTN ................................................................................................ 147
4.2.4 Art. 110 do CTN ................................................................................................ 154
4.2.5 Art. 111 do CTN ................................................................................................ 156
4.2.6 Art. 112 do CTN ................................................................................................ 158
4.3 Síntese conclusiva ........................................................................................... 160
5 CONCLUSÃO ................................................................................................. 162
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 166
10
1 INTRODUÇÃO
O objeto do nosso trabalho é o estudo da teoria da interpretação econômica do Direito
Tributário, desde o seu surgimento no início do século passado até a sua conformação atual
nas doutrinas estrangeira e brasileira. Interessa-nos investigar em que consiste o atual perfil da
interpretação econômica, bem como sua eventual presença no Código Tributário Nacional
(CTN), visando a apontar o real significado desse método hermenêutico e sua utilidade
prática.
A interpretação econômica é frequentemente associada à exigência de tributo por meio
da integração analógica da legislação tributária, a qual é vedada pelo art. 108, §1° do Código
Tributário Nacional.
Por outro lado, a interpretação econômica também é aplicada para beneficiar o
contribuinte. Mas nessas hipóteses a interpretação econômica costuma ser chamada de
interpretação teleológica. É como se a interpretação econômica fosse uma forma espúria e
maléfica de interpretação das regras e princípios tributários e a interpretação teleológica fosse
um método hermenêutico legítimo.
Ou seja, a interpretação econômica tem sido enxergada de duas maneiras: como
interpretação analógica, com um viés negativo, e como interpretação teleológica, com um viés
positivo.
Para a doutrina brasileira majoritária do Direito Tributário, a interpretação econômica
é nociva ao princípio da legalidade tributária e favorece os interesses arrecadatórios do
Estado, em ofensa ao Estado de Direito. A interpretação econômica é comumente associada
ao totalitarismo e a um retrocesso na direção do arbítrio, da truculência e da perda das
liberdades. Essa parte da doutrina, representada pelas obras de Becker (2004), Xavier (2001),
Carvalho (1975) e Martins (1998), continua vendo o tributo como algo a ser meramente
“tolerado” e que não traz consigo qualquer carga de justiça. A norma tributária, segundo esse
entendimento, é restritiva de direitos e por isso deve ser interpretada de forma literal (como se
a interpretação literal fosse necessariamente restritiva).
Outra parte da doutrina entende que o princípio da legalidade não é absoluto e que
também devem ser considerados os princípios da capacidade contributiva e da isonomia. São
expoentes dessa doutrina as obras de Sousa (1975a), Falcão (1987), Ataliba (1975), Nogueira
(1974), Baleeiro (1975), Dória (1971), Guimarães (1947), Barros (1975), Greco (2004),
11
Torres (2000) e Godoi (2005). Essa corrente doutrinária reconhece que a interpretação
jurídica é uma tarefa que não se pode cumprir sem uma considerável “carga criativa” e sem
que frequentemente entrem em ação determinadas convicções do intérprete sobre “o que é e
quais são” os fundamentos do Direito.
Não é nosso objetivo o estudo específico da elisão tributária e seu combate. A doutrina
tradicional tem estudado a interpretação econômica principalmente como forma de combate
aos planejamentos tributários. Sobre esse assunto há vasta produção doutrinária e nosso
estudo visa a outra abordagem da interpretação econômica no Direito Tributário.
Pretendemos investigar, portanto, a partir dos aspectos histórico e dogmático, se a
interpretação econômica é contrária ao princípio da legalidade ou a outras normas e princípios
constitucionais; se é sempre favorável ao Estado; se é um método específico do Direito
Tributário; se foi incorporada ao CTN; e se é útil para a exata compreensão da norma
tributária.
No exame histórico do Direito Comparado, estudamos a instituição da interpretação
econômica no Direito Tributário alemão (§4° do Código Tributário alemão de 1919). O
estudo das raízes alemãs da interpretação econômica é importante porque um dos motivos de
seu repúdio pelos tributaristas brasileiros é seu suposto fundamento nazista.
A abordagem história também compreende o estudo dos dispositivos do Anteprojeto e
do Projeto do Código Tributário Nacional que pretendiam incorporar a interpretação
econômica. Apesar da exclusão desses dispositivos do texto final aprovado em 1966 (Lei
5.172), é necessário o estudo das normas de interpretação e integração da legislação tributária,
previstas nos arts. 107 a 112 do CTN, visando a identificar se algum desses dispositivos
abrange a interpretação econômica. Também estudamos a necessidade ou não de previsão
legal da interpretação econômica como critério de interpretação teleológica.
No exame dogmático, estudamos, a partir do Direito Tributário alemão, o conceito e a
finalidade da interpretação econômica na Itália, na Espanha e principalmente no Brasil.
O estudo do Direito Comparado compreendeu as obras clássicas de Vanoni (1932),
Berliri (1964), Hensel (2005), Giannini (1956), Amatucci (1994), Beisse (1984), Tipke e
Lang (2008) e Palao Taboada (2009). As obras desses autores, apesar de muito citadas pela
doutrina brasileira, são pouco aprofundadas e, a nosso ver, merecem um exame mais acurado.
Essas obras refletem o consenso de que a norma tributária não demanda nenhum critério
especial de interpretação, de que não são admissíveis quaisquer métodos a priori de
interpretação e de que é tarefa do intérprete, em cada caso concreto, resolver o problema do
12
significado dos termos de Direito Privado utilizados pelo Direito Tributário. A interpretação
econômica é tida como espécie de interpretação teleológica ou como forma de combate à
elusão fiscal.
No Direito Tributário brasileiro, nossa pesquisa abrange a doutrina formalista, que
repudia a interpretação econômica, e a doutrina antiformalista, que aceita a interpretação
econômica como critério de interpretação teleológica ou como forma de combate à elusão
fiscal e reconhece sua indispensabilidade para a correta aplicação do Direito Tributário. Nosso
estudo engloba, assim, a posição dos primeiros tributaristas brasileiros, pelas obras de Sousa
(1975a), Falcão (1987), Ataliba (1975), Nogueira (1974), Baleeiro (1975), Dória (1971),
Guimarães (1947), Barros (1975) e Canto (1967), e a posição dos tributaristas
contemporâneos, pelas obras de Becker (2004), Xavier (2001), Carvalho (1975), Martins
(1998), Greco (2004), Torres (2000) e Godoi (2005).
Ao final, pretendemos concluir se ainda faz sentido a associação da interpretação
econômica aos critérios de interpretação favoráveis ao fisco e se o perfil atual dessa teoria é
ou não admitido pelo Direito Tributário brasileiro.
13
2 SURGIMENTO, DESENVOLVIMENTO E SIGNIFICADO ATUAL DA
INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA DO DIREITO TRIBUTÁRIO
2.1 Contexto Histórico do Surgimento da Interpretação Econômica
Durante muitos séculos, o tributo significou uma agressão à liberdade e ao patrimônio
do contribuinte e uma degradação da cidadania. Conforme Marciano Seabra de Godoi (2005,
p. 112), até o estabelecimento do Estado Fiscal, no fim do século XVIII, o tributo era
considerado excepcional em dois sentidos: no sentido de que não era a forma comum e
ordinária de ingresso e financiamento público, e no sentido de que era percebido como uma
exceção à regra de que a norma jurídica se inspira em princípios gerais tidos como justos na
consciência coletiva de um povo, e não em puras razões de conveniência dos governantes
(VANONI, 1932, p. 29-30).
No século XIX, já em pleno Estado Fiscal, ainda prevalecia a opinião doutrinária e
jurisprudencial de que, dado o caráter odioso do tributo, as normas de incidência tributária
deveriam ser interpretadas de maneira literal (restritiva) e, na dúvida, sempre a favor do
contribuinte (in dubio contra fiscum). O caráter odioso do tributo justificava, por exemplo, o
famoso adágio de Modestino1: “Entendo que não cometeria qualquer falta quem, em questões
duvidosas, respondesse categoricamente contra o fisco” (FALCÃO, 1987, p. 25).
A partir do século XX (passagem do Estado Liberal para o Estado Social), quando o
tributo passou a ser visto como a forma mais democrática e igualitária para se financiarem as
atividades e os gastos públicos capazes de tornar efetivos os direitos individuais e sócio-
econômicos dos cidadãos (NABAIS, 2005, p. 9-39), o Direito Tributário perdeu a pecha de
1 Conforme Rubens Gomes de Sousa (1975, p. 77-78), o adágio de Modestino, jurisconsulto romano, chegou a ser introduzido como preceito legal no Digesto, codificação baseada nos pareceres de juristas, aprovado no ano 533 da era cristã pelo imperador Justiniano. Esse princípio, contudo, nunca foi pacificamente aceito e a regra inversa acabou prevalecendo durante a Idade Média e todo o período do absolutismo real, ou seja, desde o século XVI até a Revolução Francesa de 1789. Notáveis exceções durante esse longo período histórico, no sentido da legalidade dos tributos, ocorreram na Inglaterra: a Magna Carta de 1215, de João Sem Terra, que instituiu a votação dos tributos pelo parlamento, e a Declaração dos Direitos de 1688, do Rei Guilherme I, que instituiu o controle parlamentar do orçamento e das despesas públicas.
14
excepcional e passou a ser considerado um direito comum, que não demanda métodos
especiais de interpretação2.
Ezio Vanoni (1932, p. 140), integrante do movimento renovador do Direito Tributário
iniciado na Itália na década de trinta do século passado visando a combater o axioma da
interpretação literal e o formalismo da Jurisprudência dos Conceitos3, alertava que jamais
poderia ser odioso aquilo que se revela necessário à própria existência da comunidade
jurídica. Vanoni (1932, p. 48) cita uma antiga sentença da Corte de Cassação de Torino, que,
segundo ele, não teve seu espírito devidamente acatado pela jurisprudência. Conforme essa
sentença, os tributos livremente votados e conformes à necessidade do Estado representam a
ordem, a liberdade, a justiça, a segurança, a beneficência, o exército, a marinha, a
independência e a honra da pátria. Falar em odiosidade do tributo em si significa desconhecer
o vínculo indissolúvel entre a existência do Estado e a tributação.
Foi no contexto de combate à teoria da interpretação formalista do Direito Tributário4,
e sob forte influência da Jurisprudência dos Interesses, que se desenvolveu a presunção
absoluta de que o legislador tributário nunca define o fato gerador dos tributos em função de
determinada forma jurídica.
Essa ideia foi desenvolvida na Itália pela Escola da Interpretação Funcional do Direito
Tributário, capitaneada por Benvenuto Griziotti e Dino Jarach (1996). Conforme José
Osvaldo Casás (2004, p. 42), o método funcional visa a desvendar a vontade do legislador
mediante a descoberta do porquê da norma e da causa da imposição tributária, investigando os
elementos constitutivos de cada ingresso a partir de uma visão integral do fenômeno
financeiro, por entender que sua compreensão somente será plenamente alcançada mediante
uma síntese dialética dos elementos políticos, econômicos, jurídicos e técnicos.
2 Na Europa, o Direito Tributário, separado do Direito Administrativo, do Direito Financeiro e da Ciência das
Finanças, começou a ser estudado e sistematizado pela doutrina somente nas primeiras décadas do século XX, principalmente na Alemanha e na Itália.
3 A Jurisprudência dos Conceitos baseava-se em uma espécie de pirâmide de conceitos jurídicos, organicamente ligados uns aos outros. Conforme José Maria Arruda de Andrade (2006, p. 48-51), do ponto de vista metodológico, os principais pontos da Jurisprudência dos Conceitos são: (i) a teoria da subsunção, (ii) o dogma da plenitude do ordenamento e (iii) a interpretação objetiva. O direito era tido como um sistema completo, que possibilitava a formação de um conceito por meio de operações lógico-dedutivas a partir de outros conceitos formais já elaborados. Diante da completude do ordenamento, a interpretação (subsunção) sempre seria possível, sem a necessidade de um papel mais criativo do intérprete, tendo em vista o arsenal lógico que permitiria, mesmo diante da lacuna, a solução de um caso apresentado.
4 Vanoni (1932, p. 183) alerta que a função do intérprete, na Jurisprudência dos Conceitos, foi assemelhada por alguns à do matemático que resolve um problema da sua ciência. Os dispositivos da lei seriam como teoremas, cujas relações recíprocas devem ser demonstradas e de que importa saber retirar, por vias estritamente lógicas, as competentes deduções. Os limites da atividade interpretativa, portanto, seriam fixadas pelo espírito que informou a lei no momento do seu nascimento, e a atividade do intérprete deve orientar-se no sentido da reconstrução daquele espírito.
15
Relata Sáinz de Bujanda (1966, apud GODOI, 2005, p. 90) que, segundo Griziotti, do
mesmo modo que no contrato de compra e venda a causa é a correspondência entre o bem que
se transfere ao comprador e a quantia paga por este ao vendedor, a causa do tributo conforme
a tese de Griziotti seria a correspondência entre o interesse dos particulares na realização dos
serviços públicos e a obrigação dos mesmos particulares em transferir ao fisco parte de seu
patrimônio. No caso das taxas essa correspondência é direta, e no caso dos impostos a
capacidade contributiva constitui o indício da existência do interesse do particular na
prestação dos serviços públicos. Ainda segundo a teoria de Griziotti, na visão de Sáinz de
Bujanda (1966, apud GODOI, 2005, p. 90) mesmo que a obrigação tributária seja estabelecida
abstratamente na lei, seu nascimento concreto supõe que em cada caso concorra o elemento
causal (capacidade contributiva), pois do contrário ocorreria um enriquecimento sem causa
vedado pelo Direito. Por essa razão, essa teoria, em sua pureza conceitual, não visa apenas à
maximização da arrecadação fiscal, pois nos casos em que o contribuinte praticar o fato
gerador, mas não demonstrar uma efetiva capacidade contributiva, o imposto não poderá ser
exigido pelo fisco. Nos dizeres de Antônio Roberto Sampaio Dória (1971, p. 57), sendo a
capacidade contributiva a diretriz orientadora e justificadora das imposições fiscais, na visão
de Griziotti, tanto é injusta a tributação sem causa jurídica como a falta de tributação diante da
causa (capacidade contributiva) que a justifica.
Com base em Jarach (1996), Godoi (2005, p. 89) destaca que segundo os teóricos da
Escola da Interpretação Funcional, a realidade empírica ou a substância econômica é tudo no
Direito Tributário, pois o pressuposto de fato do tributo é necessariamente “uma relação
econômica privada”, cuja existência “é por si mesma suficiente para determinar o nascimento
da obrigação tributária, qualquer que seja a disciplina jurídica do direito civil”.
2.2 A versão original da interpretação econômica. Evolução da legislação e da
jurisprudência alemãs
Na Alemanha, a presunção de que o legislador tributário sempre define o fato gerador
dos tributos com base na substância econômica subjacente aos negócios jurídicos praticados
pelos contribuintes surgiu atrelada à Escola da Interpretação Econômica do Direito
16
Tributário5, capitaneada por Enno Becker, que foi juiz do Superior Tribunal Administrativo
de Oldenburg no período de 1906 a 1918.
Convidado pelo Governo alemão para elaborar o anteprojeto do Código Tributário,
Becker partiu de sua experiência com a legislação e a jurisprudência dos Estados-membros
para formular as regras que, na sua visão, o Estado federal alemão deveria adotar após a
Primeira Guerra Mundial.
Em 1919, quando Becker elaborou o anteprojeto do Código Tributário, a Alemanha
vivia uma situação econômica que exigia o combate à evasão das receitas públicas. Para
Becker, era imperioso dotar a Alemanha de instrumentos legais adequados para coibir a
prática dos contribuintes de arranjarem seus negócios de forma a evitar a ocorrência do fato
gerador. Os contribuintes mais abastados escapavam da pressão fiscal explorando as lacunas
da legislação tributária e as decisões dos litígios eram-lhes sempre favoráveis. Os tribunais,
apegados à teoria da interpretação formalista do Direito Tributário, interpretavam as leis
fiscais e os negócios jurídicos segundo as normas de hermenêutica próprias do Direito
Privado. Entendiam que o combate à evasão não era assunto do Judiciário, e sim tarefa do
legislador.
Para mudar a orientação dos tribunais, julgou-se que era necessário que o legislador
autorizasse de modo expresso que a lei fosse interpretada segundo o seu objetivo, e não
segundo o que vem expresso no seu texto. Era necessária a edição de uma norma que
5 A teoria da interpretação econômica do Direito Tributário não se confunde com o movimento da análise
econômica do direito, desenvolvida na Universidade de Chicago a partir de 1940. Conforme Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira (2009, p. 8), a análise econômica do direito é mais um movimento do que uma escola única e trata da aplicação de conceitos e métodos não jurídicos no sentido de entender a função do direito e das instituições jurídicas. Ou seja, o movimento da análise econômica do direito consiste na utilização da teoria econômica e métodos econométricos para o exame do direito e das instituições jurídicas (p. 14). As principais características desse movimento são (i) rejeição da autonomia do direito perante a realidade social e econômica; (ii) utilização de métodos de outras áreas do conhecimento, tais como economia e filosofia; (iii) crítica à interpretação jurídica como interpretação conforme precedentes ou o direito, sem referência ao contexto econômico e social (p. 13). Outra vertente da análise econômica pretende não apenas descrever o direito com conceitos econômicos, mas também encontrar elementos econômicos que participam da regra de formação da teoria jurídica. Desse modo, os fundamentos da eficácia jurídica e mesmo da validade do sistema jurídico deveriam ser analisados tomando em consideração valores econômicos, tais como eficiência, custos de transação, etc. (p. 15). Richard Posner é considerado um dos estudiosos da análise econômica do direito mais produtivos e influentes no direito contemporâneo (p. 47).
17
autorizasse a interpretação teleológica da lei tributária, de forma a superar a teoria da
interpretação formalista do Direito Tributário e a Jurisprudência dos Conceitos6.
Naquele contexto, também era necessária a edição de uma norma que concretizasse o
princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 134 da Constituição de Weimar, que
determinava que “todos os cidadãos, sem distinção, na proporção de seus haveres,
contribuirão para todos os encargos públicos, conforme dispuserem as leis”.
Conforme Machado (1984, p. 9), Becker apoiou-se na doutrina de Ihering, para quem
o fim é o criador de todo Direito, para refletir no Código Tributário de 1919 o conteúdo da
Jurisprudência dos Interesses7. Em seus comentários ao Código Tributário, na última edição
de 1930, Becker [193?] afirmou, conforme Machado (1984, p. 9), que a previsão legal da
interpretação teleológica era uma vitória de Ihering contra seus opositores.
A teoria da interpretação econômica do Direito Tributário foi refletida no anteprojeto
de Becker por meio de dois preceitos que revolucionaram o Direito Tributário:
§4. Na interpretação das leis tributárias devem ser considerados a sua finalidade, o seu significado econômico e o desenvolvimento das circunstâncias. §5. A obrigação tributária não pode ser eludida ou reduzida mediante o emprego abusivo de formas e formulações de direito civil. Haverá abuso: 1. quando, nos casos em que a lei submete a um imposto fenômenos, fatos e relações econômicos, as partes contratantes escolhem formas ou negócios inusitados para eludir o imposto; e 2. quando, segundo as circunstâncias e a forma como é ou deve ser processado, obtêm as partes contratantes, em substância, o mesmo resultado econômico que seria obtido, se fosse escolhida a forma jurídica correspondente aos fenômenos, fatos e relações econômicos.
6 Conforme Andrade (2006, p. 49), o ponto primordial na análise da Jurisprudência dos Interesses é o
deslocamento de uma abordagem puramente teórica para uma assumidamente prática, cuja intenção primeira seria possibilitar a construção de um pensamento voltado à decisão jurídica concreta. Do ponto de vista do método jurídico, há a transição de uma hermenêutica de intenção formalista para uma de caráter finalista. A pesquisa pela intenção contida no texto, por meio de operações de cunho literal e lógico, é alterada para uma construção interpretativa baseada em considerações que satisfaçam os interesses da vida em jogo no conflito. Busca-se reduzir o espaço estabelecido pelo formalismo entre a realidade social e o direito. A decisão concreta (e não o ordenamento jurídico) passa a ser o ponto principal da ciência jurídica. A Jurisprudência dos Interesses não busca sair do quadro geral da norma (obediência e vinculação à lei), e sim o atendimento da justiça identificado com a adequação às exigências da vida (adequação material). A Jurisprudência dos Interesses combate tanto a Jurisprudência dos Conceitos quanto a Escola da Livre Investigação do Direito.
7 Conforme Andrade (2006, p. 48), o impulso inicial da Jurisprudência dos Interesses se deve a uma segunda etapa da obra de Rudolf von Ihering (1818-1892). O jurista alemão, após se destacar no desenvolvimento da Jurisprudência dos Conceitos, abandona-a paulatinamente, em prol de uma jurisprudência que pode ser classificada como pragmática e teleológica.
18
Justamente por representarem uma reviravolta quanto à tradição formalista e
conceitualista8 da jurisprudência e da doutrina alemãs da época, os parágrafos 4º e 5º não
foram facilmente aprovados no Parlamento. Alguns membros da Comissão Parlamentar
temiam que esses dispositivos implicassem a adoção dos princípios da Escola da Livre
Investigação do Direito9. Foi preciso, como relata Vanoni (1932, p. 202), que Becker
declarasse expressamente que o objetivo dos referidos dispositivos não era nem colocar o juiz
acima da lei, nem acolher o princípio do Código Civil suíço que autorizava o juiz a substituir-
se ao legislador em face das lacunas da lei:
A norma proposta visa tão somente impor ao juiz, com a máxima evidência, o dever de desenvolver completamente o pensamento jurídico contido no Direito Tributário, e, assim fazendo, levar em conta os fins das leis tributárias e o seu alcance econômico, assim como as formas de que se revistam, no momento, as situações da vida prática. Desse modo se poderá conseguir aquilo que desejava um dos nossos grandes juristas (Bolze), isto é, que a sentença seja justa e sensata. (BECKER, 1924, apud VANONI, 1932, p. 202).
O intento de Becker era assegurar a autonomia do Direito Tributário em relação ao
Direito Privado, outorgando ao aplicador da lei a liberdade de interpretá-la, juntamente com
os negócios envolvidos, não em função dos aspectos formais destes, mas tendo em vista
unicamente o seu resultado econômico.
8 Conforme Andrade (2006, p. 51), diante da incapacidade de previsão de solução e prescrição de todos os fatos
jurídicos da sociedade, Philipp Heck apresenta três possibilidades de tratamento das lacunas (propositais ou não): (i) a livre consideração por parte do intérprete, (ii) a limitação à subsunção e (iii) a complementação coerente da norma. No primeiro caso, há a solução da lacuna por meio da criação de uma norma jurídica individual plenamente livre, o que gera um problema de segurança jurídica e ausência de uniformidade. Trata-se do método proposto pela Escola da Livre Investigação do Direito. No segundo caso, em nome da segurança jurídica, nega-se a lacuna, classificando-a como espaço ajurídico, o que acarreta a negação de uma pretensão por conta da ausência de um preceito legal determinado. No terceiro caso, que conta com o aval de Heck, tem-se o que ele designa como complementação insuficiente da norma. Ao fazê-lo, o intérprete deve abster-se de utilizar suas próprias valorações, privilegiando, ao contrário, aquelas decorrentes dos ideais e interesses vitais presentes na norma, o que conferiria maior segurança jurídica à estratégia adotada.
9 Vanoni (1932, p. 185) destaca que a reação contra a doutrina tradicional determinou, no princípio do século XX, uma corrente que adquiriu força especialmente na França e na Alemanha e que afirmou que a função do intérprete é a de recolher o direito diretamente da consciência jurídica popular. Esta teoria, conhecida como método de livre investigação do direito, parte da constatação de que o direito se modifica e se transforma continuamente, de modo a ser impossível que a lei escrita possa seguir a sua rápida evolução. O direito decorre espontaneamente das necessidades da vida, do choque e das combinações dos diferentes interesses e não pode ser cristalizado e delimitado pela vontade do legislador. O intérprete deve recolher o direito tal como surge, na consciência jurídica, do contraste dos diversos interesses que defrontam na vida social; deve, portanto, estudar as relações da vida e as correntes que a dominam, para delas extrair o direito, elaborá-lo e fazer a sua aplicação ao caso concreto. Esse método, alerta Vanoni (1932, p. 185), acaba por admitir a possibilidade de uma norma de conduta vir a ter efeito de regular obrigatoriamente as relações da vida independente de qualquer reconhecimento e de qualquer elaboração segundo as formas previstas na Constituição para a elaboração da lei. Basta, para determinar a regra de conduta, a livre pesquisa do intérprete, que a extrai das condições morais, políticas, sociais, econômicas, dominantes em um dado ambiente em uma época dada. Desta maneira, qualquer distinção entre a função do legislador e a função do intérprete acaba por desaparecer e a norma jurídica perde o requisito da certeza, que é o pressuposto essencial de uma vida juridicamente regrada.
19
Para alcançar esse objetivo, o intérprete não havia de circunscrever o seu trabalho à
busca do significado econômico da lei, mas estendê-lo também na pesquisa do sentido
econômico dos fatos ou negócios jurídicos, sem os considerar como categorias do Direito,
mas como operações do mundo da economia. O resultado final do negócio é que daria ao
intérprete a chave para decidir, no caso concreto, se era devido, ou não, o tributo.
Ainda que não houvesse recebido a adesão de toda a doutrina10, a interpretação
econômica firmou-se no Direito Tributário na década de vinte por força da autoridade de
Becker como juiz da Corte Suprema Financeira do Reich, onde aplicou largamente a sua
teoria.
Segundo o alemão Albert Hensel (2005, p. 52), nenhuma disposição do Código
Tributário foi tão invocada pela Corte Suprema Financeira do Reich como o §4º.
De fato, não obstante as declarações de Becker perante o Parlamento, antes referidas,
foi adotada pela jurisprudência, particularmente pela 4ª Seção da Corte Suprema Financeira
do Reich, presidida pelo próprio Becker, uma corrente que, na aplicação da norma aos casos
concretos, concedeu máxima liberdade ao julgador.
Assim, o que se temia de arbitrário e nefasto à segurança jurídica realmente aconteceu.
A Corte Suprema Financeira do Reich modificou a redação de textos legais (restringindo-os,
ampliando-os ou subvertendo-lhes o sentido), completou preceitos legais que considerou
omissos, interpretou textos sem considerar a vontade evidente da lei e proferiu decisões que
criavam obrigações ou isenções tributárias por meio da ampliação analógica do pressuposto
de fato.
Um dos casos concretos citados por Vanoni (1932, p. 203) para demonstrar o que foi
na prática a aplicação da interpretação econômica no primeiro decênio de vigência do Código
Tributário alemão consiste na discussão, durante o período de inflação, quanto à maneira de
se avaliar o objeto tributável para os efeitos do imposto sobre as transmissões imobiliárias, o
qual, de acordo com a lei, deveria se basear no valor atualizado do imóvel transmitido. A
Corte Suprema Financeira do Reich, em face da situação caótica provocada pela inflação, não
se limitou a indagar em cada caso como se poderia determinar, para os efeitos do imposto, o
valor a ser atribuído ao imóvel transmitido, mas ditou autênticas regras para a avaliação dos
bens imóveis em abstrato, levando em conta os índices oficiais do custo de vida e o valor dos
10 Conforme Machado (1984, p. 12), Kurt Ball pretendia construir a teoria de um sistema autônomo do Direito
Tributário, tentando demonstrar que este, em razão do fortalecimento do Estado depois da Primeira Guerra Mundial, então muito necessitado de recursos, se impôs como ramo jurídico independente.
20
imóveis antes da guerra, como sendo a época mais próxima da qual se verificara uma relativa
estabilidade.
Vanoni (1932, p. 205) também cita o exemplo do imposto de vendas incidente sobre a
venda de pescado apanhado por pescadores alemães em águas extraterritoriais e importado
para o território nacional. A legislação então vigente isentava do imposto as aquisições de
mercadorias no estrangeiro e a primeira venda, no país, de mercadorias produzidas no
estrangeiro, quando a venda não fosse feita no comércio a varejo. Passou-se a questionar se as
vendas de pescado apanhado em águas extraterritoriais, ou seja, no estrangeiro, e vendido na
Alemanha a atacadistas ou a empresas que o submetessem a industrialização, estavam ou não
sujeitas ao imposto de vendas. A lei parecia indicar que não, mas a jurisprudência entendeu
que sim, pelo menos quanto ao pescado capturado por pescadores alemães em águas
extraterritoriais. Entendeu o Tribunal que como a venda do pescado apanhado em águas
territoriais estava sujeita ao imposto, declarar isentas as vendas de pescado apanhado em
águas extraterritoriais significava agravar a situação dos pequenos pescadores, que são os que
não se afastam da costa, em confronto com as grandes empresas de pesca, que, por disporem
de melhor equipamento técnico, podem operar fora da costa. Com base em tal raciocínio, o
Tribunal foi levado, contra o teor literal inequívoco da lei, a decidir pela incidência do
imposto sobre as vendas de pescado apanhado por pescadores alemães em águas
extraterritoriais, aduzindo ainda a dificuldade, senão a impossibilidade, de se controlar se a
pesca fora ou não realizada dentro dos limites territoriais.
Essa decisão provocou bastante perplexidade, chegando-se a questionar se de fato
correspondia à situação dos fatos da vida a que o Tribunal afirmava submeter-se ao se afastar
da letra da lei. Enquanto a venda de peixe apanhado por empresas nacionais em águas
extraterritoriais era tributada, a venda de peixe capturado em águas extraterritoriais por
pescadores estrangeiros era isenta do imposto, porque neste caso ocorria a hipótese típica da
mercadoria produzida no estrangeiro e importada para a Alemanha, que não estava sujeita ao
imposto de vendas. Chegou-se dessa forma a uma violação do princípio da igualdade
tributária, ainda mais prejudicial do que aquela que inspirara o raciocínio do Tribunal,
porquanto, traduzindo-se em um benefício a favor de empresas estrangeiras, representava em
última análise um prejuízo para a economia nacional.
Por força da reação política e doutrinária provocada pela jurisprudência, foi editada
nova lei visando a evitar a agressão ao princípio da igualdade em prejuízo dos pescadores em
águas territoriais, que tanto impressionara o Tribunal. A nova redação da lei colocou em
21
idêntica situação os pescadores alemães que operavam em águas territoriais e aqueles que
operavam fora destas, declarando uns e outros isentos do imposto.
Esses dois exemplos de Vanoni (1932, p. 202) pertencem a categorias distintas de
julgados, nos quais o afastamento da letra da lei é justificado por motivos de índole diferente.
Em uma primeira série de casos, foram as necessidades oriundas das convulsões econômicas
do pós-guerra que levaram o juiz a substituir o legislador, materialmente impossibilitado de
enfrentar a rápida evolução das relações econômicas e as suas manifestações através de
modalidades sempre novas e imprevistas. Em tais casos, o afastamento da letra da lei poderia
justificar-se, historicamente, pelo caráter extraordinário das contingências. A atitude da
doutrina em face de semelhante jurisprudência foi substancialmente definida por Hensel
(1925, apud VANONI, 1932, p. 205), que, embora formulando do ponto de vista teórico as
maiores reservas, concordou em lhe reconhecer uma necessidade prática.
O segundo exemplo de Vanoni (1932, p. 202) pertence aos casos da segunda categoria
de julgados, a respeito dos quais se procurou justificar o afastamento da letra da lei na
necessidade, em período ainda incipiente e incerto do Direito Tributário, de se atribuir ao juiz
uma função antecipatória da atividade legislativa. Semelhante justificativa foi proposta por
Becker, que embora tivesse mais de uma vez se declarado contrário à aceitação dos
postulados da Escola da Livre Investigação do Direito, não hesitou em declarar:
ameaça-nos o perigo de que, num período no qual o Direito Tributário se encontre em suas primícias, num período em que tudo está em movimento, em que concepções profundamente enraizadas caem por terra, e outras novas se impõem pela força... uma profunda delimitação de conceitos, de modo algum claramente definidos, seja por demais prematura, e venha a produzir a paralisia do Direito Tributário. Por isso considero natural e justo que as leis tributárias, quando não se trate de definir o alcance das palavras usadas, limitem-se ao indispensável: tudo quanto há além disso é perigoso. Onde tais leis procurem fixar conceitos, dever-se-ão limitar, via de regra, às linhas gerais, aos princípios orientadores, aos pontos de referência. [...] compete à Corte Suprema Financeira completar as linhas mestras com base nos casos práticos – únicos capazes de indicar o caminho a seguir – e dar à prática administrativa uma diretriz segura. Compete à lei tornar possível, com largueza de vistas, este exame pela Corte Suprema... Por sua vez, compete ao Ministro das Finanças, com o concurso, nos casos previstos, do Reichsrat, e é matéria da competência da Corte Suprema Financeira completar o direito contido na lei, mal formulado em razão da urgência da necessidade, e às vezes deixado expressamente incompleto. Neste trabalho comum o posto predominante compete à Corte Suprema. Cabe-lhe caldear e temperar o Direito Tributário ao fogo da prática na aplicação de cada dispositivo de lei, cabe-lhe desenvolver completamente o pensamento oculto na lei, juris civilis ad juvandi gratia, cabe-lhe preencher as lacunas da lei, juris civilis supplendi gratia, cabe-lhe ainda, se bem que cum granum salis, dentro de prudentes limites, corrigir-lhes os erros, juris civilis corrigendi gratia (BECKER, 1924, apud VANONI, 1932, p. 206) – grifamos.
22
Vanoni (1932, p. 207) concorda com Becker quanto ao perigo das minudentes
definições legislativas, perigo mais grave enquanto o Direito Tributário, como ramo
autônomo, ainda estava em processo de formação e de sistematização. Mas Vanoni (1932)
não concorda em situar a função do juiz no mesmo plano do Ministro das Finanças, ao qual
era conferido o poder de emitir verdadeiras normas jurídicas complementares da lei. Para
Vanoni (1932, p. 207), Becker reconhece implicitamente ao juiz a faculdade de se substituir
ao legislador, o que, para Vanoni (1932), é inadmissível.
As concepções de Becker, conforme Vanoni (1932, p. 208), permaneceram isoladas na
doutrina alemã. Mesmo a jurisprudência, superada a fase da desordem monetária, abandonou
muitas das posições de vanguarda que haviam dado lugar a críticas e reservas. A doutrina
alemã dominante vê no referido §4º um dispositivo que contribuiu para a evolução do Direito
Tributário, mas exclui totalmente a admissibilidade de uma interpretação que chegue a
substituir o legislador pelo aplicador, na formulação da norma jurídica.
Conforme Godoi (2005, p. 101), a não ser na Alemanha das primeiras décadas depois
do Código Tributário de 1919, em nenhuma outra parte se implantou e se aplicou, pelo menos
em seu teor puro e original, o critério da interpretação econômica segundo o qual, na
formulação de Jarach (1996, p. 145), o legislador concede ao intérprete o poder geral de
investigar a relação econômica que constitui o pressuposto da obrigação tributária com
independência das formas jurídicas mencionadas pela lei11.
O Código Tributário alemão de 1919 sofreu uma reforma em 1931, quando o §4º
passou a ser o §9º, e o §5º passou a ser o §10. Não houve alteração de conteúdo dessas
normas.
11 O país cujo direito positivo mais se aproximou dos pressupostos teóricos da interpretação econômica, segundo
Godoi (2005, p. 101), é a Argentina, cuja legislação nacional adotou em 1946 duas regras fundamentais a respeito da interpretação da lei tributária e da qualificação dos fatos e atos dos contribuintes, quais sejam, os artigos 1º e 2º da Lei 11.683:
“Art. 1. Na interpretação das disposições desta lei ou das leis tributárias sujeitas ao seu regime, se atenderá ao fim das mesmas e ao seu significado econômico. Somente quando não seja possível pela literalidade ou pelo seu espírito identificar o sentido e o alcance das normas, conceitos e expressões das disposições antes citadas, poder-se-á recorrer a normas, conceitos e expressões do direito privado.
Art. 2. Para determinar a verdadeira natureza do fato gerador se atenderá aos atos, situações e relações econômicas que efetivamente realizem, persigam ou estabeleçam os contribuintes. Quando estes submeterem os atos, situações ou relações a formas ou estruturas jurídicas que não sejam manifestamente as que o direito privado oferece ou autoriza para configurar adequadamente a cabal intenção econômica e efetiva dos contribuintes, se prescindirá na consideração do fato gerador das formas e estruturas jurídicas inadequadas, e se considerará a situação econômica real como enquadrada nas formas ou estruturas que o direito privado lhes permitiria aplicar com as mais adequadas à intenção real dos mesmos.”
23
Em 1934, as regras desses dois parágrafos foram modificadas. A chamada Lei de
Adaptação Tributária12 reproduziu em seu §1º o conteúdo do §4º do Código de 1919, mas
acrescentou que, na interpretação da lei se havia de considerar “a visão do nacional-
socialismo e a opinião do povo”, cláusulas obscuras que foram abandonadas depois da
derrocada do nazismo.
O §10 também foi revogado, passando a vigorar o §6º da Lei de Adaptação Tributária,
que, em vez de reproduzir o conteúdo do Código de 1919, modificado em 1931, definindo o
que seja abuso de forma, adotou uma cláusula geral, deixando então a cargo do intérprete a
tarefa de investigar o que seria abusivo ou não:
§6. 1. A obrigação tributária não pode ser eludida ou reduzida mediante o abuso de formas e formulações de direito civil. 2. Quando há abuso, os impostos deverão ser cobrados como o seriam se adotada a forma jurídica adequada para os fenômenos, fatos e relações econômicos.
O §1º, item II da Lei de Adaptação Tributária, que determinava que na interpretação
da norma tributária fossem consideradas a concepção popular, a finalidade e o significado
econômico da lei tributária e o desenvolvimento das circunstâncias, foi considerado pela
doutrina o fundamento legal para a interpretação econômica do Direito Tributário. Wilhelm
Hartz13 (1993, p. 64-65), contudo, discorda dessa ideia14 e entende que esse dispositivo
exprime uma obviedade, pois não contém nada que não se possa extrair da Teoria Geral do
12 Conforme Ricardo Lobo Torres (2006, p. 15), o §1º da Lei de Adaptação Tributária introduziu as seguintes
modificações ao Código Tributário alemão: o inciso 1 determinava que as leis fiscais deveriam ser interpretadas de acordo com a visão do mundo nacional-socialista; o inciso 2 dispunha que a interpretação da norma tributária deveria considerar a concepção popular, a finalidade, o significado econômico e o desenvolvimento das circunstâncias; o inciso 3 determinava que o mesmo se aplicava à apreciação dos fatos geradores.
13 Hartz foi juiz da Corte Federal de Finanças e seguidor da versão original da interpretação econômica. No seguinte trecho, contudo, Hartz parece refutar condutas simulatórias dos contribuintes (com base na desconsideração de tais atos), em sentido oposto ao da versão original da interpretação econômica: “Na apreciação dos fatos geradores o que importa é compreendê-los em seu real conteúdo econômico, sem atentar para a forma acidental ou arbitrária que as partes lhes atribuíram. Casos com o mesmo apoio econômico recebem o mesmo tratamento tributário. O que pode ser decisivo para a tributação não é o que está no papel, pois o que está escrito com frequência no papel tem objetivo apenas fiscal, mas é, sim, o que as partes efetivamente quiseram e realizaram. Se o contrato e a execução não se compatibilizam, cabe então em geral deixar, como critério do Direito Tributário, que a execução seja o elemento decisivo para a tributação. Estes princípios resultam da necessidade de uma aplicação igualitária das leis tributárias. A carga fiscal não fica dependendo da habilidade ou falta de repressão dos indivíduos”. [...] “Este modo de ver pode realmente levar à eliminação do direito das partes de escolher as formas jurídicas que bem lhes apraz ou até à criação de ficções, em lugar dos fatos reais, que fundamentam a exigência do tributo.” (HARTZ, 1993, p. 96, grifos nossos).
14 “É de se ressaltar que a norma legal não emprega a expressão critério econômico. Ela menciona apenas o ‘significado econômico’ das leis tributárias e este é apenas um dos elementos da interpretação ao lado de muitos outros. Já esta constatação mostra que é inexato caracterizar o conteúdo do §1º, inciso 2, da Lei de Adaptação Tributária, como fonte verbal do critério econômico”.
24
Direito. Poderia, portanto, ser suprimido sem prejuízo para a interpretação do Direito
Tributário.
Ademais, conforme Hartz (1993, p. 65), há um grande conjunto de possíveis aspectos
da interpretação além dos quatro elementos enumerados nesse dispositivo.
Até pouco depois da morte de Becker, em 1940, os conceitos e institutos de Direito
Privado utilizados pela legislação tributária eram interpretados apenas com base em seu
conteúdo econômico. Conforme Machado (1984, p. 15), havia um lema segundo o qual o
intérprete deveria se afastar do Direito Civil: “longe do Código Civil”.
Contudo, após a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, o Direito
Privado, como veículo de fatos tributáveis, passou a ser encarado não mais como simples
forma vazia de significado tributário, mas como elemento capaz de influir na interpretação
dos fatos geradores. O lema então passou a ser o inverso do outro, conforme Machado (1984,
p. 15): “vamos ao Código Civil”.
Durante uma década a interpretação econômica passou por séria crise, que devolveu
ao Direito Privado a posição que havia ocupado no ordenamento jurídico antes do Código
Tributário de 1919. A crise, porém, não aboliu a interpretação econômica do cenário jurídico.
Segundo Machado (1984, p. 15), o Tribunal Federal de Finanças15, que em janeiro de 1962
proclamou o predomínio da estrutura do Direito Civil sobre o Direito Tributário, voltou atrás
e passou a prestigiar a interpretação econômica (não mais na versão original), proferindo
sucessivas decisões nesse sentido em 1964, 1968 e 1969.
Conforme Heinrich Beisse (1984, p. 14), a crise da interpretação econômica resultou
em um novo sentido metodológico. A ocasião estava madura para o reconhecimento de que de
novo se deviam levar em conta, de modo revigorado, as peculiaridades da matéria jurídico-
tributária. O método teleológico forneceu os fundamentos para esse reconhecimento e
possibilitou a aprovação da interpretação econômica a partir de um ponto de vista
criticamente depurado.
A obra pioneira de Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, de 1960, também
teve papel decisivo na mudança da jurisprudência. Conforme Beisse (1984, p. 19), a
metodologia de Larenz se destacou sobretudo pelo seu instrumental claramente definido na
investigação científica, começando com a determinação do âmbito da interpretação, que é
dado pelo “possível sentido da palavra” (limite de interpretação). O Tribunal Federal de
Finanças adotou largamente o critério do “possível sentido da palavra”, sendo que a
15 Conforme Beisse (1984, p. 13), as atividades da Suprema Corte Financeira do Reich se iniciaram-se em 1879. O Tribunal Federal de Finanças foi criado após a Segunda Guerra Mundial, por volta de 1950.
25
metodologia de Larenz, nos dizeres de Beisse (1984, p. 20), possibilitou conceber o critério
econômico como forma de aplicação da metodologia geral da Ciência do Direito, e “encontrar
sobre este plano a almejada ligação com outras partes do ordenamento jurídico”.
A partir dos anos sessenta, portanto, alcançou-se um relativo equilíbrio sob o qual a
interpretação econômica do Direito Tributário se compreende como simples interpretação
teleológica destinada a encontrar o propósito da lei no âmbito dos possíveis sentidos literais
da norma (GODOI, 2005, p. 138). Conforme Victoria Eugenia Combarros Villanueva (1984,
p. 495), a interpretação econômica passou a ser nada mais que uma expressão especial da
interpretação teleológica para o Direito Tributário, que tem em conta os fins específicos desse
ramo do Direito, e esse reconhecimento significa que a interpretação com base em critérios
econômicos também é uma interpretação jurídica.
O novo Código Tributário alemão, em vigor desde 1977, não contém mais a regra
sobre interpretação de lei tributária, o que não tem impedido a aplicação da interpretação
econômica (livre dos excessos iniciais) por parte da Administração e do Judiciário.
A supressão do preceito ocorreu depois de longa discussão. O projeto apresentado ao
Parlamento em 1974 continha o preceito com a redação praticamente igual à da Lei de
Adaptação Tributária de 1934. A Comissão de Finanças, com a aprovação do Plenário,
entendeu que, tratando-se de uma regra geral de interpretação, não era necessário que
figurasse em uma codificação, nem de Direito Tributário, nem de outro qualquer ramo
jurídico. A Comissão de Finanças, contudo, ressaltou que a omissão do preceito não
significava que as leis tributárias não mais seriam interpretadas como vinham sendo antes da
reforma.
Conforme Beisse (1984, p. 30),
nem juridicamente, nem em termos práticos se alterou a importância do critério econômico com a revogação do preceito de interpretação. Para casos de elusão, o novo Direito também contém uma cláusula geral [o §42, que será explicado a seguir]. Sob um aspecto, no entanto, a nova legislação produziu um efeito esclarecedor: o critério econômico não pode ser usado para uma valoração tributária suplementar no sentido de uma requalificação dos fatos, pois isto importaria uma tributação – não permitida – de situações fictícias.
A regra geral do abuso de formas, que antes estava no §6º da Lei de Adaptação
Tributária, passou para o §42 do Código Tributário de 1977. Sua última reformulação (a
última alteração, por meio da Lei Fiscal Anual de 2008, de 13 de dezembro de 2007, entrou
26
em vigor em 1º de janeiro de 200816) mantém a referência ao abuso das possibilidades de
configuração jurídica:
§42 – Abuso das possibilidades de configuração jurídica 1. A lei tributária não pode ser eludida mediante o abuso das possibilidades de configuração jurídica. Se se realiza o pressuposto de fato de uma regulação contida em uma lei [específica] cujo fim seja impedir a elusão fiscal, as consequências jurídicas são as estabelecidas neste preceito. De outro modo, quando há abuso no sentido do inciso 2, o crédito tributário surge tal como teria surgido com base na configuração jurídica adequada aos fatos econômicos. 2. Existe abuso quando se adota uma configuração jurídica inadequada, que gera para o sujeito passivo ou um terceiro uma vantagem fiscal não prevista em lei em comparação com uma configuração adequada. Essa disposição não se aplica quando o sujeito passivo demonstra que a configuração jurídica adotada tem motivos não fiscais relevantes e atende ao conjunto das circunstâncias.
De acordo com Godoi (2005, p. 140), no Informe do Governo alemão que
acompanhou o Anteprojeto do Código Tributário de 1977, considerou-se que a regra geral
antielusão é forçosamente necessária, pois o sistema de correção das elusões através de
normas específicas não é capaz de abarcar as múltiplas possibilidades de estruturação e
formalização oferecidas pelo Direito e em relação às quais o contribuinte pode cometer
abusos.
Por outro lado, o Informe também reconheceu que “a mera interpretação” da lei
tributária pode não ter êxito para a correção de alguns casos de elusão fiscal, o que para Godoi
(2005, p. 140) significa um reconhecimento oficial de que a interpretação da lei tributária
deve ser mantida dentro dos limites do sentido literal possível do texto legal e que o §42,
portanto, começa a operar onde a “interpretação comum” termina.
Conforme Combarros Villanueva (1984, p. 497), a doutrina e a jurisprudência alemãs
não mais reconhecem nem a supremacia nem a subordinação do Direito Tributário ao Direito
Privado, de modo que, ainda que o legislador possa adotar configurações civilistas, não está
obrigado a fazê-lo. Não está porque os fins dos referidos ramos do Direito são muito
diferentes: ambos se interessam pela mesma realidade, mas com base em aspectos totalmente
16 A redação anterior do §42 era a seguinte: “A lei tributária não pode ser fraudada através do abuso de formas
jurídicas. Sempre que ocorrer abuso, a pretensão do imposto surgirá, como se para os fenômenos econômicos tivesse sido adotada a forma jurídica adequada”. A primeira minuta da Lei Fiscal Anual de 2008 havia inserido no §42 a dura presunção de que apenas não seriam considerados atos de evasão fiscal os planejamentos fiscais cuja configuração jurídica tivesse fortes razões de natureza não-tributária. A segunda minuta foi abrandada e previa que um negócio não-usual poderia levar à presunção relativa da ocorrência de um abuso de direito. Após pesadas críticas e discussões públicas, a redação final do §42 foi ainda mais abrandada. Chegou-se mesmo a questionar se a redação final do §42 representa efetivamente alguma alteração de conteúdo. (Cfr. ANNUAL..., 2008).
27
distintos; o Direito Tributário com base na capacidade econômica e o Direito Privado com
base na delimitação das posições jurídicas.
Relata Combarros Villanueva (1984, p. 487) que a legislação do Imposto sobre o
Patrimônio alemão adota um conceito mais amplo que o conceito civilista de propriedade,
englobando a propriedade econômica. Nos caso de venda com alienação fiduciária, reserva de
domínio e leasing, por exemplo, considera-se que a propriedade civil é distinta da propriedade
econômica. A propriedade econômica se fundamenta no pressuposto de que, quando a
imposição tributária recai sobre a propriedade como um fato econômico, esse fato econômico
é considerado a propriedade. Isso decorre, segundo Tipke (1983, apud COMBARROS
VILLANUEVA, 1984, p. 487), das distintas finalidades perseguidas pelo Direito Privado e
pelo Direito Tributário, pois no primeiro se trata de determinar os direitos dos proprietários,
tal como a proteção dos seus respectivos títulos de propriedade, e no segundo se persegue a
natureza econômica dos objetos do patrimônio do sujeito passivo, uma vez que nesse âmbito
jurídico se busca encontrar os indicadores de capacidade econômica.
O espanhol Fernando Pérez Royo (2002, p. 89) também relata que na Alemanha atual
tanto a doutrina quanto o Tribunal Constitucional Federal entendem que a interpretação
econômica, purificada de seus exageros iniciais, não é contrária ao princípio da segurança
jurídica, sendo plenamente válida em todos os ramos do Direito. Na visão do autor, foi
exatamente por esse motivo que o Código Tributário alemão de 1977 julgou desnecessário
manter a referência expressa à interpretação econômica.
2.3 A versão equilibrada da interpretação econômica do Direito Tributário
Considerando a superação da Jurisprudência dos Conceitos pela Jurisprudência dos
Interesses, no início do século XX, as doutrinas italiana e alemã passaram a questionar o papel
que os conceitos de Direito Privado desempenham no Direito Tributário. Se o Direito
Tributário é um ramo autônomo da ciência jurídica, como se passou a acreditar, possuindo
finalidades distintas do Direito Privado, o fato gerador da obrigação tributária deve ser
interpretado com base no seu conteúdo econômico, prescindindo das formas jurídicas
adotadas pelos contribuintes.
28
Mas não obstante as distintas finalidades perseguidas pelo Direito Tributário e pelo
Direito Privado, ambos têm por objeto as mesmas manifestações da vida. A lei tributária
atrela a ocorrência do fato gerador à verificação de determinadas circunstâncias da vida
social, que por vezes são relações reguladas por outros ramos do Direito. Ou seja, uma
idêntica relação da vida interessa de maneiras diferentes a mais de um ramo do Direito.
Conforme Vanoni (1932, p. 164), a compra e venda interessa ao Direito Civil, mas
também interessa ao Direito Administrativo quando o objeto do contrato está sujeito a certos
encargos ou limitações de Direito Público ou quando uma das partes é uma entidade pública.
Pode interessar também ao Direito Penal, quando há indícios da prática de crime contra o
patrimônio ou a fé pública. Pode, enfim, interessar ao Direito Tributário quando na compra e
venda se identificar uma manifestação de riqueza tributável. Cada um desses ramos do direito,
aplicando ao mesmo fato as suas próprias normas, considera-o em função de finalidades
diversas, com foco no aspecto da situação que particularmente lhes interessa. O Direito
Privado tutela o exercício da atividade individual; o Direito Tributário tutela as obrigações
entre indivíduo e Estado.
Passou-se a discutir, então, se a lei tributária, quando utiliza os termos propriedade,
compra e venda, doação, domicílio e garantia, por exemplo, refere-se aos institutos de Direito
Privado ou, ao contrário, a institutos próprios do Direito Tributário.
Becker (1924, apud VANONI, 1932, p. 159) considerava que raramente a lei tributária
refere-se a institutos tal como são formulados no Direito Privado. No Direito Tributário
alemão, o imposto sobre a venda de terrenos, por exemplo, baseava-se no conceito de Direito
Privado. Mas na maior parte dos casos, contudo, segundo a visão de Becker (1924), o Direito
Tributário se refere a atividades da vida econômica, tais como o rendimento, a troca, o uso,
etc., que são o que interessa às leis tributárias. Como, entretanto, faltam princípios ou
conceitos próprios de Direito Tributário para definir certos fenômenos que, por outro lado, já
interessaram sob outros aspectos ao Direito Civil, que definiu e elaborou a sua figura jurídica,
a lei tributária utiliza os termos do Direito Civil visando a delimitar com suficiente
aproximação os fenômenos que constituem o objeto das suas próprias normas. Neste sentido,
a legislação tributária usa os termos propriedade, venda, alienação, etc. Mas estes conceitos
não devem ser entendidos de maneira formal ou rígida. Deve ser levado em conta o objetivo
para o qual o Direito Tributário os utiliza, que é o de indicar fatos econômicos. Quando a
norma tributária fala em proprietário, teria geralmente em vista o possuidor pacífico, ainda
que sem título, ou seja, aquele que detém efetivamente a coisa, e não o proprietário de direito,
29
a cuja posse a coisa tenha sido eventualmente subtraída. Para Becker (1924), portanto, ao
Direito Tributário não interessaria o direito formal de propriedade, e sim a possibilidade
efetiva de exercer as faculdades de disposição e de utilização que constituam o conteúdo
econômico daquele direito.
Kurt Ball (1924, apud VANONI, 1932, p. 160), talvez o maior seguidor de Becker
[193?], conforme Machado (1984, p. 12), entendia que nenhum conceito de Direito Civil
referido pelo Direito Tributário deve ser entendido no sentido do Direito Civil. Segundo esse
autor, o Direito Tributário tende também a formular de maneira independente os seus próprios
institutos. Todavia, esse processo é difícil e complexo e, por esta razão, o legislador, ainda
que se esforce por criar para os conceitos tributários uma terminologia nova, recorre a
expressões já conhecidas do Direito Privado e as utiliza na enunciação das normas tributárias.
Assim, a expressão não tem, no Direito Tributário, o mesmo significado que tinha no Direito
Privado, mas adquire um valor particular, ligado à função econômica normal do instituto a
que se refere. O emprego da mesma palavra em dois campos diferentes do Direito, com
significados diferentes, explica-se pela circunstância de que os dois campos têm como
substrato o mesmo fenômeno da vida social. Para Ball, portanto, era necessário aceitar esse
duplo emprego da mesma palavra, seja porque a língua não possua suficientes expressões
vivas para os diferentes conceitos, seja porque o legislador não os sabe encontrar.
As posições de Becker e Ball, contudo, não foram acatadas pela doutrina. Evoluiu-se
para um certo consenso de que a norma tributária não exige nenhum critério específico de
interpretação, que a interpretação jurídica se vale de muitos critérios hermenêuticos com o
objetivo de desvendar o espírito e a finalidade concreta da lei (prevalência do aspecto
teleológico) e que a interpretação se move entre o mínimo e o máximo sentido literal possível
das palavras em seu contexto normativo próprio.
2.3.1 A teoria de Ezio Vanoni
Vanoni (1932) tem sido considerado um dos adeptos da versão original da
interpretação econômica, segundo a qual as formas jurídicas têm pouca ou nenhuma
relevância. Esse autor italiano, contudo, criticou duramente a posição de Becker e a
jurisprudência alemã que adotou a interpretação econômica de forma muito próxima à Escola
30
da Livre Investigação do Direito. Para Vanoni (1932, p. 207), Becker17 reconhece
implicitamente ao juiz a faculdade de criar o Direito (no sentido de ir além do limite da lei), o
que, na sua visão, além de constituir uma flagrante vulneração do cânone da certeza jurídica e
da teoria das fontes do Direito, traz em si inadmissíveis consequências políticas. Por essa
razão, entendemos que Vanoni se filia à versão equilibrada da interpretação econômica.
Quando escreveu Natureza e Interpretação das Leis Tributárias, cuja primeira edição
é de 1932, Vanoni (1932, p. 140) estava muito preocupado em demonstrar que o tributo não
tem nada de odioso e que sua única finalidade é o benefício dos cidadãos. Para Vanoni (1932,
p. 48), a alegação de que as leis tributárias são restritivas do direito de livre disposição
patrimonial não tem fundamento na natureza do tributo, revelando a ausência de consciência
política do cidadão e a sobrevivência do antigo preconceito da arbitrariedade da tributação.
Vanoni (1932, p. 49) também estava preocupado em explicitar que o cânone da
interpretação rígida já estava superado e que faltava coragem à doutrina para admitir isso. O
objetivo de Vanoni (1932, p. 49) era demonstrar que o espírito e a finalidade da lei, os
princípios gerais e a vontade do legislador justificam um entendimento e uma aplicação mais
amplos da norma tributária.
São as próprias necessidades da vida, conforme Vanoni (1932, p. 49), que obrigam o
juiz, no campo da interpretação das leis fiscais, do mesmo modo que em qualquer outro ramo
jurídico, a aplicar métodos eficazes de interpretação da lei que permitam ao Direito adequar-
se à evolução e às rápidas mudanças das condições de fato. Para Vanoni (1932, p. 50), é
impossível a adoção de regras a priori de interpretação, que limitem a atividade do intérprete
no entendimento das leis fiscais. Se no Estado de Direito a lei tributária disciplina uma
relação jurídica tutelar de um interesse fundamental do Estado; se a causa da tutela jurídica
está na necessidade ética e jurídica de fornecer ao Estado os meios de existir e de realizar os
seus próprios fins; se, em consequência, não se pode constatar na relação tributária nenhuma
característica de odiosidade ou de limitação dos direitos e das liberdades dos indivíduos;
finalmente, se a lei tributária não constitui exceção às regras gerais de direito, mas é uma
aplicação dos princípios gerais que inspiram a organização do Estado de Direito, não ocorre
nenhum dos pressupostos que dariam lugar à limitação da atividade interpretativa (VANONI,
1932, p. 182).
17 Becker (1924, apud VANONI, 1932, p. 207), para superar essa dificuldade, negou expressamente, em outro
trabalho, o valor das distinções que “se pavoneiam no papel e parecem logicamente maravilhosas, mas que praticamente se perdem”, entre criação do direito e interpretação extensiva e restritiva.
31
Vanoni (1932) era contrário tanto à hermenêutica tradicional quanto à Escola da Livre
Investigação do Direito. Também era contrário à versão da interpretação econômica de
Becker e Ball, que permitia a substituição do legislador pelo juiz.
Não obstante, a autonomia do Direito Tributário foi defendida por Vanoni (1932) de
forma muito parecida com a posição de Becker e Ball. Entendemos que esse pensamento de
Vanoni (1932) decorre de sua preocupação com a superação da visão do tributo como algo
odioso. Essa superação implicava o almejado abandono dos cânones da interpretação rígida e
da primazia do Direito Privado sobre o Direito Tributário. Talvez por essa razão Vanoni
(1932) tenha enfatizado tão fortemente a autonomia do Direito Tributário.
Segundo Vanoni (1932, p. 164), como a utilização de conceitos de Direito Civil visa a
definir mais facilmente uma situação econômica, quando se verifica uma discordância entre a
regulamentação jurídica do Direito Privado e o fato econômico, o Direito Tributário abandona
o instituto de Direito Privado para levar em conta o efetivo desenvolvimento da relação da
vida social. Conforme Vanoni (1932, p. 165), na compra e venda, por exemplo, o essencial
para o Direito Tributário é a transmissão de riqueza e a manifestação de capacidade
econômica:
o tributo será devido sempre que tal transmissão se apresente, ainda que, na hipótese, a relação efetivamente ocorrida não caiba nos limites do instituto da compra e venda tal como o conceitua o direito privado.
Ao contrário de Becker, contudo, Vanoni (1932, p. 165) reconhece que na maioria dos
casos o conceito de Direito Tributário coincide com o de Direito Privado, porque geralmente
não ocorre compra e venda no Direito Privado que não implique a situação econômica que
interessa ao Direito Tributário, e, do mesmo modo, geralmente não ocorre a situação
econômica visada pela lei tributária sem que importe em um contrato de compra e venda,
válido segundo o Direito Privado. Mas do ponto de vista abstrato, segundo Vanoni (1932, p.
165), é logicamente impossível a existência de uma identidade absoluta entre os conceitos de
Direito Tributário e os de Direito Privado, uma vez que não pode existir identidade absoluta
de objetivos entre Direito Privado e Direito Tributário.
Segundo Vanoni (1932, p. 166), não se deveria nunca falar de apropriação de
conceitos de Direito Privado por parte do Direito Tributário, mas sim de ulterior elaboração
de conceitos de Direito Tributário tendo por objeto o mesmo fato material que constituiu o
objeto de institutos de Direito Privado. O conceito de Direito Privado, conforme Vanoni
32
(1932, p. 166), representando uma abstração em relação à realidade material, facilita a
elaboração do conceito de Direito Tributário.
Mas o simples fato do instituto de Direito Privado ser incorporado ao Direito
Tributário retira do instituto qualquer característica de Direito Privado para transformá-lo em
instituto de Direito Tributário. Na visão de Vanoni (1932, p. 167), o instituto perde então
qualquer função de tutela de um interesse individual para transformar-se em um conceito
concernente à tutela do interesse do Estado em obter os meios necessários para fazer frente às
necessidades públicas. Essa mudança de objeto resulta na mudança de conteúdo do conceito
jurídico. E o resultado final não é diverso do que é obtido pelo legislador quando formula
novos conceitos próprios do Direito Tributário.
Vanoni (1932, p. 167-171) admite, entretanto, três hipóteses em que os institutos de
Direito Privado são referidos pelo Direito Tributário conservando inalterado o seu valor
original:
a) quando o Direito Tributário se vale de institutos regulados em outros ramos do
direito como “dados de fato” para a elaboração de institutos próprios, como ocorre
com as taxas. Nesse caso o Direito Tributário não se apropria do instituto de Direito
Privado; ele continua sendo externo ao Direito Tributário. O instituto de Direito
Privado constitui um dado de fato, um fenômeno qualquer da vida, que a lei
tributária faz objeto de sua regulação;
b) quando o Direito Tributário utiliza institutos que não pertencem por sua natureza a
uma determinada área do Direito, referindo-se a funções ou relações que têm a
mesma relevância em todos os ramos do Direito, tais como a capacidade civil e a
nacionalidade;
c) sempre que no Direito Tributário houver uma remissão expressa ou implícita a
institutos formulados em outros ramos do Direito e que dessa forma se tornam
eficazes para regular as relações tributárias, conservando as características e funções
que lhes são próprias. São os casos, por exemplo, do Direito Processual Tributário e
das normas de organização e função dos organismos públicos.
Conclui Vanoni (1932, p. 171) que cabe ao intérprete da lei tributária determinar, em
cada caso, se se encontra frente a alguma dessas três hipóteses de remissão a institutos
pertencentes a outros ramos do Direito ou frente à formulação de institutos próprios do
Direito Tributário. E considerando que as normas tributárias não se distinguem das demais
normas de Direito, os mesmos métodos de interpretação aplicáveis às leis em geral são
33
aplicáveis ao Direito Tributário. Ressalta Vanoni (1932, p. 181) que qualquer orientação a
priori do trabalho interpretativo, a favor do fisco ou a favor do contribuinte, constitui uma
inadmissível limitação do processo de interpretação da lei.
Como um meio-termo entre a hermenêutica tradicional e a Escola da Livre
Investigação do Direito, Vanoni (1932, p. 186) propõe a doutrina italiana dominante em seu
tempo, denominada de Método Histórico-Evolutivo.
Ensina essa doutrina que a lei, uma vez formulada, destaca-se do legislador e vive uma
vida própria e autônoma, como vontade do Estado objetivada no preceito legislativo. A
vontade da lei, ao contrário do que afirma a hermenêutica tradicional, não se identifica com a
vontade do legislador que a produziu, mas é algo de vivente, como vivente e sempre renovada
é a vontade do Estado da qual a norma é a manifestação (VANONI, 1932, p. 186).
Conforme Vanoni (1932, p. 186), admitir que a norma legal tenha vida própria,
independente da vontade dos órgãos legislativos que a criaram, e que tenha capacidade de se
adaptar modificando-se e modificando o sistema jurídico vigente e as diversas circunstâncias
variáveis da vida, não significa acolher os postulados da Escola da Livre Investigação do
Direito. O intérprete tem a função de pesquisar o alcance da lei, tal como resulta do seu texto,
da sua posição no sistema legislativo, das suas relações com os fatos da vida que lhe compete
regular; mas isso não quer dizer que o intérprete tenha a faculdade de elaborar o Direito,
extraindo-o diretamente dos fenômenos sociais.
Adverte Vanoni (1932, p. 187) que se o Direito é uma norma de conduta elevada à
categoria de regra obrigatória pelo ordenamento jurídico, o intérprete, enquanto pesquisa o
Direito para regular o caso concreto, acha-se vinculado ao ordenamento jurídico cuja vontade
deve em substância aplicar. A pesquisa das relações de uma norma com as outras normas do
sistema, e das suas relações com os fatos sociais, afirmada como essencial pela Escola do
Método Histórico-Evolutivo, visa a definir a atitude do sistema jurídico em face dos fatos da
vida, para daí deduzir a eficácia real da lei. Neste quadro, conforme Vanoni (1932, p. 187),
não existe lugar para um trabalho “criador” do Direito por parte do intérprete.
Destaca Vanoni (1932, p. 188) que o Método Histórico-Evolutivo deve seu nome ao
fato de ter posto em evidência as duas diferentes exigências do processo de interpretação. De
um lado, acentua o alcance da norma como fenômeno histórico, o qual se considera esgotado
com a fixação da regra de conduta em termos de lei; por outro lado, estuda a evolução, a que
está sujeita a norma, sob a influência das necessidades da vida, como membro do organismo
vivo que é o sistema jurídico.
34
A independência do intérprete em relação aos órgãos legislativos, para considerar a
vontade sempre renovada da lei e submeter a ela os fatos que o legislador não poderia prever,
não significa, na visão de Vanoni (1932, p. 189), a criação de tributo novo, ainda que a lei,
assim interpretada, leve à tributação de situações de fato que o legislador não teve presentes.
Não se confunde a imposição de um tributo, para a qual é necessária a intervenção do
Legislativo e do Executivo, em sua dupla função de autor de normas jurídicas e de depositário
do controle político da atividade pública, com a aplicação da lei ao caso singular, que é a
missão do intérprete. Para Vanoni (1932, p. 189), quando o intérprete pesquisa a vontade da
lei, ainda que vá além da vontade dos órgãos legislativos que elaboraram a norma, não cria
Direito novo, mas atribui à lei todo o valor que o ambiente no qual esta se movimenta lhe
confere.
Ressalta Vanoni (1932, p. 190) que em nenhum outro campo do Direito ocorre maior
imperfeição e falta de continuidade formal das normas como no campo do Direito Tributário.
Se se examinar de perto a legislação, não é difícil convencer-se de que o caráter de exatidão
matemática pretendido pela hermenêutica tradicional não corresponde à realidade das coisas.
As leis tributárias referem-se a situações de fato, nem sempre fáceis de definir e de
concretizar em lei. Desta circunstância decorrem fórmulas excessivamente vagas, ou inexatas
por excesso ou por deficiência, bem como contradições verbais ou substanciais, para cuja
solução nem sempre é suficiente o recurso à vontade do legislador. Se este, na urgência com
que teve de trabalhar, não viu as contradições, ou não soube encontrar a fórmula mais exata, o
intérprete dificilmente poderá retirar da vontade cristalizada na lei o subsídio necessário à
aplicação da norma. Nestes casos, conforme Vanoni (1932, p. 190), é o próprio princípio da
certeza do Direito que impõe uma interpretação ampla da lei: não pode existir segurança
substancial do Direito onde não sejam superadas as contradições e as descontinuidades
exteriormente apresentadas pelo sistema legislativo.
Conforme Vanoni (1932, p. 190), na aplicação da lei tributária deve-se certamente
procurar a certeza da tributação, mas ainda é preciso, por outro lado, ter-se presente a
necessidade de realização de outros princípios tributários, entre os quais especialmente o da
facilidade e comodidade da arrecadação e o da igualdade em face do tributo. A estes fins mal
se adaptaria uma norma rígida e cristalizada dentro dos limites da vontade inalterável do
legislador pretérito; importa que a norma seja maleável e capaz de se adaptar a exigências
sempre renovadas da realidade social.
35
Ademais, alerta Vanoni (1932, p. 191), se a lei fosse rigidamente delimitada pelos
termos da sua fórmula, tal como foi entendida por aquele que a elaborou, permaneceria
impotente contra as novas formas criadas pelos contribuintes e desconhecidas da lei tributária.
Vanoni (1932, p. 191) critica os contribuintes que não reconhecem o pagamento de tributos
como um dever precípuo dos cidadãos e que buscam formas abusivas de fugir dessa
obrigação. Para o autor, essa postura se deve à falta de espírito público, à sobreposição
egoística dos interesses imediatos aos interesses mais distantes e ao peso às vezes muito
oneroso dos encargos públicos.
Para Vanoni (1932, p. 191), é de importância decisiva o fato de que o objeto material
da regulamentação da lei tributária, na maioria dos casos, tem relação íntima com o aspecto da
atividade individual que está mais sujeito, por suas próprias necessidades internas, a rápidas
evoluções e transformações, que é a atividade econômica. O tributo é instituído e calculado
com base em determinados indícios relativos, na maioria dos casos, às manifestações
exteriores da atividade econômica individual. Se, em face das exigências sempre renovadas da
vida econômica, as formas da atividade individual, ainda que mantendo inalterada a sua
essência econômica, evoluem e se transformam, a lei rigidamente entendida é incapaz de
circunscrever e de atingir as novas manifestações, até que um novo preceito legislativo seja
promulgado.
Na visão de Vanoni (1932, p. 192), a cristalização da lei traz consigo, portanto, no
caso da sonegação fiscal, a consequência pouco satisfatória, tanto do ponto de vista financeiro
como do ponto de vista ético, de constituir-se em prêmio à fraude. E na hipótese de formas
novas, surgidas por necessidade econômica, há a possibilidade das atividades revestidas de
novas figuras escaparem à tributação. Conforme Vanoni (1932, p. 192), ocorreria neste último
caso o absurdo financeiro de que os indivíduos mais capazes, que são geralmente os que estão
na vanguarda da evolução econômica, seriam tributados em menor medida que os indivíduos
mais conservadores, menos cultos e menos capazes de se adaptar a exigências novas, e,
portanto, economicamente mais fracos que os primeiros. Em ambas as hipóteses, na ótica de
Vanoni (1932, p. 192), a rigidez na aplicação da lei daria lugar à infração do princípio da
igualdade tributária, com vantagem para os menos escrupulosos ou mais habilidosos, em
detrimento dos mais honestos e mais fracos.
Para Vanoni (1932, p. 192), é a própria natureza do fenômeno tributário que leva a
adotar, como mais apropriado também para a interpretação das leis tributárias, o Método
Histórico-Evolutivo. O fenômeno financeiro é um fenômeno político, ou seja, um fenômeno
36
em relação de dependência direta com as correntes econômicas, culturais, éticas e sociais que
influem no país. Se a interpretação não levar em conta o movimento invisível que a evolução
dessas correntes imprime ao sistema tributário, a lei tributária será afastada da vida real,
tornando-se um quadro rígido e vazio, dentro do qual as relações vitais somente podem ser
introduzidas à força e sem relação com o conteúdo das próprias relações.
A finalidade do trabalho do intérprete, portanto, não é nem a de pesquisar a vontade
estática dos órgãos que criaram a lei nem a de extrair o Direito da consciência jurídica
popular, mas a de chegar a compreender todo o alcance da lei considerada como a vontade
ativa do Estado. Frisa Vanoni (1932, p. 209) que no processo de interpretação distinguem-se
dois elementos essenciais: o histórico, com cujo subsídio procura-se reconstituir a vontade do
Estado, contida na norma, tal como era no momento em que esta foi promulgada; e o lógico
em sentido estrito, mediante o qual se põe a lei em contato com a vida social, com as novas
necessidades e as novas orientações do pensamento, para se definir o alcance da regra jurídica
no momento da sua aplicação.
O Direito Tributário, conforme o Método Histórico-Evolutivo, deve ser interpretado
com o mesmo instrumental que se reputa válido para a interpretação da quaisquer outras
normas jurídicas, valorando-se adequadamente o texto literal, os trabalhos preparatórios e os
precedentes históricos da lei, assim como sua ratio legis, sua adequação sistemática com as
demais normas do ordenamento e tendo em conta principalmente o que Vanoni (1932)
denomina de “realidade social”. A “aplicação correta” do preceito legal, de acordo com o fim
que lhe é próprio, implica proceder à “exata valoração da função econômica dos fatos sociais”
aos quais se refere a norma impositiva.
A essência do método de Vanoni (1932), assim, é a necessidade de se “valorar
exatamente” as novas realidades sociais cuja regulação constitui o objeto da norma tributária.
A exata valoração possibilita a evolução do Direito Tributário, mas não supõe, ao contrário do
que defendia Becker [193?], a atribuição de faculdades normativas ao intérprete; apenas se
reconhece a faculdade de se moldar o princípio implicitamente contido na norma a tais
situações, necessariamente cambiantes como efeito da evolução social, com base nas quais se
ditou a norma.
Segundo Juan Martín Queralt (1973, p. 57), autor do Estudo Preliminar da edição
espanhola de Natureza e Interpretação das Leis Tributárias, a efetiva contribuição de Vanoni
para a teoria da interpretação reside no desenvolvimento do Método Histórico-Evolutivo no
campo do Direito Tributário.
37
As críticas dirigidas a Vanoni (1932), segundo Martín Queralt (1973, p. 57), não
tiveram em conta o efetivo alcance da sua doutrina. Ao contrário do que entendem os seus
críticos, Vanoni não nega a unidade do ordenamento jurídico, apesar de sua ferrenha defesa
da autonomia do Direito Tributário. O que defende Vanoni (1932), conforme a lúcida
observação de Martín Queralt (1973, p. 57), é que o elemento sistemático não elimine a
particularidade da disciplina da relação entre Estado e contribuintes.
Tampouco entende Vanoni (1932) que o cânone da interpretação econômica significa
que a conformação dos fenômenos sociais é sempre decisiva sobre os efeitos tributários. Para
Vanoni (1932), nas palavras de Martín Queralt (1973, p. 52), se a norma tributária, por uma
razão peculiar qualquer, estabelece uma diferença, com base em certos critérios formais, entre
duas hipóteses substancialmente idênticas, a demonstração da objetiva identidade entre essas
duas hipóteses não libera o intérprete de sua obrigação de aplicar a lei.
Também para Alberto Tarsitano (2004, p. 88) a crítica a Vanoni (1932) é exagerada,
uma vez que sua aspiração era apenas enfatizar os conteúdos próprios dos conceitos cunhados
pelas leis tributárias, com fundamento no substrato econômico dos fatos geradores. Talvez,
conforme Tarsitano (2004, p. 89), essa ênfase tenha sido excessiva, mas a avaliação do
conjunto da obra de Vanoni (1932) demonstra a sua importância para o pensamento jurídico
que desenvolveu a teoria dogmático-tributária, superadora do caráter odioso do imposto e da
submissão do Direito Tributário às regras e instituições de Direito Privado.
Para Martín Queralt (1973, p. 55), o que falava Vanoni (1932) sobre a “função” ou o
“conteúdo econômico” é o mesmo que outros autores, aludindo ao mesmo fenômeno, falam
sobre princípio ou método extratextual, indagação da mens ou da ratio legis, etc., e com isso
não alude a nada mais do que à conotação econômica dos institutos tributários. Da mesma
forma que quando fala de “causa” Vanoni (1932) está aludindo à ratio legis do preceito, de
forma totalmente diferenciada de Griziotti, quando se refere ao “conteúdo econômico” das
situações reguladas pelo ordenamento tributário, Vanoni (1932) não pretende desconsiderar a
juridicidade dos pressupostos de fato contidos na lei.
Ademais, como acertadamente observa Martín Queralt (1973, p. 54), a necessidade de
se ter em conta o conteúdo econômico das instituições adotadas pelo legislador tributário é
algo com o qual toda a doutrina se mostra de acordo. O próprio Berliri (1964), segundo
Martín Queralt (1973, p. 54), afirma, com palavras similares às com que Vanoni (1932) define
a causa do tributo em sentido objetivo, que no momento da interpretação da norma deve se
38
averiguar a razão de ser da lei, o que é o mesmo que a necessidade social a cuja satisfação se
encontra a norma encaminhada.
Em síntese, a proposta de Vanoni (1932), como bem demonstra Martín Queralt (1973,
p. 57), não consistiu em nada mais do que acentuar o conteúdo econômico próprio das
situações reguladas pela norma tributária, e que, em última instância, não constitui senão uma
manifestação a mais do princípio da interpretação lógico-jurídica.
Talvez a ênfase de Vanoni (1932) à autonomia do Direito Tributário, que naquela
época visava a combater o axioma do tributo como algo odioso e excepcional, tenha
contribuído para que sua obra seja frequentemente associada à versão original da
interpretação econômica, obscurecendo a importância do desenvolvimento do Método
Histórico-Evolutivo para o Direito Tributário. A nosso sentir, Vanoni (1932) deveria ser
lembrado em função do Método Histórico-Evolutivo, e não em função do seu excessivo
destaque à autonomia do Direito Tributário.
2.3.2 Antonio Berliri. Crítica à versão original da interpretação econômica
Antonio Berliri (1964), jurista italiano cuja primeira obra é de 1952, foi um dos
autores que demonstraram que tanto o fetichismo formalista quanto o radicalismo da versão
original da interpretação econômica estavam equivocados.
O problema da interpretação da lei, conforme Berliri (1964, p. 91), consiste em
determinar o que o legislador quis e o que disse por meio da norma legal, ou seja, consiste em
delimitar os casos regulados expressamente com essa determinada disposição.
Berliri (1964, p. 96) afirma que a doutrina de seu tempo reconhece unanimemente que
as leis tributárias são leis iguais a todas as demais, que unicamente obedecem, portanto, às
normas que regulam a interpretação das leis em geral, o que afasta a aplicação, por exemplo,
dos princípios in dubio pro fisco e in dubio pro contribuinte.
A busca do significado das palavras segundo a conexão entre as mesmas (interpretação
literal) é a primeira operação a ser realizada pelo intérprete. Segundo Berliri (1964, p. 98), se
as palavras utilizadas pela lei têm um sentido técnico distinto do sentido comum ou corrente,
há duas orientações a seguir: se o significado técnico se refere a uma ciência não-jurídica,
prevalece o significado comum ou corrente do termo, a não ser que o legislador adote
39
expressamente uma definição distinta tanto do significado técnico quanto do significado
corrente; por outro lado, se o significado técnico refere-se à ciência jurídica, prevalece esse
sentido técnico, e não o comum ou corrente, a não ser que fique claro que o legislador
incorreu em uma impropriedade linguística (em cujo caso o intérprete deverá atribuir à
palavra o significado não-técnico que o legislador teve presente) ou que pretendeu atribuir à
expressão um significado especial.
Para demonstrar a forma de aplicação da interpretação literal, Berliri (1964, p. 98) cita
o exemplo das lagostas e dos cetáceos, que segundo a Zoologia devem ser respectivamente
classificados como crustáceos e mamíferos, e não como peixes18. Mas, no uso corrente, ambos
são considerados peixes. Nesse caso, qual significado deve ser atribuído ao termo usado pela
lei tributária, o técnico ou o corrente? Um imposto ou uma isenção relativa aos peixes deve
compreender também as lagostas e os cetáceos? Um imposto ou uma isenção relativa às
flores, para citar outro exemplo, deve abarcar as alcachofras, as quais, segundo a Botânica,
são flores? Berliri (1964, p. 98) entende que as lagostas e os cetáceos devem ter o mesmo
tratamento tributário dos peixes e que as alcachofras não devem ter o mesmo tratamento
tributário das flores, ou seja, nesses dois exemplos deve prevalecer o uso comum ou corrente
dos termos, e não o seu significado técnico contido na Zoologia e na Botânica.
Para Berliri (1964, p. 98), por outro lado, o significado técnico-jurídico prevalece
sobre o comum ou vulgar porque os ramos do Direito não são compartimentos estanques, e
sim partes de um sistema incindível. Berliri (1964, p. 98) entende que uma definição,
qualquer que seja a lei que a contenha, deve valer para todo o Direito, a não ser que o
legislador tenha limitado expressamente a determinados efeitos a eficácia daquela definição,
ou, ao contrário, tenha afastado a sua aplicação em determinado setor.
Quando a lei tributária utiliza os termos compra e venda, empréstimo, enfiteuse,
sociedade, comunidade, concessão, autorização, serviço público, etc., deve-se considerar,
segundo Berliri (1964, p. 99), que tais expressões têm no Direito Tributário o mesmo sentido
que possuem em outros ramos do Direito, a não ser que fique claro que o legislador incorreu
em uma impropriedade linguística ou que pretendeu atribuir à expressão um significado
especial.
Por essa razão, Berliri (1964, p. 104) teceu duras críticas à teoria de Vanoni acerca da
interpretação dos institutos de Direito Privado utilizados pela lei tributária, a qual, segundo
ele, “mais que uma construção, é uma demolição”.
18 Exemplo semelhante é dado por Falcão, 1987, p. 63.
40
Segundo Berliri (1964, p. 105), se quando a lei tributária utiliza os termos compra e
venda, empréstimo, sociedade, concessão de serviço público, etc., não se deve considerar o
correspondente instituto regulado pelo Direito Civil ou pelo Direito Administrativo, faltará
determinar o que o legislador quis dizer com esses termos. E essa investigação será muito
difícil, já que, como adverte o próprio Vanoni (1932), na maioria dos casos os dois conceitos
coincidem. Para compreender as leis tributárias seria necessária então uma espécie de
vocabulário que precisasse o significado das expressões jurídicas. E mesmo que houvesse tal
vocabulário, haveria que se investigar o ramo de origem da expressão jurídica, considerando
ainda que há normas que pertencem a dois distintos ramos do Direito.
Berliri (1964, p. 104) também invoca a doutrina de Jarach (1996) para reforçar sua
crítica a Vanoni (1932). Segundo Berliri (1964, p. 104), Jarach (1996) afirma que para os fins
do Direito Tributário, a venda e a promessa de compra e venda deveriam pagar o mesmo
imposto por se tratar de dois atos economicamente equivalentes, já que se a promessa não for
mantida, não se terá realizado transferência alguma de propriedade, mas surgirá um direito ao
ressarcimento pelos danos que por sua natureza resultam economicamente equivalentes. O
mesmo pode acontecer com o depósito e o arrendamento. Se o depositário ou o arrendatário
não restituírem o objeto recebido deverão pagar o equivalente ao mesmo. Para Berliri (1964,
p. 104), o pensamento de Jarach (1996) leva à conclusão de que as expressões compra e
venda, depósito e arrendamento constituem, nesse ponto de vista, a mesma coisa.
Mas mesmo nos casos em que se soubesse com certeza tratar-se de uma norma de
Direito Tributário, antes de proceder à sua interpretação literal (antes de se estabelecer se
quando a norma fala em compra e venda se deve considerar o instituto designado como tal no
Direito Privado, ou, ao contrário, se se trata de algo distinto que o legislador tributário quis
designar com tal denominação), deve-se indagar se não se trata de uma daquelas três
hipóteses, apontadas por Vanoni (1973, p. 167-171), em que os institutos de Direito Privado
são referidos pelo Direito Tributário conservando inalterado o seu valor original.
Por outro lado, Berliri (1964) reconhece certa verdade na tese de Vanoni (1932), já
que muitas vezes quando o legislador, para indicar um pressuposto impositivo, emprega uma
determinada expressão jurídica, leva em consideração a situação econômica que corresponde
a dito instituto. É o que ocorre quando a lei tributária conecta o nascimento da obrigação
tributária às qualidades de proprietário, usufrutuário, possuidor, etc. Nestes casos, salvo
raríssimas exceções, nos dizeres de Berliri (1964, 106), a lei tributária liga o nascimento da
obrigação tributária à situação econômica que corresponde a tais instituições, ou seja, à
41
utilidade econômica que elas oferecem. Surge então a dúvida se o fato jurídico que se refere
ao nascimento da obrigação tributária é a instituição jurídica ou a situação econômica que a
ela corresponde.
Para Berliri (1964, p. 106), pode acontecer que o legislador tenha preferido, por
simplicidade na formulação, por maior facilidade de determinação do pressuposto objetivo, ou
por outros motivos, assumir como fato jurídico precisamente a situação jurídica como fórmula
elíptica para indicar a situação econômica correspondente, de maneira que seja este o
verdadeiro fato jurídico ao qual a lei conecta seus efeitos jurídicos. As consequências podem
ser nitidamente distintas em ambas as hipóteses: o vendedor com pacto de reserva de domínio,
por exemplo, pode ser considerado sujeito passivo do imposto e não o adquirente, se se
considera que o fato jurídico da obrigação tributária é a propriedade; chega-se à conclusão
oposta quando se considera que tal fato jurídico é a situação econômica que normalmente
corresponde à propriedade. Como é natural, na investigação necessária para resolver essa
dúvida pesam muito os precedentes históricos da lei, a occasio legis, etc.
Mas, para Berliri (1964, p. 107), a possibilidade antes referida não supõe de modo
algum admitir que a linguagem do legislador tributário seja distinta da linguagem do
legislador de Direito Civil, Administrativo, Penal, etc. Produz-se, em vez disso, uma
consequência muito mais limitada, consistente em que a busca da intenção da lei possa
conduzir à conclusão de que uma determinada palavra tenha sido utilizada em sentido
impróprio ou que ela tenha sido usada visando a uma certa situação econômica que
normalmente corresponde a esse determinado instituto, e que, portanto, a norma poderá
estender-se a outros casos nos quais exista a mesma situação econômica, já que é
precisamente esta a que constitui o pressuposto fático da norma.
Berliri (1964, p. 107) cita os exemplos utilizados por seu irmão, Luigi Vittorio Berliri
(1949), para demonstrar que cabe ao legislador a eleição não somente do fim a que se dirige a
norma, mas também dos meios para se alcançar esse fim com a maior aproximação possível.
Conforme o exemplo de Luigi Berliri (1949, apud BERLIRI, 1964, p. 107), é certo
que ao adotar como elemento determinante para a aquisição da capacidade de se eleger
senador19 o transcurso de um período de quarenta anos a partir da data de nascimento, a lei
não levou em conta as propriedades matemáticas do número quarenta, mas exclusivamente a
maturidade fisiológica que em geral se alcança com o transcurso daquele período. Mas isto
não basta para autorizar o intérprete a assegurar que o fato decisivo para a aquisição da
19 Esse mesmo exemplo é dado por Falcão, 1987, p. 65.
42
capacidade de se eleger senador não seja o transcurso de quarenta anos desde a data de
nascimento, e sim o alcance da maturidade fisiológica que corresponde normalmente aos
quarenta anos de idade. Partindo dessa premissa, deve-se indagar por que a lei, ao fixar-se em
uma determinada situação econômica, em vez de fazer referência direta à mesma, assume
como decisivo esse determinado fenômeno jurídico que pode ser a causa, o efeito ou o indício
daquela situação.
Essa investigação, continua Luigi Berliri (1949, apud BERLIRI, 1964, p. 108), poderá
conduzir a comprovar:
a) que a remissão aos institutos jurídicos cumpre, na lei tributária, uma função
meramente exemplificativa, o que significa que em tais casos o legislador pretende
definir cabalmente uma determinada situação econômica e o faz indicando por via
de exemplo várias situações jurídicas bem conhecidas, às quais corresponde aquela
determinada situação econômica que se quer assumir como relevante, com a
consequência evidente de que esta já não está simplesmente na ratio legis, e sim na
própria lei. É a ela, em realidade, que o legislador conecta diretamente determinadas
consequências tributárias;
b) que o legislador preferiu deliberadamente considerar como relevante para fins
tributários uma determinada situação jurídica suscetível de ser individualizada com
segurança e facilidade, melhor do que a situação econômica que normalmente lhe
corresponde, mas que é, por si mesma, de difícil determinação. O legislador
tributário pode perfeitamente valorar o pró e o contra e decidir “perder em justiça
absoluta o que ganha em certeza e simplicidade de determinação”. É o caso da lei
tributária que determina a tributação da renda da mulher casada legalmente,
cumulativamente à renda do marido. Resta ao intérprete inclinar-se à vontade da lei.
Não poderá estender a norma aos casos em que duas pessoas vivam juntas sem
vínculo matrimonial e nem deixar de exigir o imposto no caso de marido e mulher
que sejam separados apenas de fato, ainda que no primeiro caso se realize e que no
segundo possa ser excluída a situação econômica que normalmente corresponde à
situação jurídica de marido e mulher, que justifica economicamente tal disposição;
c) que a razão pela qual a lei tributária remete a determinado instituto jurídico é que
este se apresenta como uma manifestação externa mais fácil de se determinar do que
a situação econômica correspondente, enquanto que esta última, ao menos na mente
do legislador, não poderia ser definida com independência daquela situação jurídica.
43
Neste caso, se não se tratar de norma excepcional, será aplicada a interpretação
analógica.
Conclui Berliri (1964, p. 111), assim, que para se interpretar uma norma legal não
basta proceder à sua interpretação literal (à determinação do significado de cada uma das
palavras que a compõem), sendo também necessário proceder à busca da intenção da lei, ou
seja, da razão de ser da lei, ou, o que é o mesmo, da necessidade social a cuja satisfação ela se
dirige. Nessa busca possuem grande importância a identificação da occasio legis, ou seja, do
motivo contingente determinante da emanação da lei; o exame dos trabalhos parlamentares; o
estudo sistemático da norma, ou seja, seu enquadramento no sistema jurídico, para determinar
o âmbito daquela segundo a relação com outras normas, argumentando, por exemplo, a
fortiori, a contrariis, ab absurdo, etc.; e, enfim, o estudo histórico, para buscar a solução que
o legislador havia dado ao mesmo problema antes da emanação da norma que se deve
interpretar, e poder assim estabelecer com normas precedentes, em vez de fazê-lo com normas
vigentes, relações análogas às antes indicadas.
As leis tributárias não devem ser interpretadas com base em métodos e princípios
distintos dos que valem para as demais leis, já que também às leis tributárias se aplica o
princípio segundo o qual não se pode dar a uma norma um sentido diverso do que resulta do
significado próprio das palavras e da intenção da lei. Assim, conforme Berliri (1964, p. 116),
somente na busca da intenção do legislador e da ratio legis podem influir as considerações de
ordem econômica e política relativas a um determinado tributo ou à totalidade do sistema
tributário.
Berliri (1964, p. 104) reconhece que Vanoni (1932) posteriormente formulou com
mais precisão sua teoria acerca da interpretação dos institutos de Direito Privado utilizados
pela lei tributária, de maneira que esta acabou por coincidir com o que foi sustentado pelo
próprio Berliri (1964). De fato, a posição de Berliri (1964) acerca da interpretação da norma
tributária não é muito diferente do Método Histórico-Evolutivo defendido por Vanoni (1932).
Esta posterior aclaração poderia ter tornado inútil a crítica à teoria de Vanoni (1932), mas
Berliri (1964) considerou oportuno realizá-la porque Vanoni (1932) formulou com precisão a
tese por ele combatida.
44
2.3.3 Albert Hensel. Oberservações de Andrés Báez Moreno, Maria Luisa González-Cuéllar
Serrano e Enrique Ortiz Calle
Hensel (200520, p. 145-152), jurista alemão cuja primeira obra é de 1924, anterior,
portanto, às obras de Vanoni (1973, cuja primeira obra é de 1932) e de Berliri (1964, cuja
primeira obra é de 1952), também rechaçava a presunção de que o legislador tributário sempre
que se refere a institutos do Direito Privado em verdade quer se referir à substância
econômica subjacente à formalização jurídica. Sua posição inicial era de que a interpretação
econômica era contrária ao princípio da segurança jurídica e implicava o desvirtuamento da
separação dos poderes e a necessária intervenção do legislador para solucionar as
imperfeições da lei tributária.
Conforme Andrés Báez Moreno, Maria Luisa González-Cuéllar Serrano e Enrique
Ortiz Calle (2005, p. 58), autores do Estudo Preliminar da edição espanhola de Direito
Tributário, Hensel (2005) posteriormente flexibilizou sua tese principal (o fato gerador se liga
às formas e conceitos de Direito Privado), reconhecendo a validade da interpretação
econômica e o caráter demasiado estrito da jurisprudência tributária anterior a 1920. Compete
ao intérprete, cada vez em maior medida, a tarefa de descobrir, por meio da interpretação, os
acontecimentos fáticos que a lei pretendeu abarcar. Em vista da diversidade da vida
econômica, cuja configuração jurídica tem sido alterada de forma muito rápida nos últimos
anos, conforme Hensel (2005, p. 146), não basta para satisfazer essa função trazer à colação a
lei e seus antecedentes; é esperada das autoridades chamadas à aplicação das leis tributárias
uma adaptação contínua do conteúdo da norma com base na evolução das circunstâncias
mediante sua correta interpretação. Essa posição de Hensel (2005) é muito parecida com o
Método Histórico-Evolutivo proposto por Vanoni (1932).
O essencial na flexibilização do pensamento inicial de Hensel (2005), segundo Báez
Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 58), é que as considerações
teleológicas na interpretação das normas tributárias (que anteriormente haviam sido
relegadas) passaram a ocupar um lugar central.
Para Hensel (2005, p. 149), nos casos em que o pressuposto de fato se configurar com
referência a conceitos preexistentes em outros ramos do Direito, cabem duas possibilidades:
entender que o Direito Tributário utiliza estes conceitos de um modo meramente auxiliar, de
20 Tradução da 3.ª edição alemã (1933) de Andrés Báez Moreno, María Luisa González-Cuéllar Serrano e Enrique Ortiz Calle.
45
maneira que o determinante não é tanto a forma ou o conceito puro jurídico-privado, mas sim
o evento econômico subjacente a este; ou considerar que a norma pretende atar consequências
tributárias a uma determinada forma ou conceito jurídico-privado que é, em regra, a expressão
externa de um evento econômico.
Hensel (2005, p. 150) aponta, quanto à segunda modalidade de configuração do
pressuposto de fato, que é através da interpretação que se deve solucionar o problema, isto é,
decidir qual foi a intenção do legislador ao incluir, em uma norma tributária, um termo dotado
de um sentido preciso em outro ramo do Direito. Neste sentido, Hensel (2005, p. 149)
esclarece que
qualquer conceito concreto, originário de uma determinada área do direito deve cumprir certas funções em sua esfera de origem. Cada vez se mostra mais errônea a crença de que a maioria dos conceitos tem um único significado em todos os setores da vida jurídica. Em especial, o sistema de conceitos do direito civil, que tem como missão a regulamentação das relações jurídicas entre sujeitos de direito privado, não pode nem deve ser aplicado de maneira igual em suas eventuais consequências tributárias.
Hensel (1956, apud GODOI, 2005, p. 138) entendia que o §5º do Código Tributário
alemão (norma geral antielusão) estava estreitamente vinculado à técnica da fraude à lei. Na
visão do autor, as condutas dos contribuintes que abusavam das formas jurídicas com o
propósito de eludir o imposto não poderiam ser corrigidas com base nos princípios gerais do
Direito ou segundo a interpretação “correta” da lei tributária. Somente um comando
específico do legislador, tal como o do referido §5º, pode autorizar essa correção, uma vez
que a técnica de repressão das condutas de elusão começa onde termina a interpretação
“normal” da lei.
Conforme Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 60), com
quem concordamos, Hensel (2005) não se filia ao pensamento de Becker e Ball, pois em toda
a sua obra há uma preocupação constante e generalizada com as exigências do princípio do
Estado de Direito, as quais, como não poderia deixar de ser, projetam-se também sobre as
questões relativas à interpretação das normas tributárias.
O determinante na obra de Hensel (2005), segundo Báez Moreno, González-Cuéllar
Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 61), é que os limites à interpretação que se desprendem da
exigência do princípio do Estado de Direito e da configuração do Direito Tributário como
direito de intervenção seguem ocupando um papel preponderante. A nosso ver, esses limites
também estão presentes nas teorias de Vanoni (1932) e de Berliri (1964), as quais não
admitem que o papel do legislador seja relegado a um segundo plano.
46
Assim devem ser interpretadas as críticas de Hensel (2005) a Becker e Ball, quanto a
terem ido longe demais na acentuação da autonomia do Direito Tributário para a formulação
de seus próprios conceitos. Assim como para Vanoni (1932) e Berliri (1964), para Hensel
(2005, p. 151) não são metodologicamente idênticas as funções de aperfeiçoamento do Direito
por parte do legislador e o desenvolvimento conceitual (livre de limites) por parte dos
tribunais. A interpretação teleológica, adverte Hensel (2005, p. 152), não deve se desenvolver,
em todos os casos, conforme o ponto de vista econômico, mas sim de acordo com os
princípios da segurança jurídica e da simplificação tributária. As abordagens lógicas e de
oportunidade que obedeçam exclusivamente às próprias concepções do juiz não permitem
estender a obrigação tributária a um fato não sujeito ao imposto.
Destacam Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 61) que a
doutrina alemã não compreendeu a importância da obra de Hensel (2005) e que mesmo após a
redescoberta da interpretação econômica, depois de um período de crise de quase vinte anos,
há poucas referências ao seu pensamento. Segundo Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e
Ortiz Calle (2005, p. 62), embora os argumentos de Tipke, por exemplo, sejam muito
parecidos com as posições de Hensel, é a Tipke que geralmente se atribui a redescoberta da
interpretação econômica na Alemanha.
De acordo com Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 62),
Tipke entende que não se pode optar a priori nem pela interpretação econômica (tida como
primazia do Direito Tributário), nem pela primazia do Direito Privado, na medida em que
ambas as opções devem ser deduzidas, de forma casuística, conforme a finalidade e o sentido
da norma tributária. E esta é precisamente a posição de Hensel (2005), conforme Báez
Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 62), sobretudo na segunda e na
terceira edições de seu Manual de Direito Tributário. Porque o que caracteriza a posição de
Hensel (2005), de forma diferente, por exemplo, de Becker e Ball, é não assumir a priori
presunções de interpretação convergentes ou divergentes, fazendo depender a escolha, em
todos os casos, da interpretação (teleológica) da norma tributária.
Para Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 62), a teoria da
interpretação de Hensel (2005) significou um grande avanço em sua época. De um lado,
reconheceu, no âmbito concreto do Direito Tributário, uma ideia que, mais tarde, seria
atribuída a outros autores: a relatividade dos conceitos jurídicos. De outro, porque permitiu
superar os excessos originados das posições de Becker e Ball.
47
Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 64) destacam, por
outro lado, que os trabalhos de Hensel (2005) mostram um certo desconcerto em torno dos
limites da interpretação. Quando Hensel (2005) reconhece, para todos os efeitos, o critério
teleológico da interpretação da norma tributária, surge para ele um problema de difícil
solução, e este consiste, precisamente, nos limites dessa interpretação. Se até o momento o
sentido literal da norma (identificado com o conceito jurídico-privado) servia como limite, a
adoção da teoria da interpretação econômica, como critério de interpretação teleológica, priva
essa posição de sentido. Não se encontram em Hensel (2005) manifestações determinantes
sobre esse problema.
Ressaltam Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 62) que
esse problema metodológico somente foi resolvido em 1960, com a publicação da
Metodologia da Ciência do Direito de Karl Larenz. Superando este limite que
tradicionalmente se havia ajustado à interpretação das normas (teor literal), o civilista alemão
apresentou uma nova tese que permitiu, na visão dos autores, superar todas as contradições
presentes até o momento. A expressão literal é somente o ponto de partida da interpretação, na
medida em que a esta se podem atribuir distintos sentidos. Desse modo, a interpretação
determina qual dos sentidos possíveis das palavras resulta mais adequado aos critérios de
interpretação e, em particular, à finalidade da norma. Esse limite serviu para superar,
definitivamente, a ideia de que a interpretação econômica das normas tributárias resulta
contrária às exigências derivadas do Estado de Direito. Este é o ponto que faltou a Hensel
(2005), conforme Báez Moreno, González-Cuéllar Serrano e Ortiz Calle (2005, p. 62), para
aperfeiçoar definitivamente sua concepção da aplicação da norma tributária.
2.3.4 A posição de Achille Donato Giannini
A posição do italiano Achille Donato Giannini (1956) não é substancialmente
diferente das posições de Vanoni (1932), Berliri (1964) e Hensel (2005) quanto à matéria aqui
estudada.
Para Giannini (1956, p. 20), a definição do significado dos termos de Direito Privado
utilizados na norma tributária decorre da correta interpretação da lei tributária. O problema da
interpretação dos institutos de Direito Privado conforme o seu significado original ou com
48
base na substância econômica a ele subjacente não é resolvido com um único critério, e sim
com os critérios de interpretação aplicáveis às normas jurídicas em geral. Em outras palavras,
não é o maior ou menor grau de autonomia do Direito Tributário que resolverá o problema do
significado dos termos de Direito Privado utilizados pelo Direito Tributário. Com base no
texto e na finalidade da norma tributária é que se definirá o conteúdo do fato gerador.
Destaca Giannini (1956, p. 19) que o problema do significado dos institutos de outros
ramos jurídicos utilizados pela lei tributária também ocorre em outras áreas do Direito, tal
como no Direito Penal, o qual, na visão do autor, oferece interessante analogia com o Direito
Tributário21.
Para Giannini (1956), conforme Falcão (1987, p. 66), a interpretação econômica é
simplesmente uma técnica especial, como também acontece nos demais ramos do Direito,
quanto ao modo de considerar os fenômenos, fatos ou situações relevantes para a tributação e
de pesquisar-lhes o conteúdo.
Giannini (1956, p. 40-41) cita Berliri (1964) para demonstrar a superação da teoria da
interpretação funcional de Griziotti, a qual vai além da interpretação lógica e leva a resultados
imprevisíveis. A inexigibilidade de determinado tributo previsto em lei, se não se verificar o
devido respeito ao princípio da capacidade econômica, é, para o autor, “simplesmente
absurda”.
O autor, portanto, é contrário aos métodos a priori de interpretação, seja in dubio pro
fisco ou in dubio pro contribuinte. Também é contrário à interpretação literal do Direito
Tributário, o qual deve ser interpretado como qualquer outro ramo do Direito (GIANNINI,
1956, p. 38-39).
Nos casos de isenção e benefícios fiscais, contudo, Giannini (1956, p. 39-40) entende
que a norma tributária deve ser interpretada literalmente, não por força de um princípio geral
de interpretação das normas tributárias, e sim porque, nesses casos, o texto e o espírito da lei
conduzem o intérprete, segundo a técnica jurídica normal de interpretação, a entender a
disposição legal em seu sentido restritivo. O autor atribui a interpretação literal das normas de
21 Palao Taboada (1997, p. 220) observa que, na visão de W. Reiner Walz, enquanto o legislador penal pretende
que os fatos por ele descritos sejam evitados pelos cidadãos, o legislador fiscal deseja que os que ele delimita sejam realizados da forma mais extensa possível e que seu descumprimento seja evitado. Na aplicação da lei tributária se contrapõem interesses do Estado e do contribuinte, como credor e devedor. Só caberia estabelecer um paralelismo com o Direito Penal, segundo W. Reiner Walz (1980, apud TABOADA, 1997, p. 220), se contra o interesse do cidadão em não ser castigado se opusesse o interesse do Estado em castigar, sendo então necessária a intervenção da lei penal. O Estado tem um certo interesse no castigo dos delinquentes, ou seja, no cumprimento da finalidade do Direito Penal; mas este interesse é, certamente, de natureza muito distinta do interesse fiscal e cede perante valores superiores como a liberdade ou a segurança jurídica. Daí a assimetria na aplicação da lei penal entre consequências favoráveis e desfavoráveis ao réu.
49
isenção e benefícios fiscais à conjugação entre a necessária estabilidade do orçamento público
e a máxima garantia de segurança jurídica.
Na visão de Tarsitano (2004, p. 89), Giannini conciliou as posições opostas de Vanoni
(1932) e Berliri (1964), reconhecendo liberdade criadora ao legislador tributário para conferir
às suas instituições um conteúdo específico ou incorporar o conteúdo do Direito Privado.
Discordamos de Tarsitano (2004), pois as ideias de Vanoni (1932) e Berliri (1964) não são
opostas. O próprio Berliri (1964) reconhece que a posição de Vanoni (1932) é muito parecida
com a sua. Tanto Vanoni (1932) quanto Berliri (1964) reconhecem que o Direito Tributário
pode ou não incorporar o conteúdo do Direito Privado. A conclusão de Tarsitano (2004)
talvez decorra de uma análise parcial das obras de Vanoni (1932) e Berliri (1964), sem
considerar que Berliri (1964) manteve sua crítica a Vanoni (1932) apenas porque o trecho
criticado contém com precisão a tese por ele combatida.
2.3.5 Andrea Amatucci
O italiano Andrea Amatucci (1994, p. 579-597) também é contrário à teoria funcional
do Direito Tributário de Griziotti e Jarach (1996). Na visão do autor, a versão original da
interpretação econômica visa a transformar os conceitos de Direito Civil em institutos de
Direito Tributário, mais adequados ao princípio da capacidade econômica. Amatucci (1994)
discorda dessa versão porque o desvio sem limite do significado original do instituto de
Direito Privado compromete a unidade do ordenamento jurídico, o qual pressupõe que todos
os conceitos jurídicos conservem uma essência idêntica em todos os ramos do Direito.
Amatucci (1994, p. 579) entende que nos casos em que o Direito Privado e o Direito
Tributário utilizam o mesmo conceito jurídico, prevalece o conceito de Direito Privado. Em
outras palavras, quando a lei tributária se vale da linguagem conceitual do Direito Privado, o
conteúdo dos conceitos deve ser idêntico22.
22 Assim como Amatucci, Combarros Villanueva (1984, p. 497) entende que é desejável uma interpretação
coincidente do Direito Tributário e do Direito Privado, a fim de que o legislador utilize para os mesmos conceitos as mesmas palavras. A recepção de conceitos jurídico-privados deriva do princípio da unidade do ordenamento jurídico, em virtude do qual os conceitos tomados do Direito Privado devem ser interpretados no sentido do Direito Privado se não se deduzir outra coisa com suficiente evidência das normas tributárias. Ou seja, para afirmar que os conceitos de direito civil utilizados pelo Direito Tributário têm um conteúdo diferente ao atribuído aos mesmos por aquele ramo do direito, é preciso que essa diferença possa ser deduzida da própria lei tributária, considerando o sentido possível das palavras.
50
Ressalta Amatucci (1994, p. 579) que essa prevalência do Direito Privado implica uma
autonomia limitada do Direito Tributário, no sentido de que ao intérprete não é consentido
privilegiar a exigência de uma justa tributação. A interpretação econômica, na concepção do
autor, não é admissível nesse caso.
Amatucci (1994, p. 579-580) entende que é tarefa preliminar do intérprete identificar
se a norma tributária pretende acolher integralmente o instituto de Direito Privado e, em caso
negativo, individualizar a modificação a que está sujeito o referido instituto em função da
relevância dos seus efeitos econômicos.
A interpretação econômica é defendida por Amatucci (1994, p. 580) apenas nos casos
em que a forma aparente ou os vícios de um negócio jurídico são predeterminados pelas
partes com o fim de suprimir ou reduzir artificiosamente os tributos incidentes sobre a relação
econômica que a lei tributária adotou como pressuposto de fato. Conforme demonstramos
anteriormente, essa posição também é adotada por Hensel (2005).
Ao contrário de Combarros Villanueva (1984), Amatucci (1994) entende que a
complexidade do objeto econômico contido no conceito de Direito Privado não permite
afirmar que o método da interpretação econômica seja idêntico à interpretação teleológica de
qualquer norma. Segundo Amatucci (1994, p. 585), Combarros Villanueva (1984) subestima
a capacidade da interpretação econômica de se destacar da interpretação teleológica e assumir
sua própria configuração. A nosso ver, a crítica de Amatucci (1994) decorre da sua visão da
interpretação econômica como forma de combate à elusão fiscal.
2.3.6 Heinrich Beisse
Heinrich Beisse (1984, p. 36-37), jurista alemão que foi juiz no Tribunal Federal de
Finanças, defende a presunção oposta, ou seja, de prevalência do conteúdo econômico. Na
visão do autor,
Da ideia da ‘unidade da ordenação jurídica’ não se pode, segundo o atual entendimento, deduzir que, para a interpretação das leis tributárias, se há, em princípio, de estabelecer uma vinculação ao direito civil, não se podendo mesmo dizer que essa vinculação decorra de preceito constitucional.
51
Para Beisse (1984, p. 9), a interpretação econômica, como forma de aplicação da
interpretação teleológica, é uma necessidade advinda do objetivo perseguido pelo Direito
Tributário. A interpretação econômica, na visão do autor, constitui condição fundamental da
igualdade da tributação e as próprias leis tributárias contêm vários exemplos de que o
legislador tem ponto de partida no critério econômico, tais como o significado fiscal da
atividade ilícita ou imoral, negócios jurídicos ineficazes e o abuso das possibilidades das
formas jurídicas.
Assim como Combarros Villanueva (1984), Beisse (1984) reconhece que a
interpretação econômica, como forma de interpretação teleológica, possibilita a superação do
dissídio entre a teoria do primado do Direito Civil e a teoria da autonomia absoluta do Direito
Tributário. Mas, contrariamente a Combarros Villanueva (1984), Beisse (1984) entende que a
interpretação teleológica apoia uma “preponderante supremacia do critério econômico”.
Para Beisse (1984, p. 38), os institutos de Direito Privado utilizados pela lei tributária
devem ser entendidos de acordo com o seu sentido e fim específicos quando: a própria lei
indica esse sentido claramente, mediante remissões expressas ao Direito Civil, por exemplo;
“a origem histórica do preceito fala claramente em favor de uma interpretação civilística e não
há contra isso nenhuma dúvida séria de ordem sistemática”; ou “a jurisprudência, através da
prática de muitos anos (‘em dúvida’), adotou essa interpretação e o legislador, em relação a
ela, não se viu motivado a corrigir a lei (comando da segurança do direito)”.
Segundo Beisse (1984, p. 22), a jurisprudência do Tribunal Federal de Finanças da sua
época, sobre a interpretação de conceitos de Direito Tributário, resume-se em três princípios:
a) os conceitos econômicos de Direito Tributário, ou seja, os que o Direito Tributário
deve criar ou converter somente para seus objetivos, devem ser interpretados
segundo o critério econômico;
b) os conceitos de Direito Civil, dentro do quadro possível das palavras, devem ser
interpretados economicamente quando o objetivo da lei tributária impõe um desvio
do conteúdo do conceito do Direito Civil. O desvio, como justificou o Tribunal
Constitucional Federal, deve ser “justificado bastante objetivamente”;
c) a vinculação ao conteúdo de institutos de Direito Civil ocorre apenas quando,
conforme o sentido e o objetivo da lei tributária, tem-se certeza de que o legislador
cogitou exatamente desse conteúdo de Direito Civil.
Para Beisse (1984, p. 23-24), “uma interpretação ‘civilística’, que quebra o sistema do
ordenamento legal dos tributos, pode violar o princípio da igualdade da tributação. Deve-se,
52
portanto, considerar a autonomia da criação de conceitos tributários, afinal, também em
relação ao imperativo da interpretação constitucional”. Para o autor, é correta a formulação de
que “na dúvida, a interpretação tem de orientar-se pelo princípio da autonomia do Direito
Tributário na formação de conceitos. Decisivo é, portanto, o critério econômico”.
2.3.7 Klaus Tipke e Joachim Lang
Conforme Tipke e Lang (2008, p. 32223), as leis tributárias, que têm de levar em conta
a capacidade contributiva (princípio fundamental da tributação), conectam-se a
acontecimentos e condições econômicos e necessitam por isso de uma interpretação
econômica, também chamada de “ponto de vista econômico”.
Tal como Combarros Villanueva (1984), reconhecem os autores que o ponto de vista
econômico não é nenhum método especial do Direito Tributário. O ponto de vista econômico
é parte da interpretação teleológica da lei, visto que leis tributárias têm como objetivo
acontecimentos e condições econômicos.
Para Tipke e Lang (2008, p. 322), assim, a maioria dos conceitos tributários, tais como
a renda e o enriquecimento, a priori somente podem ser economicamente interpretados. Mas
também os conceitos de Direito Civil empregados pelo legislador tributário devem ser
teleologicamente orientados pela finalidade da lei tributária. Considerando que finalidades
diferentes fundamentam o Direito Civil e o Direito Tributário, a interpretação teleológica do
mesmo conceito pode levar a resultados diferentes.
Reconhecem Tipke e Lang (2008, p. 322) que após a entrada em vigor do §4º do
Código Tributário alemão de 1919, o ponto de vista econômico enveredou pelo método da
Escola da Livre Investigação do Direito, que se desprendia demasiadamente das formas de
Direito Privado. Na visão dos autores, um ponto de vista econômico tão flutuante não poderia
prevalecer, uma vez que acontecimentos e condições econômicos são configurados por meio
do Direito Privado. De fato, por volta dos anos cinquenta, a jurisprudência alemã adotou a
premissa oposta, do primado do Direito Civil sobre o Direito Tributário.
23 A 18ª edição da obra de Tipke e Lang, Steurrecht, é de 2005. A tradução dessa 18ª edição, por Luiz Dória
Furquim, é de 2008.
53
Para Tipke e Lang (2008, p. 323-324), nem a primeira (primazia do Direito
Tributário), nem a segunda fase (volta da primazia do Direito Privado), conduzem a
resultados corretos:
Na interpretação de conceitos legais tributários deve-se em primeiro lugar partir do princípio de que não existe nenhuma prevalência teleológica do Direito Civil (vide agora acima o § 1 Rz. 16 ff). Pelo contrário, deve-se examinar com fundamento na teleologia da lei tributária, se e em que proporção um conteúdo de regramento civilístico também co-determina a consequência jurídica da lei tributária. Assim deve-se uma situação de fato civilisticamente configurada em primeiro lugar qualificar civilisticamente e só então examinar, se ela adscrever-se econômico-teleologicamente ao tipo legal da lei tributária. Coincidindo a qualificação de Direito Civil com a finalidade da lei tributária, então o Direito Civil é preponderante (massgebend) (s. K. Tipke, StRO III, 1295). Conduzindo entretanto a interpretação teleológica da lei a um conceito jurídico-tributário derrogante do direito civil, assim deve esse interpretar-se econômico-teleologicamente (destaques dos autores).
O Direito Tributário, portanto, não se vincula ao invólucro jurídico adotado pelos
contribuintes, mas a forma de Direito Civil pode ser preponderante na interpretação de
conceitos tributários se essa forma refletir a situação econômica verdadeira. O importante é
como as partes realmente configuraram o negócio jurídico. Destacam Tipke e Lang (2008, p.
326) que ao Direito Tributário interessa o economicamente realizado, o “é” econômico.
É por essa razão que negócios jurídicos ineficazes ou nulos podem não obstante gerar
efeitos tributários, a despeito da sua ineficácia, porque podem manifestar capacidade
econômica. Negócios e atos simulados, por outro lado, não desencadeiam efeitos econômicos
ou fáticos e por isso são irrelevantes do ponto de vista tributário (não são realizados). Sendo
ocultado, através de um negócio simulado, um outro negócio jurídico, então o negócio
jurídico oculto é importante para o Direito Tributário. Ressaltam Tipke e Lang (2008, p. 328)
que o mesmo ocorre no Direito Civil, “que não quer de modo algum ter algo a ver com meras
roupagens”.
Para Tipke e Lang (2008, p. 329), o desdobramento do princípio de que para a
tributação segundo a capacidade contributiva interessa a apreensão do “econômico” resulta
nas seguintes conclusões:
a) se um negócio jurídico eficaz não é faticamente realizado, ele é irrelevante do ponto
de vista tributário;
b) considerando que interessa o “é” econômico, são irrelevantes do ponto de vista
tributário a pré-datação (inserção de uma data falsa) e a pré-vinculação (entrada em
vigor com retroatividade) de contratos. Ao tempo da pré-datação ou pré-vinculação
falta a realização econômica;
54
c) para a determinação do conteúdo do negócio jurídico, é importante “como” os
partícipes realizaram faticamente o negócio jurídico.
Entretanto, a interpretação de conceitos tributários específicos, como ressaltam Tipke
e Lang (2008, p. 64), exige que o aplicador do direito esclareça com precisão quais efeitos o
regramento civil desencadeia sobre o fato ou condição econômicos. É necessário, assim, que a
situação jurídico-civil seja precisamente averiguada:
Se, por exemplo, distribuição disfarçada de lucros em consequência de ofensa a uma proibição de concorrência pelo sócio controlador vem a ser presumida, então deve ser esclarecida previamente a existência jurídico-civil de uma tal proibição de concorrência (s. § 11 Rz. 71). Na determinação de rendimentos de uma co-empresariedade tem influência decisiva o direito societário porque o regramento jurídico-civil das responsabilidades (Rechtszuständigkeiten) também constitui a qualificação econômica dos acontecimentos (s. § 18 Rz. 16 ff.). Contudo, não pode o aplicador do direito na reincursão ao direito civil perder de vista a tarefa de interpretar uma lei tributária.
Quanto ao abuso de formas, Tipke e Lang (2008, p. 333) entendem que a elusão de
leis tributárias, mediante abuso de possibilidades de formas jurídicas, é uma subclasse da
elusão da lei. O destinatário da norma configura uma situação de fato de tal modo que uma
consequência jurídica desfavorável, que lhe caberia segundo o escopo da lei, não ocorre, ou
ele, contra o escopo da lei, provoca uma consequência jurídica favorável, tal como uma
subvenção ou vantagem fiscal.
Para os autores, o §42 do Código Tributário alemão visa a realizar o objetivo da lei
tributária e por isso a elusão fiscal deve ser revidada em primeiro lugar com os recursos da
interpretação teleológica e o aperfeiçoamento através de colmatação de lacunas da lei.
Ademais, nos Estados Unidos, por exemplo, a elusão fiscal é combatida sem norma sobre
elusão, com a pretoriana substance-over-form-doctrine.
Na visão dos autores, é desnecessária uma especificação legal da substance-over-form-
doctrine. O §42, nesse sentido, serve ao princípio da legalidade è a segurança do
planejamento tributário. O regramento sobre a elusão fiscal é regra jurídica “não-autônoma”,
na forma de uma norma auxiliar teleológica. Segundo Tipke e Lang (2008, p. 334), o §42
apoia a finalidade da norma típica legal tributária no direito positivo. Nas hipóteses desse
parágrafo, o sujeito passivo esquiva-se ao tipo legal de tal modo que os métodos de
interpretação e aperfeiçoamento jurídico não bastam para sujeitar o contribuinte a uma
imposição apropriada segundo a finalidade da lei.
55
A esfera de aplicação metódica do §42, portanto, é definida pela projeção de lícita
colmatação de lacunas24. Assim, quanto mais extensivamente for admitido o aperfeiçoamento
de leis tributárias, menor será a esfera de aplicação do §42 (TIPKE; LANG, 2008, p. 335).
No interesse do princípio da legalidade, esse parágrafo põe fim à polêmica sobre um
demasiado aperfeiçoamento extensivo de leis tributárias. Conforme Tipke e Lang (2008, p.
335), isso torna mais clara a consequência jurídica:
o §42 I 2 AO [Código Tributário alemão de 1977] combate a elusão fiscal com a ficção de uma adequada situação de fato: o aplicador do direito está autorizado a colocar no lugar da situação de fato verdadeira uma situação de fato ‘adequada aos acontecimentos econômicos’. Com isso distingue-se claramente o método do ponto de vista econômico normado no §42 AO do método de interpretação de deduzir da lei a consequência jurídica para a verdadeira situação de fato (itálicos dos autores).
Assim, para os autores, o §42, como preceito fundamental da elusão da lei, vige para o
“total Direito Tributário”, e não apenas para o Direito Obrigacional Tributário, mas também
para o Direito Processual Tributário, para normas de fim fiscal e normas de fim social,
inclusive subvenções.
Relatam Tipke e Lang (2008, p. 335) que o Tribunal Federal de Finanças entende que
o §42 do Código Tributário alemão também se aplica ao Direito Tributário internacional, com
os limites especiais dos tratados para evitar a dupla tributação.
Segundo o §42 I 1, não pode a lei tributária ser evitada por meio de “abuso de
possibilidades de configuração do direito”. Destacam os autores que a pacífica jurisprudência
do Tribunal Federal de Finanças entende que existe abuso de forma, no sentido do §42 I 1,
quando a forma jurídica escolhida é descabida, servirá à redução de tributos e não está
justificada por razões econômicas ou outras atendíveis. Esses elementos são cumulativos
(TIPKE; LANG, 2008, p. 336). A jurisprudência também entende como abuso de forma no
sentido do §42 I 1 a forma descabida utilizada para a realização de um preceito favorecedor.
Conforme Tipke e Lang (2008, p. 336),
O descabimento da forma jurídica tem em mira a redução de impostos através de esquivança a consequências fiscais mais onerosas ou realização delas favorecedoras. Sendo impostos minimizados através de forma jurídica adequada, não existe nenhuma elusão tributária. A minimização de impostos admitida pela lei deve ser tolerada.
24 Relata Palao Taboada (2009, p. 51) que, na visão de Tipke, enquanto na fraude à lei aplica-se a norma a um fato imponível fictício adequado aos fatos econômicos, na analogia, ao contrário, o que se finge é um suposto normativo similar ao estabelecido na lei, que o sujeito não realizou. Em outras palavras, na fraude à lei finge-se o fato imponível (concreto) e na analogia finge-se o pressuposto normativo.
56
Segundo Machado (1984, p. 16), Tipke considera supérflua a interpretação econômica.
Para esse autor alemão, todas as leis, inclusive as tributárias, devem ser interpretadas em
função de seu objetivo. Por isso se põe em plano a interpretação teleológica, em que o critério
econômico é reflexo do princípio fundamental da tributação fundada na capacidade
econômica do contribuinte. A só consideração de que o econômico está na raiz do Direito
Tributário e que toda interpretação jurídica há de ser teleológica torna dispensável uma regra
legal que imponha um critério ao seu intérprete.
2.3.8 Carlos Palao Taboada
Conforme Palao Taboada (2009, p. 35), a margem de liberdade do intérprete para
definir o alcance dos termos e expressões utilizados pela norma tributária é um problema
permanente na aplicação do Direito Tributário. Esse problema, na verdade, reflete a tensão
entre a lei e a realidade social.
Na visão do autor, há essa tensão porque frequentemente o intérprete considera que
determinados fatos, cuja inclusão no fato gerador (subsunção) é problemática, devem originar
o nascimento da obrigação tributária. Também pode ocorrer o problema inverso, ou seja, o
intérprete pode considerar que determinado fato que em princípio estaria compreendido no
pressuposto de fato normativo não deve originar a obrigação tributária. Conforme Palao
Taboada (2009, p. 36), trata-se dos clássicos exemplos do imposto sobre cachorros que não
exclui os cães-guia para cegos e do imposto sobre o consumo que não exclui os bens e
serviços de primeira necessidade.
Nesses casos, para se evitar o confronto com o princípio da capacidade econômica,
seria necessário reduzir o âmbito de aplicação do pressuposto de fato. Essa operação, segundo
Palao Taboada (2009, p. 36), é semelhante à operação realizada por meio da analogia. Em
ambos os casos (redução e extensão ou integração analógica) existe uma lacuna na norma,
oculta no primeiro caso e aberta no segundo.
A constatação da existência de uma lacuna não é um processo lógico, e sim valorativo.
Conforme Palao Taboada (2009, p. 36), chega-se à conclusão de que a lacuna existe mediante
a constatação da falta de uma norma ou de uma restrição a uma norma, de forma contrária ao
plano imanente da lei. O descobrimento da lacuna e a justificação da analogia, como adverte o
57
autor, compõem o mesmo processo de raciocínio, consistente na apreciação da “identidade de
razões” entre os casos.
A redução normativa empreendida pelo intérprete (Administração Tributária ou
Judiciário) não suscita maiores problemas, por se tratar de analogia in bonam partem, a qual,
conforme Palao Taboada (2009, p. 36), naturalmente não é questionada pelos interessados.
A analogia in malam partem, por outro lado, implica a extensão do fato gerador, ou
seja, o intérprete entende que um determinado fato deve ser tributado porque é análogo aos
contemplados na lei. Nos dizeres de Palao Taboada (2009, p. 36), considera-se que essa
tributação é justa porque o fato em exame revela a mesma capacidade contributiva que a lei
pretende atingir.
Esse problema está associado à tensão antes referida, a qual, conforme Palao Taboada
(2009, p. 36), também pode ser formulada como resultado da contraposição dos princípios da
legalidade e da capacidade contributiva ou deste último com o da segurança jurídica. Na visão
do autor, não há dúvida de que a segurança jurídica desapareceria, e com ela todo o Estado de
Direito, se o intérprete pudesse aplicar a lei como bem pretendesse. Mas também não há
dúvida, por outro lado, de que é insustentável uma interpretação grosseiramente literalista. O
problema, segundo o autor, é encontrar um equilíbrio entre os extremos.
Palao Taboada (2009, p. 177) chama de formalista a atitude que prioriza o texto da lei
em relação a outras considerações e de substancialista a atitude contrária. O problema da
elusão fiscal, na visão do autor, está no centro do debate entre os formalistas e os
substancialistas. O surgimento da teoria da interpretação econômica está diretamente
relacionado com a luta contra a elusão fiscal.
Destaca o autor que a abordagem do problema da elusão fiscal como um problema de
conflito entre forma e substância constitui uma das contribuições mais recentes sobre a
questão. Não é que as abordagens tradicionais desconhecessem o significado das
considerações substancialistas, presentes de forma destacada nas primeiras formulações da
doutrina da interpretação econômica. O que ocorreu, conforme Palao Taboada (2009, p. 178),
é que esse tipo de consideração foi ocultado pela doutrina posterior, por meio de um corte
dogmático. Por outro lado, na medida em que as atitudes frente à interpretação refletem
também pontos de vista filosóficos ou ideológicos, as novas abordagens25 facilitam a
25 Palao Taboada (2009, p. 178) cita como exemplo dessa forma de análise os trabalhos de Karsten Nevermann
(Justiz und Steuerumgehung. Ein kritischer Vergleich der Haltung der Dritten Gewalt zu kreativer steuerlicher Gestaltung in Grôabritannien und Deutschland, Duncker & Humblot, Berlin, 1994, na Alemanha, e de Godoi (2005), no Brasil.
58
introdução da análise de tais aspectos, mesmo que eles não constituam o seu objeto
fundamental26.
Na visão de Palao Taboada (2009, p. 38), as teorias sobre a interpretação da lei
tributária, tal como a teoria da interpretação econômica desenvolvida por Becker [193?], são,
na verdade, teorias sobre a qualificação dos fatos ou, como prefere o autor, sobre a
qualificação dos pressupostos de fato da realidade.
Segundo Palao Taboada (2009, p. 37), a qualificação não se distingue da subsunção,
pois somente é possível uma subsunção sem qualificação quando a hipótese normativa
(premissa maior) é definida em termos puramente fáticos. A subsunção, por sua vez,
pressupõe a interpretação (determinação da premissa maior) e a fixação dos fatos (o que
ocorreu na realidade). Com base em Engish, Palao Taboada (2009, p. 37) explica que essas
operações constituem uma operação dialética, um “ir e vir” entre a norma e o pressuposto de
fato da realidade.
Relata Palao Taboada (2004, p. 63) que o art. 23.127 da Lei Geral Tributária espanhola
de 1963 (LGT/63) visava a afastar a teoria da interpretação econômica acolhida na Alemanha
e na Itália, segundo a qual os termos utilizados pelas normas tributárias, especialmente os
termos técnicos, que têm seu significado determinado por outros ramos jurídicos, não devem
ser interpretados de acordo com esse significado jurídico, e sim com base na sua substância
ou no seu conteúdo econômico.
Na época da elaboração da LGT/63, segundo Palao Taboada (2004, p. 63), julgou-se
oportuna a inclusão de uma norma expressa que vedasse a interpretação econômica. Os que
redigiram a LGT/63, contudo, não tiveram em conta, conforme o autor, as profundas relações
entre a interpretação e a qualificação e tampouco o fato de que as doutrinas da interpretação
econômica são fundamentalmente doutrinas relativas à qualificação, cujo objetivo consiste na
luta contra a elusão fiscal. Por outro lado, conforme Palao Taboada (2004, p. 63), o art. 23.1
da LGT/63 permitia o afastamento de outras doutrinas sobre a interpretação das normas
tributárias, ainda mais antigas que a teoria da interpretação econômica, tal como a teoria da
26 Ressalta Palao Taboada (2009, p. 179) que a doutrina contrária ao combate à elusão fiscal tem raízes ideológicas
e políticas decorrentes de um liberalismo intransigente que afirma o predomínio da autonomia individual sem outros limites que não os que resultam do texto expresso da lei. Para o autor, o sucesso ou o fracasso de quaisquer técnicas de combate à elusão fiscal depende, antes que de sua qualidade técnica, de o intérprete compartilhar os mesmos critérios valorativos da norma.
27 “Art. 23. 1. As normas tributárias serão interpretadas com base nos critérios admitidos em Direito. 2. Se não estiverem definidos pelo ordenamento tributário, os termos empregados em suas normas serão
entendidos conforme o seu sentido jurídico, técnico ou usual, conforme o caso. 3. Não se admitirá a analogia para estender para além de seus estritos termos o âmbito do fato imponível ou das
isenções ou bonificações” (tradução livre).
59
interpretação restritiva do Direito Tributário com base no caráter excepcional e peculiar de
suas normas.
Na visão de Palao Taboada (2004, p. 63), a norma do art. 23.1 perdeu em boa parte (se
não totalmente) a sua finalidade inicial, mas por certo sobreviveu às reformas de 199528 (Lei
25/95) e de 2003 (Lei 58/2003) devido à sua origem como forma de afastamento da
interpretação econômica. Conforme o autor, no “Informe da Comissão para o Estudo e a
Proposta de Medidas para a Reforma da LGT”, de março de 2001, consta que ainda que a
norma do art. 23.1 seja óbvia, sua manutenção é conveniente para se evitar qualquer tentativa
de aplicação da interpretação econômica.
O item I do art. 1229 da LGT/2003 reflete o preceito do art. 23.1 da LGT/63, apenas
com a substituição da expressão “com base nos critérios admitidos em Direito” pela expressão
“com base no que dispõe o item I do art. 3º do Código Civil”. Segundo o autor, essa norma do
Código Civil espanhol constitui uma síntese dos critérios admitidos em Direito e por isso a
referida substituição de expressões não é relevante.
Na visão de Palao Taboada (2004, p. 64), menos justificativa ainda tem a reprodução,
pelo item 2 do art. 12 da LGT/2003, do item 2 do art. 23 da LGT/63, com a única e irrelevante
substituição do termo “ordenamento” pelo termo “legislação”.
O texto atual do art. 12.2, conforme o autor, determina que, se não forem definidos
pela legislação tributária, os termos empregados em suas normas serão entendidos conforme o
seu sentido jurídico, técnico ou usual.
Palao Taboada (2004, p. 64) destaca que a principal questão é saber quando se deve
adotar um ou outro sentido, sendo certo que essa decisão consiste precisamente no resultado
da interpretação, que há de ser feita, segundo o art. 12.1 da LGT/2003, de maneira exatamente
igual à de qualquer outro ramo jurídico. Por essa razão, entende o autor que a norma do art. 12
é supérflua.
28 Conforme Godoi (2005, p. 200), muitas das alterações implementadas pela Lei 25/1995 consistiram em uma
resposta às críticas doutrinárias acerca da anterior regulação da analogia, do procedimento de declaração à fraude à lei, da simulação, da qualificação dos fatos, etc.
29 “Art. 12. 1. As normas tributárias serão interpretadas com base no disposto no item 1 do art. 3º do Código Civil. 2. Se não estiverem definidos na legislação tributária, os termos empregados em suas normas serão entendidos
conforme o seu sentido jurídico, técnico ou usual, conforme o caso. 3. No âmbito das competências do Estado, a faculdade de adotar disposições interpretativas ou aclaratórias das
leis e demais normas tributárias compete de forma exclusiva ao Ministro da Fazenda. As disposições interpretativas ou aclaratórias serão de cumprimento obrigatório para todos os órgãos da Administração Tributária e serão publicadas no diário oficial correspondente” (tradução livre).
60
Sobre os critérios de qualificação, Palao Taboada (2004, p. 66) relata que o art. 1330 da
LGT/2003 corresponde substancialmente ao art. 28.231 da LGT/63. Essa norma originou-se da
reforma de 199532 (Lei 25/95) e substituiu a redação original da norma de qualificação
prevista no art. 25, a qual, na visão do autor, acolhia a doutrina da interpretação econômica:
Art. 25. 1. O imposto será exigido com base na verdadeira natureza jurídica ou econômica do fato imponível. 2. Quando o fato imponível consistir em ato ou negócio jurídico será qualificado conforme a sua verdadeira natureza jurídica, qualquer que seja a forma eleita ou a denominação utilizada pelos interessados, prescindindo dos defeitos intrínsecos ou de forma que poderiam afetar a sua validade. 3. Quando o fato imponível for delimitado com base em conceitos econômicos, o critério para qualificá-lo terá em conta as situações e relações econômicas que, efetivamente, existam ou sejam estabelecidas pelos interessados, com independência das formas jurídicas utilizadas.
Destaca Palao Taboada (2009, p. 58-59) que a redação original do antigo art. 25
outorgava à Administração Tributária uma liberdade exagerada para a qualificação dos fatos
imponíveis. Essa liberdade era absoluta se o fato imponível fosse delimitado com base em
conceitos econômicos, em cujo caso a Administração Tributária poderia prescindir por
completo das formas jurídicas e atender às situações e relações econômicas subjacentes. A
Administração Tributária, segundo o autor, também tinha ampla liberdade para qualificar o
fato gerador consistente em ato ou negócio jurídico com base na sua verdadeira natureza
jurídica.
Palao Taboada (2009, p. 59) considera que a distinção entre fatos geradores de
natureza jurídica e de natureza econômica é criticável não apenas por que todo fato imponível
definido em lei tem natureza jurídica, mas também por que os fatos imponíveis não são
delimitados atendendo-se exclusivamente a conceitos econômicos. Mesmo na definição de
fatos geradores de pura raiz econômica, tal como a renda, a legislação se vale constantemente
30 “Art. 13. As obrigações tributárias serão exigidas com base na natureza jurídica do fato, ato ou negócio
realizado, qualquer que seja a forma ou denominação que os interessados tenham adotado, e prescindindo dos defeitos que poderiam afetar sua validade” – tradução livre.
31 “Art. 28. 1. O fato imponível é o pressuposto de natureza jurídica ou econômica fixado pela lei para configurar cada tributo e cuja realização origina o nascimento da obrigação tributária.
2. O tributo será exigido com base na natureza jurídica do pressuposto de fato definido pela lei, qualquer que seja a forma ou denominação que os interessados lhe tenham atribuído, e prescindindo dos defeitos que poderiam afetar sua validade” – tradução livre.
32 Na visão de Godoi (2005, p. 203), a alteração do art. 25 (convertido no art. 28) foi uma das mais importantes da reforma de 1995 e refletiu a crítica quase unânime da doutrina espanhola. Na Exposição de Motivos foi registrado que o objetivo da Lei 25/1995 era eliminar os aspectos das normas sobre a interpretação da legislação tributária que pudessem afetar o princípio da segurança jurídica.
61
de conceitos jurídicos, tais como os de bem e imóvel, sociedade, propriedade intelectual,
seguro, título oneroso e gratuito, etc.
O art. 25 da LGT/63 permitia, enfim, que a Administração Tributária desconsiderasse
as formas jurídicas visando a alcançar a verdadeira natureza do fato imponível, a qual, no caso
dos fatos geradores jurídicos, corresponde à forma adequada às situações e relações
econômicas. Ressalta Palao Taboada (2009, p. 59) que essa consequência é exatamente a
mesma da fraude à lei e que por isso a utilização do art. 25 por vezes ultrapassou os limites da
qualificação. Ademais, como adverte Palao Taboada (2009, p. 59), não havia um
procedimento especial e nem a necessidade de se demonstrar a ocorrência dos pressupostos da
fraude à lei.
Conforme o autor, a nova redação da norma de qualificação, contida no art. 28.2 da
LGT/63 como resultado da reforma de 1995, reconduziu essa operação a seus justos limites,
que não são outros que os do negócio jurídico efetivamente realizado, de acordo com o ramo
jurídico correspondente. Não prevaleceram na redação do art. 28.2 da LGT dada pela reforma
de 1995, acertadamente, conforme Palao Taboada (2009, p. 60), a referência à “verdadeira
natureza” do fato imponível (que ia além da natureza jurídica) e a dupla qualificação em
função da natureza jurídica ou econômica do fato gerador.
Assim, segundo Palao Taboada (2004, p. 66), somente se poderá prescindir da
qualificação resultante da aplicação das normas de Direito Privado (ou de outros ramos
jurídicos) quando restar comprovado, com base nos métodos normais de interpretação, que o
negócio jurídico foi realizado em fraude à lei. Em outras palavras, o negócio jurídico que não
foi realizado em fraude à lei, conforme o autor, não pode ser submetido a uma imposição
tributária não prevista em lei, ainda que seu significado e seus efeitos econômicos coincidam
com os do negócio gravado.
Palao Taboada (2009, p. 61) reconhece que tanto na interpretação quanto na
qualificação não é vedado que se tome em consideração o significado econômico dos
negócios ou fatos realizados. Trata-se, conforme o autor, da versão atual e moderada das
antigas teorias da interpretação econômica. Segundo essa nova versão, a consideração dos
aspectos econômicos visa a atender ao aspecto teleológico da interpretação e por isso não
constitui qualquer especialidade do Direito Tributário.
Com base na obra de Combarros Villanueva (1984), Palao Taboada (2009, p. 61)
destaca que uma das funções dessa nova versão da interpretação econômica é justamente
identificar os casos em que os termos de Direito Privado foram utilizados pela lei tributária
62
em um sentido diverso do que lhes é atribuído em seu ramo de origem. A existência desse
sentido diverso, identificado na própria lei tributária, condiciona a qualificação dos fatos. Mas
se a lei não oferecer uma base adequada para se alcançar esse sentido diverso, prevalecerá,
conforme o autor, o sentido jurídico-privado do instituto utilizado na norma tributária. Em
outras palavras, tanto a interpretação quanto a qualificação estão sujeitas aos conceitos e
critérios contidos na lei e não podem alterar o sentido possível dos termos por ela
empregados.
Segundo Palao Taboada (2009, p. 38), a teoria da interpretação econômica, assim
entendida, coincide substancialmente com doutrinas geralmente aceitas em outras culturas
jurídicas, tal como a teoria da substance over form, segundo a qual, na aplicação das leis
tributárias, a substância (jurídica) dos atos e negócios deverá prevalecer sobre a sua forma.
Conclui o autor, assim, que a versão moderna da interpretação econômica é
plenamente aceitável, como entende a maior parte da doutrina espanhola, e que os limites da
integração normativa admitida por essa teoria encontram-se no “sentido possível das
palavras”. Além desse limite, conforme Palao Taboada (2009, p. 38), há a analogia, sobre a
qual falaremos na seção 4.
2.3.9 Síntese da versão equilibrada da interpretação econômica
A versão equilibrada da interpretação econômica reflete o consenso de que a norma
tributária não demanda nenhum critério especial de interpretação, de que não são admissíveis
quaisquer métodos a priori de interpretação e de que é tarefa do intérprete, em cada caso
concreto, resolver o problema do significado dos termos de Direito Privado utilizados pelo
Direito Tributário.
Também é presente nos autores integrantes da versão equilibrada da interpretação
econômica o entendimento de que os diversos critérios da interpretação jurídica, tal como o
critério econômico, visam a desvendar o espírito e a finalidade concreta da lei e de que a
interpretação se move entre o mínimo e o máximo sentido literal possível das palavras em seu
próprio contexto normativo. É constante a preocupação desses autores com a manutenção da
segurança jurídica (abalada pela versão original da interpretação econômica) e com o
afastamento de toda e qualquer tentativa do Judiciário de se imiscuir no papel do Legislativo.
63
De forma mais restrita, mas sem se afastar da versão equilibrada, Amatucci (1994)
defende que a interpretação econômica visa apenas a coibir determinadas formas de se evitar
o tributo que não configurem evasão ou infração (elusão fiscal), similar às técnicas do abuso
de direito e da fraude à lei. Vale dizer, se o contribuinte agir em fraude à lei, o intérprete
poderá avaliar e qualificar a realidade segundo uma visão adequada aos fatos, desvinculada
das formas jurídicas artificiosamente utilizadas pelo contribuinte.
A versão equilibrada da interpretação econômica, portanto, seja como critério de
interpretação teleológica, seja como forma de combate à elusão fiscal, demonstra a inequívoca
superação da presunção absoluta de que o legislador tributário, sempre que se refere a
institutos do Direito Privado, em verdade se refere à substância econômica subjacente à
formalização jurídica. A atual versão da interpretação econômica em nada se parece com a
versão desenvolvida no início do século passado na Itália e na Alemanha, e nada tem de
contrário à segurança jurídica.
2.4 Crítica da atual corrente formalista à interpretação econômica do Direito Tributário
Conforme demonstrado, na grande maioria dos países, há muito tempo o tributo
deixou de ser considerado algo odioso e passou a ser visto como um instrumento
indispensável à própria existência do Estado de Direito.
Parte da doutrina brasileira, contudo, continua vendo o tributo como algo a ser
meramente “tolerado”, algo que não traz consigo qualquer carga de justiça. Para essa corrente
doutrinária, a norma tributária é restritiva de direitos e por isso sua interpretação deve se dar
de forma literal (como se a interpretação literal fosse necessariamente restritiva). Para Ives
Gandra da Silva Martins (1998, p. 129), por exemplo, a norma tributária, por excelência, é
norma de rejeição social, pois a obrigação de recolher o tributo se sustenta na previsão da
sanção, e não em algum princípio de justiça subjacente à norma.
A doutrina formalista é refratária às teorias mais modernas da interpretação do Direito
Tributário que reconhecem que a interpretação jurídica é uma tarefa que não se pode cumprir
sem uma considerável “carga criativa”33 e sem que frequentemente entrem em ação
determinadas convicções do intérprete sobre “o que é e quais são” os fundamentos do Direito.
33 Cfr. Dworkin, 1995, p. 87-113.
64
Conforme Godoi (2010), os que consideram que o Direito existe principalmente para
assegurar a paz social e, intervindo o menos possível na vida privada dos cidadãos, garantir a
certeza e a previsibilidade nas relações entre os indivíduos, provavelmente interpretarão
muitas questões de forma diametralmente oposta à dos que entendem que o objetivo precípuo
do Direito é promover a justiça e dar a todos os cidadãos igualdade de oportunidades para
desenvolverem sua personalidade e seus talentos pessoais.
O mesmo ocorre com relação ao Direito Tributário. Como alerta Godoi (2010), se um
juiz considera que a principal função da forma atual de nosso Estado é, intervindo o menos
possível na ordem social, promover segurança e certeza jurídicas para que as pessoas físicas e
jurídicas possam exercer livremente sua autonomia privada desde que tal exercício não
prejudique a autonomia dos demais cidadãos, então sua concepção sobre o papel do tributo,
do sistema tributário e da própria interpretação do Direito Tributário será uma concepção bem
distinta da de um juiz que considere que o paradigma atual de Estado exige a transformação
das condições sociais de modo a que todos os cidadãos tenham uma liberdade o mais igual
possível no que diz respeito ao nível de participação na definição dos rumos políticos da
sociedade (autonomia pública) e uma igualdade equitativa de oportunidades para a busca e a
realização de seus projetos pessoais de vida (autonomia privada).
Isso não quer dizer que o ordenamento jurídico seja uma massa sem forma que possa
ser livremente moldada pelas mãos de intérpretes que não foram eleitos pelo povo. O
princípio democrático e a divisão dos poderes garantem que as decisões tomadas pelos
legisladores das diversas entidades federativas condicionem em grande medida as
interpretações que conformarão o conteúdo concreto das normas jurídicas do ordenamento.
Mas é uma ilusão pensar que o Direito já sai pronto dos corredores dos órgãos legislativos ou
dos gabinetes dos órgãos executivos. Como observa Dworkin (1995, p. 349-50), a história do
direito começa bem antes do momento canônico em que uma lei é sancionada ou um decreto é
assinado, e continua por muito tempo depois, pelo tempo necessário para que a realidade
social – de um lado – e a atividade valorativa dos intérpretes – de outro lado – conformem – e
depois voltem a alterar uma e outra vez – o conteúdo concreto de cada norma jurídica.
É necessário, portanto, que os aplicadores do direito conheçam profundamente os
condicionamentos históricos e culturais da experiência jurídica concreta vivida em
determinado país, as relações fático-sociais relevantes para determinada regulação jurídica e a
evolução jurisprudencial responsável por cristalizar o conteúdo das normas jurídicas.
65
A atual corrente formalista do Direito Tributário, contudo, é contrária até mesmo à
versão da interpretação econômica segundo a qual o Direito Tributário pode aplicar técnicas
jurídicas similares às do abuso de direito e da fraude à lei para coibir determinadas formas de
se evitar o tributo que não configurem propriamente evasão ou infração à lei. A interpretação
econômica do Direito Tributário é comumente considerada no sentido pejorativo da presunção
absoluta de que os conceitos de Direito Privado mencionados pela norma tributária têm
sempre um conteúdo distinto do conceito privado, ou no sentido de permitir ao intérprete a
livre investigação dos fatos a fim de aplicar o mesmo tratamento tributário a situações
economicamente semelhantes.
Segundo Godoi (2005, p. 115-116), essa corrente formalista do Direito Tributário,
presente em vários países e bastante influente no Brasil, Itália, Portugal, Bélgica e Espanha,
entende que a autonomia privada e a liberdade do indivíduo de fazer tudo o que a lei não
proíbe se expressa no campo tributário através do direito de criar e escolher as configurações
e formalizações negociais que impliquem menores custos tributários, ainda que as
formalizações sejam artificiosas e inadequadas. A segurança jurídica, o princípio da
legalidade e a proibição de tributação por analogia não permitiriam que tenham aplicação na
dinâmica da imposição tributária técnicas tais como a do abuso de direito e da fraude à lei,
figuras que, ademais, têm se desenvolvido no terreno privado e seriam dogmaticamente
incompatíveis com o contexto do Direito Tributário. O direito de buscar as vias negociais de
menor custo financeiro, segundo essa corrente doutrinária, já seria satisfatoriamente
delimitado pela figura tradicional da simulação, que coíbe a fuga do tributo mediante atos
fictícios que não correspondem ao real conteúdo volitivo da atuação dos contribuintes.
Adverte Godoi (2005, p. 85) que, ainda que por caminhos distintos dos adotados por
Becker [193?], a corrente formalista do Direito Tributário chega às mesmas conclusões da
versão original da interpretação econômica34: o conceito de elusão tributária é um equívoco
dogmático, pois ou o fato gerador se verifica e o contribuinte que foge da obrigação evade (e
não elude) o imposto ou o fato gerador não se verifica e o contribuinte que se utiliza de uma
via negocial não-usual, artificial ou manifestamente inadequada à consecução de seus
objetivos empíricos pratica simplesmente uma elisão lícita e, portanto, submetê-lo ao imposto
consistiria em exigir tributo por via analógica, o que ofenderia o Estado de Direito.
34 Ademais, ao contrário do que afirma a corrente formalista da interpretação do Direito Tributário, a versão
original da interpretação econômica, elaborada por Becker, não influenciou a sistematização da fraude à lei como ferramenta de combate da elusão tributária. Os autores adeptos dessa versão radical da interpretação econômica consideravam errôneo utilizar a fraude à lei como arma de combate da elusão tributária.
66
Destaca Godoi (2005, p. 85) que Jarach (1996) rechaça a aplicação da interpretação
econômica como forma de combate à fraude à lei e ao abuso de direito, uma vez que essa
teoria não é aplicável apenas para beneficiar o fisco. Conforme Tarsitano (2004, p. 87), a
aplicação da interpretação econômica defendida por Jarach (1996) independe da intenção do
contribuinte de evadir ou não o recolhimento do imposto.
Em sua obra Hecho Imponible, Jarach (1996, apud GODOI, 2005, p. 85) critica
fortemente as concepções do suíço Blumenstein segundo as quais a elusão fiscal propiciaria
ao aplicador do Direito Tributário uma relativa autonomia quanto às formas do Direito
Privado. Na visão de Blumenstein, relatada por Jarach (1996, apud GODOI, 2005, p. 85), as
situações de elusão se diferenciam das situações de pura evasão porque nas primeiras a forma
distorcida e artificial adotada pelo contribuinte justifica que sejam conferidos poderes mais
amplos ao aplicador do direito, enquanto que nas situações de pura evasão há uma frontal
violação da lei tributária.
Para a versão original da interpretação econômica, contudo, é supérflua a consideração
da elusão tributária como distinta dogmaticamente da evasão fiscal pura e simples. Conforme
Godoi (2005, p. 86), se se parte da premissa de que as normas que definem os fatos geradores
se referem como regra geral a realidades econômicas (mesmo que em sua formulação
linguística sejam utilizados conceitos e institutos jurídicos), o combate à elusão fiscal não é
diferente da correta interpretação da lei tributária. Por outro lado, destaca Godoi (2005, p. 86),
a configuração de efeitos tributários aos fatos, atos e negócios praticados pelos contribuintes
não ocorre apenas nos casos de elusão fiscal, pois segundo os pressupostos de Jarach (1996),
o aplicador da lei deve sempre indagar a intenção fática das partes.
Os autores formalistas, apesar de concordarem com os adeptos da versão original da
interpretação econômica quanto à impropriedade da aplicação desse método como forma de
combate à fraude à lei e ao abuso de direito, entendem que a melhor solução nesses casos é o
uso de cláusulas específicas antielusão, através das quais o legislador fecha as lacunas do
sistema tributário e impede que as elisões fiscais lícitas mais disseminadas se perpetuem
(GODOI, 2005, p. 117).
A primeira consequência de tal postura é rechaçar a possibilidade de os juízes
desenvolverem a técnica da fraude à lei ou do abuso de direito no terreno tributário a não ser
que haja expressa autorização do legislador nesse sentido, nos moldes do §42 do Código
Tributário alemão de 1977.
67
Relata Godoi (2005, p. 117) que há autores que vão mais longe e defendem não
somente que os juízes não podem aplicar doutrinas antielusão baseadas na fraude à lei ou no
abuso de direito se não houver disposição legislativa expressa, mas também que o próprio
legislador está inabilitado para instituir normas gerais antielusão, uma vez que estas são
contrárias a princípios constitucionais como o da segurança jurídica e o da reserva de lei.
Ainda que a opinião majoritária da doutrina e da jurisprudência na generalidade dos países35
seja a de que a Constituição não veda a introdução de normas gerais antielusão baseadas na
teoria da fraude à lei e do abuso de direito, há polêmicas principalmente sobre o possível
caráter analógico da operação daquelas normas gerais em países como Bélgica, Suécia e
Brasil.
A situação no Brasil é ainda mais grave. Conforme Godoi (2005, p. 118), os autores
formalistas sustentam que não somente uma norma geral antielusão baseada no abuso de
direito ou na fraude à lei seria inconstitucional, como também que uma norma geral antielusão
é tão pérfida e letal aos direitos inalienáveis e personalíssimos do cidadão que nem por
emenda ou reforma constitucional poderia ser validamente introduzida no Direito brasileiro.
Alberto Xavier (2001, p. 16), por exemplo, entende que há uma visceral
incompatibilidade entre as normas gerais anti-elisivas e a ordem constitucional brasileira,
por ofensa aos princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, garantias constitucionais da segurança jurídica, da separação de poderes e da liberdade de iniciativa, garantias estas que, por constituírem cláusulas pétreas, nem sequer podem ser objeto de deliberação em caso de emenda constitucional.
2.5 Síntese conclusiva
Na seção 2, procuramos demonstrar que a versão original da interpretação econômica
do Direito Tributário, representada pelas obras clássicas de Jarach (1996) e Becker [193?],
evoluiu para uma versão mais equilibrada, representada pelas obras de Vanoni (1932), Berliri
(1964), Hensel (2005), Giannini (1956), Combarros Villanueva (1984), Amatucci (1994),
Beisse (1984), Tipke e Lang (2008) e Palao Taboada (2009).
35 Johnson Barbosa Nogueira (1982, p. 37) afirma que a “doutrina da interpretação econômica não logrou maior
interesse na América do Norte, certamente pelo enfoque casuístico da interpretação judicial e pela aceitação unânime da atividade valorativa do juiz em torno das circunstâncias do caso”.
68
Segundo a versão original, calcada na autonomia do Direito Tributário e decorrente da
teoria causal ou finalista da obrigação tributária (capacidade contributiva como causa, e não
como fundamento da obrigação tributária), a lei tributária deve sempre ser interpretada com
base na realidade econômica subjacente, sendo irrelevantes as respectivas formalizações
jurídicas.
Essa versão deve ser compreendida dentro do seu contexto histórico, de superação da
Jurisprudência dos Conceitos pela Jurisprudência dos Interesses. No contexto do início do
século XX, os princípios da segurança jurídica e da certeza do direito eram muito menos
valorizados do que o recolhimento de tributos conforme a igualdade e a capacidade
contributiva.
Não obstante a agressão à segurança jurídica, a qual acabou sendo confirmada pela
jurisprudência alemã capitaneada pelo próprio Becker, essa versão da interpretação
econômica foi de suma importância para que o Direito Tributário se desvencilhasse do apego
extremo às formas de Direito Privado. A teoria da interpretação econômica representou uma
quebra do paradigma de que a lei tributária deve ser sempre interpretada com total apego às
formas jurídicas por ela empregadas.
Foi então natural, no contexto do início do século XX, que a versão original da
interpretação econômica, cuja premissa era a primazia do conteúdo econômico sobre a forma
jurídica, tenha cometido certos exageros (a premissa deixou de ser a prevalência do Direito
Privado sobre o Direito Tributário e passou a ser a inversa, qual seja, a prevalência do Direito
Tributário sobre o Direito Privado), até encontrar o seu ponto de equilíbrio no ordenamento
jurídico. Esse equilíbrio consiste no adequado grau de tensão entre o princípio da segurança
jurídica e os princípios da igualdade e da capacidade contributiva. Se antes da teoria da
interpretação econômica a segurança jurídica e a certeza do direito tinham primazia sobre a
igualdade e a capacidade contributiva, após o surgimento dessa teoria a igualdade e a
capacidade contributiva passaram a ser mais valorizadas que a segurança jurídica e a certeza
do direito. O ponto de equilíbrio da teoria da interpretação econômica é justamente a
adequada convivência entre esses princípios, ou seja, entre o princípio da segurança jurídica e
os princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
A busca desse equilíbrio, como forma de combate aos excessos da versão original da
interpretação econômica, deu origem à versão atual dessa teoria, a qual considera a
interpretação econômica como espécie de interpretação teleológica ou como forma de
combate à elusão fiscal.
69
A versão equilibrada, a nosso ver, corrigiu acertadamente a versão original da
interpretação econômica, com a devida consideração tanto ao princípio da segurança jurídica
quanto aos princípios da legalidade, da igualdade e da capacidade contributiva.
Na seção 2 também procuramos demonstrar que a versão equilibrada da interpretação
econômica sugere adicionalmente que, no silêncio da lei, o instituto de Direito Privado
utilizado pela lei tributária seja interpretado conforme o sentido que possui em seu ramo de
origem. Escolhemos Combarros Villanueva (1984) e Amatucci (1994) para ilustrar o
pensamento dessa corrente doutrinária, a qual se faz presente na maioria dos países.
Escolhemos Beisse (1984) para demonstrar a linha doutrinária que advoga o entendimento
oposto, de prevalência do significado econômico do fato gerador na ausência de previsão
expressa na lei tributária.
Em nossa opinião, o silêncio da lei não deve ser interpretado em nenhum dos dois
sentidos sustentados por Combarros Villanueva (1984), Amatucci (1994) e Beisse (1984). A
adoção de uma dessas premissas, no silêncio da lei, significa a adoção de um método a priori
de interpretação, que impõe um resultado ao intérprete e inibe a sua liberdade investigativa.
A nosso ver, se não houver expressa previsão legal em um ou outro sentido, a norma e
o fato deverão ser submetidos aos processos normais de interpretação e qualificação, visando
a identificar se a lei tributária empregou determinado instituto de Direito Privado objetivando
a sua forma jurídica ou o seu significado econômico. Estamos com Tipke e Lang (2008) e
Palao Taboada (2009), portanto, quanto à impossibilidade de se conferir uma resposta a priori
ao problema da prevalência ou não dos conceitos de Direito Privado na interpretação da
norma tributária.
Conforme Godoi (2005), a cuja posição aderimos, é a aplicação dos critérios normais
da hermenêutica em cada caso concreto (fixando-se o mais restritivo e o mais extensivo
sentido literal possível e decidindo-se entre eles – ou entre as diversas gradações entre eles –
mediante a aplicação dos critérios lógico-sistemático, histórico e teleológico – Larenz, 1994,
p. 316 et seq.) que poderá verificar, no contexto específico de uma norma tributária concreta,
se a menção a formas e institutos do Direito Privado tem uma função exemplificativa –
auxiliar – ou uma função exaustiva. O acatamento da lei tributária ao sentido originário dos
termos de outros ramos jurídicos (notadamente do Direito Privado) deve ser não a premissa, e
sim a conclusão de um processo normal de interpretação. A prevalência de um conceito
distinto do Direito Privado poderá ser a conclusão de um processo interpretativo que levará
70
em conta a teleologia concreta da legislação tributária, mas nunca uma premissa abstrata
calcada na teoria causalista do tributo.
Tampouco concordamos com a corrente formalista que considera que os atos de elusão
tributária somente podem ser combatidos mediante o fechamento das lacunas legislativas, e
não por meio da interpretação e da qualificação das normas e fatos. Essa corrente, muito forte
no Brasil, implica a volta do formalismo exacerbado existente no período anterior ao
surgimento da versão original da interpretação econômica do Direito Tributário.
71
3 A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA E A DOUTRINA BRASILEIRA DO DIREITO
TRIBUTÁRIO
Atualmente, a maior parte da doutrina brasileira se filia à corrente formalista do
Direito Tributário e repudia até mesmo a versão equilibrada da interpretação econômica como
forma de combate à fraude à lei ou ao abuso de direito. Segundo essa vertente da versão
equilibrada da interpretação econômica, nos casos de elusão fiscal o intérprete está autorizado
a considerar a substância econômica dos atos e negócios jurídicos praticados pelo
contribuinte, com abstração das formas jurídicas artificiosas e inadequadas.
Essa parte ainda majoritária da doutrina brasileira continua enxergando o tributo como
algo odioso e agressivo ao patrimônio do contribuinte (ainda que isso não seja assumido
claramente pelos autores) e atribui ao princípio da legalidade tributária um peso muito maior
que o atribuído aos princípios da isonomia e da capacidade contributiva. A norma tributária,
segundo essa corrente, é uma norma de rejeição social, como se entre cidadãos e Estado
houvesse uma oposição absoluta, e por isso deve ser interpretada restritivamente.
Segundo Martins (1998, p. 129), a norma tributária, por excelência, é norma de
rejeição social, pois a obrigação de recolher o tributo se sustenta na previsão da sanção, e não
em algum princípio de justiça subjacente à norma. Para o autor, a tese do caráter odioso do
tributo foi superada apenas na doutrina, não tendo havido qualquer alteração na realidade
prática. O caráter odioso do tributo é reforçado, segundo Martins (1988, p. 129), pelo fato de
os tributos sistematicamente não se destinarem às necessidade do Estado, servindo na verdade
aos interesses privados dos detentores do poder, mesmo que tais interesses sejam rotulados de
interesses públicos.
A interpretação econômica é comumente associada ao nazismo, como se depreende
das obras de Becker (2004, p. 139) e Xavier (2001, p. 46), e a sua supressão do Código
Tributário alemão de 1977 é interpretada como a confirmação de que essa teoria foi banida do
Direito Tributário.
A corrente formalista não atenta para o fato de que a teoria de Becker foi introduzida
no Direito Tributário em 1919 (§4º do Código Tributário alemão), ou seja, muito antes da
instauração do regime nazista, o qual, em verdade, incorporou ou colonizou inúmeros outros
institutos e idéias jurídicas preexistentes.
72
Essa parte da doutrina brasileira tampouco percebe que a interpretação econômica em
sua versão original não era necessariamente favorável ao fisco e que muitos tributaristas
alemães reconhecem a legitimidade desse método mesmo que ele não esteja expressamente
previsto no Código Tributário de 1977. Além disso, o §5º do Código de 1919, que trata do
abuso de direito (versão equilibrada da interpretação econômica como forma de combate à
elusão fiscal), corresponde ao §42 do Código de 1977 e continua em pleno vigor.
Em outras palavras, ao contrário do que alega a doutrina formalista, o Código
Tributário alemão de 1919 (que nada tem de autoritário) já continha a norma que combatia
determinadas operações mediante o conceito de “abuso das possibilidades de configuração
jurídica que oferece o direito”. Muito depois de terminado o regime nazista, o Código
Tributário Alemão de 1977 continua a prever a regra (vigente) contra a fraude à lei tributária
em seu §42 (versão equilibrada da interpretação econômica como forma de combate à elusão
fiscal). Portanto, conforme Godoi (2005, p. 136-144), não é correto citar a redação dada pelo
governo nazista ao texto dessa norma em 1934 como uma prova ou um indício da sua
inspiração autoritária.
Ademais, os parágrafos 4.º e 5.º do Código Tributário alemão de 1919 (transformados
em 1931 nos parágrafos 9.º e 10) são considerados os precursores da ciência contemporânea
do Direito Tributário, marcando, conforme James Marins (2002, p. 17)36, a transição da
relação tributária, "que de 'relação de poder' passou a ser vislumbrada como ‘relação
jurídica’”.
É interessante notar que não obstante o interesse dos autores formalistas em
contextualizar o período de surgimento da interpretação econômica, suas abordagens
preocupam-se apenas em associar essa teoria ao nazismo. E como o §4º é de 1919, tais
autores também se preocupam em justificar de que maneira uma norma de 1919 pode ser
atribuída ao regime nazista. Também é preocupação constante dessa parte da doutrina explicar
o significado do §1º da Lei de Adaptação Tributária, de 1934, que reproduziu o conteúdo do
§4º do Código de 1919, mas acrescentou que, na interpretação da lei se havia de considerar “a
visão do nacional-socialismo e a opinião do povo”. Para essa corrente, a Lei de Adaptação
Tributária foi a consagração da interpretação econômica pelo nazismo.
36 Não obstante, James Marins (2002, p. 91) se filia à corrente formalista do Direito Tributário e entende que a
propriedade e a liberdade estão no eixo central dos valores constitucionais. Na visão do autor, a “agressão” configurada pelo tributo confere um relevo mais elevado aos princípios da reserva absoluta de lei, estrita legalidade e tipicidade.
73
Mas os autores formalistas não se preocupam em explicar o contexto histórico vivido
pela Alemanha quando Becker foi chamado a elaborar o primeiro Código Tributário daquele
país. Tampouco se preocupam em demonstrar a crise da Jurisprudência dos Conceitos e sua
necessária superação pela Jurisprudência dos Interesses, bem como a relação dessa mudança
de paradigma com a discussão acerca da autonomia do Direito Tributário em relação ao
Direito Privado. Todas essas alterações teóricas e a crise financeira posterior à Primeira
Guerra Mundial realmente estavam ocorrendo em 1919, mas mesmo assim os autores
formalistas preocupam-se apenas em vincular a interpretação econômica ao nazismo.
Alfredo Augusto Becker (2004), Alberto Xavier (2001), Paulo de Barros Carvalho
(1975) e Ives Gandra da Silva Martins (1998) estão entre os maiores defensores da doutrina
formalista do Direito Tributário.
Ricardo Lobo Torres (2000), Marco Aurélio Greco (2004) e Marciano Seabra de
Godoi (2005) são expoentes da doutrina oposta, contrária ao caráter excessivamente
formalista do Direito Tributário. Johnson Barbosa Nogueira (1982), autor de uma monografia
sobre a interpretação econômica, também se insere na corrente antiformalista do Direito
Tributário.
Sacha Calmon Navarro Coêlho e Misabel Abreu Machado Derzi (2003), não obstante
suas manifestações contrárias à versão equilibrada da interpretação econômica, ocupam uma
posição intermediária entre essas duas correntes.
Antes de analisar a posição desses autores, contudo, julgamos importante demonstrar a
posição dos primeiros estudiosos do Direito Tributário no Brasil, os quais não repudiavam a
interpretação econômica e não eram apegados ao formalismo jurídico. Rubens Gomes de
Sousa (1975a), Amílcar de Araújo Falcão (1987), Geraldo Ataliba (1975), Ruy Barbosa
Nogueira (1974), Aliomar Baleeiro (1975), Antônio Roberto Sampaio Dória (1971), Carlos da
Rocha Guimarães (1947) e José Eduardo Monteiro de Barros (1975) são expoentes dessa
doutrina antiformalista. Gilberto de Ulhôa Canto (1967), contudo, filia-se à doutrina
formalista do Direito Tributário.
74
3.1 A posição dos primeiros estudiosos do Direito Tributário no Brasil
Rubens Gomes de Sousa (1975a, p. 79-80) propõe em seu Compêndio de Legislação
Tributária (1.ª edição de 1952) um modelo de “interpretação moderna do Direito Tributário”
que a nosso ver reúne as mesmas características da versão original da interpretação
econômica.
O autor rechaça tanto a visão “apriorística”, que impunha uma solução predeterminada
para todos os casos, sem atentar para as circunstâncias particulares de cada um, quanto a visão
“literal ou estrita”, ligada à concepção do Direito Tributário como sendo um direito
excepcional e que por isso deveria ser interpretado segundo o sentido rigoroso das palavras,
somente sendo permitido ao Estado exigir os tributos que estivessem expressamente previstos
na lei.
Sousa (1975a, p. 77-78) destaca que a interpretação literal ou estrita tem ainda o
inconveniente de induzir o legislador a elaborar leis casuísticas, que procurem prever e
regular minuciosamente todas as hipóteses possíveis. Como bem observa o autor, esse método
torna excessivamente rígido o sistema jurídico, embaraçando a evolução e o progresso.
Ademais, a lei que pretenda regular todas as hipóteses possíveis precisa ser sempre
modificada e adaptada, o que torna a sua compreensão e aplicação confusas e difíceis.
Ressalta Sousa (1975a, p. 78) que a teoria da interpretação literal ou estrita, inspirada
originalmente no liberalismo, acabou alcançando o resultado oposto, sendo característica de
governos autoritários. O principal defeito dessa teoria, contudo, na visão do autor, é o de
repousar sobre uma base cientificamente equivocada, a de que o Direito Tributário é um
direito excepcional. E arremata:
Não obstante isso, ainda hoje se encontram na jurisprudência decisões no sentido de que as leis tributárias devem receber interpretação literal ou estrita (SOUSA, 1975a, p. 78)
Sousa (1975a, p. 78-80) defende que o Direito Tributário deve ser interpretado com
base em todos os métodos ou processos de raciocínio que conduzam à realização prática
integral das finalidades que a lei se destina a alcançar. Essa “interpretação moderna do Direito
Tributário” consiste na interpretação teleológica da lei tributária e deve obedecer aos
seguintes princípios, que confirmam a filiação do autor à hoje superada versão original da
interpretação econômica:
75
a) tendo em vista que a finalidade da lei tributária é a obtenção de receita para o
Estado (posição criticável hoje em dia), podem ser adotados todos os métodos que
conduzam à realização integral dessa finalidade;
b) os atos, fatos e negócios previstos na lei tributária devem ser interpretados de
acordo com os seus efeitos econômicos e não de acordo com a sua forma jurídica;
“este é o princípio básico e dele decorrem os restantes” (SOUSA, 1975a, p. 79);
c) os efeitos tributários dos atos, fatos e negócios jurídicos são os que decorrem da lei
tributária e não podem ser alterados pela vontade das partes, ao contrário do que
ocorre no Direito Privado, em que as partes em certos casos podem modificar os
efeitos jurídicos dos atos, contratos ou negócios, mudando-lhes a forma sem lhes
alterar a substância;
d) por conseguinte, os atos, fatos e negócios jurídicos cujos efeitos econômicos sejam
idênticos devem produzir efeitos tributários também idênticos, embora as partes
lhes tenham atribuído formas jurídicas diferentes;
e) por fim, a circunstância de um ato, contrato ou negócio ser juridicamente nulo, ou
mesmo ilícito, não impede que ele seja tributado, desde que tenha produzido efeitos
econômicos. A lei fiscal tributa uma determinada situação econômica, e, portanto,
desde que esta se verifique, é devido o imposto, pouco importando as circunstâncias
jurídicas em que se tenha verificado.
Amílcar de Araújo Falcão, em sua primeira obra, publicada originalmente em 1959,
apoiou a versão original da interpretação econômica do Direito Tributário, na mesma linha de
Gomes de Souza. Segundo Falcão (1987, p. 68), a referência da lei tributária aos atos
negociais é feita, sempre, à relação econômica subjacente, no sentido de que os fatos,
circunstâncias ou acontecimentos indicados no fato gerador são “sempre considerados pelo
seu conteúdo econômico”, interessando ao Direito Tributário somente a vontade empírica, ou
seja, a intentio facti37:
Motivos de conveniência, de utilidade, o interesse de dar maior concisão e simplicidade ao texto podem levar o legislador, quando for o caso, a reportar-se à fórmula léxica através da qual aquela relação econômica vem sempre traduzida em
37 Em sua obra de 1964, Ataliba apoia quase que integralmente o pensamento defendido por Falcão (1987), a ele
fazendo referência expressa em várias passagens de seu livro. Conforme Godoi (2010), contudo, a afirmação de Ataliba (1964, p. 36) de que quando o Direito Tributário se refere a institutos de outros ramos “importa considerá-los [esses institutos] com o sentido que possuem originalmente [nesses outros ramos], salvo expressa exclusão dessa responsabilidade, pela própria lei tributária”, é claramente oposta ao pensamento de Falcão (1987).
76
direito. Trata-se, porém, de uma fórmula elíptica, empregada brevitatis ou utilitatis causa. O que interessa ao Direito Tributário é a relação econômica. Um mesmo fenômeno da vida pode apresentar aspectos diversos, conforme o modo de encará-lo e a finalidade que, ao considerá-lo, se tem em vista. Assim, em direito civil, interessam os efeitos dos atos e as condições de validade exigidas para a sua constituição ou formação. A conformação externa ao ato, pois, é que importa particularmente. Ao Direito Tributário só diz respeito a relação econômica a que esse ato deu lugar, exprimindo, assim, a condição necessária para que um indivíduo possa contribuir, de modo que, já agora, o que sobreleva é o movimento de riqueza, a substância ou essência do ato, seja qual for a sua forma externa.
Para Falcão (1987, p. 68), a interpretação econômica é fundamental para o
desenvolvimento e a aplicação dos princípios da generalidade, da capacidade contributiva e da
igualdade. Mas tais princípios não implicam a possibilidade de o intérprete corrigir eventuais
erros e omissões da lei. O que a interpretação econômica permite e recomenda, nos dizeres de
Falcão (1987, p. 70), é que o intérprete confira à lei a inteligência que melhor se compatibilize
com os referidos princípios. Não há nisso, na visão do autor, nenhuma violência contra a
norma legal, e sim a atuação de seu comando em toda a plenitude.
Falcão (1987, p. 66) reconhece que a aplicação conferida pela Corte Suprema
Financeira do Reich à interpretação econômica (em sua versão original) chegou às raias da
Escola da Livre Investigação do Direito. Chegou-se a falar, conforme Falcão (1987, p. 66),
em interpretatio abrogans, ou seja, na autorização do intérprete para superar a norma legal e
conferir-lhe um sentido que corrigisse eventuais desrespeitos aos ditames da justiça.
Mas, para Falcão (1987, p. 66), não há nem interpretatio abrogans, nem tem o
intérprete uma função corretora da lei tributária. A interpretação econômica, na visão do
autor, é uma simples técnica especial do Direito Tributário, como ocorre em outras disciplinas
jurídicas, quanto ao modo de considerar os fenômenos, fatos ou situações relevantes para a
tributação, e de pesquisar-lhes o conteúdo. A tributação sempre decorre da lei, mas o que se
quer, nas palavras de Falcão (1987, p. 73), “[...] é que não fique reconhecida à imaginação
fértil do contribuinte a faculdade de decidir do modo e do montante pelos quais serão pagos
os tributos”.
Não obstante sua clara filiação à versão original da interpretação econômica, Falcão
(1976) cita frequentemente os autores que criticaram essa teoria, tal como Berliri (1964).
Segundo o nosso entendimento, Falcão (1976) não apreendeu a crítica desses autores à versão
original da interpretação econômica. Tampouco percebeu que a sua versão da interpretação
econômica era justamente a versão que levou a Corte Suprema Financeira do Reich às raias da
Escola da Livre Investigação do Direito. Ou seja, Falcão (1976), nessa primeira obra, entende
77
que a interpretação econômica (em sua versão original) não representa qualquer risco à
legalidade e à segurança jurídica, mas de forma contraditória defende a aplicação do mesmo
método que segundo ele próprio levou a Corte Suprema Financeira do Reich às raias da
Escola da Livre Investigação do Direito.
Em obra posterior publicada em 1964, Falcão (1987, p. 49 e 74-75) abandona a versão
original da interpretação econômica para filiar-se à versão equilibrada que defende a
aplicação da interpretação econômica apenas nos casos de fraude à lei ou abuso de direito.
Veja-se a seguinte passagem:
Depurada de excessos e impropriedades, que se encontram em certos autores, a chamada interpretação econômica da lei tributária consiste, em última análise, em dar-se à lei, na sua aplicação às hipóteses concretas, inteligência tal que não permita ao contribuinte manipular a forma jurídica para, resguardando o resultado econômico visado, obter um menor pagamento ou o não pagamento de determinado tributo. [...] Em resumo do que vem sendo dito, temos que, para admitir-se o emprego do chamado método da interpretação econômica, é preciso que se esteja em presença de uma evasão tributária em sentido estrito (Steuerumgehung), ou seja, da adoção de uma forma jurídica anormal, atípica e inadequada, embora permitida pelo direito privado, para a consecução do resultado econômico que se tenha em vista concretizar. Não basta, pois, qualquer vantagem fiscal, cuja concretização é possível e lícita, no caso de economia fiscal (Steuereinsparung): é indispensável a atipicidade ou anormalidade da forma cuja utilização só se explique pela intenção de evadir o tributo. Mas não é só. É evidente que a interpretação econômica só se admitirá, em cada caso concreto, para corrigir situações anormais artificiosamente criadas pelo contribuinte. Por outras palavras, através dela não se pode chegar ao resultado de, na generalidade dos casos, alterar ou modificar, por considerações subjetivas que o intérprete ou o aplicador desenvolvam no que respeita à justiça fiscal, um conceito adotado, pelo legislador. É a isso que se faz alusão quando se assevera que a interpretação econômica não pode ter o efeito de uma “interpretação abrogans”.
Falcão (1987, p. 50-51) faz questão de ressaltar que o método da interpretação
econômica, tal como já havia sido registrado em sua obra anterior, é perfeitamente adequado
ao princípio da legalidade tributária:
Tem sido asseverado, com propriedade, que ao invés de contrapor-se àquele postulado da reserva da lei, o método em cogitação é dele uma consequência. Assim o afirmamos nós, em trabalho anterior: “Verdadeiramente, o que aí existe é a recíproca do dever de legalidade a que está sujeita a própria administração: se o esquema legal da tributação é vinculante para o Estado, não há por que deixar de sê-lo para o contribuinte. Há uma decisão da Corte Suprema norte-americana em que isso é dito de forma magistral: ‘To hold otherwise would permit the schemes of taxpayers to supersede the legislation in the determination of time and manner of taxation’”.
78
Geraldo Ataliba (1975, p. 193, 197) também se manifestou pela aplicação da
interpretação econômica apenas nos casos de fraude à lei ou abuso de direito, na esteira da
segunda obra de Falcão (1987):
A interpretação é jurídica, mas, sustentamos que a “assim chamada” interpretação econômica – aquela que prestigia o conteúdo econômico, acima da forma – só tem cabimento (estamos com Amílcar Falcão) quando se trata de fraude ou de manifesto abuso de forma, em particular. Daí sim, o fisco não pode assistir àquilo indiferente, porque há um princípio constitucional, lembrado pelo Prof. Monteiro de Barros, da igualdade de todos. Ora, se duas pessoas estão em igual situação e uma delas abusa de formas jurídicas de direito privado para subtrair-se à tributação, o Estado tem o dever de assegurar a plenitude do princípio da igualdade, recorrendo à “chamada” interpretação econômica, para tributar aquele fato. [...] Poder-se-ia adotar como conclusão: Interpretação é sempre jurídica. A chamada interpretação econômica é válida como recurso subsidiário, em geral, e como recurso principal para repressão da fraude e abuso de forma.
Ruy Barbosa Nogueira escreveu em 1963 uma obra específica sobre a interpretação da
norma tributária, na qual rechaça tanto a tendência de “resolver questões tributárias por meio
de puras concepções de Direito Privado” (1974, p. 50-51), quanto as concepções mais radicais
da interpretação econômica (a versão original dessa teoria).
Segundo Nogueira (1974, p. 55), é o exame de cada norma em concreto que revelará
se a norma tributária se refere a um instituto “de pura estrutura de Direito Privado”, de
“estrutura mista, isto é, alterada pelo Direito Tributário” ou ainda de “exclusiva estrutura de
Direito Tributário”.
Ao contrário de Falcão (1987), contudo, que não tinha dúvida de que a vedação do
“abuso de formas” era plenamente aplicável no Direito Tributário brasileiro, Nogueira não se
manifestou de forma definitiva sobre essa questão. Após citar a doutrina que separa a elisão
legítima (sem abuso de formas) da evasão mediante abuso, Nogueira (1974, p. 70) afirma que
“no Brasil a legislação sobre este tema é ainda incipiente”, ressaltando “a delicadeza do
problema entre nós, quando se pretenda afastar a forma jurídica apenas através da chamada
interpretação do conteúdo econômico [...], pois no Brasil, por força da Constituição, o
imposto só pode ser criado por lei”.
Conforme Godoi (2010), não se sabe ao certo se Nogueira (1974) faz referência à
versão original (chamada por Godoi de versão radical) ou à versão equilibrada (chamada por
Godoi de versão matizada) da interpretação econômica. Conclui Godoi (2010) que como a
obra posterior do autor, de 1994, não traz ressalvas à aplicação da doutrina do abuso de
formas no Brasil, talvez a “delicadeza do problema” (mencionada em sua obra de 1963) diga
respeito à versão original da interpretação econômica, à maneira de Becker.
79
Aliomar Baleeiro (1999, p. 689) também reconhece que o Direito Tributário pode
atribuir efeitos diversos aos conceitos de Direito Privado, desde que o faça de forma expressa.
O autor entende que o art. 110 do CTN proclamou o primado do Direito Privado nos casos em
que a Constituição utiliza seus conceitos para definir competências tributárias. A contrario
sensu, segundo Baleeiro (1999, p. 689), tal primado não existe se os conceitos emanam de
outras leis ordinárias.
Para Baleeiro (1999, p. 688-689), embora o CTN não trate expressamente da
interpretação econômica, essa teoria está subjacente nas preocupações do seu texto, até pelo
fato de ser um dos suportes lógicos da autonomia do Direito Tributário. Para o autor, portanto,
o CTN se apresenta tímido quanto à interpretação econômica. O CTN apenas insinua esse
método, sem erigi-lo em princípio básico e proclamando, pelo contrário, o primado do Direito
Privado quanto à definição, ao conteúdo e ao alcance dos institutos, conceitos e formas deste
ramo jurídico, quanto utilizados pela Constituição.
Para Antônio Roberto Sampaio Dória (1971, p. 59), a versão original da interpretação
econômica, ao autorizar o abandono do texto legal em prol da aplicação de diretrizes
econômicas, implica a inovação do direito escrito e a consequente ofensa ao princípio da
legalidade. Por essa razão, Dória (1971, p. 60-61) entende que o Direito brasileiro, por sua
notória inclinação legalista, é infenso à versão original da interpretação econômica, a qual é
por ele equiparada à Escola da Livre Investigação do Direito. Em primeiro lugar, porque o
cânone da estrita legalidade tem natureza constitucional. Conforme Dória (1971, p. 60), se a
Constituição prefere a terminologia jurídico-formal à indicação do conteúdo econômico, não
cabe ao intérprete inverter essa prioridade. Em segundo lugar, porque não existe na legislação
ordinária brasileira um preceito equivalente ao do §4º do Código Tributário alemão de 1919.
Para o autor, o único dispositivo cuja inspiração pode ser atribuída à doutrina alemã da
interpretação econômica é o art. 109 do CTN, que visa a implementar a regra geral do art. 110
do mesmo Código. Na visão de Dória (1971, p. 62), diante dos arts. 109 e 110 do CTN, é
inegável que o legislador brasileiro teve como pressuposto duas considerações fundamentais:
a) a lei tributária visa principalmente ao conteúdo econômico dos fatos geradores, e
não à sua exteriorização formal;
b) o Direito Tributário, sendo autônomo, pode alterar as categorias de Direito Privado
visando a uma atuação mais eficaz das suas normas.
Entende Dória (1971, p. 62), assim, que o legislador brasileiro aceitou as premissas da
interpretação econômica adotadas pelo Código Tributário alemão, opondo, entretanto, sérias
80
restrições às suas consequências. A reserva principal, segundo Dória (1971, p. 62), diz
respeito à idêntica tributação de situações econômicas análogas, a qual deve sempre partir do
legislador, e nunca do aplicador da lei.
Mas aparte essa limitação, as virtudes da interpretação econômica podem ser aplicadas
da seguinte forma no Direito brasileiro, conforme Dória (1971, p. 63):
a) lei tributária pode expressamente alterar a definição, o conteúdo e o alcance de
institutos, conceitos e formas de Direito Privado (art. 109 do CTN), salvo se
utilizados em normas constitucionais para definir ou limitar competências
tributárias (art. 110 do CTN);
b) havendo equivalência de conceituação formal e sendo uma das categorias jurídicas
formais erigida como o protótipo legal da tributação, os efeitos tributários são
idênticos (compra e venda e troca, por exemplo); o mesmo ocorrerá se houver
equivalência de conteúdo econômico e tal conteúdo tiver sido expressamente
adotado como pressuposto de incidência legal (renda e circulação de riqueza, por
exemplo);
c) a invalidade, nulidade, anulabilidade, efetividade ou imoralidade do ato não afastam
as respectivas consequências tributárias (art. 118 do CTN).
De fato, Dória (1971, p. 62-64) entende que não se pode negar a exatidão da doutrina
da interpretação econômica, uma vez que a interpretação e a aplicação das leis devem
repousar nas realidades da vida, e não em suas exteriorizações formais.
Não obstante, Dória (1971, p. 69) considera que o Direito pressupõe, para sua
realização, um mínimo de formas, as quais também integram a realidade da vida. A forma é
suscetível de definição e nitidez de contornos, ao passo que a massa crua dos fatos é quase
sempre imprecisa e rebelde à unificação conceitual.
Ademais, uma das mais vagas enunciações no campo fiscal, nos dizeres de Dória
(1971, p. 68), é a da identidade do conteúdo ou dos efeitos econômicos. Como a tributação
sempre se fundamenta na renda, em suas três vertentes fundamentais (renda auferida –
impostos sobre a renda propriamente dita, renda poupada – impostos sobre o patrimônio, e
renda despendida – impostos sobre a circulação de riquezas), o imposto sobre as vendas
(renda despendida ou circulação de riquezas), por exemplo, poderia ser estendido a todos os
outros atos que envolvam idêntica circulação, tais como a troca, a dação em pagamento, a
conferência de bens ao capital de sociedades, importação, exportação, etc. Para Dória (1971,
81
p. 69), não tem lógica supor que o legislador, pretendendo atingir todo o gênero (circulação de
riquezas), mencionasse apenas uma de suas espécies (venda).
Com tal exemplo, Dória (1971, p. 69) pretende demonstrar o risco de se eliminarem as
hipóteses de elisão fiscal por meio da delegação de poderes normativos ao intérprete. Para o
autor, a elisão deve ser combatida por meio da edição de normas casuísticas, que colmatem as
lacunas legislativas. Defende Dória (1971, p. 80) o necessário trabalho conjunto dos Poderes
Executivo, Judiciário e Legislativo, a fim de que, uma vez identificada certa hipótese de
elisão, seja prontamente concebido o seu corretivo, mediante um pronunciamento cogente do
legislador.
Para Dória (1971, p. 58), a superação da versão original da interpretação econômica,
por fim, decorre de dois fatores:
a) o intérprete, ao distender a aplicação da lei visando à efetivação do princípio da
capacidade contributiva, acaba por se substituir ao legislador;
b) como o objetivo da interpretação econômica é apurar o significado e os efeitos dos
tributos em um dado sistema, tal interpretação não é diferente das demais técnicas
interpretativas que visam a alcançar, por métodos lógicos, a mens legis.
Para Carlos da Rocha Guimarães (1947, p. 29), o problema da autonomia do Direito
Tributário é mais agudo no Brasil, “dado que a Constituição Brasileira é a mais rígida em
matéria de partilha tributária, e sobretudo porque utiliza, na discriminação de rendas, a
terminologia do Direito Privado, para caracterizar certos tributos”.
O autor reconhece que seria “natural” a proeminência do Direito Privado nos casos em
que a Constituição utiliza conceitos de Direito Privado para a repartição das competências
tributárias. Afinal, conforme Guimarães (1947, p. 30), a competência da União Federal para
legislar sobre Direito Privado implica uma uniformidade de seus conceitos.
Essa premissa de prevalência do Direito Privado, contudo, trás o seguinte problema
suscitado por Guimarães (1947, p. 30): “a lei civil pode evoluir, como de fato evolui;
pergunta-se então: qual o conceito de direito civil que deve ser levado em conta: o existente à
data da promulgação da Constituição ou o atual?”
Para Guimarães (1947, p. 30-31), se a resposta for pela prevalência do conceito de
Direito Civil atual, surgirá outro problema: “como é a União quem legisla sobre Direito
Privado, poderia ela, mudando os nomes dos institutos, alterar, a seu bel prazer, a
competência privativa dos poderes locais, a qual de privativa só teria o nome”. A União
poderia ainda prejudicar os entes locais criando novas figuras do Direito Privado que
82
cumprissem o mesmo papel econômico dos contratos antigos, “o que daria ao contribuinte
duas vias a escolher para atingir o mesmo resultado econômico”.
A conclusão do autor é que a referência da Constituição às formas de Direito Privado
somente pode ser compreendida com base na realidade econômica a elas subjacente. A
interpretação rigidamente formalista do texto constitucional, conforme Guimarães (1947, p.
32), levaria, em alguns casos, à evasão fiscal, e, em outros, à injustiça contra o contribuinte.
Para José Eduardo Monteiro de Barros (1975, p. 173), a interpretação econômica tem
certa aceitação no Brasil, como apontam as obras de Sousa (1975a) e Falcão (1987). Os arts.
109 e 110 do CTN, na visão do autor, “dão uma espécie de indicação de que o nosso direito
positivo acolhe a teoria da interpretação econômica”.
Segundo Barros (1975, p. 174-175), é lícito ao Direito Tributário abstrair a forma
jurídica dos atos para buscar a realidade econômica subjacente. Mas essa abstração não pode
ocorrer “de maneira absoluta, total”, pois deve ter em conta o princípio da legalidade
tributária.
A interpretação econômica, na visão de Barros (1975, p. 177), consiste na
interpretação da operação celebrada pelas partes e na consequente busca, depois de descoberto
o conteúdo ou a realidade econômica daquela relação jurídica, do “dispositivo legal mais
próximo regulador daquela operação, sempre tendo em vista o princípio da legalidade em
matéria tributária”.
A interpretação econômica, para o autor, é plenamente aceitável, “mas não como
princípio prevalente, não com exclusividade”. Esse método de interpretação deve ser utilizado
apenas como um critério informador, sem exclusividade, e vale tanto para o contribuinte
como para o fisco. Não é uma arma de que dispõe o fisco para exigir do contribuinte um
imposto que não seja devido. Nas palavras de Barros (1975, p. 179), “É uma arma a favor do
contribuinte e a favor do fisco. É um critério de explicitação de uma determinada relação
jurídica.”
Essa postura antiformalista de Sousa (1975a), Falcão (1987), Ataliba (1975), Nogueira
(1987), Baleeiro (1975), Dória (1971), Guimarães (1947) e Barros (1975), pioneiros no estudo
do Direito Tributário brasileiro, foi fortemente influenciada pela norma do art. 202 da
Constituição de 1946, que estatuía em sua parte final que os tributos “serão graduados
conforme a capacidade econômica do contribuinte”.
83
3.2 A doutrina formalista do Direito Tributário
Os autores formalistas não admitem a influência do princípio da capacidade
contributiva sobre a interpretação da norma tributária, pois tal princípio não se concilia com
os conceitos “programáveis”, “automáticos” ou “infalíveis” pressupostos pela Jurisprudência
dos Conceitos.
Com base em Alfredo Augusto Becker (2004), que destacou o tema da interpretação
do Direito Tributário em suas obras38, a doutrina atual ainda insiste na visão da interpretação
jurídica como uma ciência que permite ao intérprete “descobrir” o “único” e “imutável”
sentido da norma. Os juízes, segundo essa visão, apenas investigam se houve (ou não) a
incidência da regra jurídica e analisam (esclarecem) os efeitos jurídicos dela decorrentes.
O seguinte trecho do pensamento de Becker (2004, p. 107) bem ilustra o seu apego ao
formalismo excessivo da superada Jurisprudência dos Conceitos:
A interpretação das leis é uma ciência que – a rigor e a final – se reduz a alguns poucos princípios. Devemos redescobri-los. Embora pareça contraditório, as diversas teorias hermenêuticas [...] são evasivas que o intérprete adota por preguiça de encontrar e aplicar aquelas poucas e simples regras da ciência da interpretação jurídica. Em lugar dessas regras (que o intérprete ignora ou despreza) ele inventa teorias complicadas e métodos confusos, tudo para “justificar” a sua preguiça intelectual de – com paciência e objetividade – apreender e aplicar aquelas poucas e simples regras de hermenêutica jurídica.
Na visão de Becker (2004, p. 139), há íntima vinculação entre a interpretação
econômica e o nazismo. Segundo o autor, a teoria de Enno Becker era tão harmônica com o
nazismo que acabou sendo consagrada pela Lei de Adaptação Tributária de 1934. A partir de
então, por mais de dez anos, a interpretação econômica passou a ser imposta, com os métodos
absolutos, totalitários e exclusivistas do nazismo, às universidades, aos tribunais, ao Poder
Legislativo e aos estudiosos radicados na Alemanha e nos países por ela dominados
ideologicamente.
Conforme Becker (2004, p. 141), assim como o nazismo na Alemanha, o fascismo na
Itália criou o ambiente propício para a “rápida proliferação e gigantismo” da teoria da
interpretação econômica. A obra de Vanoni (1932), na visão de Becker (2004), “contaminou a
38 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972 (a 1.ª edição é
de 1963); BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval tributário. 2. ed. São Paulo: Lejus, 2004 (a 1.ª edição publicada pela Saraiva é de 1989).
84
Itália” e Griziotti se “incumbiu de espalhar” a teoria da interpretação econômica por toda a
península italiana.
Para Becker (2004, p. 133-134), Vanoni estava totalmente iludido quando afirmou, em
1932, que a posição de Enno Becker era isolada na doutrina alemã e que a jurisprudência
recuara da livre adaptação da lei tributária ao caso concreto. Na visão de Becker (2004),
Vanoni (1932) estava iludido pelos seguintes motivos:
a) em 1933, Hensel declarou, no prefácio da terceira edição de sua obra, que a
adaptação do conteúdo das leis fiscais “à necessidade prática do caso singular está
em boas mãos, junto da Suprema Corte Financeira, cuja jurisprudência tão
frequentemente recebe a marca da personalidade de Enno Becker”;
b) em 1934, a teoria de Becker [193?] recebeu a “consagração máxima ao ser aceita
pelo Governo Nazista da Alemanha”, mediante a promulgação da Lei de Adaptação
Tributária;
c) em 1940, Othmar Bühler publicou um estudo no qual ressaltou a extraordinária
importância de Enno Becker [193?] para o desenvolvimento da jurisprudência e da
doutrina do Direito Tributário.
Ademais, segundo o autor, o próprio Becker teria declarado que o inciso I do §1º da
Lei de Adaptação Tributária, que determina que as leis tributárias sejam interpretadas segundo
as concepções do nacional-socialismo, “foi posta em lugar visível como guia condutor,
esperando-se que ela informe e anime toda a aplicação do direito e jurisprudência”.
Godoi (2010) discorda dessa estreita vinculação entre a interpretação econômica e o
regime nazista e ressalta que alegar que a doutrina alemã do abuso das formas jurídicas é
nazista somente porque foi “mantida” no Código Tributário alemão no regime nazista e tão
incorreto quanto propagar que o formalismo excessivo de Becker (2004) é autoritário e
sanguinário apenas porque foi encampado pelos textos legais do período do regime militar
que se instalou no Brasil em 1964 e produziu o CTN em 1966.
Barros (1975, p. 173) também discorda de Becker (2004) e afirma que sua
“catilinária” contra a interpretação econômica é baseada apenas no nazismo, e não no aspecto
jurídico desse método de interpretação.
Becker (1972, p. 442) repugnava o caráter ambíguo e vago da formulação da
capacidade contributiva e entendia que a inclusão desse princípio na Constituição de 1946 era
a “constitucionalização do equívoco”. Conforme Godoi (2010), Becker (1972) não se deu
conta de que a ambiguidade somente seria amainada se o intérprete se dispusesse a estudar as
85
especificidades da norma que vigora aqui e agora no Brasil, na Itália, etc., o que de resto o
autor não se propôs a fazer em suas obras.
Para Alberto Xavier (2001, p. 31), o objeto do princípio da legalidade é a garantia dos
direitos de propriedade e de liberdade econômica, os quais seriam direitos fundamentais do
contribuinte. Os direitos de liberdade econômica, de livre iniciativa ou de liberdade de
empresa, na visão do autor, têm como corolário o princípio da liberdade de contratar, que
também seria direito fundamental.
A liberdade de contratar significa não só a opção por uma das formas jurídicas
oferecidas pelo Direito Privado, mas também a liberdade de configuração das mesmas. A
liberdade de opção fiscal, segundo Xavier (2001, p. 32), é a garantia de que o exercício da
liberdade de contratar terá como “únicas consequências tributárias aquelas que resultem
taxativamente da lei (princípio da tipicidade), com exclusão de quaisquer outras”. Assim,
conforme o autor, os contribuintes podem se mover livremente, com segurança, para além das
zonas rigidamente demarcadas pelos tipos legais tributários.
Xavier (2001, p. 32) compara a liberdade de opção fiscal à garantia que o Direito
Penal confere aos cidadãos de se moverem livremente fora dos muros dos tipos legais. Assim
como o cidadão que se move fora dos muros dos tipos penais está livre das sanções criminais,
o contribuinte que se move fora dos muros dos tipos tributários está livre dos tributos. A
comparação entre Direito Tributário e Direito Penal é constante na obra de Xavier (2001) e
por certo decorre da ultrapassada visão do tributo como algo agressivo ao patrimônio e à
liberdade do contribuinte.
Consequentemente, Xavier (2001, p. 44-45) considera que as técnicas de combate à
fraude à lei ou ao abuso de direito, tal como a interpretação econômica, são verdadeiras
agressões ao princípio da legalidade. Tais agressões, conforme o autor, têm sido praticadas
em nome dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, os quais legitimariam não
apenas a preponderância do elemento econômico na interpretação da lei tributária, como
também a correção das desigualdades decorrentes das “imperfeições” e “lacunas
involuntárias” da lei.
Xavier (2001, p. 45) sustenta que raras vezes a doutrina defensora dos princípios da
igualdade e da capacidade contributiva se dá conta de que as mais notórias agressões ao
princípio da legalidade tiveram suas raízes nas ditaduras europeias posteriores à Primeira
86
Guerra Mundial, tais como as ditaduras instaladas na Alemanha, Itália, França e Espanha39. O
autor, contudo, não apresenta evidências ou indícios concretos dessa identificação entre a
interpretação econômica e os regimes políticos autoritários instalados na Europa no século
XX.
No caso da Alemanha, por exemplo, essa falta de evidências é bem clara. Apesar de
reconhecer que a primeira norma acolhedora da interpretação econômica surgiu em 1919, com
o §4º do Código Tributário alemão, e que somente em 1934 a legislação tributária previu
expressamente a interpretação conforme a ideologia nacional-socialista, Xavier (2001, p. 46)
atribui ao nazismo a instituição da interpretação econômica do Direito Tributário. O autor
justifica a ligação entre o §4º e o regime nazista ao fato de o Partido Trabalhista Alemão ter
sido fundado por Hitler em 1919 (mesmo ano de criação do §4º) e à filiação de Becker ao
partido nacional-socialista, “confessada” em um artigo de 1937.
Para Paulo de Barros Carvalho (1975, p. 193), a interpretação econômica é muito mais
a imposição de um princípio de justiça do que a decorrência da própria ordenação jurídica. A
interpretação econômica somente se constitui em interpretação jurídica quando é
expressamente autorizada pela ordenação jurídica. Quando não consagrada pela ordem
jurídica, a interpretação econômica é uma “tentativa de positivação de princípios de justiça
informados no campo da filosofia do direito, sobre a justiça ou não da norma, ou a justiça ou
não do abuso da forma jurídica”. Segundo o autor, a subsunção do fato à norma é uma
atividade eminentemente jurídica e não há “qualquer tipo de interpretação econômica nessa
atividade”.
Essa posição de Carvalho (1975) é refutada inteligentemente por Ataliba (1975, p.
193), que suscitou a seguinte questão: a lei proíbe que o curador compre bens do curatelado,
sob pena de nulidade desse ato. Mas o curatelado pode vender seus bens para um terceiro e
esse terceiro em seguida vendê-los para o curador. Nessa hipótese, curador e curatelado se
utilizam de um meio lícito para obter uma finalidade ilícita. Esse artifício é vedado pelo
ordenamento jurídico. Trata-se de princípio geral de direito, aplicável a toda e qualquer
hipótese. Ataliba (1975, p. 193) pergunta então o que ocorrerá se o lesado for o Estado:
39 Godoi (2005, p. 111, 200) entende que Xavier está equivocado ao relacionar as décadas de inaplicação da
cláusula geral da fraude à lei tributária prevista no Código Tributário espanhol com uma postura de “restauração dos valores de segurança jurídica”. Toda a doutrina espanhola, conforme Godoi (2005, p. 199) reconhece que a falta de aplicação prática do expediente da fraude à lei se deveu a que a Administração preferiu historicamente utilizar a arma da interpretação econômica (ocultada sob um conceito extremamente elástico de simulação) que se mostrava mais eficaz e impedia que o contribuinte pudesse contar com as garantias formais do expediente da fraude à lei tributária. A esse respeito, Godoi (2005, p. 199) cita José Arias Velasco, Gabriel Casado Ollero, Falcón y Tella, Lozano Serrano e Eugenio Simón Acosta.
87
Por que o Estado não pode recorrer a esse princípio geral de direito para, exatamente, evitar aquele abuso de forma, ou seja, o uso de um meio lícito para obter uma finalidade ilícita? Por que o Estado não pode defender-se, ou defender o interesse público, aqui, primário e secundário (primário quando prestigia a ordem jurídica e secundário quando favorece os cofres públicos)?
Para o autor, essa “defesa do Estado” é feita por meio da interpretação econômica. E
arremata: “Preferia que não dessem esse nome. [...] O erro é chamá-la de interpretação
econômica”. A designação é infeliz, “mas o que se quer com isto designar é correto”.
Barros (1975, p. 196) também discorda do entendimento de Carvalho (1975) de que a
interpretação econômica implica o exame de um aspecto da economia e que por isso seria
preciso um técnico ou perito para examinar essas situações. Barros (1975) esclarece que a
interpretação é econômica apenas no sentido da interpretação da produção de uma capacidade
contributiva e que seria melhor eliminar a expressão “econômica”. O mais adequado seria
utilizar algo parecido com a expressão “teoria da relevância ou do conteúdo de uma
determinada situação”. Essa expressão, segundo o autor, exprimiria melhor o exame da
“adequação da norma ao fato.”
Sacha Calmon Navarro Coêlho e Misabel Abreu Machado Derzi (2003, p. 116)
também criticam duramente qualquer tipo de interpretação que se afaste do apego às formas
jurídicas. Na visão desses autores, o argumento de que o princípio da isonomia exige de
contribuintes com a mesma capacidade econômica uma mesma contribuição, “de modo a
construir uma sociedade livre, justa e solidária, não passa de falácia a serviço do Estado
onipotente e opressor”. Essa “proposição falaciosa”, conforme os autores, constitui um
“moralismo hipócrita, com laivos de idealismo, insustentável diante de um Estado que
desiguala as pessoas jurídicas e físicas com legislação casuística ou extrafiscal e que, ao invés
de ser neutro, desorganiza a economia, em prol de interesses puramente arrecadatórios”.
A presunção de legitimidade, segundo os autores, é inerente aos atos jurídicos em
geral e a estabilidade do Direito repousa “na aparência ou na forma aparente de legitimidade
dos atos jurídicos”. A segurança jurídica, nas visões de Coêlho e Derzi (2003, p. 132), é a
base essencial do Estado de Direito.
Para Coêlho e Derzi (2003, p. 117), o princípio da legalidade veda a utilização da
interpretação econômica no Direito brasileiro, a qual, segundo os autores, é muito defendida
pelos fiscos para alargar indevidamente a tributação através de uma “compreensão
econômica” dos fatos jurígenos. Os autores não concordam com “muita gente desavisada” que
88
enxerga nos arts. 109 e 110 do CTN a incorporação da teoria da interpretação econômica do
Direito Tributário.
Coêlho e Derzi (2003, p. 117) baseiam suas posições acerca da interpretação
econômica em um artigo de Canto (1988) no qual o autor também associa essa teoria às
concepções gerais do nacional-socialismo.
Com base em Becker (1972), Canto (1988, p. 14) assevera que a interpretação
econômica prevaleceu na legislação alemã até 1945, quando “toda reminiscência do nazismo”
começou a ser eliminada dos textos legais. Canto (1988, p. 14) reconhece que a interpretação
econômica foi introduzida em 1919 (§4º do Código Tributário alemão) e que somente em
1934, com a Lei de Adaptação Tributária, a ideologia do nacional-socialismo foi introduzida
na legislação tributária. Para Canto (1988), novamente com base em Becker (1972) e na
mesma linha de Xavier (2001), “a vocação totalitária de Enno Becker” se projeta “para trás,
no tempo, até o ano de 1919”. Ou seja, na visão do autor, o §4º do Código Tributário alemão
de 1919, muito anterior à instituição do regime nazista, de alguma forma já espelhava a
ideologia do nacional-socialismo.
Segundo Canto (1988, p. 16), a evolução da teoria da interpretação econômica no
Direito alemão operou um “efeito retrógrado na cultura jurídica”, decorrente das distorções
provocadas nos princípios fundamentais da tributação. Um desses efeitos retrógrados, na
visão do autor, é a possibilidade de se considerar abusivo o recurso a formas de Direito
Privado visando à redução ou eliminação da tributação. Canto (1988) reconhece que a
realidade econômica se apresenta como “pressuposto lógico relevante dos tributos”, mas
apenas o admite “na obrigação tributária se tiver sido ‘jurisdicizado’ pela lei, dado o princípio
da legalidade”.
Canto (1988, p. 19-20) reconhece que “nos países adiantados se dá ênfase
preponderante ao conteúdo econômico da interpretação das leis tributárias” e destaca que os
Estados Unidos chegaram a uma “combinação ótima de pragmatismo e segurança na
aplicação da lei segundo os princípios da igualdade, justiça e representatividade”. Segundo o
autor, os tribunais americanos possuem amplos poderes de interpretação das leis tributárias
mas não os exercem com base na prevalência da substância econômica sobre a forma jurídica,
e sim com base na necessidade de se divisar nos textos legais toda a amplitude razoavelmente
possível de nele ser encontrada. No Brasil, contudo, conforme Canto (1988, p. 23), prevalece
a reserva absoluta de lei em matéria tributária, com a expressa vedação da analogia quando o
seu emprego resultar em exigência de tributo não previsto em lei, e por isso o sistema
89
americano do judge made law não tem aplicação no Direito pátrio. A interpretação econômica
é vedada, assim, mesmo quando implica o “desatendimento ao princípio da isonomia”.
Para o autor, quando a lei tributária alude a institutos de Direito Privado sem lhes
conferir definições próprias para efeitos fiscais, o intérprete deve se ater ao significado desses
institutos tal como formulados no Direito Privado. Assim, segundo Canto (1988, p. 18-19), se
a lei tributária é silente na matéria, e apenas alude, “como elemento de conexão ou de gênese
de obrigação ou efeito tributário, a ‘titularidade dominial’, prevalece, para caracterizar a
situação que ela definiu, o conceito ‘privatístico’ de titularidade dominial”. Contudo, ressalva
o autor, o legislador tributário, desde que atenda ao limite do art. 110 do CTN, pode tirar
efeitos fiscais de um princípio de Direito Tributário que equipare determinadas situações à
titularidade dominial.
Na visão de Canto (1988, p. 16), a teoria do abuso de formas é equivocada, pois se as
formas de Direito Privado não são legitimadas pelas normas desse ramo do Direito, o caso é
de ilegalidade ou nulidade, e não de abuso de formas. Mas se tais formas são legitimadas pelo
Direito Privado, não há como imputar a alguém o abuso de formas apenas para efeitos fiscais.
Para o autor, o abuso de formas não decorre de prescrição de lei alguma, e sim da convicção
de algum agente da Administração Pública ou de algum magistrado “de que o legislador teria
querido dizer, ao expedir a lei, muito mais do que ele efetivamente disse” (CANTO, 1988, p.
19).
Conclui o autor, assim, que se o legislador tributário não quiser que as formas de
Direito Privado produzam os efeitos tributários que os contribuintes poderiam ter em vista
quando a elas recorreram, o que tem a fazer é determinar que para fins especificamente
tributários os atos que segundo o Direito Privado são lícitos e eficazes serão tratados como se
fossem atos de natureza idêntica a um modelo predeterminado. O legislador tributário, para
Canto (1988, p. 17), também poderia definir determinados institutos de Direito Privado, para
fins fiscais, de modo substancialmente distinto daquele pelo qual estão definidos nesse ramo
do Direito.
Não obstante a adesão de Coêlho e Derzi (2003, p. 117) ao pensamento de Canto
(1988), esses dois autores, quando confrontados com casos concretos de elusão fiscal, chegam
a conclusões bem diferentes das conclusões de outros autores desenganadamente formalistas
como Martins (1998). Essa posição de Coêlho e Derzi foi explicitada por Godoi (2007, p.
294) por meio da análise de dois casos julgados pelo Conselho de Contribuintes do Ministério
da Fazenda (incorporação às avessas) e pelo STF (contratos de seguro cancelados pelas partes
90
logo após a sua formalização). Conforme demonstrado por Godoi (2007, p. 294), Coêlho e
Derzi consideram que esses dois planejamentos são inaceitáveis e que constituem típicos
casos de simulação. Contrariamente a Coêlho e Derzi (2007, apud GODOI, 2007, p. 294),
Ives Gandra da Silva Martins (2001, apud GODOI, 2007, p. 294) considera que os referidos
planejamentos são perfeitamente lícitos e que nada têm de simulação. Para o autor, a adoção
da simulação nessas hipóteses implica “a incorporação da teoria da interpretação econômica”.
Na visão de Godoi (2007, p. 295), essa aparente contradição decorre do fato de Coêlho
e Derzi (2007, apud GODOI, 2007, p. 294) adotarem um conceito mais amplo de simulação,
aberto a considerações causalistas, o que é natural em ordenamentos jurídicos que não
possuem uma norma geral antielusão tal como a norma do §42 do Código Tributário alemão
de 1977. Assim, quanto menor o espaço de atuação da norma geral antielusão (abuso de
direito ou fraude à lei, por exemplo), maior o raio de amplitude do conceito de simulação.
Relata Godoi (2007, p. 295) que essa foi uma das mais importantes conclusões do Congresso
Mundial da IFA de 2002, realizado em Oslo. Nos países em que não há uma norma geral
antielusão, dessa forma, a fundamentação que o fisco e a doutrina utilizam para indicar que
houve simulação é muito parecida com a lógica de funcionamento das normas gerais anti-
abuso.
As posições de Coêlho e Derzi (2007, apud GODOI, 2007, p. 294), portanto, não
parecem tão formalistas quanto as posições de Becker (2004), Xavier (2001), Carvalho (1975)
e Martins (2001).
3.3 A teoria antiformalista do Direito Tributário
3.3.1 Marco Aurélio Greco
Em sua obra Planejamento Tributário, Marco Aurélio Greco (2004, 15) examina as
diferentes e impactantes consequências decorrentes do modo pelo qual se concebe o Estado
brasileiro. A concepção do Estado brasileiro como Estado de Direito (o Estado que se
submete à lei e à jurisdição) ou como Estado Democrático de Direito (o Estado que compõe
valores protetivos e modificadores da realidade) é decisiva para a interpretação do Direito
91
Tributário. Para a doutrina que vê o Estado brasileiro como Estado de Direito, os dispositivos
constitucionais tributários são compreendidos como uma forma de proteção do patrimônio do
contribuinte. De forma contrária, para a doutrina que considera o Estado brasileiro como
Estado Democrático de Direito, o Sistema Tributário Nacional visa à melhoria das condições
sociais, à redução das desigualdades sociais e à instauração de valores modificadores da
realidade (função social da propriedade, solidariedade e defesa do meio ambiente, por
exemplo).
A concepção acerca do Estado brasileiro, um dos pilares do exame do autor aos limites
do planejamento tributário, reflete diretamente no estudo da interpretação econômica do
Direito Tributário, seja como espécie de interpretação teleológica, seja como forma de
combate à elusão fiscal. Conforme Greco (2004, p. 15), as diferentes concepções de Estado
apresentam uma faceta ideológica que repercute no sentido que se extrai da lei no momento
da sua interpretação e aplicação.
Os que professam uma ideologia liberal clássica, segundo o autor, defendem a
concepção ampla (quase ilimitada) de liberdade do contribuinte e negam a existência das
figuras da fraude à lei e do abuso de direito em matéria tributária (interpretação econômica
como medida de combate à elusão fiscal). Ou seja, os adeptos da ideologia liberal clássica não
admitem que o fisco desconsidere os atos abusivos praticados pelos contribuintes.
Os adeptos de uma ideologia eminentemente social, por outro lado, defendem que o
planejamento tributário é uma conduta inaceitável, que frustra o devido alcance da capacidade
contributiva, quebra a isonomia e agride a solidariedade social. A interpretação da norma
tributária, assim, deve privilegiar a substância econômica do negócio jurídico, e não a sua
dimensão jurídica.
Em face dessas duas diferentes ideologias, Greco (2004, p. 18) propõe a identificação
de um ponto de equilíbrio, o que não é tarefa fácil. A dificuldade decorre do fato de a postura
ideológica nem sempre estar explícita no debate. Ressalta o autor que são muito frequentes as
conclusões categóricas apresentadas como verdades absolutas e incontestáveis que refletem,
na realidade, o mero produto de uma determinada linha ideológica previamente assumida,
mas nem sempre previamente explicitada para o interlocutor. E somente conhecendo a base
ideológica de certa posição é possível contestá-la adequadamente.
Outro problema é a definição dos meios para se atingirem os valores e objetivos
encampados pela Constituição. Conforme Greco (2004, p. 37), os meios que são mais diretos
para atender a uma finalidade podem arranhar outro valor igualmente protegido pela
92
Constituição. Não há uma resposta pronta e “o bom para hoje pode ser o ruim para amanhã. O
ruim de hoje pode ser o bom de amanhã”.
Diferentemente da sociedade atual, na sociedade clássica as pessoas sabiam, a priori,
como as relações jurídicas se estruturavam. O Direito olhava para trás. Conforme o exemplo
de Greco (2004, p. 37), se um servo caçasse um alce na floresta do rei, sabia que sofreria uma
punição, já que nenhum valor se sobrepunha à violação da propriedade do rei. Atualmente,
contudo, o Direito olha para frente e não é mais possível que as pessoas saibam, a priori,
como as relações jurídicas se estruturam. As pessoas hoje podem ter expectativas, assumir
visões prospectivas, identificar tendências e diretrizes, mas não podem assumir afirmações
pretensamente absolutas e irretorquíveis. Ou seja, hoje não é possível ao intérprete dizer que
algo “é assim” ou que “esta norma é inconstitucional” sem considerar o posicionamento dos
juízes.
O juiz não é um puro técnico, capaz de encontrar um único sentido válido na norma.
Como bem adverte Greco (2004, p. 37), “o juiz não está na Lua, distante do que ocorre
concretamente; é um homem, um cidadão, com crenças, convicções, tendências conscientes e
inconscientes próprias de sua formação e experiência”.
Greco (2004, p. 37-38) acentua que todos devem estar abertos à mudança ocorrida no
perfil do Direito. A sociedade não é mais estratificada e as relações não são mais
absolutamente estáveis. Tampouco os interesses são nitidamente definidos. No mundo de hoje
há valores e interesses a serem ponderados e objetivos e finalidades a serem atingidos.
O Direito não é uma simples “arquitetura de conceitos”, como defendia a
Jurisprudência dos Conceitos. Também não é mero instrumento de consagração e proteção de
interesses, como propugnava a Jurisprudência dos Interesses. Para o autor, o Direito é o “meio
para viabilização concreta de valores básicos da pessoa humana e do seu convívio em
sociedade”. O exame e a compreensão do Direito, frisa Greco (2004, p. 38), envolvem,
fundamentalmente, uma discussão de valores.
Greco (2004, p. 38) salienta que as normas têm um elemento de constância, mas essa
constância não é absoluta no sentido de imutabilidade e inexorabilidade. Mudança não
significa total flexibilidade, mas sim adequabilidade a novas situações. O ordenamento
jurídico é um sistema aberto para a realidade e seu dilema é o seguinte: se o ordenamento
quiser prever todas as situações novas (construindo uma nova tipologia), será superado mais
dia menos dia; por outro lado, se deixar a disciplina em aberto, há o risco da fluidez e
flexibilidade sem controle.
93
O equilíbrio entre constância e flexibilidade, segundo Greco (2004, p. 39), é conferido
pelos princípios da confiança, da boa-fé, da moralidade (tanto da Administração quanto do
cidadão), da honestidade e da sinceridade de propósitos. Não há uma linha divisória precisa e
não se trata mais de “sim ou não”. Nas palavras do autor, trata-se de um “pode ser que sim ou
pode ser que não”. O desafio, portanto, é saber o que é e o que não é aceitável para fins de
qualificação da conduta do contribuinte.
Não obstante, é comum que se defenda a autoridade da Constituição “lendo apenas um
Capítulo”. Defende-se intransigentemente, por exemplo, a autoridade do art. 150, I ou do art.
150, III. Greco (2004, p. 41) discorda dessa posição e salienta que o Capítulo Tributário não
existe isoladamente, como se estivesse fora do contexto da Constituição. Sendo assim, o
conteúdo e o alcance do Capítulo Tributário, conforme o autor, somente poderá ser definido
se a interpretação de seus dispositivos estiver em sintonia com os demais capítulos da
Constituição. O Capítulo Tributário deve ser a materialização, nesse segmento da realidade,
dos conceitos, princípios, objetivos e valores consagrados pela Constituição como um todo.
Nos dizeres de Greco (2004, p. 42), a Constituição não começa no Capítulo relativo ao
Sistema Tributário Nacional, e sim com a definição de objetivos e princípios gerais que estão
nos seus artigos 1º a 4º e que se desdobram nos vários Títulos e Capítulos subsequentes.
Até a Constituição de 1988, era pertinente defender que o ordenamento jurídico
brasileiro deveria atender às exigências do Estado de Direito. A partir da Constituição de
1988, contudo, o Estado brasileiro passou a se constituir em um Estado Democrático de
Direito (art. 1º). Essas duas expressões não são sinônimas e o que se discutiu durante a
Assembleia Nacional Constituinte, na visão de Greco (2004, p. 43), bem explica o contexto
do Estado brasileiro.
Conforme Greco (2004, p. 43), de um lado, o “Centrão” defendia posições protetivas e
mais conservadoras; de outro lado, as chamadas forças progressistas defendiam um Estado de
perfil mais social, interventivo. Ou seja, o Centrão defendia um Estado não-intervencionista,
protetor de valores tais como a liberdade e a propriedade, e as forças progressistas defendiam
um Estado intervencionista, controlador da economia, que postulava a melhoria das condições
sociais, a redução das desigualdades sociais e a instauração de valores modificadores da
realidade. O produto final deste confronto ideológico, conforme o autor, não foi nem um
Estado de Direito meramente protetivo, nem um Estado Social meramente intervencionista. O
produto final é o estabelecimento do Estado brasileiro como um Estado Democrático (social)
de Direito (protetivo).
94
Isso não significa, conforme Greco (2004, p. 43), que a Assembleia Nacional
Constituinte tenha optado por linhas ideológicas opostas. A Constituição de 1988, na verdade,
é a fusão das linhas ideológicas defendidas pelo “Centrão” e pelas forças progressistas.
Consequentemente, a Constituição contém, ao mesmo tempo, disposições de nítido
caráter protetivo (proteção do direito de propriedade, por exemplo) e disposições que dizem
respeito a valores sociais modificadores da realidade (função social da propriedade,
solidariedade e defesa do meio ambiente, por exemplo). Nas palavras de Greco (2004, p. 43),
a Constituição de 1988 “acaba sofrendo de dupla personalidade, pois não tem o perfil
ideológico de nenhuma das duas correntes” que se formaram durante a Assembleia Nacional
Constituinte. A Constituição de 1988 “não é liberal e não é social. Ela é, ao mesmo tempo,
meio a meio”.
A grande dificuldade, na visão de Greco (2004, p. 44), não é reconhecer o confronto
de valores liberais e sociais. A dificuldade é convencer a parte contrária (que postula a
prevalência de valor de outra feição) que outros valores também merecem ser postulados, que
também devem “sentar à mesa”.
O defensor ferrenho dos valores liberais clássicos, com uma visão exclusiva e
excludente, somente se interessa pela defesa da propriedade, liberdade, legalidade,
irretroatividade, anterioridade, etc. Ele não aceita que se fale em melhoria das condições
sociais, por exemplo. A variável social não é “jurídica” e por isso não pode “sentar à mesa”.
Por outro lado, o defensor de valores sociais, também com uma visão exclusiva e
excludente, é insensível a questões técnicas, tal como a data da publicação do Diário Oficial.
Para o defensor dos valores sociais, consistentes na redução das desigualdades regionais e
sociais, na solidariedade, na igualdade, na capacidade contributiva, na defesa do meio
ambiente, etc., o importante é implementar o plano de governo, o projeto tal ou qual e assim
por diante. A data da publicação do Diário Oficial, para ele, é mera “tecnicidade”.
A dificuldade na materialização dos valores do Estado Democrático de Direito, assim,
é fazer com que cada interlocutor aceite que todos os valores consagrados
constitucionalmente devem ser ponderados no caso concreto. Nos dizeres de Greco (2004, p.
44-45), todos os valores constitucionais, tanto de cunho protetivo (típico do Estado de
Direito), quanto de cunho social (típico do Estado Social), devem “sentar à mesa”.
Conforme Greco (2004, p. 45), o debate acerca do exercício de uma liberdade, se foi
exagerado ou se agrediu algum valor social, é um debate de graduação de elementos
ideológicos. A tributação deve respeitar a capacidade contributiva, mas também deve respeitar
95
a legalidade e a tipicidade. Essa confluência de valores, na visão do autor, é a base de toda
discussão acerca dos limites do planejamento fiscal.
A concepção ideológica de Greco (2004, p. 45), à qual aderimos sem restrições, é no
sentido de que os dois conjuntos de valores, protetivos e sociais, devem ser sempre
ponderados. Para o autor, não há caso que não envolva os dois conjuntos de valores e por isso
ambos devem “sentar à mesa” para dialogar. É o que está escrito, segundo Greco (2004, p.
46), no art. 3º, I, da Constituição de 1988, ao estabelecer que um dos objetivos do Estado
brasileiro é constituir uma sociedade livre, justa e solidária. Para o autor, a formulação
linguística do inciso I do art. 3º é muito feliz, pois coloca em uma ponta a liberdade (típica do
Estado de Direito), na outra a solidariedade (típica do Estado Social), e entre elas a justiça,
que é o resultado da ponderação das duas. Em outras palavras, somente haverá justiça quando
houver ponderação entre liberdade e solidariedade.
Greco (2004, p. 46) não defende o predomínio de nenhum dos dois conjuntos de
valores. O que propõe o autor é a composição entre liberdade e solidariedade, sem que um
valor aniquile o outro. A capacidade contributiva não pode anular a liberdade do contribuinte
de escolher a forma jurídica menos onerosa do ponto de vista tributário. Tampouco essa
liberdade de escolha do contribuinte pode desconsiderar a capacidade contributiva. Diante de
um impasse envolvendo um confronto de valores, a solução é encontrar um ponto de
equilíbrio em que seja possível proteger os legítimos interesses ligados à liberdade e ao
mesmo tempo assegurar o atendimento satisfatório da variável social.
Para o autor, tudo isso está diretamente ligado ao que ocorreu no Direito Tributário
brasileiro nos últimos quarenta anos, considerando a edição do CTN como marco referencial.
Lembra Greco (2004, p. 49) que o Direito Tributário é um dos poucos ramos do
Direito que têm uma data certa de nascimento. Enquanto a maioria dos ramos do Direito é o
resultado de uma constante construção de disciplinas, o surgimento do Direito Tributário tem
data definida, que é a edição do Código Tributário alemão de 1919. Não nega o autor que
muito antes de 1919 já havia o fenômeno da tributação, mas o primeiro Código Tributário
alemão, na sua visão, é o grande marco histórico da estruturação do Direito Tributário.
Essa estruturação, contudo, tem menos de cem anos. Como vimos na seção 2, a
discussão mais elaborada a respeito do Direito Tributário é do início do século XX e conviveu
com o “auge do positivismo jurídico”, do Estado de Direito e da visão liberal do Estado. A
estruturação do Direito Tributário, portanto, incorporou uma visão protetiva do cidadão contra
o Estado.
96
Relata Greco (2004, p. 49) que o grande desenvolvimento do Direito Tributário
brasileiro ocorreu depois da Constituição de 1946, que consagrou em seu art. 202 o princípio
da capacidade contributiva. Antes da Constituição de 1946 havia apenas textos esporádicos.
Ocorre que, como adverte o autor, o Direito Tributário começou a se desenvolver no
momento histórico em que a ideia de “cientificidade” era predominante. O grande objetivo de
todos que pretendiam estudar um determinado ramo do Direito era defender a autonomia
daquele ramo (do Direito Administrativo em relação ao Constitucional; do Direito Financeiro
em relação ao Administrativo; do Direito do Consumidor em relação ao Comercial).
Essa preocupação com a autonomia tinha a ver com a ideia de ciência vigente naquela
época, porque somente seria ciência o conhecimento que tivesse objeto e método próprios.
Para fazer ciência, salienta Greco (2004, p. 50), era necessário destacar determinado objeto e
submetê-lo a uma análise segundo um método específico.
A discussão acerca da autonomia do Direito Tributário visava a lhe assegurar uma
identidade própria, independente da ciência das finanças. Defendia-se essa autonomia como
se o Direito Tributário pudesse existir sem interagir com os demais ramos do Direito e com as
demais áreas de conhecimento.
Mas, a partir de 1946, começou a surgir, ao mesmo tempo, uma preocupação ligada à
estrutura formal do Direito Tributário e uma preocupação com sua substância (valores da
capacidade contributiva, da isonomia, etc.). Havia textos defendendo os aspectos substanciais
do Direito Tributário, mas também havia textos que criticavam essa preocupação, bastando
lembrar, como demonstramos anteriormente, que Becker (1972) considerava o art. 202 da
Constituição de 1946 a “constitucionalização do equívoco”.
O CTN, na visão de Greco (2004, p. 51), consagrou visões e concepções tradicionais.
Procurou-se, com o CTN, uma sistematização do Direito Tributário que fosse absolutamente
rigorosa e que levasse a respostas do tipo “sim ou não”, “pode ou não pode”, “é ou não é”.
Essa postura, conforme o autor, não resolve todos os problemas, nem é adequada a todas as
situações.
Nesse mesmo período foi editada a Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro
de 1965, que revogou expressamente o artigo 202 da Constituição de 1946, que consagrava o
princípio da capacidade contributiva.
Segundo Greco (2004, p. 51), prevaleceu a concepção de que a interpretação e a
aplicação do Direito Tributário deveriam ser objetivas e de que a tributação deveria se apoiar
apenas em dados da realidade, sem se contaminar por outras variáveis. A capacidade
97
contributiva, cuja ideia é fundamentalmente substancial, dizendo respeito à pessoa, à
sociedade e ao contexto econômico e social, não poderia conviver com técnicas de tributação
objetivas e científicas.
Greco (2004, p. 51) ressalta que na segunda metade da década de sessenta, a ideia de
sistema, como critério de organização da realidade, foi consagrada na experiência brasileira.
Essa ideia levou à edição dos sistemas específicos da viação, previdência, transporte, saúde,
etc. O CTN, portanto, surgiu de forma coerente com o ambiente da época, tanto o filosófico
quanto o político. Naquele momento, o Estado brasileiro buscava uma planificação objetiva e
não aceitava debates de cunho substancial. Na década de setenta, conforme o autor, era
preciso muito cuidado para se defender as ideias de solidariedade social e fraternidade, por
exemplo. Nesse contexto, o Direito Tributário era naturalmente formal e técnico.
Greco (2004, p. 52) atribui a Geraldo Ataliba a descoberta da discussão da hipótese de
incidência como forma de viabilizar o debate acerca da proteção dos direitos dos
contribuintes, sem discutir a justiça da tributação. Para o autor, isso foi possível porque, na
medida em que o interlocutor estatal defendia fortemente sua autoridade, o mesmo critério
aplicável à autoridade desse interlocutor era aplicável à autoridade da lei e à autoridade da
Constituição.
Desenvolveu-se um Direito Tributário apoiado em conceitos frios, objetivos, em que
os grandes princípios não comportavam debates substanciais. Conforme o autor, a
anterioridade e a irretroatividade não comportavam debates porque se resumiam à verificação
de datas. O mesmo ocorria com a legalidade: ou está na lei ou não está.
No período de 1965 até a Constituição de 1988, segundo Greco (2004, p. 52), o debate
acerca do Direito Tributário centrou-se na forma e na técnica da incidência. O autor destaca
que havia estudos preocupados com aspectos mais substanciais, tais como o de Dória (1971),
os quais, contudo, foram superados pelos estudos dedicados à operacionalização da incidência
tributária, tal como o de Becker (2004).
A Constituição de 1988, que confere relevância não apenas aos aspectos formais,
recepcionou o CTN sem a correspondente incorporação dos valores substanciais. O CTN, na
visão de Greco (2004, p. 53), não é incompatível com a Constituição de 1988, mas é
insuficiente para exprimir todas as suas dimensões valorativas (valores protetivos e ao mesmo
tempo modificadores da realidade).
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O autor não propõe o abandono do CTN, e sim que não se exija de suas normas mais
do que elas podem dar. Greco (2004, p. 53) alerta que é preciso ter consciência de que o CTN
não regula inúmeros aspectos que são relevantes para a nova ordem constitucional.
Como exemplo, Greco (2004, p. 53) cita o artigo 149 da Constituição, que trata das
contribuições. Apesar de o art. 149 remeter ao art. 146, III, até hoje não foi editada uma lei
complementar introduzindo no CTN um capítulo sobre sua criação e funcionamento. Para o
autor, as contribuições ainda não foram reguladas por lei complementar porque o seu perfil
não se enquadra nas categorias clássicas dos tributos considerados a partir da materialidade da
sua hipótese de incidência. A redação original do CTN não previa as contribuições e elas
somente foram mencionadas no art. 217, introduzido dias após a sua publicação.
A concepção do Direito Tributário predominante em 1966 enxergava a tributação
apenas sob a ótica liberal da proteção da propriedade. Mas como hoje a tributação também
deve ser vista como instrumento de viabilização das mudanças econômicas e sociais que a
Constituição prevê, Greco (2004, p. 54) sugere que sejam acrescidas ao CTN regras de
disciplina e controle, sem o abandono ou a substituição das já construídas.
Greco (2004, p. 54) reconhece, contudo, que essa mudança de concepção não ocorre
com a simples mudança da lei. Antes de mudar a lei, “é preciso mudar a visão de mundo, é
preciso mudar a maneira pela qual vemos a realidade, porque só depois disso será possível
saber qual a lei a ser feita”. Isso porque, conforme o autor, talvez a elaboração de nova lei seja
desnecessária, “talvez baste mudar a interpretação, tomando a mesma lei e relendo-a de outra
maneira”. Conclui o autor, assim, que não se trata de excluir da análise nem de deixar de
aplicar os mecanismos protetivos existentes, e sim de “acrescentar mais ingredientes à nossa
conversa”.
Essa mudança de direção identificada por Greco (2004, p. 56) leva a um confronto
entre o formalismo e o realismo fiscal, que são o produto das duas concepções de Estado
mencionadas anteriormente. O realismo fiscal prestigia os valores sociais (capacidade
contributiva, isonomia, solidariedade, fraternidade, redistribuição de riquezas, etc.) e o
formalismo fiscal prestigia os valores protetivos do Estado de Direito (legalidade, tipicidade,
anterioridade, irretroatividade, propriedade privada, etc.).
99
Os adeptos do formalismo fiscal, que são a maioria no Direito brasileiro, entendem
que a norma do § único do art. 116 do CTN40, por exemplo, destrói a certeza e a segurança
jurídica. Essa postura corresponde à concepção do ordenamento positivo brasileiro como
eminentemente protetivo, típico do Estado de Direito. Os adeptos do realismo fiscal, por outro
lado, consideram que a norma do § único do art. 116 do CTN não agride a certeza e a
segurança jurídica e que prestigia os valores da capacidade contributiva, da isonomia, da
solidariedade, etc.
Greco (2004, p. 57-58) ressalta a importância de se desmistificar o debate sobre
certeza e segurança jurídica. Conforme o autor, “A rigor, segurança e certeza como valores
absolutos nunca existiram no mundo, em nada. [...] Segurança e certeza dependem do modo
pelo qual o ordenamento jurídico é compreendido e aplicado, ou seja, do modo como nos
posicionamos perante ele”.
No ordenamento jurídico, ressalta Greco (2004, p. 58), não há duas posições
exclusivas e sim uma faixa ampla e gradual que separa extremos nítidos. Em termos de
segurança e certeza, o máximo que se pode ter são condições de previsibilidade. Segurança e
certeza, que em última análise envolvem a justiça do ordenamento, não são qualidades do
direito positivo, e sim objetivos a serem perseguidos na sua aplicação.
A posição ideológica de Greco (2004, p. 60), portanto, é no sentido de a Constituição
inteira ter a sua máxima autoridade possível assegurada tanto nos valores protetivos quanto
nos valores modificadores da realidade. Nas discussões tributárias, é preciso que ambos os
conjuntos de valores estejam presentes e sejam prestigiados. Um não pode extinguir o outro,
“a legalidade não pode existir sem capacidade contributiva e a capacidade contributiva não
pode existir sem a legalidade”. O autor não defende a prevalência de nenhum dos dois
conjuntos de valores, e sim que nenhum dos dois é absoluto. Ninguém está obrigado a pagar o
maior tributo possível, mas isso não quer dizer que “qualquer menor tributo possível estará
protegido pelo ordenamento e terá seus efeitos por ele garantidos”.
40 “Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais
necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de
direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a
finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”
100
Quanto aos conceitos utilizados pela lei tributária na definição da hipótese de
incidência, Greco (2004, p. 69) entende que são três os campos em que se podem buscar os
seus respectivos conteúdos:
a) o uso comum (linguagem corrente);
b) o uso técnico adotado por determinado setor do conhecimento;
c) o uso legal, encontrado em outra norma jurídica integrante do ordenamento
positivo.
Apesar de serem três as fontes hipotéticas de conteúdo encampadas pela lei tributária,
o intérprete somente estará vinculado a um determinado conteúdo, que não o comum, se a lei
assim o determinar, ou seja, se a lei tributária, em vez de repetir as características do conceito
que estão enumeradas em outro ramo do conhecimento, remeter àquele campo. Segundo
Greco (2004, p. 69), essa encampação supõe uma remissão clara e precisa ou uma conexão
material.
A remissão feita pela lei não se confunde com a atribuição de poder normativo ao
intérprete. Conforme Greco (2004, p. 69), na remissão, a lei tributária faz com que a previsão
já existente em determinado campo do conhecimento venha a integrar a norma originária. Ao
contrário da remissão, a outorga do poder normativo ao intérprete é incompatível com a
legalidade e a tipicidade.
A encampação de conteúdo que não é clara e expressa implica a adoção do sentido
comum do termo, sendo necessária a busca subsidiária de outros elementos para a análise da
norma tributária. Assim, segundo Greco (2004, p. 70-71), em linha com Berliri (1964), o uso
comum ou corrente é a regra, uma vez que a lei tributária é feita para ser entendida e aplicada
por todos. O uso técnico ocorre quando a lei tributária utiliza termos em que a identificação
do respectivo objeto supõe qualificação existente em área específica (a referência a “médico”
supõe alguém habilitado para exercer a medicina), ou quando expressamente remete a
determinada área (por exemplo, quando a lei tributária se refere a “doença grave conforme
medicina especializada”). O uso legal ocorre quando a lei tributária se refere a um conceito
jurídico em hipótese que subjaz à ratio que está na base do art. 109 do CTN (quando se refere
a “herdeiro”, por exemplo) ou quando remete expressamente a outro dispositivo legal que
veicula o contorno do respectivo conceito.
Para Greco (2004, p. 70), em todas essas hipóteses, um sentido encontrável em outro
campo do conhecimento (que não o uso comum) somente integrará o preceito da norma
tributária se houver remissão expressa ou conexão material (pertinência temática), ou seja, se
101
a própria lei tributária manifestar a encampação do conteúdo externo. Se não houver remissão
expressa ou conexão material, o intérprete partirá do uso comum do vocábulo e buscará no
sistema os elementos subsidiários de análise da norma. É necessário, como ressalta Greco
(2004, p. 70), que não haja incompatibilidade entre o preceito tributário e os conceitos que lhe
são externos.
Assim, para Greco (2004, p. 70-71), há, na prática, hipóteses em que a busca de um
conceito externo ao Direito Tributário é
a) obrigatória, porque a lei assim determina;
b) cabível, porque há pertinência temática; e
c) indevida, porque a lei tributária utilizou o termo no seu sentido corrente.
Sendo certo que a legalidade é elemento absolutamente indispensável ao Direito
Tributário, Greco (2004, p. 124) propõe uma análise crítica do desenho que deve ter a lei
tributária para que se considere atendido o art. 150, I da Constituição Federal.
Visando a demonstrar as alterações sofridas pelo princípio da legalidade, Greco (2004,
p. 125) traça um perfil da sua evolução ao longo do tempo. Há duzentos anos, com a
Revolução Francesa, a fonte de legitimação do poder deixou de ser a vontade divina investida
no rei e passou a ser a vontade do povo expressa na lei. A legalidade assumiu o perfil
fundamental de uma legalidade de meios, especificando o que o Poder Público podia e não
podia fazer. Após a Segunda Guerra Mundial, contudo, a legalidade deixou de ser apenas uma
legalidade de meios ou de pressupostos de ação e passou a ser uma legalidade de fins ou de
objetivos e resultados.
Isso não significa que a legalidade de meios desapareceu, como adverte Greco (2004,
p. 125), e sim que está justaposta à legalidade de fins. Cabe ao intérprete, na análise do
ordenamento jurídico, compreender que se acrescentou um elemento que por muito tempo
permaneceu em segundo plano.
Além disso, a visão tradicional da legalidade (apenas de meios) encontra dificuldade
para resolver certos problemas práticos. No primeiro momento de edição da lei, ela abrange
exatamente todos os fatos existentes, possíveis e conhecidos. O legislador, portanto, esgota
sua competência constitucional. No segundo momento, a lei continua com a mesma
amplitude, mas os fatos se diversificam, pois surgem hipóteses que não haviam sido
expressamente previstas no primeiro momento.
Conforme Greco (2004, p. 128), os defensores da visão tradicional da legalidade
entendem que há necessidade de uma lei nova para alcançar estes novos fatos. Essa posição,
102
na visão de Greco (2004, p. 128), gera uma perplexidade, uma vez que se a competência
tributária foi plenamente exercida (esgotada) no primeiro momento, não há razão para a
edição de uma nova lei. O efeito gerado pelo surgimento dos fatos novos não pode ser o de
aumentar a competência tributária que a pessoa política possuía no primeiro momento, ou
seja, a competência constitucional não é aumentada pelo fato novo. Essa perplexidade, reforça
o autor, não se resolve pela visão tradicional da legalidade.
De fato, a velocidade da mudança da realidade é muito maior que a velocidade de
produção das normas. Por isso, é operacionalmente inviável pretender que a lei desça a um
grau de pormenor que implique o detalhamento individual de cada conduta. Essa tarefa,
conforme Greco (2004, p. 129), é matéria do aplicador da lei na produção da norma
individual. Para o ordenamento funcionar, é necessário que o legislador utilize os conceitos e
a linguagem capazes de indicar a realidade concreta que está sendo qualificada.
Para Greco (2004, p. 129), portanto, em vez de prever condutas individuais ou fatos
específicos, a legislação deve se utilizar de standards, padrões de conduta ou padrões de fatos.
Os modelos abstratos assim criados têm uma vida maior do que a descrição de cada conduta
individualizada. Essa posição do autor, no nosso entendimento, é necessária à efetividade
tanto dos valores protetivos quanto dos valores sociais. A inflação legislativa, com todos os
malefícios que causa ao contribuinte, comprova essa necessidade.
Mas deve-se ter cuidado para que esse modelo não acabe em arbitrariedade. Assim
como a visão tradicional da legalidade leva à estagnação e ao imobilismo, a técnica de
legislação mediante standards pode levar ao extremo oposto, e por isso deve ser
acompanhada de mecanismos eficazes de controle, tal como o teste da proporcionalidade
(necessidade, adequação e proibição de excesso). Afinal, como destaca Greco (2004, p. 132),
o cumprimento de um dispositivo constitucional não pode levar ao descumprimento de outro.
A legalidade de fins tem especial relevo no Sistema Tributário Constitucional, em que
há uma duplicidade de discriminação de competências, o modelo causalista (fato gerador) e o
modo finalista (mediante dispositivos que qualificam determinados objetivos ou finalidades
autorizando certas condutas). Essas duas técnicas, como demonstra Greco (2004, p. 130), não
são absolutas, nem exclusivas, nem excludentes.
Considerando o perfil constitucional atual, há visões opostas sobre a natureza do fato
gerador. Há quem sustente que o fato gerador é um fato econômico de conteúdo jurídico e
quem sustente que o fato gerador é um fato jurídico de conteúdo econômico.
103
Conforme Greco (2004, p. 136), caso se assuma que a tributação visa a alcançar uma
parcela da realidade econômica, consistente na produção, distribuição ou manutenção de
riqueza, e que o fato gerador, por ser a descrição de uma realidade econômica, é um fato
econômico, embora com vestimenta jurídica, o qualificativo “econômico” será a tônica da
interpretação. Ou seja, se o fato é essencialmente econômico, deve ser visto sob a ótica
econômica, e a legislação instituidora do tributo será mero instrumento para atingir a
realidade econômica.
Mas, caso se assuma que a tributação visa a alcançar um fato jurídico com conteúdo
econômico, a dimensão econômica ficará em segundo plano. A interpretação visará a
identificar o alcance jurídico do evento, mediante a busca da correlação daquele instituto em
um determinado ramo do Direito com outro instituto no campo tributário, sempre
considerando o elemento jurídico como referência.
Para Greco (2004, p. 136), afirmar que o fato gerador é jurídico ou econômico é
decisivo para a determinação da amplitude da interpretação tributária. O fato gerador,
segundo o autor, é fato jurídico, mas não necessariamente ato ou negócio. A norma definidora
de competências pode indicar negócios jurídicos ou atos jurídicos, mas isso não quer dizer
que todo fato gerador será um ato ou negócio jurídico. Embora seja jurídico, o fato gerador
pode descrever um evento da realidade ou um fato de cunho econômico, sem que isso
corresponda a um contrato ou ato jurídico específico. Podem existir normas definidoras de
competência que se refiram a negócios jurídicos, tais como os atos de transmissão de
propriedade, e normas que se refiram a um fenômeno, fato ou efeito, tal como a renda.
Quando a Constituição Federal delimita certa parcela da realidade (que pode ser
jurídica ou de fato), isso quer dizer que o legislador somente poderá instituir a tributação
dessa parcela da realidade. Nas palavras de Greco (2004, p. 137), “só ela [parcela da
realidade], mas toda ela”. Se o legislador, portanto, pretende captar integralmente essa parcela
da realidade, deverá utilizar um modelo de previsão que seja dinâmico e adaptável, pois não
tem sentido que a legislação tributária seja constantemente alterada.
Conforme Greco (2004, p. 138), se o legislador, no primeiro momento, esgotou
integralmente a sua competência tributária, elaborando uma lei indicativa da realidade
captável e existente naquele momento, não faz sentido que a rápida evolução dos fatos e da
criatividade humana implique a alegação de “fatos não previstos”.
Para Greco (2004, p. 138), é possível abarcar a realidade mutante, sem extrapolar a
competência tributária, mediante três mecanismos:
104
a) enumerando os casos, de forma semelhante à Lista de Serviços do ISS;
b) deixando de enumerar os atos ou fatos, mas indicando categorias de fatos (utilizar o
conceito de atos de transmissão de propriedade, por exemplo, em vez de listar os
respectivos atos existentes no momento da edição da norma, tais como a doação, a
compra e venda, a dação em pagamento, etc.);
c) enumerando certos efeitos padrão, qualificando as situações não pelo fato gerador,
mas pelo efeito. No caso da renda, por exemplo, não tributar os fatos A, B, ou C, e
sim as situações resultantes da ideia de auferir aumento patrimonial resultante do
capital, do trabalho ou da conjugação de ambos.
Greco (2004, p. 138) ressalta que esses três mecanismos não são incomuns. As normas
podem permanecer inalteradas por muito tempo, conforme Greco (2004, p. 386), sem que isto
signifique que a sua aplicação concreta permaneça inalterada indefinidamente. A legislação
da COFINS, por exemplo, afasta a incidência dessa contribuição sobre as receitas decorrentes
de operações que destinem mercadorias à exportação. A legislação não especifica a forma da
operação (compra e venda, etc.), e sim a sua finalidade (destinada à exportação). Nesses
termos, a norma de desoneração será aplicável às novas formas jurídicas adotadas pelos
contribuintes, mesmo que não existam ao tempo da edição da lei.
Não obstante, grande parte da doutrina, conforme Greco (2004, p. 139), afirma que se
o fisco somente pode tributar uma parcela definida da realidade, a lei deve adotar uma
enumeração fechada dos tipos, sob pena de insegurança e arbítrio. Greco (2004)
acertadamente discorda desse entendimento e defende que a legislação pode perfeitamente
adotar uma forma mais flexível de descrição da realidade que seja automaticamente adaptável
à evolução dos fatos, sem sair da esfera de competência atribuída pela Constituição.
Greco (2004, p. 140) também discorda da equiparação da tipicidade aberta à analogia,
esclarecendo que a analogia é um processo de raciocínio utilizado na integração do
ordenamento e que a tipicidade aberta ou fechada é característica ligada à extensão da
previsão da norma.
A analogia também não se confunde com a interpretação extensiva, conforme Greco
(2004, p. 140). A interpretação extensiva envolve um raciocínio dedutivo com três termos
(menor, maior e médio), enquanto a analogia se caracteriza por ser um raciocínio formado por
quatro termos (menor, maior, médio e semelhança relevante).
Na interpretação extensiva, explica Greco (2004, p. 140), o intérprete identifica a
essência do núcleo do preceito e aplica a regra sempre que estiver perante a mesma essência
105
(gênero). Mediante um processo interpretativo, “estende” a norma a uma hipótese que não
está nominalmente indicada.
A analogia, por outro lado, é um tipo de raciocínio que permite aproximar figuras
diferentes. Ao contrário da interpretação extensiva, o caso concreto, na analogia, não está
incluído na previsão abstrata do tipo, mas possui certa característica do tipo que, pela sua
relevância, justifica a aplicação ao caso concreto da mesma regra pertinente ao tipo.
Assim, conforme Greco (2004, p. 141-142), na interpretação extensiva, a regra
aplicável a determinado gênero aplica-se às suas espécies; na analogia, a regra aplicável a
uma espécie é estendida a outra espécie que pertence ao mesmo gênero. Em outros termos, o
raciocínio analógico não vai do todo para a parte (dedução), nem da parte para o todo
(indução), mas sim da parte para a parte.
Quando se diz que a há uma borda imprecisa na lei, que implica a dúvida sobre a
abrangência de determinado fato, não se está falando de analogia, e sim de extensão do
conceito adotado pela lei. Greco (2004, p. 143) cita o exemplo da compra e venda, cuja
questão é saber até onde o seu conceito pode ser levado: ele alcança apenas os contratos
denominados de compra e venda ou também alcança o leasing, cujo perfil é idêntico ao da
compra a venda a prazo? Na visão do autor, esse exemplo não retrata um caso de analogia,
pois se trata apenas de identificar até onde vai o limite do conceito já utilizado pela lei. Não se
busca outro conceito, nem outra lei; toma-se a lei existente, buscando definir o seu âmbito de
aplicação, ou seja, visando a aferir o alcance do tipo que existe na lei.
Na opinião de Greco (2004, p. 145-146), a tipicidade, que pode ser estrutural
(mediante a descrição de um conceito, tal como “salário”) ou funcional (mediante o desenho
de um standard ou de um perfil, tal como a “renda”), deve ser vista como standard, como
modelo. A lei prevê modelos de conduta, e não necessariamente o rótulo dado à conduta. A
forma e o nome não bastam para caracterizar a hipótese concreta.
Greco (2004, p. 149-150) entende que a analogia não é vedada pela Constituição
Federal. Sua vedação decorre do art. 108, §1º do CTN, e não do art. 150, I da Constituição.
Essa ideia de proibição da analogia pelo art. 150, I do CTN vem do Direito Penal, pois assim
como nullum crimen sine legem, nullum tributum sine legem. Ou seja, se o Direito Penal, que
visa à proteção da liberdade individual, veda a analogia, o Direito Tributário também a proíbe.
A questão central quanto ao papel da analogia no Direito Tributário, para Greco (2004,
p. 150), decorre da postura adotada perante o ordenamento. Estando a tributação informada
pelo princípio da capacidade contributiva, o pagamento de impostos não é um mero encargo
106
que o contribuinte deve suportar por força de lei (conceito ligado à noção de liberdade
negativa do Estado de Direito). Segundo Greco (2004, p. 186), pagar impostos, em uma
sociedade formada por pessoas com aptidões distintas para contribuir com as despesas
públicas (cuja finalidade é reverter em serviços para todos e também para os que deles mais
necessitam), corresponde a uma postura ligada à solidariedade com os que menos possuem,
sendo verdadeiro instrumento de compatibilização do convívio social. O autor se filia à
segunda postura e isso não lhe permite enxergar na Constituição qualquer proibição da
analogia em matéria tributária. A proibição da analogia, para o autor, decorre do CTN, e não
da Constituição.
Destaca Greco (2004, p. 150) que, por conta dessa suposta proibição constitucional da
analogia em matéria tributária, a maioria da doutrina exclui qualquer consideração de ordem
econômica no momento da interpretação da norma e dos fatos a ela submetidos. Estando
proibida a analogia, se o tipo é fechado e prevê a tributação do “seguro”, somente o contrato
de seguro, precisamente definido, configurará o fato gerador da respectiva obrigação
tributária. Em outras palavras, como a analogia é proibida, o que não for “seguro”, de acordo
com o tipo estrutural e o nome que designa o respectivo contrato, estará fora do alcance da lei
tributária, sendo vedada qualquer consideração de ordem econômica.
Greco (2004, p. 150) distingue a “consideração econômica do fato” da “interpretação
econômica para fins de aplicação da lei tributária”. Na interpretação econômica, a análise
parte do fato e com base nas suas características econômicas busca-se a lei de incidência. Para
o autor, o modelo abstrato da interpretação econômica, que para nós corresponde à versão
original dessa teoria, é semelhante ao da analogia.
O autor não defende nem a analogia, enquanto vigorar o art. 108, §1º do CTN, nem a
interpretação econômica, em sua versão original. Mas defende o que ele denomina de
consideração econômica, que a nosso ver equivale à versão equilibrada da interpretação
econômica. Na consideração econômica, o intérprete parte da lei e constrói o conceito legal
para identificar o tipo. Ou seja, o intérprete constrói o conceito de fato, considerando os seus
aspectos jurídicos, econômicos, mercadológicos, concorrenciais, etc., e volta-se para a lei para
saber se o fato está ou não nela enquadrado.
A consideração econômica, na visão de Greco (2004, p. 151), implica a inclusão da
variável econômica, ao lado de outras variáveis, na construção do conceito de fato, para saber
“qual ele é”. Segundo o autor, “Isso não tem nada a ver com a interpretação econômica”, em
sua versão original, em primeiro lugar, porque a interpretação econômica se inicia no fato, e
107
não na lei, e, em segundo lugar, porque na interpretação econômica o elemento econômico é
preponderante. Na consideração econômica, considerada indispensável por Greco (2004, p.
184), o elemento econômico é relevante, mas não preponderante.
O que Greco (2004, p. 151) chama de interpretação econômica equivale ao que
chamamos de versão original da interpretação econômica e o que ele chama de consideração
econômica equivale ao que chamamos de versão equilibrada da interpretação econômica,
como critério de interpretação teleológica.
Ressalta Greco (2004, p. 151) que a consideração econômica (ou versão equilibrada da
interpretação econômica, conforme a nomenclatura que adotamos) também não se confunde
com a interpretação extensiva, na qual se busca identificar “o que é” o fato. Consideração
econômica é levar a variável econômica ao lado das demais, visando a identificar “qual fato”
ocorreu.
Voltando ao exemplo do leasing, em que as prestações iniciais são elevadas e depois
reduzidas drasticamente, Greco (2004, p. 152) salienta que a dúvida está na natureza da
operação, ou seja, se o negócio praticado se trata efetivamente de leasing ou na verdade de
compra e venda a prazo. A intenção das partes, isoladamente considerada, não é o que
determina a natureza da operação, e sim o que realmente foi feito. Se as partes quiseram
contratar um leasing, mas na realidade fizeram uma compra e venda a prazo, prevalecerá o
que foi “feito”, e não o que se “quis” fazer.
Ressalta Greco (2004, p. 152) que essa conclusão não é extraída por analogia, pois não
se trata de buscar a lei da compra e venda e aplicá-la ao leasing. Trata-se de constatar que a
operação feita não é leasing, e sim compra e venda a prazo. Na compra e venda a prazo,
identificada como a real operação praticada pelas partes, aplica-se a legislação da compra e
venda a prazo, ou seja, procede-se à subsunção ao tipo correto. Não se trata de um raciocínio
fora do tipo; permanece-se dentro do tipo, visto de uma perspectiva que não é meramente
formal (os negócios jurídicos são o que as partes querem), e sim substancial (os negócios
jurídicos são o que as partes efetivamente fizeram, e não o que quiseram).
Não se trata, conforme Greco (2004, p. 154), de predominância da substância sobre a
forma (versão original da interpretação econômica) ou da forma sobre a substância (versão
formalista do Direito Tributário). Substância e forma devem ser igualmente ponderadas e
consideradas na análise e no enquadramento das operações. Nos dizeres do autor, é preciso
verificar a substância, mas não se deve desconsiderar a forma. A substância servirá para
perguntar “o que é aquilo” e o conteúdo da operação confirmará ou não se a realidade é
108
aquela resultante da forma adotada pelos contribuintes. Em outros termos, conforme Greco
(2004, p. 336), não se trata de interpretação econômica (em sua versão original), mas de
insuficiência do elemento meramente formal para a compreensão da realidade. Trata-se de
considerar o elemento econômico e não de assumi-lo como o único relevante.
Para Greco (2004, p. 452), a consideração econômica (equivalente ao que chamamos
de versão equilibrada da interpretação econômica) não foi prevista pelo CTN e tampouco é
necessária a sua previsão legal, pois a mesma “já integra o sistema”.
Concordamos com Greco (2004) sobre a desnecessidade da previsão legal da versão
equilibrada da interpretação econômica como critério de interpretação teleológica, a qual é
parte integrante da Teoria Geral do Direito. Tendo em vista o objetivo do nosso estudo, não
nos manifestaremos sobre a necessidade ou não de previsão legal da interpretação econômica
como forma de combate à elusão fiscal, ao lado das figuras da fraude à lei e do abuso de
direito, a qual é objeto de intensos debates doutrinários, tal como a norma do § único do art.
116 do CTN.
3.3.2 Ricardo Lobo Torres
Ricardo Lobo Torres (2000, p. 52) também entende que a interpretação do Direito
Tributário é igual a qualquer outra, contendo certas particularidades decorrentes da estrutura
de suas normas. Não se trata, contudo, de especificidade de métodos, pois mesmo a
interpretação econômica e a funcional, conforme o autor, estão inseridas na interpretação
teleológica, presente em qualquer ramo do Direito e que informa todos os métodos de
interpretação (literal, sistemático e histórico). Assim, a interpretação do Direito Tributário se
insere, juntamente com a interpretação jurídica em geral, no conjunto da atividade
hermenêutica, ao lado da interpretação histórica, filológica, etc.
Destaca Torres (2000, p. 57) que a interpretação do Direito Tributário é fortemente
influenciada por vários princípios jurídicos, tais como os da boa-fé, do Estado Social de
Direito, da democracia, da liberdade de iniciativa, de proteção à propriedade privada, da
razoabilidade, da ponderação, da legalidade, da igualdade e da capacidade contributiva. Não
há, contudo, princípios próprios da interpretação do Direito Tributário, uma vez que estão
superados os brocardos do in dubio pro fiscum e do in dubio pro contribuinte.
109
O princípio da unidade, por seu turno, é muito importante para a interpretação do
Direito Tributário, pois, conforme Torres (2000, p. 60), significa que o intérprete deve sempre
buscar a harmonia, a sintonia e a integração entre as normas e os princípios jurídicos. O
princípio da unidade leva à consideração do Direito Tributário como sistema, mas não como
sistema global e fechado de normas e valores.
O princípio da legalidade exerce forte influência sobre a interpretação e a integração
do Direito Tributário. Ao contrário de Greco (2004), Torres (2000, p. 141) entende que a
proibição da analogia é consequência direta do princípio da legalidade, sendo redundante e
repetitivo o art. 108, §1º do CTN.
Na mesma linha de Greco (2004), contudo, Torres (2000, p. 141) sustenta que do
princípio da tipicidade não emana, como apregoa o positivismo ingênuo, a possibilidade do
total fechamento das normas tributárias e a adoção de enumerações casuísticas e exaustivas
dos fatos geradores. A norma tributária, ressalta o autor, não pode deixar de conter alguma
indeterminação e imprecisão, uma vez que também se utiliza das cláusulas gerais e dos tipos,
que são abertos por definição.
Sobre a adoção de institutos de Direito Privado pelo Direito Tributário, Torres (2000,
p. 190) entende que o CTN admite o método sistemático de interpretação e que por isso
recusa a autonomia do Direito Tributário.
Conforme o autor, a interpretação sistemática implica que os conceitos e institutos
jurídicos devem ser compreendidos em consonância com o lugar que ocupam ou com o
sistema do qual emanam, com vistas à unidade do Direito. Em outros termos, de acordo com a
interpretação sistemática, os conceitos de Direito Privado empregados pelo Direito Tributário
conservam o seu sentido originário. Esse método, que privilegia os elementos lógicos e
linguísticos, também costuma ser chamado de interpretação lógico-sistemática.
Relata Torres (2000, p. 192) que a doutrina não é unânime sobre a preponderância, no
CTN, da interpretação teleológica ou da interpretação sistemática, ou seja, se prevalece a
autonomia do Direito Tributário, com a ressalva dos conceitos constitucionalizados (art. 110
do CTN), ou se prevalece o Direito Privado.
De toda forma, a interpretação lógico-sistemática, conforme Torres (2000, p. 194),
está em franco declínio na consideração da doutrina jurídica, por excluir a interpretação
teleológica. Por conseguinte, também estão em declínio os corolários do primado do Direito
Privado, da separação entre os sistemas do Direito e o da Economia, da licitude da elisão e da
exclusividade da legislação como fonte do Direito Tributário.
110
A posição paralela, conforme Torres (2000, p. 196), defende a independência do
Direito Tributário frente à economia e a impossibilidade de juridicização fiscal dos conceitos
econômicos sem a intermediação do Direito Privado. Essa posição também é fruto do
positivismo formalista e não mais se sustenta diante dos estudos sobre o equilíbrio entre os
sistemas sociais.
A consequência da tese da sujeição dos conceitos de Direito Tributário aos do Direito
Privado, conforme Torres (2000, p. 196), é a licitude da elisão. Será lícita qualquer
conceitualização jurídica do fato sujeito ao imposto, uma vez que à aptidão lógica do conceito
para revestir juridicamente certos fatos repugna a ideia de abuso de forma jurídica. O
formalismo conduz, assim, a privilegiar a legislação como única fonte do Direito Tributário,
com a exclusão da jurisprudência, denotando uma exagerada preocupação com a segurança
jurídica e a legalidade.
O método teleológico, por seu turno, leva em conta a finalidade e o objetivo da norma.
Segundo Torres (2000, p. 197), traduz-se, no campo tributário e em outros ramos do Direito,
na interpretação econômica ou funcional.
Na visão de Torres (2000, p. 194), o CTN parecia aderir, na fase de sua elaboração, à
teoria da interpretação econômica, por influência da doutrina e da legislação alemãs. Com a
ressalva do art. 110, contudo, o método sistemático ganhou maior amplitude, em detrimento
do método teleológico. O CTN, assim, apresenta-se tímido quanto à interpretação econômica
e cuida apenas das relações entre Direito Tributário e Direito Privado, não chegando a uma
fórmula geral de interpretação teleológica, aplicável aos diferentes problemas fiscais, como
fazia a antiga legislação alemã e ainda faz a lei argentina.
Assim como Greco (2004, p. 452), entendemos que é desnecessária a previsão legal da
interpretação econômica como critério de interpretação teleológica, a qual, a nosso ver,
decorre da Teoria Geral do Direito.
Atualmente, como bem adverte Torres (2000, p. 201), não mais se defende a
preponderância da interpretação econômica ou a preponderância do método finalístico, os
quais foram substituídos pelo pluralismo metodológico. Sob a ótica do autor, a interpretação
econômica teve em Becker e Hensel (2005) os seus mais importantes defensores. Segundo o
nosso entendimento, contudo, Hensel (2005) não se filia à versão da interpretação econômica
de Becker, e sim à versão equilibrada da interpretação econômica. Na Suíça, Torres (2000, p.
201) destaca a obra de Blumenstein; na Itália, destaca as obras de Griziotti, Vanoni (1932) e
Jarach (1996). No Brasil, os estudos mais importantes, na visão do autor, foram escritos por
111
Amílcar de Araújo Falcão (1987), cabendo a Rubens Gomes de Sousa (1954) oferecer alguns
subsídios, embora não tenha sido muito clara a sua opção pelo método finalístico.
Na visão de Torres (2000, p. 202), Hensel (2005), Jarach (1996) e Falcão (1987) não
aderiram rigidamente à tese da autonomia do Direito Tributário, mesclando-a com elementos
privatistas. Concordamos com o autor quanto a Hensel (2005) e Falcão (1987), em sua
segunda obra, mas não quanto a Jarach (1996), que a nosso ver em nada flexibilizou a
autonomia do Direito Tributário.
Alerta Torres (2000, p. 202-203) que os corolários da versão original da interpretação
econômica, consistentes na autonomia do Direito Tributário, na redução economicista, na
ilicitude da elisão, na liberdade do juiz tributário e na primazia da justiça, também se
desvalorizaram.
No pluralismo metodológico, que atualmente rege a interpretação do Direito
Tributário, na visão de Torres (2000, p. 206), inexiste a prevalência de um único método.
Tampouco ocorre a duplicidade de que se reveste o CTN, em que o método sistemático se
aplica aos conceitos de estatura constitucional e o teleológico aos conceitos da legislação
ordinária. Há pluralidade e equivalência, sendo os métodos aplicados de acordo com o caso
concreto e com os valores ínsitos na Constituição. Ora se recorre ao método sistemático, ora
ao teleológico, ora ao histórico, uma vez que tais métodos não são contraditórios e na verdade
se complementam e se intercomunicam.
Para Torres (2000, p. 206), os métodos variam de acordo com o tributo a que se
aplicam. Os impostos sobre a propriedade, por exemplo, postulam a interpretação sistemática,
porque apoiados em conceitos de Direito Privado. Os impostos sobre a renda e o consumo
abrem-se à interpretação teleológica, porque baseados em conceitos elaborados pelo próprio
Direito Tributário. Os métodos de interpretação, assim, devem ser estudados dentro da visão
pluralista. Entre eles não há hierarquia e sua importância varia de acordo com o caso e com as
valorações jurídicas na época da aplicação, como sempre reconheceu a doutrina não
extremada, seja no Direito em geral, seja nos ramos especializados, tais como o Direito
Constitucional e o Direito Tributário.
Ressalta Torres (2000, p. 207) que as escolas e as correntes radicais é que têm
advogado a prevalência deste ou daquele método. O positivismo cientificista do século XIX
apegava-se ao método lógico-gramatical e ao sistemático. A Jurisprudência dos Interesses
enfatizava o método teleológico, de que a interpretação econômica constitui projeção no
112
campo tributário. Mas, conforme o autor, a Jurisprudência dos Valores, nas últimas décadas,
vem superando o radicalismo, defendendo o pluralismo metodológico.
Em verdade, segundo Torres (2000, p. 209), inexiste qualquer corte entre o método
teleológico e o literal, o histórico e o sistemático. O método sistemático não é apenas lógico,
pois também possui uma dimensão valorativa: esse método visa a compreender a norma
dentro do sistema jurídico, que é aberto, direcionado para os valores, especialmente a justiça e
a segurança, e dotado de historicidade. A ideia diretriz, de toda forma, é a unidade entre os
vários ramos do Direito e as respectivas teorias, unidade essa que, conforme o autor, não é
fechada, e sim rica de sentidos.
Entende Torres (2000, p. 211), assim, que o método sistemático incorpora o critério
teleológico, de onde se conclui que do sistema jurídico emana a dimensão econômica e
finalista.
Em contraponto, destaca o autor que a interpretação teleológica não vive apenas da
consideração da finalidade. A finalidade pressupõe o sistema, interno e externo, pois os
valores jurídicos, os princípios constitucionais e o Direito também se organizam em sistemas.
A finalidade econômica, dessa forma, afirma-se a partir do sistema de normas e valores, de
conceitos e tipos jurídicos, de proposições e enunciados científico-tributários. Conforme
Torres (2000, p. 212), o critério teleológico e a consideração econômica se orientam pelo
próprio sistema tributário, uma vez que a percepção dos fins não decorre de cada norma
isolada, e sim da visão ampliada da norma dentro do ordenamento.
Torres (2000, p. 212) atribui a Larenz a depuração metodológica da interpretação do
Direito Tributário, a qual se projetou sobre a jurisprudência alemã e permitiu o retorno da
consideração econômica sem os exageros da Jurisprudência dos Interesses.
3.3.3 Marciano Seabra de Godoi
Godoi (2010) também entende que a formulação linguística presente no texto escrito
permite tão somente uma aproximação inicial do intérprete ao conteúdo da norma, o qual
somente será fixado paulatinamente, na medida em que a realidade se descortinar diante dele.
Em outras palavras, se a norma jurídica se destina a ordenar e a coordenar a realidade
social, somente com o desenrolar dessa realidade social é que o conteúdo da norma irá se
113
desenhando. Por essa razão, ressalta Godoi (2010), não existe interpretação sem aplicação do
Direito. Do lado dos intérpretes, que apenas desvelam a norma na medida em que são
chamados a aplicá-la nos casos concretos, a contraposição de argumentos interpretativos
supõe frequentemente o manejo de convicções valorativas mais profundas e a realização de
constatações fáticas e empíricas que nem sempre são objeto de normas jurídicas.
Há noções doutrinárias sobre interpretação jurídica que conseguem captar o que ocorre
de fato nos tribunais, nas academias e nos escritórios de advocacia, mas grande parte da
doutrina do Direito Tributário insiste em ignorar o mundo real da jurisprudência e se aferra a
uma noção bem diferente sobre o que significa a interpretação do Direito.
Godoi (2010) cita as duas obras de Becker como exemplo dessa parte da doutrina
formalista que ignora a jurisprudência e que considera que a lei somente admite uma única
interpretação. Para essa corrente doutrinária, apegada ao positivismo cientificista, o Direito se
resume a normas que, por sua vez, resumem-se a estruturas lógicas que unem hipóteses de
incidência a consequências jurídicas. A interpretação, segundo essa visão, é algo passivo,
neutro e objetivo, uma vez que a incidência da norma é “infalível” ou “automática”.
Godoi (2010) critica a posição de Becker e destaca que é preciso fechar os olhos para
o que se passa no mundo real da jurisprudência, das academias e dos escritórios de advocacia
para insistir nessa concepção da interpretação jurídica como uma “ciência” que permite ao
intérprete “descobrir” o “único” e “imutável” sentido da norma.
Godoi (2010) entende, de forma contrária, que a interpretação jurídica é uma tarefa
que não se pode cumprir sem uma considerável carga criativa e sem que, muito
frequentemente, entrem em ação determinadas convicções do intérprete sobre o que é e quais
são os fundamentos do Direito. Na mesma linha de Greco (2004), Godoi (2010) entende que a
ideologia adotada pelo intérprete é decisiva no resultado da interpretação:
Se um juiz considera que a principal função da forma atual de nosso Estado é, intervindo o menos possível na ordem social, promover segurança e certeza jurídicas para que as pessoas físicas e jurídicas possam exercer livremente sua autonomia privada desde que tal exercício não prejudique a autonomia dos demais cidadãos, então sua concepção sobre o papel do tributo, do sistema tributário e da própria interpretação do direito tributário será uma concepção bem distinta da de um juiz que considere que o paradigma atual de Estado exige a transformação das condições sociais de modo a que todos os cidadãos tenham uma liberdade o mais igual possível no que diz respeito ao nível de participação na definição dos rumos políticos da sociedade (autonomia pública) e uma igualdade equitativa de oportunidades para a busca e realização de seus projetos pessoais de vida (autonomia privada).
114
Assim, conforme Godoi (2010), não basta que o intérprete acompanhe a legislação,
pois é necessário conhecer profundamente:
a) os condicionamentos históricos e culturais da experiência jurídica concreta vivida
em determinado país;
b) as relações fático-sociais relevantes para determinada regulação jurídica;
c) a evolução jurisprudencial responsável por cristalizar o conteúdo das normas
jurídicas.
Tudo isso indica, para Godoi (2010), que somente conhece verdadeiramente um
ordenamento jurídico quem se coloca na perspectiva de um participante de tal ordenamento, o
que demonstra que a interpretação jurídica não se resolve em uma simples questão de haurir
conhecimentos em uma belíssima teoria geral.
Godoi (2010) destaca que o legislador que formula normas de incidência tributária tem
que desempenhar uma tarefa complexa, pois não é simples selecionar situações da vida que
indiquem capacidade econômica e submetê-las ao tributo. Na visão de Godoi (2010), na
hipótese de incidência da norma tributária, em geral tem-se:
a) a descrição de um ato ou fato material com certa consistência econômica (importar,
exportar, dar saída a um produto industrializado, auferir acréscimo patrimonial,
etc.); ou
b) a referência a um ato ou negócio jurídico já tipificado no Direito Privado ou em
outro ramo do Direito (doação, locação, compra e venda).
Se o legislador optar pela técnica “b”, surgirá a seguinte pergunta: o intérprete da
norma deverá interpretá-la e aplicá-la usando os conceitos no mesmo sentido em que valem
no Direito Privado ou deve conferir a esses conceitos um colorido próprio em função de
estarem sendo utilizados em um contexto distinto do Direito Privado?
Afirma Godoi (2010) que a resposta não é fácil, uma vez que a legislação de quase
todos os tributos faz referência a institutos e conceitos de outros ramos do Direito,
principalmente do Direito Privado. No imposto sobre a renda, por exemplo, não obstante o
fato gerador se constituir em um instituto de Direito Tributário, em vários contextos a
legislação se refere a conceitos oriundos do Direito Privado, como no caso dos benefícios
fiscais ligados a operações de incorporação, fusão e aquisição de empresas. Ademais,
conforme Godoi (2005, p. 88), o legislador pode estabelecer, por exemplo, que os
rendimentos do trabalho assalariado estão sujeitos a uma tributação reduzida e que os prêmios
de contratos de seguro de vida são dedutíveis da base de cálculo do imposto.
115
Segundo Godoi (2005, p. 88), não haverá maiores dificuldades interpretativas se o
legislador afirmar expressamente que mantém ou altera o significado do instituto “importado”
de outro ramo jurídico. Na maioria dos casos, contudo, não há uma indicação legislativa
precisa e expressa em um ou em outro sentido.
Godoi (2005, p. 91) considera tendencioso o ponto de vista dos autores formalistas que
sustentam, com base na “homogeneidade sistemática requerida pela certeza do direito”, que
os conceitos definidos em determinado ramo jurídico, ao serem mencionados pela lei
tributária, mantêm seu significado original, a não ser que a lei expressamente afirme o
contrário. Segundo essa teoria, a utilização do critério teleológico na interpretação da norma
tributária resta prejudicada diante de expressões consagradas em outros ramos do Direito.
Nestes casos, relata Godoi (2005, p. 91), os autores formalistas aduzem que somente a
indicação expressa de que a norma tributária alterou ou modificou o sentido daquelas
expressões (critério literal) pode autorizar o intérprete a se afastar do seu sentido no ramo de
origem.
Relata Godoi (2010) que após o acalorado debate sobre a prevalência ou não do
Direito Privado sobre o Direito Tributário, generalizou-se a postura de que não há uma
resposta apriorística a esse problema. Conforme Godoi (2005, p. 91), os pontos de partida
teóricos necessários para se alcançar tal consenso são:
a) a norma tributária não supõe nem exige nenhum critério específico de interpretação;
b) a interpretação jurídica se vale de muitos cânones ou critérios hermenêuticos com o
objetivo de desvendar o espírito e a finalidade concreta da lei (prevalência do
aspecto teleológico);
c) a interpretação se move entre o mínimo e o máximo sentido literal possível das
palavras em seu contexto normativo próprio; fora de tais limites haverá a integração
da norma via redução teleológica ou via analogia.
Assim, na visão de Godoi (2010), à qual aderimos inteiramente, o acatamento da lei
tributária ao sentido originário dos termos de outros ramos jurídicos não deve ser a premissa,
e sim a conclusão de um processo normal de interpretação. No final do processo
interpretativo, caso se conclua pela prevalência da substância econômica sobre as formas
jurídicas adotadas pelo legislador, as formalizações jurídicas assumirão, no contexto
normativo, uma função meramente exemplificativa. Mas, como adverte Godoi (2005, p. 91), a
prevalência dos critérios econômicos será sempre a conclusão de um processo interpretativo
para se alcançar a teleologia concreta da lei, e não uma premissa abstrata calcada na teoria da
116
causa do tributo (de JARACH, 1996 e GRIZIOTTI, 193?) ou em uma eficácia exagerada do
princípio da capacidade econômica.
Conforme Godoi (2005, p. 92), o fato de que em muitos casos a norma tributária faz
referência a conceitos que com o tempo mudam seu sentido no próprio Direito Privado ou que
têm significados distintos em dois ou mais ramos do Direito é uma evidência de que a
prevalência ou não da substância sobre a forma não é uma premissa teórica, mas sim um
aspecto a mais do processo interpretativo de cada norma concreta.
Caso a norma tributária tenha sido formulada em função de formas jurídicas ou
institutos oriundos do Direito Privado, o intérprete deverá qualificar os fatos e atos segundo as
suas respectivas formas jurídicas, a não ser que os contribuintes tenham distorcido ou
violentado tais formas jurídicas (abuso das possibilidades de configuração oferecidas pelo
Direito) para praticar uma fraude à lei tributária.
Em outras palavras, entende Godoi (2010) que se o contribuinte age em fraude à lei, o
intérprete já não está mais obrigado a qualificar a realidade conforme as formas jurídicas
adotadas pelo contribuinte. Se partir do próprio contribuinte a iniciativa de distorcer as formas
e negócios do Direito Privado e utilizá-los em um contexto notoriamente artificioso, a
resposta do ordenamento será autorizar o intérprete da norma tributária a avaliar e qualificar a
realidade segundo uma visão substancial/econômica, desvinculada das formas jurídicas
artificiosamente utilizadas pelo contribuinte. Godoi (2010) chama essa forma de interpretação
de versão matizada da interpretação econômica.
Entende Godoi (2005, p. 104) que a variante matizada da interpretação econômica
(equivalente ao que chamamos de versão equilibrada da interpretação econômica como forma
de combate à elusão fiscal) é muito mais prudente que a variante radical dessa teoria
(equivalente ao que chamamos de versão original da interpretação econômica). A variante
matizada condiciona o maior grau de liberdade do intérprete e o caráter reforçado do seu
poder de qualificação a situações em que o contribuinte comete abuso de formas. Na variante
radical, por sua vez, os poderes reforçados de qualificação e a liberdade investigadora do
intérprete estão sempre presentes, pois nada mais são que consequências naturais da
autonomia dogmática do Direito Tributário.
Por essa razão, os adeptos da versão radical ou original da interpretação econômica,
conforme Godoi (2010), consideravam errôneo utilizar a fraude à lei como arma de combate à
elusão tributária. De fato, para a versão radical ou original da interpretação econômica é
supérflua a consideração da elusão tributária como distinta dogmaticamente da evasão fiscal
117
pura e simples. Se se parte da premissa de que as normas que definem os fatos geradores se
referem como regra geral a realidades econômicas (mesmo que em sua formulação linguística
sejam utilizados conceitos e institutos jurídicos), a correção das situações ajustadas ao
conceito de elusão fiscal não é diferente da correta interpretação da lei tributária.
Por outro lado, conforme Godoi (2005, p. 86), a configuração de efeitos tributários aos
fatos, atos e negócios praticados pelos contribuintes não suscitaria qualquer especificidade nas
situações de elusão fiscal, pois, segundo os pressupostos da versão original da interpretação
econômica, o aplicador da lei, em uma operação tributável, deve indagar a intenção fática, e
não a intenção jurídica das partes.
Mas a questão de “realizar-se ou não o fato gerador” deve ser a conclusão do
raciocínio, e não a sua premissa. Conforme Godoi (2005, p. 107), se se concebe que a técnica
da fraude à lei tributária não considera o fato gerador como simples fenômeno fático, mas sim
como um ato ou um negócio jurídico cuja realização é planejada pelo sujeito passivo, a
conclusão é que não se pode estabelecer uma aguda disjunção entre praticar ou não o fato
gerador. Godoi (2005, p. 107) não vê motivos para que o legislador não possa estabelecer uma
técnica (fraude à lei tributária, por exemplo) que considere o fato gerador como ato volitivo e
não como fato puro e simples. Dizer que não pode ser assim, por que ou o fato gerador ocorre
ou não ocorre, significa adiantar a conclusão do raciocínio. O reconhecimento de que em
determinados casos a obrigação tributária pode nascer mesmo que o fato gerador não ocorra
tal como tipificado na norma tributária implica o reconhecimento de que em tais casos há
“algo” que justifica juridicamente a exigência do tributo.
Ressalta Godoi (2005, p. 107) que para a maioria da doutrina esse “algo” que justifica
o rompimento da tipicidade cerrada é o abuso das possibilidades de conformação do direito.
Em outras palavras, o tributo deve ser exigido porque o planejamento tributário praticado pelo
contribuinte repugna à lógica do sistema, ou seja, é injustificado a partir da perspectiva do
ordenamento jurídico-tributário em seu conjunto.
Tais situações de elusão fiscal repugnam à lógica do sistema, na visão de Godoi (2005,
p. 108), porque a atuação consciente dos contribuintes vulnera o plano imanente da lei
tributária eludida. Admitindo-se a possibilidade de repugnância à lógica do sistema, deve-se
avançar e constatar que no sistema tributário existe um núcleo de princípios básicos de ordem
pública que devem ser protegidos mediante as técnicas de combate à elusão fiscal, tal como a
da fraude à lei. Para Godoi (2005, p. 108), é relevante para o ordenamento jurídico o atuar
consciente e volitivo dos contribuintes que eludem o pressuposto de fato da norma impositiva.
118
Para a versão radical ou original da interpretação econômica, contudo, que parte de uma
consideração puramente fática do fato gerador, essa realidade é negada a priori e há a referida
disjunção entre praticar ou não praticar o fato gerador.
Godoi (2005, p. 112) reconhece que era natural que a versão radical ou original da
interpretação econômica, como reação ao exagerado formalismo jurídico vigente no início do
século XX, conferisse um papel subalterno a valores como segurança e certeza na aplicação
do Direito Tributário.
Tendo como marco referencial o surgimento da interpretação econômica, Godoi
(2005, p. 112) identifica pelo menos três variantes ou gradações do formalismo jurídico no
Direito Tributário:
a) o formalismo anterior ao desenvolvimento da teoria da interpretação econômica;
b) o formalismo como reação aos exageros da interpretação econômica;
c) o formalismo como reação à introdução de normas gerais antielusão nos direitos
positivos.
A primeira variante do formalismo jurídico-tributário apontada por Godoi (2005, p.
113) era na verdade uma noção primitiva de formalismo, pois surgiu e se desenvolveu em um
contexto no qual a norma tributária ainda não era considerada “jurídica”, o tributo ainda não
havia se libertado da noção de agressão odiosa aos direitos do cidadão e o Direito Tributário
ainda não havia nascido.
Para Godoi (2005, p. 113), sob esses pressupostos ideológicos e metodológicos era
natural a adoção de um certo formalismo benéfico ao contribuinte mesmo nos casos de elusão
fiscal.
Segundo Godoi (2005, p. 113), outro fator que contribuiu para a interpretação literal e
formalista das normas tributárias neste período foi a forçada transposição ao terreno tributário
da máxima do Direito das Obrigações segundo a qual as cláusulas de um contrato devem ser
interpretadas contra aquele cuja vontade se cristalizou na redação do contrato.
A segunda variante do formalismo jurídico foi idealizada como forma de combate à
versão radical ou original da interpretação econômica. Na visão de Godoi (2005, p. 113), os
estudos de Gianinni e Berliri pertencem a essa versão moderada do formalismo, os quais, sem
negar a autonomia qualificadora do Direito Tributário e a interpretação teleológica das
normas tributárias, rechaçam a presunção de que o legislador tributário sempre que se refere a
institutos de Direito Privado em verdade se refere à substância econômica subjacente à
formalização jurídica.
119
Segundo Godoi (2005, p. 114), essa segunda versão do formalismo corrige os excessos
da versão radical ou original da interpretação econômica e sustenta corretamente que não se
pode dar uma resposta apriorística ao problema da prevalência ou não dos conceitos de
Direito Privado na interpretação da norma tributária. Devem ser utilizados os critérios
normais de hermenêutica jurídica em cada caso (partindo do estabelecimento do mínimo e do
máximo sentido literal possível e em seguida aplicar os cânones lógico-sistemático, histórico
e teleológico) a fim de se identificar se no contexto específico da norma tributária a menção a
institutos jurídicos de Direito Privado tem uma função exemplificativa ou exaustiva.
Mas como não é tarefa fácil e segura determinar, entre os diversos sentidos literais
possíveis das expressões da lei tributária, qual deles (formalização jurídica ou substância
econômica) corresponde à teleologia da lei, essa segunda variante do formalismo, conforme
Godoi (2005, p. 114), sugere adicionalmente que se utilize a presunção de que, nos casos em
que o legislador se remete expressamente aos conceitos de Direito Privado e não há qualquer
elemento objetivo que indique inequivocamente a prevalência do sentido econômico, o
intérprete deve apegar-se ao sentido civilista de tais expressões.
A grande maioria dos países adota, segundo Godoi (2005, p. 114), ainda que em
distintas intensidades, essa segunda versão do formalismo jurídico. Nesses países não se
busca a primazia do Direito Privado sobre o Direito Tributário, e sim o afastamento da versão
radical ou original da interpretação econômica, a qual comprometia a segurança jurídica e a
unidade do ordenamento.
Godoi (2005, p. 115) destaca que os países que desenvolveram o papel de precursores
de uma tradição jurídica têm em geral uma postura menos estrita a favor da forma jurídica na
interpretação das normas tributárias. Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos e França são
exemplos de países menos formalistas. Áustria, Suíça, Holanda, Canadá, Austrália, Nova
Zelândia, Bélgica, Itália e demais países latino-americanos, com exceção da Argentina, são
exemplos de países mais apegados à forma.
Segundo Godoi (2005, p. 115), a segunda versão do formalismo prevalece na maioria
dos países mediante preceitos legislativos tais como as normas gerais antielusão e por meio de
doutrinas desenvolvidas pelos tribunais ao longo do século XX.
A terceira variante suscitada por Godoi (2005, p. 115) constitui uma crítica à versão
matizada da interpretação econômica, qual seja, a doutrina segundo a qual o Direito Tributário
pode aplicar técnicas jurídicas similares às do abuso de direito ou da fraude à lei para coibir
120
determinadas formas de se evitar o tributo que não configurem propriamente evasão ou
infração à lei.
Segundo Godoi (2005, p. 115), essa terceira manifestação do formalismo jurídico,
presente na generalidade dos países, mas especialmente influente no Brasil, Itália, Portugal,
Bélgica e Espanha, sustenta que a autonomia privada e a liberdade do indivíduo de fazer tudo
que a lei não proíbe se expressa no campo tributário mediante o direito de criar e escolher as
configurações e formalizações negociais que impliquem menores custos tributários.
A nosso ver, a posição de Godoi (2005) é muito parecida com as de Greco (2004) e
Torres (2000). Ao contrário dos autores formalistas, Godoi (2005) permite que tanto os
valores do Estado de Direito (protetivos) quanto os valores do Estado Democrático (sociais e
modificadores da realidade) “sentem à mesa” para dialogar.
Ou seja, na mesma linha de Greco (2004) e Torres (2000), Godoi (2005) entende que a
legalidade e a segurança jurídica devem ser ponderados, em cada caso, com os valores da
solidariedade, igualdade e capacidade contributiva. O tributo, na visão desses três autores, tem
a função de modificar a realidade, tornando a sociedade mais justa e igualitária.
A interpretação econômica, em sua versão equilibrada, como critério de interpretação
teleológica ou como forma de combate à elusão fiscal, é claramente admitida por Godoi.
Assim como Greco (2004) e Torres (2000), Godoi (2005) compreende que a interpretação
econômica há muito se desvencilhou de seus exageros iniciais e que sua versão atual
(chamada por GODOI, 2005 de versão matizada) é imprescindível à efetividade do sistema
tributário.
3.3.4 Johnson Barbosa Nogueira
Johnson Barbosa Nogueira (1982, p. 16), cuja dissertação de mestrado teve como
objeto a interpretação econômica do Direito Tributário, observa que essa doutrina ainda
demonstra vitalidade e confusão. A vitalidade consiste na intuição de que a interpretação
econômica é uma necessidade para a verdadeira compreensão do Direito Tributário. A
confusão decorre da diversidade de enfoques, de conceituação e extensão do tema. Para o
autor, o sentido uniforme que se pode atribuir aos vários enfoques da interpretação econômica
121
é o de reação contra a interpretação literal e formalista das normas tributárias. Esse é o sentido
que Nogueira (1982, p. 2) atribui ao §4º do Código Tributário alemão de 1919.
Segundo o autor, os que criaram a interpretação econômica deveriam ter se dedicado a
criticar a teoria geral da interpretação jurídica em vez de criar um método intramuros, como
se o Direito Tributário fosse excepcional e não devesse ser interpretado conforme os demais
ramos do Direito. Em outras palavras, os criadores dessa teoria deveriam tê-la desenvolvido
no âmbito da Teoria Geral do Direito, nos termos de uma crítica à interpretação tradicional.
Foi esse equívoco, segundo o autor, que aproximou a interpretação econômica da Escola da
Livre Investigação do Direito.
De fato, há certa contradição entre a visão do Direito Tributário como um direito
comum (e não restritivo de direitos) e a criação de um método específico para sua
interpretação. Contudo, há de se considerar, a nosso ver, que no contexto do início do século
passado foi natural a instituição de uma medida forte e radical de reação contra os efeitos
decorrentes do primado do Direito Privado sobre o Direito Tributário. Ademais, a versão
original ou radical da interpretação econômica posteriormente evoluiu para uma versão muito
mais equilibrada, na qual essa doutrina é considerada espécie de interpretação teleológica ou
forma de combate à elusão fiscal. A versão equilibrada não mais concebe a interpretação
econômica como método intramuros, e sim como critério de interpretação geral capaz de
captar as peculiaridades do Direito Tributário, como ocorre em qualquer ramo do Direito.
Nogueira (1982, p. 3) relata que os doutrinadores alemães reconhecem atualmente os
exageros na aplicação inicial do referido §4º e atribuem a esse dispositivo um papel
importante no desenvolvimento do Direito Tributário. A doutrina alemã de 1982, conforme o
autor, não admite a possibilidade de o trabalho interpretativo substituir a tarefa legislativa de
formulação da norma tributária, tal como ocorreu nos primórdios da interpretação econômica.
Relata ainda o autor que a interpretação econômica vem sendo restringida em sua
aplicação, ora para combater a elusão fiscal, ora como método suplementar de interpretação.
Essa restrição relatada pelo autor parece corresponder ao que denominamos de versão
equilibrada da interpretação econômica.
O autor diferencia a interpretação econômica da interpretação funcional de Griziotti e
Jarach (1996), na qual o conceito fundamental de causa do imposto (fruição de serviços
públicos, capacidade econômica) implica que as leis sejam interpretadas segundo suas
relações funcionais, de modo que a norma jurídica seja adequada ao elemento econômico e
político, vinculando estreitamente o Direito Tributário à ciência das finanças. A interpretação
122
funcional, sob a ótica de Nogueira (1982, p. 10), admite o uso da analogia e confere ao
intérprete um campo de investigação bem mais amplo do que o admitido pela interpretação
econômica, mesmo em sua versão original.
Entendemos, contudo, que tanto a interpretação funcional quanto a versão original da
interpretação econômica admitem o uso da analogia e conferem amplos poderes ao intérprete.
Basta lembrar que a primeira fase da jurisprudência alemã acerca da interpretação econômica
chegou às raias da Escola da Livre Investigação do Direito.
Para Nogueira (1982, p. 17), a interpretação econômica adota as seguintes variantes
conceituais:
a) busca da substância econômica sobre a forma jurídica;
b) utilização de conceitos próprios de Direito Tributário, em decorrência de sua
autonomia em relação ao Direito Privado. O intérprete, diante de uma diversidade
de conceitos, deve abandonar os conceitos de Direito Privado e perquirir o
significado de institutos e conceitos “sob a ótica do Direito Tributário”;
c) busca de identidade de efeitos econômicos, ou seja, fatos diversos com o mesmo
efeito econômico devem ter o mesmo tratamento fiscal;
d) combate ao abuso de formas do Direito Privado;
e) introdução da teoria do abuso do direito no Direito Tributário;
f) mera interpretação teleológica;
g) valoração dos fatos;
h) interpretação dos fatos; a interpretação econômica não atuaria na interpretação da
norma, e sim na qualificação dos fatos.
Segundo o autor, a busca da substância econômica é a idéia básica da doutrina da
interpretação econômica e dela decorrem duas alternativas: tomar os fatos como foco, em
busca da substância econômica (e subverter a idéia de que se interpretam normas, e não fatos),
ou mudar os conceitos e formas jurídicas de apreensão dos fatos, fazendo com que estes
captem a substância econômica do fenômeno tributário, e não apenas a sua forma.
Conforme Nogueira (1982, p. 26), a primeira alternativa fez surgir as duas últimas
variantes (g e h) e a segunda alternativa deu margem ao surgimento da segunda variante (b),
escudada no movimento defensor da autonomia estrutural do Direito Tributário.
A terceira variante (c) representa o acerbamento da primeira variante e admite o amplo
emprego da analogia no Direito Tributário. Para o autor, embora procure interpretar a lei, esta
corrente permite que o intérprete extrapole o canal conceitual legal.
123
A quarta variante (d), segundo Nogueira (1982, p. 27), introduz a apreciação
valorativa na tarefa de interpretação e representa uma acomodação da teoria da interpretação
econômica diante do arsenal de críticas oposto contra ela. Por isso mesmo, conforme o autor,
esta variante restritiva do uso da interpretação econômica é dominante na atualidade.
A nosso sentir, a quarta (d) e a quinta (e) variantes são equivalentes e correspondem à
versão equilibrada da interpretação econômica como forma de combate à elusão fiscal.
Nogueira (1982, p. 29) entende que a sexta variante (f) tem o mérito de se voltar para a
Teoria Geral do Direito, procurando ver na interpretação econômica a utilização de um
método geral de interpretação. Na visão do autor, para os que entendem que toda
interpretação é eminentemente teleológica, torna-se sem sentido toda a polêmica a respeito da
interpretação econômica. Nogueira (1982, p. 29) não considera que o método teleológico seja
suficiente para abrigar a interpretação econômica, a qual, na sua visão, é muito mais voltada
para os fatos, em sua “cambiante circunstancialidade, do que para uma finalidade que,
determinada, permaneceria fixa, mesmo diante de fatos e valores diferentes”. A nossa ver,
essa afirmação de Nogueira somente faz sentido se se restringir à versão original ou radical da
interpretação econômica.
As duas últimas variantes (g e h), na visão do autor, deslocam da lei para o fato o eixo
da tarefa interpretativa e podem representar a necessidade de revisão da hermenêutica
jurídica.
Na visão de Nogueira (1982, p. 43), Falcão (1987), Nogueira (1974) e Ataliba (1975)
seriam adeptos da quarta variante (d) da interpretação econômica. Sousa (1975a) adotaria a
terceira variante (c), com temperamentos. Quanto aos críticos da interpretação econômica,
entre os quais o autor inclui Canto (1967), Dória (1971) teria sido o melhor expoente.
Nogueira (1982, p. 48) destaca que é comum encontrar, entre os defensores e os
opositores da interpretação econômica, certa vacilação e contradição. Para o autor, esse fato
decorre do caráter multiforme da interpretação econômica, que resulta em várias vertentes ou
formas de concepção dessa doutrina (pelo menos oito variantes, conforme o autor). A crítica à
interpretação econômica acaba, assim, também fracionada, por vezes atingindo apenas uma de
suas variantes.
Caso típico dessa vacilação doutrinária, na visão do autor, é a filiação de Sousa
(1975a) à terceira variante (c) da interpretação econômica. Apesar de admitir que fatos
diversos, mas com idênticos efeitos econômicos, devem ser tributados de igual modo, Sousa
(1975a) repele a analogia como forma de criação da obrigação tributária. Por outro lado,
124
ressalta Nogueira (1982, p. 49), a crítica à quarta variante (d) invoca a aplicação do princípio
da legalidade, mas deixa de lado o princípio da capacidade contributiva.
Sampaio Dória (1971, p.75), que na visão do autor rejeita a quarta variante (d), é
contraditório ao afirmar que “a rejeição do abuso das formas não deve [...] deixar
juridicamente irremediados os graves desvirtuamentos que certas categorias jurídicas
sofreram nas mãos de contribuintes inescrupulosos”. Para Nogueira (1982, p. 50), essa
manifestação de Sampaio Dória implica a aceitação da quarta variante (d) com divergência
apenas de grau.
Segundo Nogueira (1982, p. 49), a quarta variante (d) é contraditória, uma vez que
nega que a realidade econômica prevaleça sobre a forma jurídica na maior parte dos casos.
Para o autor, não há coerência em se buscar o substrato econômico, com desprezo da forma
jurídica, apenas quando há abuso de forma visando a lesar o fisco. Com base em Jarach
(1996), que defendia a interpretação econômica favorável ao contribuinte “como uma forma
de evitar a contradição implícita na fórmula restritiva”, Nogueira (1982, p. 50) entende que a
natureza do fato gerador não muda em razão das intenções e maquinações do contribuinte.
Nogueira (1982, p. 98-99) critica corretamente a oitava variante (g), que não considera
que o fato cultural não pode ser conhecido com a cisão do seu substrato e de seu sentido,
como se pudesse haver uma interpretação do fato (substrato) e depois uma interpretação da lei
(sentido). Para o autor, o certo é que no Direito Tributário, certamente pelo fato de o
tributarista sentir na pele a importância do fato como nenhum outro jurista, observou-se, de
um modo empírico, a insuficiência dos métodos tradicionais que centram a tarefa
interpretativa na lei.
Nogueira (1982, p. 113) não nega que o contribuinte tem o direito de escolher a
estrutura conceitual mais vantajosa sob o ponto de vista fiscal, mas adverte que se essa
estrutura for abusiva a ponto de o negócio ser melhor compreendido sob outra estrutura
negocial, o intérprete poderá compreender aquela conduta sob outra forma conceitual, mesmo
que esta seja mais onerosa para o contribuinte. Em outras palavras, o intérprete não está
obrigado a ver o caso conforme a forma jurídica adotada pelo contribuinte.
Ademais, a valoração do intérprete à estrutura legal adotada pelas partes ocorre em
qualquer ramo jurídico. A doutrina tradicional, como adverte Nogueira (1982, p. 112), sempre
tentou “encobrir essa verdade” mediante a utilização de conceitos imprecisos e contraditórios,
tais como as noções de princípios gerais de Direito e “natureza das coisas”. No
reconhecimento do direito da concubina a parte dos bens deixados pelo companheiro falecido,
125
segundo o exemplo de Nogueira (1982, p. 113), não são princípios vagos, tal como o do
enriquecimento sem causa, que oferecem a melhor solução para o caso concreto, e sim a
compreensão da conduta da combina como “sócia de fato” de seu companheiro. Em outras
palavras, não é a estrutura jurídica da sucessão “mortis causa”, e sim a “sociedade de fato”, na
visão do autor, que confere a “melhor possibilidade compreensiva para o caso”.
Conforme Nogueira (1982, p. 113), sempre se pode descobrir em determinado fato um
sentido não percebido anteriormente. A descoberta desse melhor sentido tem a ver com a
sintonia entre o intérprete e a sociedade41, com sua vocação para a justiça e para enxergar a
melhor possibilidade existencial para os casos a serem resolvidos. Entende o autor que
somente assim se pode explicar o papel dos grandes juízes nas mudanças jurisprudenciais,
que, são imediatamente acatadas por sua íntima força de convicção no espírito de todos.
O autor considera que a discussão acerca da interpretação econômica é, na verdade,
uma polêmica mal conduzida, que não considera as suas diversas vertentes. Mas o problema
mais grave, segundo Nogueira (1982, p. 128), consiste na exclusão da interpretação
econômica do enfoque da Teoria Geral do Direito.
A nosso ver, essa posição do autor não pode ser estendida à versão equilibrada da
interpretação econômica, seja como critério de interpretação teleológica, seja como forma de
combate à elusão fiscal. As duas vertentes da versão equilibrada sem dúvida se inserem na
Teoria Geral do Direito.
Não obstante, o autor considera positiva a doutrina da interpretação econômica, a qual
contribuiu para aprimorar o Direito Tributário, desfazendo o tabu da tributação das atividades
ilícitas e conferindo base dogmática ao intérprete e ao legislador para o combate à evasão
mediante abuso de formas, na esteira do §42 do Código Tributário alemão de 1977.
Ademais, ressalta Nogueira (1982, p. 129), no campo do Direito Público e da Teoria
Geral do Direito, a doutrina da interpretação econômica denunciou a deficiência do
normativismo e autorizou o intérprete a trazer a valoração para o campo do Direito. Mas, ao
pretender um método diferente para interpretar o Direito Tributário, a versão original da
interpretação econômica “passou recibo da inutilidade dos demais métodos, justamente no
que todos tinham de comum: o de descartar os fatos da interpretação da lei”.
Quanto ao futuro da interpretação econômica, Nogueira (1982, p. 129-130) considera
que das oito variantes conceituais examinadas, a variante do combate ao abuso de formas (d),
41 A necessária sintonia entre intérprete e sociedade foi explorada por Ronald Dworkin mediante o
desenvolvimento da ideia de comunidade de princípios. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Revisão técnica de Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
126
semelhante à norma do §42 do Código Alemão de 1977, é a que deverá prevalecer. Além
dessa técnica, a tendência do legislador em definir as hipóteses de incidência recorrendo à
descrição econômica tende a escassear o terreno propício para o desenvolvimento da
interpretação econômica.
3.4 Síntese conclusiva
Na seção 3, procuramos demonstrar que os primeiros tributaristas brasileiros não eram
apegados ao formalismo jurídico e admitiam a interpretação econômica como espécie de
interpretação teleológica e como forma de combate à elusão fiscal.
A segunda geração de tributaristas brasileiros, contudo, em sua maior parte, não
admite a versão equilibrada da interpretação econômica, seja como critério de interpretação
teleológica, seja como forma de combate à elusão fiscal. Com exceção de Derzi e Coêlho
(2003), que se situam em uma posição intermediária, a maior parte da doutrina brasileira
contemporânea é extremamente apegada ao formalismo jurídico.
Mediante a análise da doutrina antiformalista do Direito Tributário, principalmente das
obras de Greco (2004), Torres (2000) e Godoi (2005), procuramos demonstrar o desacerto da
doutrina formalista ao repudiar o que chamamos de versão equilibrada da interpretação
econômica.
É muito relevante, a esse respeito, o alerta de Greco (2004) acerca das diferentes
posturas ideológicas, nem sempre explicitadas nos debates acerca da interpretação da norma
tributária e do planejamento fiscal. Julgamos de extrema importância a identificação dos
reflexos que as diferentes posturas ideológicas têm sobre a forma como se concebe a
interpretação do Direito Tributário.
Não há dúvida de que a doutrina formalista prestigia apenas os valores constitucionais
protetivos, sem considerar que a Constituição Federal de 1988 também consagrou valores
sociais, modificadores da realidade. Essa postura explica o repúdio dessa corrente doutrinária
à versão equilibrada da interpretação econômica, principalmente como forma de combate à
elusão fiscal.
A doutrina antiformalista, também representada por Torres (2000) e Godoi (2005),
considera tanto os valores protetivos quanto os valores sociais, em total prestígio ao Estado
127
Democrático de Direito. Para essa corrente doutrinária, a versão equilibrada da interpretação
econômica, como critério de interpretação teleológica ou como forma de combate à elusão
fiscal, é necessária ao ordenamento jurídico.
Parece-nos que a doutrina formalista está longe de alcançar a doutrina antiformalista
quanto à ponderação dos dois tipos de valores consagrados pela Constituição, pois até hoje há
quem considere o tributo como algo odioso e agressivo do patrimônio do contribuinte.
Conforme demonstramos, Martins (1998) considera que a norma tributária é norma de
rejeição social, supondo uma total oposição entre Estado e sociedade civil, típica de um
liberalismo que há muito foi banido das Constituições contemporâneas.
128
4 A INTERPRETAÇÃO ECONÔMICA E O CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
4.1 A interpretação econômica no Anteprojeto e no Projeto do CTN
Em 1951, Rubens Gomes de Sousa iniciou a redação de um Anteprojeto de Código
Tributário Nacional que seria apresentado à Câmara dos Deputados42. O Anteprojeto,
finalizado por Sousa em 1952, não chegou a ser apresentado à Câmara dos Deputados.
Em 1953, o Ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, constituiu uma Comissão para
elaborar o Projeto do Código Tributário Nacional e indicou o nome de Sousa para presidi-la.
Em 1954, o Projeto de Código Tributário Nacional foi enviado por Getúlio Vargas ao
Congresso Nacional.
Apesar desse Projeto remetido ao Congresso Nacional em 1954 nunca ter sido
apreciado e votado pelo Legislativo, ele constitui a base do Código Tributário Nacional
aprovado em 1966 (Lei 5.172). Por essa razão, a análise do Anteprojeto e do Projeto é
importante para a conclusão acerca da recepção ou não da teoria da interpretação econômica
pelo CTN.
O art. 74 do Projeto (derivado do art. 12943 do Anteprojeto) dispunha que “a
interpretação da legislação tributária visará sua aplicação não só aos atos, fatos ou situações
jurídicas nela nominalmente referidos, como também àqueles que produzam ou sejam
suscetíveis de produzir resultados equivalentes.”
Nos Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, Sousa (1954, p.
181) afirmou que o art. 74 tinha um duplo objetivo, o de afastar o método superado da
interpretação literal e o de orientar a interpretação da lei tributária no sentido da pesquisa do
conteúdo econômico das situações materiais ou jurídicas objeto de tributação. Esse duplo
objetivo corresponde aos mesmos objetivos da versão original da interpretação econômica.
42 Cfr. BALEEIRO, Aliomar. O Código Tributário Nacional, segundo a correspondência de Rubens Gomes de
Sousa. In: BALEEIRO, Aliomar et al. Proposições tributárias: São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 5-33. 43 “Art. 129. Salvo em se tratando de tributos incidentes sobre atos jurídicos formais e de taxas, a interpretação da
legislação tributária, no que se refere à conceituação de um determinado ato, fato ou situação jurídica como configurando ou não o fato gerador, e também no que se refere à determinação da alíquota aplicável, terá diretamente em vista os resultados efetivamente decorrentes do aludido ato, fato ou situação jurídica, ainda quando tais resultados não correspondam aos normais, com o objetivo de que a resultados idênticos ou equivalentes corresponda tratamento tributário igual.”
129
Sousa (1954, p. 181) afirmou ter-se inspirado no Código Tributário alemão de 191944,
cujo §4º estabelece que “na interpretação das leis tributárias devem ser considerados sua
finalidade, seu significado econômico e o desenvolvimento das circunstâncias”.
Mas, como adverte Godoi (2010), Sousa (1954) parece ter se inspirado mais nos
comentários de Becker [193?] do que no próprio §4º, pois esse dispositivo contém apenas os
pressupostos de uma interpretação teleológica e não determina que os fatos capazes de
produzir resultados equivalentes sejam tributados tal como os fatos previstos em lei.
Na visão de Godoi (2010), uma norma verdadeiramente inspirada no §4.º do Código
Tributário alemão de 1919 (e não na versão de Enno Becker) e que se mostra equilibrada e em
harmonia com as tendências atuais da hermenêutica é a contida no art. 7.º do Modelo de
Código Tributário do CIAT (Centro Interamericano de Administrações Tributárias) de 1997:
Art. 7 – Forma jurídica dos atos. Quando a norma relativa ao fato gerador se referir a situações definidas por outros ramos jurídicos, sem se remeter e sem se apartar expressamente delas, o intérprete deverá lhe atribuir o significado que mais se adapte à realidade considerada pela lei para criar o tributo. As formas jurídicas adotadas pelos contribuintes não obrigam ao intérprete, que deverá atribuir às situações e atos ocorridos uma significação acorde com os fatos, quando emergir da lei tributária que o tributo foi estabelecido atendendo à realidade e não à forma jurídica. Quando as formas jurídicas forem manifestamente inapropriadas à realidade dos fatos tributados e isso se traduzir em uma diminuição do valor das obrigações, a lei tributária será aplicada prescindindo de tais formas.
Conforme Godoi (2005, p. 110), o §1º do art. 7º concede um peso maior ao critério
econômico no caso de o legislador nem se remeter nem se apartar expressamente das formas
de Direito Privado. A nosso ver, o art. 7º do Modelo de Código Tributário do CIAT incorpora
as duas vertentes da versão equilibrada da interpretação econômica: a interpretação
teleológica e o combate à elusão fiscal.
44 Nas palavras de Sousa (1954, p. 98-99), “Com as cautelas e ressalvas [...] a Comissão utilizou como subsídios,
em primeiro lugar a legislação tributária vigente da União, dos Estados e dos principais Municípios; e, num segundo plano, os códigos tributários e as leis com o caráter parcial de códigos, existentes na legislação comparada. Dentre as leis do primeiro tipo, a primazia compete indiscutivelmente à Reichsabgabenordnung alemã, em seu texto original de 1919, elaborado por Becker e anterior às alterações introduzidas sob a influência de ideologias políticas”.
130
Sousa (1954, p. 181) entendia que o art. 74 era consentâneo com o princípio da
legalidade e que as reservas quanto ao artigo estariam devidamente atendidas pelos parágrafos
do art. 7545 do Projeto, o qual, com uma pequena alteração, foi convertido no art. 108 do
CTN. Em outras palavras, Sousa (1954) entendia que a vedação do emprego da analogia
como forma de exigência de tributo não previsto em lei proporcionava o devido equilíbrio
entre a interpretação econômica e o princípio da legalidade.
Godoi (2005, p. 128) discorda dessa posição de Sousa (1954), alertando que a adoção
da versão original da interpretação econômica tornaria a proibição da analogia um enunciado
meramente formal e vazio de sentido.
O art. 8546 do Projeto, correspondente a uma adaptação do art. 13547 do Anteprojeto,
tratava dos efeitos fiscais dos atos ou negócios jurídicos inexistentes, nulos ou anuláveis ou
cujos objetos fossem impossíveis, ilegais, ilícitos ou imorais. A tributação de tais atos ou
negócios jurídicos, conforme o art. 85, não seria excluída, modificada ou diferida caso os
resultados efetivos fossem idênticos aos normalmente decorrentes do estado de fato ou
situação jurídica que constituísse o fato gerador da obrigação tributária principal.
45 “Art. 75. Na ausência de disposição expressa na legislação tributária, a autoridade administrativa ou judiciária
competente para a sua aplicação utilizará sucessivamente, como métodos ou processos supletivos de interpretação, na ordem indicada:
I – a analogia; II – os princípios gerais de Direito Tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a equidade. § 1.º O emprego da analogia não poderá resultar na instituição de tributo não previsto em lei. § 2.º O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa de pagamento de tributo devido.” 46 “Art. 85. A circunstância dos negócios ou atos jurídicos celebrados ou praticados serem inexistentes, nulos,
anuláveis, ou terem objeto impossível, ilegal, ilícito ou imoral não exclui, modifica ou difere a tributação, desde que os seus resultados efetivos sejam idênticos aos normalmente decorrentes do estado de fato ou situação jurídica que constitua o fato gerador da obrigação tributária principal, observado, porém, o disposto na alínea IV do art. 130.”
47 “Art. 135. Não exclui, modifica ou difere a tributação a circunstância dos atos jurídicos unilaterais ou bilaterais celebrados pelas partes serem juridicamente inexistentes, nulos, anuláveis ou simulados, ou terem objeto impossível, ilegal, ilícito ou imoral, desde que os seus resultados efetivos sejam idênticos aos normalmente decorrentes do estado de fato ou situação jurídica que constitua o fato gerador da obrigação tributária principal.”
131
Para Sousa (1954, p. 194), o art. 85 do Projeto significava que o alcance do Direito
Tributário tinha como único limite a extensão dos efeitos econômicos das situações materiais
ou jurídicas definidas na lei fiscal como fatos geradores. O autor não explica, contudo, como
conciliar o art. 85 com a norma do art. 7648 do Projeto, que determinava que os princípios
gerais do Direito Privado fossem considerados na interpretação dos conceitos e formas de
Direito Privado mencionados nas leis tributárias.
O art. 86 do Projeto, correspondente ao § único do art. 13149 do Anteprojeto,
determinava que
A autoridade administrativa ou judiciária terá em vista, independentemente da intenção das partes, mas sem prejuízo dos efeitos penais dessa intenção quando seja o caso, que a utilização, pelos contribuintes ou terceiros, de institutos, conceitos ou formas e de Direito Privado não deverá dar lugar à evasão ou redução de tributo devido, com base nos resultados efetivos do estado de fato ou situação jurídica, nos termos do artigo anterior, nem diferir o seu pagamento.
Na visão de Sousa (1954, p. 195), o art. 86 visava a cercear a “evasão tributária
procurada através do que a doutrina alemã chama ‘o abuso de formas de Direito Privado”. A
redação foi inspirada no §6º da Lei de Adaptação Tributária de 1934, que dispõe que
nenhum contribuinte poderá eximir-se de obrigação tributária, ou reduzi-la, mediante um abuso das formas e das possibilidades de adaptação do Direito Civil. Ocorrendo tal abuso, os impostos serão cobrados segundo as condições de direito correspondentes aos precedentes, aos fatos e às circunstâncias econômicas.
A Comissão, conforme Sousa (1954, p. 195), não julgou necessário ou conveniente
acolher a sugestão que propunha um capítulo especial sobre a fraude à lei em matéria fiscal.
Na visão do Sousa (1954, p. 195), a norma genérica do art. 86 fornecia ao aplicador da lei
48 “Art. 76. Os princípios gerais de direito privado constituem método ou processo supletivo de interpretação da legislação tributária unicamente para pesquisa da definição, conteúdo e alcance próprios dos conceitos, formas e institutos de direito privado a que faça referência aquela legislação, mas não para a definição de seus efeitos tributários.
Parágrafo único. A lei tributária poderá modificar expressamente a definição, conteúdo e alcance próprios dos institutos, conceitos e formas a que se refere este artigo, salvo quando expressa ou implicitamente utilizados, na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados, ou nas Leis Orgânicas dos Municípios, para definir competência tributária.”
49 “Art. 131. Os conceitos, formas e institutos de direito privado, a que faça referência a legislação tributária, serão aplicados segundo a sua conceituação própria, salvo quando seja expressamente alterada ou modificada pela legislação tributária.
Parágrafo único. A autoridade administrativa ou judiciária competente para aplicar a legislação tributária terá em vista, independentemente da intenção das partes, mas sem prejuízo dos efeitos penais dessa intenção quando seja o caso, que a utilização de conceitos, formas e institutos de direito privado não deverá dar lugar à evasão ou redução do tributo devido com base nos resultados efetivos do estado de fato ou situação jurídica efetivamente ocorrente ou constituída, nos termos do art.129, quando os conceitos, formas ou institutos de direito privado utilizados pelas partes não correspondam aos legalmente ou usualmente aplicáveis à hipótese de que se tratar.”
132
elementos suficientes para o combate à fraude à lei. Ademais, conforme o autor, em terreno
variável e multiforme como o da fraude fiscal, uma regulamentação específica e casuística
seria contraproducente, orientando a fraude para hipóteses não expressamente previstas, cujo
combate ficaria, por isso mesmo, dificultado.
Conforme Godoi (2005, p. 86), uma norma geral antielusão, tal como a norma do art.
86 do Projeto, não tem sentido se um outro dispositivo adota a versão original da
interpretação econômica. O art. 86 espelhava o equívoco de Sousa (1975a) quanto ao
verdadeiro sentido do §4º do Código Tributário alemão de 1919. O autor entendia que a
versão original da interpretação econômica estava prevista no §4º, mas na verdade esta
doutrina decorre muito mais dos comentários de Becker e da jurisprudência alemã.
Não obstante o intento de Sousa (1954), as normas do Anteprojeto (arts. 129, 131, §
único e 135) e do Projeto (arts. 74, 85 e 86) que pretendiam recepcionar a interpretação
econômica não prevaleceram no texto final do CTN. Somente em 2001, com a edição da Lei
Complementar 104, a versão equilibrada da interpretação econômica como forma de combate
à elusão fiscal foi introduzida no CTN (art. 116, § único)50:
Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
50 A respeito do art. 116, parágrafo único, do CTN, vide GODOI, 2001. Vide também ROCHA, 2002.
133
4.2 A interpretação econômica e o CTN51
O Código Tributário Nacional, cujo texto final foi aprovado em 196652, trata da
interpretação da legislação tributária no Título I do seu Livro Segundo. O Título I é dividido
em quatro Capítulos. O Capítulo I (arts. 96 a 100) contém disposições gerais sobre a
legislação tributária, regulando a reserva de lei (art. 97), a relação entre a legislação interna e
os tratados e convenções internacionais (art. 98), o conteúdo e o alcance dos decretos (art. 99)
e as normas complementares das leis tributárias (art. 100). O Capítulo II (arts. 101 a 104) trata
da vigência e o Capítulo III trata da aplicação da legislação tributária (arts. 105 a 106). O
Capítulo IV (arts. 107 a 112) trata da interpretação e da integração da legislação tributária.
4.2.1 Art. 107 do CTN
Art. 107. A legislação tributária será interpretada conforme o disposto neste Capítulo.
O Anteprojeto (art. 12853) e o Projeto (art. 7354) estabeleciam que “na aplicação da
legislação tributária, são admissíveis quaisquer métodos ou processos de interpretação,
observado o disposto neste Título”.
O objetivo de Sousa (1954, p. 180) era deixar claro que o Direito Tributário não
deveria ser interpretado de forma literal ou restritiva, pois isso promoveria “delimitações da
liberdade intelectual do intérprete na pesquisa do conteúdo e do alcance da lei”, o que não se
coaduna “com a tendência geral da hermenêutica jurídica no sentido da interpretação
teleológica ou finalista”, que deve prevalecer também no Direito Tributário.
51 Ricardo Lobo Torres (2000), em sua obra Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, promove
uma profunda crítica das normas do CTN que regulam a interpretação e a integração da legislação tributária. 52 Godoi (2010) destaca que é “tragicamente curioso” que apenas cinco anos após a promulgação do CTN o
próprio Sousa (1975, p. 362) tenha criticado publicamente as normas sobre a interpretação e a integração da legislação tributária, apontando a necessidade de sua revisão. Godoi (2010) também considera curioso que o outro artífice do CTN, Canto (1967, p. 30), tenha afirmado que “o grave equívoco do Código é a tomada de posição estabelecendo normas de interpretação, de um modo ou de outro”.
53 “Art.128. Na aplicação da legislação tributária, são admissíveis quaisquer métodos ou processos de interpretação, observado o disposto neste Título”.
54 “Art.73. Na aplicação da legislação tributária, são admissíveis quaisquer métodos ou processos de interpretação, observado o disposto neste Título. (corresponde ao art.138 do Anteprojeto).”
134
Ademais, conforme Godoi (2010), esse dispositivo visa a afastar qualquer resquício de
métodos apriorísticos de interpretação, tais como os princípios in dubio pro fiscum e in dubio
pro contribuinte.
O texto aprovado, contudo, talvez por causa do acentuado positivismo que perpassa
todo o CTN, omitiu o art. 73 do Projeto. O art. 107 do CTN apenas prevê que “A legislação
tributária será interpretada conforme o disposto neste Capítulo”.
4.2.2 Art. 108 do CTN
Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará, sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais de direito tributário; III – os princípios gerais de direito público; IV – a equidade. §1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei; §2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.
O art. 108 do CTN trata dos critérios de integração da legislação tributária. De forma
bem singela, pode-se dizer que enquanto a interpretação pressupõe a existência de norma para
a solução do caso concreto, a integração pressupõe a ausência de disposição específica para a
resolução do caso em exame. Em outras palavras, a integração consiste na identificação de
uma norma que se ajuste ao caso concreto com base em critérios autorizados por lei. No caso
do Direito Tributário, esses critérios estão previstos nos incisos I a IV do referido art. 108.
Baleeiro (1999, p. 678) e Sousa (1975b, p. 376) sustentam que a primeira frase do
caput (“na ausência de disposição expressa”) indica que a lei estadual, federal ou municipal
pode determinar uma ordem diferente de métodos de integração.
Godoi (2010) discorda dessa posição e entende que a primeira frase do caput do art.
108 refere-se à ausência de norma regulando especificamente o caso concreto, e não à
ausência de norma federal, estadual ou municipal disciplinando os métodos de integração da
lei tributária.
Torres (2000, p. 106, 108) também discorda das posições de Baleeiro (1999) e Sousa
(1975b), acrescentando que nem toda “ausência de disposição expressa” justifica a aplicação
dos métodos de integração. Na visão do autor, somente a “insatisfação frente aos valores
135
suprapositivos, aos princípios gerais e ao plano do legislador” justifica a integração. Se a
ausência de regulamentação for irrelevante, será insuscetível de preenchimento e prevalecerá
o argumento a contrario sensu. Portanto, para Torres (2000, p. 110), o art. 108 é “lacunoso”
ao relacionar a lacuna suscetível de preenchimento com a “ausência de disposição expressa”.
Greco (1998, p. 175) destaca outro desafio quanto à expressão “ausência de disposição
expressa”, consistente em se identificar se o caso é de “silêncio” (não-regulação voluntária da
hipótese) ou de “omissão” (previsão incompleta ou falha na regulação pretendida pela lei). A
esse respeito, Greco (1998, p. 175) relata que o Supremo Tribunal Federal55 tem se utilizado
da figura do “silêncio eloquente”, que se trata de uma “não-norma” (a hipótese foi excluída da
regulação), e não de lacuna (falta de norma por omissão) passível de integração.
Ressalta Greco (1998, p. 175) que essa discussão é especialmente relevante nos casos
de elisão fiscal, pois, muitas vezes, é necessário identificar se determinada conduta
a) está apenas situada em uma lacuna;
b) é caso de não-norma tributária; ou
c) comporta interpretação extensiva do tipo legal.
Segundo o autor, não há uma resposta a priori e esse problema deve ser solucionado
em cada caso concreto.
Parece-nos correto o entendimento de que o art. 108, ao adotar a expressão “ausência
de disposição expressa”, refere-se à lacuna sobre a disciplina de determinado fato concreto, e
não à lacuna sobre normas de integração, como sustentam Baleeiro (1999) e Sousa (1975b).
A posição de Baleeiro (1999, p. 678) acerca da expressão “autoridade competente para
aplicar a legislação tributária” também foi criticada por vários autores. Entende Baleeiro
(1999, p. 678) que, com essa expressão, o art. 108 “parece” alcançar somente os “agentes do
fisco”, uma vez que o art. 75 do Projeto se referia à “autoridade administrativa ou judiciária
competente” e a redação final do art. 108 se refere apenas à “autoridade competente” para a
aplicação da legislação tributária.
Conforme Godoi (2010), essa alteração sofrida pelo art. 75 do Projeto não significa
que a autoridade judicial não esteja autorizada a aplicar os critérios do art. 108, pois, nos
dizeres de Luciano Amaro (2006, p. 210), “não faria sentido que o fisco estivesse adstrito a
aplicar a lei de uma maneira e o contribuinte ou o juiz devesse (ou pudesse) aplicá-la de modo
diverso”.
55 Greco (1998, p. 229) cita o RE nº 135.637, RTJ 136/1357 e o RE 130.552, RTJ 136/1340.
136
Para Torres (2000, p. 111-112), a expressão “autoridade competente para aplicar a
legislação tributária” é ambígua e incompleta, pois nem o juiz nem o administrador têm o
monopólio da atividade hermenêutica. Na sociedade aberta e pluralista, como destaca o autor,
não há um numerus clausus de intérpretes. A vinculação dos métodos de integração apenas a
uma ou algumas classes de intérpretes levaria à divergência de resultados e ao “ruído no
diálogo do Direito”.
Hugo de Brito Machado (2004, p. 218) considera que um dos objetivos do art. 108 do
CTN é deixar claro que as autoridades competentes para o lançamento do tributo e para a
apreciação dos processos administrativos também estão autorizadas a utilizar os meios de
integração previstos em seus incisos. Segundo o autor, a referência à “autoridade competente
para aplicar a legislação tributária” visa a afastar o eventual argumento de que as normas da
Lei de Introdução ao Código Civil e do Código de Processo Civil somente seriam aplicáveis
aos juízes. Para Machado (2004, p. 218), o art. 108, assim como várias outras normas do
CTN, tem inegável importância didática.
Também entendemos que a norma do art. 108 aplica-se a qualquer pessoa incumbida
da interpretação e da integração da norma tributária, e não apenas às autoridades judiciais ou
fiscais, como a sua interpretação literal parece indicar.
Sobre os incisos do art. 108, Torres (2000, p. 113) destaca que não há fundamento
jurídico, lógico ou filosófico para a hierarquização dos métodos de integração da legislação
tributária, uma vez que são pouco nítidas as fronteiras entre cada um deles. Na visão do autor,
apesar do esforço dos positivistas em estremar a analogia juris56 da analogia legis, não há
dúvida de que o raciocínio analógico implica, mesmo na analogia legis, as valorações e
apreciações ligadas aos princípios gerais do Direito. A equidade, conforme o autor, também
abrange os princípios gerais do Direito, pois consiste na aplicação da justiça ou de seus
princípios específicos (capacidade contributiva) aos casos concretos. Por fim, a distinção entre
princípios gerais do Direito Tributário e princípios gerais do Direito Público, com o objetivo
de hierarquizá-los, conforme Torres (2000, p. 115), também é infundada, uma vez que
56 Conforme Godoi (2010), a analogia legis, mais comum nos tribunais, supõe que haja uma norma específica que
regule um caso diferente mas substancialmente análogo (com a mesma ratio ou razão regulatória) ao caso concreto posto diante do aplicador. A analogia juris supõe que haja várias normas regulando vários casos e que dessa regulação complexa o aplicador possa sacar um princípio geral aplicável também ao caso concreto posto diante do aplicador. Por isso a doutrina considera que o que se permite em geral é a analogia legis, pois, conforme Godoi (2005, p. 220), a analogia juris seria uma “operación sumamente delicada, que exige una profunda y plena estimación de los principios y direcciones informadores de todo un sistema jurídico” y que “en general nos lleva a un decisionismo hipotético en su actuación” (CASTÁN TOBEÑAS, 1984, t. I, v. I, p. 568-572).
137
qualquer princípio, ainda que se aplique a determinado ramo jurídico, constituiu emanação ou
modificação dos princípios gerais do Direito.
Ademais, conforme Torres (2000, p. 116), os métodos de integração não podem ser
hierarquizados por que neles não prevalece nem o raciocínio indutivo nem o dedutivo. Mesmo
a analogia, que na lógica aristotélica é considerada raciocínio do particular para o particular,
segundo o autor, funda-se na comparação com o genérico e com a natureza das coisas,
atuando integradamente por dedução e indução. Os princípios gerais do Direito tanto podem
ser deduzidos dos valores para a sua concretização por meio da norma quanto podem ser
obtidos indutivamente desde os casos concretos. A equidade, vinculada à ideia abstrata de
justiça, também pode, conforme Torres (2000, p. 116), partir do raciocínio tópico.
Outra importante questão ressaltada por Torres (2000, p. 116) é que a enumeração do
art. 108 não é taxativa, uma vez que a plenitude do ordenamento jurídico também é buscada
mediante os princípios gerais de Direito (e não apenas os princípios de Direito Tributário e de
Direito Público) e os argumentos a contrario sensu e a fortiori.
Para Torres (2000, p. 106), enfim, o art. 108 não define as lacunas de forma
conveniente, cria indevidamente uma ordem hierárquica entre grandezas equivalentes e repete
proibições constitucionais. Na visão do autor, esse artigo não faria a menor falta se fosse
extirpado do CTN.
Amaro (2006, p. 210) também critica a hierarquia pretendida pelos incisos do art. 108,
ressaltando que é indiscutível que se o emprego da analogia não se adequar à inteligência que
resulta da aplicação de determinado princípio de Direito Tributário ou de Direito Público, o
princípio prevalecerá sobre a analogia. Sob a ótica do autor, o §1º do art. 108 confirma esse
entendimento ao vedar o emprego da analogia que resultar na exigência de tributo não
previsto em lei, deixando expresso algo que é decorrência necessária da prevalência do
princípio da legalidade.
Além disso, como ressalta Amaro (2006, p. 211), os instrumentos arrolados no art. 108
não se aplicam apenas às hipóteses de lacuna normativa. A própria interpretação de norma
expressa, e não somente a integração de lei lacunosa, conforme o autor, deve se harmonizar
com os princípios jurídicos.
Derzi, por outro lado, em seus comentários à obra de Baleeiro (1999, p. 684), entende
que a enumeração obrigatória e sucessiva do art. 108 aplica-se apenas à Administração
Fazendária. Ou seja, a autora parece entender que para os demais intérpretes da legislação
138
tributária, a enumeração do art. 108 não é nem obrigatória nem sucessiva. A hierarquização
dos métodos de integração, segundo essa visão, valeria apenas para os agentes do fisco.
4.2.2.1 Analogia
O emprego da analogia em matéria tributária somente é vedado na hipótese do §1º do
art. 108 CTN, ou seja, apenas nos casos em que a sua aplicação resulte na exigência de tributo
não previsto em lei. Nas palavras de Greco (1998, p. 174), o §1º do art. 108 significa que a
integração do ordenamento resultante da aplicação da analogia não pode interferir na
amplitude das hipóteses de incidência previstas em lei.
Pode haver dúvida, contudo, como ressalta Greco (1998, p. 174), quanto à relação
entre o tributo previsto em lei e a amplitude que deve ser dada aos conceitos utilizados pelo
legislador. A doutrina tem tentado solucionar essa questão mediante a diferenciação entre
analogia (que seria vedada porque implica a extensão do dispositivo a hipótese não prevista) e
interpretação extensiva (que seria permitida porque nada acrescenta ao tipo legal, apenas
explicitando o seu alcance). Mas, como adverte o autor, não é tarefa fácil identificar, no caso
concreto, quando se está diante da analogia e quando se está diante da interpretação extensiva.
Segundo Amaro (2006, p. 212), a distinção entre a interpretação extensiva e a analogia
está em que, na analogia, a lei não levou em consideração a hipótese, mas, se o tivesse feito,
teria lhe dado idêntica disciplina; na interpretação extensiva, por outro lado, a lei quis
abranger a hipótese, mas, em razão da má formulação do texto, deixou a situação de fora do
alcance expresso da norma, tornando-se necessária a reconstituição do seu alcance pelo
intérprete.
Em outras palavras, conforme Amaro (2006, p. 212), no caso da interpretação
extensiva a lei foi omissa porque foi mal escrita, e no caso da analogia a lei foi omissa pelo
fato de não se ter pensado na hipótese. A omissão, na visão do autor, iguala as duas situações.
A distinção entre elas, portanto, segundo Amaro (2006, p. 212), “depende de uma incursão
pela mente do legislador, pois se baseia, em última análise, em perquirir se o legislador
‘pensou’ ou não na hipótese, para, no primeiro caso, aplicar-se a interpretação extensiva, e, no
segundo, a integração analógica”.
139
Para Amaro (2006, p. 212), a analogia tem pequeno campo de atuação no Direito
Tributário, uma vez que o princípio da reserva de lei impede a sua utilização para fins de
exigência de tributo não previsto em lei (art. 108, §1º), reconhecimento de isenção (art. 111, I
e II), concessão de anistia (art. 111, I) e dispensa do cumprimento de obrigações acessórias
(art. 111, III).
Para Godoi (2010), a “incursão pela mente do legislador”, aventada por Amaro, é
desnecessária e contribui para desvirtuar o sentido da interpretação jurídica, que é por
natureza um ato criativo que se dirige a um objeto ou a uma manifestação objetiva e não se
confunde com a interpretação conversacional57.
Ainda que a diferença entre interpretação extensiva e analogia não seja de natureza e
sim de grau, como entende Godoi (2010), a interpretação extensiva chega a um dos resultados
possíveis da interpretação de uma norma respeitando-se os limites do mínimo e do máximo
sentido literal possível de seus termos em seu contexto próprio. Na interpretação extensiva, o
intérprete chega à conclusão de que há norma para o caso concreto, ao passo que a analogia
legis supõe que não há norma para o caso concreto (daí ser necessária a integração), ainda que
tal ausência normativa seja contrária ao plano regulador ou à ratio legis da legislação
existente.
Portanto, segundo o entendimento de Godoi (2010), ao qual aderimos, não cabe
concluir a partir do §1.º do art. 108 que também a interpretação extensiva esteja vedada no
que diz respeito à “definição das hipóteses de incidência do tributo”.
Torres (2000, p. 120) também entende que é impossível a distinção plena entre
analogia e interpretação extensiva, pois não há uma fronteira clara entre a extensão dos
sentidos possíveis da letra da lei e a complementação além desses sentidos. Segundo o autor,
ninguém pode dizer com segurança onde termina a expressividade dos conceitos jurídicos
contidos na lei e onde começa o vácuo normativo suscetível de integração.
A norma do §1º do art. 108, na visão de Torres (2000, p. 136), contém uma “verdade
incontestável, por coincidir com o próprio princípio constitucional da legalidade”, a qual,
contudo, não se erige em dogma ou em regra de clareza indiscutível. Sendo consequência
direta do princípio da legalidade, o referido §1º, conforme o autor, é redundante e repetitivo.
Torres (2000, p. 136-139) diferencia as teses da proibição e da permissão da analogia
gravosa. A proibição da analogia gravosa, consistente na absoluta proibição da analogia na
exigência de tributos, conforme Torres (2000, p. 136-137), é tese positivista, ligada à defesa
57 Cfr. DWORKIN, 1995, p. 52.
140
do liberalismo. A tese da permissão da analogia gravosa, por seu turno, embora vista com
desconfiança, “arejou” a teoria do Direito Tributário, uma vez que a aproximou do Direito
Civil, reconciliou-a com o Direito Constitucional, relacionou-a com o Direito Administrativo
e a colocou no mesmo compasso do Direito Penal, no qual o dogma da proibição da analogia
começa a sofrer sérias restrições. Finalmente, conforme o autor, a tese da permissão da
analogia gravosa colocou o Direito Tributário em consonância com os progressos da teoria
jurídica.
Palao Taboada (1997, p. 222) entende que a proibição da analogia decorre do princípio
da tipicidade tributária. Segundo esse entendimento, que coincide com a doutrina majoritária
brasileira, a proibição da analogia tem no princípio da tipicidade um fundamento suficiente.
Assim, mesmo na ausência de proibição legal expressa, o emprego da analogia que resultar na
exigência de tributo não previsto em lei não será cabível.
Relata o autor que a possibilidade de se deduzir a proibição da analogia do princípio
de reserva de lei é rechaçada por Tipke (1993, apud PALAO TABOADA, 1997, p. 224) no
contexto de sua posição favorável à analogia no Direito Tributário. Para Tipke (1993, apud
PALAO TABOADA, 1997, p. 224), a integração de lacunas mediante a analogia está em
consonância com o princípio democrático, uma vez que persegue a realização da vontade do
legislador e não agride a divisão de poderes.
A dificuldade da resposta à questão da existência de uma proibição da analogia,
segundo Tipke (1993, apud PALAO TABOADA, 1997, p. 224), decorre do conflito entre os
aspectos formal (segurança jurídica) e material (princípio da igualdade) do princípio do
Estado de Direito. Enquanto a analogia serve ao princípio da igualdade, sua proibição serve,
segundo seus partidários, à segurança jurídica.
Para Tipke (1993, apud PALAO TABOADA, 1997, p. 224), o princípio da igualdade
deve prevalecer sobre a segurança jurídica, uma vez que a posição dos cidadãos interessados
em uma tributação justa e igualitária deve prevalecer sobre a posição dos cidadãos que
enxergam no Estado apenas o cerceamento de suas liberdades (o egoísmo deve ceder ao
sentido comunitário).
Ademais, conforme Tipke (1993, apud PALAO TABOADA, 1997, p. 224), a
proibição da analogia não produz segurança jurídica, pois os contribuintes e assessores legais
não conhecem o texto da lei em que supostamente deveriam confiar e mesmo que o conheçam
não o entendem, confiando muito mais nos comentários ou artigos de especialistas do que na
letra da lei. O “sentido literal possível”, na visão de Tipke (1993, apud PALAO TABOADA,
141
1997, p. 224), também não é garantia de segurança jurídica, uma vez que está cheio de
lacunas produzidas por cláusulas gerais e conceitos vagos ou necessitados de integração
valorativa, além de comportar diversas variantes interpretativas.
A proibição da analogia, na opinião de Tipke (1993, apud PALAO TABOADA, 1997,
p. 224), tampouco pode se basear no princípio da determinação, o qual também deve ser
ponderado com o princípio da igualdade. Para Tipke (1993, apud PALAO TABOADA, 1997,
p. 224), o critério da igualdade, concebido como um princípio formal, vazio de conteúdo,
realiza-se por meio do princípio da capacidade contributiva.
Palao Taboada (1997, p. 225) entende que os argumentos de Tipke (1993), mais que
demonstrar que a analogia não é contrária à segurança jurídica, comprovam que a proibição
desse método integrativo não decorre exclusivamente da lei. Segundo Palao Taboada (1997,
p. 225), tais argumentos de Tipke (1993) o colocam entre os numerosos críticos do “sentido
literal possível” como fronteira entre a interpretação e a analogia. Tampouco resulta
convincente, para Palao Taboada (1997, p. 225), o argumento de que o cidadão ignora o texto
da lei e a técnica de sua interpretação. A segurança jurídica não é a sensação psicológica de
segurança de cada cidadão individual, mas sim um princípio ou valor geral do ordenamento
jurídico e da própria sociedade, cuja realização deve ser aspirada na maior medida possível
por meio dos mecanismos institucionais de criação e aplicação do Direito.
Na doutrina tributarista espanhola, Pérez Royo (1991, apud PALAO TABOADA,
1997, p. 226) rechaça energicamente a ideia de que a proibição da analogia deriva do
princípio da reserva de lei. Na visão desse autor, a concepção da proibição da analogia como
decorrência do princípio da tipicidade consiste em uma “aplicação mecânica de conceitos
forjados na órbita do Direito Penal à esfera tributária e, mais concretamente, na confusão
entre o princípio da legalidade ou da reserva de lei e o princípio da tipicidade”. Para Pérez
Royo (1991, apud PALAO TABOADA, 1997, p. 228), a distinção entre eles consiste em que
o princípio da legalidade ou da reserva de lei visa a eliminar a ingerência do poder
regulamentar, e o princípio da tipicidade (que seria o que expressa a fórmula nullum crimen
sine lege) visa a garantir a certeza na aplicação das leis. No Direito Penal, conforme o autor, a
proibição da analogia visa a garantir a certeza na aplicação da lei (princípio da tipicidade),
enquanto que no Direito Tributário a legalidade ou a reserva de lei não decorre da garantia
individual de certeza na aplicação das leis, e sim do fundamento democrático que exige a
intervenção da representação nacional na distribuição da carga tributária. Conclui o autor,
assim, que no Direito Tributário, diferentemente do Direito Penal, o princípio da tipicidade
142
não tem intensidade suficiente para justificar a proibição da analogia, sendo livre o legislador
ordinário para proibir ou não a sua aplicação.
Sobre o art. 1458 da LGT/2003, que veda o emprego da analogia que resulte na
exigência de tributo não previsto em lei, Pérez Royo (2002, p. 95) destaca que para a doutrina
que relaciona a analogia com o princípio da legalidade ou da reserva de lei, esse dispositivo se
aplica a todas as normas que versam sobre o âmbito material abrangido pelo referido
princípio. Ou seja, a proibição da analogia não se aplica apenas às normas que regulam o fato
imponível ou as isenções, e sim a todas as matérias relativas aos elementos essenciais do
tributo.
Conforme Pérez Royo (2002, p. 95), para a doutrina que defende o entendimento
oposto, a proibição da analogia compreende apenas as normas que versam sobre o fato
imponível e as isenções, ou seja, não abrange as normas que se referem a outros elementos do
tributo, incluindo os essenciais, tais como a definição de contribuintes, base de cálculo, etc.
Para Palao Taboada (1997, p. 227), ainda que se admita a distinção entre o princípio
da legalidade ou da reserva de lei e o princípio da tipicidade, e que a exigência de certeza ou
determinação da lei seja menos rigorosa no Direito Tributário que no Direito Penal, é inegável
a necessidade de se separar com a maior segurança possível os fatos que são e os que não são
sujeitos a tributação. As diferentes intensidades que o princípio da legalidade assume em um e
em outro âmbito, na verdade, decorrem dos distintos valores que respectivamente afetam a
ação do Estado no Direito Penal (pessoais) e no Direito Tributário (estritamente patrimoniais).
Ademais, conforme Palao Taboada (1997, 227), também deriva do fundamento
democrático do princípio da legalidade, que exige a intervenção da representação nacional na
distribuição da carga tributária, a necessidade (expressa na ideia de tipicidade) de que a lei
não se aplique a fatos não contemplados ou pretendidos pelo legislador, o que
tradicionalmente tem sido formulado como proibição do emprego da analogia que resultar na
exigência de tributo não previsto em lei. Essa necessidade, com bem adverte o autor, subsiste
ainda que o conceito de analogia não seja adequado para desempenhar este papel.
Conclui Palao Taboada (1997, 227), assim, que, contrariamente ao aduzido por Péres
Royo, a extensão da proibição da analogia é condicionada pelo seu próprio fundamento, e não
está entregue à livre decisão do legislador. Como esse fundamento radica na ideia de
58 O art. 14 da LGT/2003, a seguir transcrito, substituiu o art. 24.1 da LGT/63. O item 2 do referido art. 24 tratava
da fraude à lei tributária e atualmente consta do art. 15 da LGT/2003. “Art. 14. Não se admitirá a analogia para estender para além de seus estritos termos o âmbito do fato imponível,
das isenções e demais benefícios ou incentivos fiscais” (tradução livre).
143
tipicidade, derivada da segurança jurídica, a proibição afeta toda a analogia prejudicial ao
contribuinte.
O problema fundamental suscitado pela proibição da analogia é que, contra o que se
pensava, não existe uma diferença material entre analogia e interpretação. Segundo a
concepção que Palao Taboada (1997, p. 233) chama de tradicional (positivista), a analogia
começa onde acaba a interpretação e o seu limite é o sentido literal possível da lei. Essa
concepção, contudo, como adverte o autor, não se sustenta diante dos métodos de
interpretação que se abrem a considerações teleológicas. Não caiu neste erro a doutrina
espanhola não-positivista, a qual, conforme Palao Taboada (1997, p. 233), já havia apontado
desde o início o caráter criativo tanto da interpretação como da analogia, reconhecendo que
entre ambas há uma diferença somente de grau.
Como demonstramos na seção 3, Greco (2004, p. 149-150) tem entendimento oposto
ao de Palao Taboada, entendendo que a analogia não é vedada pela Constituição. Essa
vedação, na visão de Greco (2004, p. 149-150), decorre exclusivamente do art. 108, §1º do
CTN. A ideia de proibição da analogia pelo art. 150, I do CTN, conforme o autor, vem do
Direito Penal, pois assim como nullum crimen sine legem, nullum tributum sine legem. Ou
seja, se o Direito Penal, que visa à proteção da liberdade individual, veda a analogia, o Direito
Tributário também a proíbe.
Estamos de acordo com a posição de Palao Taboada (1997) quanto à vinculação entre
a proibição do emprego da analogia como forma de exigência de tributo não previsto em lei e
o princípio da legalidade em matéria tributária. O §1º do art. 108 do CTN, a nosso ver, tem
cunho didático e sua eventual revogação não implicaria a permissão da analogia sem os
limites da legalidade.
4.2.2.2 Princípios gerais de Direito Tributário
Segundo Machado (2004, p. 221), se o intérprete não encontrar uma solução para o
caso concreto mediante o emprego da analogia (com a ressalva do §1º), deverá recorrer aos
princípios gerais do Direito Tributário contidos na Constituição Federal, tais como os
princípios da capacidade contributiva, da legalidade, da isonomia, da anterioridade e da
proibição de confisco.
144
Em linha com Baleeiro (1999, p. 680), Machado (2004, p. 221) também elenca, como
princípios gerais do Direito Tributário, a proibição de barreiras tributárias interestaduais (art.
150, V), as imunidades (art. 150, VI), as competências privativas (arts. 153 a 156), a
finalidade extrafiscal e outros princípios implícitos na Constituição Federal.
Para Amaro (2006, p. 213), assim como não é razoável a hierarquização dos
instrumentos de integração contidos no art. 108, não há razão para a hierarquização de
princípios de Direito Tributário e de Direito Público. Em linha com Torres (2000), Amaro
(2006, p. 213) também questiona a setorização de princípios consagrada pelo art. 108:
O princípio da igualdade, por exemplo, posto como axioma basilar do direito tributário, não seria, antes disso (caso se tivesse de setorizar os princípios), um postulado de direito público? Ou de direito constitucional? Ou melhor, de direito, tout court? Há princípios (como esse, da igualdade) que têm uma abrangência universal, o que inabilita sua apropriação por este ou aquele “ramo” do direito. É também o caso do princípio da proteção da boa-fé, que permeia todo o direito, tanto o público quanto o privado.
Ressalta Amaro (2006, p. 214), por fim, que a setorização de princípios tem razão
apenas didática e que não há dúvida de que todo o conjunto de princípios do Direito deve
presidir todo e qualquer trabalho exegético na matéria.
4.2.2.3 Princípios gerais de Direito Público
Os princípios gerais do Direito Público, segundo Machado (2004, p. 222), consistem
em ideias comuns a várias regras desse ramo jurídico, sendo que a fonte mais importante
dessas ideias é a Constituição Federal.
A esse respeito, Machado (2004, p. 222) menciona os princípios da isonomia ou da
igualdade perante a lei (art. 5º), da irretroatividade (art. 5º, XXXVI), da pessoalidade da pena
(art. 5º, XLV), da ampla defesa (art. 5º, LV), da liberdade profissional (art. 5º, XIII), etc. O
autor também cita os princípios do “quem pode o mais pode o menos” e dos poderes
implícitos, segundo o qual, conforme o autor, quando a Constituição quer os fins, concede os
meios adequados.
145
Amaro (2006, p. 214), por sua vez, invoca os princípios federativo, republicano, da
relação de administração, da lealdade do Estado, da previsibilidade da ação estatal e da
indisponibilidade do interesse público.
Segundo o autor, além dos problemas da hierarquização e da setorização, o art. 108 é
lacunoso, pois, como julgou necessário discriminar, por ramo e sub-ramo de Direito, o
conjunto de princípios (partindo do específico – Direito Tributário – para o geral – Direito
Público), deveria, por coerência, alcançar o mais geral (princípios gerais de Direito, que
englobam os princípios do Direito Tributário e os do Direito Público). Essa omissão do art.
108, contudo, não afasta a aplicação dos princípios gerais do Direito na integração da
legislação tributária.
Torres (2000, p. 126) ressalta que um dos mais graves problemas da hermenêutica e da
filosofia do Direito reside em saber o exato sentido da expressão “princípios gerais do
Direito”, a qual terá significados diferentes conforme prevaleça a visão jusnaturalista ou
positivista. Na visão do autor, os princípios, que informam a criação, a interpretação, a
integração e a correção do Direito, situam-se na região intermediária entre os valores jurídicos
abstratos e as normas do ordenamento positivo. Pouco importa, contudo, que os princípios
sejam escritos ou implícitos, positivos ou suprapositivos, pois, conforme o autor, os mesmos
podem ser apreendidos pela doutrina, pelo legislador e pela jurisprudência, por indução ou
dedução a partir da natureza das coisas ou da ideia do Direito.
4.2.2.4 Equidade
Segundo Amaro (2006, p. 215), a equidade atua como instrumento de realização
concreta da justiça, preenchendo “vácuos axiológicos” nos quais a aplicação rígida e
inflexível da regra escrita repugnaria ao sentimento de justiça da coletividade.
Machado (2004, p. 223) ressalta que a equidade não pode ser aplicada de forma
inteiramente livre, e sim visando a alcançar a igualdade material que o legislador, ao produzir
normas gerais e abstratas, não consegue atingir. Para o autor, se a lei prevê certo ato como
ilícito e há dúvida sobre a sua autoria, por exemplo, o intérprete deve preencher essa lacuna
“aplicando a norma que a equidade autoriza seja então elaborada”. Na visão de Machado
146
(2004, p. 223), o art. 112 do CTN reflete uma hipótese de aplicação da equidade. No mesmo
sentido entende Amaro (2006, p. 215).
Entende Machado (2004, p. 224) que a equidade não se confunde com a analogia, uma
vez que enquanto a equidade busca uma solução para o caso concreto a partir da norma
genérica, inspirada no sentimento de justiça e benevolência, a analogia busca suprir a lacuna
com uma norma específica destinada a regular outra situação muito parecida.
Amaro (2006, p. 215) frisa que a equidade não atua somente no plano da integração da
legislação tributária, uma vez que o ideal do justo pode levar:
a) à opção, entre as possíveis consequências legais de determinada situação concreta,
pela que mais se ajuste ao conceito de justiça; ou
b) à criação, para o caso concreto, de uma norma que, excepcionando a dura lex ou
preenchendo uma lacuna legal, confira à situação concreta uma disciplina jurídica
justa, que provavelmente seria conferida pelo legislador, se tivesse presentes, ao
editar a lei, as características materiais ou pessoais específicas daquela situação
concreta.
Torres (2000, p. 131-132), por outro lado, entende que a noção de equidade como
forma de integração “necessita de muito labor teórico” para não se confundir com a equidade
como instrumento de “correção” do Direito (no caso da antinomia entre regras, por exemplo)
ou de interpretação e suavização de penalidades fiscais.
Para o autor, a equidade como forma de integração não é muito importante para o
Direito Tributário, pois, de modo geral, a equidade atua diante de conceitos indeterminados,
cláusulas gerais e discricionariedade administrativa ou judicial. Como o Direito Tributário se
utiliza de conceitos determinados e enumerações taxativas, por força do princípio da
legalidade, pouco resta, na visão de Torres (2000, p. 132), para o preenchimento equitativo
das lacunas.
Baleeiro (1999, p. 684) tem uma visão bem ampla da equidade e admite o seu
emprego nos casos de absoluta inexistência de capacidade econômica do contribuinte. Na
visão do autor, exigir o tributo nesses casos não parece logicamente razoável. Por outro lado,
também não está contida na “lógica razoável”, segundo o autor, a dispensa do tributo de quem
adquiriu essa capacidade econômica em uma situação mal definida pela legislação. A nosso
ver, Baleeiro está equivocado ao conferir à equidade um sentido muito parecido com o que a
versão original da interpretação econômica confere à capacidade contributiva.
147
Com base na restrição imposta pelo §2º do art. 108, Machado (2004, p. 223) entende
que o CTN adotou o termo equidade no sentido de mitigação dos rigores da lei, ou seja, no
sentido de suavização, humanização e benevolência na aplicação do Direito. Assim, conforme
o autor, se a lei lacunosa não puder ser integrada com base na analogia, nos princípios gerais
do Direito Tributário, e nos princípios gerais do Direito Público, o intérprete deverá adotar a
solução que for mais benevolente, mais humana e mais suave ao contribuinte.
Amaro (2006, p. 216) entende que a equidade vedada pelo §2.º do art.108 não se refere
a uma ausência de norma (lacuna) e sim a uma situação em que o aplicador da lei, diante de
uma norma tributária que considera injusta ou muito rigorosa no caso concreto, cria uma
norma de exceção que exclui do âmbito de incidência da norma aquele caso concreto. Em
outras palavras, o objetivo do §2º do art. 108 é impedir que o aplicador da lei, diante da
exigência injusta do tributo, crie, por equidade, uma norma de exceção. Conforme o autor,
não cabe ao intérprete afastar determinada exigência fiscal com base na premissa de que a lei
a teria excepcionado caso houvesse previsto as características peculiares do caso concreto. Na
visão de Amaro (2006, p. 216), a restrição imposta pelo §2º do art. 108 decorre do princípio
da reserva legal, conjugado com o princípio da indisponibilidade do interesse público.
Concordamos com Amaro, e não com Machado, quanto ao sentido do §2º do art. 108.
A nosso ver, essa norma somente se aplica às sanções e penalidades tributárias, e não às
demais regras tributárias. Entender o contrário é admitir o princípio in dubio pro contribuinte,
há muito superado no Direito Tributário.
4.2.3 Art. 109 do CTN
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Para Canto (1967, p. 17), o art. 109 significa que o legislador, e não o intérprete, pode
conferir efeitos tributários semelhantes a atos e negócios jurídicos que tenham características
distintas perante o Direito Privado.
Sousa (1975b, p. 378), que juntamente com Canto (1967) participou da redação do
referido dispositivo, interpreta-o de maneira diferente. Segundo o autor,
148
O conteúdo real deste dispositivo é [...] um mecanismo para permitir ao aplicador da lei contrariar as manobras de evasão, aplicando, aliás, a norma geral de direito processual, de que o juiz, quando se convença de que as partes instauraram o processo para obter resultado diverso daquele que aparece, dará sentença por forma que obste esse resultado, ou seja, ao abuso da lei.
Segundo Nogueira (1994, p. 104), o art. 109 visa a afastar os princípios gerais de
Direito Privado como meio supletivo da integração da lei tributária, sem se dar conta de que
tal afastamento já está contido no art. 108 do CTN.
Para o autor, o art. 109 também visa a esclarecer a relação entre o Direito Tributário e
o Direito Privado. Assim, se a lei tributária se referir a categorias do Direito Privado, sem
alterá-las, o intérprete deverá “ingressar no Direito Privado para bem compreendê-las”. As
categorias de Direito Privado que não são alteradas pela lei tributária continuam sendo
institutos, conceitos e formas de puro Direito Privado.
Baleeiro (1999, p. 685) também entende que o art. 109 pretende resguardar a
autonomia do Direito Tributário mediante a explicitação da sua fronteira com o Direito
Privado. O autor reconhece que o Direito Tributário pode atribuir efeitos fiscais diversos aos
conceitos e formas de Direito Privado, desde que o faça de forma expressa.
Segundo Godoi (2005, p. 128), a redação ambígua do art. 109 pode levar à conclusão
de que o intérprete está legitimado a investigar os efeitos econômicos das formas jurídicas a
fim de lhes conferir os efeitos tributários correspondentes. A maioria da doutrina, contudo,
conforme Godoi (2005, p. 128), afasta essa interpretação do art. 109 pelo fato de os
dispositivos do Anteprojeto e do Projeto do CTN que consagravam a interpretação econômica
terem sido excluídos do texto final aprovado em 1966.
Baleeiro (1999, p. 689) entende que o CTN é “tímido” quanto à interpretação
econômica, na medida em que a insinua, mas não a erige em princípio básico. O autor,
contudo, não explica de que forma a interpretação econômica é “insinuada” pelo CTN. O art.
109, na sua visão, proclama o primado do Direito Privado quanto à definição, ao conteúdo e
ao alcance dos institutos, conceitos e formas desse ramo jurídico. A contrario sensu, na visão
do autor, tal primado não subsistirá se as definições, conceitos e formas provierem de outras
leis ordinárias. A nosso ver, o art. 109 não se restringe ao Direito Privado, como entende
Baleeiro, sendo plenamente aplicável a qualquer ramo do Direito.
Como alerta Derzi, em seus comentários à obra de Aliomar Baleeiro (1999, p. 685), é
um erro supor que o art. 109 consagra a interpretação econômica no sentido do abandono das
formas jurídicas. Conforme a autora, o art. 109 autoriza o legislador a atribuir efeitos
tributários peculiares aos institutos de Direito Privado desde que sejam atendidos os limites
149
previstos na Constituição. Essa atribuição é privativa do legislador, não cabendo ao intérprete
conferir efeitos tributários especiais aos princípios e institutos de Direito Privado.
Na visão de Derzi, explicitada em suas notas à obra de Aliomar Baleeiro (1999, p.
689), a interpretação econômica visa à apreensão teleológica da norma tributária, repelindo as
simulações e fraudes jurídicas. Nas palavras da autora, o objetivo da interpretação econômica
é evitar que por meio de um excessivo apego às formas de Direito Civil o princípio da
igualdade seja violado. Mesmo assim, ressalta a autora, a interpretação econômica não deve
sair de seus limites, o que levaria ao arbítrio e à insegurança. Conforme a autora, “quando
assentada nessas premissas, [a interpretação econômica] não se afasta, de modo algum, da
interpretação jurídica existente nos demais ramos jurídicos”.
Amaro (2006, p. 226) também não considera que o art. 109 consagrou a interpretação
econômica do Direito Tributário, a qual, na sua visão, choca-se com a Constituição e com
outros preceitos do próprio CTN. Ressalta o autor que o art. 109 “não pode querer dizer que o
intérprete da lei tributária seja obrigado a utilizar os princípios do Direito Privado para
pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance de certo instituto de Direito Privado (por
exemplo, a compra e venda) para, concluído esse trabalho, atirá-lo ao lixo”.
O que determina o art. 109, segundo Amaro (2006, p. 227), é que a identificação do
instituto de Direito Privado seja feita com base nos princípios de Direito Privado. Os efeitos
tributários, contudo, são determinados pelo Direito Tributário, e não pelo Direito Privado. O
Direito Tributário, dessa forma, tem a prerrogativa de conferir efeitos iguais para diferentes
institutos de Direito Privado, mas essa prerrogativa é exclusiva da lei tributária. Ou seja, é a
lei tributária, se quiser, que poderá conferir os respectivos efeitos fiscais, e nunca o intérprete.
Assim, no caso dos contratos de adesão, conforme o exemplo de Amaro (2006, p.
219), a interpretação favorável ao aderente não implica a consequente interpretação mais
benéfica da respectiva legislação tributária. Ou seja, o aderente não tem perante o fisco a
mesma posição privilegiada que possui no contrato de adesão. O empregado, por sua vez,
também não pode invocar sua condição de hipossuficiente na relação de trabalho em sua
relação com fisco. Essa hipossuficiência se restringe à relação de trabalho, não afetando a
interpretação das respectivas normas tributárias.
Nogueira (1982, p. 54) entende que o artigo 109 do CTN adota a segunda variante da
interpretação econômica, consistente na utilização de conceitos próprios do Direito Tributário
em decorrência de sua autonomia em relação ao Direito Privado. O art. 108, §1.º, na visão do
autor, é um dique às pretensões da corrente mais radical da interpretação econômica,
150
representada pela terceira variante, que consiste na busca de identidade de efeitos econômicos
para fins de tributação.
Eros Roberto Grau (1975, p. 75) entende que o art. 109 regula a interpretação
econômica, a qual, na sua visão, consiste na interpretação teleológica da norma tributária com
base nas específicas finalidades econômicas a que se reporta. Segundo Grau (1975, p. 78-79),
ao adotar o princípio da interpretação econômica (art. 109), o CTN previne a ocorrência de
conflitos entre o Direito Tributário e o Direito Privado, uma vez que os objetivos de ambos –
realidade econômica e validade formal – e a ótica sob a qual são tratados divergem
inteiramente entre si. Como o Direito Tributário não é autossuficiente, vez que o Direito
compõe um todo orgânico e não pode, qualquer de seus ramos, funcionar isoladamente do
todo, o CTN, por meio do art. 109, coíbe o abuso das formas jurídicas como instrumento
impeditivo ou redutor da obrigação tributária, colocando em destaque a essência econômica
do fenômeno tributário.
Conforme Greco (1998, p. 175), o art. 109 espelha uma das questões mais tormentosas
do Direito Tributário, consistente em se identificar até que ponto a lei tributária deve ser
interpretada mediante a utilização de critérios e conceitos oriundos do Direito Privado e até
que ponto a lei tributária pode desconsiderá-los.
Na visão de Greco (1998, p. 176), o art. 109 não vincula a norma tributária às figuras
de Direito Privado e permite que lhes sejam conferidos efeitos diversos dos previstos naquele
ramo do Direito. Tal diversidade de efeitos, contudo, deve ser claramente contemplada na lei
tributária.
Segundo Torres (2000, p. 147), o art. 109 é ambíguo e contraditório, pois pretende
hierarquizar métodos de interpretação de igual peso, sem optar com clareza pelo sistemático
ou pelo “teleológico ou econômico”. Essa ambiguidade, conforme Torres (2000, p. 189),
implica duas leituras distintas e constrastantes do art. 109: lido conjuntamente com o art. 110,
o art. 109 parece privilegiar o método sistemático; lido separadamente, o art. 109 parece
privilegiar o método teleológico (chamado pelo autor de “consideração econômica do fato
gerador”), desde que não haja a constitucionalização dos conceitos de Direito Privado.
Na visão de Torres (2000, p. 190), no caso de prevalência do método sistemático,
surgirão necessariamente os corolários da exclusividade da legislação como fonte do Direito,
da subordinação do Direito Tributário ao Direito Privado e da liberdade na eleição da forma
dos negócios jurídicos. Caso prevaleça o método teleológico, entretanto, surgirão os
151
corolários da inclusão da jurisprudência entre as fontes do Direito, da autonomia do Direito
Tributário e da ilicitude da elisão.
A interpretação lógico-sistemática do Direito Tributário, contudo, segundo o autor,
está em franco declínio na consideração da doutrina jurídica, pelo fato de excluir o critério
teleológico em prol de uma exagerada preocupação com a segurança jurídica e a legalidade.
Também estão em declínio, consequentemente, conforme Torres (2000, p. 194), o primado do
Direito Privado, a separação entre os sistemas do Direito e da Economia, a licitude da elisão e
a exclusividade da legislação como fonte do Direito Tributário.
A outra leitura admitida pelo art. 109, que recomenda a interpretação teleológica, é
equiparada por Torres (2000, p. 197) à interpretação econômica ou funcional. Segundo o
autor, a interpretação econômica adotada pelo CTN é “tímida” e cuida apenas das relações
entre o Direito Tributário e o Direito Privado, sem chegar a uma fórmula geral de
interpretação teleológica.
Essa segunda leitura do art. 109, contudo, também reflete a aderência do CTN a uma
posição teórica em refluxo, uma vez que, conforme o autor, não mais se defende a
exclusividade da interpretação econômica ou a preponderância do método finalístico, os quais
foram substituídos pelo pluralismo metodológico e as novas ideias sobre
interdisciplinariedade. Por conseguinte, segundo Torres (2000, p. 202-203), também se
desvalorizaram a autonomia do Direito Tributário, a redução economicista, a ilicitude da
elisão, a liberdade do juiz tributário e a primazia da justiça.
Torres (2000, p. 190) critica a tentativa do art. 109 de hierarquizar aprioristicamente os
métodos de interpretação, as fontes do Direito Tributário e os conceitos jurídicos. Para o
autor, o art. 109, além de ambíguo e contraditório, é retrógrado, pois deixou de reconhecer a
equivalência e a interação entre os métodos de interpretação, consistentes no pluralismo
metodológico.
Mesmo os autores que se esforçam por “casar” os arts. 109 e 110, conforme Torres
(2000, p. 192), divergem acerca da preponderância da interpretação sistemática ou da
interpretação teleológica. Em outras palavras, tais autores divergem acerca da prevalência da
autonomia do Direito Tributário, com a ressalva dos conceitos constitucionalizados (sendo,
conforme o autor, a exceção mais importante que a regra), ou do Direito Privado.
Conclui Torres (2000, p. 205), assim, que o art. 109 não faria a menor falta se fosse
extirpado do CTN, pelo refluxo das teorias lógico-sistemática e da interpretação econômica e
por não refletir o pluralismo metodológico.
152
Na visão de Torres (2000, p. 231), a interpretação econômica foi recepcionada pelo
art. 11859 do CTN, o qual, no seu entendimento, não é norma de interpretação, e sim de
qualificação dos fatos, conforme os comentários de Sousa (1954) ao art. 85 do Projeto do
CTN, referidos anteriormente. Na opinião de Torres (2000, p. 261), tal como o art. 109, a
redação do art. 118 é ambígua e contraditória, abrindo-se a diferentes significações.
Relata o autor que essa mesma ambiguidade se fazia presente no dispositivo que
serviu de paradigma ao art. 118 do CTN, qual seja, o art. 1º, III da Lei de Adaptação
Tributária alemã de 1934. Conforme Tipke (1978, apud TORRES, 2000, p. 261), o referido
art. 1º, III foi interpretado de diferentes maneiras:
a) Becker considerava fundamental a valoração econômica do fato concreto;
b) durante o período do nacional-socialismo, serviu para a manipulação política e
fiscal;
c) depois da Segunda Guerra Mundial, foi considerado necessário à subsunção do fato
econômico na lei tributária baseada em conceitos de Direito Privado;
d) posteriormente, foi visto como contrário aos princípios da legalidade, por admitir a
cobrança do tributo a partir do fato e não da lei formal, o que lhe determinou a
revogação.
Torres (2000, p. 271) destaca que se os “efeitos” a que aludem os incisos I e II do art.
118 fossem entendidos como “efeitos econômicos”, esse dispositivo seria antinômico, uma
vez que, conforme o autor, visa justamente a prestigiar a interpretação econômica. O
problema, segundo Torres (2000, p. 271), é de “valoração da eficácia jurídico-econômica ou
da qualificação, de acordo com a lei, do fato em que o ato, ainda que inválido, se converteu, e
não de interpretação do fato”. A tributação dos atos simulados ou inválidos, mas
economicamente eficazes, portanto, visa a adequar a consequência econômica à jurídica, a
qual se obtém pela subsunção do fato concreto na norma interpretada segundo o critério
teleológico.
Na visão de Godoi (2010), o art. 109 se destina a delimitar o papel que os princípios
gerais de Direito Privado têm na interpretação da lei tributária. Para o autor, o art. 109
determina, nos casos em que a legislação tributária menciona conceitos, institutos e formas de
Direito Privado (salário, doação, hipoteca, usufruto, etc.), sem criar uma conceituação própria
59 “Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem
como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos”.
153
desses institutos para fins de aplicação da norma tributária, que o intérprete se utilize dos
princípios gerais de Direito Privado para verificar o alcance ou o sentido desses institutos.
Conforme o exemplo de Godoi (2010), se a lei tributária impõe um imposto sobre os contratos
de leasing (sem transfigurar seu sentido oriundo do Direito Privado) e se em um caso concreto
se discute se o imposto é devido ou não exatamente porque se discute se a operação é ou não
de leasing, o intérprete da lei tributária terá eventualmente que recorrer aos princípios gerais
de Direito Privado implícitos na legislação do leasing para verificar o verdadeiro alcance do
instituto e, consequentemente, cobrar ou não o imposto. É o que está previsto na primeira
parte do art.109: “os princípios gerais de Direito Privado utilizam-se para pesquisa da
definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos e formas [...]”.
A segunda parte do art. 109, conforme o autor, determina que o intérprete não use os
princípios gerais de Direito Privado para interpretar a própria legislação que regule os efeitos
ou as consequências tributárias da prática daqueles institutos, conceitos e formas de Direito
Privado. Em outras palavras, os princípios gerais de Direito Privado são vetados pelo CTN
como métodos de integração da legislação tributária (art. 108, a contrario sensu) e como
métodos de interpretação (fora do contexto da integração) das normas que tratam dos efeitos
tributários dos atos praticados pelos contribuintes (art. 109).
Na visão de Godoi (2010), Amaro (2006, p. 219) exemplifica muito bem essa questão
ao afirmar que os princípios que informam a relação entre o consumidor e o fornecedor, por
exemplo, contidos no Código de Defesa do Consumidor, não podem ser usados para
interpretar normas tributárias relativas às obrigações deste consumidor (enquanto
contribuinte) com o fisco.
Em resumo, conforme Godoi (2010), se a legislação tributária não se refere a institutos
e conceitos do Direito Privado ou a eles se refere transformando seu sentido “para fins de
aplicação da legislação tributária”, o intérprete não deverá guiar seus trabalhos pelos
princípios gerais do Direito Privado. Se a legislação tributária faz menção a um instituto do
Direito Privado sem especificar-lhe um sentido diferente, então o conceito deste instituto tal
como configurado no Direito Privado será determinante para se concluir se a lei tributária
incidirá ou não, e os princípios gerais de Direito Privado podem ser utilizados para investigar
se em um caso concreto houve ou não a prática daquele instituto de Direito Privado. Fora
dessa investigação do alcance ou do conteúdo de um instituto do Direito Privado mencionado
e mantido na legislação tributária, segundo Godoi (2010), os princípios gerais de Direito
Privado são irrelevantes em matéria tributária.
154
Tal conclusão, ressalta Godoi (2010), está em linha com o art. 108 do CTN, que não
prevê em seus incisos (“processos supletivos de interpretação”, na expressão do art. 75 do
Projeto) os princípios gerais de Direito Privado. Por essa razão Sousa (1954, p. 183) afirmou
que o art. 76 do Projeto (atual art. 109) “completaria” a norma do artigo 75 (atual art. 108).
Concordamos com o sentido conferido por Godoi (2010) e Amaro (2006) ao art. 109
do CNT e por essa razão não identificamos nesse dipositivo a recepção de qualquer das
versões da teoria da interpretação econômica. O art. 109 do CTN, a nosso ver, não abriga nem
afasta a interpretação econômica, seja como critério de interpretação teleológica, seja como
forma de combate à elusão fiscal. O art. 109 simplesmente não trata dessas questões.
4.2.4 Art. 110 do CTN
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
O Anteprojeto do Código Tributário Nacional, finalizado em 1953, não continha a
regra do atual art. 110. Sua inclusão no Projeto de 1954 foi sugerida por Canto, com o
objetivo de conferir estabilidade aos conceitos de Direito Privado empregados pela
Constituição na fixação das competências tributárias. Não fosse assim, conforme Canto
(1967, p. 428), a discriminação constitucional de rendas tributárias poderia “sofrer toda a
sorte de golpes e deformações”.
Canto (1967, p. 29) ressalta que o art. 110 espanca as dúvidas que a leitura isolada do
art. 109 poderia provocar. Esses artigos se completam e “tranquilizam” o intérprete. Para
demonstrar o tipo de problema que o art. 110 visa a evitar, Canto (1967) cita que houve
Estados-membros da Federação que tentaram exigir o Imposto de Transmissão Imobiliária
sobre a alienação de navios e sobre a locação de bens imóveis firmada por período superior a
vinte anos, distorcendo os conceitos privados para maximizar a arrecadação tributária.
Guimarães (1947, p. 30) critica o art. 110 argumentando que “como é a União quem
legisla sobre Direito Privado, poderia ela, mudando os nomes dos institutos, alterar, a seu bel
prazer, a competência privativa dos poderes locais, a qual de privativa só teria o nome”
(itálico do autor).
155
Como bem observa Godoi (2010), é improvável que a União altere o Direito Privado
para auferir ganhos tributários, pois tal manobra provocaria graves efeitos sobre toda a vida
civil e econômica do país. O que o art. 110 do CTN evita é que os entes federativos (inclusive
a própria União) alarguem, por meio de leis tributárias e por isso com efeitos restritos a esse
terreno, conceitos de Direito Privado previstos na Constituição para definir competências
tributárias.
O art. 110 do CTN, na visão de Grau (1975, p. 80), ratifica e complementa os arts. 109
e 118. Garantindo a subsistência do regime federativo e coibindo a concorrência tributária, o
art. 110 impede que da alteração dos conceitos do Direito Privado resulte o desvirtuamento da
estrutura discriminatória de competências tributárias. O art. 118, por sua vez, define a
irrelevância jurídica do ato que integra a situação escolhida pela lei como necessária e
suficiente à ocorrência do fato gerador. É por isso, segundo o autor, que a prática efetiva do
fato gerador independe da sua validade para dar origem à obrigação principal.
Torres (2000, p. 227-228) entende que o art. 110 do CTN é ambíguo e contraditório,
pois admite diferentes leituras e separa os métodos de interpretação de acordo com a natureza
constitucional ou meramente legal da norma a ser interpretada. Ademais, o art. 110, na visão
do autor, é insuficiente e lacunoso, uma vez que visa a afastar da interpretação teleológica os
conceitos utilizados no sistema de discriminação de rendas. Torres (2000, p. 230) discorda
desse entendimento porque a interpretação da Constituição não se restringe ao sistema do
federalismo fiscal, alcançando todo o Sistema Tributário Nacional, independentemente de a
titularidade pertencer a este ou àquele ente público.
Conforme Godoi (2010), o julgamento do STF (RE 166.772, DJ 16.12.94, Relator
Min. Marco Aurélio) acerca da incidência da contribuição previdenciária sobre a remuneração
de trabalhadores autônomos bem ilustra a crítica de Torres (2000) que se refere ao art. 110 do
CTN. Nesse julgamento, o art. 110 potencializou a argumentação literal-restritiva do art. 195
da Constituição (no sentido de que a Constituição se referia ao conceito de “salários” tal como
vigora no Direito do Trabalho) e reprimiu a argumentação histórico-teleológica presente nos
votos vencidos dos Ministros Velloso, Rezek e Galvão. O STF acabou decidindo, com base
no voto do Ministro Marco Aurélio, que a contribuição previdência não incide sobre a
remuneração de trabalhadores autônomos.
Na visão de Godoi (2010), uma maneira de evitar que o art. 110 do CTN leve à
privatização ou à literalidade da interpretação constitucional-tributária é conceber o
dispositivo não como um artigo sobre a interpretação do Direito Tributário, e sim como um
156
artigo voltado ao legislador ordinário (e não ao intérprete), definindo (ou confirmando) regras
de competência tributária.
Amaro (2006, p. 220) também entende que o comando do art. 110 dirige-se ao
legislador, e não ao intérprete. O que determina o art. 110, na visão do autor, é que o
legislador não pode expandir o campo de competência tributária que lhe foi atribuído pela
Constituição, mediante o artifício de ampliar a definição, o conteúdo ou o alcance de
institutos de Direito Privado (ou de outros ramos do Direito) utilizados para definir aquele
campo. A contrario sensu, conforme o autor, conceitos jurídicos não utilizados na definição
da competência tributária podem ser alterados pela legislação tributária.
Estamos de acordo com a advertência de Torres (2000) acerca do risco de se afastar da
interpretação teleológica os conceitos utilizados no sistema de discriminação de rendas e
concordamos com a sugestão de Godoi (2010) e Amaro (2006) quanto ao real sentido e
alcance do art. 110 do CTN.
4.2.5 Art. 111 do CTN
Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.
157
De forma contraditória com a justificativa de Sousa (1954) acerca do art. 128 do
Anteprojeto e do art. 73 do Projeto, demonstrada anteriormente, o art. 13360 do Anteprojeto e
o art. 7761 do Projeto determinam a interpretação “literal” da legislação tributária que dispense
o cumprimento de obrigações acessórias e disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito
tributário.
Segundo Sousa (1954, p. 184), “as sugestões 723 e 913, que propunham se dissesse
‘restritivamente’ em vez de ‘literalmente’, não foram adotadas porque o objetivo visado é
delimitar a interpretação à letra da lei, sem porém admitir a restrição, em eventual prejuízo do
contribuinte, das concessões nela previstas.”
Não obstante, a concepção geral acerca do art. 111 do CTN, no qual se converteu o art.
77 do Projeto, é no sentido de que “literalmente” significa “restritivamente”. Segundo Godoi
(2010), essa interpretação do art. 111 decorre da visão de que o Direito Tributário protege
apenas o interesse arrecadatório do fisco e que por isso as normas que negam esse interesse
(tais como as normas de desoneração fiscal) devem ser interpretadas restritivamente62. Apesar
da missão constitucional do Direito Tributário não se resumir à arrecadação, Godoi (2010)
considera compreensível que à época da edição do CTN houvesse reservas às normas de
isenção, bastando lembrar a absurda isenção do imposto de renda sobre os proventos de
magistrados e outras categorias.
O próprio Canto (1967, p. 30), um dos autores do CTN, reconhece que o art. 111 foi
“um dos pontos em que mais se errou na elaboração do CTN” e que hoje a “isenção só é dada
60 “Art. 133. Será interpretada literalmente a legislação tributária excepcional em relação ao direito tributário
comum, assim considerada a que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – concessão de reduções ou franquias tributárias, ou de dispensa de obrigações tributárias acessórias, ainda que
em caráter temporário ou condicional. Parágrafo único. Não se considera excepcional, para os efeitos deste artigo, a legislação tributária que disponha
sobre: I – instituição de tributos extraordinários ou de caráter parafiscal, quaisquer que sejam a sua natureza e
finalidade; II – imposição de sanções ou penalidades, pecuniárias ou de outra qualquer natureza, observado o disposto no
art. 27.” 61 “Art. 77. Interpreta-se literalmente a legislação tributária excepcional em relação ao direito tributário comum,
assim considerada a que disponha, ainda que em caráter temporário ou condicional, sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – concessão de reduções ou franquias tributárias, ou de dispensa de obrigações tributárias acessórias. Parágrafo único. Não se considera excepcional, para os efeitos deste artigo, a legislação tributária que disponha
sobre: I – instituição de tributos extraordinários, quaisquer que sejam a sua natureza e finalidades; II – imposição de sanções ou penalidades de qualquer natureza, observado o disposto no artigo seguinte.” 62 Godoi (2010) ressalta que o espanhol Lozano Serrano critica essa “teoria do interesse tutelado” e sua influência
deletéria sobre a compreensão das isenções tributárias e seu papel no Estado Democrático de Direito nas suas obras Exenciones Tributarias y Derechos Adquiridos, Madrid: Tecnos, 1988 e Consecuencias de La jurisprudência constitucional sobre el derecho financiero y tributario, Madrid: Civitas, 1990.
158
em consideração a importantes, relevantes interesses coletivos, de sorte que ela deve ser
interpretada da mesma maneira que qualquer lei, teleologicamente, sistematicamente,
literalmente”.
Para Grau (1975, p. 82), o art. 111 do CTN prevê, com base no princípio da
interpretação literal, as hipóteses excluídas da interpretação econômica.
Na visão de Godoi (2010), a única maneira de “salvar” o art. 111 é interpretá-lo no
sentido da vedação de integrações analógicas das normas de isenção. Da mesma forma que a
norma que estabelece o fato gerador e o sujeito passivo de um tributo não pode ser aplicada
por analogia (art. 108, §1.º do CTN), tampouco a norma de isenção pode ser estendida ou
ampliada por argumentos analógicos. Nesse mesmo sentido são as ponderações de Barros
(1975, p. 187) e Hugo de Brito Machado Segundo (2007, p. 209-210).
Ademais, com bem adverte Godoi (2010), o critério literal referido por Sousa (1954)
pode levar a uma interpretação extensiva e abranger um conjunto de fatos mais amplo do que
o conjunto que seria normalmente abrangido caso fosse utilizado o critério contextual. A esse
respeito, Godoi (2010) cita o exemplo de Berliri (1964, p. 98), que examinamos na seção 2,
acerca da isenção da venda de flores, cuja interpretação literal alcançaria as alcachofras.
Por outro lado, conforme Godoi (2010), a ideia de Sousa (1954), encartada no art. 111
do CTN, é hermeneuticamente equivocada, pois não existe somente um sentido literal e para
decidir-se por um deles é sempre necessário usar os demais critérios de interpretação.
Estamos plenamente de acordo com a posição de Godoi (2010) acerca do alcance do
art. 111 do CTN. A interpretação literal, como bem demonstra o citado exemplo de Berliri
(1964), não é sinônimo de interpretação restritiva. A vedação da integração analógica nos
parece a melhor leitura do art. 111.
4.2.6 Art. 112 do CTN
Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: I – à capitulação legal do fato; II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade; IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.
159
O art. 112 do CTN, decorrente do art. 7863 do Projeto e do art. 27364 do Anteprojeto do
CTN, não se aplica, no nosso entendimento, à interpretação das normas que tratam dos
elementos da obrigação tributária (fato gerador, base de cálculo, alíquota, sujeito passivo) e
sim à interpretação das normas que tratam de infrações e sanções tributárias. Ou seja, não se
trata do superado in dubio pro contribuinte, e sim do in dubio pro reo.
Conforme Amaro (2006, p. 222), aplica-se o art. 112 em caso de dúvida sobre a
capitulação do fato, sua natureza ou circunstâncias materiais, ou sobre a extensão dos seus
efeitos, bem como sobre a autoria, imputabilidade ou punibilidade, e, ainda, sobre a natureza
ou graduação da penalidade aplicável.
Alerta Amaro (2006, p. 222) que nas demais matérias tributárias (que não se refiram a
infrações e penalidades), em que não cabe falar em retroatividade benigna, a interpretação
benigna não tem acolhida. Ressalta o autor que é por essa razão que na identificação do fato
gerador o intérprete não deve se valer da equidade, para o fim de dispensar o tributo (art. 108,
§2º), nem da analogia, para o fim de exigir o tributo (art. 108, §1º).
Na visão de Amaro (2006, p. 222), as situações previstas nos incisos do art. 112 não se
referem à interpretação da lei tributária, e sim à valorização dos fatos. Nessas situações, a
dúvida a ser resolvida, em favor do acusado, não é de interpretação da lei, e sim de
qualificação do fato. Conforme o exemplo do autor, discutir se o fato “x” se enquadra ou não
na lei, ou se a autoria do fato é ou não do indivíduo “y”, diz respeito ao exame dos fatos, e
não da lei. Nas palavras de Amaro (2006, p. 223), “a questão atém-se à subsunção, mas a
dúvida que se põe não é sobre a lei, e sim sobre o fato”. O inciso IV do art. 112, contudo,
como ressalta o autor, refere-se tanto a dúvidas sobre o fato quanto a dúvidas sobre o
conteúdo e o alcance da norma punitiva ou sobre os critérios legais de graduação da
penalidade.
63 “Art. 78 – A lei tributária que defina infrações, ou lhes comine penalidades, interpreta-se da maneira mais
favorável ao acusado, em caso de dúvida: I. Quanto à capitulação legal, a natureza ou as circunstâncias materiais do fato, ou quanto à natureza ou extensão
de seus efeitos; II. Quanto à autoria, imputabilidade ou punibilidade; III. Quanto à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.” 64 “Art. 273 – A lei tributária que defina infrações ou lhes comine penalidades interpreta-se da maneira mais
favorável ao acusado, em caso de dúvida: I. Quanto à capitulação legal, a natureza ou as circunstâncias materiais do fato, ou quanto à natureza ou extensão
dos seus efeitos; II. Quanto à autoria, imputabilidade ou punibilidade; III. Quanto à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação. Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no Título III do Livro III, aplicam-se como métodos os processos
supletivos de interpretação da lei tributária a que se refere esse artigo os princípios gerais de direito penal, legislados ou não.”
160
Para Martins (1998, p. 208), contudo, que ainda vê o tributo como algo odioso e
agressivo do patrimônio dos cidadãos, o art. 112 determina que todas as matérias reguladas
pelo Direito Tributário sejam interpretadas da forma mais favorável ao contribuinte, e não
apenas as normas que regulam infrações e penalidades.
Greco (1998, p. 173) considera que a norma do art. 112, ao consagrar o princípio in
dubio pro reo, contribui para a certeza e a segurança das relações jurídicas no campo
tributário, eliminando, assim como as demais normas do Capítulo IV do CTN, grande parte
das dúvidas e perplexidades que surgem em países que não possuem um texto legal com essa
amplitude.
4.3 Síntese conclusiva
Na seção 4, procuramos demonstrar que o Anteprojeto e o Projeto do Código
Tributário Nacional pretendiam incorporar a versão original da teoria da interpretação
econômica, com todos os malefícios à segurança jurídica e ao princípio da legalidade.
Também procuramos demonstrar que o texto final do CTN, aprovado em 1966 (Lei
5.172), extirpou todos os dispositivos que se referiam à interpretação econômica do Direito
Tributário.
Nossa análise do CTN foi centralizada nos arts. 108 a 112, que estão mais diretamente
relacionados à interpretação econômica. Essa relação decorre, no caso do art. 108, da previsão
da analogia como meio de integração da legislação tributária e de sua proibição caso resulte
na exigência de tributo não previsto em lei. O art. 109 é o dispositivo cuja associação à
interpretação econômica é mais frequentemente debatida na doutrina. A relação do art. 110
com a interpretação econômica, por seu turno, decorre de seu estreito vínculo com o art. 109.
A maior parte da doutrina, como tentamos demonstrar, entende que a interpretação
econômica não foi recepcionada pelo Código Tributário Nacional, seja porque os dispositivos
do Anteprojeto e do Projeto que visavam à incorporação dessa teoria foram extirpados do
texto final do CTN, seja porque a interpretação de seus dispositivos não permite essa
conclusão.
Também entendemos que o Capítulo IV do CTN não incorporou a versão original da
interpretação econômica. Conforme ressaltamos anteriormente, somente em 2001, com a
161
edição da Lei Complementar 104, a versão da interpretação econômica como forma de
combate à elusão fiscal foi inserida no CTN (art. 116, § único).
Por outro lado, a versão da interpretação econômica como critério de interpretação
teleológica, a nosso ver, decorre da Teoria Geral do Direito, sendo desnecessária a sua
previsão em lei. Ou seja, a aplicação dessa vertente da interpretação econômica no Direito
Tributário brasileiro independe da sua previsão em lei, como de resto ocorre em todos os
ramos do Direito.
Concluímos, assim, que o CTN não acolhe nem refuta a interpretação econômica
como critério de interpretação teleológica; o CTN, no nosso entendimento, simplesmente não
regula a matéria. Tal como reconheceu a doutrina alemã quando da edição do Código
Tributário alemão de 1977, a regulação normativa da interpretação econômica é desnecessária
e sua falta em nada prejudica a aplicação desse método.
162
5 CONCLUSÃO
No contexto do início do século passado, de superação da Jurisprudência dos
Conceitos pela Jurisprudência dos Interesses, os princípios da segurança jurídica e da certeza
do Direito eram muito menos valorizados que os princípios da igualdade e da capacidade
contributiva. Foi então natural, naquele contexto, que a versão original da interpretação
econômica tenha cometido certos exageros, tal como ocorreu na jurisprudência alemã, até
encontrar o seu ponto de equilíbrio no ordenamento jurídico.
A versão equilibrada da interpretação econômica, representada pelas obras de Vanoni
(1932), Berliri (1964), Hensel (2005), Giannini (1956), Combarros Villanueva (1984),
Amatucci (1994), Beisse (1984), Tipke e Lang (2008) e Palao Taboada (2009), corrigiu
acertadamente a versão original da interpretação econômica, com a devida consideração tanto
ao princípio da segurança jurídica quanto aos princípios da legalidade, da igualdade e da
capacidade contributiva. Essa versão reflete o consenso de que a norma tributária não
demanda nenhum critério especial de interpretação, de que não são admissíveis quaisquer
métodos a priori de interpretação e de que é tarefa do intérprete, em cada caso concreto,
resolver o problema do significado dos termos de Direito Privado utilizados pelo Direito
Tributário. A interpretação econômica, segundo a versão equilibrada, é tida como espécie de
interpretação teleológica ou forma de combate à elusão fiscal.
Combarros Villanueva (1984) e Amatucci (1994) representam a versão equilibrada da
interpretação econômica que sugere adicionalmente que, no silêncio da lei, o instituto de
Direito Privado utilizado pela lei tributária seja interpretado conforme o sentido que possui
em seu ramo de origem. Beisse (1984) representa a linha doutrinária que sustenta o
entendimento oposto, de prevalência do significado econômico do fato gerador na ausência de
previsão expressa na lei tributária.
Em nossa opinião, o silêncio da lei não deve ser interpretado em nenhum dos dois
sentidos sustentados por Combarros Villanueva (1984), Amatucci (1994) e Beisse (1984). A
adoção de uma dessas premissas, no silêncio da lei, significa a adoção de um método a priori
de interpretação, que impõe um resultado ao intérprete e inibe a sua liberdade investigativa.
A nosso ver, se não houver expressa previsão legal em um ou outro sentido, a norma e
o fato deverão ser submetidos aos processos normais de interpretação e qualificação, visando
163
a identificar se a lei tributária empregou determinado instituto de Direito Privado objetivando
a sua forma jurídica ou o seu significado econômico.
A versão equilibrada da interpretação econômica, como critério de interpretação
teleológica ou como forma de combate à elusão fiscal, era amplamente aceita pelos primeiros
tributaristas brasileiros, os quais, ao contrário da doutrina majoritária atual, não eram
apegados ao formalismo jurídico. Sousa (1975a), Falcão (1987), Ataliba (1975), Nogueira
(1974), Baleeiro (1975), Dória (1971), Guimarães (1947) e Barros (1975) são expoentes dessa
doutrina. Canto (1967), contudo, filia-se à doutrina formalista do Direito Tributário.
A postura antiformalista de Sousa (1954) refletiu-se no Anteprojeto e no Projeto do
Código Tributário Nacional, os quais chegavam a incorporar a versão original da
interpretação econômica. O texto final do CTN, contudo, foi aprovado sem os dispositivos
que incorporavam essa teoria. Somente em 2001, com a edição da Lei Complementar 104, a
versão da interpretação econômica como forma de combate à elusão fiscal foi incorporada ao
CTN (art. 116, § único).
A maior parte da doutrina brasileira contemporânea, contudo, representada por Becker
(2004), Xavier (2001), Carvalho (1975) e Martins (1998), é extremamente apegada ao
formalismo jurídico e não admite a versão equilibrada da interpretação econômica nem
mesmo como forma de combate à elusão fiscal. Essa parte da doutrina continua vendo o
tributo como algo a ser meramente “tolerado” e que não traz consigo qualquer carga de
justiça.
A norma tributária, segundo esse entendimento, é restritiva de direitos e por isso deve
ser interpretada de forma literal (como se a interpretação literal fosse necessariamente
restritiva). A doutrina formalista é refratária às modernas teorias da interpretação do Direito
Tributário que reconhecem que a interpretação jurídica é uma tarefa que não se pode cumprir
sem uma considerável “carga criativa” e sem que frequentemente entrem em ação
determinadas convicções do intérprete sobre “o que é e quais são” os fundamentos do Direito.
Torres (2000), Greco (2004) e Godoi (2005) são expoentes da doutrina oposta,
contrária ao caráter excessivamente formalista do Direito Tributário.
É muito relevante, a respeito do embate entre as doutrinas formalista e antiformalista,
o alerta de Greco (2004) sobre as diferentes posturas ideológicas acerca da interpretação da
norma tributária. Os que consideram que a principal função da forma atual de nosso Estado é,
intervindo o menos possível na ordem social, promover segurança e certeza jurídicas para que
as pessoas físicas e jurídicas possam exercer livremente sua autonomia privada desde que tal
164
exercício não prejudique a autonomia dos demais cidadãos, têm uma concepção sobre o papel
do tributo, do sistema tributário e da própria interpretação do Direito Tributário muito distinta
da concepção dos que consideram que o paradigma atual de Estado exige a transformação das
condições sociais de modo que todos os cidadãos tenham uma liberdade o mais igual possível
no que diz respeito ao nível de participação na definição dos rumos políticos da sociedade
(autonomia pública) e uma igualdade equitativa de oportunidades para a busca e a realização
de seus projetos pessoais de vida (autonomia privada).
A doutrina formalista prestigia apenas os valores constitucionais protetivos, sem
considerar que a Constituição Federal de 1988 também consagrou valores sociais,
modificadores da realidade. Essa postura explica o repúdio dessa corrente doutrinária à versão
equilibrada da interpretação econômica, principalmente como forma de combate à elusão
fiscal.
A doutrina antiformalista, de modo contrário, considera tanto os valores protetivos
quanto os valores sociais, em total prestígio ao Estado Democrático de Direito. Para essa
corrente doutrinária, a versão equilibrada da interpretação econômica, como critério de
interpretação teleológica ou como forma de combate à elusão fiscal, é necessária ao
ordenamento jurídico.
Filiamo-nos aos valores e concepções da teoria antiformalista e entendemos que a
interpretação econômica é mera interpretação teleológica aplicável ao Direito Tributário. Em
outras palavras, entendemos que a interpretação econômica está inserida na interpretação
teleológica, a qual se faz presente em qualquer ramo do Direito e informa todos os métodos de
interpretação (literal, lógico-sistemático e histórico). Inexiste a prevalência de um único
método. Há pluralidade e equivalência, sendo os métodos aplicados de acordo com o caso
concreto e com os valores ínsitos na Constituição. Ora se recorre ao método sistemático, ora
ao teleológico, ora ao histórico, uma vez que tais métodos não são contraditórios e na verdade
se complementam e se intercomunicam (pluralismo metodológico).
A versão da interpretação econômica como critério de interpretação teleológica, a
nosso ver, decorre da Teoria Geral do Direito, sendo desnecessária a sua previsão em lei. O
Código Tributário alemão de 1977, por exemplo, não contém mais a regra sobre interpretação
de lei tributária, o que não tem impedido a aplicação da interpretação econômica (livre dos
excessos iniciais) por parte da Administração e do Judiciário. A Comissão de Finanças, com a
aprovação do Plenário alemão, entendeu que, tratando-se de uma regra geral de interpretação,
165
não era necessário que figurasse em uma codificação, nem de Direito Tributário, nem de outro
qualquer ramo jurídico.
Também nos parece viável a versão da interpretação econômica como forma de
combate à elusão fiscal, uma vez que discordamos da corrente doutrinária que considera que
os atos de elusão tributária somente podem ser combatidos mediante o fechamento das
lacunas legislativas, e não por meio da interpretação e da qualificação das normas e fatos.
Essa corrente, muito forte no Brasil, implica a volta do formalismo exacerbado existente no
período anterior ao surgimento da versão original da interpretação econômica do Direito
Tributário. A efetiva natureza das formas de combate à elusão fiscal, contudo, e sua
caracterização ou não como espécie de interpretação econômica, fogem do escopo do nosso
estudo e são objeto de intensos debates na doutrina nacional e internacional.
166
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