Download - A Morte de Senna
Olá amigo!
Há um bom tempo eu já tinha vontade de colocar no papel, ou numa tela
de computador, minha experiência sobre tudo o que cercou a perda de Ayrton
Senna. Você pode até pensar: esse assunto de novo! Não tenho nenhuma
pretensão de introduzir algo diferente àquilo que já foi apurado e julgado.
Apenas desejo contar a você, internauta, um pouco do que vivi naquela triste
temporada de 1994, tão marcante não só para a história esportiva do País. O
Brasil não perdeu um ídolo, mas um herói nacional.
Acompanhei tudo muito de perto, como jornalista responsável pela
cobertura da F‐1 dos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Agência
Estado. Penso que ainda hoje deve existir muita gente interessada em conhecer
mais detalhes do que se passou antes, durante e depois daquele fatídico 1.o de
maio de 1994. Para que se tenha uma idéia mais prática do que pretendo com
esta iniciativa, cito o fato de ter viajado ao lado de Galvão Bueno, dentre outras
pessoas, no avião que trouxe o corpo de Ayrton Senna para São Paulo.
Poucos sabem: o caixão não foi no porão de carga, mas no de passageiros,
na classe executiva do vôo da Varig Paris ‐ São Paulo, de 3 de maio. As cortinas
que separavam as classes permaneceram fechadas e, por incrível que possa
parecer, poucos passageiros se deram conta de que estavam ao lado de Senna
morto. As conversas mantidas durante o vôo, os antecedentes do acidente, as
investigações que se seguiram, tudo pode ser melhor contado por quem viveu
essa incrível experiência profissional e pessoal in loco.
De uma maneira geral irei me expressar em primeira pessoa. Não me
limitarei apenas a retratar as imagens captadas. Acredito ser importante
descrever o que senti, por exemplo, ao conversar com o médico que atendeu
Senna no helicóptero, entre o circuito Enzo e Dino Ferrari e o Hospital Maggiore
de Bolonha. Mais: o que ouvi dos internados que, de pijama, deixaram seus
quartos e foram até a sala de conferência do hospital para acompanhar os
boletins médicos a respeito do estado de saúde de Senna.
Três dias depois de chegar ao Brasil trazendo o corpo do piloto retornei
para a Itália, a fim de acompanhar as investigações das mortes de Roland
Ratzemberger e Ayrton Senna. Quero lhes contar tudo isso, desde as mais
elementares informações. Não conseguiria expor o que vi, senti e penso nos
jornais que trabalho. Temos sérias limitações de espaço. Essa é apenas mais
uma vantagem da Internet: a possibilidade de expor‐se por inteiro porque
espaço não é problema.
Hoje você já tem o primeiro capítulo dessa história que, creio, será longa.
Não me pergunte quão extensa. Vamos conversando, sem pressa. Toda semana
você terá um ou mais episódios novos dessa aventura de desfecho trágico.
A rigor, se desejarmos buscar a origem da perda de direção da Williams
FW16 na curva Tamburello, às 14:17 do dia 1.o de maio de 1994, na sexta volta
do GP de San Marino, em Ímola, é preciso recuar até antes do lançamento do
carro. Compreender em que contexto ele foi concebido. É para lá que
viajaremos nesse primeiro contato. Se você desejar sugerir algum rumo para
nossos encontros, propondo a abordagem de algo em particular a respeito da
perda de Senna, escreva. Estaremos sensíveis a suas reivindicações!
Livio Oricchio
Capítulo 1: Mudou tudo na F‐1 na temporada de 1994
"Concordei com as mudanças porque me convenceram de que elas
seriam melhores para a Fórmula 1", afirmou Frank Williams, na apresentação do
modelo FW16, no início de 1994. Sua equipe havia vencido os mundiais de 1992
e de 1993, com Nigel Mansell e Alain Prost, com enorme facilidade. O
regulamento da F‐1 permitia uma série de recursos eletrônicos, como a
suspensão ativa e o controle de tração, dentre outros, e a organização de Frank
Williams, comandada pelo engenheiro aeronáutico Adrian Newey, fora a que
melhor respondera àquela realidade da F‐1.
Até mesmo os donos das outras equipes estranharam o fato de o
dirigente inglês assinar o documento que garantia a mudança nas regras
técnicas da competição para 1994. O Pacto da Concordia, em vigência, exigia
que houvesse unanimidade dentre os proprietários de escuderias para haver
uma alteração tão radical das regras como a que ocorreu naquele ano. Se Frank
Williams desejasse manter sua hegemonia bastava‐lhe dizer não a todos que
evocavam uma profunda revisão conceitual em tudo o que se fazia na F‐1,
técnica e esportivamente.
Em outras palavras, o que Bernie Ecclestone, promotor do show, e Max
Mosley, presidente da FIA, desejavam era acabar com a superioridade absoluta
da Williams. Tornar a F‐1 mais emocionante. Havia um agravante a mais para a
F‐1 naquele avanço da Williams: o principal piloto do time seria, a partir de 1994,
Ayrton Senna. "Tenho receio de que ele vença as 16 etapas do campeonato, o
que será péssimo para a F‐1", disse na época Flavio Briatore, diretor da
Benetton, equipe de Michael Schumacher.
A aprovação de Frank Williams era essencial para mudar o regulamento e,
com isso, reverter essa expectativa de sua escuderia vencer tudo. Se os recursos
eletrônicos fossem proibidos, todos os projetistas partiriam quase que do zero
para conceber seus novos carros. Isso permitiria um maior nivelamento dos
concorrentes. Tirariam da Williams o que ela tinha de melhor: o seu super‐
eficiente sistema de suspensão ativa, o que fazia com que os monopostos da
equipe desfrutassem ao máximo da sua refinada aerodinâmica, principal fator
de diferenciação nos projetos de Newey.
A FIA anunciou, em grande estilo, em meados da temporada de 1993,
depois da concordância de Frank Williams, que toda e qualquer ajuda ao piloto,
durante a condução, estariam proibidos a partir do ano seguinte. Para surpresa
de muitos. Foi um gesto de elevado desprendimento de Frank Williams. Assim,
não mais seriam permitidos: a suspensão ativa, o câmbio automático, o
acelerador eletrônico, o controle de tração, o diferencial autoblocante auto‐
ajustável e os freios ABS.
O carro deveria ser conduzido apenas pelo piloto. Os auxílios à pilotagem
não mais seriam tolerados. O objetivo era valorizar o homem e não o
equipamento. Para aumentar a possibilidade de os times utilizarem‐se de
estratégias de competição para vencer as corridas, bem como torná‐las mais
atrativas, o reabastecimento de combustível, proibido desde 1984, estava de
volta também. Foi diante desse novo desafio que Adrian Newey começou a
trabalhar no projeto do FW16, o carro que matou Senna.
No nosso próximo encontro vamos falar um pouco mais das
características desse monoposto revolucionário, onde o semi‐eixo funcionava
como elemento da suspensão e do conjunto aerodinâmico. As primeiras
suspeitas sobre o acidente de Senna recaíram na sua ruptura. Enveredaremos
mais fundo também no dia em que Adrian Newey e Frank Williams decidiram
recuar e experimentar o modelo de 1993, adaptado ao regulamento de 1994. O
motivo: logo nos primeiros treinos, Senna, profundamente decepcionado,
deixou claro aos dois: "Esse carro é inguiável." Meses antes, quando trabalhava
para a McLaren, ao ver quase sempre Alain Prost conduzir o Williams FW15C na
sua frente, Senna comentou sobre a eficiência do projeto: "O carro da Williams
é de outro planeta." Justo o seu nascera na Terra!
Capítulo 2: O porquê de o FW16 da Williams ser, segundo Senna, "um
carro inguiável"
Como numa história de Batman e Robin, você viu no capítulo anterior
que a morte de Ayrton Senna, a rigor, começou a se desenhar quando o
regulamento técnico da Fórmula 1 mudou drasticamente, de 1993 para 1994.
Nós combinamos de dar seqüência à idéia ao abordarmos, hoje, o carro que a
Williams produziu, o modelo FW16, com o qual Senna se acidentou na curva
Tamburello. Observe como tudo se encaixa. Veja como há uma lógica na
seqüência dos temas a seguir.
GP do México de 1990, circuito Ricardo e Pedro Rodriguez, dia 23 de
junho. Os dois carros da equipe Leyton House, pilotados por Ivan Capelli e
Mauricio Gugelmin, não se classificam para correr. O modelo CG901, equipado
com motor Judd V‐8 e concebido pelo engenheiro Adrian Newey, o mesmo da
Williams em 1994, não aceitava as muitas ondulações da pista mexicana.
No veloz S de alta velocidade existente naquele traçado, bem como na
desafiante Peraltada, contornada em 5ª marcha, a cerca de 250 km/h, o CG 901
não gerava pressão aerodinâmica, por conta da sua suspensão quase não ter
curso, ser muito dura. A cada irregularidade do asfalto o monoposto saltava,
variando a densidade do ar sob o assoalho e, por conseqüência, não gerando
down force.
Avancemos apenas quinze dias no tempo, até 8 de julho de 1990, data do
GP da França, realizado no circuito de Paul Ricard. Um tapete de pista, em
oposição ao cenário da etapa anterior do Mundial. Os seus 3.813 metros eram
planos como uma imensa mesa de bilhar. O que aconteceu? O mesmo modelo
CG 901 permitiu que Ivan Capelli quase vencesse a prova. O italiano liderou 45
das 80 voltas da corrida. Alain Prost só ganhou porque o motor V‐12 da sua
Ferrari 641 o empurrava mais na longa reta de Paul Ricard. Capelli terminou em
segundo.
O que eu quero dizer? Que os projetos de Adrian Newey, como o CG 901
e depois, anos mais tarde, o FW16 da Williams, baseavam sua performance
quase que exclusivamente na aerodinâmica. Se o asfalto permitisse que o
assoalho se deslocasse paralelo ao solo, sem haver muita variação de altura
desse assoalho, o monoposto alcançava velocidades extraordinárias nas curvas,
por conta de gerar elevada pressão aerodinâmica. Com certeza, mais que a dos
seus adversários. Agora, se a pista fosse ondulada, o carro não fazia curva, por
não gerar essa pressão aerodinâmica.
Pense o seguinte: se você encher demais os pneus do seu carro, o que
ocorre? Em qualquer das muitas depressões e elevações do asfalto das cidades
brasileiras ele irá pular em demasia, não é? Com um carro de Fórmula 1 sem
suspensão, como eram os de Newey, para tentar fazer o assoalho correr
paralelo ao solo, era o mesmo. No México os pilotos não se classificaram e
depois, duas semanas apenas mais tarde, na França, quase vencem a
competição. Dá para entender?
Agora vamos entrar no túnel do tempo de novo para desembarcar em
fevereiro de 1994, quando Ayrton Senna já testava o modelo FW16 da Williams,
equipado com motor Renault, e, claro, projetado pelo mesmo Adrian Newey. O
engenheiro acabou dispensado da March, já em meados da temporada de 1990,
em razão da instabilidade de resultados que seu monoposto gerara.
Vale a pena eu descrever aqui uma frase dita pelo projetista que assumiu
a March naquela época, no lugar de Newey, o competente Gustav Brunner, hoje
na Minardi. "Tão logo vi o projeto de Newey, o CG 901, disse a mim mesmo,
como ele quer que funcione?" Eu ouvi pessoalmente de Brunner, com quem até
hoje costumo manter breves conversas. Mandado embora da March, Newey foi
chamado por Patrick Head, da Williams, cujos dois últimos projetos, de 1988 e
1989, não eram nem a sombra do que venceu o Mundial de 1987 com Nelson
Piquet.
O surrealismo das idéias de Newey em sincretismo com a praticidade, por
vezes exacerbada de Head, resultou numa combinação perfeita. Já em 1991 o
modelo FW14‐Honda da Williams levou Nigel Mansell a disputar o título com
Ayrton Senna, de McLaren MP4/6‐Honda, até a penúltima etapa do
campeonato, no Japão. A vitória final ficou mais por conta do talento de Senna.
A Williams já havia deixado, tecnicamente, a McLaren para trás. Em 1992 e 1993
foi uma covardia: o modelo FW14B com Mansell, e na temporada seguinte o
FW15C, com Prost, dominaram tudo.
Por quê? Na Fórmula 1 nada se explica isoladamente. Claro que a
competência dos pilotos e da equipe contou muito, a eficiência do motor
Renault também, mas em essência, a maior vantagem da Williams era
exatamente na aerodinâmica. Head desenvolveu um sistema de suspensão ativa
tão complexo quanto preciso. As irregularidades do asfalto eram absorvidas por
ela. Tanto o FW14B como o FW15C conseguiam manter o paralelismo ao solo de
seus assoalhos em função da incrível suspensão ativa do carro. E para alegria de
Newey, em qualquer circuito.
E o que é que os projetos de Newey têm, até hoje na McLaren, onde está,
de melhor? A sua concepção aerodinâmica. Head e a sua suspensão ativa
fizeram com que, vamos chamar assim, o dois projetos da Williams corressem
dentro de um túnel de vento, já que a maior parte das variáveis encontradas na
pista eram anuladas, ou minimizadas, pela suspensão ativa da equipe.
Quando Senna corria atrás do modelo FW15C de Prost, em 1993, mal
podia compreender como sua velocidade nas curvas, em especial nas rápidas,
era tão elevada. Sua McLaren MP4/8, concebida por Neil Oatley, até hoje
trabalha na McLaren, além de possuir um motor com cerca de 80 cavalos a
menos de potência, o Ford V‐8 versão cliente, não tinha a mesma eficiência
aerodinâmica do FW15C.
Foi a partir dessas constatações, na pista, que Senna chamou o modelo
da Williams de "carro do outro planeta." Era esse monoposto de Fórmula 1 que
ele sonhava dirigir quando foi para lá. O que Senna, e talvez Frank Williams e
Adrian Newey, imaginou foi o estrago que faria nos seus sonhos a proibição da
suspensão ativa, a partir de 1994, quando foi contratado.
A Williams retornou, com a mudança no regulamento, guardadas as
proporções, ao estágio da March de 1990. Newey conceberia um carro para
funcionar dentro apenas da condição ideal do túnel de vento. No asfalto
irregular das pistas a coisa não daria certo de novo. Por esse motivo Senna ficou
tão surpreendido logo nos primeiros testes. Como ele lembrou, o FW16, na sua
versão original, era inguiável.
A preocupação com a aerodinâmica foi tão obsessiva que a suspensão
traseira não possuía triângulo superior. O semi‐eixo de tração funcionava
também como um componente da suspensão, além de ser carenado com um
perfil de asa, como se fosse um segundo aerofólio traseiro.
No momento do acidente de Senna, no GP de San Marino, pela exigência
a que estavam submetidos o triângulo inferior e o semi‐eixo, já que não havia
triângulo superior, pensou‐se, em princípio, que ocorrera alguma quebra nessa
suspensão revolucionária. A dinâmica do acidente, com o FW16 seguindo direto
pela tangente da curva Tamburello, não sugeria o rompimento de alguns desses
componentes. O mais natural seria que o carro rodasse e não fosse reto, como
ocorreu, mas mesmo assim as suspeitas iniciais recaíam nesse sistema, tão
avançado quanto complexo.
Por conta da dificuldade de pilotar o seu carro, Senna solicitou a Frank
Williams treinar também com o FW15C adaptado ao regulamento de 1994, ou
seja, sem os recursos eletrônicos, proibidos pelas novas regras. A Williams já
tinha o carro pronto, pois foi usado como laboratório para as experiências de
Newey, antes de conceber o FW16. Senna sentia que o carro‐protótipo era bem
melhor, pelo menos mais previsível, que o novo. Newey bateu o pé e disse que,
se aquela fosse a opção da Williams, não haveria depois como recuperar o
tempo perdido com o FW16, o que deveria seguir adiante da temporada. Senna
e Williams acabaram sendo convencidos por Newey e Head e foi com o FW16
que Senna desembarcou no Brasil para a abertura do Mundial. Na escuderia que
ele sempre sonhara e os brasileiros tanto aguardavam.
O que pouca gente sabia era que Senna estava profundamente
desconfiado daquele carro, que ele mal cabia e mal conseguia pilotar, tal a sua
instabilidade ao passar sobre qualquer irregularidade do asfalto. Os milhares de
torcedores que foram a Interlagos, naquele 27 de março de 1994, no GP do
Brasil, imaginavam ver Senna no monoposto que fizera tanto Mansell quanto
Prost sobrarem na pista. O que Senna não faria então? Ledo engano.
Não perca no próximo capítulo o desastroso início de temporada de
Senna na equipe Williams, para surpresa de todos. Menos dele.
Capítulo 3: Depois das duas primeiras corridas, a pressão de Senna
sobre si e da equipe sobre ele eram insuportáveis
Faltavam 16 voltas para o encerramento do GP do Brasil de 1994, prova
de abertura daquela temporada, quando Ayrton Senna acelerou um pouco mais
do que o normal, na saída da curva Junção, em Interlagos, e sua Williams FW16‐
Renault lançou a traseira para fora, fazendo‐o rodar na pista e abandonar a
competição. Michael Schumacher, com a Benetton B194‐Ford, liderava a corrida,
menos de cinco segundos à frente de Senna. Apesar de todas as dificuldades já
descritas com o carro, graças a seu imenso talento Senna estabelecera a pole
position do GP do Brasil, na sua estréia na Williams. Não há dúvida de que a
maior potência do motor Renault V‐10 da Williams, diante do Ford V‐8 da
Benetton de Schumacher, o ajudou, num,circuito de retas longas e subidas
íngremes, a conquistar o resultado no treino de classificação. Senna fez
1min15s962 e o alemão, 1min16s290. E desde a largada Senna manteve‐se em
primeiro, com Schumacher sempre muito próximo. Os dois entraram juntos no
pit stop para troca de pneus e, a grande novidade na Fórmula 1, reabastecer o
carro de combustível, o que a Federação Internacional de Automobilismo (FIA)
proibira em 1984 e agora estava de volta. As 45 mil pessoas que foram ao
autódromo de São Paulo acompanharam com apreensão a parada de Senna nos
boxes, líder, e Schumacher, segundo, na 21ª volta do GP do Brasil, que teve 71
no total. A Benetton foi mais "eficiente" e o alemão saiu na frente. Com um
carro difícil de guiar, que pulava a cada ondulação do piso de Interlagos, e elas
são muitas, Senna foi obrigado a buscar o seu elevado limite para tentar ganhar
a posição perdida. "Corri para vencer, o segundo lugar quase não interessava, a
mim e a essa gente toda nas arquibancadas", revelaria Senna. Nessa tentativa
de colocar sua Williams o mais próximo possível da Benetton de Schumacher na
saída da curva Junção, Senna ultrapassou o limite do FW16 da Williams e rodou.
Ele sabia que sua velocidade no final daquele longo trecho de aceleração plena,
cerca de 1.200 metros, até a freada do S do Senna, era mais elevada que a de
Schumacher, daí a manobra arriscada. Não deu certo. Eu não hesito em
acreditar, em nenhum momento, que a morte de Ayrton Senna decorreu, na
realidade, da combinação de uma série de fatores desfavoráveis. Já vimos que a
mudança do regulamento técnico e esportivo, em 1994, levou Adrian Newey,
projetista da Williams, a criar um carro quase "inguiável", como o definiu Senna.
Agora entra em campo a questão esportiva. A Fórmula 1 tinha medo de que
Senna vencesse todas as etapas naquela temporada, afinal o melhor piloto do
mundo, era um consenso, estava assumindo o que deveria ser o melhor
equipamento do Mundial. A primeira derrota, ou decepção, daquele ano, no GP
do Brasil, começou a desencadear um processo que terminaria apenas no
impacto da Williams de Senna no muro da curva Tamburello. Oito corridas mais
tarde, explodiria um episódio que acabou por justificar a sua perda da liderança
na corrida de Interlagos. A Benetton do companheiro do Schumacher, o
holandês Jos Verstappen, parou para o seu primeiro pit stop no GP da Alemanha,
na 15ª volta, e de repente viu‐se envolvida pela chamas de 60 litros de gasolina
que queimavam. A válvula de fechamento da mangueira de alta pressão usada
pela equipe manteve‐se aberta, espalhando combustível para todo o lado. Ao
encostar‐se aos canos de escape, cujos gases fluem a cerca de 700 graus Celsius,
a Benetton se transformou numa bola de fogo.
O apurado pelo estudo da FIA surpreendeu: os técnicos da Benetton
haviam retirado um filtro do sistema de reabastecimento, a fim de aumentar a
velocidade de fluxo da gasolina e tornar os pit stops mais rápidos. Uma
impureza, que seria facilmente retida pelo filtro, manteve a válvula aberta,
jorrando a gasolina para fora. Estava explicada, portanto, aquela eficiência toda
dos mecânicos da Benetton no GP do Brasil, para que Schumacher saísse à
frente de Senna no pit stop conjunto da volta 21. O equipamento de
reabastecimento na Fórmula 1 é produzido por uma empresa francesa e todas
as escuderias são obrigadas a usá‐lo, sempre sob regras rígidas determinadas
pela FIA.
Essa perda do primeiro lugar da corrida, nos boxes, foi à causa básica do
erro de Senna na curva Junção, já que ele queria de todas as formas aquela
vitória. Ao longo daquele campeonato também, cresceram muito as suspeitas
de que a Benetton utilizava‐se de um tão complexo quanto enrustido sistema
de controle de tração, o que justificaria em boa parte o excepcional
desempenho do modelo B194, dotado com um motor V‐8, capaz de desenvolver
cerca de 70 cavalos a menos que o V‐10 Renault da Williams. Só a competência
de Schumacher como piloto não era suficiente para explicar suas seis vitórias e
uma segunda colocação seguidas no começo do ano.
Veremos que a frustração de Senna e de milhões de torcedores se
elevaria ainda mais na etapa seguinte do Mundial, o GP do Pacífico, no circuito
TI, em Aida, no Japão. Com o gostinho amargo de não ter somado nenhum
ponto na sua estréia na equipe do "carro do outro planeta", em Interlagos,
Senna encarava a vitória na corrida de Aida como uma obrigação.
Já sem esconder muito sua preocupação com o modelo FW16 da
Williams, Senna disparou: "Todo mundo imaginava que a Williams iria
arrebentar de novo, ganhando tudo, mas essa não era a minha opinião". As suas
65 poles, ao longo dos 161 GPs disputados, fazem de Senna, para muita gente,
como eu, o maior velocista de todos os tempos na Fórmula 1. Essa sua
capacidade de tirar tudo e mais um pouco do carro, em um única volta lançada,
assumindo riscos que poucos ousariam, deram a ele a pole position no GP do
Pacífico, como já ocorrera no Brasil.
Vimos que na etapa de São Paulo, a Benetton de Schumacher tinha,
possivelmente, o controle de tração, e depois o equipamento de reabastecer do
seu time, sem o filtro de gasolina, contribuiu também, ou mesmo foi
determinante, para o resultado final da corrida.
A Benetton que se apresentava para a prova de Aida era a mesma da de
Interlagos. Apenas bem mais tarde, naquele ano, é que as suas falcatruas, como
a retirada do filtro de combustível, viriam a ser descobertas.
Quanto aos recursos eletrônicos, há na Fórmula 1 a certeza da sua
existência, ainda que ninguém conseguisse provar. Com os métodos adotados
hoje pela FIA, não haveria escapatória para a organização dirigida por Flavio
Briatore. A Benetton seria punida. Costuma‐se dizer nos acidentes aéreos que a
queda de uma aeronave decorre da combinação de vários fatores. Uma pane de
motor na decolagem, por exemplo, não deve gerar um acidente, uma vez que o
projeto da aeronave prevê essa situação e a tripulação é treinada para agir
conforme a recomendação do fabricante do aparelho. É preciso, segundo os
especialistas, mais de uma causa primária para ocorrer o acidente, como por
exemplo, a não observação correta dos procedimentos a serem tomados, por
parte do piloto, em situações de pane. Ou ainda uma pane seguida de outra e
de outra, o que é muito raro, anulando os recursos de defesa do avião contra a
condição difícil em que se encontra no ar.
A morte de Senna segue o mesmo modelo. Veja só o que aconteceu no
GP do Pacífico. Sem que ninguém até hoje compreendesse bem o porquê, o
diretor de prova, o despreparado belga Roland Bruynseraede, impôs que na
volta de apresentação os carros seguissem o Safety Car. Senna qualificou a
decisão de "absurda". Normalmente, o piloto que larga na pole dita o ritmo da
volta de apresentação. Os seus interesses são os mesmos dos que estão atrás
dele, e por esse motivo, nessa hora, exige dos freios, para aquecê‐los, procura
também elevar a temperatura dos pneus, tudo sob velocidade compatível com
as exigências de um monoposto de Fórmula 1.
Pouco mais de 100 metros depois da largada, em que Schumacher, por
conta do possível controle de tração pulara à frente de Senna, o finlandês Mika
Hakkinen freou e nada de sua McLaren MP4/9‐Peugeot parar como devia. Foi a
traseira da Williams de Senna que o segurou. Hakkinen bateu no carro de Senna,
lançando‐o para a caixa de brita. Nicola Larini, que estava substituindo Jean
Alesi na Ferrari, porque quebrara uma vértebra cervical num acidente em
Mugello, completou o serviço de colocar Senna para fora da prova ao bater na
sua Williams em plena brita. O italiano também ficou de fora do GP.
Sem adversários, Schumacher passou na pista e impôs quase uma volta
de vantagem para o segundo colocado, Gerard Berger, com a Ferrari 412T1. Em
resumo: Senna tinha agora nenhum ponto, contra 20 de Schumacher. Mais:
enquanto a Benetton, apesar das possíveis irregularidades no carro, havia de
fato evoluído bastante de uma temporada para a outra, a Williams tomara rumo
oposto.
A massa da torcida não enxergava os imensos problemas de Senna com o
carro e a não levava muito em conta a falta de sorte em Aida. O que importava
era que Senna estava finalmente na Williams, seu tão decantado sonho, e não
vencera nenhuma vez diante de duas vitórias de Schumacher, àquela altura,
com o abandono de Alain Prost, no fim do campeonato anterior, o maior rival
do brasileiro.
A cabeça de Senna estava entrando em "tilt", bem como as pressões em
cima da equipe Williams começavam a aumentar assustadoramente. Tudo o
que Frank Williams desejara da Renault e dos patrocinadores da sua equipe, em
especial a Rothmans, havia sido atendido. Senna custava muito caro para a
época, algo em torno de US$ 18 milhões por temporada. Na pista, contudo, a
organização de Frank Williams não estava correspondendo. O GP de San Marino,
em Ímola, apenas 15 dias mais tarde, seria a grande oportunidade para que
todos esquecessem os pesadelos dos GPs do Brasil e do Pacífico. Desta vez não
poderia existir falhas, de Senna ou da Williams.
Capítulo 4: O médico da F‐1, Sid Watkins, pede para Senna não disputar
o GP de San Marino
Na quinta‐feira anterior ao GP de San Marino, terceira etapa do Mundial
de 1994, eu, como vários outros jornalistas, aguardava a chegada de Ayrton
Senna no autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola. Já passava das 15 horas e
nada de ele aparecer na pista. Estava numa cidade próxima, parece que Carrara,
para o lançamento de uma bicicleta com a marca Senna. Ela reunia, claro, o que
de mais avançado existia em termos de tecnologia.
De repente, uma pequena multidão começa a se deslocar dentro do
paddock do circuito, sinal característico da aproximação de Senna. Era sempre
assim. Onde estivesse, no mundo todo, seu carisma, sua forma de instalar‐se no
coração das pessoas o tornava íntimo dos brasileiros, japoneses, malaios,
hondurenhos e australianos. Senna era um patrimônio da humanidade. Sua
figura tinha a extraordinária capacidade de as pessoas não se lembrarem da sua
origem, cor ou religião. Ele bastava‐se em si.
Quem o via manifestava a sensação de ser íntimo dele. A forma carinhosa,
fraterna como o abordavam denunciava essa relação muitas vezes mística entre
a torcida e o piloto. Eram cidadãos de convivência próxima de Senna, mesmo
vendo‐o apenas através de imagens. Senna morava dentro de cada um. Milhões
o transportavam consigo onde estivessem. Sua determinação, competência, fé,
nunca escondida, em algumas ocasiões zombada, sua elevação como ser, o
transformara num semi‐deus, imortal. A comoção que se seguiu a sua morte
decorre muito dessa conotação de imortalidade que lhe atribuíam.
Entre atender os jornalistas de língua inglesa e italiana, Senna comunicou,
a nós brasileiros, que em seguida falaria conosco. Esperamos alguns minutos e
ele entrou no motorhome da Williams. Conversou rapidamente com Frank
Williams e sentou‐se para comer. Estava numa das mesas da área coberta, ao
lado do ônibus da equipe. Ele nos convidou para sentarmos também e,
enquanto saboreava um prato de macarrão, com molho branco, conversou
conosco. Não havia mais de quatro ou cinco jornalistas com ele.
Sempre com o olhar distante, como se algo o incomodasse
profundamente, respondia às questões visivelmente com a cabeça em outro
lugar. "O carro deve melhorar aqui, nós o estamos entendo melhor, a pista não
é das mais onduladas e terei um pouco mais de conforto agora." A seu pedido,
Adrian Newey e Patrick Head, projetista e diretor‐técnico da Williams,
promoveram no pouco espaço de tempo entre a prova anterior do campeonato,
no Japão, e aquela, apenas 15 dias mais tarde, alterações no cockpit do modelo
FW16. Senna batia com as mãos no limite do cockpit quando pilotava. Mais para
a frente veremos que esse fato acabou por ser determinante para o acidente
que o matou apenas três dias depois.
Senna estava visivelmente perturbado. Primeiro havia a questão do
duplo abandono nas duas primeiras etapas do Mundial, no Brasil e no Japão. A
constatação de que Michael Schumacher e a Benetton eram adversários muito
fortes e sua Williams, FW16, "um desastre." Não é tudo. Fora da pista as coisas
exigiam também de Senna muita dedicação, ajudando a compor o quadro de
extrema apreensão que vivia. Ele estava investindo pesado em alguns negócios
e, naturalmente, isso o preocupava.
Acabara de assinar um grande contrato com o fabricante alemão de
automóveis Audi para representá‐lo no mercado brasileiro. Era coisa de milhões
e milhões de dólares e muita responsabilidade. Ao mesmo tempo adquirira a
concessionária Ford Frei Caneca em São Paulo. Seu sócio, o Bira, estava em
Ímola. Havia ainda muito o que acertar sobre essas transações.
Durante o almoço de Senna no motorhome da Williams, já próximo das
quatro horas da tarde, chegou Ricardo Patrese, que abandonara as pistas no fim
da temporada anterior. A forma alegre, expansiva com que o italiano falava com
Senna, ali no nosso lado, contrastava com a postura fria, distante do brasileiro,
apesar do seu esforço em desejar expor a Patrese seu contentamento em vê‐lo.
Um outro episódio viria aumentar ainda mais o já conturbado e difícil
momento de Senna, em oposição a tudo que ele e todos planejaram para
aquele início de campeonato. E esse fato novo pesava provavelmente mais que
todos os demais.
Começou a circular no autódromo a informação de que o irmão do piloto,
Leonardo, a quem caberia gerir a empresa criada em sociedade com a Audi,
estava em Ímola, recém‐chegado do Brasil. A pedido da família, que reprovava
sua relação com a namorada, Adriane Galisteu, Leonardo teria com ele algumas
fitas contendo gravações telefônicas comprometedoras de Adriane. Seriam
conversas com um ex‐namorado da modelo.
Sua intenção seria a de provar para o piloto quem era na realidade
Adriane. No velório de Senna, em São Paulo, na quarta‐feira seguinte, ficou
claro como a mãe, o pai, a irmã, enfim todos, não desejavam ver Senna com
Adriane. Ela ficou isolada da família e nem mesmo foi recebida por eles. Já Xuxa,
a ex‐namorada, parecia contar com a simpatia da família. Esse era mais um
tormento para o piloto: a reprovação de todos, a quem estava tão ligado, com
relação ao namoro com Adriane.
Veremos mais para a frente que o clima de tensão para Senna cresceu
tanto, depois do grave acidente de Rubinho, no dia seguinte, sexta‐feira, e da
morte de Roland Ratzemberger, no sábado, que o médico da Fórmula 1, doutor
Sid Watkins, chegou a conversar com o piloto, sábado à noite, orientando‐o a
não disputar o GP de San Marino, o que o matou.
"Ele me disse, o que é que eu vou alegar para a equipe, nessa situação
em que estamos, 20 pontos atrás do Schumacher na classificação? Apenas que
não estou bem?" Watkins conta a história com mais detalhes no seu livro “Viver
nos Limites”. No próximo capítulo, Watkins fala da sua apreensão com relação à
participação de Senna na prova. A reação do piloto ao visitar Rubinho no
Hospital Maggiore de Bolonha, sexta‐feira à noite, onde ele chegaria
praticamente morto, dois dias depois. Mais: o seu choro ao saber da morte de
Ratzemberger no impacto do carro da Simtek no muro da curva Villeneuve e a
incrível punição da FIA por ele ter ido até o local do acidente.
Capítulo 5: Acidente de Rubinho desestabiliza ainda mais Senna
Até agora vimos que o regulamento da F‐1 mudou radicalmente naquela
temporada de 1994, que o modelo FW16 da Williams de Ayrton Senna era
muito difícil de ser pilotado e que nas duas primeiras etapas do campeonato,
Brasil e Aida, no Japão, o piloto, grande favorito a ser campeão do mundo, não
havia marcado um único ponto. Em contrapartida, seu principal adversário,
Michael Schumacher, da Benetton, vencera as duas primeiras etapas da
temporada.
Já entramos, no último capítulo, no GP de San Marino, onde procuramos
descrever o clima de tensão que envolvia Senna. Pelas dificuldades com o FW16,
a falta de resultados, o seu momento pessoal, assumindo a responsabilidade de
vários e importantes negócios, e até a questão envolvendo a sua família e a
reprovação ao namoro com Adriane Galisteu.
Logo depois do primeiro treino livre da prova, sexta‐feira, Senna teve um
momento de menos tensão no fim de semana. O carro estava melhor. Adrian
Newey, projetista da Williams, permaneceu, em regime de clausura, estudando
o que poderia fazer para poder adotar uma suspensão menos rígida no FW16
sem, contudo, perder eficiência aerodinâmica. "O aerofólio dianteiro está um
pouco mais alto e temos uma nova geometria de suspensão dianteira", explicou
o piloto. Como não exigira tudo do equipamento, por tratar‐se do primeiro
treino livre, a avaliação não era conclusiva: "Tenho a impressão de que o carro
está menos crítico".
Senna pôde a partir daquele momento, também, trabalhar melhor as
mãos e os braços na condução. O volante do modelo FW16 havia sido abaixado
poucos centímetros e agora ele não batia mais as mãos nas paredes do cockpit,
ao lado do volante. "Ficou melhor", limitou‐se a dizer Senna. Raramente ele
dava detalhes do que havia sido feito no carro. Quando ele contou o que Newey
fez no FW16 surpreendeu quem ouviu.
Pausa para o almoço, entre a sessão livre da manhã e a classificatória à
tarde. Senna tinha os cabelos longos naquele fim de semana, como não o havia
visto ainda na F‐1. Sua concentração para sair daquela situação de desvantagem
diante de Schumacher e da Benetton era total. Suas declarações eram quase
sempre monossilábicas, sinal típico de que estava focado em algum objetivo.
Senna era assim: uma série de comportamentos denunciava o que ele buscava.
Lembro‐me uma vez de ele nos contar uma história: "Quando vocês me
virem inclinando o capacete para o lado de dentro das curvas, saibam que tanto
eu como o carro estamos no limite naquela curva."Outra senha era a sua reação
com poucas palavras. Se ele dissesse apenas sim ou não, ou até nem
respondesse, então alguma coisa o incomodava. Naquele GP, especificamente,
já vimos que eram muitas coisas que o perturbavam e não uma só.
Desde 1987, cubro profissionalmente as corridas de F‐1 como jornalista,
apesar de apenas a partir de 1991 passar a segui‐las de forma regular, no
mundo todo. Tive apenas duas chances de conversar com Senna de forma mais
profunda. Abordar temas que não fossem relativos ao automobilismo. Uma
delas foi num vôo de volta de Barcelona para o Brasil, em 1992, e a outra na
temporada seguinte, em Miami, no escritório de um amigo dele, Tony, dono de
uma loja de produtos eletrônicos. Regressávamos do Canadá.
Fora disso, os contatos foram sempre estritamente profissionais. Senna
mantinha relações de amizade mesmo, capaz de dividir suas intimidades, com
pouca gente. Um deles era Galvão Bueno. Um dos capítulos dessa nossa
conversa será dedicado só a essa empatia que existia entre Senna e Galvão, o
"papagaio", segundo o piloto, por ele "falar demais".
Lembro‐me do vôo de volta, de Paris para São Paulo, o que trouxe o
corpo de Senna para São Paulo. Ao lado do seu caixão, coberto com a bandeira
do Brasil, Galvão nos contou muitas histórias engraçadas envolvendo os dois.
Por vezes as interrompia para dizer: "Olha ele aí agora, veja em que condição o
estamos levando de volta para casa, dentro de um caixão." Mas esse é tema
para outro capítulo.
O clima de apreensão para Senna no GP de San Marino cresceu ainda
mais no começo da sessão de classificação da sexta‐feira à tarde. Logo no início
do treino, as imagens nas TV do circuito focalizaram um carro com as rodas para
cima, em um local ainda não identificável. Quando um monoposto capota, há
sempre uma tensão natural pelo fato de a cabeça do piloto, apesar do "Santo
Antônio" dianteiro e traseiro, estar exposta. Não dava para saber quem era
ainda que se acidentara tão feio.
Em seguida, a TV expôs o VT do que se passara. Era Rubens Barrichello,
jovem piloto brasileiro de 21 anos, tido na F‐1 como um talento nato àquela
altura, que trabalhava para a Jordan. O seu vôo na Variante Baixa foi de assustar.
Desacordado, nos instantes iniciais do socorro médico, as conseqüências pelo
ocorrido sugeriam ser graves. Todo mundo na F‐1 temia o brusco corte nos
recursos eletrônicos naquela temporada. "É um risco tornar os carros menos
guiáveis sem diminuir a potência dos motores", afirmou na época o ainda bem
conceituado projetista John Barnard.
Aquele acidente com Rubinho levantara de imediato a questão. Senna,
como muita gente no paddock, foi até o ambulatório médico instalado muito
próximo de onde Rubinho bateu, antes do primeiro box. Eu estava a uns 20
metros da entrada do ambulatório, no limite da área isolada pelos
organizadores, quando vi Senna passar por mim indo em direção aos médicos.
Sua expressão era muito tensa. Caminhava rapidamente. O dono da
equipe Jordan, o irlandês Eddie Jordan, passara por ali instantes antes e pude
ouvi‐lo dizer a Geraldo Rodrigues, empresário de Rubinho, para telefonar para o
pai do piloto, a fim de avisá‐lo do acidente. Até então se imaginava que algo de
mais sério teria acontecido com Rubinho, afinal ele bateu a cerca de 200 km/h
num muro, com o carro voando. Não demorou muito, uns 10 minutos, e Senna
deixou o ambulatório rapidamente. Ele tinha os olhos visivelmente marejados.
Eu já havia vivido situação semelhante, em 1990, em Jerez de la Frontera,
quando Senna foi até a pista acompanhar a assistência médica ao irlandês
Martin Donnely, da Lotus, que sofrera o mais impressionante acidente que já vi,
pessoalmente, na F‐1. Como na Espanha em 1990, Senna também chorou em
Ímola, por causa de Rubinho. "Por favor, me deixem passar, ele parece que está
bem, está bem", se limitou a nos falar".
A pista ficou interrompida 22 minutos. "The show must go on" é o lema
da F‐1, ou seja, o "show deve continuar", e assim foi feito. Os pilotos voltaram a
disputar a classificação. Fazia calor, 28 graus. No fim da sessão, Senna conseguiu
ser o mais veloz, como já fora no Brasil e em Aida, no Japão: 1min21s548 diante
de 1min22s015 de Schumacher. "Tivemos um treino caótico, o acidente do
Rubinho afetou a todos; não consegui dar uma única volta bem feita, quando
acertava aqui errava ali", afirmou Senna. "No final, ser o mais veloz é ótimo,
acima do que eu poderia esperar", completou.
Rubinho fora transferido para o Hospital Maggiore de Bolonha, a cerca de
50 quilômetros de Ímola, para exames mais profundos. Senna apressou as suas
reuniões com a equipe Williams, depois da classificação, para ir até o hospital
visitar o amigo. Pouco tempo antes, Rubinho e Senna passaram vários dias
juntos no Japão, em Tóquio, antes de embarcar para Aida a fim de disputar a
segunda prova do campeonato. O Mundial começara com o GP do Brasil, depois
o do Pacífico, em Aida, no Japão. O GP de San Marino era o terceiro do
calendário. Até hoje Rubinho descreve o prazer que teve de conhecer Senna
mais intimamente naquela viagem. "Demos muita risada na Disney japonesa",
recorda Rubinho. "Foi importante para mim aquele contato, o Ayrton era o meu
maior ídolo".
Geraldo Rodrigues, o anfitrião dos visitantes de Rubinho no hospital, me
contou à noite, quando estive lá, que Senna se interessou em saber detalhes do
estado de Rubinho e que demonstrava estar apreensivo. O Hospital Maggiore
de Bolonha é público. Rubinho dividiu o quarto com outros dois doentes.
Quando entrei no quarto, lá pelas 9 horas da noite, fiquei surpreso com a
presença desses pacientes no mesmo local. Rubinho, com o rosto bastante
inchado pela fratura do nariz, dormia.
Imaginei, na hora, como os europeus reagiriam se no GP do Brasil um
piloto acidentado fosse levado ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas e
depois permanecesse em observação na enfermaria, junto de outros doentes.
Provavelmente a corrida não mais seria disputada no País. A sexta‐feira
terminou para Senna ainda pior do que começara. O acidente de Rubinho o
afetara visivelmente. Pude acompanhar o seu trabalho na Williams, depois, de
dentro da área de box, até onde nos é permitido chegar, na frente dessas
garagens. Com toda certeza estava abalado. Ele mesmo confessou ter cometido
vários erros na pista.
Mas se a sexta‐feira foi ruim, o sábado seria ainda pior. Roland
Ratzemberger morreu ao colidir a 300 km/h com sua Simtek, na curva
Villeneuve. Se o quadro emocional vivido por Senna já era difícil, por tudo que o
cercava e o susto com Rubinho no dia anterior, agora ganhara conotações
psicopatológicas. Por isso, o médico da F‐1, Sid Watkins, pediu a Senna para não
disputar a prova. O sábado no Circuito Enzo e Dino Ferrari será o tema do
capítulo 6 da nossa história.
Capítulo 6: Senna e os outros pilotos da F‐1 voltam a conviver com o
pesadelo da morte nas pistas
Talvez o momento mais marcante para mim, envolvendo Ayrton Senna
naquele dia 30 de abril de 1994, sábado do GP de San Marino, foi quando o vi
abraçado, apoiado no ombro do doutor Sid Watkins, do lado de fora do centro
médico do circuito Enzo e Dino Ferrari, em Ímola. Era mais ou menos 13:50.
Naquele instante o médico da Fórmula 1, Watkins, informou a Ayrton e o
Charlie Moody, chefe da equipe Simtek, por onde corria o austríaco Roland
Ratzemberger, que não havia nada o que se pudesse fazer pelo piloto, ele
estava morto.
A Fórmula 1 estava desacostumada a recolher seus mortos. Para aquela
geração que competia na pista, a morte representava algo possível, lógico, mas
muito distante. O último piloto a morrer em um GP havia sido o italiano Ricardo
Paletti, da Osella, na largada do GP do Canadá de 1982, em Montreal. Outro
italiano, Elio De Angelis, perdera também a vida na Fórmula 1, em 1986,
durante testes particulares da Brabham em Paul Ricard, na França. Ayrton
Senna, Michael Schumacher, Mika Hakkinen, Damon Hill nunca haviam
convivido com a dura realidade da morte nos autódromos.
Senna chorara já no dia anterior, naquele mesmo local, um dos mais
freqüentados naquele fim de semana, o centro médico da pista de Ímola,
quando Rubens Barrichello também sofrera grave acidente. Agora de novo ele
estava lá, mas desta vez para algo bem pior, a perda de um colega de profissão.
Deu para perceber de onde estávamos, uns 20 metros do local, que Senna
queria a todo custo entrar no minihospital e não o autorizavam. Estava
supertenso em razão de ter desembarcado de um carro da organização da
prova, segundos antes, proveniente da curva Villeneuve, onde Ratzemberger se
acidentara.
O pequeno tumulto que se formou na porta do centro médico chamou a
atenção de Watkins, lá dentro, que junto com o doutor Baccarini tentava, em
vão, ressuscitar o piloto austríaco. Watkins, neurocirurgião, já tinha o
diagnóstico irreversível e deixou o minihospital para conversar com Senna.
Depois, mais tarde, ele nos diria que Senna chorara convulsivamente no seu
ombro. "Éramos amigos, pescávamos juntos, ficávamos nas casas das
respectivas famílias."
O mais incrível foi o que se passou a seguir: o belga Roland Bruynseraede,
delegado de segurança da Fórmula 1 e diretor de prova, mandou chamar Senna
na torre de controle para lhe pedir explicações sobre o seu comportamento de
solicitar a um carro oficial do GP para ir até o local do acidente de Ratzemberger.
Não pude ouvir Senna a respeito porque naquele dia ele não mais atendeu
ninguém. Permaneceu fechado no motorhome da Williams e não mais retornou
à pista, apesar do treino ter prosseguido depois de o helicóptero ter decolado
levando o austríaco para o Hospital Maggiore de Bolonha.
Soube que Bruynseraede lhe pediu satisfações. Senna sabia que a FIA não
brinca e é dura nessas questões de manter a autoridade, apesar da situação
absurda no caso. No fim de 1989 e início de 1990, se Ayrton Senna não se
recatasse publicamente das acusações ao então presidente da Fisa, Jean‐Marie
Ballestre, de favorecer Alain Prost na decisão do último Mundial, no GP do
Japão, não receberia sua superlicença para disputar a temporada. Senna,
segundo depois a assessoria da Williams, teria respondido a Bruynseraede que,
como piloto, interessava‐se em compreender o que ocorreu na curva Villeneuve
com Ratzemberger, daí dirigir‐se até lá.
Bruynseraede é um belga que trabalhava no autódromo de Zolder já na
época em que Gilles Villeneuve morreu, em 1982, dirigindo provas locais.
Começou a trabalhar para a FIA e sem que ninguém soubesse ao certo como,
atingiu o importante cargo de diretor de prova além de delegado de segurança
da Fórmula 1. Eu o conheço bem. No último GP da Bélgica, em Spa‐
Francorchamps por exemplo, ele estava lá e conversamos.
É sempre bastante simpático e dei muitas voltas de carro nos circuitos da
Fórmula 1 ao seu lado, com ele explicando‐me muito dos trabalhos realizados
nas pistas. Esta é uma das áreas que mais me interessa nessas competições.
Mas devo confessar: é um homem sem formação técnica, acadêmica. Aprendeu
na prática e não raro sua falta de domínio de conceitos básicos de física,
química e matemática ficavam evidentes.
Lembro‐me do GP da Hungria daquela mesma temporada, 1994. Era
quinta‐feira, início da tarde, eu acabara de chegar ao autódromo, procedente
do Brasil. Conversava rapidamente com um pequeno grupo de jornalistas
quando Bruynseraede se aproximou.
Nós o cumprimentamos e em seguida, sem que esperássemos,
perguntou: "Vocês também acham que eu fiz mal em deixar a corrida seguir
adiante na Alemanha?" Cerca de uma semana antes, estávamos em
Hockenheim e ainda na primeira volta da prova nada menos de dez carros dos
26 que largaram envolveram‐se num acidente.
Havia pedaços dos carros para todo lado. Por sorte ninguém se feriu.
Bruynseraede foi bastante criticado por todos por não optar pela bandeira
vermelha, interrompendo a corrida para depois haver nova largada. Quase em
coro respondemos a ele que de fato fora um erro grave não paralisar a
competição. Eu jamais imaginava presenciar reação de tamanha insegurança de
um delegado de segurança da Fórmula 1. Não esquecerei jamais sua
argumentação frágil, despreparada, exposta a seguir para justificar a decisão de
manter a corrida com bandeira amarela. Mais: ele espontaneamente nos
procurou, o que bem demonstra suas incertezas.
Era nas mãos de indivíduos bem intencionados como ele, mas mal
preparados, que a Fórmula 1 estava naquela época. Charlie Whiting, um ex‐
mecânico inglês da equipe Brabham quando Bernie Ecclestone era o seu
proprietário, o substituiria no campeonato seguinte. Whiting mantem‐se na
função até hoje.
Senna não voltou para a pista, assim como Schumacher, depois da
interrupção da segunda tomada de tempos, ocorrida aos 19 minutos de treino.
Por mais que Gerhard Berger, da Ferrari, tentasse, não melhorou a marca de
Senna e Schumacher registradas no dia anterior. Fiquei impressionado com a
frieza de Berger, já que Roland Ratzemberger era austríaco como ele. Berger
não se deixou atingir pela perda do amigo, sentou no carro e acelerou tudo para
ficar em terceiro no grid. Eu me viria também impressionado com Jean Alesi,
companheiro de Berger na Ferrari. No dia seguinte à morte de Senna, segunda‐
feira, enquanto seu corpo estava no Instituto Médico Legal de Bolonha,
aguardando a autópsia, o francês treinava a 60 quilômetros dali, em Fiorano.
Alesi foi testemunha ocular do acidente de Ratzemberger. Entre o GP do
Brasil e o do Pacífico, ele sofreu uma gravíssimo acidente em Mugello, enquanto
treinava com sua Ferrari 412T1, e teve fratura de uma vértebra cervical. Por
muito pouco não ficou paralítico. Aquele era o seu primeiro treino depois do
período de convalescença. No sábado do GP de San Marino, Alesi estava no
meio da torcida, na arquibancada da curva Tosa, onde parou a Simtek de
Ratzemberger depois do impacto da curva Villeneuve, a cerca de 300 km/h, o
ponto de maior velocidade do circuito.
"Vi tudo com clareza", disse Alesi. "Ratzemberger perdeu uma parte do
aerofólio dianteiro antes da Villeneuve e ficou sem pressão aerodinâmica na
frente. Quando ele iniciou o contorno da curva, seu carro seguiu reto, colidindo
em um ângulo aproximado de 45 graus no muro, praticamente sem reduzir a
velocidade em que saiu da pista. Deve ter morrido na hora." O austríaco teve
fraturas múltiplas das vértebras cervicais, causadas pela súbita desaceleração
do choque, além de dilaceramento visceral, motivado pela mesma origem.
Ninguém conseguiu falar com Senna no restante daquele dia. Alegando
falta de condições emocionais, ele não só não falou com ninguém como se
recusou a treinar. Frank Williams o apoiou. O período de tensão da sua vida
pessoal combinado com as dificuldades do seu momento na Fórmula 1
transformaram Senna em um cidadão distante de tudo. Nos poucos minutos
que pudemos vê‐lo naquele sábado ele parecia longe, abatido, triste, reflexivo.
Não creio que questionasse a validade do que fazia. Senna amava pilotar e
deixava claro isso.
Acredito que ele tentasse apenas encontrar forças para enfrentar as
acusações à namorada trazidas do Brasil pelo irmão, Leonardo, conforme se
falava em Ímola, e para compatibilizar seus novos e elevados investimentos
empresariais, em especial a representação dos automóveis Audi no Brasil, com a
atividade de piloto. Mais: responder à falta de resultados nas duas primeiras
etapas da temporada, apesar de estar na Williams, e ainda por cima conviver
com desgaste da morte na Fórmula 1.
O dia 30 de abril de 1994 de Senna no circuito Enzo e Dino Ferrari não
terminou com a sua saída do autódromo, no fim da tarde, já com a 65.a pole
position da carreira conquistada, a última. As horas que se seguiram foram
terríveis. No próximo capítulo Senna conversará com Frank Williams, dando a
entender que pretendia não disputar o GP de San Marino, conforme o doutor
Watkins lhe sugeria. A noite tensa do piloto em Doza, pequena cidade medieval
onde ele estava hospedado. O que se comentou no dia seguinte, de manhã na
pista, a respeito das possíveis gravações que Leonardo lhe apresentou,
acusando Adriane Galisteu.
Capítulo 7: Domingo de Manhã
Caro internauta: Vamos fazer um trato? Por uma combinação de razões,
não seguirei a seqüência cronológica dos episódios de cercaram a morte de
Ayrton Senna. Você se lembra quando no capítulo anterior lhe falei que da
próxima vez, hoje portanto, reproduziríamos um retrato do que foi a noite de
sábado, 30 de abril, em Doza, na Itália, onde ele estava hospedado? Vamos
passar para o domingo, o trágico 1.o de maio de 1994. Prometo redigir logo o
que se passou no sábado em Doza.
O domingo amanheceu ensolarado, apesar de não fazer calor. Desde
1992 instalo‐me numa pequena cidade chamada Riolo Terme. Desse local até
Ímola, onde acha‐se o circuito Enzo e Dino Ferrari, existe algumas pequenas
montanhas, em cujas colinas são cultivadas as uvas que dão origem ao vinho
San Giovese, típico da região. Há plantações também de "plune", que são
aquelas cerejas vermelhas, grandes, e kiwi.
Logo na saída do Albergo Serena acha‐se o acesso a essa bucólica e
sinuosa estradinha. Quando ela acaba, 11 quilômetros adiante, encontro‐me
exatamente na curva Rivazza da pista. Depois é só contornar uma quadra e
entrar no autódromo. Não sou supersticioso, evito fazer essas associações
porque se damos crédito a elas nossa vida passa a ser regida por mecanismos
do tipo: se eu quiser ter êxito em alguma coisa devo antes passar por isto ou
aquilo. Ganhar a imagem de um santo de presente dá sorte, passar em baixo de
escada ou ver gato preto dá azar. Respeito que acredita, claro, mas não gosto
de pensar dessa forma.
O que vou contar aqui não tem relação, ao menos na minha cabeça, com
o que aconteceu naquela tarde de domingo, na sexta volta do GP de San Marino.
Mas quero deixar registrado. No caminho de Riolo Terme até Ímola, quase
sempre sem ninguém na estrada, tive de reduzir a velocidade para não passar
por cima de uma cobra. Esse animal tem sido associado a desgraças, se não me
engano. Nos seus movimentos tradicionais, a cobra nada pequena, de uns dois
metros, cruzou o asfalto. Também não acredito que a próxima vez que vir outra
cobra no caminho da pista alguém irá morrer na pista.
Pouco antes de desembocar na Rivazza senti o clima de corrida, com
muitos motoristas procurando estacionar seus carros nessa estradinha e
milhares de espectadores a pé. Eu confesso que estava bastante sensibilizado
com tudo o que ocorrera naquele fim de semana. Primeiro o acidente do
Rubinho, na sexta‐feira, depois a morte de Roland Ratzemberger, no sábado.
Tinha comigo a certeza de que a proibição de quase todos os recursos
eletrônicos, naquele ano, sem diminuir a potência dos carros, os deixara
perigosos.
A sensação da iminência de novos acidentes era nítida em mim. Jamais
pensei, contudo, que Ayrton Senna pudesse estar envolvido em um deles, ao
menos fatal. Isso não passava pela minha cabeça. Cheguei no autódromo pouco
antes do warm‐up, próximo das 9 horas. Sabia desde o dia anterior que Niki
Lauda estava programando pré‐agendar com os pilotos uma reunião para se
discutir a segurança na Fórmula 1. Lauda trabalhava como conselheiro da
Ferrari e assessor especial do presidente da empresa, Luca di Montezemolo. Os
dois são amigos desde que Luca era diretor esportivo da Ferrari, em 1975 e
1977, quando Lauda ganhou dois campeonatos com a equipe italiana.
Lauda disse a um grupo de jornalistas em que estava presente: "Acho que
apenas Senna pode liderar um movimento desses, só ele tem autoridade para
falar, ser ouvido e respeitado." Senna foi para a pista pela primeira vez desde a
sábado pela manhã no warm up. Ele não participou da sessão de classificação
do sábado à tarde. O acidente com Ratzemberger ocorreu no início do treino e
ele, profundamente perturbado com tudo que o cercava, não tentou melhorar
seu tempo. Mesmo assim acabou com a pole position.
O treino foi normal. Eu estava tenso, como fiquei muito, mas muito
mesmo em Mônaco, na corrida seguinte, depois que já na primeira sessão livre
Karl Wendlinger bateu forte da saída do túnel e entrou em coma. Não podia
ouvir o barulho daqueles carros. Achava que outros iriam morrer. Pensei em
voltar para o Brasil e mudar de profissão. Estava certo da minha decisão. Afinal,
na sexta‐feira em Ímola Rubinho quase se mata e no sábado Ratzemberger
morreu. No domingo foi a vez de Senna. E já no primeiro treino da corrida
seguinte, em Mônaco, Wendlinger era dado como morto. Quer dizer: que
esporte é esse? Ganha quem sobrevive? A Roma antiga, embora fisicamente
perto dali, estava 2000 anos atrás no tempo. Bem, isso é outra história que
depois eu conto.
Voltemos ao domingo em Ímola. Vi Lauda conversar com Senna, em
pleno paddock do circuito Enzo e Dino Ferrari, a respeito do seu plano de talvez
recriar a Grand Prix Drivers Association (GPDA), entidade criada e dirigida pelos
pilotos a fim de defender os seus interesses, em especial os relativos à
segurança. Com o abandono das pistas de Jackie Stewart, em 1973, seu principal
líder, a GPDA acabou deixando de existir. Agora, 20 anos mais tarde, era hora de
retomá‐la. "Combinamos que na quarta‐feira iremos nos encontrar", revelou
Lauda, sobre a conversa com Senna.
Contou mais: "Discutiremos não só a revisão do regulamento técnico mas
principalmente a segurança das pistas. Alguns muros têm de ficar mais distantes
do asfalto. Reconheço que nem sempre é possível, como no caso aqui de Ímola,
em que o muro da Villeneuve (onde se acidentou Ratzemberger) está no limite
do terreno do autódromo, a saída então é mexer nos traçados", disse Lauda.
Michael Schumacher, da Benetton, o líder do Mundial, com duas vitórias, no
Brasil e no GP do Pacífico, no Japão, também estaria presente no encontro,
segundo falou Lauda.
Senna não conversou com nenhum jornalista, ao menos que eu saiba.
Nos evitou visivelmente. Tinha a expressão fechada, mas um pouco melhor que
a de sábado à tarde. Nos raros momentos de aparição pública assim o via.
Ele ficou a maior parte do tempo daquela manhã dentro do motorhome
da Williams, reunido com Adrian Newey, o projetista do modelo FW16, e seu
engenheiro de pista, o inglês David Brown. Já que não dava para não disputar a
corrida, como ele chegou a pensar, por tudo o que o atormentava, o jeito era
então fazer da melhor forma possível.
Uma nova vitória de Schumacher deixaria a situação insustentável. O
alemão já tinha 20 pontos e ele nenhum. O doutor Sid Watkins, médico da
Fórmula 1, chegou a orientar Senna, sábado à noite, para que ele não corresse.
"Sim, o fiz", admitiu o médico tempos depois. "Alguém tão fora de si como ele,
homem tão sensível, com boas razões para isso, não poderia submeter‐se às
exigências de uma corrida de Fórmula 1", revelou Watkins.
Eu vi Senna pela última vez quando ele se dirigia do motorhome da
Williams para o box da equipe, cerca de 40 minutos antes da largada. De novo
trazia consigo a tensão do fim de semana e da sua vida pessoal. Normalmente
eu caminhava pelo grid naquela meia hora em que os pilotos estacionam seus
carros na posição em que irão largar.
Naquele dia fui direto para a sala de imprensa. Até hoje, ao lado da de
Montreal, é a sala mais apertada e mal equipada de todas no calendário da
Fórmula 1. Apesar da simpatia, cortezia e vontade de ser útil de seu supervisor,
Gianni Retti, a realidade dessa sala não tem nada a ver com o avanço da
Fórmula 1 e de quase todos os outros locais de trabalho dos jornalistas nos
autódromos do calendário.
Minha posição na sala era próxima de uma janela em que podia ver a
passagem dos carros. Eu os via desde a saída da chicane que antecede a linha de
chegada até pouco antes do local onde Senna perdeu o controle do carro, na
Tamburello. A maior parte do tempo, contudo, acompanhamos a prova pelas
imagens de TV. Dispomos de mais ângulos que o selecionado para chegar na
casa de quem vê a corrida de casa. Eu estava nervoso e podia sentir isso nas
minhas mãos, frias. Até hoje nas largadas não me sinto muito à vontade. É o
instante de maior risco de acidente na F‐1. Mesmo sabendo que aqueles
rapazes estão lá fazendo o que desejam e têm consciência desses riscos,
confesso que temo muitas vezes por uma pancada violenta, em especial com
aqueles me relaciono bem profissionalmente.
No caso do GP de San Marino havia o agravante do histórico daquele ano.
Primeiro o finlandês Jirki Jarvilehto, da Benetton, em janeiro, se acidentou na
curva Stowe, em Silverstone, e teve fratura de vértebra cervical. Não correu as
duas primeiras etapas do Mundial e estava de volta naquela prova. Depois foi a
vez de ocorrer o mesmo com Jean Alesi, da Ferrari, em Mugello. Nicola Larini o
estava substituindo em Ímola. Mais: Rubinho se arrebentara na sexta‐feira,
Ratzemberger morrera no sábado. O que não aconteceria então nas 58 voltas
do GP de San Marino, cujo circuito tinha pontos de altíssima velocidade, em
curva, como a Villeneuve e a Tamburello?
Capítulo 8: Acidente na Tamburello, às 14:17 do dia 1º de maio de 1994
Em 1953, o italiano Giuseppe Farina perdeu o controle da sua Ferrari 500
na 30a volta do GP da Argentina, em Buenos Aires, e matou nove espectadores.
Em Monza, em 1961, o alemão Wolfgang von Trips acabou provocando outra
tragédia. Ele estabelecera a pole position com sua Ferrari 156. De repente, na
saída da curva Parabólica, antes do fim da primeira volta, a Ferrari tomou a
direção das arquibancadas matando Trips, que podia ser campeão do mundo
ainda naquela prova, e mais 13 torcedores.
Esses são apenas dois exemplos de etapas do Mundial em que além do
piloto, várias outras pessoas morreram. Comparado com esses momentos
difíceis da Fórmula 1, que eu já havia lido e relido, até que o GP de San Marino
não representava uma perda tão grande, ao menos em número de vidas. A
largada ainda não fora dada e havia um único morto na história, Roland
Ratzemberger, no sábado, diante de nove, em 1953 na Argentina, e 14 na Itália,
em 1961. A grande diferença é que meu conhecimento daquelas provas
resumia‐se à literatura específica, enquanto em Ímola, 1994, eu vivia sua
tragédias pessoalmente.
Como escrevi no capítulo anterior, Jirki Jarvilehto não disputara as duas
primeiras etapas da temporada por ter se acidentado, com gravidade, na curva
Stowe, em Silverstone, na pré‐temporada. Ele era o companheiro de Michael
Schumacher na Benetton. Jarvilehto, o sobrenome dele é assim, com as duas
palavras juntas, ele que me ensinou, estava estreando no campeonato no GP de
San Marino. No sábado, no fim da tarde, eu conversava com ele. O piloto
austríaco Roland Ratzemberger, da Simtek, já havia falecido. "Eu tive muita
sorte", disse‐me Jarvilehto. Ele sofreu fratura de duas vértebras cervicais e por
milagre a lesão óssea não se estendeu até a medula nervosa, que corre por
dentro das cervicais. Se tivesse ocorrido a lesão, no mínimo ele estaria paralítico
das pernas.
Jarvilehto abaixou a cabeça, lançou os cabelos louros para a frente, e
expôs a região posterior do pescoço, para que eu pudesse ver a cicatriz da
cirurgia a que foi submetido. Era um corte impressionantemente longo e largo.
Nem a minha bagagem de ex‐estudante do curso de Medicina Veterinária da
USP e algumas cirurgias humanas que fotografei, como transplantes de rins, me
impressionaram tanto quanto a cicatriz no pescoço de Jarvilehto. Sabia que um
novo impacto poderia matá‐lo. E o fim de semana vinha cheio de prenúncios
sinistros. Esse era apenas mais um dado que gostaria de registrar para explicar o
que vem adiante.
14 horas: Roland Bruynseraede autoriza a largada. Jarvilehto, quinto no
grid, não larga. O motor Ford da sua Benetton morreu. Uma parte do pelotão
consegue desviar, mas sua posição é muito adiante no grid. O português Pedro
Lamy, com Lotus, acerta em cheio a traseira da Benetton, parada na pista. Um
roda da Lotus voa na direção da arquibancada e atinge vários torcedores. Com
carros e detritos para todo lado no asfalto, o diretor de prova ordena a entrada
do Safety Car na pista.
Ayrton Senna lidera a corrida, seguido por Michael Schumacher. Da sala
de imprensa, onde estava, temia pela vida de Jarvilehto e das pessoas que
receberam o impacto da roda da Lotus. Dá para compreender como todos que
estavam no autódromo viam seus temores crescer a cada instante? Desde a
sexta‐feira os acidentes se sucediam sem parar. De novo conversávamos entre
nós, jornalistas, que John Barnard, projetista da Ferrari, estava com a razão:
Retiraram a eletrônica embarcada e não reduziram a potência, deixando os
carros inguiáveis.
Nós esperávamos por outras más notícias. E ela veio mais cedo do que
supunhamos. A imagem que eu tinha na TV onde eu estava mostrou a Williams
de Senna seguindo reto na curva Tamburello, bem distante. Passava 17 minutos
das 14 horas, sexta volta do GP de San Marino, a primeira desde a relargada da
prova. Antes mesmo de Senna bater no muro, eu já pensava comigo: outra
etapa sem marcar pontos, que droga! Repare que aquele idéia de Senna‐imortal
estava radicalmente incrustada em mim. Eu tinha consciência de que ele iria se
chocar em alta velocidade, próximo dos 300 km/h, mas Senna não era
Ratzemberger. Era Senna, inconscientemente imortal para mim.
A imagem seguinte que nos foi oferecida pela TV italiana era já a da
Williams desacelerando depois do impacto no muro. Epa! Pensei. Bateu forte
mesmo. Enquanto o carro ainda se arrastava no cimento branco da área de
escape da Tamburello e o asfalto, eu tentava identificar o estado do cockpit,
verificar se o santo‐antônio estava inteiro, enfim, qualquer dado que me
permitisse formar uma idéia da gravidade do acidente. Quando a Williams
parou, com Senna inerte dentro, e ele deu aquela pequena mexida na cabeça,
imaginei que não se tratava de um acidente fatal. Ao contrário, não sei se por
desejar que ele estivesse bem, naqueles segundos tinha a impressão de que
Senna teria se ferido sem maior gravidade.
A desaceleração havia sido elevada, concluída por observar, ainda que
sem a clareza necessária, o ângulo do impacto e a distância percorrida pela
Williams desde o choque até a imobilização. Mas o cockpit parecia inteiro, bem
como o santantônio. Mas tudo começou a mudar quando vi os paramédicos
abrirem um lençol branco a fim de impedir a obtenção de mais imagens do
atendimento ao piloto. Isso sempre é um indicativo de sérios ferimentos. O
quadro se complicou ainda mais para mim ao ver sangue no chão. Não estava
certo se vinha de uma hemorragia ou de traqueotomia, para permitir que Senna
respirasse. Mais: os pés de Senna, deitado no chão, estavam por demais abertos.
Se eles fossem os ponteiros de um relógio, formavam o horário 15 para as 3
horas. Tinha a certeza de que ele estava inconsciente. Quando o piloto mantém
os dois pés na posição 10 para as 2 ou cinco para a uma, em geral é um bom
sinal, ou menos ruim. Senna estava no estágio mais avançado do "relógio da
vida", 15 para as 3.
Nesse instante, sai da sala de imprensa, situada sobre os boxes, e fui até
a saída de boxe, de onde poderia atingir, cerca de 300 metros adiante, o local
do acidente na Tamburello. Mas os comissários haviam bloqueado a passagem.
Permaneci lá uns dez minutos, acompanhando tudo através das imagens de TV
instaladas nos boxes da Minardi. Fiquei ali para saber se os italianos cederiam
na proibição. Na Itália nada é absoluto, como no Brasil.
Angelo Orsi, um velho amigo da família de Senna, fotógrafo da revista
Autosprint, com que converso regularmente, voltava do local da batida. "Ele
está mal, mal, perdia muito sangue pela cabeça", foram suas primeiras palavras.
Levei um susto. Pela primeira vez compreendi que o caso era bem mais grave do
que eu pensava. Lembro‐me de elevar o pensamento a Deus e pedir que o
preservasse.
Ao cair em mim, corri para a sala de imprensa a fim de aprontar meu
computador, minha bolsa e me dirigir, de novo, para o Hospital Maggiore de
Bolonha, um velho conhecido meu. Eu já estivera lá na sexta‐feira à noite, para
visitar Rubens Barrichello, no sábado, para ter mais notícias sobre Roland
Ratzemberger, embora já soubesse que ele falecera, e agora no domingo
repetiria os cerca de 50 quilômetros que separavam o autódromo do hospital.
Eu estava revoltado. Depois de tantas desgraças, a próxima era previsível.
Não sei se por inocência, comecei a achar que a corrida não deveria ser
disputada. Alguma coisa estava errada e quem sabe Barnard estivesse certo
demais. Já de posse das minhas coisas, caminhei rápido até o estacionamento
da imprensa, ao lado da curva Rivazza. Bem na hora em que estava abrindo a
porta do meu carro alugado, ouvi o ronco ensurdecedor dos motores dos carros,
passando por ali, próximo de onde estava. Seria dada uma nova largada, sem
Rubens Barrichello, Roland Ratzemberger e Ayrton Senna.
Ainda hoje reflito no meu comportamento naquele instante: "Assassinos,
o que vocês querem? Matar mais um? Já não chegam dois? Chega! Será que
vocês não viram que o erro não está nos pilotos, mas nos carros?
Acredite: foi o que eu gritei, meio fora de controle, em protesto a tanta
desgraça, embora eu lá no fundo ainda tivesse esperanças de chegar no Hospital
Maggiore e receber a notícia de que Senna estava sendo operado, seu estado
era grave, mas não irreversível, como fiquei sabendo assim que entrei no
hospital. O médico que atendera Senna no helicóptero que o transportou do
autódromo para Bolonha tirou de mim qualquer esperança de vê‐lo vivo
novamente. Seu relato é impressionante. Todos os detalhes das longas e
sofridas horas no hospital estarão no nosso próximo capítulo.
Capítulo 9: A doutora Fiandre anuncia no Hospital Maggiore de Bolonha:
"Senna está morto"
Faz tempo, reconheço, mas estamos de volta. E acho que valeu a pena
esperar. Para quem quer saber mais detalhes daquele triste 1.o de maio de
1994, o capítulo de hoje, acredito, irá impressionar. Nós viajaremos desde a
minha saída do autódromo Enzo e Dino Ferrari, no início da tarde, depois do
acidente, até o momento do anúncio da morte de Ayrton Senna, no Hospital
Maggiore de Bolonha, para onde ele foi transportado de helicóptero depois do
impacto na curva Tamburello.
A não ser o nome dos médicos com quem conversei naquele dia,
resgatados em meus arquivos, o que você lerá a seguir vem puramente do que
ficou registrado em minha memória e até hoje não contado para ninguém, ao
menos no nível de aprofundamento que iremos abordar. Repito: são descrições
chocantes, que só interessam aos que, de fato, buscam conhecer os detalhes de
tudo o que cercou a morte do maior ídolo esportivo da história do nosso país.
Enquanto me dirigia pela terceira vez de Ímola para o Hospital Maggiore
no fim de semana, várias vezes recordo‐me de ter recorrido a Deus, solicitando‐
lhe que preservasse a vida de Senna. No princípio eu imaginava que o impacto
não fora fatal, mas depois de ouvir de Angelo Orsi, o fotógrafo amigo de Senna,
uma descrição mais precisa do que se passara durante o atendimento médico
ainda na pista, tinha consciência de que o quadro era grave. Só não imaginava
que se tratava de uma situação irreversível.
No Brasil, era domingo de manhã, e não me lembro de ter ligado para os
jornais que trabalhava e onde estou até hoje, Estadão, Jornal da Tarde e Agência
Estado, para informar‐lhes de que havia deixado o autódromo. Para mim a
Fórmula 1 não interessava mais. Tudo o que eu precisava saber, como cidadão e
jornalista, era se Senna sobreviveria. O resultado do GP de San Marino tornara‐
se irrelevante.
Várias vezes tive de dizer a mim mesmo, nos cerca de 50 quilômetros que
separam o circuito do hospital, que eu não estava sonhando. Aquilo era
realidade.
Eu me dirigia até Bolonha para saber se Senna ainda estava vivo. Era a
minha terceira corrida como contratado da empresa para cobrir a Fórmula 1. Eu
pensei comigo: se Senna morresse, todas as atenções estariam lá na Itália, ao
menos até o embarque do corpo para o Brasil. Eu estava sozinho, seria o
responsável por levar aos leitores dos jornais de casa um painel de informações
de tudo. Que responsabilidade!
Isso fez eu me concentrar quase doentiamente no meu trabalho e deixar
as emoções, ao menos as maiores, de lado. Frieza, exigi de mim mesmo, no
caminho enquanto dirigia o carro. Ao mesmo tempo, comecei a elaborar uma
estratégia de cobertura. As notícias estariam no hospital, mas também no
autódromo. Era imprescindível ouvir também Frank Williams, dono da equipe
de Senna, Patrick Head e Adrian Newey, os homens que assinaram o projeto do
modelo FW16 pilotado por Senna.
Estacionei o carro no hospital e até então não deparei com nada de
diferente na sua rotina. Eu imaginava que haveria gente por todo lado a fim de
acompanhar uma eventual cirurgia em Senna. De imediato compreendi que eu
chegara bastante cedo ao hospital, a ponto de entrar no edifício e não ver um
único jornalista. No fim de uma rampa que dá acesso ao um saguão central,
para onde todos se direcionam ao entrar no hospital, vi a primeira manifestação
de que Senna estava lá.
Um policial, um carabinieri, estava agitadíssimo. Alguém acabara de lhe
dizer que o piloto se acidentara e há pouco havia chegado ao hospital,
transportado de helicóptero. Ele tinha o chapéu na mão e gritava, sem controle:
"Meu Deus, o que é isso, não existe mais piloto como Senna, que corre com o
coração". Eu o ouvi e rapidamente entrei no saguão atrás de notícias. Estava
meio trêmulo. Apesar da tentativa de manter‐me tranquilo, nunca fui um
exemplo de equilíbrio emocional e com um agravante, costumo somatizar os
dramas.
Mas ali não havia jeito. Se eu falhasse estaria desperdiçando a minha
grande chance profissional, que eu tanto lutara na vida, ou seja, cobrir o
Mundial de Fórmula 1 para a grande mídia impressa brasileira. Cada vez que me
lembrava disso ganhava força para deixar de lado as minhas emoções. Deixei de
pensar também nas reações que estavam ocorrendo no Brasil por conta do
acidente de Senna, o que colaborou para eu me controlar.
Nesse momento vi Roberto Cabrini, repórter da TV Globo, com quem
sempre tive boa relação profissional, e um pouco mais tarde Celso Itiberê, o
correspondente do jornal o Globo em Milão e responsável pela cobertura do
campeonato para a empresa carioca. Fui informado pela administração do
hospital de que o centro de recuperação, ou a UTI, era no 11o andar do edifício.
Não encontrei no hospital um único cidadão que tivesse um mínimo de
sensibilidade com o que estava se passando: um piloto de Fórmula 1, ídolo em
dezenas de países, lutava para viver e esses pseudo‐profissionais continuavam
sendo mal‐educados, grossos e desinteressados. Mais para frente vou lhes
contar um episódio envolvendo‐os que é de chocar. O que faltava de bom senso
aos funcionários do hospital sobrava aos médicos deslocados para o
atendimento. Todos solícitos e não escondendo nenhuma informação. Nos foi
orientado que não subíssemos ao 11o andar, mas era impossível atender o
pedido do hospital. A notícia estava lá. E eu não errei ao decidir pagar para ver.
Logo que sai do elevador encontrei um médico com as roupas usadas no centro
cirúrgico. O senhor veio lá de dentro, viu o Senna, pode me dizer alguma coisa?
Perguntei, meio afobado, imaginando ouvir um desaforo. Se ele fosse um
animal irracional como os outros que trabalhavam no hospital, essa deveria ser
a sua reação.
Para a minha surpresa, nada disso ocorreu. Descobri tratar‐se do doutor
Servadei, um dos que atendeu Senna ainda na pista e o acompanhou no
helicóptero até o hospital. Apesar de profissional, ele estava abalado. Com voz
bem baixa, começou a descrever o que vivera naquela última hora. Ele é quem
fala:
"Antes mesmo de retirar o capacete, ficamos impressionados com a
quantidade de sangue o que piloto perdia. Alguma artéria havia sido atingida
com certeza e minha primeira preocupação era, uma vez exposta a cabeça de
Senna, tentar conter a hemorragia. Quem orientou a complexa retirada do
capacete foi o doutor Watkins, o médico da FIA. Mas tão logo tivemos acesso a
sua cabeça, sem o capacete e a balaclava, compreendi que Senna não
sobreviveria.
Vimos que toda a base craniana estava aberta e ele perdia massa cefálica,
cérebro, pelo corte de mais de um centímetro de largura, que corria por trás das
orelhas, de lado a lado da cabeça, aberta. Para mim ele havia batido a cabeça no
muro da curva Tamburello, em alta velocidade. Isso explicava aquele
traumatismo generalizado da caixa craniana."
Depois de ouvir aquilo, estava claro para mim que não havia mais o que
fazer. A morte de Senna era uma questão de tempo. Pouco tempo. Lembro‐me
de ter procurado um lugar para sentar e dizer a mim mesmo que aquilo era
verdade. Nesse instante passou a circular a informação de que os médicos do
caso falariam no centro de conferências do hospital, no térreo. Profundamente
abatido, sem saber o que pensar, fui para lá, sempre transportando o meu bloco
de anotações o velho computador laptop Toshiba 1000, uma peça de museu se
comparada aos que uso hoje.
Na mesa do centro de conferência ficaram de pé, nenhum deles sentou,
o doutor Domenico Cosco, a doutora Maria Tereza Fiandri, que entrou para a
história, por ter anunciado, oficialmente, às 19h05, a morte de Senna, o doutor
Andreolli, neurocirurgião, o doutor Servadei e o doutor Gordini, anestesista.
O primeiro a falar foi Andreolli, que descreveu o quadro como o mais
traumático possível, citando um valor numa escala desenvolvida por um
medalhão da neurocirurgia que não me recordo. "Não existe uma área
específica do cérebro que podemos atuar para a reparação, tudo foi danificado
no acidente. O traumatismo é genérico bem como os danos a todo o tecido
nervoso", dizia ele.
Entre eu conversar com o doutor Servadei no 11o andar e a conferência,
passaram‐se cerca de uma hora e já havia muitos repórteres para acompanhar o
caso. Na sala de conferência pude observar até mesmo doentes de pijama, que
sabiam da internação de Senna em estado de emergência. A consternação pelo
anunciado pelo doutor Andreolli foi impressionante. As pessoas tomaram
consciência de que Senna, quase um ídolo da humanidade, aquele que parecia
imortal, morreria no máximo em questão de horas. Entrei em contato com o
nosso chefe de reportagem na época, coordenador do "pool" de jornalistas de
esportes do Estadão e JT, Castilho de Andrade, hoje editor do JT, para lhe
informar onde estava, o que já apurara e o que viria pela frente. Como eu teria
de escrever um volume respeitável de textos naquele dia, Castilho sugeriu que
eu já enviasse o primeiro com o que apurara até então. Achei prudente. Sentei
numa das cadeiras da sala de conferência e conectei meu laptop em uma
tomada que descobrira ali, próximo da mesa dos médicos, que já deixavam o
local.
Nesta hora surge um cidadão, daqueles imbecis que há pouco citei,
dizendo‐me que não poderia ficar ai. "Vou fechar esta sala", disse‐me com a
maior agressividade pensável. Eu lhe pedi que me desse uns 50 minutos para
redigir um texto, isso em nada alteraria a rotina do hospital. Quase sem olhar
para mim o animal foi até o centro de controle de luzes da sala e me ameaçou,
com a mão nas chaves elétricas, ao me informar que se eu não saísse de lá
naquele instante ele desligaria a luz do ambiente. Não tive alternativa. Minha
vontade era de agredi‐lo. Não disse nada e sai.
Voltei a falar com o doutor Servadei, o do helicóptero. Ele me deu mais
detalhes: "A hemorragia que Senna tinha ainda na pista era tão violenta que
durante o vôo até o hospital nós lhe re‐implantamos 4,5 litros de sangre,
enquanto circula pelo nosso organismo cerca de 6 litros de sangue." Ele
também falou da perda de liquor, líquido existente entre as camadas nervosas
que envolvem todo o tecido nervoso, a fim de protegê‐lo. "Na dilaceração
ocorrida no seu cérebro, Senna perdia massa cinzenta e líquor, o que começou a
deformar rapidamente suas feições."
Toda vez que essas camadas são rompidas, o líquor, mantido sob elevada
pressão entre elas, se espalha pelas cavidades que encontra, causando o
edemaciamento (inchaço) de todos os tecidos. Em outras palavras, o rosto, a
cabeça de Senna estava se deformando rapidamente, ganhando volume.
O doutor Gordini, o anestesista, contou‐me também o que ocorreu no
helicóptero: "Senna teve uma depressão respiratória bastante séria. Nós
administramos drogas que reverteram o quadro, mas mesmo que ele não
tivesse sofrido os estragos todos no cérebro, decorrentes do impacto no muro,
só aquela depressão já lhe teria causado danos irreversíveis no tecido nervoso.
Ele teria apenas vida vegetativa. Seu cérebro recebeu pouco oxigênio durante
alguns segundos preciosos. No centro de treinamento, Senna chegou a ter uma
parada respiratória, quando o que restou do seu cérebro ainda exibia atividade
elétrica. De novo nós o reanimamos."
Observe, amigo internauta, que em nenhum momento os médicos
falaram em afundamento do frontal, causado por algum componente do carro
que se projetou na direção da cabeça no momento do impacto. Hoje acredita‐se
que a barra que conecta a roda do carro ao conjunto mola‐amortecedor,
denominada push‐rod, é que perfurou a viseira do capacete, pressionando a
cabeça de Senna contra a parte de trás do cockpit. Essa compressão é que teria
causado a fratura da base do crânio. Os médicos apenas me citaram intensa
hemorragia originada do rompimento da artéria temporal.
Recapitulando: pouco antes das 16 horas eu já estava no Hospital
Maggiore e conversava com o doutor Servadei, na porta do centro de
reabilitação. Às 16h30 a doutora Fiandri anunciou no centro de conferências do
hospital que o neurocirurgião, doutor Andreoli, falaria sobre o estado de Senna.
Ficamos sabendo que não havia como intervir cirurgicamente e que a morte era
uma questão de horas. Depois voltei a falar com os médicos que me deram mais
informações do atendimento. A doutora Fiandri, que se tornou uma espécie de
porta‐voz do grupo médico, nos avisou que só se pronunciaria se tivesse
"alguma novidade."
Às 17h55, ela surge novamente no saguão principal do hospital, na porta
do pronto‐socorro. A esta altura o hospital não mais permitia o acesso ao 11o
andar, onde estava Senna, no centro de recuperação. Visivelmente emocionada,
a doutora Fiandri informou que o eletro‐encefalograma de Senna não acusava
mais atividade elétrica. "Senna tem morte cerebral". Boa parte dos profissionais
de imprensa que estava no autódromo, a esta altura, lotava o hospital. Para a
maioria, aquele foi o primeiro contato com os médicos que cuidavam de Senna.
A notícia, esperada pelos que estavam lá, novidade para eles, causou comoção
em todos.
Estava difícil falar nos raros telefones públicos do hospital. A telefonia
celular de longa distância apenas começava. O comunicado da doutora Fiandre
era, no fundo, a morte de Senna. Seu coração continuava batendo, mas não por
muito tempo. Vi pessoas chorando, dentre eles jornalistas muito emocionados
também. Eu ainda não chorara, talvez por conta daquele preparo a que me
submeti, dizendo a mim mesmo que ao menos enquanto estivesse ali, atrás de
informações, eu mantivesse a situação sob controle.
Todos nós, jornalistas, precisávamos nos comunicar com nossas bases,
para de novo informar do andamento das notícias. A doutora Fiandri, por
exemplo, disse que só voltaria a falar com a imprensa às 21 horas ou se "tivesse
alguma novidade". Isso depois de anunciar a morte cerebral do piloto, às 18:05,
dez minutos após sair pela porta do pronto‐socorro e depois que o empurra‐
empurra que se estabeleceu a sua volta se acalmasse.
Sua previsão para a morte legal de Senna falhou. Às 19h05 ela surgiu de
novo, proveniente do pronto‐socorro. Não era onde estava o piloto. Com os
olhos marejados, ela falou em voz pausada, carregada de emoção, enquanto
não se ouvia um ruído sequer a sua volta, apesar da presença de centenas de
jornalistas. Todos precisavam ouvir para acreditar: "Senhores, por favor. Desde
as 18h40 Senna não registra mais atividade cardíaca. Ele está morto".
Capítulo final: De Bolonha para o Cemitério do Morumbi
Caro leitor: nós poderíamos ir muito além nessa história que envolveu a
perda de Ayrton Senna. Para quem se interessa pelo tema, garanto que eu teria
ainda bastante a contar. Por uma combinação de razões profissionais que não
vale a pena aqui discutir, normais nas relações empresa‐colaborador, vamos
encerrar hoje a série. Gostaria de pedir desculpas pela minha longa abstinência
de textos. Ela decorreu também desses problemas, na qual não posso isentar‐
me de responsabilidades. Como sempre destaquei, o objetivo deste trabalho foi
repassar a vocês um pouco do que vivi e, principalmente, senti naqueles dias
que antecederam e logo depois do acidente do Ayrton em Ímola.
Se você ainda se lembra, da última vez que falamos sobre o assunto, eu
estava no Hospital Maggiore, de Bolonha, acompanhando o minuto a minuto
dos médicos até a notícia da morte do piloto. Também dei algumas informações
do drama que foi enviar o material para o Estadão, o jornal que trabalho até
hoje, e o que vi no autódromo, já tarde da noite daquele 1.º de maio de 1994.
Nosso último capítulo começa com o fato de eu não ter dormido a noite
seguinte. Recordo de ter chegado ao meu hotelzinho em Riolo Therme, onde
me hospedo até hoje e tenho um amigo, Angelo, o proprietário. Pouco antes do
amanhecer da segunda‐feira, dia 2, tomei banho arrumei toda a minha
bagagem, a coloquei no carro, porque sabia que ficaria itinerante, e fui até o
autódromo. Apenas alguns vales separam Riolo de Ímola. São cerca de 12
quilômetros por uma linda estradinha cercada de plantações de "plune", que
são aquelas cerejas vermelhas grandes, e kiwi, além claro das vinheiras que
produzem o vinho da região, o San Giovese.
Quando cheguei ao autódromo fiquei espantado com o abandono. Os
portões estavam abertos e não havia ninguém. Eram umas 6 horas da manhã.
Entrei com meu carro na pista, já que não havia controle. Vagarosamente fui até
a curva Tamburello, local do acidente. Eu estava bem abalado emocionalmente.
Parei o carro metros antes de onde Senna perdeu o controle e sai para ver de
perto as marcas no chão. O circuito tinha o seu leito de asfalto, cerca de uns 3
metros de grama e outros 14 metros de cimento branco antes do muro. Vi com
absoluta clareza a marca dos pneus da Williams no chão.
Sobre o cimento branco, a trilha formada pelos pneus arrastando‐se era
absolutamente nítida. Até mesmo o ângulo de impacto no muro podia ser
calculado com razoável precisão. Era elevado, algo entre 35 e 40 graus, o que
justificou o carro perder velocidade em tão pouco espaço. Espantou‐me o
relatório da perícia técnica, algum tempo depois, que concluiu que a Williams
bateu num ângulo de aproximadamente 17 graus. Ora, se fosse assim, iria
desacelerando aos poucos, quase que correndo junto ao muro até perder
velocidade.
E as marcas no solo? Tudo bem que não fossem absolutamente
conclusivas, mas eram altamente indicativas da dinâmica do choque. Ainda hoje
desconfio com todas as minhas energias da precisão da análise técnica que se
seguiu ao acidente. Nem de longe pretendo ser o dono da verdade tampouco
presunçoso, mas tenho convicção que o ângulo do impacto foi muito maior do
que o relatado, o que me faz duvidar de todo o restante da apuração.
Sai do autódromo colocado para fora pela segurança que chegou de
repente. Até as 6 horas não havia viva alma no circuito Enzo e Dino Ferrari. De
repente, o pessoal da administração e da polícia desembarcou na pista. Quase
fui agredido quando me viram no local do acidente. Sentei no carro e fui
embora. O destino era bem triste de ser admitido: o Instituto Médico Legal de
Bolonha, onde estava o corpo de Senna. Tomei consciência de que o piloto que
eu admirava tanto, por quem tanto torci inúmeras vezes, estava morto.
Emocionei‐me enquanto percorria os 50 quilômetros que me separavam de
Bolonha.
Vocês não podem imaginar quanta gente existia na porta do IML.
Ninguém podia entrar. Havia um portão de ferro entre a avenida e uma espécie
de pequeno estacionamento, dentro do edifício. Nessa área, visível da rua, havia
já dezenas de conjuntos de flores, mensagens, fotos, bandeiras. Vindos de todos
os cantos e das mais diferentes origens, como torcedores, empresas, equipes,
consulados etc. Conheci uma senhora que viajou de trem da sua cidade,
distante mais de duas horas de Bolonha, só para estar na porta do IML quando o
corpo de Senna saísse. Como até liberá‐lo, o cônsul brasileiro em Milão e Celso
Lemos, diretor do Instituto Ayrton Senna, precisaram de mais um dia, esta
senhora voltou para sua casa na segunda‐feira para, no dia seguinte, estar de
volta. Ela conseguiu: no fim da tarde da terça‐feira retiraram o corpo do IML.
Enquanto o veículo que o transportava se dirigia para o aeroporto de
Bolonha, as pessoas iam aplaudindo a sua passagem. Eu queria voltar para o
Brasil no mesmo avião. Por isso corri para o meu carro e fui para o aeroporto
também. Um avião da Força Aérea Italiana levou o corpo de Bolonha para Paris,
a fim de ser embarcado no vôo da Varig para São Paulo. Consegui pegar um vôo
da Alitália para Paris. Enquanto voava escrevi os meus textos. Naquela época
não se podia usar o laptop a bordo, de forma que escrevi as matérias a mão.
Tinha pouquíssimo tempo para desembarcar em Paris, trocar de terminal,
ditar por telefone o que escrevi para alguém no jornal, e ainda embarcar no
mesmo vôo da Varig de Paris para São Paulo. Consegui, no limite, porque o
comandante não aceitou levar o caixão no compartimento dos passageiros,
conforme manda a lei internacional. Ele só concordou depois de o presidente da
Varig ter lhe enviado um fax assumindo a responsabilidade pela decisão.
Retiraram as poltronas da seção central da classe executiva, transferiram seus
poucos passageiros, por sorte, para a primeira classe, e fecharam as cortinas
que separam as classes do avião.
Isso mesmo: o caixão envolvido com a bandeira brasileira veio do nosso
lado, dentro do avião. Na classe executiva ficaram apenas os jornalistas, dentre
eles Galvão Bueno, Betise Assumpção, a assessora de imprensa de Senna,
Jofeph Lebner, preparador físico, e Celso Lemos. Os passageiros, a grande
maioria, nem desconfiou o que se passava por detrás daquelas cortinas
fechadas, muito menos que o corpo de Senna estava ali do seu lado. Os
comandantes dos outros aviões que sabiam que a bordo daquele vôo da Varig
estava o corpo de Senna, enviavam sinais com os faróis da aeronave, além de
conversar com os tripulantes do nosso vôo, via rádio. Galvão Bueno veio
contando muitas histórias vividas com Senna. Estávamos sentados ao lado do
caixão do piloto. "Olha ele aí. Olha só como nós estamos trazendo ele de volta?"
dizia Galvão, emocionado, mas muito controlado. "É... acabou", repetia ele.
Pousamos em São Paulo enquanto o dia 4 de maio começava a clarear. Vi
a irmã de Senna, Viviane, e seu marido entrarem no avião e levarem um choque
ao ver o caixão. Choraram muito. Todos os passageiros haviam saído pela porta
de trás do avião, para não terem de passar pela área da classe executiva, mas à
frente na aeronave, onde estava o corpo. Os bombeiros entraram no MD11 da
Varig, retiraram o caixão e o colocaram num caminhão da corporação. Pude ver
enquanto me deslocava do aeroporto de Cumbica até a minha casa, no
Ibirapuera, a verdadeira multidão que esperava no caminho para dar seu adeus
a Senna. O corpo foi transportado até a Assembléia Legislativa de São Paulo, no
Ibirapuera, e de lá para o Cemitério do Morumbi.